A Notícia Como Estereótipo - Gaye Tuchman

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

CENTRO DE LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO


Jor

1
FACULDADE DE JORNALISMO
Contando “estórias”
TUCHMAN, Gaye. In: TRAQUINA, Nelson, Jornalismo: Questões,
2
Teorias e „Estórias‟. 2 ed. Lisboa : Vega, 1999, p. 258-262.
Frame analysis pode ajudar no estudo dos princípios de organização que
estão na base da selecção e definição dos acontecimentos noticiosos.

Os relatos de acontecimentos noticiosos são “estórias” -


nem mais nem menos. Como Robert Park (1925) afirmou
há várias décadas, a notícia de jornal é uma forma de
literatura popular, uma reincamação das ainda populares
novelas apresentadas de uma outra forma. Mais
recentemente, citando uma aluna de Park, Helen Hughes
(1940), Robert Damton (1975) abordou a mesma questão:
os repórteres descobrem acontecimentos nos quais
conseguem localizar os temas e os conflitos de uma
sociedade particular. Estes acontecimentos são
recontados essencialmente através da mesma “estória” de
ano para ano ou mesmo de década para década. Por
exemplo, Damton relata que enquanto era repórter de
polícia, e andava à procura de uma “boa estória” num
determinado dia, descobriu que haviam roubado uma bicicleta de criança. Ele escreveu e
publicou uma “estória” tocante, realçando o drama humano da perda de propriedade do miúdo e
soube posteriormente que, na prática, a mesma “estória” saíra no seu jornal alguns anos atrás.
Implícita no ensaio de Damton está a noção de que os jornalistas aprendem formas de
“estórias” que eles usam como equipamento profissional, como mecanismos que eles
podem aplicar para transformar os acontecimentos que encontram no seu produto
profissional –relatos de acontecimentos ou news stories. Todavia, Damton não fornece uma
técnica para analisar esta suposta “transformação”. Neste artigo, gostaria de apresentar uma
técnica através da aplicação dos conceitos de frame e strip de Goffman (1975) às notícias e aos
acontecimentos noticiosos. Como se mostrará, os conceitos de Goffinan são particularmente
úteis porque eles não pressupõem que uma transformação ocorra quando os acontecimentos
noticiosos se tomam “estórias”. Nem pressupõem que haja necessariamente uma
correspondência entre acontecimento e “estória”.
Como Goffman (1975, pp. 10-11) o define, um frame é constituído pelos princípios de
organização que governam os acontecimentos - pelo menos os sociais - e o nosso envolvimento
subjectivo neles”. Os frames organizam as “strips” do mundo quotidiano, entendendo-se por
strip “uma fatia ou corte arbitrário do fluxo da actividade corrente” (1975, p. 10). Além disso,
eles também podem governar a constante organização social dos próprios acontecimentos.
Assim, eles podem constituir happenings soltos ou conversa amorfa como um acontecimento
perceptível, ao passo que sem o frame seriam apenas happenings ou apenas conversa. Assim,
utilizando as convenções da news story como frame, os repórteres conseguem mais do que fazer
um acontecimento público; eles definem o que é e quais os happenings amorfos que fazem parte
do acontecimento (Smith, 1974). Como frames, as “estórias” oferecem definições da realidade
social.
Um exemplo pode clarificar a aplicação do conceito deframe às noticias. Considere-se a seguinte
troca de palavras, tirada de notas de campo:

1
Reedição de: Journal of Communication (Vol. 26, Nº 4, 1976). “Telling Stories”, de Gaye
Tuchman.
2
O português do texto é de Portugal.
Professor mestre Artur Araujo ([email protected])
site: http://docentes.puc-campinas.edu.br/clc/arturaraujo/
ftp: ftp://ftp-acd.puc-campinas.edu.br/pub/professores/clc/artur.araujo/
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A: Como foi?
B: Não muito grande. FACULDADE DE JORNALISMO
A: Seis parágrafos?
B: Está bem.
A troca de palavras, em si, não tem sentido. Informação suplementar fornece um contexto social
e empresta algum significado a esta fatia de conversa:
Um repórter regressa à Redacção vindo da cena do fogo, a sua tarefa do dia. Antes de
se dirigir para a secretária, fala com o editor da secção local. Erguendo os olhos, o
editor pergunta: “Como foi?”. “Não muito grande”, responde o repórter. “Seis
parágrafos?”, pergunta o editor, querendo dizer “Será espaço suficiente para cobrir
este acontecimento?”. “Está bem”, responde o repórter, e dirige-se para a sua máquina
de escrever, elaborando mais tarde uma “estória” acerca do fogo com seis parágrafos
de extensão (Sigal, 1973).
É claro que os “dispositivos de framing” (como seja noticiar e acrescentar uma determinada
informação) identificam os happenings.
3
Neste exemplo, dar um inicio e um fim (um contexto) à conversa proporciona-lhe os atributos
4
de uma anedota estruturada e “revela” que a conversa é uma conferência editorial. Mais
importante ainda, esta conferência editorial eleva o fogo ao estatuto de acontecimento. Embora
o “fogo menor” possa ter causado estragos nas vidas das pessoas cujos lares foram demolidos, o
seu carácter público formou-se a partir da natureza da “estória” - um “fogo de seis parágrafos”
não muito interessante, aparentemente com falta de drama humano.
Para os repórteres, aquele “fogo de seis parágrafos” tem ainda outra caracteIÍstica. Não é nem
uma conflagração que destruiu os seus lares (como poderia ter sido para os residentes dos
prédios destruídos), nem apenas um “fogo menor aparentemente com falta de drama humano”
(como poderia parecer para os leitores do jornal). É uma “estória”, melhor, uma de uma série de
“estórias”, que é o produto de dias e anos de trabalho jornalístico de rotina.
A ênfase dada às “estórias” sugere que, pelo menos em parte, os repórteres possam
falar entre eles mais de “estórias” do que de acontecimentos. Eles podem ver o mundo
quotidiano e os seus documentos de apoio em termos do produto que vão fabricar - a “estória”.
Os seguintes resumos de conversas, retiradas de observações de campo, ilustram este
fenómeno:
Um repórter de tribunal conversa com um advogado que lhe trouxe a queixa de dois
guardas da “Housing Authority”. Após terem falado acerca do caso, o advogado afirma
que conhece o “grande repórter” do jornal e resume o acontecimento que discutira com
o “grande repórter”. “Lembro-me da 'estória '“. responde o repórter.
Que existem noções abstractas de “estórias” é mais visível nas referências negativas dos
repórteres. O repórter B tinha evidentemente na cabeça uma noção de um tipo de “estória”
durante a seguinte troca de palavras:
Três repórteres, sentados em secretárias vizinhas, conversam durante um período de
ócio. Começaram a conversar acerca dos requisitos legais para se ocupar um cargo
político e de quais os cargos que exigem que o político viva na zona que ele/ela
representa. O repórter A, escalado para a Câmara Municipal durante o dia, disse que o
membro X da assembleia não vivia no círculo por que fora eleito, e isso poderia ser
uma boa “estória”. (Os repórteres trocam dicas para “estórias” como prova de
amizade). O repórter B, o repórter político que deveria cobrir tais assuntos, rematou a
conversa dizendo: “Não vou pegar nessa porcaria.”

3
O uso de contextos na identificação do significado é discutido em novas teorias sociológicas,
incluindo trabalhos de Garfinkel (1967), Zimmennan e Pollner (1972) e Smith (1974).
4
Anedota aqui deve ser compreendida não como piada, mas como particularidade curiosa ou
jocosa que acontece à margem dos eventos mais importantes, e por isso ger. pouco divulgada,
de uma determinada personagem ou passagem histórica
Professor mestre Artur Araujo ([email protected])
site: http://docentes.puc-campinas.edu.br/clc/arturaraujo/
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Visto que o repórter B se recusava a reconhecer a residência do membro da assembleia como


uma “estória válida”, ele não consideravaFACULDADE
a residência como um acontecimento público.
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Certamente, a importância das “estórias” enquanto frames está implícita na literatura sobre a
comunicação que trata o problema da socialização dos jornalistas. No mínimo, aprender
“estórias” inclui aprender a identificar o lead de uma “estória”, a distinguir entre um lead
de primeiro e segundo dia, a fazer uma transição suave entre os parágrafos potencialmente
disjuntivos, e a dispor os parágrafos de modo que caiam “naturalmente” numa pirâmide
invertida. Todavia, a literatura não refere que elementos como estes identificam os
acontecimentos e as suas circunstâncías particulares. De novo, um exemplo negativo, uma
“estória” que não chegou a ser escrita, fornece a chave para a compreensão do processo de
identificação e definição: Um repórter estava sentado na sua secretária, um cigarro na boca, as
mãos suspensas sobre as teclas da máquina de escrever, uma pose característica de quem está
“à procura de um lead”. “Se estás com problemas em encontrar um lead, por que razão não
5
dizes a Gaye” , afirmou um colega. O repórter resumiu a “estória” que queria escrever. Dizia
respeito à sua visita a um centro prisional da cidade no qual os reclusos recentemente se haviam
amotinado. Ele e outros repórteres haviam acompanhado uma comissão da Câmara Municipal
nessa visita e num período de perguntas e respostas com os reclusos. Os reclusos queixavam-se
de que estavam detidos antes do julgamento porque não conseguiam arranjar dinheiro para
pagar as elevadas fianças que haviam sido estabelecidas e que este procedimento violava as
disposições da Constituição americana. Os membros da Câmara esperavam receber queixas
acerca da comida e de outras condições de vida; eles não ouviram os argumentos acerca da
Constituição embora esses argumentos tivessem sido apresentados. O argumento constitucional
é a “estória”, disse o repórter, mas o seu jornal, assim como os membros da Câmara,
esperavam a “estória” acerca das condições de vida. O repórter não conseguia encontrar um
lead que se ajustasse quer à “sua estória”, quer àquilo que ele entendia ser a “estória”
tradicional acerca das condições prisionais que o seu jornal esperava receber. Finalmente, tirou
a folha em branco da máquina de escrever, dizendo que se recusava a escrever “a estória”
esperada, e virou-se para outro assunto.
Argumentar que as notícias são “estórias” e que as “estórias” são frames para
identificar e definir acontecimentos pode parecer implicar que as “estórias” não são
factuais nem objectivas.
6
Esta inferência pode ser particularmente compelativa porque alguns dos exemplos apresentados
aqui envolviam fenómenos, como era o caso da visita ao centro prisional, que os investigadores
frequentemente discutem sob as rubricas da objectividade e da parcialidade, incluindo o
conhecimento do repórter do ponto de vista particular do seu próprio jornal (Breed, 1955b).
Todavia, o facto de os repórteres como profissionais terem em principio aderido a uma norma de
facticidade e objectividade pode demonstrar até que ponto o acto de contar “estórias” é um
aspecto compelativo do trabalho de um repórter e também demonstrar que a “estória” faz
exigências ao repórter enquanto contador de “estórias”. As normas podem servir para identificar
as questões pertinentes. Se não houvesse qualquer questão, não haveria nenhuma necessidade
de qualquer norma.
Ser um repórter que lida com factos e ser um contador de “estórias” que produz contos não são
actividades antitéticas. De facto, é muito provável que alguns acontecimentos nunca
consigam “ser notícia” porque o catálogo de antigos frames de “estórias” não inclui
umframe particular que se lhes possa aplicar. Noutro local (Tuchman, 1977), sugeri que
isto pode ter sido o caso durante algumas fases da reportagem acerca do movimento feminista.
Citando uma repórter incapaz de escrever “estórias” acerca das actividades do movimento:
Havia uma quantidade de coisas interessantes a desenrolar-se, no entanto eu não
conseguia agarrar nas coisas. Havia um tipo de conversa informe. Eu conseguia ver as

5
Nota de tradução - Uma referência ao autor do artigo. O exemplo é retirado dos seus
apontamentos de campo.
6
Aqui parece haver erro de tradução. O sentido parece mais próximo de “compulsório”.
Professor mestre Artur Araujo ([email protected])
site: http://docentes.puc-campinas.edu.br/clc/arturaraujo/
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coisas a mudar, porém era-me dificil debruçar sobre isso e chegar ao editor da secção
local e dizer: “É isto o que está aFACULDADE
acontecer” (Tuchman, 1977).
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Para parafrasear este jornalista, e recordando a conversa entre o editor e o jornalista sobre o
“fogo de seis parágrafos, sem um frame, as conversas dentro do movimento feminista norte-
americano eram irlformes; sem uma “estória” implicando um frame, as conversas não podiam
ser percebidas como um acontecimento noticioso viável.
Pode-se comparar uma noção filosófica a um frame.
Do mesmo modo que as “estórias” enquanto frame permitem que alguns happenings amorfos
sejam definidos como componentes de um acontecimento, também as ideias enquanto frames
7
permitem ao investigador notar alguns fenómenos mas não outros . Como se mostra neste
ensaio, a análise do frame encoraja os investigadores a investigar os modos através
dos quais as noções de “estórias” dos jornalistas ajudam à identificação de alguns
pormenores como “factos pertencentes a um acontecimento”. Também possibilita que os
investigadores evitem o problema espinhoso “do que realmente aconteceu” e que continuem a
analisar considerações organizacionais e profissionais que são parte essencial da reportagem.
Afinal de tudo, a noção de “estória” e as suas caracteristicas formais são, para citar a
definição de frame de Goffman, “princípios de organização”. E princípios de organização
são fenómenos sociais acessíveis à análise social, como Goffinan demonstra.
Dizer que uma notícia é uma “estória” não é de modo nenhum rebaixar a notícia, nem
acusá-la de ser fictícia. Melhor, alerta-nos para o facto de a notícia, como todos os
documentos públicos, ser uma realidade construída possuidora da sua própria validade
interna. Os relatos noticiosos, mais uma realidade selectiva do que uma realidade
sintética, como acontece na literatura, existem por si só. Eles são documentos públicos que
colocam um mundo à nossa frente.

7
Smith (1974) traça em linhas gerais as abordagens sociológicas a este problema a fim de
analisar a construção social de documentários sobre a realidade.
Professor mestre Artur Araujo ([email protected])
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