Corpo e Corporeidade No Teatro - Da Semiótica Às Neurociências. Pequeno Glossário Interdisciplinar.
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Introduo
Eu gostaria de comear a partir das concluses propostas por Jean-Marie Pradier, em uma interveno publicada
recentemente:
1) nenhuma teoria geral do teatro hoje aceitvel, assim
como nenhum dado cientfico pode levar a qualquer
generalizao; 2) devemos aceitar a ideia da necessidade
de constantemente redefinir e precisar os nveis de
organizao, e da necessidade de considerar as suas
inter-relaes; [...] 3) estamos condenados a colaborar,
no sentido de que cada um de ns deve com humildade e
ambio considerar-se como um sistema aberto. Aberto
de forma voluntria e ciente [...] (Pradier, 2011, s. p.).
Para mim, essas afirmaes, que subscrevo inteiramente, significam o seguinte: elas confirmam a necessidade de
prosseguir, nos estudos teatrais, aquele entrelaamento entre
teoria, prtica e histria o qual, h mais de vinte anos tenho
dado o nome de Nova Teatrologia (De Marinis, 2008; 2011a);
elas, por outro lado, no excluem a necessidade de procurar
desenvolver novos modelos tericos, sempre parciais e provisrios obviamente ou, melhor ainda, novos paradigmas para
o estudo da experincia teatral de ambos os lados da cerca,
ou seja, tanto para o ator, quanto para o espectador; esses
novos paradigmas evidentemente no podero ser multidisciplinares ou transdisciplinares, e talvez tambm um pouco
indisciplinados (como querem, um pouco exageradamente na
minha opinio, os Performance Studies norte-americanos).
Certamente eles devero nascer de uma nova aliana entre
aquelas que at agora chamamos de cincias humanas e aquelas
que chamamos de cincias naturais ou da vida, uma distino
que j completamente ultrapassada na prtica; ao mesmo
tempo, dever-se-ia evitar, se possvel, produzir novos monstros disciplinares, como seria, por exemplo, a neurobiologia
do teatro et similia.
com esse esprito que gostaria de propor aqui um pequeno glossrio multi, ou melhor, transdisciplinar, que talvez
pudesse ser de alguma ajuda no desenvolvimento de novos
paradigmas da experincia teatral.
Marco De Marinis - Corpo e Corporeidade no Teatro: da semitica
s neurocincias. Pequeno glossrio interdisciplinar
R. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 42-61, jan./jun. 2012.
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inst-lo at o limite e, tambm, alm dele, submetendo-o a testes extremos, at mesmo viol-lo, degradando-o precisamente
como viande (como carne para consumo). A pintura de Francis
Bacon , talvez, o exemplo mais notvel desse propsito dentro
das artes visuais.
Corporeidade
Esse corpo singular, peculiar, fenomnico, vivido, poderia ser levado utilmente para a, e talvez dissolvido na, noo
de corporeidade, a qual se refere Enrico Pitozzi (s/d, p. 3)5
[...] para a expresso singular e no universal de um corpo
fenomnico, assim como podemos encontrar na cena de Jan
Fabre, Romeo Castellucci, Jan Lowers, Fura dels Baus, mas
tambm na body art acima mencionada, que vai desde Gina
Pane at Marina Abramovich, e na dana contempornea (Pina
Bausch, William Forsythe, Saburo Teschigawara).
Portanto, para a cena contempornea, Pitozzi acha til
distinguir entre o corpo como uma categoria universal e a corporeidade como uma experincia singular. Em outras palavras,
a vantagem da adoo do conceito de corporeidade, de acordo
com esse estudioso, est no fato de que ela permitiria uma
maior conscientizao, graas a uma abordagem fenomenal
para o corpo, uma verdadeira novidade presente nas pesquisas
dos mestres do sculo XX, os Pais Fundadores do espetculo
moderno, novidade que, no por acaso, no momento, eu havia
colocado o emblema distintivo de redescoberta do corpo (De
Marinis, 2000). Foi, de fato, a redescoberta do corpo sensvel,
isto , concreto, considerado no mais pelo externo, mas por
intermdio de um [...] conhecimento aprofundado de suas
dinmicas internas (Pitozzi, s/d, p. 3); um corpo subtrado,
em consequencia, para a esfera do simblico, por um lado, e
para o formal, por outro, e devolvido para a sua materialidade.
Na verdade, de acordo com essa perspectiva, [...] no se trata
tanto de estudar o corpo em movimento, mas o movimento no
corpo (Pitozzi, s/d, p. 2)6.
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Cinestesia
Sobre a relao entre externo e interno do ser humano,
entre movimentos e sentimentos, expresses e emoes,
interessante notar que, durante o sculo XX, no trabalho dos
mestres de teatro, dos diretores-pedagogos, se afirma um paradigma que pode ser chamado de induo fsica das emoes
ou cinestesia. Esse paradigma, j presente embrionariamente
em Lessing, no sculo XVIII, e muito mais desenvolvido em
Franois Delsarte, no sculo XIX, fornece uma soluo para
a vexata quaestio identificao/no identificao, a propsito
da relao ator-personagem (Diderot etc.).
A experincia prtica dos diretores-pedagogos mostra que
o ator, para chegar a expressar em cena de maneira eficaz em
relao aos objetivos do papel-partitura, ou todavia, da sua
performance, no deve comear pelos sentimentos, mas pelo
corpo, isto , deve comear pelos movimentos, pelos gestos,
pelas aes fsicas. Sero aqueles movimentos, aqueles gestos,
aquelas aes fsicas a induzir nele as sensaes-sentimentosestados de nimo apropriados para a situao. O ltimo Stanislavski (aquele do Mtodo das Aes Fsicas), Meyerhold
(Biomecnica) e Artaud (Atletismo afetivo) para mencionar
apenas trs dos mais importantes se encontram totalmente
reunidos na adoo desse paradigma.
Mas , tambm, e, sobretudo, no mbito da dana moderna (em geral mais livre das presses psicolgicas e das necessidades da representao em relao ao teatro) que o trabalho
sobre a cinestesia se desenvolveu, isto , sobre as sensaes
experimentadas pelo danarino graas s suas experincias,
sensaes sobre as quais ele pode trabalhar numa segunda
explorao de campo conscientemente (De Marinis, 2000).
A coisa mais interessante que esse mesmo paradigma,
no decorrer do sculo XX, demonstrou tambm funcionar
no que diz respeito relao teatral, ou seja, para a relao
ator-espectador. Nesse caso se tratar evidentemente das
sensaes-sentimentos que os movimentos do ator induzemestimulam no espectador, frequentemente at os mesmos que
experimenta-sente o ator, em razo de uma capacidade-foraeficcia particular desses movimentos (falo de movimento, mas
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Segundo Crebro
Na verdade, tambm as vsceras possuem um crebro, ou
melhor, elas so um crebro. Como a neurobiologia j definitivamente precisou, o homem possui um verdadeiro crebro
na barriga, chamado segundo crebro, crebro abdominal ou
sistema nervoso entrico: ele constitudo de 100 milhes de
neurnios, mais do que possui a medula espinhal, que o coloca
em condio de operar autonomamente o crebro da cabea,
ainda que ligado atravs do nervo vago, e de enviar muito mais
informaes do que recebe (Gershon, 1998).
Mas, ento, se as coisas so assim, a oposio modelo
grego (ocidental) versus modelo asitico no implica aquela
mente/corpo, ou crebro/vsceras, mas exatamente a oposio
primeiro crebro/segundo crebro. Como observa ainda Schechner, [...] o sistema de resposta rsica no exclui o olho e o
ouvido, mas tende a trabalhar diretamente e energicamente
sobre o sistema nervoso entrico (Schechner, 1998-1999, p.
33).
Ao contrrio, na esttica ocidental, baseada na viso e na
audio, o sistema nervoso entrico resulta programaticamente
excludo. Da forma como foi normativamente codificada, primeiro na cultura grega (considera-se sobretudo a Potica de
Aristteles) e depois na cultura judaico-crist, a experincia
esttica no Ocidente baseia-se essencialmente sobre o logos
e sobre a distncia: uma experincia desencarnada, fundamentalmente de compreenso-interpretao, caracterizada
pela remoo do corpo e dos sentidos baixos, dos nervos, do
movimento, da participao fsica direta.
O acima exposto demonstra abundantemente que, para
estudar de modo adequado a questo do corpo e da corporeidade no teatro, no possvel limitar-se ao referimento das
cincias humanas e sociais, mas preciso observar, tambm,
as cincias da vida, em particular a biologia e a neurobiologia.
exatamente o que procurou fazer a Performance Theory de Victor Turner e Richard Schechner, especialmente
com a proposta final, por parte do primeiro, de uma sntese
bio-antropolgica no estudo cientfico do ritual, ou melhor,
de uma aproximao globalizante capaz de conciliar tudo: neMarco De Marinis - Corpo e Corporeidade no Teatro: da semitica
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Concluses Provisrias
Com base no que foi visto at aqui, resulta, em geral,
evidente que temos a possibilidade de repensar profundamente
a relao teatral e a experincia do espectador, reabilitando,
por exemplo, aquelas reaes pr-interpretativas (propostas
nos anos 1980, sobretudo no ambiente cientfico da Antropologia Teatral) (Barba; Savarese, 1983)9 que a semitica do
teatro havia tratado na poca, talvez, de modo muito rpido
(De Marinis, 2008); ou encontrando lugar, na competncia do
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Notas
No que concerne ao mbito semitico, conforme, por exemplo, FONTANILLE, Jacques.
Soma et sma: figures du corps. Paris: Maisonneuve et Larose, 2004 (traduo italiana:
Figure del corpo, Roma, Meltemi, 2004); sem esquecer as precoces contribuies de Patrizia
Magli (MAGLI, Patrizia. Corpo e Linguaggio. Roma: Editoriale LEspresso, 1980), ao,
sobretudo, Il volto e lanima (MAGLI, Patricia. Il Volto e lAnima: fisiognomica e passioni.
Milano: Bompiani, 1995). No que concerne a filosofia, no sentido mais amplo do termo, ver
MARZANO, Michela. Dictionnaire du Corps. Paris: PUF, 2007. Em todo o caso, me declaro
completamente de acordo com Jean-Pierre Triffaux, quando escreve, referindo-se entre outros
a Ariane Mnouchkine e a Pippo Delbono: afirmar que o teatro uma arte do corpo ainda e
ainda necessrio (TRIFFAUX, Jean-Pierre. Le double drame de la reprsentation. In: HELBO,
Andr (Org.). Performance et Savoirs. Bruxelles: de Boeck, 2011. P. 130).
Quase trinta anos atrs, o meu tratado de semitica teatral encerrava-se com um captulo
dedicado desde o ttulo ao trabalho do espectador (De Marinis, 1982, captulo 7).
2
Sobre essas iniciativas, sobre as questes tericas que so subjacentes e, em especial, sobre
as bases biolgicas das artes performativas (Bortoletti, 2007); (Sofia, 2010; 2011); (De Marinis,
2011b), em particular os captulos Dal pre-espressivo alla drammaturgia dellattore: saggio
su La canoa di carta e Contro la distanza: verso nuovi paradigmi per lesperienza teatrale.
Para ser preciso, Antonin Artaud j havia experimentado conferir dignidade terica para a
carne, no curto e denso texto, intitulado Position de la chair, de 1925 (Artaud, 2004).
Enrico Pitozzi, Corpo/corporeit, artigo indito colocado a disposio pelo autor (p. 3 do
manuscrito). Esse artigo faz parte de uma obra coletiva em fase de preparao, sob a minha
direo, e tendo o objetivo de propor um lxico da nova teatrologia. Do mesmo autor, ver
tambm a tese de doutorado, em fase de publicao: Il corpo, la scena, le tecnologie. Per
unestetica dei processi dintegrazione, 2007/2008.
Ver a seguir, a propsito das afinidades entre essa perspectiva e as descobertas recentes das
neurocincias sobre os neurnios-espelho.
Est muito prximo, aqui, da noo de simulao encarnada proposta hoje pelas neurocincias.
Veja abaixo na seo de mesmo nome.
7
Fao aqui referncia a uma proposta bastante desenvolvida feita por Elodie Verlinden na sua
interveno no Colquio de Bruxelas em abril de 2011. Do mesmo autor, veja tambm, Danser
avec soi, em Performance et savoirs, p. 157-169.
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Marco De Marinis um dos mais importantes tericos italianos do teatro. professor na Universit di Bologna na Itlia. autor de diversos livros e artigos em
vrias lnguas. membro permanente da ISTA (International School of Theatre
Anthropology).
E-mail: [email protected]
Traduzido do original em italiano por Dbora Geremia e revisado por Gilberto Icle.
Recebido em setembro de 2011
Aprovado em fevereiro de 2012
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