Relevância Da Etimologia Popular

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DE SAUSSURE, DE OUTRAS CONTRIBUIES,

DE OCORRNCIAS LINGUSTICAS: A
RELEVNCIA DA ETIMOLOGIA POPULAR
Maria Teresa Gonalves Pereira
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO
Ler ou estudar Saussure costuma demandar uma atitude preconcebida. H ideias e conceitos do mestre suo que se
disseminaram como cones nos estudos da lingustica contempornea. Este artigo objetiva focalizar um assunto recorrente na vivncia lingustica, mas pouco associado ao
Curso de Lingustica Geral (1975). Pretende-se, a partir dos
escritos de Saussure, apresentar consideraes de conceituados estudiosos dos fenmenos da linguagem, para avivar e
resgatar a relevncia da etimologia popular no rol dos recursos da lngua disponveis para pesquisa e anlise. Selecionaram-se, alm de exemplos da evoluo do fenmeno
em questo em lnguas estrangeiras, material em obra de
fico em lngua portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: Saussure; etimologia popular; estudo
terico; vivncia lingustica

(Re) pensar Saussure oportuno, apesar de alguns linguistas


contemporneos rebaix-lo ou minimiz-lo, como se a Lingustica
Moderna, ou o que se entende por isso, tenha surgido por artes mgicas, catapultada de um passado remoto (e irrelevante), tornando-se o
astro principal do grande espetculo das Letras.
A contribuio de Saussure decisiva. Um marco. O Curso de
Lingustica Geral (1975) um livro clssico. Apresenta ideias que
continuam polmicas e incompletas, constituindo-se ainda em ponto
de partida para uma problemtica sempre na ordem do dia.

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L-lo para (re) pensar se revela essencial. As clebres dicotomias


seguem desafiando os estudiosos em seus desdobramentos. Parecenos impossvel no conhecer o Cours antes de qualquer interesse
pelos rumos e pelas possibilidades das pesquisas (lingusticas) atuais.
Saussure levanta uma srie de questes. Normalmente conhecido por
palavras-chave de sua obra arbitrariedade do signo, lngua e fala,
sincronia e diacronia, significante e significado, relaes sintagmticas
e paradigmticas, identidade e oposio, dentre outras, ao explorar
o ndice do livro, surpreendemo-nos com a natureza de certos assuntos arrolados, surgindo da o interesse e a curiosidade em desenvolver consideraes sobre um deles, mais precisamente a etimologia
popular.
Partindo do que nos diz Saussure, ampliaremos as suas reflexes com as ideias de outros tericos, culminando por apresentar a
materializao da etimologia popular em obra de fico em Lngua
Portuguesa.
Baseando-se em exemplos do francs, Saussure lembra que, s
vezes, estropiamos palavras cuja forma e cujo sentido so pouco
familiares, o uso consagrando, ento, tais deformaes. Para ele (1975,
p. 202), Essas inovaes, por mais extravagantes que sejam, no se
fazem completamente ao acaso, so tentativas de explicar aproximativamente uma palavra embaraante relacionando-a com algo conhecido. A tal fenmeno atribui-se o nome de etimologia popular, observando que, primeira vista, no se distingue da analogia. Pondera, entretanto, que a nica diferena seria que as construes da analogia so racionais, enquanto a etimologia popular procede um pouco do acaso, no levando seno a despropsitos. No que concerne
aos resultados, a diferena no essencial. No aprofundaremos a
questo da analogia, detendo-nos to somente na etimologia popular.
Saussure estabelece dois casos tpicos: aquele em que a palavra
recebe uma interpretao nova sem que a forma mude; por exemplo,
na Idade Mdia, o alemo tomou emprestado ao francs aventure, que
se transformou em abentre, mais tarde Abenteur; sem deformar a
palavra. Ela se associou a Abend (o que se conta no sero), de tal
forma que no sculo XVIII se escrevia Abendteur. O outro caso, mais
comum, a deformao da palavra para acomod-la aos elementos
que se acreditam reconhecer nela, como choucroute (de Sauerkraut).
Conhece-se um caso bastante instrutivo. O latim carbunculus,
carvozinho, gerou em alemo Karfunkel (por associao com
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funkeln, cintilar e em francs escarbouche, ligado a boucle. Calfeter,


calfetrer se tornou calfeutrer por influncia de feutre. Chama a ateno, primeira vista, nos exemplos em questo, que cada um deles
encerra, junto de um elemento inteligvel existente em outras palavras, uma parte que no representa nada de antigo (Kar-, escar-, cal-).
No se deve crer, porm, que exista, nos elementos destacados, uma
parte de criao, algo que tenha surgido a propsito do fenmeno; o
mais adequado entender que se trata de fragmentos que a interpretao no consegue alcanar; so talvez etimologias populares que
no se concretizaram de forma completa. Karfunkel est no mesmo
caso de Abenteuer (admitindo-se que teur um resduo que permanece sem explicao).
O grau de deformao no estabelece diferenas essenciais entre as palavras maltratadas pela etimologia popular, so todas interpretaes puras e simples de formas que no se compreenderam
por formas conhecidas.
A etimologia popular se reduz a uma interpretao da forma
antiga; mesmo no muito clara, a sua interpretao o ponto de
partida da deformao sofrida. Age em condies particulares e no
atinge seno as palavras raras, tcnicas ou estrangeiras que os indivduos assimilam de modo imperfeito.
Stephen Ullmann (1964) acrescenta outras reflexes sobre o
tema, inclusive, citando, vrias vezes, o mestre suo.
Observa que se adquire a motivao morfolgica pelo processo
comumente chamado de etimologia popular, designao muito
criticada, pois popular no realmente um termo apro-priado, visto que vrios dos erros no foram perpetrados pelo povo, mas por
pessoas ditas cultas ou semicultas: os copistas medievais, os humanistas
do Renascimento, dentre outros. Existe uma designao, etimologia
associativa, de autoria de Orr (1953), talvez mais adequada. Ullmann
(1964), entretanto, assinala que j passara a ocasio de faz-lo, pela
dificuldade na poca de modificar o uso lingustico. A fora impulsora
por trs da etimologia popular o desejo de mo-tivar na linguagem
aquilo que ou se tornou opaco. Vendryes (1950, p. 86) lembra que
A etimologia popular uma reao contra a arbitrariedade do signo.
Quer-se, a todo custo, explicar aquilo de que a lngua incapaz de
fornecer a explicao. A motivao que dessa forma uma palavra
recebe mais psicolgica do que histrica; baseia-se nas associaes
do som e do sentido, sem relao com a etimologia cientfica.

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A etimologia popular um dos mais conhecidos aspectos da


Semntica. Em certos casos, a nova motivao afeta o significado da
palavra, permanecendo intata, porm, a forma. Tomemos o adjetivo
francs ouvrable quando deriva do antigo verbo ouvrer (latim operari)
trabalhar, substitudo por travailler, no sculo XVII, sobrevivendo
somente no uso tcnico. Partindo da elipse virtual de ouvrer, ouvrable,
foi atrada para a rbita de ouvrir abrir, de forma que jour ouvrable
dia til, dia de trabalho normalmente compreendido como o dia
em que esto abertas lojas, reparties, etc. Contrariamente, existem
casos em que a nova motivao mudar a forma de uma palavra,
deixando o significado inalterado. No termo ingls bridegroom , noivo, que vem do antigo ingls brydguma, uma composio de bryd
noiva e guma homem, quando o ltimo termo desapareceu, o segundo elemento de composto opacizou-se, mais tarde identificado
com groom moo, originando a forma moderna que remonta ao
sculo XVI.
A etimologia popular pode atuar, em inmeros casos, tanto na
forma quanto no significado das palavras. O nome alemo para o
dilvio da Bblia Sndflut era originalmente sint-vluot ,dilvio
universal, alterando-se sob a influncia da palavra Snde, pecado.
Tal interpretao, historicamente errada, no afetou somente a forma,
inseriu tambm a ideia de pecado e de castigo no significado da
palavra.
Em lnguas com um sistema de ortografia no fontico, a
etimologia popular pode limitar-se palavra escrita, sem chegar a
afetar sua pronncia. Desse modo, o ingls island, ilha , deve o s
influncia de isle ,ilhota, com a qual no tem relao histrica. H
sempre a possibilidade de que letras mudas vivam pela chamada pronncia ortogrfica.
As palavras estrangeiras esto particularmente expostas
etimologia popular por no serem motivadas, sem razes no idioma
que as acolhe. Por tal motivo, tm campo livre as associaes entre o
som e o sentido.
H vrios exemplos conhecidos, inclusive alguns usados no
Cours de Saussure; o j citado francs choucroute, couve fermentada, do alsaciano srkrt (alemo Sauerkraut), como um composto de
palavras francesas chou, couve, e crote, crosta, e o ingls crayfisch
ou crawfish, camaro, literalmente peixe que se arrasta, do antigo
francs crevice (francs moderno crevisse). A etimologia popular,
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como enfatizado, pode alterar a forma e o significado de uma palavra


pela conexo errada que estabelece com outro termo com o qual
mantenha uma semelhana fontica. As investigaes de Gilliron e
de outros gegrafos lingusticos mostraram que se trata de um processo mais comum do que se pensa.
Ullmann (1974) adverte que, antes de se tentar reconstruir a
histria semntica de uma palavra, dever certificar-se que o desenvolvimento foi espontneo e no induzido por um termo foneticamente semelhante para no acontecer o que Orr (1953) chamou de
desenvolvimento pseudossemntico. O contraste entre a etimologia
cientfica e a popular um alerta para a necessidade de diferenciar na
lingustica os pontos de vista histrico e descritivo. As ideias do
homem comum sobre a derivao das palavras so um fato lingustico
merecedor da ateno do fillogo, mesmo quando em contradio
com o seu conhecimento prprio das etimologias.
Orr (1953, p. 142) resumiu com muita clareza a afinidade fundamental entre a etimologia culta e a popular:
A etimologia popular no difere essencialmente da sua irm culta,
a etimologia dos fillogos. Mais viva, mais operante que esta
ltima, faz instintivamente, intuitivamente e logo primeira o
que a outra faz intencionalmente com grande reforo de livros e
de verbetes.

O fato j era evidente para alguns gramticos do snscrito;


Gilliron (1912) e outros gegrafos linguistas tambm o ressaltaram.
Para Orr (1937) talvez um sinal dos tempos o desprezo que, na
primeira edio do livro de Saussure, a etimologia popular recebeu, apresentada como um fenmeno patolgico. A definio polmica desapareceu nas demais edies.
Acreditamos que o raio de ao da etimologia popular mais
amplo do que muitos estudiosos dos fenmenos da linguagem admitem.
Seria interessante uma investigao estatstica que averiguasse, por exemplo, quantas pessoas relacionam noise ,barulho, com
noisome ,ftido, insalubre; scare, afugentar, com scarfy,
escarificar; nigger, negro, com niggard, mesquinho. Existem
outros pares anlogos.
A etimologia popular pode tambm fornecer motivao semntica a um termo opaco. Duas palavras idnticas no som e no muito
diferentes no significado tendero a se considerar uma nica palavra,
com um sentido literal e outro figurado. Em ingls, ear o nome do
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rgo da audio; sua homonmia ear significa espiga de cereais.


Originam-se de razes totalmente diversas; a primeira se relaciona ao
alemo Ohr e o latim auris, a segunda ao alemo hre e o latim acus,
aceris. A sua homonmia em ingls levou inveno de um elo semntico injustiado pela histria: a maioria das pessoas provavelmente consideraria ear dos cereais como uma metfora baseada na
semelhana entre a espiga e a orelha (BLOOMFIELD, 1933, p. 436).
Dados estatsticos estabeleceriam quantitativamente a ocorrncia de
tais relaes.
Considera-se tambm etimologia popular quando duas palavras no so idnticas, mas apenas semelhantes no som. No caso, a
forma de uma palavra se alterar para se tornar homnima da outra.
Desse modo, o francs souci, malmequer, provm do baixo latim
solsequia e primitivamente sem nada a ver com souci ,preocupao,
cuidado, derivado do latim sollicitare. No sculo XVI, entretanto, a
flor representou o smbolo do cuidado, ajustando-se o seu nome por
isso: de uma primitiva soucie e outras variantes mudou para a forma
moderna, tornando-se idntica outra palavra souci. O mesmo acontece com o francs flamme, flame, lanceta, sem nenhuma relao
histrica com flamme, chama: vem do greco-latino phlebotomus,
no francs antigo a forma flieme, passando ao ingls fleam. Associouse mais tarde como a outra flamme e a sua forma mudou at a identificao completa.
No francs moderno, souci, malmequer, ou flamme, lanceta,
so motivados; consideram-se significados figurados das palavras para
as ideias de cuidado e de chama.
As mudanas de significado devidas semelhana fontica incluem-se em dois grupos. No mais enganador, o sentido antigo e o
novo se aproximam um do outro, de maneira que o ltimo poderia
desenvolver-se espontaneamente a partir do primeiro, embora assim
no acontea. Por exemplo, a palavra francesa forain, que originou o
ingls foreign, provm do baixo latim foranus, derivado do latim
foris, fora, exteriormente. O significado original era estrangeiro,
como ainda hoje em ingls. Na frase marchand forain, mercador
ambulante, feirante, o termo associou-se erradamente com foire, feira, (do latim feria (e) dia(s) de festa; fria(s), a mesma palavra do
ingls fair. A associao afetou o significado completo de forain. A
ligao semntica entre as ideias de mercador ambulante e feira
facilitou a mudana, mas provavelmente a semelhana fontica com
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foire tornou-se o fator decisivo. Em alguns dialetos h uma forma


colateral foirain em que se percebe melhor a ligao com foire.
Outro exemplo do tipo o substantivo ingls boon, que antes
significava splica, pedido, rogo, e depois o objeto do pedido ou
da splica; o seu sentido corrente um favor, um benefcio, uma
coisa pela qual se deve estar grato. O desenvolvimento semntico
poderia ocorrer de modo espontneo, mas, talvez, recebesse influncia do adjetivo homnimo boon, bom, generoso, forma anglicizada
do francs bon. No segundo tipo, os dois significados so to diferentes que no parece haver ligao entre eles. Ao invs de se ater a
uma linha de desenvolvimento imaginria, o semntico experiente
pesquisar a influncia de uma palavra foneticamente semelhante que
lhe fornea o elo que falta. Assim, o francs gazouiller, murmurar,
gorjear, balbuciar, pode significar na fala popular ter um cheiro
desagradvel. Revelar-se-ia ingnuo derivar este novo significado
do antigo, por se tratar evidentemente de gracejo vulgar sugerido
pela assonncia da slaba inicial com a palavra gs. Mais complicado
o duplo significado do francs essuyer: enxugar, secar e sofrer,
suportar. Orr (1937) exemplificou outro caso de desenvolvimento
pseudossemntico: o segundo sentido no surgiu organicamente do
primeiro; foi, antes, pela confuso com essayer, que agora significa
tentar , mas que, no sculo XVI, significava tambm experimentar,
suportar, tolerar.
Os etimologistas extrapolam, s vezes, no intuito de encontrar
uma explicao definitiva para uma aparentemente simples mudana
de significado.
Observemos ainda o adjetivo francs fruste, derivado do italiano durante a Renascena, que significava primitivamente usado, desfigurado; em meados do sculo passado adquiriu o sentido de rude,
grosseiro. Para no supor uma ligao no legtima entre os dois
significados, procurou-se no campo associativo da palavra (conceito
desenvolvido por Bally, discpulo de Saussure; formado por uma rede
de associaes baseadas na semelhana ou na contiguidade) algo para
explicar a mudana. Descobriu-se que fruste deve o seu novo sentido
influncia do adjetivo foneticamente semelhante rustre, rstico,
grosseiro, desajeitado; a forma frustre, documentada no sculo XV,
mostra que os dois termos estiveram muito tempo associados na mente do povo. possvel que palavras semelhantes (brusque, robuste)

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intervieram na mudana. No existe nada de novo ou surpreendente


em tais interferncias e os gegra-fos linguistas e demais estudiosos
h dcadas se familiarizaram com elas. Muitos linguistas que no passado as con-sideravam acidentes ou caprichos agora lhes reservam
um lugar prprio na teoria geral dos campos associativos. Um
etimologista imbudo de novos mtodos estar menos sujeito a se
deparar com os desenvolvimentos pseudossemnticos.
Ismael de Lima Coutinho (1969) nos informa que aquilo que os
linguistas denominam genericamente de etimologia popular repudiado pelos homens cultos. fato, porm, que a influncia da palavra modelo aparece mais facilmente pela sua conservao quase integral na nova forma.
Apresenta vrios exemplos (1969, p. 154):
barriguilha
(barriga)
braguilha
camap
(cama)
canap
esgatanhar
(gato)
esgadanhar
altomvel
(alto)
automvel
entrolhos
(entre)
antolhos
forura
(fora)
fressura
ourina
(ouro)
urina
ouvisto
(visto)
ouvido
praiamar
(praia)
preamar
palmeiro
(palmeira)
Paul Neyron
sancristo
(santo)
sacristo
semprenoiva
(sempre noiva)
centindia
vagamundo
(mundo)
vagabundo
Muitas expresses ou frases se alteraram graas etimologia
popular: pancadaria de mouro aparece como pancadaria de molho;
trazer colao passou a trazer coleo; barao e cutelo transformou-se em brao e cutelo; insculpido e encarnado alterou-se em cuspido e escarrado. Os provrbios: No se pescam trutas a bragas enxutas e Falar francs como um basco espanhol modificaram-se; passaram a No se pescam trutas a barbas enxutas e Falar francs como
uma vaca espanhola.
Refere-se tambm s palavras ou frases estrangeiras, ressaltando que esto mais sujeitas s modificaes. suficiente uma homonmia

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ou semelhana qualquer entre o vocbulo estranho e o portugus


para que o povo, em sua ignorncia, identifique um com o outro.
Coutinho (1969) observa que entre ns se passa o mesmo que
com outros povos. Cada grupo humano pronuncia as palavras estranhas ao seu lxico de acordo com os hbitos fonticos da prpria
lngua. Assim, o chins torna monossilbicos todos os vocbulos estrangeiros. Para Sayce (1893, p. 74), O hbito um poder soberano na vida; os sentidos e as ideias, aos quais nos habituamos, nascem,
sem serem chamados, na inteligncia e nos lbios.
Conforme Mattoso Cmara Jr. (1964, p. 139), etimologia popular um termo criado por Ernest Frstemann em artigo com este
nome em 1852 (Sobre a etimologia popular alem Ueberdeutsche
Volksetymologie PISANI 1960, p. 633). Frstemann distinguia trs
tipos de etimologia: a popular, a erudita e a cientfica, entendendo
pela ltima a que faz a aplicao metdica e rigorosa aos princpios
lingusticos, como as leis fonticas. A etimologia erudita era a praticada pelos eruditos sem formao lingustica, com notvel saber,
mas igualmente notvel falta de senso crtico. Por etimologia popular, entendia o esforo ingnuo do povo para compreender a formao das palavras que usa. Via na etimologia popular um passo prcientfico da atividade etimolgica. Partindo-se do conceito e do
nome que estabeleceu, observa-se um dos fatores mais interessantes
e seguramente fundamentais da criao lingustica (PISANI, 1960, p.
635). A etimologia popular se insere no processo da analogia, que
explica as mudanas de forma dos vocbulos pela interferncia dos
valores mrficos e semnticos na evoluo fontica. Do ponto de
vista da sincronia da lngua, a etimologia popular, historicamente
falsa, conserva realidade atual ao evidenciar a maneira pela qual os
falantes entendem as relaes mrficas e semnticas dos vocbulos
que usam (VENDRYES, 1950, 176).
Eugenio Coseriu (1987) contribui com o assunto em questo,
observando que h uma srie de etimologias populares, tecnicamente
arbitrrias e falsas, mas significativas do ponto de vista das associaes que o sentimento lingus-tico estabelece entre os smbolos,
das imagens que se expressam nos prprios smbolos e, por conseguinte, do mecanismo da criao metafrica na linguagem. Recorda a
esse respeito as etimologias ingnuas dos antigos, desde as do Rigveda,
em que o nome do deus Agni associado raiz aj-, raptar (porque

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rapta a riqueza aos inimigos) s de S. Isidoro de Sevilha, segundo o


qual as camisas tm esse nome quia in eis in camis dormimus, porque dormimos com elas nas camas.
So essas associaes arbitrrias, essas etimologias populares, simples erros dentro da evoluo normal da lngua, simples
fenmenos patolgicos para o linguista restabelecer a realidade
histrica? O linguista se limita histria exterior e formal das palavras, ignorando o sentimento lingustico, a conscincia semntica
dos falantes, as multifacetadas relaes estabelecidas en-tre os smbolos nos atos concretos de falar? Poderia faz-lo apenas caso a linguagem fosse um fenmeno da natureza, independente dos seres humanos que a (re)criam. Assim aconteceu na poca em que se pensava
que a lingustica encontrava o seu lugar entre as cincias naturais e
em que se considerava a lingua-gem como um organismo com vida e
leis prprias.
diferente hoje, quando se sabe que a lingua-gem no tem
existncia autnoma, governada, segundo normas complexas, pelos
indivduos falantes: por todos os falantes duma comunidade e por
cada um deles, em cada ato lingustico concreto.
Para Coseriu (1987, p. 67),
No se pode fazer uma histria puramente fnica (formal) das
palavras, porque a palavra no apenas forma (som), mas
unidade de forma e contedo (som e significado), e porque se pode
explicar a prpria forma pelo significado (como no caso de
nigromanca), assim como se pode explicar o significado pela
forma (como no caso de iterare, viajar). Com efeito, a etimologia
atual, que quer ser histria concreta e completa das palavras, de
sua forma como de seu contedo e das associaes que elas evocaram ou evocam na conscincia dos falantes, j no descura o
que chamamos o sentimento lingustico, isto , a repercusso
dos smbolos no esprito dos indivduos que criam a linguagem, as
even-tuais vises metafricas que presidem a criao e o emprego
(re-criao) dos smbolos, os fatos de cultura que so os mitos
relacionados s palavras. Evidentemente, uma coisa a etimologia
tcnico-objetivista, que considera as palavras como entidades isoladas e autnomas, outra a etimologia concreta, na qual existem as palavras em sua relao com as coisas e em suas relaes
orgnicas entre si, como tambm, no que aqui nos interessa, em
relao com o sentimento lingustico o valor expressivo atribudo pelos falantes.

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Dizer simplesmente que o francs pommes damour (depois traduzido para o ingls e para o alemo como love apples e Liebespfel)
deriva do italiano pomi dei mori correto do ponto de vista exterior,
nada revelando a respeito das associaes que a expresso desperta
na conscincia dos falantes franceses, no explicando satisfatoriamente a sua forma. tambm insuficiente, do ponto de vista da
etimologia atual, dizer que veilleuse procede do cltico, porque a
histria semn-tica (e formal) desta palavra, cltica apenas em suas
origens, em determinado momento se desviou pela associao com
veiller, assim como a his-tria de securis pela associao com secare,
e a de iterare pela associao com iter.
Deve-se proceder a uma reavaliao da etimologia popular
porque nos proporciona valiosos indcios sobre as vises metafricas
que acompa-nharam e determinaram a criao dos signos e que continuam a se associar a eles em seu emprego. Se Isidoro no tem razo
ao derivar camisa de cama, talvez no se equivoque quando relaciona arapennis (medida de 120 ps quadrados, forma peculiar hispnica do cltico arepennis), donde o espanhol antigo arapende, com o
verbo arare, arar: talvez justamente a associao com arar tenha
contribudo para modificar a forma da palavra. O Diccionario da Academia, caso no tenha razo do ponto de vista histrico, a tem do
ponto de vista do sentimento lingustico atual, ao relacionar cordilla
com cuerda e ao reconhecer uma nica palavra errante em lugar de
duas (uma derivada de errar, a outra do francs errant, particpio
presente do francs antigo errer<iterare ).
Para subsidiar a retomada de estudos sobre a etimologia popular, por ns deflagrada em Saussure, Coseriu (1987, p. 75) faz uma
oportuna reflexo filosfica com o propsito de ressaltar
o lugar da criao metafrica na atividade lingustica, que sempre atividade potica, isto , criadora; mostrar como a fantasia
humana infunde mltiplos significados metafricos nos contnuos fnicos que so as palavras fisicamente consideradas, como
muda caprichosamente os significados e busca sempre novas
ima-gens expressivas para nomear o que a intuio conhece e
distingue, e como estabelece continuamente novas relaes entre
os signos mortos ou moribundos da lngua, renovando-a continuamente, criando-a a cada momento, para adapt-la s novas
intuies. A alegria, a tristeza, a dor e o medo do homem, a sua
maneira de considerar o mundo e a sua atitude para com ele, tudo

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isso se reflete na palavra, no ato de cria-o lingustica. O homem


conhece, e ao mesmo tempo pensa e sente, estabelecendo analogias inditas, na intuio como na expresso, ana-logias que
contm e manifestam o seu modo peculiar de tomar contato com
a realidade. As criaes individuais so imitadas, e por imitao
elas se difundem, convertem-se em tradio, no patrimnio de
modelos lingusticos da comunidade, tornam-se convenes, mas
conservam, pelo menos durante certo tempo e em certos aspectos,
o selo de um indivduo criador que cumpriu o ato de revelao
inicial.

Monteiro Lobato, o genial fundador da literatura brasileira,


utiliza a etimologia popular com expressividade, dentre os inmeros
recursos da ludicidade verbal que o caracterizam. Na associao de
palavras com alguma relao entre elas, o resultado que a palavra
menos familiar, erudita, mais difcil sofre a influncia da outra mais
conhecida, mais fcil , que lhe determina modificaes.
Assim, aparecem as ocorrncias:
a) Como as melancias observou Emlia. O melhor o meio,
o anjo da melancia...
Houve uma discusso sobre o tal anjo das melancias, que a
parte central e mais gostosa. Emlia achou que se chamava anjo justamente por isso, por ser a melhor. Mas Dona Benta no aprovou a
ideia.
Quero crer que esse anjo das melancias no passa de
corrupo de mago das melancias. Como a palavra mago erudita, isto , s conhecida entre as pessoas muito cultas, alguma vez tia
Nastcia ouviu na mesa o patro chamar o miolo da melancia de
mago e foi l na cozinha dizer que o nome daquilo era anjo. E o
nome espalhou-se entre os ignorantes das redondezas e hoje at vocs
falam no anjo da melancia...
A boneca aceitou a lio, mas continuou a dizer anjo, porque
o tal mago fica muito sem graa e pedante. Entre um mago e um
anjo eu pego no anjo... (Seres de Dona Benta, 1956, p. 150)
b) Um letreiro amarelo em lngua sueca e a palavra jonkoping
embaixo. O povo dizia que eram fsforos do Joo dos Copinhos...
(Histria das Invenes, 1957, p. 47)
c) Emlia, se referindo Dona Etimologia, f-lo de vrias maneiras:
Voltemos aos sufixos, que so mais engraadinhos props
Emlia. Diga uma poro deles, Dona Timtea. (Emlia nos pas da
gramtica, 1958, p. 95)
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d) Viva! Viva! gritou ela batendo palmas. Deu certinho


Venha ver, Dona Eufrsia! Com uma Raiz e um Sufixo fabricamos uma
palavra nova... (Emlia nos pas da gramtica, 1958, p. 96)
e) No se assuste, Dona Eullia! gritou Emlia. ESte paquiderme mansssimo... (Emlia nos pas da gramtica, 1958, p. 103)
f) Est vendo, Dona Brites? Poder haver monstro mais carneiro? (Emlia nos pas da gramtica, 1958, p. 103)
g) S acordei quando o Doutor Cara-de-Coruja...
Doutor Caramujo, Emlia!
Doutor Cara-de-Coruja. (Reinaes de Narizinho, 1957, p. 34)
A ttulo de nossa contribuio para as reflexes desenvolvidas,
detemo-nos no carter arbitrrio dos smbolos lingusticos, enunciado em termos categricos por Saussure. Com isso, entendia ele a
circunstncia de no haver uma relao necessria entre a natureza
das coisas e a dos sons que a designam (1978, p. 17). Mattoso Cmara Jr., considerando a diviso de Bhler, identifica a langue de
Saussure com a funo representativa do filsofo alemo: A lngua
no seu conceito saussuriano se deduz apenas da funo representativa, pois compreende a estrutura, o esquema, o padro ou a pauta que
rege, em termos lingusticos, a nossa representao do mundo exterior e interior (1978, p. 10). Assim, se excluem do conceito de langue
de Saussure as duas outras funes de Bhler: a manifestao psquica e o apelo, ou seja, as funes no intelectivas.
Para ns, acompanhando Mattoso, um estudo lingustico amplo
abarca tanto um sistema de fundo intelectivo (a que se restringiu
Saussure) como um sistema de expressividade, de fundo emocional,
que a ele se articula, contribuindo para o funcionamento pleno da
lngua. Em Dispersos (1975, p. 136), Mattoso resolve a questo: A
soluo para introduzir os elementos emocionais no sistema intelectivo
da lngua que est na base do estilo, em ltima anlise. A estilstica,
ento, assume papel fundamental porque vai depreender todos os
processos lingusticos que permitem a atuao da manifestao psquica e do apelo dentro da linguagem intelectiva (1975, p. 137).
Parece-nos claro que ao fenmeno da etimologia popular cabe
um lugar relevante tambm nos estudos estilsticos, trazendo a fala
do povo para o montante de fatos da lngua a que se devem dar
ateno e que, s vezes, permanecem na periferia, como pouco significativos.

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DE SAUSSURE, DE OUTRAS CONTRIBUIES, DE OCORRNCIAS LINGUSTICAS:

ABSTRACT
Reading or studying Saussure usually demands preconceived
attitudes. There are ideas and concepts of the Swiss
master that spread as icons in the studies of contemporary
linguistics. This article aims at focusing on a recurring theme
in linguistic experience but seldom associated with the Curso de Lingustica Geral (1975). From Saussures writings, it
is intended to present considerations of renowned scholars
who deal with language phenomena, in order to revive and
rescue the relevance of popular etymology on the list
of language resources that are available for research and
analysis. Besides the examples of the evolution of the
phenomenon in question in foreign languages, we selected
material from works of fiction published in Portuguese.
KEYWORDS:: Saussure; popular etymology; theoretical
studies; linguistics experience

REFERNCIAS
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Recebido em 6 de maio
Aprovado em 15 de maio

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