Ebook Literatura Cabo Verdiana

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Simone Caputo Gomes

Antonio Aparecido Mantovani


rica Antunes Pereira
(Organizadores)
Grupo de Estudos Cabo-verdianos de Literatura e Cultura CNPq-USP

Literatura Cabo-verdiana:
leituras universitrias

Cceres-MT
2015

UNEMAT Editora

Editor: Maria do Socorro de Souza Arajo


Diagramao: Ricelli Justino dos Reis
Foto da capa: Genivaldo Rodrigues Sobrinho, tirada na Ponta do Sol Ilha de Santo
Anto, Cabo Verde, em 2009, no mbito do Grupo de Estudos Cabo-verdianos CNPq/USP
Reviso: Simone Caputo Gomes
Publicao Online
Conselho Editorial:
Maria do Socorro de Souza Arajo (Presidente) Severino de Paiva Sobrinho
Ariel Lopes torres
Tales Nereu Bogoni
Luiz Carlos Chieregatto
Roberto Vasconcelos Pinheiro
Mayra Aparecida Cortes
Fernanda Ap. Domingos Pinheiro
Neuza Benedita da Silva Zattar
Roberto Tikau Tsukamoto Jnior
Sandra Mara Alves da Silva Neves
Gustavo Laet Rodrigues

CIP CATALOGAO NA PUBLICAO


G6331 Gomes, Simone Caputo.
Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias / Simone
Caputo Gomes, Antonio Aparecido Mantovani, rica
Antunes Pereira (organizadores). Cceres: Ed. UNEMAT,
2015.
205 p.
ISBN: 978-85-7911-145-7
1. Literatura Cabo-verdiana. 2. Literatura Comparada.
3. Letras. I. Mantovani, A.A. II Pereira, . A. III Gomes, S. C.
IV. Ttulo. V. Ttulo: leituras universitrias.
Ficha catalogrfica elaborada pelo bibliotecrio Luiz Kenji Umeno Alencar - CRB1 2037
Unemat Editora
Avenida Tancredo Neves n 1095
Fone (0xx65) 3221-0023
Cceres - MT - Brasil - 78200-000

Proibida a reproduo de partes ou do todo desta obra sem autorizao expressa dos (as) autores (as). (art.184 do Cdigo Penal e Lei 9.610,
de 19 de fevereiro de 1998 do Cdigo Civil Brasileiro de 2002).

SUMRIO
HOMENAGEM A SIMONE CAPUTO GOMES

APRESENTAO

Os dois irmos, de Germano Almeida e Dois irmos, de Milton Hatoum: verdades


no esclarecidas entre estilhaos do passado 10
Antonio Aparecido Mantovani
Cinco balas contra a Amrica, de Jorge Arajo: desconstruo e identidade na literatura
infantil e juvenil cabo-verdiana 18
Avani Souza Silva
A fala autoral e o plano literrio de A cabea calva de Deus
Christina Ramalho

31

Vera Duarte: ventos da memria num presente de distopias


Cludia Maria Fernandes Corra

47

Revisitaes poticas: Manuel Bandeira na berlinda dos cabo-verdianos


rica Antunes Pereira

58

Eugnio Tavares: amor a Cabo Verde na prosa de interveno social


Genivaldo Rodrigues Sobrinho

71

Entre dois mundos: a loucura feminina em A Louca de Serrano, de Dina Salstio


Juliana Primi Braga

86

Gnero e sexualidade em As memrias de um esprito, de Germano Almeida


Mailza R.T.Souza

99

Lendo o sentido de existir em Corao de lava, de Jos Luiz Tavares


Maria de Ftima Fernandes

112

Claridade revista (2000-2013)


Norma Sueli Rosa Lima

124

Psicologia reversa e reatncia psicolgica: o narrador masculino na produo ficcional


de Ftima Bettencourt
Pedro Manoel Monteiro

137

Sentimentos em trnsito: a representao das masculinidades em Outros sais na


beira mar, de Filinto Elsio
Raquel Aparecida Dal Cortivo

146

Navegando na potica de Filinto Elsio


Rute Maria Chaves Pires

157

Lulucha e Titina: personagens margem da sociedade


Sonia Maria Alves de Queiroz

166

Vtimas e Rebeldes: mulheres escrevem Cabo Verde


Sonia Maria Santos

176

Corpos negros que ecoam do outro lado do Atlntico


Suely Alves de Carlos

185

O poema, a viagem, o sonho: o mapa de uma potica


Vilma Aparecida Galhego

195

AUTORES DOS CAPTULOS

203

HOMENAGEM A SIMONE CAPUTO GOMES


Cabo Verde, pas africano formado por dez ilhas e com rea total de
apenas 4.033km2, agigantou-se no corao dos estudantes brasileiros graas, sobretudo, ao trabalho incansvel e paixo arrebatadora compartilhada pela Professora Doutora Simone Caputo Gomes, que, desde 1976, dedica-se a pesquisar
e a difundir, em nvel de graduao e ps-graduao, a literatura e a cultura do
arquiplago.
Pelas mos de Simone, a semente lanada em cho de poeira foi cuidadosamente regada e, com o tempo, tornou-se o enorme poilo que hoje verdeja
em seu prprio corpo, tambm este um solo adubado para vrias geraes de
alunos e pesquisadores.
A ideia de publicar o presente livro com o intuito de homenage-la
surgiu espontaneamente dos autores dos textos, que so ou foram seus orientandos e supervisionados nos cursos de Mestrado, Doutorado e Ps-Doutorado da Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de
Janeiro e Universidade de So Paulo.
Em quase quarenta anos de pesquisa na rea, Simone Caputo Gomes recebeu diversas condecoraes, entre elas, a Medalha do Vulco de
Primeira Classe, outorgada, em 2007, pelo Presidente da Repblica de Cabo
Verde em razo de seu trabalho com a cultura daquele pas, e a Comenda
Oxum Muiw, outorgada pela Universidade Estadual da Bahia em 2010.
Alm disso, foi designada como Membro Honorrio da Academia Caboverdiana de Letras, pelo Plenrio da ACL, em 2013.
Em 2008, organizou o I Seminrio Internacional de Estudos Cabo-verdianos na Universidade de So Paulo, trazendo um grande nmero de intelectuais, escritores e artistas cabo-verdianos, o que possibilitou o contato direto entre estes e os pesquisadores brasileiros. Tambm na USP, a professora fortaleceu
o trabalho realizado pelos professores da rea de Literaturas Africanas de Lngua
Portuguesa, renovou as pesquisas sobre a Literatura Cabo-verdiana, instituiu e
inaugurou uma disciplina voltada especificamente produo literria do arquiplago e, ainda, criou o Grupo de Estudos Cabo-verdianos de Literatura e
Cultura CNPq/USP, em cujo mbito foi idealizado este livro.
Os artigos, que abordam autores e obras cabo-verdianas desde o sculo
XIX at a atualidade, do mostra da importncia que os estudos acerca das Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa vm assumindo nas ltimas dcadas.
No Brasil, tal fato se deve ampla divulgao e valorizao da Lei n 10.639,
sancionada pelo Presidente da Repblica em 9 de janeiro de 2003 (e revista em
10 de maro de 2008 pela Lei Ordinria n 11.645), que instituiu a obrigatorieda-

de do ensino de Histria e Cultura indgena e afrodescendente tanto no Ensino


Fundamental quanto no Mdio das redes pblica e privada. A publicao desta
coletnea mais uma contribuio aos professores e pesquisadores de Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa num pas onde ainda impera no cotidiano
escolar uma educao eurocntrica.
Oferecer a presente coletnea Professora Doutora Simone Caputo
Gomes, essa rvore-Me cujos galhos abraam todos aqueles que aprendem a
amar Cabo Verde, uma forma de agradecimento pela confiana em ns depositada, pela seriedade, pela dedicao e pela competncia do trabalho fundamental na formao de pesquisadores dentro e fora do Brasil.
Continuemos a regar a semente plantada por Simone!

Antonio Aparecido Mantovani


rica Antunes Pereira
(Organizadores)

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

APRESENTAO
Cabo Verde completa este ano quarenta (40) anos de independncia.
Neste clima de comemorao, completei trinta e nove (39) anos de pesquisa da
Literatura e da Cultura Cabo-verdiana, que descobri lendo versos de Daniel Filipe. Tm sido dcadas de investigao e docncia, com a satisfao de ter inovado no campo da investigao, implantado a disciplina especfica nos nveis
de Aperfeioamento, Especializao, Graduao, Mestrado, Doutorado e Psdoutorado na rea de Letras, em vrias universidades brasileiras. Muitos alunos
foram formados na rea de Literatura Cabo-verdiana e, por extenso, de Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa nestes 39 anos, alm dos demais oito (8)
anos que perfazem quarenta e sete de docncia, em outras reas que abrangem a
Literatura Portuguesa e a Teoria da Literatura, com trabalhos nas reas de alfabetizao e de ensino para alunos com necessidades especiais.
Da trajetria na rea de Letras tenho recebido, para minha satisfao, o
reconhecimento dos meios acadmicos nacionais e internacionais e, em especial, da comunidade cabo-verdiana, representada por seu Presidente da Repblica e por sua Academia de Letras, que me outorgaram a Medalha do Vulco de
Primeira Classe (2007) e o ttulo de Membro Honorrio (2014), e ainda por seu
Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco, que publicou minha dissertao de
Mestrado, defendida em 1979 (quando dissertaes e teses de Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa ainda, timidamente, despontariam no Brasil e no
exterior a partir de 1980). Dessa caminhada guardo inmeros momentos de realizao, dos quais desponta esta homenagem idealizada pelos alunos formados
sob minha orientao Ps-doutores, Doutores, Mestres e atuais orientandos
cujas dissertaes e teses se debrua(ra)m especificamente sobre temas relativos
Literatura e Cultura de Cabo Verde.
A ideia desse livro surgiu dos prprios orientandos, no mbito de uma
viagem que fiz a Cabo Verde com um grupo de cinco (5) alunos da Universidade de So Paulo, membros do Grupo de Estudos Cabo-verdianos de Literatura
e Cultura CNPq-USP (do qual sou lder), com visita a 5 ilhas das 9 habitadas.
O objetivo de demonstrar a reao ao meu trabalho, sob a forma de coletnea,
foi logo acolhido por outros orientandos e orientados com entusiasmo e com
muito orgulho da maravilhosa produo que eles tm apresentado que introduzo ao leitor uma parte do que temos realizado, em prazerosa parceria, em vrias
universidades e em vrios nveis, sobre a Literatura de Cabo Verde.
Da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do perodo em que fui
Professora Visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) destaco
os trabalhos de Norma Sueli Rosa Lima e Sonia Maria Santos, que se dedicaram mais profundamente aos estudos sobre a revista Claridade e sua relao
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

com a Literatura produzida no Brasil no perodo modernista e, no segundo caso,


fico literria de autoria feminina em Cabo Verde. Orientei Norma Sueli em
nvel de Doutorado na UFF e Sonia Santos, no Mestrado, na mesma universidade; na UFRJ, Sonia teve minha co-orientao no Doutorado.
Os demais autores dos captulos deste livro foram ou so orientandos da
Universidade de So Paulo.
Dos j Doutores, destaco: Antonio Aparecido Mantovani, que pesquisou, sob minha orientao, a fico de Germano Almeida em comparao com a
do brasileiro Milton Hatoum; Avani Souza Silva, que optou, para tema de tese,
pela Literatura Infantil e Juvenil Cabo-verdiana; Genivaldo Rodrigues Sobrinho que se aprofundou na obra de poesia e prosa de Eugnio Tavares, trabalhando com textos em lngua portuguesa e cabo-verdiana; Juliana Primi, por sua vez,
investigou, num vis feminista, a loucura na fico de Dina Salstio e seu poder
libertrio; a cabo-verdiana Maria de Fatima Fernandes comparou as poticas
de Corsino Fortes, Joo Vrio e Jos Luiz Tavares; Pedro Manoel Monteiro, a
fico de Ftima Bettencourt, Ivone Aida e Orlanda Amarlis. Cludia Maria
Fernandes Corra, da rea de Literaturas Modernas, teve minha co-orientao
para a parte da tese que abordava a poesia de Vera Duarte, comparada com a
potica de autora de lngua inglesa.
Em nvel de Mestrado, Sonia Maria Alves de Queiroz e Suely Alves
de Carlos, com minha orientao, procederam anlise de obras ficcionais do
ponto de vista do recorte social de gnero; Suely, comparando textos de Orlanda
Amarlis e Clarice Lispector; Sonia, colocando em confronto textos cabo-verdianos de autoria feminina e masculina (Camila Mont-Rond, Dina Salstio, Ftima Bettencourt, Ivone Aida, Maria Margarida Mascarenhas, Orlanda Amarlis,
Antnio Aurlio Gonalves, Baltasar Lopes, Manuel Ferreira, Oswaldo Osrio,
Teobaldo Virgnio e Virglio Pires).
Acolhi, ainda, como interlocutora, na USP, as pesquisas em nvel de Psdoutorado de: Christina Ramalho, sobre a obra potica de Corsino Fortes, e
rica Antunes Pereira, sobre a leitura que os textos literrios cabo-verdianos
fazem sobre o Brasil, em variados aspectos. O trabalho de Christina gerou um
livro e o de rica uma parceria comigo em dois livros, antologias de poesia e
prosa cabo-verdiana, sendo uma dedicada especialmente s relaes Cabo Verde-Brasil.
Fui interlocutora de Mailza Rodrigues Toledo e Souza na qualificao
de Doutorado e ela, j Doutora, optou por participar ativamente do grupo de
estudos, com vista a um Ps-doutorado.
Raquel Aparecida Dal Cortivo, Rute Maria Chaves Pires e Vilma

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Aparecida Galhego, orientandas atuais no Doutorado da Universidade de So


Paulo, investigam, respectivamente: as obras de Armnio Vieira, Corsino Fortes
e Filinto Elsio, no caso da primeira; Filinto Elsio e sua poesia, no caso de Rute;
e Armnio Vieira, no caso de Vilma. As ticas de pesquisa, quando os autores
coincidem, so diferentes, abrindo um leque de possibilidades.
Abarcando um perodo da Literatura Cabo-verdiana em poesia e prosa
que se estende dos sculos XIX a XXI, as pesquisas puderam gerar artigos e captulos nacionais e internacionais, alm de alguns livros, produo especializada
diversificada que pde gerar os textos desse livro, que considero, com orgulho
de me acadmica ou de irm acadmica mais velha, relevantes para o maior
conhecimento da Literatura Cabo-verdiana, to rica, mas cuja divulgao ainda
no faz jus sua importncia.
Receber um livro como homenagem (que, na verdade, considero mais
uma constatao de parceria) em vida uma emoo incomparvel, uma honra
para ficar na memria. Por isto e por toda a alegria que me deram e tm dado no
convvio intelectual e pessoal, agradeo a todos os autores o carinho sem limites.

Simone Caputo Gomes


(Organizadora)
Universidade de So Paulo
Academia Cabo-verdiana de Letras

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Os dois irmos, de Germano Almeida e Dois irmos, de Milton Hatoum:


verdades no esclarecidas entre estilhaos do passado
Antonio Aparecido Mantovani
O narrador que se diz eu est limitado. A memria lhe
auxlio valioso. Mesmo no estreito espao de si mesmo,
h limites. A memria falha. Recordar fatos no significa
compreend-los.
Donaldo Schler

Encontramos logo no frontispcio do romance Os dois irmos1, de Germano Almeida, uma confisso do autor de que a histria que lhe serviu de motivao para a escrita do romance aconteceu pelos idos de 1976: Como agente do
Ministrio Pblico fui responsvel pela acusao de Andr pelo crime de fratricdio. S muitos anos depois percebi que Andr nunca mais me tinha deixado
em paz (ALMEIDA, 1995, p. 07).
Dessa forma, a escrita parece, para alm do ofcio de escrever, ser uma
maneira de o autor resgatar e compreender os motivos que levaram Andr
(nome fictcio), em sua volta ilha de Santiago, a matar o prprio irmo. Na
verdade, a consumao do crime ocorre no pela vontade do infrator, mas pela
intensa presso social exercida sobre ele, principalmente por parte do pai, que o
ignorou completamente at a consumao do fratricdio, que repararia, assim, a
(suposta) honra desfeita.
Diante do impacto do meio sobre Andr, tendo por consequncia o desfecho do crime, no sabemos at que ponto essa personagem realmente a culpada pelo fratricdio. Essa dvida enriquece o texto e instiga o leitor, que conclui
que Andr se viu obrigado a cometer um crime de acordo com a expectativa e os
valores de uma sociedade cujo cdigo de honra est acima de tudo.
No seu processo de composio de Os dois irmos, Germano Almeida aproxima fico e realidade, num artifcio de verossimilhana. Apesar do
autor se identificar como o agente do Ministrio Pblico durante o julgamento, o romance no narrado por essa personagem. O narrador, em terceira
pessoa, d a voz ao advogado de acusao (agente do Ministrio Pblico),
ao advogado de defesa, ao juiz, ao ru, famlia da vtima, aos amigos e
comunidade, sem nunca assumir a primeira pessoa, como veremos posteriormente. Dessa forma, a estria que enunciada como verdica no decorrer
da narrativa vai sendo assumida por diversas vozes, medida que essas vo
tomando a fala.
1 Daqui por diante tratado nas citaes como ODI.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

O desenvolvimento do romance concomitante ao julgamento de Andr e o leitor torna-se um expectador e pode formar seu juzo diante dos diversos pontos de vista apresentados. As vozes das personagens confirmam a mesma
estria; no entanto, cada verso ancora-se em uma vertente antittica: a de acusao e a de defesa do ru.
Ainda que o autor revele a estria logo no frontispcio do romance e
antecipe a sentena de Andr no incio da narrativa, o limite da verdade sobre
a culpa dessa personagem no alcanado, principalmente pelas circunstncias
em que o crime foi cometido. O juiz tem certeza de que Andr cometera o crime,
mas sente dificuldade em atestar sua real culpabilidade:
No lhe foi, porm, imediatamente bvia essa concluso definitiva e
a seguir leitura da sentena confessaria ter consumido no poucas
noites em agitadas, mas infelizmente inconcludentes insnias e por
vrias vezes tinha posto de parte a condenao por crime doloso que
se lhe afigurava demasiado singelo (ALMEIDA, 1995, p. 11).

A impossibilidade de chegar-se a veredictos de Verdade e a existncia de


dvidas no esclarecidas esto presentes nos dois romances em estudo: em Dois
irmos2, de Milton Hatoum, Nael busca a paternidade at o final da narrativa,
mas nem mesmo sua me a revela. Com esta morta, o narrador espera at o fim
por um pedido de desculpas de Omar pela violncia (o estupro) praticada contra
Domingas: Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra,
a humilhao. Uma palavra bastava, uma s. O perdo. [...] Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora (DI. 2000, p. 265-266). Sem um pedido de
desculpas e sem descobrir sua paternidade, o narrador conclui o romance; por
sua vez, em Os dois irmos, de Germano Almeida, o juiz, mesmo com um esforo extremo apenas tinha conseguido obter uma leve clarificao da completa
nebulosidade que desde o incio tinha rodeado o crime de Andr (ALMEIDA,
1995, p. 12).
No romance de Germano Almeida, a verdade absoluta no se esclarece,
talvez porque haja um espao vazio no revelado no exato momento do crime.
O preenchimento deste espao provavelmente no alteraria em nada a trama,
mas sua intrincada revelao um dos principais motivos da narrativa, afirma
Paula Gndara (2008, p. 56). Segundo a pesquisadora, esse esclarecimento nada
nos ofereceria que a histria j no tivesse revelado. A verdade absoluta jamais
alcanada, porque ela inexiste. A busca de esclarecimentos do momento vazio
da consumao do crime o que instiga e motiva a perseguio da verdade, impossvel de ser alcanada:
2 Daqui por diante tratado nas citaes como DI.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

[...] conforme confessaria [o Meritssimo Juiz], a verdade que ainda


existiam muitas zonas de sombra que no lhe estavam permitindo
completamente realizar no seu esprito todos os momentos da tragdia e no queria desistir de tentar, se no de preencher pelo menos de
esgotar, todas as possibilidades de obter qualquer achega que pudesse vir a revelar-se processualmente til (ALMEIDA, 1998, p. 217).

Ao dar a voz a vrias personagens, o leitor guiado por um narrador


quase divino que nunca se revela na primeira pessoa. Este narrador meio invisvel, onipresente, vai cedendo a fala, compondo desta forma o que Paula Gndara
chama de realidades-fices-discursos (2008, p. 77). Lembra a pesquisadora
que estes discursos aproveitados como intervalos do espao de julgamento no
tribunal, servem depois como dilogos entre a cultura instituda e a cultura que
se quer tipicamente cabo-verdiana (Ibidem, p. 57). Observemos na narrativa de
Germano Almeida, no fragmento abaixo, o que Gndara prope como realidades-fices-discursos:
Ser contra a monogamia a forma como o homem cabo-verdiano
se desculpa da sua promiscuidade, disse o juiz sorrindo. Ento voc
quer dizer que nunca deu uma facadinha no matrimnio, espantouse o advogado, mas o juiz deu uma gargalhada (ALMEIDA, 1995, p.
203).

O excerto acima demonstra a diversidade cultural de Cabo Verde e um


determinado comportamento reprovado aldeia, todavia, presente no arquiplago. O romance traz tona, durante o seu processo de construo, a dade
tradio versus modernidade. A emigrao, um dos aspectos constitutivos da
cultura cabo-verdiana, tem como consequncia a importao de novos hbitos
reprovados na sua diferena, principalmente pelos mais velhos. Para eles, as novas ideias que chamavam de modernidade, [mas que] no fundo no eram seno
de malandragem (ALMEIDA, 1995, p. 55).
As vozes das diversas personagens se subdividem em duas vertentes
por razes socioculturais: dos que vm de fora e aceitam o adultrio como uma
questo cultural e, em contraponto, as vozes da comunidade local que aceitam
o crime como um comportamento em defesa da tradio. O choque inevitvel
dessa diversidade cultural surge na voz do prprio narrador:
Ora num pas como Cabo Verde, nascido de uma miscigenao at
agora ainda ignorada nas suas origens, porque, se mais ou menos
conhecemos as influncias europeias, ainda muito pouco sabemos
das diversidades culturais africanas que nos formaram, importava
fazer-se um estudo aprofundado, implicando todos os ramos das
cincias humanas, para efectivamente se conhecer que povo somos

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

e que cultura temos para se saber que leis se adaptam quilo que somos (ALMEIDA, 1995, p. 203).

O fragmento questiona o processo jurdico colocado em questo na obra


por no considerar as diversidades culturais africanas e desconhecer a cultura
local. O julgamento pe em confronto o que Paula Gndara chama de justia
pblica e julgamento privado (2008, p. 57). Neste choque, confrontam-se duas
culturas: uma instituda (com base nas leis que advm das Ordenaes portuguesas), representada pelo juiz que condena o ru, e outra tipicamente local, que
j o absolvera muito antes do julgamento. A escrita do romance uma espcie
de cumprimento de pena do autor, que se confessa perseguido pela sua prpria
vtima, no frontispcio do livro, num apelo verossimilhana.
Por sua vez, o romance de Milton Hatoum centraliza o enredo na histria dos gmeos Yaqub e Omar, o caula, e as relaes destes com a me, o pai e a
irm, respectivamente: Zana, Halim e Rania. Nos fundos da mesma casa, localizada num bairro de Manaus, moram a empregada Domingas e seu filho, Nael,
um menino que anos mais tarde narra uma estria cheia de vingana, paixo e
relaes arriscadas, buscando a identidade de seu pai (Yaqub ou Omar?).
A intriga tem seu incio quando Yaqub mandado para o Lbano, aos
treze anos, para evitar o conflito entre os gmeos. Como consequncia dessa
relao conflituosa, o inconsequente Omar estoca o rosto de Yaqub com uma
garrafa estilhaada, causando-lhe um grande corte e uma eterna cicatriz, porque
ele havia recebido um beijo no rosto da dengosa mocinha Lvia, que atraa os
dois irmos.
Yaqub volta cinco anos depois, transformado num jovem calado, misterioso e cheio de ressentimentos. Mais tarde vai estudar em So Paulo, onde o frio
da cidade parece contagiar tambm seu temperamento, e ali se casa em segredo.
Omar mandado capital paulista para tentar obter sucesso semelhante ao do
irmo mais velho e descobre que este havia se casado com Lvia, a causadora do
principal conflito na infncia dos irmos, o que torna a sua reconciliao impossvel. Posteriormente, Omar sente-se tambm trado nos negcios e espanca
Yaqub, que planejar e executar friamente sua vingana.
Como afirma Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo (2004, p.
30-31), a histria narrada sob a perspectiva de Nael, que deixa transparecer
as amarguras de ser o filho da empregada. Por ser filho bastardo da famlia e
dormir nos fundos do quintal beira do cortio, o narrador percebe o quanto
discriminado e possui uma posio privilegiada como membro observador e
testemunha de uma histria familiar.
Toda a narrativa norteada pela voz de Nael, o que Marleine Marcon13

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

des (TOLEDO, 2004, p. 48) chama de representao mental ou existncia em


imagem que, se por um lado permite ao narrador fazer uma anlise das demais
personagens, por outro impregna essa anlise dos seus desejos. O mesmo Yaqub,
eleito por Nael como seu pai por admir-lo, ao final da narrativa totalmente
ignorado, por t-lo decepcionado.
Narrando em primeira pessoa, tudo o que sabemos nos chega atravs
de Nael, ainda que ele d a voz a outras personagens. O narrador espera a casa
desmoronar para contar a histria de duas geraes de uma famlia libanesa de
imigrantes, com enfoque nos irmos que rivalizam desde o incio da narrativa.
A histria dessa famlia tambm a histria do narrador, marcada por conflitos
e discriminao, por um sentimento de explorao e pela busca da paternidade.
Por se envolver na trama e estar no centro do conflito, avulta-se tambm como
um narrador-personagem.
Sobre a construo deste narrador observador, personagem e testemunha privilegiada dos acontecimentos, afirma Maria da Luz Pinheiro de Cristo
(2007, p. 324-325):
Durante as muitas conversas que tive com Milton Hatoum e tambm
pelo que pude observar no contato com os manuscritos, uma questo
est sempre presente: o narrador de Dois Irmos. Nas primeiras verses, ele se situava de maneira distanciada com relao aos dramas
e conflitos que narrava, como uma testemunha alheia trama que
se desenrola. Essa distncia comprometia todo o desenvolvimento
do romance. Mais do que uma testemunha, Nael, o narrador, participava da trama, envolvido de uma forma ou de outra nos conflitos
e tenses ali em jogo. Esse equilbrio entre narrador-testemunha e
narrador-personagem no pde ser alcanado nas primeiras verses.
Passei um ano reescrevendo o narrador! afirma Hatoum.

Este excerto demonstra a preocupao do autor na construo do narrador. Nael encontra-se num espao de fronteira que permeia entre a periferia e a
proximidade das demais personagens por estar fora da casa, mas tramitar livremente por ela. O narrador foi eleito por Zana como o porta-voz e depositrio da
histria que conta, que tambm sua prpria histria.
Eleito o porta-voz, Nael espera por cerca de trinta anos, quando quase
todos estavam mortos, para juntar os estilhaos de fatos que presenciou, de retalhos de outras histrias que ouviu e guardou, e tecer das cinzas do passado, com
os escassos elementos de que dispunha, a narrativa do romance. Dessa forma,
numa vertente rememorativa, faz das vozes dos outros uma nica voz para compor o seu relato, reconstruir sua prpria identidade do quartinho no fundo do
quintal, premido pela eterna dvida que carrega na busca de sua paternidade en-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

tre filhos da casa, com todas as implicaes de cunho simblico e psicanaltico.


O quartinho do fundo, ambiente de mediao, de fronteira entre a loja
indiana e o cortio vizinho, o local ideal que o narrador, discriminado, nem
ndio nem imigrante, encontra para tornar concreta uma nica estria, a estria
de tantos narradores que direta ou indiretamente a ele se agregaram. Para isto,
precisa de um tempo para imaginar, recordar, fazer surgir dos entulhos do passado a redescoberta de tantos fatos acontecidos:
Naquela poca, tentei, em vo, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combusto, acenderem em ns o desejo de contar passagens que o tempo
dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, tambm cmplice delas.
S o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras... (ODI, 1995, p. 244-245).

O tempo torna os sentimentos mais verdadeiros, por permitir que as


mgoas se assentem e por trazer a reflexo. Por se envolver na trama e estar no
centro dos conflitos, o narrador, explorado pela famlia que lhe nega a paternidade, filho bastardo e discriminado, precisa de um distanciamento temporal
para olhar o passado e reconstruir das runas a memria de tudo que viveu e
presenciou sem muita parcialidade.
Se a passagem do tempo desfoca a memria, a imaginao auxilia na sua
reconstruo. Nael o nico capaz de olhar para o passado e reconstruir a histria de uma famlia em conflito. Desse passado vm as lembranas dos sofrimentos da me que, extrada de sua tribo e explorada como empregada domstica,
ainda se v obrigada a esconder a paternidade buscada por ele. A narrativa dessa
memria, aos poucos revitalizada, tambm traz ao presente a histria de como
a casa de Halim e Zana feita e desfeita em processo semelhante quele por que
passa a cidade de Manaus.
Ressaltamos ainda que a focalizao do narrador muda constantemente.
Ao se encontrarem no centro da narrativa e assumirem o comando, as personagens so conhecidas de acordo com sua perspectiva. Pouillon denomina este
tipo de narrao de viso com, lembra Marleine Marcondes (TOLEDO, 2006,
p. 28). s vezes a personagem se encontra no centro do conflito, outras, na periferia, como j se disse. Verifica-se uma proximidade de Nael (o narrador) ao
falar de Domingas e do espao de Manaus, no entanto narra com certa distncia
ao abordar a personagem Yaqub e a cidade de So Paulo. Essa distncia pode ser
justificada por Yaqub encontrar-se ausente na maior parte do tempo, e a Capital
Paulista ser apenas uma referncia que o narrador conhece somente por meio

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

das cartas, fotografias e histrias que ouviu.


Os dois autores doaram um pouco mais de si s respectivas obras. Ambas permeiam fico e veracidade: Milton Hatoum descende de rabes, seu av
era um exmio contador de estrias e morou muito tempo em Manaus, o que
favorece o conhecimento desses ambientes e a cultura dos povos abordados em
sua produo. O prprio autor, falando de Nael, confessa:
Ele vive e escreve ali; entre a vida e a obra encontram-se a imaginao e a sua forma concreta, que a linguagem. uma mediao, uma
das maneiras de ver o mundo, quer dizer, de transcend-lo. Tem um
pouco da minha vida, claro. Passei anos escrevendo num quartinho, quase sempre mo, por causa dos apages, que, anos depois,
causaram transtorno em quase todo o Brasil3.

Por sua vez, Germano Almeida afirma na orelha do livro ser, na vida
real, a personagem do romance responsvel pela acusao de Andr, da a aproximao entre fico e realidade pela confluncia entre as linguagens literria
e processual do Direito. Como o autor buscou determinados fatos relativos no
passado, procurando interpret-los no presente com implicaes ideolgicas
pessoais, a forma da narrativa tem mais equivalncia com a fico do que com o
discurso jurdico, embora a linguagem do romance parea objetivar que as fronteiras entre o discurso jurdico e o literrio no sejam delimitveis.
A doao de dados biogrficos dos autores composio de suas obras tem
como funo criar uma verdade prpria da literatura, evitando reduzir-se reproduo de realidade, at porque, comoafirma Antonio Candido, o romance ser um
fracasso na medida em que quiser ser igual realidade (1992, p. 67). O mundo criado pelos dois autores metamorfoseia alguns aspectos constitutivos do real na criao
de um mundo prprio ficcional a que podemos chamar de suprarrealidade.
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3 Entrevista Treze perguntas para Milton Hatoum concedida Revista Magma n. 8 (p. 55-74) do
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Cinco balas contra a Amrica, de Jorge Arajo: desconstruo e identidade


na literatura infantil e juvenil cabo-verdiana
Avani Souza Silva
Cada criatura dotada de uma srie de identidades, ou
provida de referncias mais ou menos estveis, que ela
ativa sucessiva ou simultaneamente, dependendo dos
contextos.
Serge Gruzinski

Cinco balas contra a Amrica, do escritor cabo-verdiano Jorge Arajo,


uma narrativa juvenil parodstica das estratgias geopolticas e militares, em
solo cabo-verdiano, comandadas pelo ento PAIGC Partido Africano para a
Independncia da Guin e Cabo Verde durante a luta de libertao nacional
desses pases. O livro retrata a aventura pela libertao de Cabo Verde empreendida por quatro jovens especialmente indicados pelos quadros do PAIGC para
defender o pas de um eventual e oportuno ataque do imperialismo americano
no vcuo da luta de libertao nacional, tal como ocorreu na guerra de libertao de Cuba do governo colonial espanhol. Analisaremos a novela enfatizando
o aspecto identitrio que reporta, com base nas reflexes de Stuart Hall (2006).
A obra constitui uma das narrativas juvenis cabo-verdianas mais instigantes na atualidade. Da dispora em Lisboa, o escritor cabo-verdiano Jorge
Arajo produz uma escrita totalmente inserida no contexto cabo-verdiano, trazendo personagens, nomes, espaos, tempo, cultura e histria de seu pas. Dessa
forma, obra e autor pertencem ao conjunto da literatura cabo-verdiana, mesmo
que os possveis leitores no sejam, em sua maioria, cabo-verdianos, no pas
ou na dispora. Pelo fato de Jorge Arajo produzir uma literatura totalmente
inserida no contexto de Cabo Verde, consideramos que ele faz parte do sistema
literrio do seu pas.
Adotamos a noo de sistema literrio como formulado por Antonio
Candido em seu livro Formao da literatura brasileira, constitudo com base
no trinmio escritor-obra-leitor num continuum literrio, formando um sistema
simblico. Quando a atividade dos escritores, em dado perodo scio-histrico, se integra nesse sistema, possibilitando uma continuidade literria, ocorre a
tradio literria. Antonio Candido, para explicar essa continuidade, recorre
imagem de uma tocha que corre de mo em mo entre corredores. Ento, esse
conjunto, veiculado por uma tradio literria a que se ligam as diversas obras,
em diversos momentos histricos, constitui o sistema literrio.
No caso cabo-verdiano, o sistema literrio comeou a configurar-se a

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

partir da criao da Claridade Revista de Artes e Letras, em 1936, que possibilitou o advento de vrias publicaes literrias, sendo que em seu primeiro
nmero trouxe um captulo do primeiro romance cabo-verdiano: Chiquinho,
de Baltasar Lopes, considerado por ns como a primeira obra infantil e juvenil
cabo-verdiana. No entanto, as obras de literatura infantil e juvenil publicadas
no pas somente foram dinamizar o sistema literrio cabo-verdiano a partir da
independncia, em 1975, quando surgiram as primeiras obras impressas do gnero. At ento, a literatura para crianas e jovens era oral, composta por contos
populares, adivinhas, histrias de assombrao e de seres encantados.
Parece-nos cabvel, nesse contexto de formao da literatura infantil
e juvenil escrita no arquiplago, apontar a importncia do escritor diasprico
Jorge Arajo, cujo conjunto da obra publicada relevante no dilogo com os
demais espaos literrios de lngua portuguesa no somente africanos, mas tambm asiticos. de se notar tambm que seu primeiro livro infantil e juvenil,
Comandante Hussi, ganhador do prmio Gulbenkian de Literatura, tenha sido
escrito 28 anos aps a Independncia do seu pas do governo colonial portugus.
O fato tambm de Jorge Arajo ser um escritor que vive na dispora
muito significativo dentro do contexto da literatura cabo-verdiana que foi formada, no incio, essencialmente por escritores que tambm tiveram experincia
na dispora, em termos no somente de formao acadmica e profissional na
metrpole, mas tambm, em muitos casos, de desempenho de funes para o
governo colonial, seja na metrpole, seja nas demais colnias. Dentre esses escritores, apontamos aqueles inicialmente ligados Claridade, constituintes da
elite letrada do arquiplago, e que a historiografia da literatura cabo-verdiana
classifica como claridosos, haja vista suas ligaes, de alguma maneira, inclusive
temtica, com aquela revista: Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Ovdio Martins,
Onsimo Silveira, Lus Romano, Antnio Aurlio Gonalves, Gabriel Mariano,
Henrique Teixeira de Sousa, Pedro Duarte, Teobaldo Virgnio, Nuno de Miranda etc.
Assim, Jorge Arajo, da dispora, tambm est ligado ao sistema literrio cabo-verdiano, porque sua escrita profundamente marcada pelo contexto
sociocultural de seu pas. No mbito da produo disporica do autor, o tema
da emigrao estar presente na obra sob anlise, pois esse tambm um tema
recorrente dentro do conjunto da literatura cabo-verdiana.
Cabo Verde tem uma populao atual de aproximadamente 512 mil habitantes, segundo o censo de 2012, e uma populao diasprica muito superior
a esse nmero, o que faz com que os cabo-verdianos considerem que o Arquiplago composto no de dez ilhas, mas de onze ilhas, sendo esta ltima representada pela dispora. Segundo Jos Maria Semedo (1998, p. 92), a emigrao
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

considerada por muitos como espao de continuidade da cultura cabo-verdiana,


novas ilhas espalhadas pelo mundo. Para se ter uma ideia do fluxo migratrio
do pas, nos anos de 1980 a populao cabo-verdiana na dispora era o dobro da
do arquiplago: 700.000 mil pessoas.
Uma corrente forte de emigrao de cabo-verdianos teve seu incio no
final do sculo XIX para os Estados Unidos, embora os cabo-verdianos j conhecessem esse pas desde o sculo XVII, quando trabalhavam na pesca da baleia. A
emigrao no foi espontnea, mas causada por graves dificuldades econmicas,
desde o primeiro grupo do qual se tem registro, que saiu da Ilha Brava em navios
baleeiros na ltima dcada do sculo XIX (HERNANDEZ, 2002, p. 104).
Para Luiz Silva, na introduo do livro Folclore cabo-verdiano, de Pedro
Monteiro Cardoso, os cabo-verdianos foram os primeiros africanos da frica
Ocidental a emigrar por iniciativa prpria (SILVA, 1983, p. VIII). O processo
migratrio de Cabo Verde teve como principal causa a busca pela sobrevivncia,
j que o pas enfrentou at a dcada de 1970 intensos ciclos de fome ocasionados
pela seca, devido sua posio geoclimtica agravada ainda pelos ventos do deserto que carregam a chuva para o mar, impondo longos perodos de estiagem
ao arquiplago.
O retrato social de Cabo Verde nos perodos de fome, motivados pela
seca e agravados por epidemias e por pragas, era avassalador. Segundo Antnio Carreira (1984, p. 19), a primeira fome registrada prolongou-se de 1580 a
1583, em que muita gente morreu e muitos emigraram para a Guin. No se
conhecem, entretanto, dados sobre essa emigrao. As duas mais catastrficas
crises ocorridas no sculo XX so as de 1941-1943 e 1947-1948. Na primeira
crise morreram de fome e de doena 37.903 pessoas, e na segunda quase 30.000
pessoas (CARREIRA, 1984, p. 108 e 118). V-se, pois, as graves razes que motivaram a emigrao do cabo-verdiano, sendo que no perodo de 1950 a 1973
o nmero de emigrantes triplicou em relao dcada anterior, constituindo a
fase conhecida como a do grande xodo, com destino principal aos pases europeus, segundo Hernandez (2002, p. 105).
O quadro da emigrao, todavia, arrefece a partir dos anos 1980 e muda
de configurao, agregando variadas motivaes de ordem pessoal, social, poltica e cultural: a busca de novas oportunidades de trabalho, de estudo, de profissionalizao, o desejo de vivncia cosmopolita etc. Assim, a emigrao, tema
pungente no s na literatura cabo-verdiana, mas tambm nas artes e na msica,
tambm ser referenciada na narrativa, e a diversidade de seus motivos fica patente com a partida dos protagonistas para a Europa, demonstrando a atualidade
da escrita de Jorge Arajo.
Como j ressaltamos, Cinco balas contra a Amrica uma narrativa
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

juvenil que parodia as estratgias geopolticas e militares comandadas pelo Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo Verde, em solo cabo-verdiano, durante a luta de libertao nacional desses pases. O palco do movimento de libertao da Guin e de Cabo Verde centrou-se na guerra de guerrilhas
nas matas da Guin e, ao tentar incluir os cabo-verdianos nessa luta, a partir de
Cabo Verde, a narrativa constri uma pardia poltica das mais instigantes.
O tempo da narrativa situa-se no vero de 1974, e o espao ficcional
a Praia de So Pedro, na ilha de So Vicente, onde quatro jovens adolescentes
Aristteles, Bob, Frederico e Zapata, sob o comando deste ltimo acampam
durante uma noite, armados de um revlver e de cinco balas, para defenderem
o pas de um possvel ataque americano. Quem lhes destina essa misso o
Comandante Zero, guerrilheiro cabo-verdiano nas matas da Guin e um dos
quadros mais importantes do PAIGC.
Em meio aventura de passar a noite numa praia deserta em que os
jovens tm medo do ataque, mas principalmente do escuro, desenvolvem-se na
trama o estreitamento de laos de amizade e um rito de passagem: a superao
desses jovens dos seus medos ancestrais do escuro e das sombras. Em meio ao
medo do escuro, em que a sombra de uma lagartixa era um crocodilo (ARAJO, 2008, p. 104), um dos adolescentes, Aristteles, protagonizar a primeira vtima do stress ps-traumtico da histria da vigilncia revolucionria na cidade
do Mindelo (Ibidem, p. 95).
O rito de passagem, para os jovens amigos, tem o seu coroamento quando amanhece:
Mal os primeiros e tmidos raios de sol espreguiaram a sua luz o areal
da praia de So Pedro, Zapata, Aristteles, Bob e Frederico abandonaram espavoridos o quartel-general da misso, desataram a correr
para fora da tenda, aos gritos, aos pulos. Aos abraos. Por momentos
regressaram todos idade da inocncia, da convivncia, felizes da
vida por terem conseguido ultrapassar a barreira do medo. Por terem
conseguido vencer o escuro da noite (ARAJO, 2008, p. 115).

A narrativa rica em aspectos culturais de Cabo Verde, e especialmente


de So Vicente, e da recente histria do arquiplago s vsperas de sua independncia do governo colonial portugus, ocorrida em 1975, mostrando ainda os
costumes dos jovens cabo-verdianos na dcada de 1970, em que sobressaem:
a vida cultural mindelense em torno do cinema den-Park, o Bar Las Vegas, o
gosto pela msica jamaicana de Bob Marley, a influncia na descoberta sexual
do clssico de Wilhelm Reich, A revoluo sexual, dentre outros temas polticos
de crtica estrutura partidria e aos mtodos estratgicos de mobilizao na-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

cional empreendidas pelo PAIGC.


No espao ficcional, as crticas mais recorrentes ao PAIGC, em tom jocoso, centravam-se na forma como o partido pretendia mobilizar a juventude
local para a causa da independncia nacional e, principalmente, nas suas sesses
de esclarecimento sobre a luta de libertao contra o colonialismo. Havia em
Cabo Verde uma fuga de jovens para no serem incorporados ao exrcito colonial e enviados para a guerra contra os movimentos de libertao na frica,
e, em vista desse dado histrico, dizia-se na narrativa, sem muita certeza, que
o Comandante Zero tinha sido um desses jovens, j que durante quarenta anos
ningum soubera nada dele, e no espao temporal da narrativa a personagem
reaparece sendo inclusive confundida com um holands, como os cabo-verdianos que emigraram para os Pases Baixos eram chamados no Arquiplago.
Essa desconfiana foi dissipada quando o povo percebeu que o Comandante Zero, ao contrrio, era um alto dignatrio do Partido, o primeiro comandante da guerrilha que desembarcara na cidade do Mindelo disfarado de
emigrante. E foi assim que [ele] passou de emigrante a heri. De farrista a combatente (ARAJO, 2008, p. 27).
Acreditamos que a escolha da cidade do Mindelo como espao ficcional
deve-se a duas razes: ao fato de ser So Vicente a ilha natal do escritor e tambm de ter sido o Mindelo, durante muitos anos, a capital econmica do arquiplago, devido ao Porto Grande, onde eram abastecidos os navios que faziam a
rota Europa-frica-Amrica, alm de ser considerada, at hoje, a capital cultural
de Cabo Verde. A capital poltica e administrativa, sede do governo, a cidade
da Praia, na Ilha de Santiago.
A narrativa estruturada em captulos, correspondendo cada um a uma
das cinco balas: Bala 1, Bala 2 etc., somados a mais dois captulos adicionais
Bala perdida e Bala final. No captulo intitulado Bala Perdida, sugestivamente, os protagonistas descobrem perplexos, ao final da misso, que o revlver
tinha seis balas. O momento da descoberta da sexta bala de muita tenso na
narrativa, pois o chefe da misso, o adolescente Zapata, aponta o revlver para
um dos companheiros, que no lhe cumprira as ordens de sentinela, e depois
disso ele dispara para o alto, pensando no haver mais balas no tambor. O susto
dos meninos muito grande, e eles sentem que escaparam de protagonizar uma
cena perigosa e mortal.
O ltimo captulo, intitulado Bala Final, traz uma biografia atualizada
das personagens aps a independncia, e os caminhos que cada qual deu sua
vida.
Comandante Zero passou reserva quando o PAIGC perdeu as primei-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ras eleies livres da histria do pas; Zapata teve uma carreira fulgurante dentro
do Partido, compatvel com a vocao que demonstrava desde a adolescncia,
chegando inclusive a ser deputado da Assembleia Nacional; afastando-se do partido depois das eleies multipartidrias, passou a ser um empresrio do turismo e adotou seu verdadeiro nome: Salazar Antnio dos Santos.
Bob abandonou Cabo Verde e foi para Paris, estudando jornalismo na
Sorbonne. Foi um dos reprteres de guerra mortos no Iraque, em 2006.
Aristteles abandonou o PAIGC poucos dias antes da proclamao da
independncia, quando seu pai foi preso e enviado para o campo de concentrao do Tarrafal, na Ilha de Santiago. Emigrou para a Blgica, onde tornou-se um
famoso travesti, apresentando com sucesso um show intitulado Lili Marlene.
Frederico: acompanhou os pais de regresso a Lisboa nas vsperas da
independncia. Foi para Londres, onde se formou no curso de Gesto no Kings
College, e vive no bairro chique de Notting Hill Gate e um dos mais respeitados e admirados corretores da City (ARAJO, 2008, p. 140).
Um outro aspecto tematizado implicitamente na narrativa, subjacente
ao tema da emigrao, o da dispora, que constitui, alm do percurso de vida
do prprio autor, destino de trs das personagens da novela.
Na situao de dispora, as identidades se tornam mltiplas, justamente
pela convivncia com diferentes culturas. Stuart Hall lembra, a propsito dos
caribenhos que vivem na dispora, e aqui estendemos o exemplo para os caboverdianos, que junto com os elos que os ligam a uma ilha de origem especfica,
h outras foras centrpetas: h a qualidade de ser caribenho que eles compartilham com outros migrantes do Caribe (HALL, 2003, p. 27). Nesse particular, pensamos no somente nos emigrantes caribenhos, como quer Hall, mas
tambm em outros emigrantes que buscam semelhanas com populaes ditas
de minoria tnica, identificao com locais de assentamento e reidentificaes
simblicas, todos tentando, como nos lembra Hall, cavar um lugar junto sua
barbadianidade (Ibidem), ou seja, cabo-verdianidade, no caso em questo.
Na novela, no entanto, a questo da dispora tangencial, sub-reptcia
ao tema da emigrao, e as personagens que emigram para a Europa se adaptam
perfeitamente aos pases de acolhimento, sendo retratadas de forma irnica pelo
narrador, o que pode ensejar uma crtica ao distanciamento que protagonizam
da identidade cultural cabo-verdiana.
V-se, tambm, pela biografia das personagens, que elas ao fim e ao cabo
deixaram de ser revolucionrias, e se adaptaram comodidade da vida, sem
maiores questionamentos, como um cidado mdio no mundo globalizado que
no se preocupa com questes sociais, levando o leitor a se perguntar se aps a
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Independncia teria sumido o esprito ou proto-esprito revolucionrio, o que


poderia ser entendido como sugesto de reviso histrica.
O livro traz um glossrio no somente das expresses em crioulo, a lngua materna cabo-verdiana falada no Arquiplago ao lado da lngua portuguesa,
mas tambm expresses das grias locais. Alm disso, traz um mapa-mundi que
assinala os pases de lngua portuguesa e o Novo Acordo Ortogrfico, oferecendo dessa forma ao leitor jovem, do Brasil, de Cabo Verde e de Portugal, uma
facilidade de leitura e entendimento do espao ocupado por Cabo Verde no somente na CPLP Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa, mas tambm
no contexto africano.
Essas informaes adicionais ao livro, constituindo paratextos, so muito importantes tambm para o professor brasileiro que queira trabalhar a narrativa no contexto da Lei 10639/03, podendo ser enfocados temas no apenas
literrios, mas tambm histricos, geogrficos e de cultura de Cabo Verde, ainda
mais que esse pas, dada a sua privilegiada posio geogrfica, serviu de entreposto de escravizados que se destinavam ao Brasil e s Antilhas. de se ressaltar
tambm as afinidades socioculturais que existem entre Brasil e Cabo Verde, expressas nas profcuas relaes diplomticas, comerciais e de intercmbio tcnico, acadmico, esportivo e cultural entre os dois pases.
As personagens da narrativa so o operacional do PAIGC, Comandante
Zero, e os adolescentes Zapata, o chefe da misso, e seus companheiros Aristteles, filho de um portugus que se adaptou ao antigo regime (e por isso seu
filho era servil a Zapata); Bob, tpico adolescente que s pensava em Bob Marley
e em garotas, e Frederico, que, alm de ser portugus, era filho do comandante
da Capitania dos Portos do Mindelo. Assim, as personagens reuniam todos os
tipos fsicos e psicolgicos cabo-verdianos: o mestio filho da terra, aspirante a
militante; o filho da terra distrado das questes polticas; o filho do portugus
colonizador; e o prprio metropolitano, metaforizando dessa forma a mescla
tnico-cultural do arquiplago.
Os nomes das personagens so muito significativos e fazem referncias a diversas personalidades: Bob, em homenagem a Bob Marley de quem
a personagem era admiradora, cantando sempre as msicas do jamaicano;
Zapata, por referncia ao lder Emiliano Zapata, lder da Revoluo Mexicana de 1910; Comandante Zero, nome pelo qual ficou conhecido, no final dos
anos 1970, o nicaraguense den Pastora, um dos lderes sandinistas contra o
regime autoritrio de Somoza, principal aliado do imperialismo americano na
Amrica Central. A permanncia da famlia Somoza no poder durou 46 anos,
contando com a sucesso do filho de Anastcio Somoza, aps o assassinato
deste em 1956.
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

O Comandante Zero notabilizou-se por liderar a tomada da cidade de


Rivas, do Palcio Nacional, e de comandar uma frente de luta na ofensiva final
contra os somozistas, que tinham apoio financeiro, estratgico e militar do imperialismo americano. A revoluo sandinista, inspirada nos ideais de Sandino1,
foi claramente influenciada pela Revoluo Cubana, de 1959, que tambm influenciou as demais lutas de libertao na frica.
De um modo geral, no contexto narrativo de Cinco balas contra a Amrica, os lderes revolucionrios da Amrica Latina foram referenciados com admirao pelos protagonistas. o caso de Fidel Castro, singularizado pela durao de seus discursos a que a personagem Zapata devotava grande admirao;
do Comandante Zero, acima referido; de Ernesto Che Guevara, o Che, lder internacionalista da Revoluo Cubana; e de Emiliano Zapata, importante lder da
Revoluo Mexicana, de 1910, contra o governo de Porfrio Diaz.
Como, entretanto, a obra parodia as relaes revolucionrias, as estratgias partidrias e os mtodos de mobilizao das massas, o lder da misso de
defesa de Cabo Verde contra um suposto ataque americano ser um adolescente,
aspirante a dirigente (sic), que ironicamente fora batizado como Antnio de
Oliveira Salazar, em homenagem ao ditador colonialista portugus, mas que assumiu na vida poltica, desde a adolescncia, o apelido de Zapata.
H uma passagem, inclusive, em que Bob canta uma msica muito conhecida em Cabo Verde, referenciando os lderes revolucionrios assassinados:
Primeiro Patrice Lumumba/Kwame NKrumah, depois/Mais tarde, Che Guevara/E agora com Amlcar, Amlcar Cabral. Comeava assim, e depois prosseguia a sua romaria, a sua homenagem pelos lderes revolucionrios do mundo
inteiro (p. 82).
H muitas crticas na obra, escritas de forma jocosa: sobre a crena de
que os comunistas ao tomarem o poder dividiriam tudo, inclusive namoradas;
aos cabo-verdianos que eram radicalmente contra a independncia, defendendo
uma unio poltica com Portugal; crtica tambm ao povo cabo-verdiano, no
caso de se culpar o colonialismo por todas as mazelas do pas, inclusive a seca.
sabido que Cabo Verde um pas de poucos recursos naturais, e isso
tambm ironizado na obra quando Zapata anuncia, inopinadamente, que a
maior riqueza de Cabo Verde o tubaro. O discurso de Zapata para inflamar
as massas provoca incredulidade na plateia e risos no leitor ao anunciar que a
grande riqueza de Cabo Verde era o tubaro:
1 Augusto Csar Sandino, revolucionrio nicaraguense, liderou a rebelio contra a presena militar dos
Estados Unidos na Nicargua, entre 1927 e 1933. Foi assassinado em 1934 pela Guarda Nacional, em
uma emboscada a mando de Anastcio Somoza.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

[...] os camaradas, dizia eu, nem imaginam quanto valem, por exemplo, as barbatanas de tubaro. [...] Os camaradas no sabem, mas os
nossos camaradas da Repblica Popular da China pagam uma fortuna por elas. Parece que fazem uma sopa que uma verdadeira iguaria
(p. 75).

A linguagem da narrativa dinmica, informal, utilizando diversas expresses tpicas da oralidade da juventude cabo-verdiana, algumas grias, e muitas vezes privilegiando a funo potica, que se presentifica no uso de metforas
e de deslocamentos semnticos, e da ironia, como podemos observar nos excertos abaixo2:
[...] seus olhos de plvora seca dispararam estrelas (p. 17).
[...] uma revoluo no se mede aos palmos. Se assim fosse, o que seria do camarada Mao? questionou com voz de algodo [...] (p. 34).
O fusvel da tranquilidade de Zapata no aguentou (p. 86).
[...] os olhos eram lmpadas de medo (p. 87).
Avana de mansinho, com pezinhos de l [...] (p. 99).
[...] j sussurrava as palavras de ordem [...] escondidas na saliva do
medo (p. 116).
Bob arregaou os ouvidos (p. 120).
[...] repetiu com palavras embrulhadas de ironia (p. 129).
Ao terminar a sua higiene matinal, Zapata sentia-se um guerrilheiro
de corpo e barba (p. 124).

Fundamentalmente, a narrativa trata de um rito de passagem em meio


a uma pardia s sesses de esclarecimento e outras estratgias poltico-partidrias, que culminam com a misso revolucionria a cargo de adolescentes, munidos com um revlver e cinco balas, para defender o territrio de uma invaso
estrangeira. No uma invaso estrangeira qualquer, mas uma possvel invaso
do maior imprio blico e militar da atualidade, famoso por suas aes intervencionistas armadas, devastadoras de dezenas de pases independentes, deixando
verdadeiros rastros de morte na populao civil desses pases, de que o Vietnan,
Afeganisto, Iraque e Lbia so exemplos. Essa circunstncia dinamiza a pardia.
A referncia a personagens da vida cabo-verdiana como o lder da luta
de libertao nacional Amlcar Cabral, a intrprete Cesrea vora, e elementos
da cultura cabo-verdiana como a cachupa, e at a diversidade de origem das
personagens (cabo-verdiano da terra, filho de portugus e portugus metropo2 Por uma questo puramente metodolgica, nos exemplos aqui mencionados, extrados da obra, sero
indicadas apenas as pginas respectivas, ficando subtendido que se trata da mesma edio de 2008.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

litano), compem aspectos socioculturais do pas e realam a sua identidade.


Para Stuart Hall (2006), as identidades culturais so aqueles aspectos
identitrios que surgem do pertencimento a culturas tnicas, raciais e, acima de
tudo, nacionais, ou seja, aos fenmenos estveis. Ser argentino, catlico, negro,
maconde, por exemplo, so aspectos identitrios. Para Hall, o sujeito entendido anteriormente como tendo uma identidade unificada, fixa e imutvel est se
tornando fragmentado e composto no de apenas uma identidade, porm de
vrias, s vezes at contraditrias e no resolvidas. Hall define a identidade como
uma celebrao mvel (HALL, 2006, p. 13), ou seja, formada e transformada a
todo o momento em relao ao modo como somos interpelados e representados
nos mundos culturais que nos rodeiam. Dessa forma, dentro do indivduo habitam diversas identidades, empurrando em diversas direes, de tal modo que as
identificaes esto sendo continuamente deslocadas.
Segundo Hall, a identidade plenamente unificada uma fantasia. Ele
descreve as consequncias da globalizao sobre as identidades culturais, sintetizando-as em trs momentos: a desintegrao das identidades nacionais em
razo da homogeneizao cultural, uma consequncia da globalizao. Nesse
sentido, coloca-se uma questo esclarecedora: como, por exemplo, nas ruas de
Londres, distinguir um jovem italiano, de um francs, de um espanhol, de um
portugus ou de um brasileiro? O segundo momento refora as identidades nacionais como resistncia globalizao. quando, por exemplo, h um apego aos
usos e costumes, culinria, msica nacional etc., para preservao da cultura
local. O terceiro momento consiste no declnio das identidades nacionais, dando
lugar a novas identidades, hbridas, porque em contato constante com outras
identidades. Nesse sentido, a produo de novas identidades decorrente dos
fenmenos sociais do hibridismo, mistura biolgica e de culturas e imaginrios,
a que Gruzinski (2001) denomina mestiagem.
A mestiagem em Cabo Verde foi um fenmeno colonial muito singular, porque o Arquiplago no era habitado na poca do seu descobrimento
e para l foram levados africanos da costa da Guin e portugueses de diversas
regies da metrpole, bem como outros europeus, ocorrendo uma mistura de
raas e de culturas3. No por acaso as personagens de Cinco balas contra a Amrica sintetizam essas misturas: o cabo-verdiano da terra, o filho de portugus e o
portugus metropolitano.
Assim, ao resgatar elementos identitrios da cultura cabo-verdiana,
3 S para se ter uma ideia do nvel de mistura tnica e cultural ocorrida em Cabo Verde, por ocasio do
seu povoamento havia mais de vinte diferentes etnias africanas em contato, conforme relatam Antnio
Carreira (1984), Padre Antonio Brsio (Apud VEIGA, 1998, p. 28) e os Boletins Culturais da Guin
Portuguesa: fulas, forros, mandingas, falupes, papeis, manjacos, cassangas, baiotes, banhuns, felupes,
mancanhas, balantas, biafadas, sssos, nals, bijags, brames, cunantes, sossos, cubianas e seracols.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

como o crioulo a lngua materna do pas; a cachupa alimento do cotidiano


cabo-verdiano, feito base de milho, presente na mesa do rico e do pobre; o ento PAIGC Partido da Independncia da Guin e Cabo Verde que comandou a
luta de libertao nacional desses pases; aspectos da cultura da juventude mindelense; e a linguagem do jovem cabo-verdiano, o escritor est representando a
cultura e a identidade cabo-verdianas num movimento de reafirmao identitria, de defesa de sua cultura frente s outras culturas que interagem no mundo.
O apego aos elementos identitrios nacionais como defesa de sua prpria cultura , segundo Stuart Hall, uma posio de resistncia globalizao que, de certa
forma, pasteuriza as culturas, fazendo emergir novas identidades.
Uma das questes que desloca as identidades, pois, a globalizao, entendida como conjunto de processos atuantes em escala global, que atravessam
fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizaes em
novas combinaes de espao-tempo, tornando o mundo, em realidade e experincia, mais interconectado. Diminuem-se as distncias, e fatos que ocorrem
em determinados lugares causam impacto imediato sobre pessoas e lugares situados longinquamente. A globalizao como fenmeno de interconexo est
deslocando as identidades culturais nacionais. A globalizao , portanto, um
fenmeno que faz circular no somente os diversos bens agrcolas, tcnicos e industriais, mas tambm os produtos culturais, os quais exercem grande influncia no comportamento e modo de ser das pessoas. Por isso difcil distinguir,
nas ruas de Londres, um jovem italiano de um espanhol, de um portugus, de
um francs etc., como exemplificado anteriormente.
Segundo Stuart Hall, a globalizao no vai simplesmente destruir as
identidades nacionais, mas sim provocar a emergncia de novas identificaes
globais e novas identificaes locais. Identificaes o termo mais apropriado,
sugerido pelo terico, para as identidades em processo, em movimento, j que
elas no so estticas.
A identidade definida historicamente, no biologicamente, de acordo
com Hall. Nesse sentido, o sujeito assume identidades diferentes em momentos
diferentes, sendo que essas identidades no so unificadas ao redor de um eu
coerente. Acrescenta o socilogo jamaicano que a identidade algo formado
ao longo do tempo, por processos inconscientes, e no algo inato, existente no
momento do nascimento e que nos acompanha at a morte. H, pois, uma incompletude na identidade, pois ela est sempre em formao, em movimento,
em transformao, em processo. Em consequncia, a identidade cultural definida como aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso pertencimento a culturas tnicas, raciais, lingusticas, religiosas e, acima de tudo,
nacionais (HALL, 2006, p. 8).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Perfilando a noo de processo, de celebrao mvel concebida por


Stuart Hall, para o socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos,
[...] as identidades culturais no so rgidas, muito menos, imutveis.
So resultados sempre transitrios e fugazes de processos de identificao. Mesmo as identidades aparentemente mais slidas, como a de
mulher, homem, pas africano, pas latino-americano ou pas europeu, escondem negociaes de sentido, jogos de polissemia, choques
de temporalidades em constante processo de transformao, responsveis em ltima instncia pela sucesso de configuraes hermenuticas que de poca para poca do corpo e vida a tais identidades.
Identidades so, pois, identificaes em curso (SANTOS, 1999, p.
119).

A obra Cinco balas contra a Amrica aborda a questo da identidade


cabo-verdiana dentro do contexto da globalizao. O espao ficcional se ressente
desse fenmeno: o caso, por exemplo, do cinema den-Park, do Bar Las Vegas,
do prprio anncio de Zapata em defesa de Cabo Verde: hands up! E, finalmente, da biografia dos adolescentes, j adultos, desenvolvida no mundo globalizado
em que Frederico, o jovem portugus, nunca mais esqueceu Cabo Verde, alis,
continua a gostar de aguardente e a cachupa um dos seus pratos preferidos (p.
140). Isso se deve fluidez de sua identidade e aos processos de hibridao cultural de que fala Nstor Garca Canclini: [...] processos socioculturais nos quais
estruturas ou prticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam
para gerar novas estruturas, objetos e prticas (CANCLINI, 2003, p. XIX).
Jorge Arajo um escritor cabo-verdiano atento, inserindo outros espaos geogrficos de lngua portuguesa no contexto literrio de suas obras, alm de
Cabo Verde, tais como Timor Leste, Guin-Bissau, Angola e Portugal, promovendo dilogos entre os sistemas literrios nacionais, como podemos constatar
nas demais obras, escritas inclusive para o pblico adulto, o que demonstra a
versatilidade do escritor: Timor, o insuportvel rudo das lgrimas (2000), Comandante Hussi (2003), Nem tudo comea com um beijo (2006), Paralelo 75 ou
O segredo de um corao trado (2006) e O dia em que a noite se perdeu (2008),
Beija-Mim (2010) e O cemitrio dos amores vivos (2015).
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

______. Cinco balas contra a Amrica. Lisboa: Oficina do Livro, 2007.


______. Cinco balas contra a Amrica. So Paulo: Editora 34, 2008.
______. Paralelo 75 ou O segredo de um corao trado. Lisboa: Oficina do Livro, 2006.
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

A fala autoral e o plano literrio de A cabea calva de Deus


Christina Ramalho

A cabea calva de Deus, com toda a fora simblica que o prprio ttulo
sugere, exige do olhar crtico-analtico partir da certeza de que ali se encontra um
texto de dimenses significativas extraordinrias, uma vez que histria e cultura
se fazem representar em um dilogo contnuo com um repertrio de referentes
sgnicos que, inicialmente, compreende-se a partir da inscrio cabo-verdiana
no mundo, para, em seguida, perceber-se a habilidade do poeta Corsino Fortes
de tocar o universal a partir do local. Escrevendo, pois, sua nao (BHABHA,
1998), Fortes escreve tambm a lio de se revisitarem as ancestrais demandas
mticas e simblicas da inscrio do ser humano no mundo.
Da unidade entre os trs poemas que foi projetada e construda desde
Po & fonema (1974), chega-se a uma leitura circular que toma e retoma as imagens comuns aos trs textos, ampliando-as sempre, a partir do momento em que
determinadas marcas culturais vo ficando mais claras. So esses referentes simblicos que, unidos histria que permeia o relato potico, constituem o epos
cabo-verdiano, ou seja, definem o somatrio de tradies, narrativas, episdios,
vises de mundo, crenas e rituais que, circulando pela cultura cabo-verdiana,
so traos distintivos, que compem, inclusive, uma implcita mitologia prpria.
A unidade formada pelas trs obras resultado de um projeto enunciado pessoalmente por Corsino Fortes em entrevistas com ele realizadas por diversos de seus crticos, inclusive por mim. Sendo A cabea calva de Deus resultado
de dcadas dedicadas elaborao poemtica da trade que a constitui, no h
como qualquer analista da obra abandonar a observao dessa unidade.
Em virtude do valor que possui o projeto de criao do poeta, reportome, neste ensaio, ao reconhecimento do lugar da fala autoral e inegvel identificao da voz engajada do poema, para, em seguida, apresentar algumas informaes sobre a estrutura da obra, que aparece detalhadamente analisada em A
cabea calva de Deus: o epos de uma nao solar no cosmos da pica universal
(ainda indita).
Oriundo da gerao claridosa, Corsino Fortes, nos seus primeiros passos pela literatura j vivenciava uma experincia decisiva para sua formao
como escritor. Do poema Mindelo primeira publicao, em 1959, com traos
surrealistas, e indicando a tendncia do jovem Corsino, que chegou a ser ABC
CORANTES, para o trabalho mais requintado com a linguagem obra A cabea calva de Deus (2001), foram anos de dedicao simultnea arte, justia,
poltica e construo identitria de seu pas. E, nessa participao ativa, Corsino teve o privilgio de vivenciar o duro e glorioso caminho da independncia
31

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

de Cabo Verde. Manuel Brito-Semedo, em A construo da identidade nacional


(2006), descreve o que ele chama de gerao Amlcar Cabral:
A Gerao Amlcar Cabral, face terceira crise scio-poltica que
desencadeou a conscincia da Nao e uma afirmao nacionalista
(1958-1975), foi a nica a compreender que a elite intelectual caboverdiana vinha, at ento, a laborar num profundo mal-entendido.
Ela no tinha percebido que a relao de Portugal com Cabo Verde
se inseria num sistema de dominao, cujos limites eram definidos
segundo os interesses da potncia colonial, pelo que jamais poderia existir uma situao de igualdade entre os dois, por se tratar, de
facto, de uma relao dominador-dominado (Bobbio, et al, 1986).
Assim, impunha-se, naquele momento, impulsionar o renascimento
cultural cabo-verdiano e exigir de Portugal uma autonomia, enquanto pessoa colectiva, processo que veio a atingir a sua plenitude na
Independncia Nacional, a 5 de julho de 1975 (2006, p. 378).

Revelador e sinttico, o texto de Brito-Semedo apresenta duas palavras


exatas para a compreenso da formao de Corsino Fortes como escritor: renascimento e colectiva. Impulsionado por uma realidade que exigia de sua
sensibilidade um engajamento com a recente causa nacional, no havia como
eximir sua obra literria desse compromisso. Em entrevista a Patrice Pacheco
(2007, p. 165), o poeta respondeu seguinte pergunta: A sociedade e os factores
culturais modelam os escritores que a ela pertencem e a sua cosmoviso. Qual,
no seu entender, o papel do escritor na sociedade? Na sua poesia, est subjacente um compromisso social? Acompanhemos a reflexo:
Diria Ezra Pound que o escritor ou o poeta a verdadeira antena da
raa. Todavia, acreditamos que, nesta comunidade de nascimentos
forjadora de uma secular cultura crioula, emergente de uma sociedade escravocrata, no so, ainda os poetas as antenas da raa, mas
sim os trovadores, isto , os poetas de tradio oral, nas suas composies de letra e msica. Entre eles poetas de grande envergadura
literria, como Eugnio Tavares, B. Lza, Manuel dNovas, que tm
vindo a modelar no interior das ilhas e na dispora, tecendo, dia a
dia, com letra e msica, os bocados dispersos do continente redondo
da alma cabo-verdiana.
Sem prejuzo, deste Alto compromisso telrico e nacional dos Trovadores, patrimnio basilar e indispensvel para outros voos, no se
regateia que participar na gesta literria do nascimento de uma nao uma referncia e um marco gratificantes para todos os poetas e
prosadores da gerao a que perteno.
Desde os Nativistas do sculo XIX aos claridosos da metade do sculo passado, mais os escritores da gesta independentista, tm-se processado, com luta e mesmo na transmisso de valores e testemunhos,
uma verdadeira progresso dos corredores de estafeta: passando da

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

almejada autonomia territorial aos propsitos especficos da independncia cultural, como suporte da independncia poltica face
insero de Cabo Verde, no mundo livre.
Assim, inserir a energia semntica e celular do agora povo agora
pulso agora po agora poema, no tecido literrio da sociedade cabo-verdiana, tem sido a contribuio esttica e emocional da nossa
trilogia A cabea calva de Deus.

O prprio poeta, portanto, declara a origem do engajamento de sua poesia, lembrando, implicitamente, um fator que no pode ser esquecido quando se
fala de literaturas ps-coloniais: sem um movimento contundente de demarcao das novas fronteiras que constituiro a independncia e a identidade nacional, no h como uma literatura gerada em um pas que passou pelo domnio
de um colonizador ganhar, de fato, uma independncia. Assim, o engajamento
uma atitude poltica necessria.
Vale tambm ressaltar, na resposta do poeta, a presena de duas palavras: redondo e trovadores, que, de certo modo, sintetizam o carter circular
de sua obra e a relevncia que a mesma d msica cabo-verdiana.
A voz engajada de Corsino Fortes, cujos ndices mais contundentes se
presentificam quando o eu lrico/narrador se manifesta, nos poemas, em primeira pessoa e quando so referenciados eventos histricos relacionados independncia de Cabo Verde, no se distancia, contudo, de outro aspecto igualmente
slido no que se refere produo literria: um escritor no se molda somente a
partir do barro de que feito, mas tambm da atitude contemplativa que reside
na face dos espelhos de que se utiliza.
Igualmente questionado por Patrice Pacheco, o poeta fala de seus espelhos, as leituras da poca de estudante de Direito em Lisboa:
Durante esse perodo, aprofundei, na medida do possvel, Amlcar
Cabral, Cames, Eliot, Homero, Pessoa, Saint-John de Perse, Ezra
Pound entre outros, como a poesia medieval portuguesa e francesa
e, nomeadamente, o patrimnio literrio e a tradio oral da caboverdianidade (In: PACHECO, 2007, p. 167).

obra:

E, mais adiante (2007, p. 168), das influncias que reconhece em sua


As vrias vanguardas ajudaram-me a modelar a especificidade da
minha linguagem potica:
O simbolismo de Isidore Isou;
A libertao imaginativa e verbal do surrealismo de Aragon e sobre-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

tudo de Saint-John de Perse;


Os concretistas brasileiros;
A poesia experimental dos irmos Campos e Dcio Pignatari;
A construtividade inovadora do tecido potico (fonopeia, melopeia
e logopeia) segundo Ezra Pound;
A redeno problematizada do passado na prospeco sacralizada
do futuro, conjugada no presente, conforme T.S. Eliot.
A vanguarda sob a gide de um excitador/intelecto a potenciar a
expresso da resistncia cultural da mundividncia substantiva do
arquiplago.

Ao se reconhecer um vanguardista regido pela gide de um excitador/intelecto a potenciar a expresso da resistncia cultural da mundividncia
substantiva do arquiplago, Fortes diz muito mais do que uma pretensa anlise da voz autoral aqui poderia fazer. Contudo, creio ser enriquecedora uma
especial colocao de Franco Crespi acerca do conhecimento reflexivo do ser
humano:
O conhecimento reflexivo do ser humano individual no nasce de
uma relao imediata do sujeito consigo mesmo, mas, pelo contrrio,
como resultado da mediao simblica da experincia vivencial afetiva originria, atravs das determinaes do significado que emergiram no interior do contexto especfico da nossa existncia histrica,
em seus condicionamentos particulares, materiais, sociais e culturais
(CRESPI, 1999, p. 28).

Como cabo-verdiano, Corsino Fortes, ao mergulhar nos condicionamentos particulares, materiais, sociais e culturais que revestiram, desde a juventude, sua prpria formao como ser individual, sofreu na prpria pele o
processo de mediao simblica que, curiosamente, caracterizaria sua prpria
obra como produo cultural que . Certamente, a experincia de escrever
A cabea calva de Deus promoveu no poeta, como personagem partcipe da
matria pica da obra, os efeitos que essa escritura promoveria, depois, nos
leitores e nas leitoras. Alis, sobre a recepo sua obra, Fortes respondeu a
Pacheco:
PP: Que papel pretende ver desempenhar a sua linguagem potica,
na vida do leitor comum? E a sua expresso potica dirigida a qualquer leitor?
CF: Creio que o fenmeno da emergncia potica contm, na sua
humanidade, o propsito de inscrever e potenciar a reinveno
do real no tecido social do destinatrio, independentemente da

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

sua imediata ou remota inteligibilidade. Todavia, a triagem aferida pela tradio oral nos ensina que, na linguagem potica, se
no atinge o leitor comum pela via intelectiva, deve pelo menos
surpreend-lo, cultivando-lhe os sentidos pela via emotiva: sonorizao telrica, ritmos, msica etc (PACHECO, 2007, p. 169).

Reconhecidamente recebido pela crtica cabo-verdiana e internacional


como inovador em termos formais, Corsino Fortes realiza uma obra socialmente engajada, no plano da concepo filosfica implcita na concepo e na realizao do poema, sem cair, contudo, no vis da arte agregadora. Seu mrito est
em alcanar uma dupla funo aparentemente paradoxal: ter razes fincadas na
identidade popular da nao e produzir um texto de vanguarda que pediria a
formao de leitores e de leitoras a partir dele. Corsino no s defendeu, engajadamente, a conscincia da necessidade de se recriar Cabo Verde, como recriou
o prprio modo de ser da literatura cabo-verdiana, colocando-se na fundao
do que Jos Carlos Gomes dos Anjos (2006, p. 191) chamou de a era dos melhores filhos da terra.
Outro que reconheceu a fora do engajamento de Corsino Fortes foi
Mesquitela Lima, que teve a oportunidade de conhecer Po & fonema ainda em
manuscrito. Admirado e impactado com a obra, Lima se ofereceu a fazer a apresentao do livro. Em seu prefcio, ele afirma:
O poeta, com este trabalho, ps o dedo nos grandes dramas do povo
cabo-verdiano e curioso notar que, de verso em verso, de poema
em poema, sentimos a fome, as secas, a inquietao, a serenidade, a
dor de cara contente de povo dominado, de homem manobrado, de
homem-instrumento, largado em pedras (ilhas) erguidas no meio do
Oceano Atlntico, como que implorando aos continentes vizinhos
que s deseja compreenso e liberdade para se dignificar como cidado do mundo (LIMA, 1974, p. 10).

Apresento, agora, de forma sinttica, a estrutura da obra, tomando


como parmetros as categorias tericas sobre o gnero pico, elencadas em
A cabea calva de Deus: o epos de uma nao solar no cosmos da pica
universal, a saber: proposio, invocao, diviso em cantos, planos
histrico, plano maravilhoso e herosmo. Essas categorias, reunidas, definem, por sua vez, o plano literrio da obra. Seguem, pois, as informaes
estruturais que, muito embora no possam ser aqui caracterizadas em suas
especificidades, ao menos revelam a multiplicidade de dados passveis de
anlise que a sofisticada concepo literria da obra oferece contemplao
crtica:

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

A cabea calva de Deus 4.386 versos: 3.991 em portugus;


395 em crioulo1.
Proposies mltiplas, predominantemente simblicas, com
enfoques (ou nfases) mltiplos.
Invocaes multirreferenciais, reunindo a invocao humana,
a metainvocao, de posicionamento multipresente e contedo metatextual e convocatrio.
lica.

Diviso dos cantos com nomeao inventiva e funo simb-

a) Po & fonema 1.415 versos: 1.107 em portugus; 308 em


crioulo.
.Proposio 20 versos
Proposio nomeada, em destaque e em forma de poema,
simblica e com mltiplos enfoques.
Invocao: meta e autoinvocao, dirigidas s pessoas, natureza e ao prprio poema.
lica.

Diviso dos cantos com nomeao inventiva e funo simb. Canto Primeiro: Tchon de pove tchon de pedra
. Canto Segundo: Mar & Matrimnio
. Canto Terceiro: Po & Patrimnio

b) rvore & tambor 1.772 versos: 1.714 em portugus; 58


em crioulo.
.Proposio & Prlogo 123 versos
Proposio nomeada, em destaque e em forma de poema,
simblica, referencial e metalingustica, com enfoques no plano histrico, na figura do heri e em seus feitos.
Invocao: multirreferencial e multipresente, dirigida s pessoas, natureza, ao poema, com valor simblico e mesclada proposio.
Diviso dos cantos com nomeao inventiva e funo hbrida
(simblica, temtica e episdico-narrativa).
. Canto Primeiro: De manh! Os tambores amam a chama da
palavra mo
. Canto Segundo: Hoje chovia a chuva que no chove
. Canto Terceiro:
1 Mesquitela Lima, na introduo de Po & fonema, destaca a relevncia que Corsino Fortes deu ao
crioulo do Barlavento, acentuando o facto de Corsino Fortes demonstrar tambm, atravs do emprego
exclusivo do crioulo de Barlavento, que este crioulo to manipulvel literria e poeticamente, como o
de Sotavento (1974, p. 30).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

O pescador o peixe e sua pennsula


Onde mora a mo e a viola do arteso
. Canto Quarto: Odes de Corsa de David
. Canto Quinto: Tal espao & tempo
. Prlogo & Proposio 87 versos
Proposio deslocada, nomeada, em destaque e em forma de
poema, simblica, referencial e metalingustica, com mltiplas nfases, entre elas, no plano histrico e na trajetria do heri.
c) Pedras de Sol & Substncia 1.199 versos: 1.021 em portugus,
28 em crioulo
. Orculo 17 versos
Proposio nomeada, em destaque e em forma de poema,
simblica.
Invocao: simblica, humana, metatextual.
Diviso em cantos com nomeao inventiva e funo simblica e temtica.
. Canto Primeiro: Sol & Substncia
. Canto Segundo: Vulco e Vinho do Prximo Vero
1. Litografias para as festas de So Filipe
2. Gosto de ser a palavra na prosa de Aurlio Gonalves
. Canto Terceiro: Do deserto das pedras desero da pobreza
(2013, p. 289).

A caracterizao sinttica da estrutura da obra mostra a reincidncia


na referncia simbologia e na metatextualidade. Esses ndices so, de fato, as
duas mais importantes marcas da criao de Fortes, conforme os comentrios a
seguir ilustraro.
Alm dos aspectos acima relacionados e que caracterizam a estrutura
da obra, trs outros fatores so relevantes para compreender a obra como manifestao do gnero pico: a dupla instncia de enunciao, a matria pica e o
herosmo.
A dupla instncia de enunciao, caracterstica formal mais relevante da
epopeia, teoricamente nomeada por mim como eu-lrico/narrador, reconhecvel em todo o corpo da obra de Corsino Fortes. Aspectos narrativos podem
ser recolhidos dos diversos episdios, cotidianos, pitorescos, histricos, que so
relatados por um eu-lrico/narrador que est plenamente implicado na matria
pica, dada a forte presena da primeira pessoa, ora no singular ora no plural.
37

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Referentes de uma histria pessoal ou privada permitem que a esse eu lrico/narrador se relacione figura do prprio poeta. Esse eu-lrico/narrador ora personagem principal de uma sucesso de eventos, ora espectador e valorizador
de aes alheias, ora vaticinador, ora revisor crtico de registros histricos e
culturais. Do trabalho com a linguagem figurada preocupao de, atravs do
espao dado lngua crioula na poesia, reafirmar outra face da identidade nacional, o que se recolhe uma conscincia lrica densa, ciente de seus recursos
de criao, assim como ciente de sua funo social como poeta e plenamente
compatvel com a voz autoral engajada j identificada.
A matria pica do poema a formao mtico-histrica da nao cabo-verdiana, considerados a todos os aspectos marcantes dessa identidade: a
fragmentao de seu territrio insular, espalhado em dez ilhas e muitos ilhus;
as fortes sobredeterminaes climticas e geogrficas que do ao signo seca e ao
signo chuva potencial semntico intenso; as injunes colonialistas que delinearam conjunturas econmicas e polticas muitas vezes desastrosas; a mestiagem
na formao da identidade nacional; a arte, principalmente a musical como forma de enfrentamento do cotidiano; entre outros.
Para elaborar uma epopeia de valor altamente simblico e metalingustico, Corsino Fortes fez uso artesanal da matria-prima de todo poema: a palavra.
E esse uso se caracteriza pelo forte investimento em trs figuras de linguagem
principais metfora, metonmia e personificao somadas a outras, de valor
esttico e sonoro relevantes no conjunto da obra: a sinestesia e a aliterao. Todavia, dada a grande gama de recursos lingusticos, desde figuras de linguagem
a figuras de dico e de pensamento, cabe uma ilustrao extrada de dois analistas de Po & fonema, cujos comentrios podem ser estendidos s duas obras
posteriores, uma vez que, sem dvida, Corsino Fortes soube manter uma real
identidade entre seus trs livros, tanto no plano formal quanto no do contedo.
Adilson Gomes, em Leitura crtica da obra Po & fonema de Corsino
Fortes, faz aluso a alguns recursos lingusticos utilizados pelo poeta em seu
primeiro livro. Reconhecendo na obra um hibridismo potico, Gomes aponta,
por exemplo, que:
Outro aspecto interessante a realar que Corsino cultiva o verso
curto, o versculo, socorrendo-se de ritmos diversos, habilmente
trabalhados, como se trabalhavam os diferentes tipos de estrutura
versificatria, no caso cabo-verdiano (o da morna-compasso a 4/4
em geral; a coladeira-compasso a 2/4; o funan-compasso a 2/4 e a
mazurca-compasso a 3/4) o que tambm denota a miscigenao da
msica popular, de Cabo Verde de influncias africanas e europeias
com sabor trovadoresco2, o que lhe permite uma melhor gesto da
2 GOMES aqui cita: LOPES FILHO, 1995, p. 122.

38

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

musicalidade, melhor ordenamento no ritmo e melhor esttica na


manobra grfica do texto (GOMES, 2006, p. 30).

Ana Mafalda Leite tambm comenta essa musicalidade, mas acrescenta


diversos outros aspectos estruturais da obra e a observao final de ter Po &
fonema uma vocao oratria (1995, p. 134). Vejamos o comentrio da autora
sobre a estrutura lingustica e rtmica de Po & fonema:
Nota-se a utilizao de versos curtos, de tipo assertivo, por vezes fazendo lembrar a mxima, e a disposio do texto na pgina tira proveito de vrias potencialidades grficas, como por exemplo o uso de
maisculas no meio do verso, muito frequente, que orienta as constantes pausas3. O recurso repetio de sonoridades, como o uso da
assonncia, da toada musical aliterativa, de afonias, paranomsias e
poliptotes, bem como a recorrncia da apstrofe, da exclamao, de
paralelismos vrios, reforam igualmente a vocalidade interiorizada
pela escrita, simulam a gestualidade e as variaes de timbre vocal,
os efeitos dialgicos de dramatizao do discurso, entre paragens,
silncios, intervalos e retomadas litanias. Esta soma de dispositivos
de estruturao rtmica marca o poema no seu registro de vocao
oratria (LEITE, 1995, p. 134).

Por outro lado, o que tambm confere obra de Corsino a densidade


simblica que possui a seleo vocabular que faz o poeta. Elegendo uma srie
de signos que tm fora de representao cultural, Fortes elenca um repertrio
que se repete no decorrer dos livros, conferindo a cada livro maior ou menor
intensidade em relao aos aspectos que esses vocbulos nomeiam ou sugerem.
Considerando que o investimento da epopeia de Fortes direcionado
a uma matria pica que trabalha com a identidade cultural, resgatada, em um
movimento cosmognico cclico, nada mais natural que observar o vai e vem
desses signos. De outro lado, tambm a partir dessa seleo vocabular que se
entranha e desentranha em si mesma que se solidifica o plano maravilhoso da
obra. Em vista disso, a composio do plano maravilhoso ter uma fonte mtica
hbrida, que, por isso, inclui um repertrio mtico institudo e outro, literariamente elaborado. Essa elaborao, volto a dizer, internamente dependente da
seleo ou do repertrio vocabular que o poeta define como eixo de sustentao
dessa esfera que gira em torno de si mesma, gestando e parindo a experincia
humano-existencial cabo-verdiana e projetando-a, como um astro, no cosmos
da pica universal.
3 Leite (1995, p. 134) aqui insere nota de rodap e complementa sua observao com a seguinte referncia: Os espaos entre versos e interestrficos, os vazios, marcam os tempos de respirao e podem servir
tambm para situar a distncia espacial e temporal, o silncio, a escuta, a contemplao e a reflexo. Larmature intellectuelle du pome se dissimule et tient - a lieu - dans lespace que isole les strophes et parmi
le blanc du papier, significatif silence (Mallarm) - (MORIER, 1981, p. 1172-1173).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Em relao ao plano histrico, observa-se que, na obra, as fontes no


so explicitamente referenciadas, a apresentao tem perspectiva fragmentada
e o contedo oscila entre o especificamente histrico e o predominantemente
geogrfico, visto que tambm se d relevo identidade geogrfica, biolgica e
ecolgica da terra.
De forma geral, o uso da linguagem oscila entre o predominantemente
lrico com traos de oralidade e o lrico-simblico. Apresentando um total de
4.386 versos, entre os quais 395 em crioulo e 3.991 em portugus, Corsino Fortes
elege, como j foi dito, um repertrio bsico de palavras que constituir a argamassa do edifcio pico que construiu.
A seleo desse repertrio ou sua garimpagem resultou de um processo
constante de releituras, por meio do qual acabei por reconhecer ndices repetitivos de inscrio vocabular nas trs obras. Ao final, selecionei 23 termos, cuja
apario em cada livro foi verificada em termos quantitativos. Para essa contagem, fiz, algumas vezes, uso de termos sinnimos ou correlatos em sentido, no
singular ou no plural. Assim, relacionei: olhos, rosto, sangue, homem, mulher,
criana, povo, terra, pedra, ilha, mar, vento, rvore, sol, milho, cabra, chuva,
palavra, msica, tambor, ovo, po e Deus. Agrupando, em seguida, esses signos
a partir de uma identidade semntica, formei quatro grupos: o de expresso humano-existencial; o de expresso natural; o de expresso verbal e artstica e o de
expresso mstica.
As palavras que integram o grupo de expresso humano-existencial so:
olhos, rosto, sangue, homem, mulher, criana, po, milho e povo. Esse grupo
considera referentes que sugiram a natureza humana, com exceo de po e
milho, que a entram como signos relacionados manuteno da energia vital
humana. As aparies de pilo foram somadas s de milho. Homem, mulher
e criana envolvem citaes de nomes de pessoas, de grupos, de profissionais,
artistas, etc. O referente olhos aparece em alguns versos associado ao referente
cabra. Isso, contudo, no foi considerado como impedimento para o agrupamento, visto que o par olhos/cabra tem sempre significao simblica, ou seja,
nunca a referncia aos olhos da cabra fsica ou constitui um aspecto estritamente animal. A palavra boca tambm poderia estar a em inserida, contudo,
visto que a presena marcante de olhos e rosto j suficiente para consolidar
os pontos de vista acerca da seleo vocabular e de sua importncia na estrutura
geral da obra, no a inclu na relao.
As palavras que compem o grupo de expresso natural so: terra, pedra, ilha, mar, vento, rvore, sol, cabra e chuva. O termo ilha tambm integra
aparies de arquiplago; chuva, por sua vez, rene formas verbais derivadas
de chover; e mar, os termos onda e ondas. Tipos de rvores se integraram
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

contagem de rvore, assim como referncias a poente e nascente se somaram ao termo sol.
As palavras que integram o grupo de expresso verbal ou artstica so:
palavra, msica e tambor. Recebidos como msica foram todos os termos que
se referem a ritmos, tipos de msicas, instrumentos musicais, danas, com exceo de tambor, contado parte. Palavra engloba o termo em si e outros que
constituem partes de uma palavra (slabas, consoantes, vogais), gneros e manifestaes literrias ou textuais. Tambm poderiam estar neste grupo inseridos
os sememas relacionados s artes plsticas, visto que so muitas as referncias s
manifestaes picturais cabo-verdianas. O relevo intenso, porm, que dado s
expresses musicais me fez recortar apenas esta reincidncia, ainda que comentrios sobre a representatividade das artes plsticas para a identidade do pas
permeiem todo este estudo e sejam especificamente consideradas nas partes em
que se destaca essa presena.
As palavras que integram o grupo de expresso mstica so ovo e Deus.
H ocorrncias da palavra Jesus (e outras associadas a seu sentido), mas essa
no foi incorporada ao grupo, embora, como foi dito acerca de boca e artes
plsticas, comentrios sobre as referncias a Jesus na obra tambm faam parte
da anlise. A no incluso justifica-se pela corrente associao entre Jesus e o ser
humano.
A observao de todos os quadros revela que a estruturao da obra
corresponde ao prprio processo de construo da matria pica de A cabea
calva de Deus. A expresso humano-existencial, a expresso natural, a expresso
verbal e artstica e a expresso mstica, reunidas, representam os aspectos que
devem ser considerados para que a matria pica do poema a formao identitria de Cabo Verde se consolide. As metforas que nascem da imbricao
de todos os signos que compem esses quadros realizam a proposta de fuso
de todas as expresses enfocadas e geram, no todo, uma grande alegoria antropomrfica em que cada elemento, mesmo guardando uma significao cultural
original, consegue se desprender do prprio sentido para criar outro na associao com outros referentes.
Relacionando cada componente do ttulo da obra a um dos livros, teramos cabea indicando ser Po & fonema a primeira representao da identidade cabo-verdiana, tomada em sua fora de individualidade, marcando um ser
que desponta e se oferece viso e considerao. Com calva, imprimindo
adjetivao cabea, atribuir-se-ia a rvore & tambor a misso de caracterizar
a fundo essa identidade recm-inaugurada, ainda que custa de rememorar a
dor do nascimento. Ao mesmo tempo, o sentido de calva abre-se ideia de
ausncia, de silncio, de pulso pelo preenchimento do sentido, que se alcana
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

na fuso dos elementos naturais (rvore) e culturais (tambor). J de Deus,


expresso tomada como locuo adjetiva, indicando divina, daria a Pedras de
Sol & Substncia a misso de fazer florescer a cabea calva de Deus atravs da
simultnea valorizao da identidade remota da terra cabo-verdiana, com sua
Rotcha scribida e o universo de mil sons/ Que circulam/ Pela maternidade/
Do versculo que nos une/ na tua chama/ Na tua lava/ No teu tambor inenarrvel (FORTES, 2001, p. 223).
Por outro lado, dado o potencial simblico de cada um dos termos e,
por consequncia, de cada um dos grupos, o conjunto como um todo acaba
por estruturar, referencialmente, a base para a expresso identitria de qualquer
nao. E exatamente por isso, por ter elaborado uma estrutura simblica que
tem potencial para se desprender do referente imediato Cabo Verde que A
cabea calva de Deus pode ser tomada como uma estrutura simblica vazia, um
arqutipo, e sustentar uma leitura que remeta a consideraes sobre a formao
identitria de qualquer nao. Claro que, para isso, necessrio compreender
profundamente o sentido dessa arquitetura arquetpica e o quanto o herosmo
coletivo expresso na obra representativo de enfrentamentos outros que no os
cabo-verdianos.
Esse poder maravilhoso da arte de projetar o regional no universal
alcanado por A cabea calva de Deus justamente pela opo que o autor fez pela
linguagem literariamente elaborada que, sem abrir mo de todos os referentes
especficos para falar da cultura cabo-verdiana, logrou tocar a fora sgnica de
representao que as palavras tm.
Uma das grandes conquistas de Corsino Fortes, ao elaborar o plano literrio de sua obra foi fazer da cosmoviso de Cabo Verde a metonmia de uma
cosmoviso mais ampla, porque a densidade metafrica dos poemas e suas possibilidades de associaes com experincias alheias de vivncia e sobrevivncia
abrigam a condio humano-existencial como um todo. Nesse sentido, lembro
o que Joseph Campbell afirmou sobre a ideia elementar:
A ideia elementar (Elementargedanke) jamais , ela prpria, diretamente representada em mitologia, mas sempre transmitida por meio
de ideias tnicas ou formas locais (Vlkergedanke) e essas, como percebemos agora, so regionalmente condicionadas e podem refletir
atitudes de resistncia ou de assimilao.
As imagens do mito, por isso, jamais podem ser uma representao
direta do segredo total da espcie humana, mas apenas o propsito
de uma atitude, o reflexo de uma posio, uma postura de vida, uma
maneira de jogar o jogo. E onde as regras ou formas de tal jogo so
abandonadas, a mitologia dissolve-se - e, com a mitologia, a vida
(1992, p. 113-114).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Assim, ao se tocar a ideia elementar da obra, ou seja, ao se tomar contato com seu vis cosmognico, percebe-se que o autor voltou-se diretamente
para uma das mais primitivas necessidades do ser humano: (re)conhecer sua
origem. Por essa razo, Ana Mafalda Leite (1995), quando destaca o carter redondo do cosmos literariamente elaborado por Corsino Fortes, est expressando a correta percepo de uma cosmogonia ligada s mais remotas origens e ao
reconhecimento de suas reverberaes no espao insular sob forma de imagens
que se interpenetram em um moto contnuo e espiral. Essa viso volta a valorizar, entre outras, a imagem do ovo, como signo da origem e expurga o evasionismo como soluo para a construo identitria.
Como ltimo aspecto do plano literrio da obra, destaco a figura do
heri. O heri em A cabea calva de Deus tem vrias faces: so as mulheres que
ficaram na terra, semeando no campo rido a continuidade de sua ptria; so as
crianas, incluindo aquelas que vivem nas ruas (como se recolhe das imagens
de quadros de Tchal Figueira que so liricizados no poema Pedras de sol &
substncia); so as figuras mais ilustres de artistas, literatos, ativistas polticos,
educadores, entre outros; so os companheiros de luta do eu-lrico/narrador,
que no s os nomeia como os instiga a continuar a luta; so trabalhadores,
como os pescadores, cumprindo sua funo de alimentar o povo; so as gentes
antigas e os antepassados imemoriais, que, somados, do vida humana terra
feita de pedra vulcnica. E a esse grupo se une o prprio eu-lrico/narrador, que,
em muitos trechos se revela, integrando-se no s ele ao percurso heroico do
povo cabo-verdiano como tambm sua famlia e seus laos de afeto e afinidade.
O herosmo que os planos histrico e maravilhoso constroem, sedimentados pelos recursos inventivos do plano literrio do poema, um herosmo metonmico, o que comprova a sintonia do poeta com a concepo literria de seu
tempo, o ps-modernismo. Ainda que o conceito de ps-moderno seja problemtico quando se fala de culturas que atravessaram outras realidades, como a
ps-colonial dentro do sculo XX, fcil verificar que, alm das questes de terminologias, existe, em todas as culturas que passaram por processos tardios de
independncia do formato colonial, uma constante e concreta dinmica de interao com o mundo. E o herosmo metonmico no depende, como forma de
estruturao pica, da circunstncia histrica (ou da realidade socioeconmica
ou poltica) em si, mas de uma viso mais ampla, e, por isso, mais universal da
insero do humano no mundo aps as conquistas tecnolgicas e a diluio cultural das fronteiras. Por isso, o povo cabo-verdiano, com seu prprio cotidiano
e seus prprios enfrentamentos, tem a fora metonmica da ao heroica pica.
E, nesse sentido, a condio ps-colonial entra at como um dado que
valoriza a carga simblica desses enfrentamentos, uma vez que a questo identi-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

tria possui nas culturas ps-coloniais, principalmente as do sculo XX, relevncia destacada. Por outro lado, a projetar o povo cabo-verdiano como uma fora
coletiva ora pluralmente representada, ora referida em fragmentos assumidos
por heris e heronas individuais Corsino Fortes abole a imagem de fragilidade associada submisso do povo s injunes fsicas da terra para compor
outra, na qual os potenciais mticos da criao, da superao, da fecundao e da
fundao so desenvolvidos. reconhecendo essa faceta da obra de Fortes que
Fraga comenta:
[...] a poesia fortiana abandona a temtica dos flagelados retratados
na prosa de Manuel Lopes e pinta uma tela potica visual como uma
encenao da vida, tendo em vista o Arquiplago como um teatro
verde de vida. O canto que se ouve o seguinte: J no somos os
flagelados do vento leste; por excelncia, uma imagem que se metaforiza com uma ao positiva da memria coletiva na representao do povo cabo-verdiano. Efetivamente, o homem cabo-verdiano,
preocupado com a luta e comprometido com a busca pela libertao
do prprio pas, torna-se um grande motivo de canto na obra de
Corsino Fortes, porque evidencia tambm traos de um antievasionismo (FRAGA, s/a, p. 13-14).

Sinteticamente, portanto, posso dizer que o plano literrio de A cabea


calva de Deus, em sua macroestrutura, sustenta-se por uma dimenso circular
que integra constantemente uma parte da obra outra. O eixo que conduz essa
rota circular se encontra nos referentes simblicos que se repetem, constituindo
um processo contnuo de ressemantizao que ao mesmo tempo em que reafirma o cdigo cultural do pas, seu epos, abre-se, metaforicamente, a outras associaes simblicas que margeiam os possveis dilogos entre esses signos e as
imagens mticas associadas criao, superao e transgresso.
A estrutura da obra como um todo se mostra complexa, simblica, inventiva e, principalmente, reveladora de uma fina sintonia do poeta com a complexidade das questes que permeiam a inscrio do ser humano no mundo,
alm das fronteiras cabo-verdianas (da sua projeo e afinidade com a pica
universal). Somadas a fala autoral e a inventiva concepo literria de A cabea
calva de Deus chega-se, facilmente, certeza de ser essa obra um marco literrio
cabo-verdiano de extrema beleza e inevitvel poder de seduo sob os/as que se
interessam pelos estudos cabo-verdianos pela pica e pela capacidade da literatura de, a partir de um recorte nacional, alcanar a universalidade das questes
humano-existenciais. E isso se alcana tambm, porque como o eu-lrico/narrador diz:
ramos a exclamao
Do lon na lonjura

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Dando
Pernas aos montes E braos s montanhas
Dando face & sentido
s dunas do mar alto
Que respiram
as coxas
os seios
o sexo de Sahel
Lembro-me de ti! na frica do teu ventre
Interrogando-se
sobre istmo + a
proa do nosso destino
Quando plos e pennsulas de maremoto
Rasgaram & rasgavam
No vrtice da vida! na fractura da terra
A cesariana dos trs continentes
(FORTES, 2001, p. 221-222).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Vera Duarte: ventos da memria num presente de distopias


Cludia Maria Fernandes Corra
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrvel, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade

Refletir sobre a poesia com o poeta brasileiro nos permite uma aproximao dos processos poticos das autoras selecionadas para nosso estudo.
Quando Carlos Drummond de Andrade interpela o leitor Trouxeste a chave? , ele nos convida a um corpo a corpo com o texto. Aceitamos o desafio
abrindo as pginas do livro de Vera Duarte, Preces e splicas ou os cnticos da
desesperana (2005), e adentrando o universo cabo-verdiano com o recorte de
um olhar feminino.
Vera Duarte representa uma das vozes da produo literria feminina
de Cabo Verde e sua obra volta-se para o contexto scio-histrico de sua terra,
os Direitos Humanos, a violncia contra as mulheres e crianas, apontando com
um princpio esperana (BLOCH, 2006) ante as tragdias que tm assolado a
histria do arquiplago.
A obra Preces e splicas ou os cnticos da desesperanatransita entre o
processo de construo potica e a construo de um microcosmo, Cabo Verde,
estendendo sua denncia ao macrocosmo (mundo), em prol dos excludos e vitimizados do continente africano, da Colmbia, de Kosovo, de Calcut.
As preces, splicas e cnticos presentes no ttulo sugerem uma
abordagem marcada pelo misticismo religioso perante as tenses da realidade
passada e presente do continente africano. Na verdade, a obra a apresentao
de um momento ntimo de orao entre o sujeito lrico e Deus, transposto para
a potica e exposto ao mundo num momento de extrema angstia e tristeza.
Porm, ao mesmo tempo em que o sujeito d abertura a esse dilogo, ele o questiona: Por que te conservas longe, senhor?/ Por que te escondes nos tempos de
angstia? (DUARTE, 2005, p. 56). Verifica-se no texto o clamor, a vontade de
orar, a esperana e o desejo de que a situao seja mudada; contudo, ao grafar o
pronome de tratamento referente a Deus em letra minscula, o eu lrico minimiza a carga de divindade, evidenciando que o apelo a ela pode no ter eficcia.
Essa desesperana com relao ao poder de Deus marcada na abertura da
obra pelo trecho do Canto V do poema Navio negreiro, extrado da obra do
poeta romntico brasileiro Castro Alves:
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

So os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
So os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solido.
Ontem simples, fortes, bravos...
Hoje mseros escravos
Sem luz, sem ar, sem razo (DUARTE, 2005, p. 33).

O dilogo mantido entre o eu lrico contemporneo de Preces e splicas


e aquele do texto situado no sculo XIX uma afirmao da permanncia da angstia com relao imagem da frica. Os versos de Castro Alves, no contexto
da abolio da escravatura no Brasil, so abert[os] realidade macia de uma
nao que sobrevive custa de sangue escravizado [...] o sentido ltimo do
Navio negreiro (BOSI, 1989, p. 133). Nesse sentido, o navio constitui a ponte
entre o antes e o depois da frica, convidando a uma leitura poltica e filosfica
nos momentos em que ela incorporou e manifestou crticas ao mundo tal como
(GILROY, 2001, p. 13).
Notamos, nessa obra, que Vera Duarte conjuga a histria da escravizao da frica e a situao social das mulheres, alm dos desdobramentos daquele passado vergonhoso. Tanto a terra africana quanto a mulher surgem como
signos da colonizao no embate entre o colonizador e o colonizado. O esprito
revolucionrio que se manifesta na potica da escritora cabo-verdiana movido
por impulsos de natureza diversa e sua atuao mescla-se a uma srie de matrizes que se interpenetram: histrica, poltica, antropolgica, esttica, psicolgica, religiosa. Dessa forma, optamos em distribu-los em quatro temas para um
exame mais detido dos poemas: religio, mulher, memria e construo potica.
A abrangncia dos temas reflete a preocupao da poeta1 com a condio humana em tempos de supervias de comunicao, acesso s novas tecnologias, aumento de riquezas nos pases emergentes, buscando tratar o ser humano
em sua dimenso real.
Ademais, a potica de Vera Duarte levanta uma questo, que est distante dos objetivos da globalizao: o estar em um mundo que apresenta razes
coloniais e que no permite espao para transparecerem as desigualdades sociais, lugares situados fora do trmite econmico e cultural. Desse modo, a poeta
pede socorro (DUARTE, 2005, p. 53) e questiona at quando as desigualdades
existiro, exercendo a funo de porta-voz daqueles que no tm parcela no
1 Vera Duarte prefere denominar-se poeta a poetisa.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

tecido social. O ttulo da obra prope a possibilidade de a poeta se fazer ouvir.


A presena da religio em Preces e splicas ou os cnticos da desesperana marcada pelo temor e pela angstia. A poeta evoca o Evangelho Bblico, recorrendo fora espiritual de suas pginas sagradas para reconstruir o passado
de sua terra de origem e para entender por que o povo africano passou e passa
por situaes traumticas. Alm de pedir ajuda, o sujeito potico questiona o
poder divino, embora dele no se desvincule.
Na segunda parte do livro, intitulada Agora... as sete preces, observamos que o eu lrico inicia uma Via crucis2 africana, passando por sete estaes
que simbolizam as feridas de Cabo Verde e, em extenso, da frica. Durante este
trajeto, o sujeito potico ora a Deus, mas, ao mesmo tempo, questiona se Ele se
compadece com a dor do continente africano.
A autora adota o nmero cabalstico sete para simbolizar as chagas cabo-verdianas, numa aproximao com os sete selos de So Joo3 presentes no
livro do Apocalipse:
Eu, Joo, irmo e companheiro de vocs neste tempo de tribulao,
na realeza e na perseverana em Jesus, eu estava exilado [...] E atrs
de mim ouvi uma voz forte como trombeta, que dizia: Escreva num
livro tudo que voc est vendo (BIBLIA, 1990, p. 1590).

Esse espectador de um cenrio degradante da humanidade exigiu do


apstolo Joo, alm da observao atenta, o registro acerca do que ocorria ao
seu redor. A poeta sente a necessidade e a obrigao, assim como Joo, de dar
testemunho do que viu ao longo de seus anos na magistratura, na Comisso
Africana pelos Direitos dos Homens e dos Povos e demais associaes que se
voltam para a melhoria das condies de vida dos homens, mulheres e crianas
do continente africano. Alm de ouvir as splicas de seus conterrneos, a poeta
divulga sua prpria voz para o mundo, anunciando que tempos difceis ocorreram, que o presente ainda obscuro; contudo, diferentemente do Apocalipse, o
futuro prenuncia luz.
Ao recorrer Bblia, a poeta retoma a simbologia do numeral sete, que
simboliza a unio entre o homem e Deus, entre o Bem e o Mal, entre o cu e a
terra. So sete os selos (Apocalipse 6:1-17; 8:1-5), sete as trombetas (Apocalipse
8:6-21; 11:15-19) e sete as taas (Apocalipse 16:1-21), isto , trs sries de julgamentos de Deus diferentes e consecutivas. Os julgamentos, de forma progressiva, tornam-se mais devastadores medida que o fim est prximo. Os sete selos,
2 Caminho trilhado por Jesus carregando a cruz desde o Pretrio at o Calvrio.
3 Srie de julgamentos de Deus sobre a humanidade. Cada selo corresponde a um castigo enviado por
Deus para flagel-la.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

trombetas e taas esto conectados uns aos outros o stimo selo inicia as sete
trombetas (Apocalipse 8:1-5) e a stima trombeta inicia as sete taas (Apocalipse
11:15-19; 15:1-8).
O dilogo que a autora mantm com o apstolo Joo abre o momento
das splicas e o primeiro poema da referida seo Noite de San Jon. Nele, o
sujeito potico demonstra remorso pelas suas posses materiais e estilo de vida
abastado. Sua passividade ante a vida entediante, por no ter que lutar para conseguir o que necessita, expressa-se nas duas primeiras estrofes:

A minha mo sobre a tbua da mesa

Meus dedos que se espreguiam nos calos ausentes

E se soerguem cansadamente

Presos por um frenesim de vida

Meus braos esgotados pendentes de ombros pendentes

Minha cabea
(pobre cabea)

curvada abatida em abatimento tamanho...
(DUARTE, 2005, p. 51).

Os calos ausentes simbolizam o estilo de vida privilegiado; o abatimento tamanho (pela passividade ante as lutas que no so travadas por um
sujeito que possui casa gua luz e luxo [...] boa comida em boa mesa; DUARTE, 2005, p. 51) contrasta com o frenesim de vida. O estilo de vida do sujeito
potico mantido custa da explorao de outros.
Nota-se, no uso dos parnteses, digresses ou reflexes da poeta (pobre cabea) ou j me desesperei de ver os homens livres na sociedade igual
(DUARTE, 2005, p. 51). So observaes acerca da hipocrisia da falsa igualdade
vendida e consumida mundo afora.
Os versos que se seguem, contudo, evidenciam certo egosmo (ou tentativa de autopreservao), embora o sujeito potico se compadea do sofrimento
dos seus conterrneos: Mas o tempo passa e continuo sentada minha secretria/Tenho casa gua luz e luxo/Como a boa comida em boa mesa (DUARTE,
2005, p. 51).
Juntamente com o soprar do vento, tambores rufam, anunciando a tradicional festa de San Jon: Rufaram os tambores/E o So Joo soou vibrante na
noite longnqua/Da minha terra natal (DUARTE, 2005, p. 51). O So Joo
uma festa tpica de Cabo Verde, j que grande parte da populao do arquiplago adotou o catolicismo, herdado da colonizao portuguesa. E o rufar desses
tambores de So Joo parece associar-se s trombetas do Apocalipse, numa espcie de revelao da real situao de Cabo Verde e do continente africano:

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

h homens que no tm gua


h homens que no tm luz
h homens que no tm casa
h homens que no tm nada (DUARTE, 2005, p. 52).

O recurso anafrico (h homens que no tm), para alm de mimetizar o ritmo dos tambores, refora a ausncia que assola os africanos, estabelecendo um contraponto com a abundncia que o sujeito potico possui: gua,
boa comida, casa, luxo. Ao desenhar o cenrio trgico vivido por longo tempo
pelos cabo-verdianos (secas prolongadas, fome), o sujeito potico estende-o ao
apocalipse no qual a frica e o mundo atual esto mergulhados. O som das
trombetas anuncia a tragdia que h de vir e se abater sobre a humanidade.
Diante da esmagadora e cruel realidade, o sujeito potico se v impotente:
Vislumbro

impotente
A esperana refugiada
Nos olhos vtreos de uma criana que
desesperadamente
Pede socorro (DUARTE, 2005, p. 53).

Assim como a quinta trombeta bblica anunciou a praga de gafanhotos,


o eu lrico anuncia a misria e o descaso ao povo africano. O sonho de igualdade
no ser concretizado e a voz do poema toma para si o pedido de socorro de
uma criana, vtima recente da carncia.
No poema intitulado Tempos de angstia, a ausncia do poder divino
reitera-se: Com a minha voz/eu clamei/Mas a minha dor/permaneceu intacta/
Por que te escondes nos tempos de angstia? (DUARTE, 2005, p. 56). Essa imagem nos remete ao momento em que Jesus, pregado cruz, questiona o abandono do Pai Celeste: Meu Deus, por que me abandonaste? (BBLIA, 1991, p.
1278).
Ao problematizar a relao entre o divino e o humano, o eu lrico perfaz
um percurso de preces, retomando uma imagem recorrente da potica moderna: a da rosa. Esta j simbolizou a beleza, a brevidade da vida, a fragilidade; o que
se deve colher do tempo que passa (college virgo rosas). Pode ainda significar,
como em Carlos Drummond de Andrade, a reflexo potica:
Autor da rosa, no me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo algum se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa sua pura ausncia, no amplo vazio (ANDRADE,
2010, p. 183).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Como tambm para o poeta portugus Eugnio de Andrade, homenageado por Vera Duarte na obra em questo:
ROSA DO MUNDO
Rosa. Rosa do mundo.
Queimada.
Suja de tanta palavra.
Primeiro orvalho sobre o rosto.
Que foi ptala
a ptala leno de soluos.
Obscena rosa. Repartida.
Amada.
Boca ferida, sopro de ningum.
Quase nada (ANDRADE, 2005, p. 453).

Na obra da cabo-verdiana Vera Duarte, a rosa est presente j na Primeira Prece denominada Rosa entre cadveres, dialogando com Drummond
e Eugnio de Andrade, ao metaforizar na rosa a prpria poesia:
Em frica cresce uma rosa
a rosa mirablica
Flor da poesia
Uma rosa entre cadveres (DUARTE, 2005, p. 66).


H no poema, alm da insero contextual (a mirabilis4 uma flor
do deserto da Nambia, muito resistente), uma viso religiosa da rosa, uma vez
que comparada ao sangue do sacrifcio de Jesus: Porque o sangue a vida da
carne, e esse sangue eu lhes dou para fazer o rito de expiao sobre o altar [...]
pois o sangue que faz a expiao pela vida (LEVTICO 17:11, p. 134).
Em frica nasce uma rosa
Uma rosa entre cadveres
E dela brota um sol de sangue
Em frica cresce uma rosa
Rosa nica de dor e revolta
E dela queda um sol de sangue (DUARTE, 2005, p. 65).

No trecho exposto, a continuidade da dor e do sofrimento, expressa pe4 H uma antologia cabo-verdiana intitulada Mirabilis de veias ao sol: antologia dos novssimos poetas
cabo-verdeanos organizada por Jos Lus Hopffer Cordeiro Almada, editada pelo Instituto Caboverdiano do Livro e Editorial Caminho (1991).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

los verbos nasce e cresce, associa-se ao cenrio africano qual o mito da Hidra
de Lerna5: a cada cabea cortada, outras nascem no lugar. Na frica, a cada peste
dizimada, outra nasce e se instala com mais fora.
Num ambiente dominado pela dor, surge ento uma personagem que
sofre pelos pecados cometidos, mas no os aceita como tal, na Prece Segunda,
no poema Habitante do sculo vinte e um ou a Assilah do nosso sculo. Num
paralelo com o ritual catlico, a personagem faz um mea-culpa, repetindo para
si e para a divindade que, apesar do sangue que escorre pelas mos, inocente:
O sangue escorre-me por entre os dedos
Porm
No matei! No matei! No matei!
Poderia adormecer
Ao som tornado montono
Do meu protesto

a minha inocncia imaculada
Mas no me conveno (DUARTE, 2005, p. 67).

As diversas crises da humanidade chegam ao sculo XXI como uma


mcula. Estamos vivendo um perodo do mea-culpa representado pela personagem do poema, j que, atualmente, a Alemanha se desculpou publicamente
pelo Holocausto; o Vaticano se desculpou pelas atrocidades da Inquisio, governantes modernos pedem desculpas pela escravizao de ndios e negros. Em
vista disso, a personagem representa o ser humano do sculo vinte e um, que
rev o seu passado atroz e sente o peso da maldade humana. E ao sentir-se angustiada pelo passado, comea a realizar um ato de contrio: Terei morto por
omisso/Terei morto por indiferena/Terei morto por conivncia (DUARTE,
2005, p. 67).
Incorre em pecado aquele que se omite e, por conseguinte, compactua
com a violncia. Historicamente, uma distncia nos separa das atrocidades primeiras, mas nos aproxima do apocalipse:
Como resgatar essa culpa

Que me pesa
Como resgatar esse crime

Que no cometi
No haver contudo inocente
Quando a morte opulenta
E a vida
5 Animal fantstico da mitologia grega que vivia num pntano junto ao lago de Lerna. Tinha corpo de
drago e nove cabeas de serpente. Seu hlito era venenoso e suas cabeas podiam se autorregenerar.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias


fome

guerra

violncia (DUARTE, 2005, p. 68).

Mesmo ciente de no ter cometido diretamente nenhum delito, compactuar e silenciar ante a violncia faz com que essa personagem se autoincrimine:
[N]o haver contudo inocente/Quando a morte opulenta (DUARTE, 2005,
p. 68) e a vida se resume a vivenciar um contnuo martrio, uma via dolorosa. De
forma semelhante da Paixo de Jesus Cristo, a frica passa pelas estaes de
sua interminvel via crucis: a misria, a fome, a guerra, a violncia.
Ainda que o sujeito potico tente resgatar sua culpa, toma para si sua
parcela de participao:
No pode haver um inocente
Quando a vida grita fome
E pede socorro
E os homens

So cadveres ambulantes

espera de sepultura
No pode haver um inocente
Quando a maior esperana
For o abrigo certo

De uma cova partilhada (DUARTE, 2005, p. 68-69).

O paralelismo do verso No pode haver um inocente sugere o inconformismo com a negao de participao nos extremos de violncia da frica, a
tentativa de despersonalizao de homens que so apenas cadveres espera de
sepultura apenas com um nmero, sem identidade:
De tanta a morte no tem rosto

S nmero
Um nmero indigente e gritante

Quarenta milhes o nmero da fome

Quarenta milhes o nmero da morte
Quarenta milhes de pessoas
Gente como tu e eu
A morrer de fome
Neste continente de condenados
Ah! mas a fome tem nome
Fome guerra
Fome corrupo
E m governao

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Fome sida
Fome estupidez
Fome tirania
E indiferena (DUARTE, 2005, p. 70).

O sofrimento uniformiza e retira a identidade dos indivduos. Um homem, mulher ou uma criana que sofre na frica igual a qualquer outro no
continente. O sofrimento muda de lugar, se fortalece, mas as vtimas so sempre
as mesmas. E ao lado delas, sero sepultados a esperana e o futuro: Que amanh?/Que homens? (DUARTE, 2005, p. 69).
O sujeito potico apresenta um cenrio de caos em que valores, regras e
mandamentos divinos so subvertidos:
Desonra teu pai e tua me
Rouba
Trai e mata
D sempre falso testemunho
E cobia tudo do teu prximo (DUARTE, 2005, p. 76).

Nesse contexto africano de problemas sociais, banalizao do sofrimento e degradao de valores, instauram-se a desolao, o declnio, o apocalipse e
suas sete pragas:
A guerra

A tirania

A corrupo

A m governao
A sida

A estupidez
A indiferena
(DUARTE, 2005, p. 71).

Observe-se que as chagas se expressam por substantivos femininos, o


que talvez remonte quela viso que se tinha sobre a m sina que paira sobre as
mulheres desde Eva, acentuada durante a Idade Mdia, quando a mulher passa a
ser vista como uma entidade demonaca, recebendo um estigma.
De acordo com a Bblia Sagrada, a origem do mal se situa no momento
em que Eva desobedece a Deus e come do fruto proibido (incitando Ado a sabore-lo), simbolizando uma autossuficincia interdita. O desejo de usurpar o poder divino representa todos os males e, ao romper com Deus, o ser humano se rebela contra ele e inicia o seu prprio projeto de liberdade e felicidade individual.
Contudo, abrindo as pginas da histria da humanidade, esse projeto

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ocorre ao avesso, gerando escravizao e morte. As relaes humanas transformam-se em relaes de poder e opresso, explorao e riqueza, esfacelando a
harmonia entre o homem e a natureza:
Deste pecado original
Este pecado que nos surge
Esta abjeco que nos contamina
Mesmo inocentes

Mesmo incorruptos

Mesmo egoisticamente solitrios
Mas quando

Meu Deus
Quando? (DUARTE, 2005, p. 71-72).

Todavia, mesmo questionando o poder de Deus, o sujeito potico acredita nas palavras divinas de que futuras geraes sero abenoadas: a esperana que tem que nascer/ a esperana que vai renascer (DUARTE, 2005, p.
73). E, para que as novas geraes recebam a graa divina, personalidades importantes do contexto religioso se apresentam diante da convocao do eu lrico
com o intuito de concretizar a palavra de Deus, como ocorre no poema O novo
holocausto, inserido na Prece Terceira.
A dor perante a realidade africana exige do eu potico aes que, no
entanto, no consegue realizar sozinho: decide ento recorrer a figuras importantes na luta contra as injustias. Madre Teresa, religiosa de Calcut, conhecida
como Santa das Sarjetas, trabalhou para os excludos e marginalizados; Moiss
guiou o povo judeu para a liberdade; os apstolos expandiram a mensagem do
Evangelho; os Profetas anunciaram a vinda do Messias; e os Santos mediaram as
splicas dos homens a Deus:
Madre Teresa morreu
[...]
urgente convocar
Deuses
Santos
Profetas
Moiss e todos os apstolos (DUARTE, 2005, p. 77).

O desejo de fuga do ambiente hostil em que vive faz com que o eu lrico
passe a buscar um lugar paradisaco, a Cana da histria bblica. Sair para:
o movimento de libertao que torna possvel, tanto para o indivduo, como
para o povo ao qual pertence, caminhar para a vida: E bato s portas das ci-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

dades/Todas as cidades/Canas inacessveis e longnquas (DUARTE, 2005, p.


77). Contudo, a terra prometida est distante e o sujeito potico no acredita em
milagres, j que a sua voz no ouvida e o seu caminhar em busca da liberdade
interrompe-se pela falta de f:
Para mim no h

nunca houve
Nem liberdade
Nem terra prometida (DUARTE, 2005, p. 82).

Nesse sentido, a potica de Vera Duarte direciona o debate para o campo social. Pelo termo social entendemos o que est em jogo nos problemas
suscitados a respeito da distribuio do trabalho e das riquezas, o que partilhado ou comum (RANCIRE, 2003). Logo, a ao poltica age no social como a
distribuio litigiosa de espaos e lugares. sempre uma questo de saber quem
est qualificado para um lugar particular e o que l feito (Ibidem, p. 201).
Assim, a persistncia, as splicas, os cantos e as confisses do sujeito potico representam a insistncia que se contrape ideologia e poltica do injusto. O
justo se comprometeu com Deus e espera uma resposta s suas preces e, para isso,
retoma a histria de lutas de seu povo, desejando que, aps tanto sofrimento, Deus
se compadea e o liberte dos opressores. Todavia, a justia divina s ocorrer se
houver a participao do homem: o povo ter que lutar para conquist-la.
Referncias Bibliogrficas
ANDRADE, C. D. de. Antologia potica. 65. ed. Rio de Janeiro; So Paulo: Record, 2010.
ANDRADE, E. de. O outro nome da terra. 2. ed. revista e acrescentada. Porto: Fundao Eugnio de Andrade, 2005.
Bblia Sagrada. So Paulo: Sociedade Bblica Catlica Internacional e Paulus, 1990.
BLOCH, E. O princpio esperana. V1. Trad. Nlio Schneider. EDUERJ: Contraponto: Rio de
Janeiro. 2005.
BOSI, A. Histria concisa da literatura brasileira. 3. ed. So Paulo: Cultrix, 1989.
DUARTE, V. Preces e splicas ou os cnticos da desesperana. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.
Coleco Potica e Razo Imaginante.
GILROY, P. O Atlntico negro: modernidade e dupla conscincia. Trad. Cid Knipel Moreira.
So Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cndido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiticos, 2001.
GOMES, S. C. Cabo Verde: literatura em cho de cultura. Cotia-Praia: Ateli Editorial - UNEMAT- Instituto da Biblioteca Nacional do Livro (Cabo Verde), 2008.
RANCIRE, J. Politics and aesthetics: an interview. ANGELAKI: Journal of the theoretical humanities. vol. 8, No. 2, August 2003, p. 191-210.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Revisitaes poticas: Manuel Bandeira na berlinda dos cabo-verdianos


rica Antunes Pereira
A poesia est em tudo tanto nos amores
como nos chinelos, tanto nas coisas
lgicas como nas disparatadas.
Manuel Bandeira

Brasil: a poesia cotidiana de um irmo mais velho


Como possvel imaginar ao ler a epgrafe, o brasileiro Manuel Bandeira se revela adepto de uma abordagem potica do cotidiano, agregando s
suas obras imagens desentranhadas (BANDEIRA, 1984, p. 19) de pequenos
acontecimentos e de cenas pitorescas1, fato que cria uma tenso perceptvel conforme o poeta une as pontas do ambiente rural com o urbano, do particular com
o universal, da linguagem prosaica com a formal, do gnero potico com uma
prosa contida e de notcia.
Esse realce do dia a dia foi muito bem aceito pelos poetas de Cabo Verde
pas arquipelgico com 4.033 km2, composto por dez ilhas (nove delas habitadas)
e alguns poucos ilhus, localizado na costa ocidental da frica e independente
de Portugal em 05 de julho de 1975 , que mantm contato com a produo literria brasileira h muito tempo, como comprova a Revista Claridade, publicada
de 1936 a 1960 com periodicidade no regular e formada por uma gerao que
preferiu imaginar-se no mais luz do modelo colonizador ou de uma literatura
colonial apologtica da figura do heri navegador, e escolheu mirar-se em outro
paradigma cultural, forte, irmo, independente: o Brasil dos mulatos, malandros
e heris ignorados (GOMES, 2008, p. 113).
provvel, portanto, que o cotidiano de Manuel Bandeira tenha sido
uma das vias que favoreceram o processo de identificao dos autores caboverdianos com o Brasil, considerado ento uma espcie de irmo mais velho
cujo sistema literrio, j solidificado nos termos propostos por Antonio Candido
(1997, p. 15), tornou-se alvo de interesse por simbolizar a ruptura cultural e poltica com o imprio portugus.
Notas tericas sobre o cotidiano
Antes de me reportar aos poemas cabo-verdianos que se comunicam
com a obra do autor pernambucano, creio serem necessrias algumas observaes tericas a respeito dos estudos sobre a presena do cotidiano na literatura, desenvolvidos no interior de um conjunto de transformaes ocorridas
1 Segundo Alfredo Bosi (2006, p. 361), Manuel Bandeira foi talvez o mais feliz incorporador de motivos
e termos prosaicos literatura brasileira.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

na segunda metade do sculo XX, mais especificamente no final da dcada de


1960, poca em que houve uma confluncia de uma srie de acontecimentos
que culminaram nos protestos de maio de 1968, na Frana, dando visibilidade
a movimentos reivindicatrios de grupos como estudantes, operrios, negros,
mulheres e homossexuais.
No bojo dessas transformaes polticas e culturais, abriram-se discusses decisivas no mbito das Cincias Sociais, o que levou necessidade de
novos constructos tericos para a anlise e interpretao da realidade social.
Assim, prestigiados pensadores, como Jean-Paul Sartre, Henry Lefbvre, Jean
Baudrillard, Pierre Bordieu, Jrgen Habermas, Mikhail Bakhtin, Gilles Deleuze
e Flix Guattari, voltaram suas atenes para o estudo do cotidiano como fonte histrica, de modo que a documentao, antes referente ao evento e ao seu
produtor, passa a se voltar ao campo econmico-social e vida cotidiana das
massas annimas, sua vida produtiva, sua vida comercial, ao seu consumo,
s suas crenas, s suas diversas formas de vida social (REIS, 1994, p. 126), podendo ser obtida por meio de fontes arqueolgicas, pictogrficas, iconogrficas,
fotogrficas, cinematogrficas, orais e culturais, caso da literatura, pois o objetivo era vencer as lacunas e silncios da histria oficial.
A obra do brasileiro Manuel Bandeira, segundo tal orientao terica,
reconhecida por um marcante tom cotidiano, pode ser tomada como fonte para
uma investigao de significados existenciais entre a narratividade e a realidade, entre a subjetividade do eu lrico [...] e a objetividade do real filtrado pela
linguagem literria (SOUZA COELHO, 2011, p. 6). Dessa forma, os poetas cabo-verdianos, ao se reportarem poesia do autor pernambucano, recriando-a
ou adaptando-a ao seu pas, constroem tambm uma nova (micro)histria, permitindo que pesquisadores efetuem a recomposio da realidade socioeconmica e cultural de uma poca.
Ainda em igual sentido, Milton Santos (2004, p. 126) afirma que o mundo cotidiano abriga uma produo ilimitada de racionalidades, constituindo-se
por uma heterogeneidade criadora. Agnes Heller (2008, p. 32), para definir a
vida cotidiana, emprega a mesma qualificao: heterognea. Assim, o cotidiano
se revela plural, hbrido e complexo; a unicidade sugerida pela ideia de repetio
dos atos cotidianos, na verdade, ilusria, porque suas ocorrncias acabam por
instituir sentidos diversos.
Edwiges Zaccur (2003, p. 180), por sua vez, acrescenta que o que aparentemente se repete, no prprio processo de repetio, tanto se reitera como se recria,
produz iterncias realimentadoras, por menores que sejam as alteraes, por acrscimo ou desgaste.
Aprofundando a discusso, Norberto Guarinello prope que o cotidia59

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

no apresenta dualidades temporais complementares: o repetitivo e o transformador, o duradouro e o instantneo, o banal e o excepcional. No se reduz,
portanto, a apenas uma esfera da vida, pois compreende a tenso entre a ordem
e o movimento, entre a estrutura e a ao (GUARINELLO, 2004, p. 25-26).
A complexidade do cotidiano traduz-se, em sntese, para alm dessas
tenses, naquilo que Agnes Heller chamou de heterogneo (2008, p. 32) por
englobar os mais diversos aspectos da vida, como as relaes familiares e de
trabalho, a vida privada, as sensibilidades, o descanso e o lazer, as relaes de
gnero, de etnia e a construo das identidades, todos eles amplamente abordados, na literatura, por Manuel Bandeira e por um grande nmero de poetas
cabo-verdianos, como mais adiante ser comprovado.
J na dcada de 1970, contribuies tericas fundamentais se voltam
para o estudo do mecanismo como as foras conservadoras hegemnicas se reproduzem no tecido social e para a dinmica de acomodao/resistncia (individual e coletiva) perante elas: Histria e cotidiano (1970), de Agnes Heller;
A revoluo urbana (1970), de Henri Lefbvre; e os artigos Manires de faire
et pratiques quotidiennes e Pratiques culinaires: une mmoire, de Michel de
Certeau e Luce Giard (1978), parte dos resultados de uma pesquisa desenvolvida
entre 1974 e 1978, que originou a publicao, em 1980, de A inveno do cotidiano, volumes 1 e 2.
Henri Lefbvre, em Critique de la quotidienne II: fondements dune sociologie dela quotidiennet (1991), preceitua que o domnio do espao fonte
de poder social sobre a vida cotidiana e se articula a outras formas de poder
social. Para ele, o cotidiano o produto histrico mais prximo do ser humano,
constituindo-se como instrumento para a abordagem emprica do real e como
forma de mediao entre particular e universal. O foco no cotidiano base para
a compreenso dos processos estruturantes das relaes sociais mais amplas.
Agnes Heller, mais enfaticamente, assevera que o cotidiano a raiz e
sustenta tudo o que se lhe sobrepe: a vida cotidiana no est fora da histria,
mas no centro do acontecer histrico (HELLER, 2008, p. 34). Segundo a referida pensadora, o cotidiano pode ser o ponto de partida da interpretao histrica
se encarado como diretamente relacionado com a histria social e cultural e sob
novas modalidades metodolgicas, tendo como contraponto a histria poltica
oficial (que selecionava acontecimentos histricos excepcionais).
Confluindo com as propostas de Henri Lefbvre e Milton Santos j
expostas, Agnes Heller considera que o cotidiano constitui-se, tambm, como
campo aberto a aes inovadoras e saberes criativos, o que envolve a literatura.
Para a pesquisadora, a vida cotidiana o fermento secreto da histria, pois
nela que ocorre a revoluo invisvel tramada por todos os homens no proces60

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

so de evoluo social.
Michel de Certeau (2005), por sua vez, afirma que, a partir da anlise
da vida cotidiana, possvel perceber e interpretar os movimentos de resistncia
ante as foras hegemnicas de reproduo e de controle social. O referido terico sublinha os meios de inventar o cotidiano ao escapar dos modelos de consumo impostos, subvertendo as representaes (e construindo micro-histria) a
partir de dentro do discurso dominante.
Em A inveno do cotidiano, Certeau retoma as ideias de Michel Foucault (2006) sobre a microfsica do poder e os espaos de controle na vida
social moderna e d visibilidade ttica popular de resistncia ou de reinveno
relacionadas ao cotidiano habitar, circular, falar, ler, ir s compras, cozinhar
nas operaes e usos individuais, que implicam operaes quase microbianas
que proliferam no seio das estruturas tecnocrticas e alteram o seu funcionamento (HARVEY, 2002, p. 41), definindo-a como
o movimento dentro do campo de viso do inimigo[...], e no espao
por ele controlado. [...] Ela opera golpe por golpe, lance por lance.
Aproveita as ocasies e delas depende, sem base para estocar benefcios, aumentar a propriedade e prever sadas. O que ela ganha no
se conserva. Este no-lugar lhe permite sem dvida mobilidade, mas
numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as
falhas que as conjunturas particulares vo abrindo na vigilncia do
poder proprietrio. A vai caar. Cria ali surpresas. Consegue estar
onde ningum espera. astcia. Em suma, a ttica a arte do fraco
(CERTEAU, 2005a, p. 100-101).

Como se observa, as reflexes de Agnes Heller, Henri Lefbvre e Michel


de Certeau trazem contribuies definitivas para a reflexo sobre a constituio
dos sujeitos sociais com base no cotidiano, que, como campo de estudo, d visibilidade ao entrecruzamento de processos macro e microssociais e recoloca o
indivduo e a coletividade no centro do acontecer histrico.
As tradies, as identidades e as representaes, entre elas as focalizadas pela
literatura, constituem a concretizao dos saberes sobre o cotidiano. no cotidiano
(entendido como cotidiano-com-os-outros) que o ser humano vive as identidades,
numa rede simblica de sentidos de pertencimento como classe, gnero, grupo, etnias, nacionalidades.
Cabo Verde: a poesia de Manuel Bandeira na berlinda
Feito esse breve percurso terico pelos estudos do cotidiano, passo a
abordar os laos encontrados entre a obra de Manuel Bandeira e os poemas dos

61

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

autores de Cabo Verde.


Corroborando tal premissa, Baltasar Lopes (que poeticamente se apresenta como Osvaldo Alcntara) afirma: Em poesia foi um alumbramento a
Evocao do Recife, de Manuel Bandeira, que, salvo um ou outro pormenor,
eu visualizava com suas figuras dramticas, na minha Ribeira Brava2 (LOPES,
1956, p. 56). Para o poeta cabo-verdiano, entretanto, a Pasrgada, lugar ideal e
imaginrio de Bandeira3, parece ter sido a mais marcante, j que, em sua obra
Cntico da manh futura (1991), invocada em nada menos que seis poemas4,
cinco deles contidos numa seo intitulada Itinerrio de Pasrgada, da qual
destacamos o segundo, Saudade de Pasrgada5:
Saudade fina de Pasrgada
Em Pasrgada eu saberia
onde que Deus tinha depositado
o meu destino...
E na altura em que tudo morre...
Cavalinhos de Nosso Senhor correm no cu;
a vizinha acalenta o sono do filho rezingo;
Ti Mulato foge a bordo de um vapor;
o comerciante tirou a menina de casa;
os mocinhos da minha rua cantam:

indo eu, indo eu,

a caminho de Viseu...
Na hora em que tudo morre,
2 Terra natal de Baltasar Lopes, situada na Ilha de So Nicolau (no Barlavento), com aproximadamente
cinco mil habitantes na atualidade.
3 Os poetas cabo-verdianos se referem ao poema Vou-me embora pra Pasrgada, do qual reproduzo a
primeira estrofe: Vou-me embora pra Pasrgada/ L sou amigo do rei/ L tenho a mulher que eu quero/
Na cama que escolherei/ Vou-me embora pra Pasrgada (2000, p. 66-67). Quanto ao significado da palavra, explica o prprio Manuel Bandeira: Quando eu tinha os meus quinze anos e traduzia na classe de
grego do [Colgio] Pedro II a Ciropdia fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada
por Ciro [...] nas montanhas do sul da Prsia, para l passar os veres. A minha imaginao de adolescente
comeou a trabalhar, e vi Pasrgada e vivi durante alguns anos em Pasrgada. Mais de vinte anos depois,
quando eu morava s na minha casa da rua do Curvelo, num momento de fundo desnimo, da mais aguda
sensao de tudo o que eu no tinha feito na minha vida por motivo da doena, saltou-me de sbito do
subconsciente esse grito estapafrdio: Vou-me embora pra Pasrgada! (BANDEIRA, 1954, p. 36).
4 Na seo intitulada Itinerrio de Pasrgada, encontram-se cinco poemas: Passaporte para Pasrgada, Saudade de Pasrgada, Balada dos companheiros para Pasrgada, Dos humildes o reino de
Pasrgada e Evangelho segundo o rei de Pasrgada (1991, p. 115-124). Alm desses, na mesma obra, o
poema H um homem estranho na multido (1991, p. 57-58) tambm faz meno Pasrgada.
5 Adotei a formatao deste poema conforme aparece em Cntico da manh futura, obra do prprio
Osvaldo Alcntara, sendo diferente da formatao constante na Antologia temtica de poesia africana 1:
na noite grvida dos punhais, de Mrio de Andrade (1980, p. 32).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

esta saudade fina de Pasrgada


um veneno gostoso dentro do meu corao (ALCNTARA, 1991, p. 117).

Neste poema, Osvaldo Alcntara associa a saudade que fina, ou seja,


aguda, intensa ideia mtica de Pasrgada, como a negar ou a suspender o tempo
presente, fato comprovado pelo uso do futuro do pretrito e do pretrito imperfeito na segunda estrofe. J a partir da terceira estrofe, entretanto, o presente toma
conta dos versos, sinalizando o resgate de uma infncia edenizada e da vida cotidiana, pontos em que ecoam, respectivamente, os poemas Evocao do Recife
(1998, p. 133-136) e Rond dos cavalinhos (1985, p. 239), de Manuel Bandeira.
A imagem da Pasrgada , tambm, tomada como mote ou fonte de
dilogo com a obra do brasileiro pelos poetas cabo-verdianos Filinto Elsio6, Antnio de Nevada7, Armnio Vieira8, Jos Antnio Lopes9, Nz di Santy Agu10,
Mrio Lima11, Yolanda Morazzo12, Danny Spnola13 e Ovdio Martins, que se
apresentou avesso ao pasargadismo e publicou o poema Anti-evaso em
1962, mais tarde tambm inserido em sua obra Gritarei, berrarei, matarei, no
vou para Pasrgada (1973):
Pedirei
Suplicarei
Chorarei

No vou para Pasrgada

Atirar-me-ei ao cho
6 No poema A poesia do reverso (Poesia II), l-se: lusofricas bero tero/ o terceto da nova poesia// onde
passava a Pasrgada/ passa agora o pssaro da paz (ELSIO, in ALMADA, 1998, p. 231).
7 No Canto V do poema Vozes em unssono: Cantos III, IV, V e VI, l-se: Raios partam Pasrgada/ E
as suas Musas,/ Raios partam (NVADA, in FONTES, 2008, p. 248).
8 No poema Derivaes, l-se: Polifonte: no tem ptria, por opo./ Tanto se lhe d que faa sol/ ou
caia neve, nada o aquece/ ou arrefece. At gosta de Pasrgada,/ que, entre outras coisas,/ o melhor stio
do mundo/ para se andar de burro. (VIEIRA, in FONTES, 2008, p. 323-324).
9 No poema Da Pasargada a UR-Kassdins, l-se: Que empeste o fogo do sacrifcio/ que desabe o transversal da pasrgada/ e boceje o cemitrio das bruxas/ na hora em que o inferno exalar um bafo quente/ de
defuntos sobre o mundo ftido/ dos poetas... Amm... (1993, p. 16-19).
10 Pseudnimo de Jos Lus Hopffer Almada. No poema Parbola sobre o castanho sofrimento, l-se:
assumir-nos/ como criaturas decentes e dignas/ sob o olhar finalmente compadecido/ da lonjura fraterna da terra prometida/ da distncia prxima e tactevel/ de uma outra terra dentro da nossa terra/ da ilha
de todos os poemas/ pasrgada/ de carne e esprito saciados (SANTY AGU, in FONTES, 2008, p. 25-26).
11 No poema Festival na Boa Vista, l-se: Meu Deus!/ Onde estou?/ Eden?/ Olimpo?/ Pasrgada?
(2005, p. 162-165).
12 No poema Fuga ao diabo, l-se: Manuel Bandeira/ foi-se embora para Pasrgada/ eu vou emigrar
do planeta/ num tapete voador/ antes da privatizao do espao (2006, p. 350-351).
13 No poema Pasrgadas de sol, l-se: E tive conscincia, ento, do longnquo aceno dos delfins,/ Das
suas acrobacias e das suas estranhas e msticas melodias/ Em eterno e terno convite paixo lunar do
meio-dia em Pasrgadas de sol (SPNOLA, in RISO, 2011, p. 28-32).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

e prenderei nas mos convulsas


ervas e pedras de sangue

No vou para Pasrgada

Gritarei
Berrarei
Matarei

No vou para Pasrgada (MARTINS, 1962, p. 55).

Para Manuel Ferreira, entretanto, o pasargadismo no pode ser confundido


com evasionismo to simplesmente, como prope Ovdio Martins, j que, em verdade, o
desejo manifestado da fuga degradada situao colonial que encerrava o horizonte juventude pensante e interrogadora. Era um protesto. Um desdm. No de mais dizer: era a fuga eroso colonial, mas
no era voltar as costas caboverdianidade (FERREIRA, 1989, p. 160).

Em tal linha de pensamento tambm devem ser compreendidas as reverberaes, entre os poetas cabo-verdianos, de outra conhecida e difundida
imagem de Manuel Bandeira: a Estrela da Manh. No poema homnimo14 e
tambm ttulo da obra publicada em 1936 pelo autor brasileiro que ento completava cinquenta anos de idade, Estrela da Manh, verifica-se a existncia e
a fuso de dois mundos um ideal, de sonho, onde habita o que est por ser
atingido, e um material, da realidade das ruas, do cotidiano , que tambm
transparecem de forma lrica na literatura de Cabo Verde, mais especificamente nos textos poticos de Jorge Barbosa15, Osvaldo Alcntara16, Corsino Fortes17,

14 Na primeira estrofe de Estrela da Manh, de Manuel Bandeira, l-se: Eu quero a estrela da manh/
Onde est a estrela da manh?/ Meus amigos meus inimigos/ Procurem a estrela da manh (2000, p.
73-74).
15 No poema Carta para Manuel Bandeira, l-se: Nunca li nenhum dos teus livros./ J li apenas/ a
Estrela da Manh e alguns outros poemas teus./ [...]/ Ento/ sem qualquer palavra/ passar-te-ia a Estrela
da Manh. (1956, p. 53-54).
16 No poemas Nasceu um poema, l-se: H quanto tempo sentia esta sede que nunca se apagava,/ e
eu continha os meus soluos desesperadamente,/ como aquele a quem tarde de nascer a Estrela de Alva!
(1991, p. 31). J no poema Poro, l-se: Amigos, inimigos, onde pra/ Aquele que me prometeu a Estrela da Manh?/ [...]/Amigo, traze-me a Tua Estrela! (1991, p. 79).
17 No poema Mulher, l-se: Mulher! na palma/ palma da tua mo/ Que explode a Estrela da manh
(2001, p. 184-186).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Oswaldo Osrio18, Gabriel Mariano19, Valentinous Velhinho20 e Vera Duarte21.


Mas, alm de Vou-me embora pra Pasrgada e Estrela da manh,
vrios outros poemas de Manuel Bandeira encontram ressonncia nas obras dos
escritores do arquiplago. Em alguns versos do poema Louvao da Claridade,
por exemplo, Gabriel Mariano se aproxima bastante de Pneumotrax, do referido brasileiro22, especialmente nos que passo a citar:
Mas veio um tempo
e o tempo da morte chegou.
Tosse hemoptize [sic]
Hemoptize [sic] mais tosse.
No tem cura doutor?
No tem no senhor.
No tem remdio doutor? (MARIANO, 1986, p. 4)

Yolanda Morazzo, por sua vez, incorpora um verso (ainda que o modificando um pouco no teor e na forma) do poema Desencanto23, do autor
pernambucano, em seu O que h em mim a vida, escrito em 1962:
Manuel Bandeira
Tu disseste:
Eu fao versos
18 No poema Balano de uma paixo que interroga, l-se: agora diremos sculo e milnio terminais/
adiada a Estrela da Manh/ e um destino mais impenetrvel se perfila (2007, p. 71-73).
19 No poema Louvao da Claridade, l-se: Filho unignito da Estrela da Manh;/ Caboverde ancestral;/ pureza sem limites. Eu te sado,/ Baltazar [sic] Oswaldo Lopes da Silva Alcntara. (1986, p. 6).
Alm do poema, a imagem da Estrela da Manh tambm encontrada no conto Famlia: Clau Leda
tinha sio trancador de baleia no four-master Estrela da Manh porm ainda rapaz tenro pegou uma
asma muito ruim e resolveu fixar-se como comerciante. (2001, p. 131).
20 No poema IV- Sangrenta a Lua, l-se: Sangra a Lua para por fim lugar dar/ quela que para
sempre/ merc dos misteriosos Infinitos/ Sem histria nenhuma / De modo nenhum pode sangrar://
A Estrela da Manh. (2008, p. 186). Em VI- Os astros da terra, l-se: Com a Estrela da Manh/ Calarse-o os grilos,/ Estes secretos astros da terra. (2011, p. 115). J no poema Quem mais sou?, l-se: O
sol da meia-noite no deve nada/ Estrela da Manh nem a um anjo iluminado tardinha. (2002, p.
73). Finalmente, no poema nica e intacta, l-se: A Estrela da Manh/ - a nica que no h-de cair,/
A nica que de p e intacta/ Manter-se- ao alto que bela/ Presa daria para um relmpago sbito?
(2002, p. 73).
21 No poema em prosa 1. Os meninos, l-se: Queria ento estar ao lado deles e sem qualquer palavra,
passar-lhes a Estrela da Manh. (2001, p. 81).
22 No poema Pneumotrax (2000, p. 30), de Manuel Bandeira, l-se: Febre, hemoptise, dispnia e suores
noturnos./ A vida inteira que podia ter sido e que no foi./ Tosse, tosse, tosse.// [...] // - O senhor tem uma
escavao no pulmo esquerdo e o pulmo direito infiltrado./ - Ento, doutor, no possvel tentar o pneumotrax?/ - No. A nica coisa a fazer tocar um tango argentino.
23 Eis a primeira estrofe do poema Desencanto (1985, p. 189), de Manuel Bandeira: Eu fao versos
como quem chora/ De desalento... de desencanto.../ Fecha o meu livro, se por agora/ No tens motivo
nenhum de pranto.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Como quem morre


Eu como quem vive
Sou a me que d luz...
H uma lgrima escondida
Uma alegria perdida
No fundo dos meus versos...

Cada poema uma vida


Das mil vidas por nascer (MORAZZO, 2006, p. 128).

Mrio Lima, em Os sinos de c e de l, evoca a sonoridade do poema


Os sinos24, tambm de Manuel Bandeira, para estabelecer um ponto de contato
com a terra cabo-verdiana:
Sino de Belm
bo bo bo
cantou Manuel Bandeira
l no Brasil
dling dlang dling

repicava o Djonga
entoavam-se cnticos

na parquia
um repicar diferente
corridinho
mesma inteno
mesma f
mesmo ardor
em dias de romaria
de Bandeira
sino da Paixo bo bo bo
sino de Santa Isabel

dling dling dling (LIMA, 2005, p. 67)

J o poema O bicho25, do poeta brasileiro, conhecido pelo seu cunho


social, dialoga com Bicho-Gente, do cabo-verdiano ganhador do Prmio Cames 2009, Armnio Vieira, cujos versos valem ser lidos com vagar:
24 Eis alguns versos do poema Os sinos (1985, p. 118), de Manuel Bandeira: Sino de Belm,/ Sino da
Paixo// [...] Sino da Paixo, pelos que l vo!/ Sino da Paixo bate bo-bo-bo.
25 Eis o poema O bicho (1985, p. 283-284), de Manuel Bandeira: Vi ontem um bicho/ Na imundcie
do ptio/ Catando comida entre os detritos.// Quando achava alguma coisa,/ No examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade.// O bicho no era um co,/ No era um gato,/ No era um rato.// O bicho,
meu Deus, era um homem.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Numa lamela de sol


uma larva de fome
na fome da hora
uma hora de bicho
(homem ou larva
Bicho ou gente?)
Na fome da hora
uma larva estremece
na hora de bicho
um verme apodrece (VIEIRA, in MEDINA, 1987, p. 520).

De igual modo, o poema Ocorrncia em Birmingham, de Jorge Barbosa, ao focalizar o cotidiano, aproxima-se da potica de Manuel Bandeira, mais
especificamente de Poema tirado de uma notcia de jornal26, como possvel
observar nos seguintes versos:
John
de Birmingham
Alabama
USA

entrou na tabacaria.
Foi insultado
soqueado
expulso.
Na rua
o polcia
espancou
derrubou
cuspiu
prendeu o desordeiro.
Negro safado! (BARBOSA, in SANTOS, 1993, p. 148)

Salutar a proximidade estrutural e temtica entre os dois poemas: os


ttulos de ambos so atinentes a situaes cotidianas que poderiam ser tomadas
como no-poticas, as personagens Joo e John possuem o mesmo nome, sendo a variao decorrente de sua origem geogrfica e lingustica, mas
26 Eis o Poema tirado de uma notcia de jornal (2000, p. 46), de Manuel Bandeira: Joo Gostoso
era carregador de feira livre e morava no morro da Babilnia num barraco sem nmero/ Uma noite
ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/ Danou/ Depois se atirou na lagoa Rodrigo de
Freitas e morreu afogado.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

diferentemente de Joo Gostoso, cuja histria transcendente ganhou


as pginas dos jornais, de onde Bandeira tirou o poema, John no
tem outra voz seno a do prprio eu-lrico. Contudo, seu anonimato o aproxima, de certo modo, do destino comum de milhares de
outros oprimidos cujas histrias tambm no ganharam as pginas
dos jornais. Seus destinos trgicos enlaam-se e, ao serem cantados
pelo poeta, ganham uma voz audvel, estejam eles em Birmingham,
Alabama, nos vilarejos cabo-verdianos varridos pela lestada ou no
brasileiro Morro da Babilnia (PAULA, 2005, p. 90).

De acordo com Manuel Ferreira, a fixao de Jorge Barbosa pela obra de


Manuel Bandeira se faz to notria que tamanha proximidade somente possvel pela invocao do quotidiano, dos pequenos acontecimentos, das pequenas
figuras, de Nh Fulano, de Nh Beltrano, das pequenas histrias do dia-a-dia
(FERREIRA, 1989, p. 157), podendo ser mencionados, apenas para exemplificar,
os poemas Carta para Manuel Bandeira (1956, p. 53-54), Carta para o Brasil,
Carnaval no Rio de Janeiro, Palavra profundamente (1993, p. 66) e Voc,
Brasil (1956, p. 57-60)27, do qual destaco os seguintes versos:
Eu gosto de voc, Brasil,
porque Voc parecido com a minha terra.
Eu bem sei que voc um mundo
e que a minha terra so
dez ilhas perdidas no Atlntico,
sem nenhuma importncia no mapa.
Eu j ouvi falar de suas cidades:
A maravilha do Rio de Janeiro,
So Paulo dinmico, Pernambuco, Bahia de Todos-os-Santos.
Ao passo que as daqui
No passam de trs pequenas cidades.
Eu sei tudo isso perfeitamente bem,
mas Voc parecido com a minha terra (BARBOSA, 1956, p. 57-60).

Em Voc, Brasil, Jorge Barbosa no s estabelece um dilogo com Manuel


Bandeira e outros escritores brasileiros, como tambm apresenta(-se) (a)o irmo
atlntico em tom coloquial, fraterno, afetivo, numa demonstrao lingustica (e
no s) de conhecimento do outro e, concomitantemente, de si mesmo. Em outras palavras, as marcas da enunciao, neste poema dedicado a Ribeiro Couto (e
que ainda cita Jorge de Lima e faz inferncia ao poema Pronominais, de Oswald
de Andrade), so evidentes e demonstram a aproximao entre Cabo Verde e Brasil. Valendo-se da analogia, o sujeito potico tambm evoca as msicas brasileira e
cabo-verdiana e o drama das secas enfrentado pelos dois pases, alm de se mostrar
27 O cabo-verdiano Jos Vicente Lopes, autor do conto O sonho do Senhor JB (LOPES, 2007, p. 6566), apresenta de forma divertida a fixao de Jorge Barbosa por Manuel Bandeira ao recriar cenas a
partir de um suposto sonho em que os poetas dos dois lados do Atlntico mantinham conversa.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

simptico (ou mesmo atrado) para conhecer as paisagens e as vivncias brasileiras.


Assim, por tudo quanto foi exposto e como possvel observar, o cotidiano, neste poema e nos demais reportados ao longo do texto, apresenta-se
como uma espcie de fio condutor que, promovendo a aproximao literria
entre Manuel Bandeira com os poetas cabo-verdianos, tambm rene (micro)
historicamente os dois lados do Atlntico.
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Eugnio Tavares: amor a Cabo Verde na prosa de interveno social


Genivaldo Rodrigues Sobrinho
Escolhei a vossa pena como os heris escolhem as suas
lanas;
h penas nobres como espadas, h penas reles como escovas de sapatos.
Eugnio Tavares

Eugnio Tavares, um dos intelectuais cabo-verdianos mais atuantes, legou s geraes posteriores no apenas a forma modelar da morna bravense,
mas tambm importantes subsdios para a construo de uma nao mais digna
e justa. Nesse sentido, a sua produo em prosa, espalhada nos mais diversos
jornais que circularam em Cabo Verde e Portugal entre o final do sculo XIX e as
primeiras trs dcadas do sculo XX, revela um Eugnio Tavares comprometido
com a verdade e com a defesa dos interesses do povo cabo-verdiano.
Joo Nobre de Oliveira, ao discorrer sobre a sua atuao como jornalista, evidencia que
A sua pena tornou-se temida no meio poltico cabo-verdiano e colaborou nos rgos republicanos Voz Pblica, Batalha e Marselhesa;
[...] em vida, Pedro Cardoso considerou-o o maior jornalista caboverdiano (1998, p. 201).

Suas crnicas e cartas, recolhidas por Flix Monteiro sob o ttulo de Eugnio Tavares - viagens, tormentas, cartas e postais (1999), fornecem-nos um retrato da sua personalidade marcante e da vasta cultura que dominava.
A leitura mais minuciosa, nesta oportunidade, de textos tavarianos publicados em peridicos, especialmente a Revista de Cabo Verde e o jornal A Voz
de Cabo Verde, assim como de peas selecionadas de sua produo cronstica
e epistolar, busca demonstrar como o autor desenvolveu suas reflexes contra
as injustias sociais, desmandos de autoridades, abandono do arquiplago por
parte da metrpole num discurso de teor interventivo, que tinha por objetivo a
construo de um Cabo Verde mais humano.
Antes, porm, julgamos necessrio fazer um breve histrico da chegada da imprensa ao arquiplago de Cabo Verde, com o intuito de conhecer as
circunstncias que motivaram a criao da imprensa no-oficial naquela ento
colnia portuguesa da costa ocidental africana.
A instalao da primeira tipografia nas colnias portuguesas na frica
aconteceu em 1842, quase quatro sculos aps a chegada dos portugueses s
71

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ilhas de Cabo Verde e 402 anos depois que Gutenberg inventou a imprensa. Sob
a gide da Imprensa Nacional de Cabo Verde e Guin, a 24 de agosto de 1842,
na vila de Sal-Rei, ilha da Boa Vista, dava-se estampa o primeiro nmero do
Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde. Com este feito, o arquiplago
acabaria por se transformar em pioneiro da imprensa na frica portuguesa.
Apesar do seu pequeno nmero de pginas, este boletim dividia-se em
duas seces: a Interior e a Exterior. A primeira seco subdividia-se, por sua
vez, em duas partes: a Parte Oficial, onde se publicavam textos do Governo, e a
Parte no Oficial, que se destinava publicao de outros textos que pudessem
ser teis aos leitores do Boletim Oficial. Publicado at o nmero 32, antes de se
fixar definitivamente na cidade da Praia, na Ilha de Santiago, em 1855, o Boletim tambm foi editado na Ilha Brava, por ocasio da transferncia da Imprensa
Nacional para a chamada Ilha das Flores, em virtude da epidemia que ento
assolava a ilha da Boa Vista, obrigando o deslocamento dos funcionrios mais
influentes, assim como do prprio Governador.
Tornou-se o veculo de informao oficial de Cabo Verde e do Distrito
da Guin Portuguesa at o ano de 1879, quando houve o desmembramento desta provncia do governo cabo-verdiano. A partir de ento, o Boletim permaneceu exclusivamente a servio do arquiplago, como Boletim Oficial do Governo
da Provncia de Cabo Verde.
Ainda no que diz respeito instalao da imprensa em solo cabo-verdiano, Joo Nobre de Oliveira esclarece que:
apesar da sua primazia na instalao do prelo em terras de frica,
Cabo Verde foi das ltimas colnias portuguesas a ter um jornal. Foi
em Angola, na cidade de Luanda, em 1855, que nasceu o primeiro
jornal da frica portuguesa: o Aurora. Era uma revista literria mas
a sua fundao representa de facto a aurora do jornalismo africano
de lngua portuguesa. A Angola, seguiram-se Moambique com o
Progresso, editado na cidade de Moambique em 1868; S. Tom e
Prncipe, com o Equador em 1870; Cabo Verde com o Independente, na cidade da Praia, em 1877 e, por ltimo, Guin-Bissau com o
Ecos da Guin, sado em Bolama, em 1920. Quanto a essa ltima excolnia h a registar que em 1883 foi editada uma folha intitulada
Fraternidade na cidade de Bolama, folha essa nmero nico cuja
venda se destinava a angariar fundos para apoiar Cabo Verde, ento
a braos com uma crise (OLIVEIRA, 1998, p. 18).

A histria da edio de jornais com temticas que procuravam dar nfase aos problemas gerados nas colnias iniciou-se por volta do ano de 1836. Eram
peridicos voltados para o ultramar e tinham a preferncia dos habitantes das
provncias para o caso de denunciar problemas que os afetavam, atacar gover72

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

nantes pouco interessados em dinamizar a administrao e, consequentemente,


melhorar a vida das provncias, discutir ideias polticas etc.
A vantagem da publicao de textos em jornais metropolitanos resumiase ao fato de os produtores destes textos no arriscarem a perder a liberdade,
uma vez que muitos deles estavam nas fileiras do emprego pblico. Nas colnias,
a liberdade de imprensa no era um princpio observado e as autoridades costumavam proibir matrias que no considerassem convenientes. Todavia, essas
mesmas autoridades no tinham o poder de proibir a publicao na metrpole,
bem como de impedi-la de circular nas colnias, o que inviabilizava represlias
contra seus autores.
Em Cabo Verde, tendo ficado sob sua incumbncia a manuteno da
circulao de um nico peridico, o governo deu-se por satisfeito com esse rgo solitrio de imprensa durante praticamente todo o sculo XIX. Esta situao
se alteraria somente no sculo XX, quando, ainda por iniciativa do governo ou
de outros organismos dele dependentes, novos ttulos foram criados. Complementa ainda Joo Nobre de Oliveira:
A evoluo da Imprensa em Cabo Verde, no entanto, pode ser vista
de um outro ngulo. Assim, partindo em 1842 de uma publicao
mantida pelo Estado, passa em 1877 para dois jornais independentes, que conseguem sobreviver algum tempo sem o apoio estatal.
Segue-se um novo perodo em que s o Boletim Oficial consegue
sair regularmente, mas marcado, aqui e alm, pelo aparecimento de
publicaes de pouca durao (1998, p. 26).

Mesmo com todas as dificuldades, os cabo-verdianos encontraram na


publicao de opsculos, cujo tamanho girava em torno de cinquenta (50) pginas, a sada para trazer tona suas memrias, cartas, notas, nas quais buscavam
se defender de acusaes e mesmo atacar uma situao ou personalidade. Aqueles, principalmente polticos, que tinham uma situao econmica mais privilegiada, escreviam e mandavam publicar seus textos primeiramente em Portugal,
no Brasil e, s vezes, na ndia, e eles depois eram distribudos para o pblico do
arquiplago.
Este dispositivo foi utilizado por Eugnio Tavares aps ser acusado de
apropriao indbita de dinheiro pblico, quando exercia cargo como funcionrio da Fazenda na Ilha Brava.
Consciente das estratgias necessrias para denunciar os problemas de
sua terra natal e para defender-se como cidado, Eugnio personificava o perfil
jornalstico adequado ao seu tempo, na tica de Joo Nobre de Oliveira:

73

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Era preciso que, para alm de leitores mais esclarecidos, houvesse


tambm pessoas que compreendessem a terra, que a interpretassem
de um ponto de vista mais intelectual, quer atravs da anlise poltica, quer atravs da literatura, que no se cingissem apenas as descries folclricas que isso qualquer estrangeiro de passagem tambm
fazia e, muitas vezes, at melhor que os naturais. Ou seja, eram precisos escribas que, conhecendo profundamente a terra, melhor pudessem expressar o seus anseios. Isto s seria possvel com o aumento
da instruo (1998, p. 69).

O estudioso aponta o papel da instruo do leitor como condio para o


aparecimento de uma imprensa autnoma em Cabo Verde:
inegvel que, mesmo tendo um certo poder de compra, uma
populao analfabeta ou com um baixo nvel cultural, no pode
constituir um suporte para a existncia de jornais autnomos, uma
vez que no se interessar pela leitura daqueles. Ora, o aparecimento
de uma imprensa prpria em Cabo Verde s trinta e cinco anos
depois da introduo do prelo, para alm dos factores econmicos,
o reflexo do atraso da terra neste aspecto e da inexistncia at
ento de uma populao mais esclarecida e mais exigente em termos
informativos, o que s seria possvel com o aumento qualitativo da
instruo (Ibidem).

O sucesso da luta pela implantao da instruo em Cabo Verde no se


restringiria apenas s aes postas em prtica pelo governo. Houve mobilizao
por parte de toda a sociedade, com a criao de associaes culturais e grmios
com o fito de levar educao aos que no dispunham deste capital simblico.
de se destacar tambm a iniciativa de cidados esclarecidos que dedicaram, de
corpo e alma, parte de seu tempo a ensinar.
Segundo Manuel Brito-Semedo, aps o surgimento do Boletim Oficial, estavam criadas as condies para a implantao da imprensa no-oficial em Cabo
Verde, uma vez que: i) havia a tipografia, ii) um pblico leitor com certa instruo e
iii) uma elite letrada e culta, capaz de escrever para jornais e revistas (2006, p. 164).
Em resumo, o nascimento da imprensa em Cabo Verde foi o resultado
de uma combinao de factores tcnicos. [...] no prprio solo cabo-verdiano
formaram-se os leitores e os jornalistas que fizeram da imprensa cabo-verdiana
um caso particular da frica portuguesa (OLIVEIRA, 1998, p. 115).
Como j ressaltado, o primeiro peridico no-oficial surgiu na Cidade
da Praia, com o nome de Independente. Era tido como jornal poltico litterrio
e commercial, dedicado aos interesses da provncia de Cabo Verde1. Atribui-se
1 Esta citao foi retirada do estudo feito pelo professor Manuel Brito-Semedo, que no informa a referncia. Provavelmente o pesquisador a extraiu do nmero inicial dO Independente.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

sua fundao a Guilherme da Cunha Dantas e Joaquim Maria Augusto Barreto, ambos da ilha Brava, tendo a sua circulao durado aproximadamente doze
anos, de 1877 at 1889.
A respeito da imprensa escrita cabo-verdiana, Leila Hernandez acrescenta que:
No seu extremo provincianismo, ainda que sedimentando particularismos e regionalismos, a imprensa escrita unifica interesses comuns. So sete os peridicos que passam a circular a partir de 1877
at 1886, e comeam paulatinamente a sugerir algumas reivindicaes polticas, embora de forma tmida e, por vezes, ambgua. De
todo o modo, a lngua impressa acaba criando campos unificados
de intercmbio e comunicao, [...] embrio da comunidade nacionalmente imaginada (2002, p. 103).

Brito-Semedo expe os anseios da elite culta e letrada cabo-verdiana


nos momentos que precederam a chegada da imprensa ao arquiplago:
Mesmo antes de haver a instituio da imprensa em Cabo Verde, a
preocupao da elite intelectual, de Hypolito da Costa Andrade a
Eugnio Tavares e Jos Lopes, centrava-se na identificao do tipo
ideal de jornalismo que conviria s ilhas. As posies defendidas por
esses intelectuais eram coincidentes e, por vezes, complementares:
um jornalismo independente dos poderosos e alheio baixa poltica,
que no fosse um repositrio de lisonjas nem uma folha de curcutio (maledicncia) e que concorresse para o levantamento espiritual do seu povo (2006, p. 165).

Hyplito da Costa Andrade, no texto intitulado Instituio da Imprensa Nesta Provncia, defendia que:
O jornalismo [que] sabe fugir ao domnio do esprito parcial das
faces polticas, e no troca a sua magestosa independncia pela
degradante posio de instrumento de deshonestas ambies, de
vinganas miserveis, de desordem e desgraa dos povos, eleva-se
nas abenoadas azas da felicidade deelles altura em que todas as
classes generosas da sociedade o contemplam, filho da razo, amante
da verdade, respeitador do direito, centro de luz, anjo de paz.
A imprensa que no queima porta dos grandes das naes o incenso, cujo perfume suave se perde no thuribulo da adolao, sustentado em mos de indignos (Boletim Oficial n. 46, 1871).

No que diz respeito aos jornais publicados em Cabo Verde logo aps a
proclamao da Repblica, Eugnio Tavares, em uma de suas cartas (sob o pseu-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

dnimo Djn de Mamai), explicitava seu conceito de qualidade:


Um bom jornal no deve ser uma homilia, nem deve ser um cacete
brandido por um possesso, nem repositrio de lisonjas, nem folha
de curcutio2. O jornal que se paga ao mister louvaminheiro de
lamber tudo e todos, uma coisa indecente; e um jornal que desanda
bordoada em tudo e em todos sem escolher onde nem em quem
d, tambm, um estupor insuportvel. Nem lamber nada nem morder muito (Eugnio Tavares viagens, tormentas, cartas e postais3, p.
173. Cartas para a Amrica, A Voz de Cabo Verde, n. 74, Praia, jan.
1913).

O posicionamento firme, de luta pela verdade e pela justia, assumido


por Eugnio Tavares ao longo de sua carreira jornalstica, j se pode sentir com
a publicao da Revista de Cabo Verde. Examinemos alguns excertos publicados
no n. 2 desta revista, em maro de 1899:
Pugnar pelos interesses da provncia, sendo, porventura, o mais
simptico ponto de mira da REVISTA DE CABO VERDE, devia ser
aquele que maior apoio lhe grangearia do pblico, se no fosse o que
maiores tropeos lhe levantar, mal aparea luz.
Porque, para que o pblico aplauda aquele que, serenamente, desassombradamente, vem apontar erros e propor emendas, mister
que esse pblico no pertena nem ao nmero dos que erram, nem
ao dos que com o erro lucram. E, infelizmente, em Cabo Verde, os
que no fazem parte duma ou doutra coisa podem, como diz o povo,
contar-se pelos dedos (TPJ, p. 17, grifos nossos).

Sobre o modo como a imprensa deveria atuar, explicita Eugnio:


no necessrio que o jornal envergue ares doutorais ou pedantescos: basta que, para realizar o fim que se props, tenha de abordar
questes defesas, descobrir factos irritantes e expor verdades que,
mais ou menos, firam susceptibilidades dos elevados s iminncias da governana ou do dinheiro.
No desanime, porm, o fundador da REVISTA; a atmosfera dos
combates o verdadeiro elemento do homem forte. No pode haver triunfos sem que haja sacrifcios. E, a adversidade, o rebolo
onde os lidadores afiam o seu nimo e temperam o ao da sua
intransigncia (Ibidem, grifos nossos).
2 Curcutio ou Curcutian um gnero de arte popular praticado pelos camponeses da ilha do Fogo,
em que os contendores se injuriam jocosamente, desgarrada. Teixeira de Sousa, Curcutian (Recolhas
Folclricas), Cabo Verde Boletim de Propaganda e Informao, n. 63, Praia, dez. de 1954, p. 18.
3 Daqui por diante citado como TVTCP.

76

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Com base nessas concepes de jornalismo, os intelectuais cabo-verdianos assumiriam o dever cvico de produzir artigos para os peridicos da poca,
expressando seu ponto de vista acerca dos mais variados temas que os envolviam.
Nesse contexto, a importncia de Eugnio Tavares (ou Nh Gnio Tavares, ou Nh Tatai, como tambm era conhecido) pode ser avaliada pelos inmeros eptetos que lhe foram atribudos pela imprensa do arquiplago, ao longo do
tempo, dos quais elencamos alguns deles: retratista incomparvel da sociedade
do seu tempo; polemista vigoroso; jornalista criterioso; prncipe dos jornalistas
cabo-verdianos; pioneiro na defesa do homem cabo-verdiano livre e independente; publicista rigoroso; humanista combativo e mordaz; o primeiro a proclamar a autonomia para Cabo Verde; precursor do nativismo cabo-verdiano4.
De acordo com Tom Varela da Silva, a produo esparsa de Eugnio
Tavares, publicada em vrios peridicos durante aproximadamente quatro dcadas, permite
reconstituir do autor a personalidade lcida e forte de que foi possuidor, vastamente testemunhados pela sua pena jornalstica. A obra
de Eugnio Tavares revela-nos uma personalidade robusta, munida
de um temperamento apaixonado e prtico, para quem raramente
o velho ditado, querer poder, teria ficado sem contedo, no que
dele dependesse. A riqueza de seu carcter inquebrantvel e bem
formado casa-se perfeitamente com a sua personalidade e temperamento, constituindo-o num homem-modelo que soube aproveitar
e tirar partido de todas as oportunidades que a vida lhe oferecera
(SILVA, 1998, p. 57).

A imprensa, para ele, era uma forma de expor, cobrar, questionar, chamar a populao mesmo que apenas a parcela possuidora de alguma formao
letrada a refletir sobre todas as dificuldades que levavam Cabo Verde a se manter em inrcia, face ao desinteresse das autoridades responsveis diretamente
pela administrao das ilhas. A este respeito, criticamente, assim se manifestava:
Em qualquer recanto do mundo civilizado, , o jornal, um drstico depurador: regula as funes do organismo oficial; purga-o de
humores txicos; lava-o de impurezas; corrige-lhe os aleijes; lanceta-lhe os bubes; [...] entre ns, porm, a Imprensa mais no tem
podido ser que uma firma desacreditada, uma infeliz s bolandas entre a fome quotidiana e a polcia correcional (Eugnio Tavares: pelos
jornais...5, p. 148).
4 Disponvel no site da Fundao Eugnio Tavares <www.eugeniotavares.com>. Acesso em maio de
2010.
5 Daqui por diante citado como TPJ.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Alguns fragmentos dos textos jornalsticos tavarianos reforam o que


Tom Varela da Silva ressalta na personalidade de Nh Eugnio:
a atmosfera dos combates o verdadeiro elemento do homem forte.
No pode haver triunfos sem que haja sacrifcios (TPJ, p. 17).
Eu exijo para o povo aquilo que, de direito, sei ser do povo (ibidem,
p. 25).
Quando no se tem sentimento moral, claro, no se tem concepo
do bem; quando no h concepo do bem, fora de dvida que no
h iniciativa prpria (Ibidem, p. 37).
Verdade, sempre verdade. Verdade a todo o transe. Verdade custa
da paz do meu lar, custa do bem dos que amo, custa da minha
prpria felicidade. [...] Verdade mesmo acima de Deus, se Deus no
fosse para a Verdade o que o sol para a luz (Ibidem, p. 58).
Todo aquele que, para conseguir um fim justo, lana mo de meios
injustos, prejudica a realizao da sua obra. [...] Nunca se chega ao
bem trilhando a vereda do mal (Ibidem, p. 149).

Combate, moral, verdade e justia, a servio do povo, constituem as


linhas mestras do jornalismo tavariano.
Com efeito, no que toca cidadania de Eugnio Tavares traduzida na
sua produo jornalstica, Tom Varela acrescenta que:
foi um cidado decidido e assumido em todas as circunstncias e
que elegeu o jornalismo (lcido, porque lcido, incmodo) como a
sua arma predilecta de combate, dando voz a si mesmo, sua ilha, a
Cabo Verde, intervindo e denunciando, muitas vezes com evidente
temeridade, todos os desleixos, atropelias, abusos e injustias que espezinhavam os direitos, amarfanhavam os compatriotas, demoliam
o patriotismo e impediam o desenvolvimento (SILVA, 1998, p. 57).

Quanto aos temas primordiais de seu macrotexto jornalstico, passamos


a destacar alguns.
Solues prticas e eficientes para os problemas crnicos de Cabo Verde, como as crises de seca e fome, davam uma amostra do esprito combativo e
empreendedor de Nh Eugnio, quando ele endereava artigos e missivas a A
vrios cavalheiros respeitveis que no lem estas cartas:
Em 1903 se viu encherem-se valas de cadveres, e [...] ainda se viu
estertorarem-se na misria Santo Anto e Boa Vista. [...] No acham
V. Exas. que j tempo de se acabar com semelhantes vergonhas?
Que deve ter soado a hora de os governos darem melhor remdio
hedionda lepra das traficncias que a monarquia legou Repblica?

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

[...]
No entraram inda V. Exas. Na convico de que a calamidade pblica da fome deve ser atacada nas suas causas?
No desconfiam V. Exas. de que possa ser tempo de pensar em explorao de nascentes? E regularizar sistemas de irrigao? Na utilizao de
todos os terrenos arveis? No estudo de adaptao de novas culturas?
No dever de tornar obrigatria a arborizao? (TVTCP, p. 275).

Em virtude do abandono dispensado pelo governo colonial sua terrame, Eugnio Tavares apontou outra soluo para o desenvolvimento de Cabo
Verde: defendeu abertamente a emigrao, principalmente para os Estados Unidos da Amrica, pas que era considerado por ele como o Eldorado, onde se
poderia alcanar a liberdade econmica e enriquecer culturalmente. Para Eugnio, a emigrao cabo-verdiana constitua um elemento de riqueza e civilizao
(TPJ, p. 129).
A respeito da sada dos cabo-verdianos da terra natal, Leila Hernandez
esclarece o contexto que a caracteriza, em certo sentido, como inevitvel:
A precariedade da vida econmica e a extrema pobreza, a fome e a
alta taxa de mortalidade, acentuadas nas pocas de secas, pragas e
epidemias, expulsam amplos setores da sociedade para fora do arquiplago. [...] A aspirao bsica do emigrante lutar por sua sobrevivncia e a de sua famlia para, num segundo momento, poder criar
melhores condies de vida. Nesse sentido, o emigrante equaciona
possibilidades de trabalho, levando em conta suas aspiraes referentes estabilidade do emprego, ao nvel e regularidade de remunerao e as possibilidades de ascenso profissional (2002, p. 104).

Ainda sobre a partida para a Amrica, Eugnio Tavares, no artigo intitulado A Emigrao para a Amrica, afirma que:
A emigrao cabo-verdiana para os Estados Unidos da Amrica colocou, de h bastantes anos, a ilha Brava fora das contingncias desoladoras da misria com negra base nas irregularidades pluviosas
caractersticas, peculiares zona geogrfica em que surgiu o arquiplago; e lhe ilustrou, e lhe puliu o seu povo; e a cobriu de habitaes risonhas e confortveis, recendendo ao aroma sadio e fresco do asseio
holands; e fez brilhar a conscincia no crebro do seu povo; e fez
brotar a compreenso de uma s moral que dignifica a atmosfera dos
lares mais pobres; e cultivou o sentimento de amor ao lar, famlia,
sem o qual o amor ptria, e os mais elevados sentimentos de civismo so utopias; e implantou o amor ao trabalho, independncia; a
coragem moral que vence todas as dificuldades, o desprezo da morte
que facilita todas as empresas (TPJ, p. 163-164).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Lembremos que o tratamento da temtica da emigrao por parte de


Eugnio Tavares no se restringiu ao campo do jornalismo, mas teve destaque
tambm na sua epistolografia e na sua poesia. E o intelectual ateve-se ainda a outras formas de emigrao, nem sempre concebidas como to positivas, que estabeleciam um contraponto com a partida para a Amrica. Observemos a mestria
com que trata o assunto sob a forma erudita culta do soneto:
A Emigrao
(A propsito da emigrao para S. Tom e Prncipe)
Como triste e desolador,
Ver partir, aos magotes, esta gente,
Entregue ao seu destino, indiferente
A tanto sofrimento, tanta dor!
Se a sorte ainda a traz terra amiga,
Macilenta, tristonha, depauprada,
Com a doena do sono, j minada,
Ao cemitrio um s coval mendiga!
Mas porque ides, assim arrebanhada,
A essa maldita terra de desterro?
a fome que vos leva acorrentada?
Aproveitai melhor a mocidade
E ide mais distante, ide Amrica
A terra do trabalho e liberdade!
(TPOLP, p. 38, grifos nossos)

Os dois tercetos corroboram o que Eugnio Tavares denunciava no nmero dois da Revista de Cabo Verde: Realizam-se emigraes em massa; e, merc do desprezo da metrpole, est-se operando uma radical desnacionalizao
do povo cabo-verdiano, principalmente dos naturais da ilha Brava (TPJ, 1997,
p. 18). A emigrao para So Tom encarada como desterro e como notrabalho, semelhante escravatura. Somente em liberdade o ser humano pode
realizar trabalho digno, a mxima proposta por Nh (Mestre) Eugnio e este
tipo de emigrao no traria rendimentos aos emigrados, muito pelo contrrio,
embrutecia-os e empobrecia-os.
Jos Antnio Nobre Marques Guimares, em O nativismo em Eugnio
Tavares (2005) lembra que um dos fios condutores da ao poltica e jornalstica
do poeta, desde cedo, ergue-se contra a contratao de serviais para So Tom.
Este trabalho, pesado e muito mal remunerado, era destinado aos cabo-verdianos que a ele se submetiam em virtude do estado miservel em que viviam, uma
vez que no tinham outra alternativa diante das sucessivas secas que assolavam
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

o pas e que causavam grande caos social. Havia, ademais, interesse por parte da
administrao colonial em se aproveitar desse cenrio de calamidades, j que
desta forma o governo portugus conseguia mo-de-obra quase gratuita para o
trabalho nas plantaes de cacau em So Tom.
Desmontando alguns argumentos do Sr. Leote do Rego a favor da mode-obra cabo-verdiana para So Tom, expressos em entrevista intitulada Pela
Imprensa do Pas, concedida ao jornal O Sculo, de Lisboa, Eugnio vai refutar
enfaticamente esta forma de emigrao usando o texto jornalstico como arma.
Confrontemos as ideias do Sr. Leote, citado em artigo-rplica tavariano:
para que o desenvolvimento da agricultura em S. Tom no sofra entraves, no lute com dificuldades por causa da falta de braos, isto
que se deve procurar manter; no por leis violentas mas pormeios
suaves de captao. Angola tem-nos faltado ultimamente com homens, em virtude dos ingleses; Cabo Verde, apesar de gritar com
fome,faz outro tanto e necessitamos estudar a srio um problema
grave como este. Ora, poder-se- resolver favoravelmente os nossos
interesses em S. Tom, conseguindo-se esta espcie de andamento
rotativa: o preto depois de ver a sua terra voltar para as roas por sua
livre vontade (REGO citado por TPJ, p. 90-91, grifos nossos).

Eugnio Tavares reagiu prontamente, destacando os pontos a seguir.


No por leis violentas:
Perfeitamente ociosa a sugesto. Isso, hoje, no se faz: Joo Franco
no governa; d leis a Repblica; e a Repblica no tolera violncias
de ordem a se admitir suposio de escravatura; e os homens que a
dirigem jamais se prestaro a barrar os alicerces da Liberdade com
sangue e lgrimas de outros homens, sejam eles pretos de Angola ou
mestios de Cabo Verde. De resto, mesmo admitindo que a agricultura de S. Tom s pudesse florescer pelo sistema da violncia, isto ,
pela escravatura, h um interesse que fala mais alto que as prosperidades materiais de um pas: a intangibilidade dos direitos sociais do
indivduo. E o preto, por ser preto, no possvel negar-lhe direitos
(Ibidem, p. 91).

Por meios suaves de captao:


Tambm isso no se deve fazer.
Captao o emprego de meios capciosos; a astcia para induzir
ao erro; a promessa dolosa, falsa, fraudulenta, cavilosa. estender
redes besuntadas com o visco de promessas que nunca se cumprem.
um crime. democracia repugnam tais meios.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Existe, porm, um meio de evitar que o desenvolvimento da agricultura em S. Tom sofra entraves: atrair trabalhadores no arrebanhar escravos! dando-lhes salrios, instruo, direitos. Do contrrio contar que, Cabo Verde, no ir para S. Tom um nico homem
que no leve o desprezo do povo cabo-verdiano (Ibidem).

Cabo Verde, apesar de gritar com fome...


Em Cabo Verde, facto, tem-se morrido fome. Sob o governo do
sr. Cid Hoje, tambm, republicano! vinte mil miserveis foram
atirados vala. A cada passo se encontram, em Cabo Verde, homens
que morrem sem uma queixa; mas difcil encontrar um preto ou
um mestio que suportem a chicotada de um comitre sem responder
com essa criminosa energia, qual, raro sobrevivem os que vibram
o chicote e o ultraje.
J se tem experimentado.
O cabo-verdiano tem esse grande defeito de se no prestar a um certo nmero de trabalhos (Ibidem).

Diferentemente da emigrao forada para So Tom, outros destinos,


como a Amrica, podiam educar e enriquecer, trazer progresso moral, material
e intelectual.
NA Voz de Cabo Verde, Ano III, n. 101, de 21/07/1913, no artigo intitulado Questes Econmicas: A emigrao cabo-verdiana um elemento de
riqueza e de civilizao, o jornalista bravense destaca que o homem cabo-verdiano, em tipos de emigrao como as da ilha do Fogo e da Brava para a Amrica, vai
quase sempre sem instruo, com apenas aquela educao que bebeu
na pobre e honesta atmosfera em que nasceu. Quando volta porm,
ele, que tinha ido um pria, chega um cidado. Traz dinheiro, traz
uma definida concepo moral, vem fazendo uma ideia aproximada
do direito, do dever, da justia; de modo que a sua casa progride, a
sua prole educa-se, a sua existncia dignifica-se. E os seus descendentes, ele mesmo, jamais podero ser os servos que engraxam as
botas e lisonjeiam as vaidades dos senhores. Os resultados da emigrao cabo-verdiana podem-se ver no Fogo e na Brava, onde ela
tem frutificado. Em nenhuma das outras ilhas h, ainda, uma emigrao regulada, estabelecida e com resultados evidentes, incontestveis, que se ofeream como provas contra o oco farelrio dos coloniais (Ibidem, p. 130).

Por exemplo, o artigo Emigrao para a Amrica, A Voz de Cabo Verde,


n. 35, 15/Abr/1912, ressalta o progresso alcanado pelos emigrantes da Ilha do
Fogo que se estabeleceram nos Estados Unidos da Amrica e estendem sua
82

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

terra natal o desenvolvimento trazido da dispora:


Os grandes morgadios serra-mar, ainda na sua maior parte negligentemente, primitivamente cultivados, quase que abandonados a
um pousio esterilizador, comeam, hoje, de ser subdivididos em
herdades pequenas, em talhes de pobres que os cultivam com esmero e com amor; confiados, por longos anos, aos cuidados mercenrios dos rendeiros ou meeiros sem cincia agrcola, passam agora
a ser lavrados por aqueles que no s pensam na maneira de fazer
a colheita anual, seno na possibilidade de seus filhos e netos virem a colher no futuro (Ibidem, p. 164, grifos nossos).

Uma nova sociedade passa a ser implantada com o regresso daqueles


que partiram. Desta forma, o progresso da Ilha Brava assim relatado em 1912:
A Brava, a mais pequena da ilhas de Cabo Verde, apresenta-nos o
exemplo do trabalho, da perseverana, da dignidade moral que se
assimila na Amrica. As suas montanhas elevadas, os seus vales deliciosos, os seus planaltos oxigenados, povoaram-se de habitaes
confortveis e risonhas, onde a felicidade e a abastana nem sempre
dependem das circunstncias pluviosas. O seu povo civilizado. A
organizao da famlia regular. Nos anos de crise alimentcia, de
irregularidades pluviosas, sete por cento da populao carece de socorros pblicos. O resto tem a sua vida garantida pelo seu trabalho
fora (Ibidem, p. 130).

Em correspondncia especial do jornal portugus A Marselhesa, em


1897, Eugnio Tavares antes denunciava ao Secretrio da Fazenda o abandono
da sua ilha natal e, por extenso, da colnia, assim como a responsabilidade do
Estado colonial:
Suba o Sr. Secretrio aos formosos plats da ilha Brava e pergunte ao
baleeiro esqulido, amofinado pela fome, entristecido pela contemplao dos seus campos varridos pela lestada, embrutecido [...] que
da beleza das suas montanhas e da abundncia dos seus vales; que
vento de morte lhe levou os filhos e a alegria domstica; quem lhe
esvaziou as tulhas e lhe levou os granis; quem o amarra misria
em terra e lhe fecha o caminho da abundncia no mar [...].
Foi a preguia?
A invalidez?
As doenas?
No. Foi o Estado (Ibidem, p. 14-15, grifos nossos).

No artigo intitulado Questes Econmicas, publicado em A Voz de


Cabo Verde, Eugnio declara que o cabo-verdiano no lana razes s terras
para onde vai trabalhar, mas l vai procurar seiva para aprofundar e fortalecer
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

as razes que deixou nas suas ilhas. E sintetiza:


No se percam, pois, de vista, estas verdades: a emigrao, em Cabo
Verde, um bem. Contrariar a emigrao cabo-verdiana para os Estados Unidos da Amrica favorecer a decadncia da provncia,
abrir um futuro de misria e sofrimentos aos cabo-verdianos (Ibidem, p. 131).

Em suma, como bem o observa Manuela Monteiro, Eugnio Tavares


esgrimiu o verbo com mestria, [...] deixou-nos trechos de interveno memorveis, cuja clarividncia e lucidez ainda hoje nos surpreendem. A sua actividade
como homem e cidado, a sua actuao como escritor, explicam o respeito, a
admirao e o carinho que continua a merecer (TVTCP, p. 15).
E, acima de tudo, o seu amor por Cabo Verde credencia a sua produo
em prosa e, conforme buscaremos comprovar adiante, a sua produo em verso,
como marcos identitrios de alto valor esttico:
Amo tanto Cabo Verde que atravs de uma existncia de lutas, de
sofrimentos, com a minha carne lacerada e o esprito batido de decepes, ainda me esqueo de pensar em mim para pensar nele (TVTCP, p. 176).

Referncias bibliogrficas
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

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______. Eugnio Tavares: pelos jornais... MONTEIRO, Flix (Recolha, organizao e prefcio).
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______. Eugnio Tavares viagens, tormentas, cartas e postais. Recolha, organizao e notas
biogrficas de Flix Monteiro. Prefcio de Manuela Ernestina Monteiro. Praia: Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1999.
______.Eugnio Tavares poesias, contos, teatro. Recolha de Flix Monteiro. Organizao e
introduo de Isabel Lobo. Praia: Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1996. Sigla usada
no corpo do captulo: TPOLP.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Entre dois mundos: a loucura feminina em A Louca de Serrano, de Dina


Salstio
Juliana Primi Braga
[...] a loucura fascina porque um saber. um saber,
de incio, porque todas essas figuras absurdas so, na
realidade, elementos de um ser difcil, fechado, esotrico. [...] Este saber, to inacessvel e temvel, o Louco
o detm em sua parvoce inocente. Enquanto o homem
racional e sbio s percebe desse saber algumas figuras
fragmentrias e por isso mesmo mais inquietantes , o
Louco o carrega inteiro em uma atmosfera intacta: essa
bola de cristal, que para todos est vazia, a seus olhos
est cheia de um saber invisvel.
Michel Foucault

Em Cabo Verde, as conquistas femininas tm sido alcanadas paulatinamente, sobretudo no que diz respeito ao princpio da igualdade de gnero, apesar
de as cabo-verdianas terem sido postas, por longos anos, margem de uma sociedade que ignorava seus anseios. A independncia do pas (1975), cujas lutas
pela libertao contaram com a participao ativa de muitas mulheres, dentre
elas, Dulce Almada Duarte, como ressalta FERNANDES (2006), fator contributivo para a emancipao feminina, ao outorgar o direito ao voto eleitoral.
Anos mais tarde, em 1978, forma-se a Comisso Nacional Organizadora
das Mulheres de Cabo Verde (CNOMCV) e, em 1981, institui-se a OMCV (Organizao das Mulheres de Cabo Verde), organizao governamental responsvel por cuidar exclusivamente das questes femininas, composta por cabo-verdianas que tiveram participao no processo de luta pela autonomia do pas.
Objetivando assegurar a igualdade entre homens e mulheres e anular
toda distino, restrio ou excluso baseada no sexo, Cabo Verde adere, em
1979 (com ratificao em 1980 e em 2010), Conveno sobre a Eliminao de
Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher (CEDAW).
Em 1984, passa a ser regimentada a Lei de Despenalizao do Aborto,
que, para alm de suas controvrsias ticas, morais e religiosas, revela-se fulcral,
ao destituir das mulheres o estigma social de criminalidade. Em 1997, o aborto
seguro nas estruturas de Sade legalizado, por meio da Lei para a Interrupo
Voluntria da Gravidez (IVG).
Com a abolio do monopartidarismo, nos anos 1990, confere-se s mulheres maior destaque atravs da concepo de polticas especficas no III Plano Nacional de Desenvolvimento (1992-1995), conforme descrito por Simone

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Caputo Gomes (2008):


[h] maior integrao das mulheres no processo de modernizao da
agricultura; desenvolvimento do emprego feminino e das cooperativas de mulheres; acesso ao crdito e criao de projetos de desenvolvimento para mulheres; adaptao da escola s condies socioeconmicas das mes; desenvolvimento do ensino pr-escolar como um
direito da criana e forma de libertar as mes para o trabalho fora
do lar; representao equilibrada nos rgos legislativos e de deciso
(GOMES, 2008, p. 275).

A fim de dirimir as desigualdades entre homens e mulheres, concebido o


primeiro Plano de Ao Nacional de Promoo da Mulher (1996-2000). Em 1997, com
o Cdigo Civil - Livro da Famlia, estabelecem-se igualdades de direitos e deveres entre
os cnjuges no ncleo familiar, como, por exemplo, o de determinar que o poder paternal deve ser exercido em conjunto pelos progenitores.

Em 2004, a violncia domstica (agresso ou maus tratos) contra as mulheres passa a ser crime punvel, conforme definido pelo Cdigo Penal (artigo
134), podendo a recluso variar entre um e quatro anos (PEREIRA, 2010, p. 88).
Seis anos depois, o Parlamento cabo-verdiano aprova o projeto de lei1 que transforma a Violncia Baseada no Gnero (VBG) em crime pblico, ao mesmo tempo em que o pas ratifica a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas
de Violncia e Discriminao contra as Mulheres (CEDAW) e a Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos.
Com o propsito de impulsionar e defender os direitos das mulheres,
as organizaes no-governamentais2 multiplicam-se a partir dos anos 1990, cabendo destacar: a Associao de Apoio Auto-Promoo da Mulher no Desenvolvimento (MORABI), de 1992; a Organizao das Mulheres de Cabo Verde
(OMCV), que passa a ser ONG em 1991; a Associao das Mulheres Empresrias Profissionais de Cabo Verde (AMEPCV), de 1992; a Associao Cabo-verdiana de Mulheres Juristas (AMJ), de 2000; a Rede de Mulheres Parlamentares
Cabo-verdianas (RMP-CV), de 2002; e a Rede de Mulheres Economistas (REDEMEC), de 2003.
Dentre as aes e instituies criadas pelo governo, destacam-se a Comisso Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania (CNDHC), de 2004,
em substituio ao Comit Nacional dos Direitos Humanos (que operou entre os
anos 2001 e 2004); o Instituto Cabo-Verdiano para Igualdade e Equidade de G1 Efetiva-se em maro de 2011. Entre os anos 2010 e 2011, o nmero de casos de violncia domstica
duplica em 11 concelhos; entre 2011 e 2012, o valor volta a dobrar em 9 concelhos (INE/ICIEG/ONU,
2012, p. 58).
2 Informaes disponveis no site Plataforma das ONGs de Cabo Verde: <http://www.platongs.org.cv/
index.php?option=com_content&view=frontpage&Itemid=1>. Acesso em 13 jun. 2013.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

nero (ICIEG), de 2006, anteriormente designado Instituto da Condio Feminina (ICF); o Plano Nacional para Equidade e Igualdade de Gnero (2005-2011)3;
e o Programa do Governo 2011-2016 para a VIII Legislatura4, o qual considera a
problemtica de gnero um dos 4 elementos nucleares do Programa.
No que tange sade das mulheres, os avanos sanitrios tm colaborado para as baixas taxas de mortalidade em todas as idades. O relatrio dos Objectivos do Milnio para o Desenvolvimento 2008 (ONU/Cabo Verde5) considera a mortalidade materna em Cabo Verde relativamente baixa, se comparada
aos demais pases da frica subsaariana. O ndice de mortalidade materna no
pas tem diminudo desde os anos 1990, sendo as principais causas de bitos
maternos eclampsia, hemorragia e gravidez extra-uterina.
Sobre a sade mental, inteno substancial do governo de Cabo Verde
que todos os portadores de distrbios mentais e neurolgicos sejam bem assistidos por especialistas e possam usufruir de tratamento especializado, com prioridade a estratgias de combate ao suicdio, dependncia txica, ao alcoolismo,
sendo os grupos principais as crianas e os adolescentes, os deficientes, as mulheres vtimas de violncia, os idosos e aqueles que vivem na linha de pobreza.
Segundo a ltima abordagem estatstica e o mais recente estudo epidemiolgico dos transtornos mentais (Ibidem, 2008), realizados em 1988 e 1989,
havia 4,3 portadores de distrbios mentais para cada 1000 habitantes. Em 2010,
as doenas mentais e de comportamento ocupavam o 10 lugar entre as causas
de morte. Para prestar atendimento a esses pacientes, esto em funcionamento o
Hospital Dr. Agostinho Neto, o Hospital Dr. Baptista de Sousa e alguns hospitais
regionais, como o da Ribeira Grande.
A fim de defender os direitos dos cabo-verdianos que apresentem limitaes na esfera da sade mental, tem origem, em 2001, a Associao de Promoo da Sade Mental (A PONTE), ONG que presta assistncia humanitria aos
doentes e s suas famlias.
No entanto, embora haja esforos, nem sempre estes se mostram suficientes. O nmero de portadores de transtornos mentais que perambulam pelas
ruas de Cabo Verde aumenta a cada ano devido insuficincia em termos de
profissionais qualificados e de espao nos hospitais. Carente de uma legislao
direcionada sade mental, Cabo Verde aprova, em fevereiro deste ano, a pro3 INE/ICIEG/ONU. Mulheres e Homens em Cabo Verde: fatos e nmeros 2008.Disponvel em: <http://
www.ine.cv/actualise/publicacao/files/15c06ce8-5166-4607-ab90-1e914bc4235aMulheres%20e%20Homens%20em%20Cabo%20Verde.pdf>. Acesso em 13 jun. 2013.
4 ______. Mulheres e Homens em Cabo Verde: fatos e nmeros 2012. Disponvel em: <http://www.ine.cv/
actualise/publicacao/files/1103929942013Mulheres%20e%20Homens%20em%20Cabo%20Verde.pd>.
Acesso em 17 jun. 2013.
5 Disponvel em:<http://www.un.cv/omd.php>. Acesso em 18 jun. 2013.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

posta de lei apresentada pelo governo, que estabelece os princpios gerais de sade mental e legitima o internamento obrigatrio dos portadores de transtornos
psquicos.
No campo cultural, evidencia-se em Cabo Verde o papel das mulheres
como transmissoras da sabedoria: elas intermediam, segundo GOMES (2008) as
tradies da comunidade, os costumes, as crenas, a msica (em especial, a morna, cuja principal expoente foi Cesria vora, a musa dos ps descalos, morta
em 2011), a culinria. Como os narradores de Benjamin6, os primeiros mestres
na arte de narrar, as cabo-verdianas prezam pela conservao do passado, ao
contar histrias para os filhos durante a noite.
A dana aparece como uma forma de emancipao ao possibilitar que
as mulheres se libertem da dominao masculina (no espao privado) e organizem-se a fim de partilhar as aflies do cotidiano (no espao pblico).
A revista Claridade, cujo surgimento se d em 1936, marca a constituio de um grupo que impacta o sistema literrio cabo-verdiano, a ponto de este
ser comumente periodizado em antes, durante e depois da Claridade. Preocupados com a realidade sociolgica das ilhas, os intelectuais Manuel Lopes,
Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa iniciam uma luta pela criao de uma
identidade cultural autnoma.
Embora tenha havido algum empenho em abordar questes femininas,
como o fez Baltasar Lopes no conto A Caderneta, em que relata o constrangimento sofrido por uma ex-lavadeira ao tentar ocultar do mdico sua atual situao de prostituta, o primeiro grupo claridoso foi liderado por homens e suas
publicaes eram quase que exclusivamente escritas por homens.
A literatura cabo-verdiana feita por mulheres surge ainda discreta com
a publicao da revista Mujer, incentivada pela OMCV que, entre os anos 1982
e 1984, edita 24 nmeros, incluindo assuntos concernentes ao universo feminino especfico (como amamentao, por exemplo), alm de pautas culturais e
polticas. Dentre as colaboradoras que produziram textos literrios figuravam
Vera Duarte, Lara Arajo (Madalena Tavares), Eunice Borges, Ivone Ramos e
Margarida Moreira.
A dificuldade de edio no pas, nos anos 1980, incita muitas escritoras
a produzirem para peridicos (GOMES, 2008), como o caso de Dina Salstio,
Manuela Fonseca, Ana Jlia, Alzira Pires, Helena Alhinho, dentre outras.
A antologia organizada por Jos Lus Hopffer Almada, Mirabilis de veias
6 Referimo-nos ao conceito de narrador abordado por Walter Benjamin, em seu ensaio O narrador.
Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura
e histria da cultura, 1994, p. 197-221.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ao sol (AAVV, 1991) divulga a poesia ps-colonial de Cabo Verde, trazendo a


pblico nomes novos como Paula Martins, Alzira Cabral, Arclia Barreto e Ana
Jlia e outros j conhecidos, como Dina Salstio, Vera Duarte.
Com o romance A louca de Serrano, publicado em 1998 e o primeiro
de autoria feminina em Cabo Verde, Dina Salstio conquista a promoo de
importantes rupturas na atual fico islenha, marcando assim, de forma assaz
singular, a literatura cabo-verdiana contempornea (ALMADA, 2007, p. 1).
A dedicatria no incio da obra Para Jlia, uma mulher louca que me
amou mal eu tinha vivido, essa loucura de no poder esquec-la (SALSTIO,
1998, p. 7) alerta o leitor sobre o tipo de histria que encontrar: a nada comum vivncia dos habitantes da enigmtica e louca Serrano, uma aldeia rural
esquecida da civilizao. Em entrevista a Genivaldo Rodrigues Sobrinho, concedida em 2009 a nosso pedido, a autora revela detalhes acerca da homenagem:
Jlia ... foi uma mulher louca, quer dizer, Jlia acompanhou um bocado da minha infncia durante uns 3 anos, meus primeiros 3 anos.
Quando eu nasci, a filha tinha morrido uns 15 dias antes, ento, ela
convenceu-se de que eu era a filha dela. Ento roubava-me. Como
eu era gmea com outro rapaz, eu tinha uma ama, tinha uma ama
s para mim. E essa mulher que era louca, acho que ela j era louca
antes de perder a filha e ela convenceu-se de que eu era a Anita. A
Anita era a filha dela. E carregava-me, roubava-me, depois voltava
comigo, levava-me ao cemitrio, quer dizer, ela fazia-me, fazia-me
no, fazia minha me a vida negra. Mas eu gostava muito dela [...]
(SALSTIO, 2009).

Serrano, a aldeia ficcional retratada no romance, configura-se como


zona de contato entre os espaos rural e urbano, suas culturas e seus discursos,
a partir dos relatos de vida de seus habitantes. Alm das pessoas que circulam
no cotidiano da aldeia, as presenas de Fernanda/Genoveva San Martin, de seus
colegas, e da equipe de reportagem de Slvio Luxemburg, ocupada com as notcias de que [...] brevemente um grande complexo industrial ia ser implantado
no local (SALSTIO, 1998, p. 78), tornam possvel a mescla de informaes
entre a populao local e o espao global, entre a tradio e a modernidade, aqui
representada pelas imagens eternizadas em fotos.
A indefinio do espao fsico em que se desenrola a ao concede ao
romance um carter ambguo, de estranhamento, prenunciado na caracterizao
da aldeia quase bela, quase mulher, quase homem (Ibidem, p. 15) , e refletida no teor narrativo, por vezes, cmico gritou para o homem mais gordo que
queria anotar todas as palavras, fungadelas e suspiros do seu capito (Ibidem,
p. 20) , por vezes, trgico, Gremiana, a moa que se revoltou contra a aldeia

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

e os seus costumes e tinha sido atirada s guas em dia claro que se fez escuro
(Ibidem, p. 72), e nas sucesses ora contnuas, ora descontnuas dos fatos, causando dvida a respeito do que real, cotidiano, e o que fantasia, imaginao,
loucura, remetendo-nos ao que Todorov (2007, p. 47-48) denomina tempo de
hesitao na literatura fantstica:
O fantstico, como vimos, dura apenas o tempo de uma hesitao:
hesitao comum ao leitor e personagem, que devem decidir se o
que percebem depende ou no da realidade, tal qual existe na opinio comum. No fim da histria, o leitor, quando no a personagem,
toma, contudo, uma deciso, opta por uma ou outra soluo, saindo,
desse modo, do fantstico.

O fantstico tambm se revela na demasiada preocupao com a quantificao e na medida exagerada da altura da porta fantstica da casa da parteira (3,99 metros). O nmero trs, por exemplo, aparece em vrias passagens do
livro (p. 14, 17, 18, 20, 22, 23, 24, 26, 48, 53, 86, 91, 93, 101, 104, 116, 151, 157,
166, 178, 190). Representao simblica da unio e da harmonia, o tringulo,
segundo Chevalier (2003) a primeira figura geomtrica produzida por linhas
retas, sendo um dos smbolos do sagrado. Ele denota as trs esferas csmicas,
planos inferior, material e superior, e as trs dimenses humanas, corpo, mente
e esprito. Da decorre a perfeio estabelecida com a triangulao entre as personagens Louca de Serrano, Fernanda/Genoveva e Filipa, cujo encontro, ao final
do romance, promove o fechamento cclico do tempo e da histria. Justificada
pela autora como forma de chamar a ateno do leitor para esta dimenso, a
altura da porta pode estar atrelada liberdade:
eu acho que o mundo tem que ir para a altura, para outros caminhos,
para outras aventuras. E a largura, quanto largura o (espao) que
est no cho, em que a gente no precisa muito para estar no cho,
a gente precisa muito para voar, mas pouco para estar no cho (SALSTIO, entrevista, 2009).

Liberdade que pretende ser alcanada por meio do discurso denunciativo, por vezes irnico, que percorre toda a obra e, em especial, as primeiras pginas, nas quais podemos conferir crticas ignorncia em relao s mulheres:
A jovem no teve direito a um tempo para dizer que no podia estar
grvida porque desconhecia macho na sua natureza, ignorante das
vezes em que algumas mulheres pelo mundo afora engravidam sem
terem sido tocadas por macho, acabando por se conformar com os
rtulos e rituais existentes para no incorrerem no desconforto incrdulo das demais criaturas (SALSTIO, 1998, p. 11).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

E tambm aos rituais


[...] as guas da grvida recusavam rebentar, apesar da papa que foi
obrigada a beber, feita com sangue de corvo e lama negra de uma
fonte muito conhecida, soluo segura para as situaes de mulheres
de guas preguiosas [...] (Ibidem, p. 11).

magia negra
Inconfidncias titubeadas por vozes coladas ao cho revelaram que a
parteira que por algum tempo trocava do ofcio de ajudar a dar luz
inocentes criaturas para ajudar rapazes a entrar com sabedoria no
mundo adulto, ou ainda se entregava a actos de expurgar de males
ruins a virilidade dos homens, pela certa, devia ter poderosas alianas com foras ocultas, tal o desfecho vitorioso de cada interveno
(Ibidem, p. 13-14).

e s diferenas socioculturais
O chefe deu ordem de retirada e decidiu que passasse a constar do
relatrio a ser apresentado superiormente que, da prxima vez que
voltassem quele fim de mundo, deveriam ser enquadrados por uma
proteo policial porque os selvagens no ofereciam confiana [...]
(Ibidem, p. 20).

Espcie de lugar-personagem, Serrano envolvida por uma atmosfera


de suspense e mistrio, principalmente em torno da gravidez de Fernanda
Quem seria o homem que tinha engravidado Fernanda? Que prazer teria ele
tido nos braos do pai de Filipa? (Ibidem, p. 100) , cujas decifraes a esse
respeito se realizam somente a nvel de seu objeto (BARTHES, 1976), com a
proposta exclusiva de reunir uma identidade fragmentada, de suscitar um nome
que no existe, neste caso, o do pai biolgico de Filipa.
Embora haja indicativos que conferem obra um carter universal:
Esta , sem dvida, a lembrana de um tempo sem nome e sem histria, como muitas que envolvem mulheres e homens em todas as
pocas e lugares e asfixiam de tanto encanto, ou geralmente, de tanta
impiedade (p. 26).

Simone Caputo Gomes (2000, p. 277) atenta-nos para a possibilidade de


Serrano representar Cabo Verde:

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Serrano, na pena, pincel ou cmera de Dina Salstio, uma povoao pequena, rural (de sol, chuva, sementeira, colheita), fronteira
de fronteiras, pedao de terra forte, de pele lamacenta e alma rochosa, batida pelo vento incansvel; de mulheres e crianas improvisando o batuque em latas velhas, onde uma cabra amamenta
o beb e algum se afoga em grogue, evoca-nos um cenrio j conhecido: Santo Anto e, por extenso, Cabo Verde.

Esse aspecto tambm evidenciado por Jorge Carlos Fonseca7, que qualifica os nomes das personagens Bia e Maninha como muito comuns e tpicos de
Cabo Verde, alm de citar a linguagem e a simbologia empregadas no encontro
entre Maninha e Jernimo, e as caractersticas do clima da aldeia:
Jernimo ter feito Maninha mulher na oficina do quintalo (haver cena mais pressentidamente cabo-verdiana?!) ou a descrio do
tempo da gente de Serrano: era o sol, a chuva, as sementeiras e as
colheitas ou qualquer outro que no viesse envolto em promessas
que no decifravam [...].

Em sua obra Questes de literatura e de esttica (2010), Mikhail Bakhtin denomina cronotopo (do grego, cronos: tempo; topos: lugar) a interligao das relaes espaciais e temporais na literatura e sua indissociabilidade, constituindo-se como
centro construtivo dos acontecimentos mais importantes do romance. O processo de
absoro do cronotopo do tempo, do espao e do indivduo histrico real que se
mostra neles contribui de modo substancial para que a narrativa adquira um carter
tangvel. Em A louca de Serrano, a indissociabilidade entre tempo e espao se d por
meio da interseco entre os espaos rural e urbano e da sequncia de estgios temporais (a maldio de Serrano, o nascimento de Filipa, as festas que comemoram o final
de 1994). So os espaos que mantm latentes as marcas do tempo passado no tempo
presente, graas memria.

A questo da nomeao, manifestada pelo episdio dos batismos da aldeia e da louca, merece um olhar mais atento. O batismo da aldeia, ordenado
pela louca (que empresta sua voz velha parteira), fator desencadeador de sua
prpria nomeao. Dadas as afinidades semnticas entre a aldeia e a louca, o
nome escolhido pela populao para esta Louca de Serrano, expresso metonmica que a identifica como parte (contedo) integrante do continente.
Carregar o nome da aldeia sem se sentir parte desta revelada no desejo
da Louca de encontrar seu lugar (SALSTIO, 1998, p. 33) representa a perda
de identidade, a mortificao do eu; significa receber um status natal que no
pertence ao eu (DERRIDA, 2002), mas ao objeto, ao outro.
7 A louca de Serrano: o percurso de um inesperado e ingnuo mergulho ou as loucas confisses de um
leitor. Disponvel em <home.no/caboverde/dinasalustio.doc>. Acesso em 09 jul. 2013.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

O romance nos traz histrias de mulheres que enfrentam as agruras do


destino reservado a elas. Mulheres como Filipa, que enxerga nos sete anos de
mudez uma forma de resistncia contra as adversidades da vida. O seu encontro
com a palavra se faz pela descoberta da liberdade.
Mulheres como Fernanda (ou Genoveva), que enfrenta os preconceitos
sociais e raciais, por eleger um homem negro e sem posses como seu companheiro:
Ter ainda lugar nestas pginas o registo de Filipa que, de acordo
com aquilo que a av materna contou para um advogado, carregava o nome como promessa feita pelo pai ao santo de sua devoo,
San Martin, numa manh que se prolongou por vrios dias de gritos,
confuso e incertezas sobre o sucesso de um parto dito prematuro.
Filipa, uma menina amarrada no silncio nos melhores anos de sua
infncia que, quando finalmente livre, no deixou que um dos seus
lados de mulher tivesse voz (Ibidem, p. 26).

Como Gremiana, que, no se conformando com a procriao, destino


reservado s mulheres, prefere a ausncia de filhos. Acaba sofrendo as consequncias por tal escolha. Sua voz tem como propsito o de expressar a loucura,
a face visvel da transgresso, a rebeldia e o inconformismo das mulheres que
habitam a narrativa:
As mulheres mais velhas lembravam ento que no meio das guas, a
morrer, debatendo-se entre a corrente e as pedras e sabendo que j
no podia ir a lugar nenhum de gente viva, Gremiana no suplicou, e
gritou e voltou a gritar que os homens de Serrano eram uns animais
hipcritas e covardes. Pedaos dos seus gritos berravam ainda que
ela no daria nunca ao Valentim o prazer de lhe salvar o seu orgulho
podre de homem a troco de ser coberta por macho que no desejasse(Ibidem, p. 73).

E como Maninha, que, por ser estril, carrega consigo as dores de pertencer a um mundo onde a fertilidade smbolo da imobilidade e normalidade
sociais:
Maninha consumia-se de inveja das companheiras que j tinham
crianas e iludia-se a olhar para o pequeno ba com as roupas do
beb, ao qual juntou um saco de plstico enorme e uma caixa de
papelo que dantes pertencera a uns sapatos [...]. Em todos aqueles
anos de esperana falhada qualquer tosto que juntava era para o
enxoval e nunca comprava um vestido ou uma saia para ela, porque
brevemente vou estar com barriga e nada me ir servir, sabe? e
continuava a sonhar, a modificar as roupas e a lavar mais uma fralda,

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

desencardindo-a do amarelo obsceno das marcas de um tempo sem


uso, antes de a arrumar de novo (Ibidem, p. 54-55).

A tradio aparece na figura da parteira (velha-velha), detentora do


saber e da transmisso deste; ela quem inicia os rapazes na vida sexual e age
como conselheira na cura de problemas com a libido:
[...] os braos e os dedos alongavam-se at entrar na carne e nos msculos, continuando pelo sangrento interno de cada homem que ela
amassava e moldava at que nas suas poderosas mos no sobrava
nada, nem mesmo sombra de ideia mal definida que inviabilizasse
a atividade sexual daquele que passara a soleira da sua porta de trs
metros e noventa e nove de altura por setenta e um centmetros de
largo [...] (Ibidem, p. 13).

As histrias de vida dessas mulheres so observadas pela Louca, protagonista do romance, destinada a infinitas reencarnaes e posta margem da
sociedade, por ser fruto de um incesto. Por visualizar na personagem atitudes
de grandeza, o narrador enaltece sua histria de vida, a fim de que o leitor se
solidarize com ela:
Encontram-se aqui, sem dvida, pedaos da vida da mulher que
baptizou Serrano, conhecedora de todos os segredos do vale, origem
desta breve narrao, [...]; uma jovem que no encontrou homem,
mulher, bandido ou animal que fosse, que a tivesse chamado filha,
que a tivesse feito mulher e por isso, para se vingar, amaldioava as
criaturas do lugar que, por cumplicidade, tinham torcido o seu destino e a conheciam por Louca de Serrano (Ibidem, p. 26).

Embora no tenha uma aparncia fsica determinada, nem se fixe a um


espao ou a um tempo real, aparecia no povoado por artes desconhecidas para
desaparecer do mundo visvel dos vivos quando completava os trinta e trs anos
[...]. Depois voltava a aparecer, filha de gente nenhuma, de lugar e tempo nenhuns, criana, mulher. (Ibidem, p. 26), a louca possui bem definida a idealizao de um mundo distinto daquele que a cerca. Para alcan-lo, d voz aos seus
ideais e grita, como o faz ao profetizar o fim apocalptico da aldeia num imenso
dilvio trazido pelas guas da barragem.
Este tipo de manifestao inslita concede loucura uma marca de animalidade, despojando a Louca do que nela podia haver de humano (FOUCAULT, 2008, p. 151), ao representar temor para a comunidade. Assemelha-se
s chamadas bruxas renascentistas do Malleus Maleficarum, constatando-se a
singularidade de sua condio.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Ao lado dela (e, por vezes, confundindo-se com ela) aparece Filipa, mulher contempornea, representante da gerao feminina dos San Martn. Dentro
do espao em que o iletramento prevalece, os excertos narrativos da vivncia entre Filipa e a Louca resgatam uma sabedoria outra, como nos mostra o episdio
em que elas se encontram junto fonte:
Um dia, junto da fonte, enquanto Filipa chorava a morte de um peixe, ela disse-lhe que a morte no d sofrimento e que a nica dor
algum viver a vida que no lhe foi destinada, como ela prpria vivia,
cumprindo a maldio que cara por si, quando um homem interrompeu o seu voo, ainda criatura no saco, em noite de Lua Nova, a
caminho de sua verdadeira casa. Na hora em que Filipa deixava a
aldeia, a jovem, parecendo mais atrapalhada do que nunca, disselhe que um dia seria feliz porque encontraria o seu lugar, apesar das
centenas de luas que haviam de passar e dos imensos obstculos que
teria de vencer antes de achar o seu poiso (SALSTIO, 1998, p. 33).

Dotada da capacidade de perceber a realidade, a Louca exerce a funo


de sbia, revelando aquilo que no pode ser dito, ainda que no tenha o poder da
enunciao, a exemplo do Prncipe Mchkin, de Dostoivski, cujo dom intuitivo
permite-lhe que enxergue a ndole das pessoas, mesmo em sua idiotice.
Assim como Jlia, a quem o romance dedicado, a Louca participa de
uma loucura livre, que escapa ao tratamento, psiquiatria, como tantas portadoras de transtornos mentais que vagueiam pelas ruas de Cabo Verde e do mundo.
Mas dentro do espao literrio, a loucura da protagonista, metfora da liberdade, aparece idealizada, revelando o desejo feminino em alcanar o inalcanvel,
em explorar o terreno recalcado da mente.
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Gnero e sexualidade em As memrias de um esprito, de Germano Almeida


Mailza R.T.Souza

Sabemos que o conceito de sexo traduz o conjunto de caractersticas


biolgicas que distingue homens e mulheres, distines consideradas universais.
J o conceito de gnero refere-se s representaes sociais em torno do sexo, e
estas esto fortemente arraigadas cultura de cada sociedade. Ancorada nessas diretrizes bsicas faremos a leitura do romance As memrias de um esprito
(2001), de Germano Almeida, ficcionista cabo-verdiano, cuja obra composta
por quinze ttulos: O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Arajo (1989), O
meu poeta (1992), O dia das calas roladas (1992), A ilha fantstica (1994), Os
dois irmos (1995), Estrias de dentro de casa (1996), A famlia Trago (1998), A
morte do meu poeta (1998), Estrias contadas (1999), Dona Pura e os camaradas
de abril (1999), As memrias de um esprito (2001), Cabo Verde, viagem pela histria das ilhas (2003), O mar na Lajinha (2004), Eva (2006) e A morte do ouvidor
(2010).
Germano Almeida, com sua perspiccia de advogado, sua paixo de cidado cabo-verdiano e sua mundividncia de cidado do mundo, d-nos uma
noo de aspectos culturais e identitrios, subjetivos e sociais, sexuais e polticos
dos cabo-verdianos dentro e fora do arquiplago, sem esquecer a crtica (s)
poltica(s) do seu pas. Somam-se a isto certas particularidades de cada ilha1,
em especial da Boa Vista, sua terra natal; tambm Santiago e So Vicente so espaos recorrentes em suas narrativas. H, ainda, episdios acontecidos na dispora, em especial, Portugal, palco de determinados acontecimentos histricos,
como a Revoluo dos Cravos e os movimentos pr-independncia.
O autor, em suas narrativas, representa literariamente os estilos de vida
da sociedade burguesa cabo-verdiana, permeando-as por vezes pelo humor, mas
sem perder de vista a crtica social. Para isso, ele traz para o espao literrio
temas assentes no cotidiano, destacando as relaes sociais de gnero, e ainda
estabelece um dilogo inter-obras por meio de personagens e de estrias entrecruzadas. So vrios os exemplos dessa estratgia, mas, neste estudo, o foco recai
sobre a personagem Alrio, advogado na novela In memoriam, do volume Estrias de dentro de casa, que reaparece no mesmo volume, em Os agravos de um
artista, e ainda nos romances O meu poeta, A morte do meu poeta e As memrias
de um esprito, como personagem-narrador.
1 Neste aspecto, vale consultar o volume Cabo Verde, viagem pela histria das ilhas (2003, p. 9), com
fotografias de Jos A. Salvador, que, conforme o autor faz questo de esclarecer na nota de apresentao:
no um guia turstico. Como o seu nome pretende, o livro o resultado de uma digresso por grande
parte do que ao longo dos anos se foi contando sobre Cabo Verde e sobre os cabo-verdianos. Porm,
importa desde j ressalvar: como em todas as viagens, nem o autor viu tudo que existe, nem vai poder
contar tudo que foi vendo.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Dentre as personagens e episdios que transitam entre as obras, podemos citar, na novela In memoriam, Fernando Macedo e seu suicdio, que a
m-lngua atribui ao peso dos cornos (ALMEIDA, 1998a, p. 18) e a esposa,
D. Rosalinda, atribui sua fraqueza, sendo que o partido nico, do qual fazia
parte, tenta transform-lo em uma espcie de mrtir do comunismo nacional.
No romance Eva esse episdio retomado.
Um outro caso o de Joo Nuno e a guerra travada entre sua empregada
Lusa e suas namoradas, na novela As mulheres do Joo Nuno. Muitas dessas
estrias so retomadas em As memrias de um esprito, pelo olhar de Alrio, o
defunto narrador. Essa intertextualidade, endmica obra almeidiana, exige
que o leitor fique em alerta e expectativa permanentes, pois, segundo Paula Gndara:
O retorno s mesmas estrias, histria e personagens impede a demolio de expectativas. O texto nunca chega a um final definitivo,
mas ressuscita e recria-se num novo texto. [...] No h singularidade
de funes nem aceitao da figura tradicional do narrador e do romance como gnero literrio. Transgridem-se modelos e autoridades e, mais uma vez se levanta a questo da fronteira (GNDARA,
2008, p. 90).

Em As memrias de um esprito, as fronteiras acima mencionadas referem-se aos sentidos interdependentes que emanam das narrativas, mas tambm
s fronteiras de gnero, pois, no velrio de Alrio, conforme vo chegando os veladores, na maioria mulheres, o morto relembra as prprias aventuras amorosas,
e tambm contar as de seus clientes e amigos, com mincias das suas relaes
ntimas com suas diversas mulheres, que acabam por remeter s relaes sociais
de gnero.
Essas micronarrativas que perfazem o romance tm como um dos temas o jogo em que caa e caador se confundem, assim como o dominado e o
dominador, pondo em xeque os papis sociais de gnero tradicionalmente estabelecidos, conforme podemos notar no excerto abaixo, que traz um dilogo
entre Alrio e uma de suas namoradas:
Ondina disse por fim, devagar, como se tivesse estado longamente
a meditar a afirmao: A mulher vai para a cama com o homem,
nunca o contrrio. Pode ser, concedi agastado, mas eu gosto mais
daquelas que me dizem que me possuem, no o contrrio, porque
para mim uma relao de pura igualdade em que inclusivamente
estou mais exposto, mais sujeito ao fracasso... Ela interrompeu-me,
porm, tapando a minha boca com a mo aberta: No achas estpido estarmos a falar assim como se estivssemos zangados um com

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

o outro?, perguntou, achas que vale a pena eu sair da minha casa,


deixar a minha famlia para vir estar contigo, e ficarmos como gato e
cachorro? (ALMEIDA, 2001, p. 187).

Este excerto emblemtico quanto s nuances dessas personagens mulheres, sedutoras, imprevisveis, misteriosas, ambguas, decididas, autoritrias e,
acima de tudo, livres dos papis e das convenes sociais, para viverem o seu
erotismo. Elas demonstram suas preferncias sexuais, suas fantasias erticas, e
as vivenciam, muitas vezes, com dissimulao, fingindo que acatam a ditadura
patriarcal. A concepo de mulher engendrada no sculo XX representa-a com
conscincia do prprio o corpo, no abrindo mo do prazer que este pode lhe
proporcionar; essa ideia de feminilidade trouxe diversas consequncias s relaes sociais de gnero, conforme atesta Rosiska Darcy de Oliveira:
As consequncias sociais e morais da prtica generalizada de contracepo vo introduzir no esprito feminino a mais subversiva das
convices: nosso corpo nos pertence. A libertao do prazer e do
desejo das mulheres constitui a grande ruptura na histria feminina,
abertura que vinha, mais ou menos imperceptivelmente, se preparando desde o sculo XVIII (OLIVEIRA, 1991, p. 42).

Na narrativa de Germano Almeida, Alrio era um advogado bem sucedido profissional e pessoalmente que, depois de vrias aventuras amorosas
e polticas, levava uma vida tranquila, conforme ele mesmo testemunha: mas
depois que abandonei a poltica e a m vida e comecei com Alda a viver uma
pacata existncia de pequeno burgus (ALMEIDA, 2001, p. 30). Podemos entender que esta personagem encaixa-se nos padres da masculinidade patriarcal hegemnica, caracterizada principalmente pela virilidade e a heterossexualidade um verdadeiro macho. Segundo Elisabeth Badinter (1993, p. 134), a
masculinidade medida pelo compasso do sucesso, do poder e da admirao
que provoca. Porm, a sua fala, no excerto anterior, d-nos indcios de uma
crise de masculinidade, visto que, momentos aps, reclama dos modos bruscos
da amante: queria encontrar muito depressa o meu corpo dhomem, e depois
agarrou-o com uma mo firme [...] ordenou-me que fechasse os olhos depressa,
que no olhasse para ela (ALMEIDA, 2001, p. 188-189).
Observemos que Ondina fere a sensibilidade de Alrio, criando uma situao em que normalmente esses papis so invertidos, pois ele se torna um
objeto de prazer para ela, uma aventura fora do casamento, na qual no havia
espao para o amor, mas somente para o sexo.
Conforme sabemos, os estudos de gnero devem ser pautados sempre
pela categoria relacional; logo, entendemos que, se houve transformaes nas fe-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

minilidades, consequentemente elas originaro novas formas de masculinidade.


Afirma Pierre Bourdieu que:
A virilidade, como se v, uma noo eminentemente relacional,
construda diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espcie de medo do feminino, e construda, primeiramente, dentro de si mesmo (BOURDIEU, 2012, p. 67).

Esse medo, de que nos fala Bourdieu, perceptvel no dilogo entre


Ondina e Alrio, j que, sendo este um homem esclarecido quanto s transformaes ocorridas nas relaes sociais de gnero, tenta disfarar o seu machismo
e insegurana, pois muitas mulheres se livraram das mordaas e no tm pudor
em denunciar as fraquezas masculinas que podem existir por trs da hipervirilidade. Afinal, se Alrio realmente acredita na igualdade das relaes de
gnero, por que se sente mais exposto e tenta explicar sua vulnerabilidade? Mais
do que isto, por que se sente mais sujeito ao fracasso e tenta justificar-se de
antemo? Certamente, porque tenta adequar-se a esse novo perfil feminino, buscando dentro de si mesmo um novo recorte da masculinidade: Numa inverso
total dos papis e das identidades tradicionais, ele possudo por ela, encarna
a sensibilidade feminina; ela o domador, o dominador indiferente (BADINTER, 1993, p. 132-133). Percebemos, ento, pelos fragmentos expostos, um dilogo coerente entre teoria de gnero e prtica, representado literariamente.
Assim como Ondina, h diversas outras personagens almeidianas que
do voz a essas novas feminilidades. Citemos, por exemplo, Rosalinda, da novela
In memoriam, de Estrias de dentro de casa, que tambm rompe com os valores
patriarcais, trai o marido e personifica a fora e a astcia da mulher. Observemos, no fragmento a seguir, seu discurso para convencer o marido do quanto ela
uma esposa fiel e honrada:
[...] uma mulher deve em todas as circunstncias, por mais adversas
que sejam, procurar a todo o preo manter bem alto o orgulho do seu
companheiro, especialmente em questes to delicadas como so as
desta natureza. Por mais verdade que seja, acrescentava, nunca uma
mulher deve confessar ao seu marido que esteve com outro homem,
porque, mais que todas as outras coisas da vida, isso algo que lhe
amachuca o orgulho de forma miservel. E no meu caso concreto,
conclua sorrindo, nem precisava mentir, pois sempre lhe fui o mais
fiel possvel (ALMEIDA, 1998a, p. 40).

Essa mulher, que sofrera muitas humilhaes do primeiro marido, de


quem ficara viva, liberta-se com o aval de Macedo, o segundo marido, que lhe
ensina que a fidelidade deve ser sempre uma opo e no uma imposio cul-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

tural e que diferena nunca deve significar desigualdade (Ibidem, p. 43). Embora ela proclame um discurso patriarcal, assume um comportamento totalmente
oposto, do qual o leitor toma conhecimento pela voz de Alrio que, em determinada ocasio, fora seu advogado, amigo e confidente.
Em As memrias de um esprito, a personagem aparece como D. Rosalinda, mais madura e ainda mais ousada, levando para o velrio de Alrio, a reboque [,] o seu Teodoro (ALMEIDA, 2001, p. 41), o terceiro marido, e fazendo
questo de banhar o defunto:
Rosalinda acabou por ficar sozinha dentro do quarto [...] Curioso
como no cheguei a dar conta de me terem despido. Ela molha um
pano branco e comea esfreg-lo carinhosamente sobre mim, primeiro a cara e o cabelo, depois o pescoo e o peito numa carcia lenta
e suave, quase lbrica. Hum, sorrio, se calhar fui nabo em nunca a
ter experimentado, pelos jeitos tm razo os que dizem que ela no
de forma destituda, bem capaz de ser uma boa fmea na cama
(ALMEIDA, 2001, p. 42).

Alrio, conforme j vimos, apresentava fortes caractersticas de um modelo de masculinidade hegemnica patriarcal, praticamente um sinnimo de
heterossexualidade, mas, segundo Connell (1997, p. 39-40) mesmo esse modelo passvel de transformaes, uma vez que, assim como as feminilidades, a
masculinidade plural; esta assertiva bastante evidenciada no discurso e nas
atitudes de Alrio que, apesar de assumir um comportamento donjuanesco, em
alguns momentos se sente vulnervel. Assim, apesar de um aparente machismo
ao se referir a Rosalinda se calhar fui nabo em nunca a ter experimentado [...]
bem capaz de ser uma boa fmea na cama , podemos entender que a vulnerabilidade de Alrio metafrica e ironicamente representada na cena do banho
e no fato de ter sido despido pelas amigas, no exatamente pela sua mulher e
nem por amigos.
Podemos ir ainda mais longe e pensar que essa cena alegoricamente nos
remete ao fim do patriarcado, pois, apesar de a personagem no ser exatamente
tradicionalista, suas nuances configuram visivelmente uma masculinidade hegemnica, a encarnao da virilidade, que acaba por se reduzir a um corpo inerte,
manipulado por vrias mulheres.
Sendo a ironia um dos traos marcantes das narrativas almeidianas, o
autor cria situaes inusitadas e constri um narrador minucioso que remete o
leitor visualizao das cenas, tamanhas as elaboraes imagticas, como, por
exemplo, no fragmento a seguir:
Eu sorrio de onde estou, o que mais faltava elas virem agora brigar-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

me depois de morto [...]. Mas parece que a pila est pouco preocupada com a lavagem porque Rosalinda larga-a e ela cai para o lado. Est
cansado, penso, desempenhou os seus deveres durante a vida, alis
foi a parte do meu corpo que mais trabalhou e tambm a que mais
cedo teve cabelos brancos. Descansa agora em paz, recomendo-lhe,
vais com a tranquilidade do dever bem cumprido, at que poderias
ter sido agraciado com um qualquer ttulo honorfico pelos abnegados servios prestados nobre causa da satisfao das necessidades
do mundo feminino (ALMEIDA, 2001, p. 48).

flagrante no discurso de Alrio o seu narcisismo e a ironia do autor,


que transforma em vulnerabilidade a sua virilidade, um dos traos mais marcantes das personalidades donjuanescas e, por sua vez, mais uma das fortes caractersticas do modelo masculino patriarcal de verdadeiro macho, para o qual
essencial a constante reafirmao da heterossexualidade, segundo Badinter:
verdade que, nos parmetros da masculinidade hegemnica os rgos sexuais so objeto de uma valorizao obsessiva. No espanta,
portanto, que o sexo pretenda resumir o gnero, ou at mesmo a
qualidade do ser inteiro. Ter ou no ter parece substituir o to be or
not to be (BADINTER, 1993, p. 138-139).

A supervalorizao do pnis estabelece relao com os modelos masculinos apresentados por Badinter (Ibidem, p. 133-189) que utiliza conceitos
de tipos de homem, definindo-os como o duro, o mole e o doce, traando, ou
tentando traar, uma trajetria de representaes masculinas patriarcais at as
novas masculinidades que surgem entre as demandas do feminismo da diferena que surgiu entre os anos 1970, final dos anos 1980, quando as mulheres se deram conta de que no era possvel reconstruir o feminino sem que o masculino
tambm fosse repensado (OLIVEIRA, 1991, p. 71-74).
Sob essa tica, Alrio apresenta nuances das trs tipificaes delineadas
por Badinter, pois, em suas reflexes, ele chega a sugerir um ttulo honorfico ao seu pnis, tornando-o metonmia de si mesmo; esse nvel de narcisismo
machista, que tende a promover uma hipervirilidade, articula-se ao conceito
de homem duro. J no seu dilogo com Ondina, percebemos traos do homem
mole, que vive uma desordem interna, quando expe sua insegurana companheira, cuja reao assemelha-se das mulheres que rejeitavam este modelo,
por consider-lo sucedneo do feminino tradicional; razo pela qual, por volta
de 1984, segundo Badinter (1993, p. 156), foi declarada a morte do homem mole,
cujo perfil era o oposto do duro, sendo a oposio a nica relao entre esses
dois tipos, resultando apenas uma inverso de papis e no chegando a haver,
efetivamente, uma reconciliao que resolvesse os conflitos internos masculinos

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Entre esses dois extremos, surge o homem doce, ou o homem reconciliado (BADINTER, 1993, p. 165), a partir de uma relao dialtica entre o duro
e o mole, por meio da rediscusso dos esteretipos femininos e masculinos, e,
desta forma, superando os conflitos internos e engendrando novas masculinidades. Tais tipificaes podem funcionar como balizas para refletirmos sobre os
processos de transformaes masculinas representados literariamente sem, contudo, consider-las estticas, visto que segundo Culler (2000, p. 110), as recentes
teorizaes sobre raa, gnero e sexualidade devem-se muito aos materiais fornecidos pela literatura, que problematiza questes polticas e sociais acerca da
construo da(s) identidade(s) que, nas teorizaes contemporneas, faz(em)
confluir pluralidade e dinmica.
Percebemos, no decorrer do romance, e na obra almeidiana de modo
geral, olhares diversificados sobre situaes comuns, conforme a tica das personagens que transitam entre a tradio e a modernidade, num contnuo processo de (des)construo das identidades e das relaes de gnero. Apesar do
alto grau de machismo, em algumas falas de Alrio percebemos uma certa gangorra em cujas extremidades, posicionam-se os sujeitos subalterno (a mulher, o
colonizado, o homossexual) e hegemnico (o homem, o colonizador, o heterossexual) que, ao se revezarem, colocam sob suspeita conceitos estticos sobre as
relaes sociais de gnero e mantm em trnsito feminilidades e masculinidades, rompendo, sobretudo, a passividade ertica da mulher na conjugalidade
(ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 34).
Ser que possvel, a partir da ruptura do papel tradicionalmente feminino no mbito privado, projetarem-se novas perspectivas nas relaes de
gnero no espao pblico?
Importante lembrar, aqui, que o pano de fundo das narrativas almeidianas
a sociedade cabo-verdiana, embora o autor opte por uma abordagem temtica que
no se restringe ao contexto de Cabo Verde, pois suas personagens figuram as diversas faces do ser humano e as ambientaes, s vezes, constroem-se na dispora.
Porm, importante considerar as reflexes de Antonio Candido quanto leitura
do texto literrio, uma vez que, para que esta seja realmente efetiva, preciso signific-la em seu contexto numa interpretao dialeticamente ntegra (CANDIDO,
2000, p. 6), que estabelea relaes entre o externo, o social, e o interno ao texto,
de modo que aquele desempenhe uma funo na constituio da estrutura textual.
Compartilhando dessa relao entre literatura e sociedade, de que nos
fala Candido, Cntia Schwantes (2002, p. 391) entende que:
[...] a literatura nos fornece sinais indiretos, muito mais do que diretos, sobre a sociedade na qual circulou, ou circula. A literatura no

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

nos diz como somos, mas sim, como pensamos que somos, como
desejamos ser, e no limite, como no somos.

Ao considerarmos as premissas acima, entendemos que a literatura pode


atuar como um agente transformador da sociedade. possvel percebermos essa
configurao social na obra de Germano Almeida, pois ele aborda a sexualidade
conectando-a ao componente social, histrico e cultural, estabelecendo, assim,
uma relao entre as esferas pblicas e privadas, j que cria situaes que demonstram a tendncia da sociedade em regular/vigiar a sexualidade do indivduo, como podemos observar no seguinte fragmento:
Pois , dizem, quando nova foi uma peste, andou com metade dos
homens desta cidade, e por isso agora mede toda a gente por si prpria. E contam coisas: Que tinha posto tantos cornos ao anterior
marido que o homem no suportou mais a afronta e acabou por se
matar (ALMEIDA, 2001, p. 41).

O trecho refere-se Rosalinda e ao suicdio de Fernando Macedo, seu


segundo marido; esse episdio, mencionado pelo narrador, sucedera ficcionalmente na novela In memoriam, do volume Estrias de dentro de casa. Pela forma como o autor constri as relaes sociais de gnero, em sua fico, possvel
entrever uma diversidade de comportamentos e perfis ideolgicos e psicolgicos
apresentados por meio de suas personagens, que representam modelos de feminilidades e de masculinidades plurais e variveis de acordo com o contexto.
Podemos considerar como um exemplo de feminilidade plural a personagem Aninhas Maria, que o narrador descreve em Memrias de um esprito da
seguinte maneira:
A Aninhas foi a primeira a chegar [...] Sempre tonta a pobre Aninhas!
Nos ltimos tempos deu-lhe para ficar beata [...] acabou tomando a
deciso de ser escrava do Romualdo Cruz que se diz escritor [...]
Logo a seguir ao 25 de abril de 1974, a Aninhas tinha vivido, isto ,
tinha sofrido um desesperado caso de amor pelo Natal [...] O pai
um homem spero e um tanto tirano pretendia ser descendente em
linha directa de um fidalgo portugus [...] Uma de suas infelicidades
mais notrias advinha do facto de ela no poder falar crioulo [...]
Assim, nada fazia prever que alguma vez ela pudesse vir a meter-se
nas lutas estudantis, tanto mais que no tempo do fascismo [...] No
entanto acabaria ficando entalada at ao pescoo nas confuses do
25 de abril [...] Aninhas acabaria por participar em todas as lutas
a favor da independncia das colnias [...] Aninhas com a cabea
repousada no ombro de Natal e em estado de perfeita beatitude [...]
Para o Natal o acontecido no foi mais do que a continuao da luta
em que se encontrava empenhado em prol da libertao dos povos

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

colonizados em geral e da mulher africana em particular. Aninhas,


porm, teve a infelicidade de ficar apaixonada pelo seu mentor (ALMEIDA, 2001, p. 24-28).

Embora a citao acima seja extensa, ela nos d indcios de que Aninhas
seja um modelo de feminilidade em trnsito. A propsito, o nome da personagem fortalece esta hiptese por apresentar o primeiro nome no plural e o segundo associado ao modelo patriarcal da mulher perfeita, Maria, a redentora de
todas as Evas. Esta personagem aparece pela primeira vez em Estrias de dentro
de casa (1996), na novela Agravos de um artista, como a suposta autora de uma
carta que o escritor, cujo nome no citado, responde; no entanto, h muitas
pistas de que este escritor, cuja estria retomada na crnica Os agravos de um
escritor, em Estrias contadas (1999), seja Romualdo.
Em Dona Pura e os camaradas de Abril (1999), retratada a fase revolucionria de Aninhas. Antes disso, porm, na novela Agravos de Um Artista,
como a suposta admiradora do Artista na longa missiva que ele escreve ela
apelidada Anuchas, Anicha, Anusquinha, Quiducha, reforando o modelo de
feminilidade plural e em trnsito, pois observemos que houve uma transformao da Aninhas Maria da obra de 1996 para a de 1999, em que ela acaba se
convertendo em revolucionria. Aps a decepo com Natal, modelo de masculinidade hegemnica, ela assume novamente uma postura passiva na obra de
2001, ao lado de Romualdo vulgo Caga-Vrgulas um pseudo-intelectual que,
embora se autoproclame o primeiro e nico escritor profissional de Cabo Verde,
descrito pelo narrador como um tonto que todos sabem que a mulher abandonou por imprestvel (ALMEIDA, 2001, p. 29).
Romualdo detm uma imagem distorcida de si mesmo, considerandose um exemplo de masculinidade hegemnica e Aninhas convence-se (ou tenta
convencer-se) de que ele realmente superior e sente-se honrada por servir um
homem que sabia que iria ficar na Histria da Literatura Cabo-verdiana como
um de seus maiores e mais afamados escritores (Ibidem, p. 29); no entanto,
Romualdo desmascarado pelo narrador, que nos mostra que ele se configura,
na lgica patriarcal, mais como um masculino subalterno, uma vez que no tem
autonomia financeira e nem afeito prtica sexual, ou seja, at mesmo o poder simblico que ele julga ter sobre Aninhas falso.
So muitas as personagens e estrias mencionadas pelo narrador de As
memrias de um esprito que do margem ao estudo das relaes sociais de gnero. A maioria dessas estrias tem intertexto com outras obras do autor, que
constri personagens masculinas que partem de modelos caricaturais como Romualdo a complexos como Alrio; as personagens femininas so, na maioria das
vezes, complexas como Rosalinda, a ex-mulher de Romualdo, Ondina e tantas
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

outras veladoras de Alrio, como Aninhas, que por trs de seu conformismo,
contentando-se em viver sombra de Romualdo, compensa sua frustrao na
comida, no obstante continue magra: devora tudo o que for comida que lhe
passe pela frente (Ibidem, p. 25).
As temticas da virgindade e do adultrio tambm so constantes nas
obras almeidianas. Em As memrias de um esprito, por exemplo, a maioria das
memrias de Alrio envolve o adultrio tanto feminino quanto masculino. Mas
sabemos que, na tica patriarcal, esse comportamento por parte dos homens
no condenado, pelo contrrio, motivo de orgulho e alarde; enquanto que
por parte da mulher alvo da m-lngua. Isto ressalta mais uma vez a desigualdade nas relaes sociais de gnero.
A virgindade tambm exigida da mulher; enquanto que, no homem,
louvada a experincia. E este raciocnio e prtica so transversais sociedade,
independentemente do status, do meio social (rural ou urbano), de fronteiras
geogrficas e temporais:
Ora temida pelo homem, ora desejada e at exigida, ela (a virgindade) apresenta-se como a forma mais acabada do mistrio feminino;
o aspecto mais inquietante deste e ao mesmo tempo o mais fascinante. [] o homem recusa ou reclama que a esposa lhe seja entregue
virgem (BEAUVOIR, 2009, p. 262).

Essas asseres de Simone de Beauvoir traduzem exatamente a centralidade da virgindade na cultura cabo-verdiana. Sobre esta questo, os comportamentos, papis e expectativas so claramente definidos. direito legtimo do homem que a esposa seja virgem, e a tradio reconhece-lhe o direito de devolver
a mulher como um objeto, caso seja defraudado. mulher cabe resguardar-se,
defender a sua virgindade, que representa a sua honra.
Quanto ao adultrio, Simone de Beauvoir acrescentava:
O adultrio reveste, alis, caracteres muito diferentes, segundo os
costumes e as circunstncias. A infidelidade conjugal apresenta-se,
ainda, na nossa civilizao, em que as tradies patriarcais sobrevivem, como mais grave para a mulher do que para o homem (BEAUVOIR, 2008, p. 360).

Enquanto a infidelidade feminina, no contexto androcntrico,


recusada, a infidelidade masculina aceite e tida como inerente condio do
homem. A forma como o homem cabo-verdiano e a tradio percebem o casamento e a infidelidade conjugal reconhecem aos dois sexos direitos diferentes

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Todavia, no universo cabo-verdiano retratado por Germano Almeida


em As memrias de um esprito, e em outras obras Meu poeta, Estrias de dentro
de casa, A morte do meu poeta, Dona Pura e os camaradas de abril, Eva e a Morte
do ouvidor esses (pr)conceitos so constantemente problematizados e apresentados em diferentes prismas, por meio de personagens diversas. Por isso, encontramos um variado leque de feminilidades: mulheres casadas e economicamente
dependentes dos maridos, mas que, para alm de controlar o ambiente domstico, movimentam-se habilmente no espao externo, mulheres que fazem questo
de manter o casamento, mesmo no tendo filhos, outras que exigem o divrcio.
Do mesmo modo, as masculinidades tambm so diversificadas, haja
vista que so representadas por personagens que consideram o prazer sexual um
privilgio apenas masculino; outros que se orgulham de proporcionar prazer s
suas parceiras; h, ainda, os machistas, contudo financeiramente dependentes de
suas mulheres. Alguns se dizem liberais, abertos, mas s at certo ponto, pois orgulham-se de estimular a inteligncia e aprendizagem das mulheres, ao mesmo
tempo que tm conscincia de que, com isto, fragilizam a sua posio.
A grande maioria das personagens femininas almeidianas administra
os conflitos da vida conjugal e extraconjugal. Nesse universo ficcional, elas vivenciam a sexualidade fora do casamento com grande naturalidade e destreza,
mas com alguma diferena com relao aos maridos, cuidando para que a honra
deles no seja manchada, porque as infidelidades masculina e feminina so encaradas pela sociedade de forma diferenciada. Por isso, nesse universo ficcional,
o poder da mulher e o seu controle nas situaes real, mas sutil, o domnio do
homem simblico e, por vezes, enganoso. Nas vrias situaes retratadas, o
homem cr que sai vencedor, mas, na realidade, a vitria soa equivocada, que s
existe na sua imaginao. Por isso as mulheres no se importam em ratificar esse
poder, porque sabem que, na prtica, o discurso est cada vez mais afastado da
realidade, por isso, no raramente, secretamente rotulam os homens de patetas, tontos, coitadinhos.
Portanto, podemos verificar que Germano Almeida constri um jogo
atravs do qual desenvolve um exerccio crtico que desmascara a hipocrisia do
sistema. Para isto, a estratgia de alocar as mesmas personagens em diferentes
obras muito eficiente, visto que reformula e atualiza constantemente os discursos e pontos de vista acerca de (pr)conceitos secularmente estabelecidos pelas
tradies patriarcais.
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Lendo o sentido de existir em Corao de lava, de Jos Luiz Tavares


Maria de Ftima Fernandes

Jos Luiz Tavares, pela representao esttica com que vem iluminando
a novssima literatura cabo-verdiana, assina um trabalho potico que vem reconfigurando o processo de afirmao identitria. o autor de Corao de lava
(2014), obra cuja leitura se partilha neste texto. Trata-se de um escritor caboverdiano do ontem recente, do agora presente, do aqui e da dispora, que, ao
lado de Corsino Fortes, Armnio Vieira, Joo Vrio, Mrio Fonseca, integra a
categoria de poetas que assinam uma produo literria de destaque no panorama literrio que j no se faz jovem e, por isso, vem servindo de mote a estudos
de interesse que marcam os percursos da literatura cabo-verdiana no que caracterizao da sua atualidade diz respeito. O autor assim se define:
Sou poeta e sou caboverdeano. O ser caboverdeano est subsumido
na condio de poeta. Clandestino na ditadura do mundo, como o
definiu Herberto Helder, o poeta nunca de um s lugar, de uma s
lngua, de uma s tradio. Hbrida e viajante a sua condio, e, no
meu caso pessoal, ainda mais, em decorrncia do ethos, das peculiaridades histricas e do longo afastamento do solo ptrio. [] Eu,
aprendiz da cincia da vertigem,/ pelo leve vnculo da cegueira/ que
deso aos pressagiados abismos (Entrevista a Maria Joo Cantinho,
in http://www.stormmagazine.com/novodb/arqmais.php?id=290&sec=&secn).

Com efeito, desde as primeiras publicaes poticas do autor, a demarcao acontece no sentido de uma busca e prtica de originalidade, no somente
pela tcnica e domnio versificatrio, mas igualmente pelo aturado trabalho que
circunstancialmente cada poema registra em temtica e verbalizao. O autor
coloca-se, em termos de afirmao da conscincia identitria que a sua obra
traduz, aparentemente margem do cnone, que ele prprio questiona no interior do texto, na vontade literria de pr em causa, ferir e questionar a pretensa
e instituda originalidade da expresso literria arrecadada pela produo que
prolifera no ambiente literrio cabo-verdiano. Como sustenta Bauman:
Em nosso mundo de individualizao em excesso, as identidades
so bnos ambguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e no
h como dizer quando um se transforma no outro. Na maior parte
do tempo, essas duas modalidades lquido-modernas de identidade
coabitam, mesmo que localizadas em diferentes nveis de conscincia. Num ambiente de vida lquido-moderno, as identidades talvez
sejam as encarnaes mais comuns, mais aguadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalncia. por isso, diria eu,
que esto firmemente assentadas no prprio cerne da ateno dos

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

indivduos lquido- modernos e colocadas no topo de seus debates


existenciais (BAUMAN, 2005, p. 38).

Assim, legitimando a manifestao diferente de um ser e sentir Cabo


Verde no espao universal, a produo literria deste autor situa-se, sem dvida,
neste momento paradigmtico em que a Literatura Cabo-verdiana protagoniza e
assume o livrar-se do fantasma operativo da cabo-verdianidade, processandose num horizonte muito mais alargado e no qual a intelectualidade revelada
no tanto pelo enfoque do imediato, como pela necessidade de reinterpretao
do real, que exige um exato distanciamento da realidade. Pode-se considerar que
neste contexto que se encaixa e se projeta uma obra como Corao de lava.
O autor Jos Luiz Tavares pertence nova gerao de escritores caboverdianos, embora assine uma produo fora do arquiplago, justificando, em
parte, a representao da dispora literria desse pas na atualidade. Destaca-se
com uma obra assinalvel, marcadamente sob a forma potica e com caractersticas relevantes para uma leitura correspondente ao crescente interesse em
torno da reconfigurao temtica e formal de que procuram dar conta nossas
reflexes. O apelo feito pela obra de Jos Luiz Tavares coincide com a projeo
da mesma, em representao de uma literatura que promove contedos pouco
explorados na Literatura Cabo-Verdiana, de um modo geral e na contempornea em particular, no que poderamos chamar de espao de erudio e dilogo
metapotico.
Focalizado num novo centramento esttico, potico e simblico, manifestando-se em contedos que desenvolvem uma atividade fundadora sistemtica, porm afastada da prtica do discurso do quotidiano, Jos Luiz Tavares pratica, no domnio da potica aliceradamente literria, o exerccio de construo
do pensamento e da reflexo sobre a memria. No caso em anlise, a vontade
de edificar um novo sistema de valores, no interior de uma ordem igualmente
nova, traz tona uma expressividade que nos impressiona, pelo movimento que
encerra, ora telrico (no sentido em que este reflete a mais profunda ligao do
homem terra), ora simblico (porquanto escapa a qualquer definio, rompe
com cnones estabelecidos, sugere em vez de fixar a palavra).
Corao de lava rene o conjunto de oitenta e oito poemas, que se segue
aos trs do Preldio, e centenas de fotografias que a dupla Jos Luiz Tavares/
Duarte Belo nos oferece em testemunho do encontro dos autores com o Fogo,
a ilha que constitui a marca indubitvel da nossa dimenso arquipelgica, no
fssemos produtos, vida e enigma da atividade vulcnica.
Nesta obra, o encontro com o Fogo no apenas o encontro com a ilha
e suas gentes, mas , sobretudo, a expresso da limitao humana face ao gigante

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Vulco (que lhe d vida), o reconhecimento da importncia das palavras para


descrever o que o poeta v, registrar como as pessoas vivem, relatar os estreitos
limites geogrficos de espaos delimitados pelas configuraes municipais, polticas e geogrficas. Tal expresso limitada reside no paradoxo de, apesar de tal
importncia, no princpio o verbo se fazer vida e luz, as palavras tambm serem
incapazes de exprimir todo o valor e as dimenses que esse referente encerra.
So do poeta as palavras que, em interlocuo com o gigante vulco, dizem:
Ergues-te, smile da firmeza,
barco no ar, boi de susto fungando
resduos que o mundo inquieto resume
numa s palavra devastao.
Mas uma memria propiciadora
essa que te mantm suspenso muito depois
do pavor deflagrado e da visita da amotinao,
quais pressgios que no carecem de decifrao,
porquanto aqui o reino das evidncias,
que todavia aguarda o resgate do olhar.
O pavor e o pnico no so o negcio
desta gente que no foge ao raso preldio
da lava, posto que guarda no melhor alforge
o arrojo que no desfalece diante do hausto
funesto, tal desforra divina.
Imperturbvel, porm, suporta o peso
da vida com a persistncia que diz bem
da sua peculiaridade, que tentamos medir
e compreender com a vara da nossa parca
sapincia, para melhor a louvar junto labareda imprescindvel, agora que a bruma antecipou
o regresso s chs onde meditmos toda a noite
nos alicerces da obra vindoura (TAVARES, 2014, p. 30).

O texto acima, em jeito de perscrutao e anlise, elabora o contraste


entre a dimenso fsica e morfolgica do monte-vulco-espao, na sua presena
de impondervel fora, grandeza e majestade, que contrasta com a pequenez dos
que buscam a vida, com resignao e coragem, no cenrio de devastao secularmente alimentado pela atividade do vulco.
O poeta observa e medita, enquanto as gentes suportam o peso da vida
com a persistncia em existir, louvando essa presena que a memria dos sculos
propicia. E, no entanto, as palavras parecem no poder traduzir o que implica
olhar a devastao, poder partilhar a coragem das gentes que se movimentam no
palco suspenso da evidncia de que a natureza mais forte do que cada um de
114

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ns e do que todos ns. A reside o inexplicvel, o indizvel, a revelao do encoberto, a magia, o mistrio carregado de equvocos, pois, como confirma o poeta:
[]
Decerto o que te aguarda
tem a estranheza dessa promessa
lida no negrume quando escavando
a paisagem ouviste a msica extrema
do enxofre refletida contra o negro vivo
acendendo as lmpadas do teu estro.
Tudo excessivo, irrefutvel.
O devir esconde-se sob a capa da solidez
e da impenetrabilidade. E a vertigem
estende sua ossatura com a evidncia
do que no posterga um instante
eternidade bulindo estes flancos (TAVARES, 2014, p. 38).

No ttulo desta obra, presentifica-se uma imagem cara aos decifradores de sentidos. O primeiro elemento, Corao, o rgo metfora de vida,
porque central do indivduo. Assim, ele efetivamente o centro vital do ser humano, tomado como smbolo por vrias das nossas civilizaes. O seu duplo
movimento (sstole e distole) f-lo igualmente smbolo do duplo movimento
de expanso e reabsoro do universo, logo, no poderia ser mais expressiva e
adequada esta centralidade que pode apontar para o centro da terra cada vez
que um vulco entra em erupo, e mais ainda se atentarmos ao movimento que
os poemas que compem Corao de lava fazem: a forma de se manifestar aos
homens, expelindo material devastador e, ao mesmo tempo, constituindo fonte
de riqueza mineral, aceitao da imponncia divina e esperana na renovao de
espao e vida, inexplicavelmente mtica. Nesta perspectiva, reside a o centro
da vida, da vontade e da inteligncia.
Se aceitarmos que o Vulco toma a forma de uma montanha, a esta se
associa uma simbologia rica e mltipla. No caso do vulco do Fogo, o protagonista desta epopeia em verso, a sua elevao aproxima-o do cu como nenhum
outro elemento terrestre em Cabo Verde. A ttulo de exemplo, entre outras leituras possveis, ele pode simbolizar o termo da ascenso humana, o encontro entre
a terra e o cu, morada dos deuses, possuindo portanto duplamente a dimenso
do humano e do sagrado. Se por um lado nos d a noo de estabilidade, pela
sua imponncia, por vezes at de pureza, a montanha-vulco tambm temvel,
quanto maior a sua elevao, maior a sua grandeza e verticalidade triangular,
maior a carga simblica.
Sendo um Corao de lava, os seus movimentos exercem um efeito

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

extraordinrio, singular, fabuloso sobre quem est prximo ou dele procura se


aproximar. Toda esta simbologia, neste livro, amplamente reforada pelas imagens que acompanham a fora das palavras:
[...]
trazendo o telrico estremecimento
ao ponto mais extremo das nossas vidas
e toda a fria assim desatada
(decerto durvel dbito ressoando
nos modelados meandros)
no fora a obstinada mo
caadora dos prodgios mais recnditos
seria apenas inocente sopro
duma rfaga primordial
que no mais dissesse quem tu s
hologrfica poeira onde fincasse os ps
para o salto e para o revs
sua sombra que escrevo
aspirando a tremenda matria
na idade vibrante em que as casas
ascendem de um cho de uvas negras
soprando para dentro dos coraes alvoraados [...] (TAVARES,
2014, p. 34).

O conjunto oferece aos leitores uma trajetria de busca de compreenso


da natureza pelo homem. Aliando a palavra imagem, o movimento natural do
verso (de ritmo sinuoso e sem mtrica fixa) ao movimento da natureza (desde o
rolar das pedras construo de casas e aldeias em terreno lvico), ajustando as
palavras entenda-se retrato, de vises e sensaes a uma objetiva atenta cor,
forma e textura, obtm-se na tessitura potica um movimento constante em
que a ausncia de rima suplantada pela magnificncia do olhar como se v, se
observa e se olha o espao, traduzindo assim uma simbiose perfeita entre a pena
e a cmera fotogrfica.
Numa espcie de centralidade que d protagonismo ao colosso da montanha viva emerge o dilogo silencioso entre o poeta, diminudo entre a grandeza dimensional de um vulco feito ilha, e a natureza:
Ergues-te da combusto, do caos primeiro,
paisagem a fazer-se ao arrepio da moldura,
e com que elctrica msica e as impurezas
de antes da cor, tomos apenas
no vcuo-memria alm de toda a usura (TAVARES, 2014, p. 30).

116

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Sem resposta verbal, o apelo se faz tentativa de libertao dessa eternidade passado, onde possvel descortinar as coordenadas da nossa existncia e
o sentido da orientao que busca enquanto se medita e se escreve. Ouamos:
Mas grita, homem, que o inverno uma memria
benigna, e a mo que persigna haste e alvor,
e louvor o gesto que resgata ao exlio e terra
quebrantada restitui o bulcio das estaes
inaugurais, o timbre e o sopro para invocar
o sagrado nome do fogo, ou a grande hossana
vida que h de nascer, porquanto cantaste
na infncia do poema (decerto com a dissonncia
que no ignora o lastro da dvida e a dvida
acumulados), as aflies substantivas (TAVARES, 2014, p. 25).

A potica de Jos Luiz Tavares exprime um desejo quase irreprimvel


de fruir e interdizer o lugar-comum, ora fazendo apelo seduo da escrita, ora
recorrendo a uma espcie de dialtica do aliciamento do leitor (seu interlocutor
visado), chamando-o a testemunhar suas inquietaes, por exemplo, o destino
do poeta/da poesia.
Com efeito, Tavares produz uma poesia que, aparentemente apegada a
referencialidades clssicas e ao exerccio em dilogo com os modelos ocidentais,
apresenta-se diversa e universal no modo como colhe da matria essencial e comum a todo o mortal, a saber, a palavra e a imaginao, os rudimentos para uma
elaborao de sentido, fazendo disso tudo seu assunto e sua forma.
Ao fim e ao cabo, a essncia da elaborao potica se aplica matria do
mundo, e da se releva uma justificao para o ttulo da obra. Mais do que isso,
quando se assiste ao interesse do sujeito pelo processo de criao artstica e a seu
desapego ao real, ao material, parece estarmos em presena de uma necessidade
de este ser de papel se movimentar no espao da escrita sem uma orientao e
destinos precisos. Da pontuarmos como adequado recorrer ao ensinamento de
douard Glissant (2005), quando, na sua potica da diversidade, explica do seguinte modo as noes de deriva e errncia, no mundo atual:
A errncia e a deriva so o apetite do mundo. Aquilo que nos leva
a traar caminhos pelo mundo. A deriva tambm uma disposio do sendo para todas as espcies de migraes possveis. []
a disponibilidade, a fragilidade, a obstinao pelo movimento []
E a errncia o que inclina o sendo a abandonar os pensamentos de
sistema em prol de pensamentos, no de explorao porque esse
termo tem uma conotao colonialista mas de investigao do
real, pensamentos de deslocamento, que tambm so pensamentos
de ambiguidade e de no-certeza. [] A errncia tem virtudes que

117

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

chamaria de totalidade: a vontade, o desejo, a paixo de conhecer


essa totalidade, o Todo-o-mundo. Mas comporta tambm virtudes
de preservao, no sentido de que no temos a inteno de conhecer
Todo-o-mundo para domin-lo, para dar-lhe um sentido nico. O
pensamento da errncia nos preserva dos pensamentos de sistema
(GLISSANT, 2005, p. 152-153).

Manifestando-se diversamente da maioria dos autores cabo-verdianos


contemporneos, Tavares absorve essa noo de deriva colocada por Glissant,
aqui entendida como um sentido desviante alimentado pelo movimento de procura contnua e permanente. Seus textos manifestam o movimento de retorno ao auto-questionamento do exerccio potico, buscando abarcar o universo
todo, ao mesmo tempo consciente dos efeitos de ambiguidade e incerteza. Desvio e errncia, na linha da colocao de douard Glissant, complementam-se
pela alternncia de um relativamente a outra.
Corao de lava um livro de sentires, de encantos e de partilhas.
De sentires porque, no fosse ele um poema contnuo, espcie de registro de emoes desmedidas, lavra em oficina potica a trajetria do gigante que
canta pela voz do fogo, do trovo, tal peregrino alevantado sobre os pinculos da
vida, o pavor do homem atrelado correnteza do mundo. Do sentir da natureza-me que se exprime irrompendo pela mansuetude imaculada e do sentir
destes homens que partilham conosco a sua forma de olhar o mundo. um livro
de desafios, de premonio e de registro. Coloca-nos perante o desafio de aceitar
a fora de vida e de morte, que encarnam os homens que vivem todos os dias a
ameaa da natureza.
E passam rentes, e seguem firmes,
na cabea o feno, na boca as rezas,
mas eu no sou anjo, nem penas tenho,
seno estas duras de ser-se homem, trpega
condio que na morte indiferente se limita.
E calam quedos tantos segredos,
que mal indago se evaporam,
que mal percebo se interrogam
se eu ou eles gado sem rumo (TAVARES, 2014, p. 78).

Da premonio em relao ao amanh incerto, possibilidade eminente


de que onde tudo comea reside igualmente o fim de tudo, pois
Agora canta a pedra que te entra pelos poros,
tu peregrino alevantado sobre os pinculos
da vida, vaga resgatada orla do olvido, onde vs

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

o futuro mar anterior ao dilvio, e onde a cinza


redemoinhando assinala a rota das grandes erupes
petrificando a casa na retina, essa humana memria
jazendo sombra do pico mais cimeiro (TAVARES, 2014, p. 25).

um livro de versos carregados de smbolos que parecem deixar a sua


forma original para falar ao ritmo natural da fala e da viso. Os autores deste
livro merecem o nosso reconhecimento pela forma como fazem o conjunto justificar a arte: permitimo-nos, no momento de leitura e apreciao, experimentar
sensaes vrias, que nos aproximam de quem responsvel pela oferta primeira, na descoberta das impresses que a leitura quase virgem lhes proporcionou.
sobretudo uma homenagem prola da nossa origem arquipelgica:
E assim dado ao corao da pedra,
concretude que o prprio ar solidifica,
deso das alturas de nvoa e seus
matizes encantados crosta ntima
da paisagem indelvel.
Valeu a pena a luz violenta
e acerada, a calma mineral respirada
nas poas sobreviventes, a sina de vaguear
na solido das chs, a dor de dar vida
ao que j era vida antes de mim,
pois do parto da intensidade aqui
se trata, e nenhum empenho demasiado,
nem nos transportes em que a natureza
impenetrvel se decompe em signos
legveis e seu eco mudando
com as sombras do crepsculo.
Relaes do visto, portanto, mas que releva
to do ntimo que foge ao princpio
da verosimilhana, entregando-se pura
magia onde audaz e definitiva a vida inteira
cisma, transmutada em cano de ser,
mo de amigo faz menos ngreme
a subida, no importa se em verso apenas,
na redoma do ar da sala, sobre esta quieta mesa,
companheira das maquinaes que fazem
transparente o que era opaco, e quando viste
vindo para a morte nas alturas quando o clculo
do futuro perfaz a soma exata e total (TAVARES, 2014, p. 207).

um exerccio de domnio da palavra, um convite ao prazer e deleite,


119

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

conhecimento ou descoberta de contedo original, do significado do verbum.


E refletir sobre uma obra literria viabiliza a ideia de que ler significa poder interpret-la, enquanto texto, sob um dado ponto de vista. Isso implica entender
como esse algum de talento especial escreve, para que possamos ler segundo o
seu ponto de vista. Precisamos identificar certos pontos, observar determinados
pormenores, escolher alguns lugares, personagens, referncias estratgicas a que
o autor deu significados, que ns mais ou menos acertadamente descodificamos,
sob os nossos pontos de vista. Por isso, Boff tem razo quando diz que ler significa reler e compreender, compreender para interpretar. E cada um l com os
olhos que tem (BOFF, 1997, p. 9). Mais apropriado ainda quando temos poesia
e imagem fotografada para apreciar, interpretar e partilhar.
O texto ainda marcado pelo intertexto, esse dilogo com outros textos,
outros autores, entre poetas. Assim, entre uma veia de Cames, um pulsar de
Pessoa, que inspiram Tavares, h momentos em que, ao ler os poemas, notamos
que a experincia da escrita e sua inteno potica ultrapassam a observao do
real, o espao acaba por constituir-se no palco de uma interrogao inquieta. O
sujeito que a se revela projeta-se num dilema aparentemente irresolvel entre o
Ser, isto , a essncia de se aceitar como Homem, e o Estar, ou melhor, o parecer
ajustado a contextos, significados e circunstncias impostas configurao de
um perfil identitrio que quer perguntar: Como possvel? O que fazemos aqui,
entre a lava de ontem e as rochas vulcnicas de hoje, entre o fogo que destri
tudo por onde passa e ao mesmo tempo alimenta o progresso das civilizaes? E
a resposta vem no texto:
[...]
Desorbitados, l vamos indo,
inda cativos deste dilema:
se se move o universo,
ou ns nele em concreto fluxo,
naves cingidas pelo negrume,
tal flor de fumo roendo os sonhos,
menos que coisa, bem mais que nada,
pois passam rentes seguindo firmes,
fazendo eco do gesto lmpido,
nutridos pasmos se arrolando,
se escoiceando
quando nem sede quanto somos (TAVARES, 2014, p. 78).

O significado de tal dilema ser o ponto de partida para a gerao de


novos significados do que o clssico Cames dizia e, num recuperar da osmose
cosmopolita, do que poeta Joo Vrio, com quem Jos Luiz Tavares partilha o
estar entre ns e o j ter partido, prope:
120

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

era a arte de saber o que mais doa


Joo Vrio
Tudo di nos olhos nesta hora crepuscular
---- o luto, a escassez, e a desforra
da abundncia; a solido rememorada,
esse torvo remoinho que lava bem
o lado essencial da indagao.
porque aqui tudo triunfante veemncia
ou calma reiterao, como esse grilo
no ouvido renovado o sentido da escuta,
juntas a recorrncia dos soluos ao porvir
da plenitude, que nenhum louvor
demasiado para a maravilha testemunhada,
ou para a harmonia que no carece de controvrsia.
e cogita-se ento que para proclamar a justa
grandeza j no bastam os trabalhos do olhar,
mas uma arte de msica, porquanto de celebrao
que aqui se trata, da metamorfose invisvel ,
embora um rasto de fulgurncia ateste o incio
avassalador, e tu sem palavras bastantes
para corroborar tal intensidade.
e tendo visto e dito, com a mente mais do que
com olhos e lngua, tudo cita a humana precariedade
irm contgua do fracasso, para retorquir ou aquiescer,
mas sempre com a vacilao do lado da exaltao,
porquanto no h fascnio que no reclame do seu
quinho de angstia como dbia reparao
pelo sacrlego dom de criar (TAVARES, 2014. p. 191).

E, da comunho e da ruptura discursiva, entre a prosa e a poesia, Corao de lava vai convidando o leitor a ingressar, imperceptivelmente, num mundo
de iluso que hoje certamente memria, patrimnio e identidade. Por isso, ele
escreve:
No sei se dormes de noite na selva
das palavras que te nomeiam, mais concreto
que o poema por escrever, aguardando apenas
o fermento conveniente, isto , os resduos
do mundo nas travessas da alma,
mas sob umas quantas estrelas
e seu brilho vivaz h a memria imperiosa
desse rosto navegando no mar da noite,
povoado de incndios e sensuais devaneios

121

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

que vo bem com este ereto retrato


que se divisa da ilha em frente (onde tambm
fui outrora infante) e avulta em tantas fotografias
em que densidade e volume sobressaem dos mil
matizes que a bruma oculta em certos dias.
Canto de soobro quando outubro essa
reiterada angstia corroendo o lado
mais verde da expectativa que no basta
para refutar o espigar da precaridade
estilhaando cada sonho desabrigado
nesta vastido aberta ao lamento brio,
indolente destreza dessas deusas de olhar
falcoeiro ao ritmo de um blues j cansado:
o vento abaula povoados, engole trilhos,
cospe bruma nas almas sem essa lisura
metafsica que apangio da arte,
de cuja cincia s o aprendiz secreto,
sentado sobre os subterrneos veios
que tecem esse alqumico desgnio,
pretexto equvoco para a queda entre,
a opacidade desmedida que no importa
transparncia que a maravilha preconiza.
Ah, homem que no sabes que calamidades
moram entre a comissura dos versos,
mas provas no pedes, pois tudo flutua
tona do xtase, e para a destrina
basta essa unha periclitante que se crava
na crosta dos segredos, e tal arte corrobora
a veracidade dessoutra que prescinde,
para se manifestar, da humana mo, essa que
testemunha o denodo, o fracasso e a plenitude (TAVARES, 2014, p.
80-81).

Pela experincia individual, a construo da identidade do sujeito processa-se na sua percepo do mundo e das coisas que o compem. O indivduo,
enquanto ator social, estabelece interaes com os outros e com uma memria
coletiva, num processo em que a manuteno destas identidades to ou mais
consistente quanto mais ricas forem as interaes por elas mantidas no processo
de compreenso de si prprias e de suas intervenes na realidade (HALBWACHS, 2009).
Assim, ficamos entre a escrita peregrina que se pensa e dialoga consigo,
que nos conta histrias, as mesmas com que se partilha algo de muito ajustado
ao dia de hoje, e a imagem lida; e parece que algum fala por Deus, quem fala no
texto um poeta que nos confessa os efeitos da poesia nas suas fraquezas ntimas
122

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

e eternas, que o tornam um ente especial desta e doutras esferas.


Recuperando mitos e referncias histricas e espaciais, noutro momento, deixa-nos sua percepo mais moderna da experincia de recriao permanente de espaos e entes que questionam o papel do homem intemporal, esse
que emerge num discurso e numa produo de tom inovador, num dizer construdo por um lxico audacioso, alegrico e de imagtica simblica, numa clara
agressividade verbalizada, em que a uma esttica do dizer se associa o imaginrio surrealista. Dupla funo, a do homem e a do poeta, referindo-se atividade
discursiva, potica ou no, exerce-se no registro de uma angstia ou do ldico da
criao e na abertura ao intemporal que ao mesmo tempo nos move e comove.
Referncias bibliogrficas
BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Ed Jorge Zahar, 2005.
BOFF, L. A guia e a galinha. 40. ed. Petrpolis: Vozes, 1997.
FERNANDES, M. de F. Um tringulo de pensamentos e percursos: a expresso metafrica dosentido de existir na Literatura Cabo-verdiana contempornea Joo Varela, Corsino Fortes e
Jos Lus Tavares. Tese Doutorado em Letras (Estudos Comparados de Litereraturas de Lngua
Portuguesa. So Paulo: Universidade de So Paulo, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, 2013. Orientadora: Simone Caputo Gomes.
HALBWACHS, M. A memria coletiva. So Paulo: Centauro Editora, 2009.
GLISSANT, . Introduo a uma potica da diversidade. Juiz de Fora: Universidade Federal de
Juiz de Fora, 2005.
TAVARES, J. L.; BELO, D. Corao de lava. Assomada: US Edies, 2014.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Claridade revista (2000-2013)


Norma Sueli Rosa Lima

Em 1994, tendo ingressado na primeira turma de Doutorado da Universidade Federal Fluminense o anteprojeto de pesquisa apresentado naquela
Instituio examinava as relaes entre as poesias brasileira (da fase modernista
em diante) e cabo-verdiana. Pretendia eu estabelecer dilogo com as ento ainda chamadas de emergentes Literaturas Africanas de Lngua (Expresso) Portuguesa com a pesquisa sobre Modernismo Brasileiro, Gnero e Etnia que vinha
desenvolvendo, desde a Iniciao Cientfica e tambm no Mestrado, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na ocasio, a Professora Doutora Simone Caputo Gomes, ento docente
da UFF, acolheu a pesquisa, que foi defendida em 29/02/2000. Quase vinte anos
aps tenho a oportunidade, a convite da mesma Professora Simone, j agora
na USP, de voltar ao tema, no apenas para relembr-lo, mas para realizar um
balano, ainda que sucinto, sobre o desenvolvimento destes dilogos (dos poetas da Revista Claridade (1936-1962) com os modernistas brasileiros e com as
geraes sucessoras do chamado grupo claridoso), no exame das propostas da
Revista em seu esforo de construir uma identidade crioula, questionadora do
panorama colonialista e ditatorial, daquela poca, em Cabo Verde.
O eixo central dos estudos compreendidos entre 1994-2000 pretendeu
examinar o processo intertextual entre as Literaturas de Brasil-Cabo Verde, privilegiando o dilogo potico. Naquele percurso, procuramos evidenciar o salto
qualitativo, em termos de produo escrita, que deixava para trs uma outra
de feio mais colonial , que o aparecimento de Claridade operou na Literatura do Arquiplago e as sementes que lanou ao longo da trajetria das geraes
posteriores, no contexto de um projeto mais amplo, o de construo identitria.
Ressaltamos ainda que o Brasil, mais especificamente o sentimento de brasilidade e a construo de uma literatura nacional, funcionaram como uma das foras
catalisadoras daquele salto.
A articulao entre contexto e textos produzidos, mesmo nas geraes
posteriores (reverberaes) foi outro aspecto considerado, haja vista que a Revista, publicada em 1936, foi o mais importante acontecimento literrio coletivo
do Arquiplago ocorrido no sculo XX, pois ao poeta Jorge Barbosa devem-se
os crditos de ter sido o primeiro autor individual a afirmar-se como produtor
de uma nova potica, fundando assim a esttica da modernidade literria caboverdiana, com a publicao do [livro] Arquiplago (SANTOS, 1989, p. 15).
Obviamente que examinar os elementos que antecederam e possibilitaram o surgimento desta Revista, implica tambm verificar o legado que a suce124

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

deu, em rupturas ou sucesses. Se os pr-claridosos Jos Lopes e Pedro Cardoso,


ao fraturarem a imagem de Ptria, no que denominamos cissiparidade ptrida,
lanaram as bases para que se pudesse discutir os conceitos do homem cabo-verdiano e da crioulidade com relativo afastamento da lusitanidade ao esboarem
a origem das ilhas como oriunda da Atlntida e no caso de Cardoso, com menes ao Egito em suas crnicas assinadas como Afro geraes subsequentes a
dos claridosos foram bastante marcadas pela ideia da recusa a uma anti-evaso,
para citar o clssico poema de Ovdio Martins.
Cardoso colaborou em vrios jornais cabo-verdianos e portugueses,
dentre outros, O Manduco, do qual foi fundador e autor da coluna A Manduco.... Percebemos a insero de uma imprensa cabo-verdiana tambm ativa
no aspecto das reivindicaes e crticas ao colonialismo, semelhana das j
bastante conhecidas e sempre citadas de Angola e Moambique. Recentemente,
esses textos foram recolhidos e organizados por Manuel Brito-Semedo e por
Joaquim Morais sob o ttulo Pedro Cardoso Textos Jornalsticos e Literrios
(Parte I), no ano de 2008, com prefcio de Isabel Lima Lobo, sendo separado por
duas sees: a primeira, com duas conferncias dele uma em defesa da lngua
cabo-verdiana, a outra no Dia de Cames, exaltando o pico, Portugal e a lngua
portuguesa; a segunda seo conta com 33 crnicas publicadas de 1911 a 1914
no jornal A Voz de Cabo Verde, para alm de fundamental ficha com a origem
dos textos (cf. RISO, 2010, p. 14).
Se superadas mgoas e crticas injustas (ainda feitas, entretanto, ao legado de Claridade e tambm aos chamados pr-claridosos), retomo meu objeto de
pesquisa com a perspectiva de revista, ou seja, de examinar o lugar da produo cabo-verdiana no sculo XXI. Passados treze anos, situar a cabo-verdianidade enquanto reconhecimento inclusive de uma identidade hbrida distanciada
da leitura desta fuso pela tica da assimilao, da influncia e mesmo de esteretipos mestios do sculo passado, implica apreender o caso cabo-verdiano na
esteira dos
refluxos que fazem valer territrios sem a coero hegemnica, sem
fronteiras rgidas, no apenas polticas, ligadas aos Estados nacionais, mas tambm analogamente fronteiras mais amplas, que se
configuram nos mltiplos campos da prxis social, que se reduziam
dicotomicamente, espartilhando a diversidade em dualismo estanques, como [...] o Bem e o Mal (ABDALA JR., 2004, p. 9).

E isso devido ao Arquiplago estar desabitado ou praticamente assim


e de ter sido povoado atravs da mistura de etnias, salvo as devidas diferenas,
como tambm ocorreu com o Brasil. A cabo-verdianidade assume, ao lado da
brasilidade investigada de modo mais crtico a partir do Modernismo Brasileiro,
125

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

feio de cultura hbrida, no sentido dos comunitarismos atentos, evidentemente, s armadilhas da globalizao neoliberal, que vinculam poder de Estado aos
das corporaes supranacionais.
Em termos culturais, diramos, como Glissant, que o mundo se
criouliza. Isto , torna-se cada vez mais mestio, mesclado, abrindose cada vez mais sem preconceito para a mistura, para a consolidao
das formulaes hbridas (Ibidem, p. 18).

Ao analisarmos a recepo da poesia modernista brasileira em Cabo


Verde, que procura ler o Brasil na perspectiva de uma cultura prpria, afastada
da matriz europeia e evidenciando todos os tons de pele e cores como encontramos nas pinturas de Tarsila Amaral, por exemplo, entenderemos esta
identificao entre as duas culturas marcadamente mestias, na concepo do
hibridismo como ameaa a autoridades (cultural e colonial), pois se a nao
brasileira j era independente de Portugal desde 1822, cem anos depois (por
ocasio da Semana de Arte Moderna) ainda discutia a sua identidade. Os motivos tnicos detectados nas obras poticas modernistas e tambm nas claridosas
subvertiam o conceito de origem ou identidade pura da autoridade dominante.
Lembramos que a mestiagem, construto efetivado em Cabo Verde nas dcadas
de 1930 a 1960, cedeu espao imagem da raa africana, em voga de 60 Independncia, dando lugar ideia de nao a partir de 1975, sendo produtos de prticas de grupos intelectuais que se definiram como escritores (do Seminrio So
Nicolau e da Claridade), combatentes e quadros. naturalizao da identidade
cabo-verdiana mestia, no resgate da africanidade do Arquiplago (associado
ao PAIGC), na dcada de 1990, em plena abertura democrtica, novamente se
institucionalizou como mestia. Bhabha adverte que essa identidade hbrida no
nem o Eu, nem o Outro:
[...] menos que um, e o dobro, provavelmente referindo-se s suas
caractersticas discursivas como parciais, mas reafirmando-as no
sentido bakhtiniano. Esses traos do hibridismo fazem com que este
transgrida todo o projeto do discurso dominante e exija o reconhecimento da diferena, questionando e deslocando o valor do smbolo
para o sinal do discurso autoritrio (MABORDI, online).

Neste ponto, vale a pena retomarmos o papel que a antropofagia do brasileiro Oswald de Andrade representou, at mesmo para absolver de certas crticas o procedimento do grupo claridoso, que no se alinhou com a luta poltica
que faz da produo literria um instrumento de guerra, at porque um partido
poltico em Cabo Verde (o PAIGC) s se fundaria em 1956. A sua batalha foi
mais cultural do que poltica, centrando-se na luta pela legtima expresso ca126

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

bo-verdiana. Baltasar Lopes, por exemplo, ao rebater vrias chamou a ateno


para a subverso que havia, em plena era da censura, na simbiose lingustica do
portugus com o crioulo, realizada pelos integrantes da Revista. Esta era uma
proposta de linguagem cabo-verdiana, e no simplesmente o enxerto de algumas palavras do crioulo no portugus. Plantava-se a independncia cultural na
reconstituio da linguagem popular. Tal transformao tambm se deu no Modernismo Brasileiro, atravs de uma antropofagia lingustica da fala coloquial
que previa, por exemplo, a colocao dos pronomes oblquos no incio da orao
ou do verso, como o quis Oswald de Andrade em Pronominais, poema com o
qual Jorge Barbosa tambm dialogou no famoso Voc, Brasil:
Havia de falar como Voc
Com um i no si
si faz favor
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
mi d um cigarro! (BARBOSA, 2002, p. 135)

interessante notar que o ltimo verso da citao, retirado de Pronominais, no corresponde ao original Me d um cigarro!, ou seja, o eu-lrico
transformou o pronome oblquo original me em mi, deglutindo-o e transformando-o em algo novo no discurso cabo-verdiano.
Desde a dcada de 1990, tericos, como Boaventura de Sousa Santos (1992) tm chamado a ateno para o fato de as identidades culturais no
poderem ser caracterizadas como rgidas ou imutveis, sendo resultados, transitrios e fugazes, de processos de identificao, pois mesmo aqueles aparentemente mais slidos como a de homem, mulher, pas africano, pas latino-americano ou pas europeu, escondem negociaes de sentido, jogos de polissemia,
choques de temporalidades em constante processo de transformao, responsveis em ltima instncia pela sucesso de configuraes hermenuticas que de
poca para poca do corpo e vida a tais identidades que se caracterizam, pois,
como identificaes em curso.
Bebendo de uma matriz semiperifrica, Cabo Verde se voltou, em um
primeiro momento para o Brasil, perifrico como ele, e, posteriormente, para si
mesmo, problematizando a sua questo identitria j por ocasio da poca de
Claridade, debate o qual a publicao nunca abandonou, como nos mostrou o
nmero especial da Revista Pr-Textos (1994) dedicado ao I Encontro de escritores cabo-verdianos, que na voz dos mais prestigiados representantes da literatura
do arquiplago, forneceu-nos importantes subsdios para discusso do que ser
cabo-verdiano face ao tringulo africano, portugus, mestio, isto , frica, Portugal, Brasil.

127

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Observe-se que a afirmao ganha mais sentido quando lembramos


que, em Cabo Verde, a colonizao revestiu-se, a princpio, de uma caracterstica anmala: nem as foras de ocupao europeia, nem os africanos submetidos a
ela eram oriundos do pas. Os escravizados africanos de etnias diversas trazidos
( fora) para as ilhas, perderam a coeso que encontravam no mbito de sua
tribo. Ademais, o fato de haver poucos brancos europeus e reduzido nmero de
mulheres europeias provocou a miscigenao em Santiago e Fogo, nos primrdios da colonizao, e a ascenso do mestio nas primeiras ilhas habitadas (e a
propagao do processo), gerou a interpenetrao das culturas.
Dependendo de como se situe em face deste tringulo, a definio da
cabo-verdianidade opta pela mestiagem ou sntese original, como querem Manuel Ferreira, Gabriel Mariano, Teixeira de Sousa, Dulce Almada Duarte, entre
outros, com base na africanizao do europeu ou no processo de crioulizao:
Mrio Fonseca, por exemplo, propugna a africanidade do cabo-verdiano, e alguns escritores chegam a explorar o filo da negritude, como Aguinaldo Fonseca, Kaoberdiano Dambar e Manuel Duarte.
Analisando a questo pela tica histrica percebemos que a descontinuidade territorial do pas contribuiu, em grande parte, para que o tempo histrico
nas ilhas se diferenciasse e que diversos tipos de colonizao nelas se exercessem. Santiago, por exemplo (e no por acaso considerada a mais africana delas),
teve um passado escravizado de quatro sculos e So Vicente mal conheceu a
escravido. As memrias coletivas de ambas divergiram na ilha de So Vicente
o episdio mais marcante foi a implantao dos ingleses no Mindelo como
tambm se diferenciou a apreenso da Histria da colonizao. Desta forma, um
grau maior ou menor de aculturao vai, consequentemente, provocar uma mudana substancial da alienao das populaes quanto ao componente africano
da cabo-verdianidade.
Procurando acompanhar o desenrolar complexo do processo identitrio, Manuel Veiga (1994), associou-o emergncia e afirmao da crioulidade,
e enfatizou o percurso mais a partir do ponto de vista antropolgico do que
do poltico, muito mais do que a essncia, destacou que o incio da crioulidade
ocorreu h cinco sculos, com escravizados, aventureiros e capites-mores, seguindo-se a ele o perodo nativista, com a entrada em vigor do Regime Republicano em Portugal (1910). O fomento educao teve papel decisivo para o
sentimento nativista, em especial a existncia do Seminrio-Liceu de S. Nicolau,
pelo qual passaram Pedro Cardoso, Jos Lopes, Baltasar Lopes, Antnio Aurlio Gonalves, entre outros. Gomes dos Anjos apontou, ainda, em consonncia
com propostas de Gabriel Mariano (1991), que at a primeira metade do sculo
o mestio cabo-verdiano percorreu uma trajetria ascensional que vai do negro

128

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ao branco, rumo conquista das posies mais prestigiadas na estrutura social.


Acrescentou que esta definio da mestiagem tinha como intuito resgatar um
tratamento diferenciado para o ilhu, face aos outros povos colonizados pelo
portugus.
A narrativa do processo de mestiagem, elaborada pelas elites caboverdianas, teve um grande poder retrico no sentido de demarcar e manter
fronteiras entre a comunidade imaginada Cabo Verde e as referncias de contraposio: a frica e Portugal. Processo que se propagou a partir das imagens
engendradas por uma intelectualidade, tomou carter geral, numa poltica de
naturalizao que vai do fentipo lngua, culinria, msica e s formas de
convvio, entre outras manifestaes.
Segundo Simone Caputo Gomes (1993), a inteno do grupo claridoso
pode ser definida como um mergulho nas razes locais, uma redescoberta das
razes, passvel de equivalncia fase de negritude proposta por Mrio de Andrade para as outras colnias africanas de lngua portuguesa em uma fase em
que se afirmam as suas matrizes culturais (africanas ou mestias). Por esta via,
de opo por um modelo cultural estrangeiro o brasileiro contra o modelo
cultural imposto, nasce uma literatura autnoma; as certezas sistemticas de outras latitudes, como queria Baltasar Lopes, fornecem uma chave para a leitura
inaugural e autntica do mundo ilhu.
Se adotarmos um dos postulados desenvolvidos em Manifesto Antropfago (devorar o recebido, selecionar o que interessa), adaptando-o dinmica da
leitura que os cabo-verdianos realizaram das obras modernistas, perceberemos
que a moderna literatura cabo-verdiana a claridosa trouxe para o ambiente
crioulo a riqueza das vozes brasileiras, em coro polifnico e permevel. Obviamente, a antropofagia de Oswald de Andrade metafrica, indicativa de a edificao da cultura brasileira ter-se construdo atravs de um processo violento:
barbrie nativa que se apropria dos elementos selecionados da cultura alheia. Tal
ato reveste-se de violncia porque no mediado por nenhum aparato cultural
anterior, mas apropriado e incorporado de maneira que se deixou mesclar, sob a
gide de uma suposta cultura nacional:
S me interessa o que no meu. Lei do Homem. Lei do Antropfago.
[...]
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermevel entre o mundo interior e o mundo exterior. A reao informar.
[...]
Queremos a Revoluo Caraba. Maior que a Revoluo Francesa. A
unificao de todas as revoltas eficazes na direo do homem. Sem
ns a Europa no teria a sua

129

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

pobre Declarao dos direitos do homem.


[...]
Nunca fomos catequizados. Vivemos atravs de um direito sonmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia.
Ou em Belm do Par (ANDRADE, 1985, p. 353).

A violncia proposta por Oswald estabeleceu uma nova leitura do gnero nacional, deslocando para ns um centro que nunca fomos, ao mesmo tempo que nos confere a conscincia de margem. A cultura brasileira ocuparia um
entrelugar, no meio da barbrie nativa e da civilizao europeia. A construo
do mito do matriarcado de Pindorama garante este deslocamento consciente
que trai o nacionalismo ufanista dos primeiros anos da Repblica e as propostas
cientificistas da Antropologia positivista.
Retomando as ideias de Boaventura de Sousa Santos, vejamos como ele
formulou uma reflexo, a partir do pensamento de Oswald, para as culturas de
lngua portuguesa: Santos indicou que a reflexo de Oswald a nica capaz de
explicar as especificidades dessas culturas, na medida em que, por um lado, reconhece a posio nuclear da metrpole lusitana entre as suas colnias e por um
outro, sua posio perifrica em relao as potncias europeias. Centro para as
suas periferias (as colnias), periferia para o centro poltico econmico- internacional. Assim, Portugal desempenharia esse duplo papel que viria a descaracterizar a originalidade de sua cultura: para Boaventura, no existe uma cultura
portuguesa, mas uma forma cultural portuguesa, o estar na fronteira; ao mesmo
tempo que absorve os traos da cultura europeia e os transmite s suas colnias,
nelas se amalgama e passa a receber o rtulo de cultura extica para as potncias
centrais. O homem portugus o civilizado diante do seu colonizado, ao mesmo
tempo que o brbaro para o civilizado europeu:
Andrade prope-nos um comeo que, em vez de excluir, devora canibalisticamente o tempo que o precede, seja ele o tempo falsamente
primordial do nativismo, seja ele o tempo falsamente universal do
eurocentrismo. Esta voracidade inicial e inicitica funda um novo e
mais amplo horizonte de reflexividade, de diversidade e de dilogo
donde possvel ver a diferena abissal entre a macumba para turistas e a tolerncia racial. Acima de tudo, Oswald de Andrade sabe que
a nica verdadeira descoberta a autodescoberta e que esta implica
presentificar o outro e conhecer a posio de poder a partir do qual
possvel a apropriao selectiva e transformadora dele (SANTOS, 1992,
p. 120).

No sentido oswaldiano, a cultura cabo-verdiana tambm antropfaga,


capaz de subverter a ordem das supostas influncias dos discursos que receberia. Constituindo-se como mestia, resultado do contato de diversos grupos que
130

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

foram colonizar e povoar o Arquiplago, Cabo Verde, nao (hoje) reconhecida


como multicultural , certamente, uma cultura antropfaga, como j percebemos
desde a eleio do mito hesperitano pelos pr-claridosos. A cultura cabo-verdiana se constitui nesta fronteira, como prope Boaventura de Sousa Santos, levando-se em conta, principalmente, que, enquanto no Brasil o portugus encontrou
o nativo capaz de inici-lo nos mistrios da terra, no povoamento do Arquiplago, tanto os portugueses quanto os africanos levados para l tiveram que lidar
com adversidades geogrficas, numa relao peculiar de fronteiras. A fronteira
cultural, em Cabo Verde, constituiu-se atravs da relao do colonizador portugus branco com os povos escravizados e, ao invs de supor uma linha imaginria
que separaria a cultura da barbrie, acabou por se tornar fronteira de fronteira:
A zona fronteiria uma zona hbrida, bablica, onde os contactos
se pulverizam e se ordenam segundo microhierarquias pouco susceptveis de globalizao. Em tal zona, so imensas as possibilidades
de identificao de criao cultural, todos igualmente superficiais e
igualmente subvertveis. Deste modo, a forma cultural de fronteira
alimenta-se de fluxos constantes, que a atravessam como os ventos
uma porta de vai-e-vem, nunca escancarada, nunca fechada (Ibidem, p. 134).

Contemporaneamente, alguns autores se recusam a estratificar a Literatura Cabo-verdiana nos perodos pr-claridoso e ps, como Filinto Elsio, que a
situa como no claridosa, chamando a ateno para que os pesquisadores tambm considerem os autores novos ou pouco estudados (tanto pela Academia,
como pela Fortuna Crtica), mudando assim
um certo olhar que insiste no exotismo e no folclorismos para com
a escritas dos nossos homens grandes, como [...] Pedro Cardoso,
Baltasar Lopes, Jorge Barbosa [...] E ser com esta nova gente que
nos alinhamos na nova frica, na renascena de uma Africanidade diferente, outra e emancipada, que no tem pejos, nem esteios
de colonizados, nem complexos encravados de identidade; ser com
esta gente de liberto pensamento e de discurso livre, enquanto frica mltipla e plural, ao tempo que assume suas especificidades, que
nos assumimos, transculturais e mestios, prontos para a intermediao do dilogo entre todos os mundos, inclusive com aquele que
tambm nos de pertena, que o da Cultura de matriz Ocidental,
pela sua vertente tambm da lusofonia, ptria maior de Fernando
Pessoa e de todos ns poetas que inquilinos tambm desta lngua
que transcende. Espero ter entrado na essncia da questo, com a antropofagia que me move, enquanto ser cultural dos mundos, ou bem
no diapaso do poeta Manoel de Barros, um dos expoentes que me
ilumina, em como Para entrar em estado de rvore preciso partir
de um torpor animal de lagarto (ELSIO, 2011).

131

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Naturalmente que a reivindicao de Filinto no vai de encontro ao que


nos propomos aqui: mostrar uma frica mltipla e plural, sem fronteiras, e que
sendo matriz da prpria humanidade, acolhe tambm temas de dispora, de outros lugares, de utopias, como a prpria Pasrgada, leit-motiv retirado do poema
do brasileiro modernista Manuel Bandeira Vou-me embora para Pasrgada e
presente na recente edio de Cabo Verde: antologia de poesia contempornea,
publicada em 2011, na qual o poeta Nz dy SantYgu publicou Na morte de
Baltasar Lopes da Silva (que tambm o poeta Osvaldo Alcntara), retomando o
mote do Itinerrio de Pasrgada, de Alcntara, e nitidamente dialogando com
as cinco poesias Passaporte para Pasrgada, Saudade de Pasrgada, Balada dos
companheiros para Pasrgada, Dos humildes o reino de Pasrgada e Evangelho
segundo o rei de Pasrgada, ainda sob a inspirao do evasionismo com fuga
para os problemas sociais do arquiplago
Sinto-me s.
Sinto saudades dos meus companheiros.
Os meus companheiros trilham os caminhos da terra-longe.
Da terra-longe ou da pasrgada. [...]
Expectante sobrevivendo na faminta saudade da ilha. O exlio. A anti
-pasrgada. O enterro do corpo na sepultura do mar e da viagem. A
busca do possvel paraso no lugar sagrado da utopia.
Recoberto do halo do regresso mi-ptria.
Saudade: a antiga e longa aurola de cristo. A permanncia do arquiplago.
Da dispora lacrimejarei saudades navegantes dos meus conterrneos.
Meus contemporneos.
Meus companheiros.
Resguardados sob a sombra das accias e dos arranha-cus.
Distantes da antiga inpcia da pedra (SantYgu, Nz dy. In: RISO,
online).

A crtica que os claridosos sofreram, por uma produo no engajada,


e que continua presente, por vezes injusta e deixa de mostrar o legado de sua
contribuio anacrnica para o que, diacronicamente, a sucedeu, inclusive no
enfrentamento de uma identidade mestia em tempos de indigenato, ditadura,
colonizao e pouco interesse da metrpole em difundir cultura no Arquiplago. Era para a Claridade ter sido panfletria? Jorge Barbosa, em 1966, teve o
poema abaixo publicado na revista frica 2, em 1966. No calor das cobranas,
da luta armada, o poeta realiza reflexo grave. Entretanto, podemos atualmente
perceber que os claridosos no podem ser, simplisticamente, considerados como
promotores, arreigados nos esteretipos sociopolticos do grupo dominante
e tomando parte ativa na luta por perpetuao das estruturas de dominao
(FERNANDES, 2002, p. 79) por no terem sido panfletrios das diretrizes de
132

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

um modelo comunista que j, naquela altura, direcionava as lutas de guerrilha,


pois, como vimos na nossa pesquisa, a busca pela identidade cabo-verdiana, ou
a expresso primeira da cabo-verdianidade, deve-se a eles.
Panfletrio
[...]
Era para eu
ser panfletrio.
Escreveria
panfletos
stiras
libelos
seria
o inimigo
o subversivo
o foragido
o perseguido
o rprobro
conheceria
tribunais
esconderijos
crceres
sentiria
a fome e o cansao
teria no corpo
a tatuagem marcada
das torturas policiais
(BARBOSA, 2002, p. 145-147).

Na tese que defendi em 2000, afirmei e agora reafirmo, que o verso


Vou-me embora foi interpretado de forma errnea, porque atravs de leitura
somente do que representava em Portugal, e no no contexto brasileiro, que o
da poesia de Bandeira e o do dilogo entre Osvaldo Alcntara e o modernista.
No contexto em que originou-se, significava partida, porm no caso
brasileiro, segundo pesquisa de Mrio de Andrade e de Srgio Buarque de Holanda, o vou-me-emborismo popular e nacional estava presente nos versos de
Pasrgada, fazendo referncia a nossa literatura folclrica (de base oral). Assim,
ele deve ser lido enquanto expresso antes como um ato de conquista e
de superao, do que como propriamente de abdicao diante da vida (HOLANDA apud BRAYNER, 1980, p. 150, grifos nossos). Mrio de Andrade verificou como o vou-me embora frequentou muito mais a quadra brasileira que a
portuguesa, aqui com um sentido menos carregado de saudosismo:
Incapazes de achar a soluo, surgiu neles essa vontade amarga de
dar de ombros, de no se amolar, de partir pra uma farra de liberta-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

es morais e fsicas de todas as espcies. Vontade transitria, episdica, no tem dvida, mas importante, porque esse no-me-amolismo meio gozado deu alguns momentos significativos da poesia ou
da evoluo espiritual de certos poetas brasileiros. Em ltima anlise, o tema do Vou-me embora pra Pasrgada o mesmo que est
cantado nas Danas, de Mrio de Andrade [...] Se percebe o eco
dele em alguns poemas de [...] Carlos Drummond de Andrade, pra
enfim se transformar de estado de esprito em constncia psicolgica
[...] em toda obra de Murilo Mendes. Fiz esta digresso para mostrar
quanto Manuel Bandeira perdeu de si mesmo para dar a um tema
useiro dos nossos poetas de agora a sua cristalizao mais perfeita
(ANDRADE, 1974. p. 196-197).

Este no-me-amolismo, segundo Mrio de Andrade, no podia ser


compreendido como partida, e sim como uma sensao de farra fsica e moral.
Mais do que isso, como um comportamento no de abandono. Jorge Barbosa
nunca saiu do Arquiplago e se seus versos saram (para logo retornarem) ser
no sentido da inclinao brasileira do no-amolismo, o que obviamente denunciava desconforto e no um conformismo.
Finalizo com as palavras do saudoso Manuel Ferreira, para o qual os
textos de Osvaldo Alcntara, nos anos 1950, foram mal interpretados, em especial os que se debruavam sobre a temtica da evaso, pois alm do no-amolismo, deve-se considerar tambm a utopia, que enquanto palavra foi criada por
Thomas Morus, mas que enquanto ideia, sempre esteve presente nas sociedades
na busca de um lugar ideal:
Hoje melhor se d conta dessa injustia, que quis ver no poema um
sinal negativo, quando na poca em que foi escrito (e no apenas)
a expresso do culto da utopia, a crena num espao e num tempo
utpicos, paradigma de conquista ltima pelo homem na sua caminhada de sculos, ao encontro da felicidade (ALCNTARA, 1989,
p. 161).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Psicologia reversa e reatncia psicolgica: o narrador masculino na


produo ficcional de Ftima Bettencourt
Pedro Manoel Monteiro

Diante da produo ficcional da escritora cabo-verdiana Ftima Bettencourt impossvel ficar indiferente ao conto As mulheres que meu pai amou, que,
inserido no livro Semear em p (1994)1, destaca-se por apresentar o nico narrador com voz masculina no universo da coletnea. O modo fabular encetado por
Ftima Bettencourt lhe confere grande capacidade de convencimento e revela a
viso crtica da autora.
Essa voz masculina afigura-se dotada de autoridade, pois, apartada da
escritora, opera to convincentemente que parece ter vida prpria, assim torna
crvel a gesta (absurda) de seu pai-Don Juan em suas aventuras poligmicas. A
naturalizao do comportamento masculino justifica-se pela presena de um suposto amor desmedido que destoa das consequncias devastadoras para as mulheres. Esse descompasso introduz a viso irnica a respeito de um dos grandes
problemas sociais de Cabo Verde.
O conto opera como constructo2, neste caso elaborado com base na psicologia reversa:
Reverse psychology: a persuasion technique involving the false advocacy of a belief or behavior contrary to the belief or behavior which is
actually being advocated. This technique relies on the psychological
phenomenon of reactance, in which a person has a negative emotional response in reaction to being persuaded, and thus chooses the
option which is being advocated against3 (http://pt.urbandictionary.
com).

Esse constructo denuncia exemplarmente a arquitetura psicolgica do


universo falocntrico e daquilo que em Cabo Verde chamado de pai de filho e
das situaes de dependncia a que so expostas as mulheres. Assim, o universo
social e imagtico masculino retrata a tica do pater familias, o tpico senhor de
barao e cutelo do mundo patriarcal, assentado nos princpios do viriarcado.
O conto apresenta requintes em seus pormenores, e dentre eles podemos destacar as ausncias propositadas das vivas do pai-Don Juan (Ana Maria,
1 Daqui em diante citado como SEP.
2 Objeto de percepo ou pensamento formado pela combinao de impresses passadas e presentes,
criado a partir de elementos mais simples, para ser parte de uma teoria (Dicionrio Houaiss eletrnico).
3 Em traduo livre: Psicologia reversa: a tcnica de persuaso envolvendo a falsa defesa de uma crena
ou comportamento contrrio crena ou comportamento que est realmente a ser defendida. Esta tcnica baseia-se no fenmeno psicolgico de reatncia, em que uma pessoa tem uma resposta emocional
negativa em reao ao ser persuadido, e, portanto, escolhe a opo que est a ser defendida contra.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Chencha, Ins e Nita, inclusive a prpria me do narrador, todas tm passagens brevssimas na trama) e de todos os filhos, cujas existncias so brevemente
mencionadas.
Esse narrador prope-se a contar a prpria estria atravs da estria do
pai , mas no um narrador fivel. Segundo a postulao de Massaud Moiss
(2004, p. 366), quando no compreende claramente o que presencia, chama-se
narrador ingnuo ou inocente ou suspeito. A suspeio deve-se seguinte declarao:
4

No me lembro do meu pai. Eu era criana muito pequena ainda


quando ele morreu de maneira misteriosa [...].
Tudo o que sei hoje sobre o meu pai chegou-me atravs dos meus
irmos e respectivas mes (SEP, p. 58).

O narrador, portanto, nada sabe, nada presenciou e completa as lacunas


como bem entende. Buscando recompor a sua prpria estria pela tica patriarcal, postula-se representante da linhagem/linguagem masculina e consegue encontrar coerncia numa virilidade viajante que visita todo o arquiplago de ilha
a ilha, de corao em corao depositando uma esperana, de dedo em dedo,
uma aliana, de ventre em ventre um filho (SEP, p. 58). Esse comportamento,
na perspectiva de Walter Boechat (1997, online), assim pode ser interpretado:
No tocante ao mito original de Don Juan, sua estria nos fala de sua
virilidade e compulso sexual no controlada. O assassinato do pai
de uma de suas amantes traz a ideia de que h uma incompatibilidade entre o complexo juvenil e o arqutipo do pai, princpio da
lei e da ordem. Jung denominou essa figura arquetpica presente em
diversos mitos e na literatura de puer aeternus, eterna criana seguindo Ovdio, que em sua obra Metamorfoses, assim chamou o menino Cupido, filho de Vnus, portador da aljava de flechas do amor,
um puer aeternus avant la lettre. (Alis, no filme, a ilha de Eros ou
Cupido ocupa lugar de destaque).
O homem identificado com o arqutipo do puer aeternus tem uma
incapacidade de integrar o princpio do pai, to necessrio para o
desenvolvimento da conscincia. Da o arqutipo do pai aparecer petrificado como esttua de pedra.

Nessa linha de leitura, o pai retratado no conto, contaminado do comportamento do puer aeternus, no consegue exercer uma paternidade responsvel, ou seja, integrar o princpio do pai. O pai - D. Juan exemplifica a incapacidade de desenvolvimento da conscincia do que ser pai; assim, encontra
4 Histria essa em sentido diametralmente oposta sua prpria saga pessoal, que refora a assuno do
desejo ancestral de penetrao no universo ideal da dominao masculina, difundida pelo viriarcado.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

eco nas reflexes de Ballone (2004, online):


Descreve-se o dom-juanismo como uma personalidade que necessita seduzir o tempo todo, que aparentemente se enamora da pessoa difcil mas, uma vez conquistada, a abandona. As pessoas com
esse trao no conseguem ficar apegadas a uma pessoa determinada,
partindo logo em busca de novas conquistas. As pessoas com essas
caractersticas so os anarquistas do amor (Sapetti), tornando vlidos quaisquer meios para conquistar; entretanto, os sentimentos da
outra pessoa no so levados em conta. Alis, Foucault enfatiza essa
questo ao dizer que Don Juan arrebenta com as duas grandes regras
da civilizao ocidental, a lei da aliana e a lei do desejo fiel.

Ftima Bettencourt consegue, por meio dessa narrao qualificada,


criar um narrador coerente, que mergulha fundo na arquitetura psicolgica falocntrica, podendo levar a erro at um leitor crtico (cf. NOVAES COELHO,
1995, p. 19).
O que est em voga o desmantelamento por dentro dessa voz narrativa
que busca sobredourar uma paternidade irresponsvel, de modo a torn-la aceitvel, j que, se assim no fora, uma infncia ao abandono, ao desamparo psicolgico, tornar-se-ia insuportvel, somente compreensvel pela psicologia reversa
e a reatncia psicolgica, pedras-de-toque para a sua compreenso:
Psychological reactance is an aversive affective reaction in response
to regulations or impositions that impinge on freedom and autonomy (Brehm, 1966, 1972, Brehm & Brehm, 1981; Wicklund, 1974).
This reaction is especially common when individuals feel obliged to
adopt a particular opinion or engage in a specific behavior (http://
www.psych-it.com.au /Psychlopedia/article.asp?id= 65)5.

Esse modelo de superioridade paterna, a que tanto o narrador despende


esforos em enaltecer, a garantia de sua liberdade viril; contudo, no representa
o modelo social vivido por ele mesmo da paternidade responsvel e da equidade de gnero, pois a prpria esposa, empoderada e superalterna6, decide o seu
prprio destino: este ano vou sozinho enquanto minha mulher e os meus dois
filhos iro para a Califrnia (SEP, p. 57). Portanto, o narrador est em oposio
clara ao puer aeternus, visto que, j em vias da aposentadoria, vive uma relao
monogmica, calcada na lei da aliana e do desejo fiel, oposta ao dom-juanismo
5 Em traduo livre Reatncia psicolgica uma reao afetiva aversiva em resposta aos regulamentos
ou posies que afetam a liberdade e autonomia (BREHM, 1966, 1972, BREHM e BREHM, 1981; WICKLUND, 1974). Esta reao especialmente comum quando as pessoas sentem-se obrigados a adotar
uma opinio particular [inversa ao seu desejo natural], ou se envolver em um comportamento especfico
[que lhe ameaa tolher a liberdade].
6 O oposto de subalterna.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

paterno centrado na folia do sexo:


Temos a, talvez, entre outras, uma das razes do prestgio de Don
Juan, que trs sculos no conseguiram anular. Sob o grande infrator
das regras da aliana ladro de mulheres, sedutor de virgens, vergonha das famlias e insulto aos maridos e aos pais esconde-se uma
outra personagem: aquele que transpassado, independentemente
de si mesmo, pela tenebrosa folia do sexo (FOUCAULT, 2009, p. 46).

Segundo Dias, atravs de focos narrativos, a hermenutica do cotidiano procura historicizar aspectos concretos da vida de todos os dias dos seres humanos homens e mulheres em sociedade (1994, p. 347), apesar do discurso arrevesado, psicologicamente reverso, o conto acaba denunciando as tiranias do pai, evidenciando as
resistncias e os modos de sobrevivncia das vivas.
A realidade das mulheres cabo-verdianas, no arquiplago ou na dispora, tambm aparece em outras narrativas de Ftima Bettencourt, mas o tom trgico de outrora,
como o apresentado nas obras de Orlanda Amarlis7 (1974, 1983 e 1989) ameniza-se
gradativamente, seja pela apreenso memorialista que, de alguma maneira, relativiza
certas tragdias do contexto social, transfigurados pela fico, seja pela predominncia
da pobreza honrada e enobrecida que perpassa os outros contos da coletnea.
A proliferao das personagens femininas, annimas ou oriundas das camadas mais pobres da sociedade cabo-verdiana, ratifica um fio neorrealista que liga essas
representaes de mulheres pela tragicidade de seus destinos ficcionais finais sem
chances de autorrealizao , trao destacado por Ferreira Pinto (1990, p. 16) para o
Bildungsroman feminino. Como dados fundamentais da diegese, os registros da cultura
das classes populares e dos cotidianos annimos de mulheres compem parte central dessa mundividncia, levando-nos a considerar a assero de Bourdieu sobre a
dominao simblica masculina:
A diviso entre os sexos parece estar na ordem das coisas. Como
se diz por vezes para falar do que normal, natural, a ponto de ser
inevitvel: ela est presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado
nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes so todas sexuadas),
em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos
habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de
percepo, de pensamento e de ao (2012, p. 17).

Essa diviso sexual8 alija as mulheres escritoras, geralmente em nmero


menor do que os escritores, da natureza [considerada] universal, j que a vi7 Confira-se nossa dissertao de Mestrado: MONTEIRO, P. M. A noite escura e mais eu, de Lygia Fagundes Telles e A casa dos mastros, de Orlanda Amarlis: uma anlise comparada. So Paulo: Universidade de So
Paulo, 2000. Orientadora: Maria Aparecida Santilli.

8 Que parece constituir a ordem natural das coisas, mas retrata uma excluso social.

140

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

so androcntrica impe-se como neutra e no tem necessidade de se enunciar


em discursos que visem legitim-la (BOURDIEU, 2012, p. 18). Nesse sentido,
a situao social das mulheres s pode ser alterada por meio de um processo
contnuo de interveno social e cultural, que a escritura literria de autoria feminina far questo de demarcar, dando-lhes primazia de protagonismo, indo
ao encontro das ideias de Spivak (2009).
Os textos literrios de autoria feminina cabo-verdiana propem, via de
regra, empreender uma hermenutica do cotidiano das mulheres nas ilhas ou na
dispora, encenando momentos ou situaes que colocam a nu a sua excluso
ou invisibilidade. O processo de promoo da ausncia (so invisveis PERROT, 2006, p. 16) assim se constitui e deve ser desmascarado:
Da Histria, muitas vezes a mulher excluda. -o primeiramente
ao nvel do relato, o qual [...] constitui-se como a representao do
acontecimento poltico. O positivismo opera um verdadeiro recalcamento do tema feminino e, de modo geral, do cotidiano (PERROT,
2006, p. 185).

Ressalta no texto de Ftima Bettencourt, por oposio de sentidos na


psicologia reversa, o valor das mulheres. Obtm-se, assim, a visibilidade s intervenes femininas, em oposio ao que prega o narrador.
O dilogo instaurado entre o espao ficcional, o contexto social e histrico cabo-verdiano fica evidente no conto analisado, verificando-se a enumerao de um repertrio de referncias que associam as trajetrias de formao das
personagens femininas s problemticas cotidianas de emancipao das mulheres.
Percebe-se, a partir da construo das personagens, um espectro social
de tipos humanos, especialmente femininos, de variado matiz. Isso proporciona
ao leitor a possibilidade de observar processos de alienao e conscientizao de
mulheres, insubmisses e, alm disso, permite associ-las a alguns esteretipos
prprios da sociodicia (BOURDIEU, 2012, p. 28) patriarcal.
Para Grossi (2004, p. 15), a linguagem atua num plano inconsciente.
Os mitos tm o poder de reatualizar valores da cultura que so ensinados em
diferentes momentos. Historicamente, em funo da fora da ordem dominante
masculina, erigiram-se mitos que atribuam s mulheres ora um sentido negativo, ora sagrado. Desse modo:
Na modernidade, [...], a Eva pecadora cede docemente seu lugar
santificada Maria. Ou seja, a mulher no mais identificada serpente do Gnesis, ou a uma criatura sbia, astuta e diablica que

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

preciso pr na linha como tantos milhes de mulheres (as bruxas)


que, durante quatro sculos (XV-XVIII), foram queimadas pela Inquisio simplesmente pelo crime de serem mulheres orgsticas e
possurem um saber prprio mas transforma-se em um ser doce
e sensato, de quem se espera comedimento e indulgncia (ROCHACOUTINHO, 1994, p. 35).

Maria torna-se smbolo da perfeio do papel de me/mulher ideal e


os comportamentos indesejados sero, consequentemente, associados figura
mtica de Eva, cujas caractersticas incorrem sobre outras personagens transgressoras como Madalena, Salom ou Lilith (Cf. PAIVA, 1990). Tais esteretipos
simbolizam e perpetuam a dominao androcntrica pela divulgao de valores
como castidade, honra, silncio, obedincia cega ao homem, maternidade como
um programa poltico e reduo do espao feminino ao domstico e ao privado
(ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 35-38) representado pelo universo familiar das
vivas apresentado pelo narrador.
Ftima Bettencourt centra o seu olhar, neste conto, sobre a famlia estendida e o que se forma em seu entorno, aproxima-se das mulheres que comandam as atividades internas das casas, o funcionamento das famlias, das mulheres que
conduzem empresas ou das que so funcionrias do estado, enquanto o marido est
fora correndo mundo. Evidenciam-se, assim, pela voz do narrador, focos de resistncia ou de microrresistncias, representados por personagens esclarecidas ou
insubmissas. O conto torna-se expresso de um processo criativo consciente e
de denncia, aponta para uma diegese em passos gradativos rumo a um quadro
de equidade social, pois, apesar das tragdias semeadas, h a sobrevivncia e a
superao por parte dessas mulheres ditas amadas.
Essas mulheres subvertem o modelo patriarcal de honra, pureza e beleza
perfeita que as circunscrevia ao espao domstico, sob o domnio masculino, ao
fugirem do papel de mes e esposas resignadas e assumirem a responsabilidade
sobre o prprio sustento e a criao dos filhos. V-se que o pai, heri s avessas,
nunca proveu nada, financeira ou afetivamente, como pater familias. Elas sempre estiveram sozinhas, mas se mantiveram fiis memria do homem, cujo
gigantismo heroico alimenta o imaginrio do filho-narrador no antegozo do viriarcado, que subjaz a essa personagem carnavalizada do pai.
O papel imaginrio, social e patriarcal de pai-Don Juan apresentado
pela voz do narrador agiganta-se inclume no tecer das memrias das vivas e
dos rfos: Tudo o que sei hoje sobre o meu pai chegou-me atravs dos meus
irmos e respectivas mes, todos irmanados no calor da memria querida guardada com carinho e respeito. A recordao do mesmo homem meu pai (SEP,
p. 58).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

H muitas Marias circulando nas obras de Ftima Bettencourt. Vemos,


pela fala do narrador, Marias transmutadas em guerreiras, capazes de construir
sozinhas um futuro. Por conseguinte, nem s de Marias se nutre a obra. E nem s
da oposio entre Marias e Saloms, santas e pecadoras, passivas ou guerreiras.
Ou melhor dizendo: as Marias tambm se revelam na obra, aproximando-se do
eixo das insubmissas, como Liliths e Evas, ou orgsticas, como Saloms. Exemplo disso a imagem sedutora da personagem Chencha, uma d As mulheres
que meu pai amou, que remete ao poder de atrao e expresso de liberdade do
mito pago de Vnus. No entanto, mesmo esta, em sua independncia, rende-se
aos encantos sedutores de Jpiter, o pai dos deuses, como Chencha se rende ao
pai do narrador-personagem, acabando por submeter-se dominao simblica
masculina.
Esse grupo familiar estendido de que fala o narrador tambm representa uma nova frente na histria das mulheres cabo-verdianas porque a dispora,
rota inicial dos homens, que dominavam o espao pblico, passa a se constituir
e tende para uma condio de igualdade de gnero nos contos cabo-verdianos
de autoria feminina, surgindo tambm como sada possvel para a sobrevivncia
das mulheres.
V-se, por outro lado, neste conto, que a dispora no mais representa
soluo nica para a sobrevivncia, uma vez que as condies no prprio arquiplago so outras; dado o desenvolvimento alcanado, a dispora agora surge
ressignificada como bildungs, demarcada pela busca por qualificao profissional como fator relevante e no mais pelo triste processo de sada forada para as
roas de So Tom, por exemplo, registrado nas letras de muitas mornas caboverdianas.
De modo geral, Ftima Bettencourt detm o seu olhar mais demoradamente nas relaes interpessoais, pois seus contos so curtos. Nas mulheres ainda
reside o ponto de partida de suas narrativas; estas, contudo, aparecem mais como
personagens ou (/e) narradoras observadoras de outros dramas do que como personagens centrais, pelo fato de terem uma posio estvel na sociedade ficcional.
Geralmente so filhas que rememoram a infncia, em sua fase de formao; assim,
temos a total subverso fabular em As mulheres que meu pai amou, visto que
um homem j velho, em vias de reforma, parte de uma famlia tradicional que
narra, fissura o discurso androcntrico a partir de dentro, apresentando, nas variadas relaes do pai do narrador-personagem com as mulheres que amou as
inconsistncias internas do edifcio patriarcal e do prprio viriarcado.
A autora adota em sua diegese predominantemente a perspectiva feminina, mas dispe tambm de um nmero significativo de personagens masculinas que possuem relevncia fabular em suas obras. Essa presena marcante
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

de personagens masculinas caminha para uma representao equnime dos gneros sociais, apontando para uma trajetria de emancipao feminina, j com
certo avano atingido na dcada de 1990. Essa interpretao, no obstante, em
nenhuma instncia, significar a perda de espaos de representao.
A dominao viril sofre crticas veladas ou explcitas em Semear em p,
como nos casos das vivas apresentadas timidamente, embora os contos da autora focalizem mais personagens femininas que lutam pela sobrevivncia cotidiana, apesar do patriarcado nas famlias ficcionais. Presenciamos, neste conto,
o fidjo-matcho como (des)continuador da linhagem do pai pela psicologia reversa em que se erige o discurso.
No geral, a fico de Ftima Bettencourt introduz vrios tipos caractersticos da mundividncia cabo-verdiana como o velho arteso Nh Silvestre e
o contador de estrias Primo Bit. Tambm muitas personagens femininas se
projetam, seja como mulheres chefes de famlias estendidas (como nos contos
As mantas de mam e Secreto Compasso), ou por seu temperamento forte e
pobreza honrada (Prima Antnia, o complemento feminino de Nh Silvestre);
por outro lado, muitas personagens masculinas se apresentam ao desamparo
(Mucula, Nh Gregrio e Vav).
Em sntese, a dominao simblica masculina (BOURDIEU, 2012), o
viriarcado, a viso falo-narcsica, o primado do espao pblico, a libido dominandi, os princpios antagnicos das identidades masculina e feminina, a reduo da voz feminina discrio e ao silncio e dos comportamentos resignao, honra e castidade, assim como a violncia (fsica ou simblica) contra
as mulheres constituem um quadro9 que ser implodido, pouco a pouco, pela
apresentao d As mulheres que meu pai amou, com base nas estratgias de
construo das personagens; o protagonismo e a tomada de conscincia que levam a um gradativo empoderamento das personagens femininas, superao
de interditos patriarcais e de princpios de inferiorizao e excluso, enfim, o
caminho para a equidade de gnero (malgrado os inmeros entraves a essa realizao) so possibilidades propostas, num tipo de escritura que busca romper
com a cumplicidade entre o objeto da dominao e o sujeito dominante.
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9 Detalhadamente descrito por Bourdieu no seu A dominao masculina (2012).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Sentimentos em trnsito: a representao das masculinidades em Outros


sais na beira mar, de Filinto Elsio
Raquel Aparecida Dal Cortivo
Nadie es un espectador inocente en este escenario de cambio. Estamos todos comprometidos en construir un mundo de relaciones de gnero.
Robert Connel

Nossa abordagem do livro Outros sais na beira mar, de Filinto Elsio,


voltar-se- aos traos reveladores das relaes de gnero no que tange organizao e representao das masculinidades, uma vez que alm dos aspectos
histricos e scio-polticos, outros traos mais sutis tambm podem ser identificados: as relaes sociais de gnero, filtradas pelo olhar iconmaco do narrador
que tambm se apresenta como um sujeito em crise diante das mudanas (desejadas e/ou ocorridas revelia) na sociedade.
Os estudos feministas a respeito das mulheres e sua situao histrica
e social deslocaram o lugar universal/neutro/essencialista do homem, abrindo,
com isso, espao de discusso em torno dos homens e do masculino e evidenciando que os estudos do gnero no prescindem de um carter relacional. Segundo Daniel Welzer-Lang:
Nicole-Claude Mathieu prope em 1971 fazer dos homens e do masculino uma categoria como a das mulheres e do feminino [...]. E de
um modo verdadeiramente pioneiro ela enuncia a inseparabilidade
das duas categorias de sexo (WELZER-LANG, 2004, p. 108).

Embora a evidenciao do aspecto relacional do gnero tenha relativizado os atributos da masculinidade, os estudos que se seguiram concentraramse nas mulheres e apenas na dcada de 1980 se voltaram com mais regularidade
e sistematizao para os homens e atualmente ganham fora. O referido pesquisador afirma que para compreender as reaes masculinas ao novo questionamento dos privilgios concedidos aos homens, precisamos desconstruir o
masculino, revelando-o como gnero permeado tambm pelas relaes sociais
de sexo (WELZER-LANG, 2004, p. 117).
Segundo Elisabeth Badinter (1986, p. 167), a relao homem/mulher
inscreve-se num sistema geral de poder que comanda a relao dos homens entre si. Ou seja, a mesma hierarquizao que revela a dominncia do homem
sobre a mulher determina as relaes entre os homens na sociedade. Robert
Connel, nessa perspectiva, afirma que:

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

[...] diferentes masculinidades so produzidas no mesmo contexto


social; as relaes de gnero incluem relaes entre homens, relaes
de dominao, marginalizao e cumplicidade. Uma determinada
forma hegemnica de masculinidade tem outras masculinidades
agrupadas em torno dela (CONNEL, 1995, p. 189).

Em Outros sais na beira mar, figuram modos de organizao das masculinidades e formas de representao do poder que se articulam com o masculino, como podemos observar no excerto abaixo:
Ficou por contar a histria de Santa Isabel. Aquela que dava o nome
ao hospital, mais tarde Agostinho Neto. Faltou contar-vos da santa
que se desfazia em sangue, em noites de lua e de vento. Do olho gordo dos meninos que se masturbavam nas infindas tardes. O Rogrio,
hoje governante, era um mestre a masturbar-se. Comandava a tropa e invocava o esprito. E castigava os de tibieza e fraco jeito, bem
como gozava os de pila pequena. O Rogrio era um alazo, cavalo
de Espanha, monta de Afonso Henriques, o conquistador, logo na
primeira pgina do nosso livrinho de Histria de Portugal (ELSIO,
2010, p. 172).

A reunio dos meninos remete para o momento de iniciao scio-sexual cujas prticas sugerem, nas palavras de Robert Connel (1995, p. 189), uma
narrativa convencional sobre como as masculinidades so construdas.
Daniel Welzer-Lang denomina casa dos homens esses momentos de
homossociabilidade nos quais os meninos buscam o acesso virilidade. De
acordo com o autor:
Em nossas sociedades [ocidentais de base judaico-crist], quando as
crianas do sexo masculino deixam, de certo modo, o mundo das
mulheres, quando comeam a se reagrupar com outros meninos
de sua idade, elas atravessam uma fase de homossociabilidade [...].
Competies de pintos, maratonas de punhetas (masturbao), brincar de quem mija (urina) o mais longe, excitaes sexuais coletivas a
partir de pornografia olhada em grupo, [...] Escondidos do olhar das
mulheres e dos homens de outras geraes, os pequenos homens se
iniciam mutuamente nos jogos do erotismo, eles utilizam para isso
estratgias e perguntas (o tamanho do pnis, as capacidades sexuais)
legadas pelas geraes precedentes. Eles aprendem e reproduzem os
mesmos modelos sexuais, tanto pela forma de aproximao quando
pela forma de expresso do desejo (WELZER-LANG, 2001, p. 462).

No excerto citado do romance, percebemos o carter coletivo e competitivo da iniciao sexual masculina (a que se refere Welzer-Lang) e o processo
de hierarquizao da masculinidade (mencionado por Connel), j que o mestre

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

a masturbar-se exercia o poder ao castigar os de tibieza e fraco jeito e gozar os


de pila pequena.
O poder relaciona-se com os atributos da virilidade: o flego sexual, a
fora e o tamanho do pnis em analogia com o cavalo de Espanha, alazo que reforava a imagem de conquistador de Afonso Henriques, no por acaso apresentado na primeira pgina do livrinho de Histria de Portugal, lugar de destaque.
A relao da virilidade com o poder explicita-se no fato (apresentado com certo
tom de sarcasmo) de Rogrio, o mestre, ter se tornado governante.
Na iconografia de Afonso Henriques, portanto, o cavalo de Espanha,
atua como um elemento simblico da masculinidade e da dominao. No contexto colonial a que se refere, tal expresso simblica do poder torna-se ambgua, pois, para os meninos, remete virilidade daquele que mais tarde seria
governante. Contudo, este, apresentado como monta de Afonso Henriques, o
conquistador, est em relao ao colonizador em posio de subalternidade. Tal
leitura pode evidenciar que o gnero, como afirma Connel, [...] interage com a
raa e a classe. Podemos acrescentar que constantemente interage com a nacionalidade ou na ordem mundial1 (CONNEL, 1997, p. 10, traduo livre).
O aprendizado dos modos de ser masculino aparece em outros momentos do romance, sugerido pela voz feminina que reproduz e ratifica o lugar
das mulheres e o esteretipo da beleza construdo no curso da histria pela dominao masculina:
Nha Gina, nos seus sonhos, vaticinara na minha histria as mulheres
todas. Todas as mulheres da minha vida (e no foram poucas) esto
neste livro. Escrever procurar uma mulher em todas as outras e
vice-versa. Denise, no a mais bela, nem a mais espirituosa, porm
a mais inslita de todas, retm o facho desta estafeta que no acaba
nunca e que, um dia, passou pelas mos de Ldia. Outras de Diva,
linda como a beira de um lago, e sofri as agruras de amar uma deusa.
Tudo menos deusas, dizia Nha Gina! Elas so monstruosas. Poderosas. Donas deste mundo. Avassaladoras. Ou sereias encantadas. De
riba, donzelas. Debaixo, peixes. E os homens dela tm medo... (ELSIO,
2010, p. 20)

Nha Gina, como j nos adiantara o narrador foi [...] a empregada que
me [o narrador] ajudou a criar, [e que] dizia bem l no fundo do quintal: cada
qual conte o seu conto (ELSIO, 2010, p. 19-20). A presena dela atua na constituio do sujeito que narra. Nesse sentido, ajudar a criar refere-se tanto aos
cuidados maternais, como prpria criao literria (cada um conte seu conto), ou seja, expresso simblica de certos valores.
1 No original: [...] interacta con la raza y la classe. Podemos agregar que constantemente interacta
con la nacionalidad o en el orden mundial.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Assim, a apreenso do mundo e de suas categorias de gnero passa tambm pelo aprendizado cultural, transmitido pelas j referidas narrativas convencionais (CONNEL, 1997), reproduzidas pelas prprias mulheres. O vaticnio de
Nha Gina reproduz a ideia de que o sexo feminino perigoso por excelncia
(BADINTER, 1986, p. 151), traduzida na imagem da sereia encantada, smbolo
dos perigos sedutores e funestos e de um saber sobrenatural [...] que perturba
os sentidos (LEXICON, 1995, p. 180).
Tal representao remete aos traos do esteretipo feminino definidos
por Elisabeth Badinter, referentes aos mecanismos de controle: tagarela, incoerente, afetado, secreto, esquecido, astucioso (BADINTER, 1986, p. 139, grifos
nossos). Segundo a autora, a imagem das mulheres como encarnao da alteridade e do desconhecido povoa o imaginrio masculino, transfigurada em feiticeira que encarna a desordem, a contracultura, o diabo... (Ibidem, p. 148).
A advertncia de Nha Gina aventa tambm certo medo do Outro, de
origem psicolgica nos homens que, para Elisabeth Badinter, quase universal,
ligado ao medo do sangue: Primeiro, o sangue menstrual, assustador e doentio,
mas tambm sangue da deflorao, que acredita-se trazer azar (idem, p. 149).
Nesse sentido, o sonho recorrente do narrador, sugere a latncia de um dualismo conflitante. No romance:
E a ela foi longe. Levou-me para as coisas de Lgia, essas manias de
variar pensamentos tntricos. Fez-me pensar no Buda de Porcelana,
que guardava minha cabeceira como um talism. Fez-me recuar
num tempo outro, de uma menina que se tornava mulher, esvada
em sangue, como aquele sonho da Santa Isabel, sodomizando a nossa adolescncia distante (ELISIO, 2010, p. 46).

Sugere-se certa angstia despertada pela mulher e pela imagem do sangue


que ameaa a virilidade do homem e, consequentemente, o domnio dos homens
sobre a sociedade (BADINTER, 1986, p. 151). O medo da suposta ameaa desencadeia a necessidade de ciso entre o masculino e o feminino, representado pelo afastamento da me/mulher. Acrescentamos, nesse sentido, a percepo do fragmentar
da santa como uma analogia ao momento de ruptura com o universo feminino.
Ponto agnico no desenvolvimento da identidade de gnero dos homens, o momento de separao da me coincide com ritos iniciticos, extremamente dolorosos em algumas culturas. No romance, vimos que a imagem da
santa, erotizada pelos meninos, servia de estmulo ao campeonato de masturbao, possibilitando a identificao entre os pares e o distanciamento do mundo
feminino.
Outra passagem reitera a simbologia da separao:
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Em verdade, desde ontem, que estava para acontecer algo. Logo cedo,
morreu meu amigo John, de um AVC fulminante. noite, ao abrir
uma lata de sopa, fiz um horrvel corte na mo e vazou muito sangue, o que me obrigou a ir urgncia do Hospital. Agora logo cedo,
depois de tentar desesperadamente falar contigo, recebo o teu email.
Ser que um homem pode com tudo isto? Diva, no duvido que tenhas uma percepo errada de tudo o que (no) aconteceu. Sobre
a Denise h aqui um enorme equvoco e no confundas percepo
com fonte limpa. Se nossa relao conheceu algum baixo, o que se
deve relativizar se calhar por razes de distncia e outras, podes estar
certa que no foi pela Denise (ELSIO, 2010, p. 96).

O corte fsico da mo na lata de sopa marca o rompimento da relao


amorosa que imprime uma mudana no narrador. As caractersticas iniciais do
e-mail podem remeter ao esteretipo feminino2, tais como a intuio (desde ontem estava para acontecer algo), a fraqueza fsica (que se revela na dificuldade de
abrir a lata de sopa), a emotividade, a sensibilidade e a puerilidade (ser que um
homem pode com tudo isso?).
Entretanto, aps o corte na mo, quando vazou muito sangue, h uma
mudana significativa no tom da conversa que se torna calma e decidida; fica
evidente um processo argumentativo de convencimento que rechaa a intuio
e a percepo (traos atribudos s mulheres): no confundas percepo com
fonte limpa, diz o narrador.
Como j vaticinava Nha Gina, preciso temer as divas (deusas), sobretudo
a diva/deusa interior, fonte de afetividade, sensibilidade, ternura; deve-se rejeit-la.
Segundo Elisabeth Badinter (1993, p. 125-189), nas sociedades patriarcais, a necessidade de negar o vnculo com a me e, portanto, a identificao com o feminino,
produz homens fraturados e doentes, uma vez que lhes impe a negao dos traos
femininos que tambm os constituem: passividade, afetividade, dependncia. Para
a autora, o caminho para cura reside no homem reconciliado, aquele que se
tornou homem sem ferir o feminino-materno (BADINTER, 1993, p. 165).
Em Outros sais na beira mar, ficam evidentes vrias facetas da masculinidade. Embora muitas personagens masculinas apaream eventualmente no
romance, trs nos interessam mais de perto, o justiceiro annimo, John e o prprio narrador.
2 Conforme Badinter (1986, p. 138-140), ainda existem vestgios da diferena de tratamento entre os
sexos. Tal diferena apoia-se na representao maniquesta de esteretipos da sociedade patriarcal presentes nas imagens que homens e mulheres fazem de si prprios. A autora apresenta um quadro cujos
esteretipos masculinos e femininos mostram diferenas de comportamento no que se refere estabilidade emocional, aos mecanismos de controle, autonomia, dependncia; ao domnio, autoafirmao,
agressividade, ao nvel de atividade, s qualidades intelectuais, criatividade, orientao afetiva, sexualidade. Baseamo-nos nesse quadro de caractersticas para tentar evidenciar como as qualidades supostamente femininas so rejeitadas pelo narrador nesse fragmento.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

A descrio do justiceiro annimo o aproxima do modelo do cowboy,


mencionado por Badinter (1993, p, 135), o cavaleiro solitrio, que vem no se
sabe de onde, o justiceiro acima da lei:
[...] uma efabulao insana, pensava o justiceiro, agora no papel de
empresrio. A sua holding agora mexia com um grande fundo financeiro internacional. [...] Agora, tinha de sair para a noite. Pegou
no seu revlver e na sua espada de Jedi. Transmutava-se de novo no
homem da noite. No justiceiro... (ELSIO, 2010, p. 173-174).

A cena do justiceiro annimo condensa as caractersticas fsicas e os


smbolos da masculinidade hegemnica, representados pelo revlver e a espada,
e indica uma das dimenses da estrutura de gnero3: a relao de produo, pois
o papel de empresrio confere ao homem tambm do poder econmico. Essa
passagem pode ilustrar as consideraes de Robert Connel a respeito das referidas relaes de produo quando ao gnero:
Uma economia capitalista que trabalha mediante uma diviso por
gnero de trabalho necessariamente um processo de acumulao
de gnero. Desta forma, no um acidente estadstico, seno parte
da construo social da masculinidade, que sejam homens e no mulheres que controlam as principais corporaes e grandes fortunas
privadas4(CONNEL, 1997, p. 9, traduo livre).

No contexto do romance, que procura evidenciar a marcante desigualdade social, a figura do justiceiro, paradoxalmente, pode sugerir desigualdade
de gnero que est na base da organizao social. A violncia que o caracteriza o aproxima do conceito do homem duro, proposto por Elisabeth Badinter
(1993): aquele que jamais se reconciliou com os valores maternos. [...] solitrio
porque no precisa de ningum, impassvel, viril a toda prova, [...], incapaz de
experimentar sentimentos (p. 131-134):
Uma efabulao insana. Agora estava ntido no binculo. Um grupo
de adolescentes, igualmente insano e claro pressgio de alastro, desce o morro e invade o bairro. Eis o antema da violncia. O annimo justiceiro, escondido na moita, aguarda os ditosos com chumbo
grosso. Que ningum fique vivo para contar o feito. Se tempo hou3 Segundo Robert Connel (1997, p. 8), a masculinidade liga-se a vrios fatores que determinam e diferenciam relaes de uma estrutura complexa, um modelo de estrutura de gnero que pressupe pelo menos trs
dimenses que diferenciam as relaes: de poder, produo e catexia.
4 No original: Una economa capitalista que trabalha mediante una divison por gnero del trabajo, es necesariamente, un proceso de acumulacin de gnero. De esta forma, no es um accidente estadstico, sino parte
de la construccin social de la masculinidade, que sean hombres y non mujeres quienes controlan las principales corporaciones y las grandes fortunas privadas (CONNEL, 1997, p. 9).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

vesse, ainda havia de esventrar os filhos da polcia e salgar-lhes a


carne para o guisado de domingo. Nada de nuseas, pequenssimos
burgueses (ELSIO, 2010, p. 14).

A personagem John, por sua vez, parece ligar-se a esse ideal de masculinidade e o persegue na militncia e na guerra:
John chegara a Conacri quase menino. Imberbe ainda. Tinha apenas
17 anos. Os pais fizeram-no saltar por Espanha e por Frana, evitando a tropa colonial. [...] Mas no foi fcil partir. Nunca fcil partir
de uma ilha. J tentaram partir de uma ilha? Uma ilha prende-nos
com peias invisveis. Os seus mltiplos braos prendem-nos o corpo.
[...] Fora recrutado em Frana por um emissrio de Amlcar Cabral.
Na altura, lera os textos do psiquiatra de Martinica, Frantz Fanon,
ele tambm de origem mestia, e comeou a reconstruir a sua identidade confusa. [...] Por tudo isso, no fora difcil para o emissrio
de Cabral convencer John, quase menino na altura, que seu destino
estava traado. Deixando o rio Sena a correr o seu destino ancestral,
John nem teve tempo para amar Paris. No pde, como planeara,
passear as pontes impregnadas de Libert, Egalit, Fraternit. (ELSIO, 2010, p. 29-30).

Nota-se que o processo de separao da me/ilha impinge ao rapaz a


vida de homem adulto e, no excerto, coincide com o recrutamento para a guerra.
Segundo Robert Connel, na guerra, erige-se uma masculinidade coletiva marcada pela violncia. Tal masculinidade liga-se aos poderes hegemnicos surgidos
com o imperialismo:
O imperialismo teve um impacto direto sobre a reconstruo das
masculinidades na metrpole, bem como nas colnias. [...] A histria passou da conquista direta ao colonialismo econmico indireto,
com a criao de mercados globais que constituem uma caracterstica to importante do mundo contemporneo. Quando as grandes
empresas se tornam multinacionais, elas levam junto as formas de
masculinidade que so hegemnicas entre seus administradores.
Quando os exrcitos do tipo europeu se multiplicaram pelo mundo,
foram exportadas no apenas armas, mas tambm as formas sociais
que os acompanham, notavelmente a violncia organizada das masculinidades militares (CONNEL, 1995, p. 192).

A anlise feita pelo terico indica que, as masculinidades, representadas, no contexto do romance, pelas personagens justiceiro e John, originamse do mesmo processo histrico marcado pela violncia, com qual o justiceiro
annimo se identifica e que, para John, consiste em fator de desajuste: John
ficara maravilhado com as ideias de Cabral, embora cedo, muito cedo, desajustara-se com alguns camaradas. Estes eram uns facnoras e sanguinrios como os
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

inimigos (ELSIO, p. 32-33).


No se identificar com os camaradas significa no aceitar os modelos
da masculinidade blica hegemnica e aderir ao modelo tradicionalmente associado ao feminino: a preocupao com o outro. O pesadelo recorrente reitera
a inadequao da personagem e revela o medo da fragmentao da identidade,
metaforizado na imagem ameaadora da bomba:
John, ento, era paradoxo em pessoa. Destemido, resoluto e ambicioso: um combatente. Mas sempre que tinha tais pesadelos, precisava se amainar nessa escrita doentia. [...] Via-se, a tremer, com um
p sobre uma mina anti-pessoal. S. Redondo no mundo. Como um
ponto. Os combatentes a afastarem-se. O mundo, tal como chuva
torrencial, a cair-lhe em cima. O milagre da bomba no ter deflagrado. O cheiro a urina, ao excremento e ao medo. Qual o cheiro do
medo? (ELSIO, 2010, p. 27).

Segundo Badinter, no sistema patriarcal, considera-se o homem digno


deste nome quando se cortam todas as suas amarradas com o feminino materno,
ou seja, com o seu territrio original. [...] O resultado um homem decomposto, fragmentado [...] (BADINTER, 1993, p. 126). Com isso, a bomba ameaa
constante parece ter sido deflagrada pela necessidade da represso dos sentimentos em detrimento da fora: John lembrava, como se fosse hoje, o treino
militar em Cuba. Desde ento tornou-se um revolucionrio de papel passado e
um alcolatra inveterado (ELSIO, 2010, p. 34). Sem sada para encruzilhada
em que se encontra a personagem busca o refgio no lcool.
Ao passo que identificamos na personagem justiceiro annimo caractersticas do homem duro, podemos identificar na personagem John caractersticas do que Elisabeth Badinter denomina homem mole:
um homem desestruturado. [...] O homem desestruturado
vive a desordem interna, que pode variar de uma confuso
superficial desorganizao mental. [...] O olhar de admirao
dos outros o sustenta, e eles tm tendncia a obedecer aos
valores coletivos. Os sedutores, por sua vez, estruturam-se
tendo numerosas experincias sexuais (BADINTER, 1993, p. 154).

A desordem interna de John se traduz no pesadelo recorrente e sua tentativa de reestruturar-se aparece na definio dada pela personagem Luana, a
esposa:
Gosto da tua inteligncia. uma das qualidades que sempre me
atraram nos homens. Foi uma das armas fatais do John. Achava-o

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

um crioulo com chame, vibrava com os debates que proporcionava


entre os estudantes em Roma. Comecei a gostar dele muito antes da
atrao fsica [...] at ao desmoronar da nossa relao com essa histria de assdio s camaradas que lhe apareciam. [...]
Que mulher no se apaixonaria pelo John! O camarada John! Disse-me
ele que ser Embaixador. Mas no me contou que dorme com a camarada Lusa. Foi chamado ao Palcio do Governo para isso. Depois ir ao
Palcio do Plateau, audincia com o Presidente da Repblica. Ests a
ver o John. Ele gosta disso. Sente-se um homem superior quando est
nesses expedientes. [...] John um ator, um protagonista. Quer sempre
estar em cena (ELSIO, 2010, p. 129-144).

Ao compararmos os apontamentos de Luana a respeito do marido e o


pressuposto terico de Badinter, podemos afirmar que John obedece aos valores
coletivos da masculinidade, sobretudo ao assumir um papel de sedutor com
essa histria de assdio s camaradas que lhe apareciam , e oculta sua desordem interna na busca de notoriedade poltica. Assim, John busca o olhar de admirao dos outros que sustenta o homem mole, pois almeja ser um homem
superior tanto quando est nos expedientes da conquista amorosa, quanto
nos polticos.
O narrador, por sua vez, parece amalgamar em si caractersticas das
duas personagens citadas anteriormente e oscila entre os comportamentos do
homem duro e do homem mole, pois de acordo com a classificao proposta
por Elisabeth Badinter, podemos compreend-lo a caminho da reconciliao, da
masculinidade que sabe aliar solidez e sensibilidade (1993, p. 165). Das sucessivas tentativas de reconciliao surgem posicionamentos cmplices do poder
hegemnico:
A princpio pensei que o romance era a melhor forma de poder comer a minha amiga Lena, vinda recentemente de Lisboa. [...] Confessou-me uma paixo enorme pelos romancistas. Por isso, o romance
era a melhor forma de poder seduzir a minha amiga Lena (ELSIO,
2010, p. 73).

Contudo, podemos perceber na composio da voz narrativa uma espcie de transposio ficcional da conciliao a que se refere Badinter que no
uma mera sntese dos dois machos mutilados precedentes. [Expressa a] dualidade dos elementos que tiveram que se separar, e at que se opor, antes de se
reencontrar (1993, p. 165).
Assim, so narrados os episdios j analisados da construo e da hierarquizao das masculinidades e a desestabilizao do lugar do masculino hegemnico pela presena da personagem Denise, no a mais bela, nem a mais

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

espirituosa, porm a mais inslita de todas (ELSIO, 2010, p. 20).


A reao do narrador, no primeiro contato com Denise (o encontro dos
elementos opostos), se expressa no desdm/ironia pela causa feminista: H dias
dei de cara com uma. [...]. Chamava-se Denise e palavra que no parecia estpida. Quero l saber se me comem vivo as feministas! At que no me importava
estar num bacanal com as feministas (ELSIO, 2010, p. 43). Contudo, a instabilidade transita na direo da conciliao quando o narrador declara:
Conheci uma mulher chamada Denise. Uma linda mulher. Pedao de fmea. Com a smea toda no lugar. Como todos, nevrtica.
Tomada de crise de identidade. Branca, negra, mestia? Nada disso.
Lsbica, heterossexual, tudo? Excessivamente inteligente? Feminista? Complicada? Ninfomanaca? Quis que ela fosse fiel depositria
da minha caixa de surpresas, romance que desesperadamente devia
ao meu editor. Foi ela logo, pelas entrelinhas, dizer que o romance
era um gnero literrio e no essas coisas desconexas. Ademais, haveria de ter um fio condutor. Uma linha de aco. Dizia-me cronista.
Uma maluca. Meu alter-ego! (ELSIO, 2010, p. 59).

Como j mencionamos, a crise de identidade dos homens desencadeouse, sobretudo, com contestao da sociedade patriarcal pelas investidas feministas em diferentes momentos histricos. Nesse sentido, no romance, a referida
crise de identidade e os questionamentos relativos personagem feminina so
significativos.
A identificao entre o narrador e a Denise parece simbolizar o reencontro entre o masculino e o feminino. Declarar uma mulher como seu alterego,
permite ao narrador dar espao s manifestaes femininas e expor a fragilidade
da sociedade de base masculina hegemnica, pois os textos de autoria de Denise
(Dirio de Denise) e os de Luana (Correspondncia de Luana) instauram
uma perspectiva feminina ao questionar os valores do patriarcado, dos quais o
narrador ainda no se encontra totalmente desligado:
Tenho lido os teus textos e no sei porqu, mas acho que escreves no
feminino. Uma questo de sensibilidade sei l. As mulheres escrevem com o cltoris [sic], que um boto de sensibilidade que Deus
nos deu. E tu, meu amigo, tens um texto clitrico, com ganas pressentidas e mltiplos orgasmos. [...] E isso incomoda. Desestrutura
o arqutipo machista desta sociedade. Esta falocracia disfarada de
morabeza, mas que no passa de ditadura igual s outras (ELSIO,
2010, p. 142).

As observaes crticas de Denise permitem a irreverncia do narrador que vai da poltica foda ao explicitar as razes de o poeta escrever um
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

romance (ELSIO, 2010, p. 37), e sugere a ligao pouco pacfica entre o poder
e as relaes sociais de gnero, bem como atribui sexualidade um carter subversivo.
Os traos de poder associados masculinidade, no romance assim
como na sociedade, no se apresentam de maneira absoluta e essencialista, mas
apontam, como j afirmamos, um processo relacional, no qual os lugares dos
homens e das mulheres, antes predeterminados e bem definidos, so constantemente questionados e desestabilizados.
Dessa forma, a voz do narrador se apresenta como a escrita de um sujeito masculino em construo, revelada nas inmeras referncias metalingusticas. As reflexes, ancoradas na histria e na sociedade de Cabo Verde, indicam
a percepo de que tal construo um processo histrico e, portanto, pressupe revises e transformaes. Logo, a instabilidade atinge o sujeito e insinua
a possiblidade de mudanas no apenas individuais, mas tambm coletivas em
direo a uma sociedade mais igualitria.
Refernciasbibliogrficas
BADINTER, E. Um outro. 3. ed. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
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ELSIO, F. Outros sais na beira mar. Lisboa; Praia: Letras Vrias, 2010.
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113-128.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Navegando na potica de Filinto Elsio


Rute Maria Chaves Pires
Posta em circulao, a obra de Filinto Elsio passa a nos
pertencer, e de agora em diante nos incumbimos de a
conduzir com a atenta leitura e a interpretao peculiar
de cada um, mas com um sentimento nobre de estarmos
diante de uma contribuio valiosa, em termos literrio,
poltico e cultural, para um pas que merece.
Margarida Fontes

Em consonncia com a jornalista e escritora Margarida Fontes, no prefcio de Prato do dia (ELSIO, 2001), prope-se, neste estudo, discorrer acerca
da vasta, ainda que recente obra do cabo-verdiano Filinto Elsio. Poeta por excelncia, de gosto e apuro estilstico, Filinto tambm se aventura em outras paragens, quais sejam: crnica (Prato do dia, 2001), antologia (Cabo Verde: 30 anos
de cultura, 2005), romance (Outros sais na beira mar, 2010) e uma variedade de
incurses que faculta generosamente em seus blogs e pginas de redes sociais.
No entanto, aqui abordar-se-, especificamente, sua produo potica
que conta com seis ttulos publicados: Do lado de c da rosa (1995), O inferno
do riso (2001), Das Hesprides (2005), Das frutas serenadas (2007), Li cores & Ad
vinhos (2009) e Me_xendo no ba, vasculhando o U (2011).
Filinto Elsio inicia seu percurso potico com Do lado de c da rosa,
livro composto de textos lricos de cunho filosfico e mtico em meio s reminiscncias de imagens da sua terra natal. Obra constituda por um grupo de poemas
iniciais, que propem cantar a mais pura beleza (1995, p. 7) de quase premissa
desta rosa (Ibidem, p. 9).
Em seguida, o livro se despedaa em pequenas pores, a comear por
SAL, constitudo por poemas dedicados ao poeta Jorge Barbosa, quando questiona O que ser das sereias encantadas de Ulisses (Ibidem, p. 39). Depois,
ESTE FOGO DE ABRAAR A NUDEZ tece num explcito dilogo com Cames em quando que se apaga este fogo (Ibidem, p. 43). Em AO DENZEL encontra-se um sujeito potico a cantar lusofricas bero tero/o terceto da nova
poesia (Ibidem, p. 51), alm de outras unidades de singular temtica do fazer
potico, como DO PEDREGAL DA GRANDE RUNA, ESTRIAS E VIGLIAS
& MEPHISTOS PELO MEIO, BALADAS DA DVIDA E DA AFIRMAO,
PERFUMES NTIMOS, MINIMAIS & ETC, JUDY REVISITED, que metaforizam o lado de c como ofcio do poeta.
Fechando o ciclo de Do lado de c da rosa, tem-se SETE POEMAS DE

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

AMOR, com epgrafe do poeta Armnio Vieira, seguidos de MAIS SETE POEMAS DA SAUDADE, com epgrafe do escritor Eugnio de Andrade e, encerrando a obra, VOZ INTERIOR, que evidencia um sujeito potico comprometido
com questes tanto nativistas quanto estticas.
antes do Verbo
as ilhas tinham j
a voz imaterial da Poesis
incandescia o fogo
ao vulco das palavras
e no cataclismo
nasceu o arquiplago
antes da paranoia
do Verbo... naturalmente! (Ibidem, p. 142).

Filinto Elsio publica seu segundo livro de poemas O inferno do riso, explicitando um jogo intertextual com a Divina Comdia de Dante. A obra remete
epopeia desde a sua estrutura, j que constituda por seis cantos formados
por dez poemas cada, e tambm alude temtica dantesca desde o primeiro
canto, que justifica o ttulo da obra O inferno do riso (2001):
Um dia hs-de verserjar as esquinas
o lacre apodrecido das cartas por abrir
A palma das mos de si cartografia
e os teus dedos so pura mmica do inferno!
Sim tudo a rir e aos gritos
O carmim das bocas por beijar
Os seios prematuros os receios
O cio perverso das metforas... (2001, p. 22).

Os outros cinco cantos que se seguem retomam os quatro elementos da


natureza, que so assim dispostos: Dos ventos, Dos fogos, Das guas, Das
terras e Dos ares. interessante perceber que o ciclo comea e termina com
o mesmo elemento vento/ar, e que no seria demasiado exagero dizer que este
elemento, que faz parte do cotidiano cabo-verdiano, tambm se presentifica no
universo potico deste e de vrios outros poetas das ilhas.
Em Dos ventos, o sujeito potico faz um passeio no arquiplago, dividido em dois grupos de ilhas: do norte barlavento, espao de onde sopra o
vento (Santo Anto, So Vicente, Santa Luzia, So Nicolau, Sal e Boa Vista) e do
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

sul sotavento, onde se solta o vento (Brava, Fogo, Santiago e Maio), evidenciando a importncia deste elemento no universo cabo-verdiano:
Tntricas melodias a barlavento
Redemoinho e ces a ladrarem
Ventos do sul sopram saudade
[...]
Sotavento tens o mapa desenhado
Solstcios conheo-os de dizer
Outras soleiras ardilosas prosas (2001, p. 26-28).

O grupo de poemas intitulado Dos fogos retoma a origem vulcnica


das ilhas; com o vulco em atividade, a ilha do Fogo proporciona um espetculo
de beleza, embora, com ele, destruio e dor: O fogo portentoso dos vulces/
A lava que lavra das caldeiras/ Tresanda a enxofre o negro basalto (2001, p. 35).
Por tratar-se de um arquiplago predominantemente seco, Cabo Verde
tem uma relao uterina com o mar e as chuvas, fontes de riquezas naturais e
poticas, vislumbrando nas guas da chuva a prosperidade e as benesses da agricultura. Portanto, os poemas que compem Das guas explicitam essa ligao
de amor e dependncia:
o retorno do tero retorno gua
a placenta um abrao liquefeito
a eterna mgoa das virgens dos caminhos
a chuva bendita depois da estiagem
o milharal risonho a perder de vista
as tentaes das boas guas! (2001, p. 44).

Na imensido do mar brota a origem Das terras, o penltimo grupo de


poemas. Sempre a gua a banhar a vida/terra do ilhu. A viso de nascimento
da nova terra, percebida a partir do mar, d uma dimenso ldica e imaterial, de
verdadeira apario s ilhas: Do mar gritou o vigia terra vista!/ E fez-se um
redemoinho s dos tomos/ Os ons mudaram-se de anis e veio o dia (2001, p. 53).
O mito de Atlntida, to decantado pelos cabo-verdianos, que circunstancia a gnese do arquiplago, aliado ao mito de Vnus Anadimena, aqui d
lugar ao sentimentalismo extremo que serve de fora propulsora para emergirem as terras hesperitanas:
Perdoa-me mas no me ocorre a Atlntica de Plato
As ilhas tm uma s raiz: o amor!
O resto nsula lngua do mar coxas dareia

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Macaronsia s de mamas arquiplago de gemidos


Barlavento de braos sotavento de pernas
A Vnus sai das guas e o Caliban da terra a fome
(2001, p. 60).

Dos ares fecha o ciclo dos elementos, e o sujeito potico suscita a mesma temtica do canto Dos ventos, encerrando a obra com apelo nostlgico, que
ecoa ao som da msica: Lembrana e nostalgia caem na solido do poente/ Essa
msica qualquer que me leva aos ares (2001, p. 67).
Dando continuidade ao seu navegar potico, Filinto publica Das Hesprides, obra mltipla, composta de poemas, prosa e fotografias. Aborda o mito
hesperitano, uma das origens atribudas ao arquiplago de Cabo Verde. Portanto, no prtico do livro, l-se: Este mito est presente no vate potico caboverdiano e vale a pena sentir (e pressentir) Cabo Verde, a partir da perspectiva
quase mitolgica. Importa deambular, como diria Jos Lopes, pelo nosso Jardim
das Hesprides ... (2005, p. 1).
Organizada em captulos, Das Hesprides faz um sobrevoo pelo arquiplago, iniciando sua rota por Cabo Verde, uma Breve histria das ilhas, dando
seguimento pelas ilhas de S. Vicente, Santa Luzia, Ilhu Branco, Ilhu Raso,
S. Nicolau, Sal, Santo Anto, Maio, Fogo, Brava, Boa Vista, Santiago
e finaliza com Cidade Velha.
No entanto, antes de todo esse trajeto, apresenta-se o texto Histrias do
Mar, no qual questionada a relao entre este e o arquiplago, a partir da pergunta: O que Cabo Verde sem as histrias do mar?. E ao longo do texto no se
percebe a preocupao em dar uma resposta precisa, mas sim um compromisso
de levar o leitor a sentir o que essa nao: Cabo Verde um mar de histrias!.
E estas palavras so seguidas por flashes fotogrficos dispostos a construir uma imagem do mar, acompanhados dos versos: Ondas que saltam/ventos
que silvam/a aventura crioula... (2005, p. 7). Nas pginas seguintes, novamente
surge uma sequncia de fotos que mostram o movimento de uma ave: Mas a
vida para o ballet das aves-marinhas.../elegantes no tapete das guas (2005, p.
8). Fechando a sequncia de fotos e poemas, tem-se uma sucesso de imagens de
pssaros encimadas pelos versos: Voo magnfico./Aberto para o vcuo./Apetece
gritar... de alegria. E abaixo das imagens, a sntese: Cabo Verde tambm um
pssaro turbulento/qualquer coisa assim.../sideralmente livre!.
Essa organizao constri toda a estrutura do livro, sempre a mesclar
texto narrativo com fotografias iluminadas pelos poemas. Assim, fechando a
obra, tem-se um pequeno texto conclusivo desse passeio ldico por Cabo Verde.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Apesar de pequeno, Cabo Verde encanta pela sua diversidade e plasticidade. Cada ilha diz dos seus encantos, cores, praias
de sonho e gua cristalinas a desafiar o arco-ris. [...]
Pas rico, riqussimo na alma. Muita paz. Para o amor acontecer.
E vontade de cantar, maneira de Cesria vora
(2005, p. 156).

Ao publicar Das frutas serenadas (2007), que explicita um dilogo entre


os recursos poticos e imagens gustativas que se formam a partir destes, Filinto
Elsio envereda por caminhos sinestsicos, sensoriais que possibilitam um verdadeiro quadro de cores, perfumes e texturas, alm dos apelos tteis ao dispor de
uma sequncia de frutas que exalam essncias variadas e uma aquarela de cores
inusitadas.
Compem Das frutas serenadas quarenta e quatro poemas, divididos
em seis partes que conversam entre si e se completam. Dessas seis partes, so as
suas primeiras Das frutas em 5 tempos e Das frutas to-somente as mais
instigantes e reveladoras desse sensorial e contemplativo pomar. As demais sees, O que a eternidade ora me concede, Das pedras noutra margem, Exerccios nada poticos e Fenway Park, completam o sentido da obra quanto
obsesso pelo fazer potico e a recorrncia das imagens insulares, que percorrem no somente esta, mas todas as obras do autor.
Na primeira parte, Das frutas em 5 tempos, tem-se uma proposio
potica que alude ao tempo das frutas e suas relaes, ora com a natureza idlica,
ora com a presena feminina e os sentimentos que esta gera no sujeito potico;
afinal, Todos os poemas so de amor na estao das frutas(p. 20), em que a
fuso de elementos sensoriais e poticos antecipa imagens como: Os poemas
so desenhos largados nas longas estradas (2007, p. 20).
neste conjunto de poemas que o sujeito potico elisiano refora a ideia
das frutas como objetos provocadores dos sentidos e, ainda, de recorrncias do
passado vivido: As frutas sabero trazer do antanho nossas memrias (Ibidem,
p. 21) que remetem sensualidade imagtica atravs dos elementos da natureza
e da recorrncia da presena da mulher: Incendiado nos seios e nas coxas das
flores,/Exalados aromas de quando esfngica s tu (Ibidem, p. 23).
O segundo conjunto, composto de nove poemas, intitulado Das frutas to-somente, traz um cesto cheio de Ma, Roms, Mangas, Tmaras,
Uvas, Amoras, Banana e o poema Das frutas noite e dia, que se inicia com
uma epgrafe de cunho dramtico, apresentando o grande espetculo frutfero.
Portanto, nesse momento, as frutas encenam o seu prprio existir, retomando sempre o caminho de construo da essncia potica que se faz em meio
ao apelo ldico das artes.
161

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Nesse processo, muitas so as imagens que se constroem a partir do que


cada fruta evoca no sujeito potico, transportando-o no tempo a sentir o gosto
de cada momento evocado pelo sabor e aroma da estao.
Encerrando esse banquete frutfero, Filinto Elsio nos serve de mais
uma poro, A boca das frutas, na qual apoteoticamente encerra essa encenao, mais que prazerosa, de refinamentos e apelos sensoriais.
Estes vo culminar naquele que possivelmente o grande divisor da
potica elisiana, o livro Li cores & Ad vinhos, marcadamente simblico e de grande recorrncia sinestsica, j que aborda uma variada temtica que se aglutina
numcoquetel etlico e visual, numa construo metafrica que se completa com
a ilustrao do artista plstico Mito. Ressalve-se que a ilustrao pertinente, no
entanto, no se prope como releitura dos textos.
Li Cores & Ad Vinhos composto por cinquenta e trs poemas que
versam sobre variados temas, como amor, solido, mistrios da vida, questes
existencialistas, metapoesia e preocupao com o fazer potico, evidenciando
uma heterogeneidade latente na percepo e formao de mundo do autor, bem
como ecos de estticas finisseculares na sua escrita:
andei por califrnias rdanos douros
sonhei nforas do antanho
deusas etlicas taas de mbar
poetei absintos versejei labirintos
naveguei pessoas & nerudas (2009, p. 107).

Alguns elementos so valorizados na construo do espao imagtico,


quando o sujeito potico tenta uma aproximao de matrias distintas, que logo
se tornam unas:
Entre nuvens e pedra
De viajar um e de quedar-se o outro
(Ibidem, p. 101).
e des(velam) o prprio ser num Poeta de certo madrigal ou psicodlico e
mensageiro, filho da ptria...(Ibidem, p. 39).

A gua, outro elemento constante na obra, recupera tanto a memria recente


atravs da insularidade, quanto o descortinar de uma nova possibilidade sensorial:
Ora sou gua, ora sou fogo,
E se me invento terra, ar

162

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Que lhe leva o vento, ora


Sou nuvem, pura miragem (2009, p. 61).

Portanto, os aspectos materiais que compem seu fazer potico permitem uma incurso nos elementos textuais, originando e explicando o nascimento do poeta, em meio fluidez da gua que percorre toda a obra, atravs das
grutas, gretas e grotas, sugerindo diversificadas leituras luz da simbologia e do
espao do imaginrio que a permeia, revelando, assim, uma forte ressonncia
no somente dos recursos contemporneos que a estruturam, mas tambm do
dilogo que mantm com correntes estticas que a caracterizam.
Porm, a sua mais recente obra Me_xendo no ba, vasculhandoo U talvez a mais ousada de todas, recupera a escrita fragmentria da insular literatura
cabo-verdiana mais recente, aliando-a tambm a uma pluralidade de signos e
cdigos que reinventam o prprio fazer literrio, que culmina na exploso de
sons, cores e formas.
Em se tratando do universo potico, esta obra constituda de uma
plasticidade superior s demais, na medida em que contm pinturas do artista
portugus Lus Geraldes e as recitaes dos poemas por Nancy Vieira e Joo
Branco (compactadas em um CD que acompanha o volume de textos).
Composto por trinta e cinco poemas, subdivididos em cinco cadernos,
o livro Me_xendo no Ba. Vasculhando o U, no prprio ttulo, j ressalta traos se
no desconcertantes, ao menos estranhos escrita convencional. E esse detalhe
permanece no corpo da obra, pois os ttulos dos cadernos tambm apresentam
uma escrita diferenciada, inusitada que rapidamente captada quando se recorre ao som das palavras. Isso fica evidente no fragmento do poema t_oada
a seguir:
t_arde que finda
ou to simplesmente noite
(ainda) indecisa;
S grafema impreciso
VC de vossemec
(seno s d voc)
que ao tempo dos bichos
o poema tem mais riso
que almejado siso;
amide sem vogais
de atade consoantes:
amar-te em MR-T
FDR-T gemendo assaz letras
CMR-T engolindo-as todas

163

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

na tua fonte
de todas as divas (2011, p. 44).

A questo da insularidade est bem presente nessa obra, perpassando


tanto o primeiro quanto o ltimo caderno do livro. O primeiro trata das dez
ilhas que constituem Cabo Verde, sendo cada uma delas representada por um
poema e o ltimo regressa viso de totalidade do Arquiplago por meio da
nfase na musicalidade do pas.
A escrita tpica da internet insere-se em Me_xendo no Ba, vasculhando
o U, por meio do uso do recurso caracteristicamente utilizado pelos internautas,
uma crtica supervalorizao do uso das consoantes em detrimento das vogais,
na medida em que se reflete a frequente supresso dessas nas palavras e a possibilidade de se eliminarem, a posteriori, as consoantes tambm.
H tambm, na obra, a constncia de uma tecla denominada underline,
muito comum no mbito da internet, sinal situado abaixo do limite da linha
normal (Me_xendo), bem evidenciado na titulao do livro. Essa inovao elisiana no visa somente o estranhamento esttico, mas tambm contribui para a
multiplicidade de significados dos seus poemas.
Portanto, o universo criador de Filinto Elsio permite-lhe discorrer sobre
as mais diversas temticas. O autor evidencia a premissa de um desregramento
no que diz respeito a uma modelagem tanto no plano estrutural quanto no que
se refere ao contedo. A obra elisiana percorre temas subjetivos, em Do Lado de
C da Rosa; mticos e filosficos em O inferno do riso; a identidade cabo-verdiana em Das Hesprides; o erotismo e o amor em Das Frutas Serenadas; o existencialismo filosfico em Li Cores & Ad Vinhos; e a utilizao de recursos tpicos da
linguagem virtual, imagtica e sonora em Me_xendo no Ba, vasculhando o U,
caminhando na composio de um rico mosaico, exemplar da contempornea
poesia praticada, com qualidade e conscincia de meios, em Cabo Verde.
Referncias bibliogrficas
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164

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

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ELSIO, F.; GERALDES, L. Me_xendo no Ba. Vasculhando o U. Lisboa: Letras Vrias, 2011.
POUND, E. ABC da literatura. So Paulo: Cultrix, 2013.

165

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Lulucha e Titina: personagens margem da sociedade


Sonia Maria Alves de Queiroz

A Revista Claridade, publicada em 1936 na cidade do Mindelo, ilha de


So Vicente, em Cabo Verde, foi um marco importante para a literatura caboverdiana. Teve como colaborador escritor santiaguense da cidade da Praia, Virglio Pires, nascido aos vinte e cinco de abril de 1935, falecido em maro de 1985,
em Lisboa, dentre tantos que ousaram manifestar seus pensamentos e denncias
por meio das Letras, face situao pela qual atravessava o pas.
A literatura cabo-verdiana, na sociedade colonialista e machista da dcada de trinta do sculo vinte, apresenta as mulheres, prioritariamente, sob dois
prismas: aquelas que lutavam pela sobrevivncia perante a seca com dignidade e
resignao, e as que partiam em busca de sobrevivncia pelo vis da emigrao,
eventualmente praticando a prostituio (especialmente em Dacar, no Senegal),
acreditando serem esses os nicos caminhos plausveis reservados a elas.
Na tica masculina, as mulheres discriminadas socialmente as alcolatras, as mulheres do funco, as prostitutas, as viciadas ou as perturbadas mentalmente so submetidas a um jugo moral e exibidas como exemplos didticos
para exaltar ensinamentos relativos a condutas que ferem os padres morais da
sociedade, ou para prescrever papis sociais femininos ideais. No h a preocupao de explorar a subjetividade feminina, os desejos secretos das mulheres,
seus sonhos. Por mais engajados que alguns escritores estivessem em denunciar
a situao social das mulheres cabo-verdianas, no adentravam o universo feminino propriamente dito, apenas o contornavam.
Os escritores das dcadas de 1930 e 1940 semearam em terras frteis
suas produes como um manifesto em favor daquelas desprovidas de direitos,
todavia somente com o surgimento das escritoras, tempos depois, a denncia
de situaes marginais e as especificidades da subjetividade feminina foram ganhando fora e espao, numa luta contnua.
Se a literatura das dcadas de 1930 e 1940 j constatava a situao da
mulher marginalizada, explorada pelo sistema patriarcal, mas ainda percebida
pela tica de escritores do sexo masculino, numa viso de expectadores, a escrita
feminista vem colocar em foco as sensibilidades e conflitos mais ntimos de personagens femininas, por meio de um processo de hermenutica das diferenas.
Nas palavras de Maria Odila Leite Dias:
No h porque considerar a oposio, masculino-feminino tal como
se apresenta hoje, com uma carga de definies culturais herdadas
do passado, como se fosse necessria ou inata. O estudo das relaes

166

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

de gnero caminha no sentido de documentar as diferenas culturais


de nuan-las, de modo que um dia, eventualmente transformadas,
possam se aproximar (1998, p. 372).

Superando a oposio homem/mulher, masculino/feminino, as escritoras buscam dar visibilidade aos cotidianos femininos socialmente situados,
aprofundando detalhes, descortinando percepes e sentimentos que venham a
legitimar historicamente aqueles cotidianos. Numa sociedade falogocntrica, a
escrita feminina sempre negocia no estreito espao entre o apagamento e a possibilidade de representao, buscando espao naquele que parecia intransponvel
mundo masculino: a representao literria trata de questes relativas explorao feminina, desigualdade entre os gneros, discriminao e violncia a
que so expostas mulheres, objetivando representar as vozes daquelas enclausuradas em silncios e silenciamentos.
Virglio Pires, em seus dois pequenos contos Lulucha e Titina, dos quais
faremos um breve estudo, denuncia sutilmente e atravs das personagens as condies degradantes a que so submetidas muitas mulheres, que so representadas no anonimato para que possam melhor expressar, segundo a tica da criao
literria, a situao social de cabo-verdianas postas margem pela sociedade,
sem valorizao e historicizao de suas lutas dirias.
Antonio Candido afirma que atravs da ideia de sistema, procura-se
apontar o surgimento das obras no como fenmeno pontual, expresso individual, mas como um evento de natureza sociolgica, pois relacionado ao contexto social e ou ideolgico em que a obra foi formada (CANDIDO, 2001).
Virglio Avelino Pires, nesses contos, toma como protagonistas mulheres cabo-verdianas, seus sonhos e expectativas face a uma terra inspita, quase
improdutiva, denunciando inclusive a emigrao feminina mal sucedida que
pode desembocar na prostituio, temticas que foram e ainda so motivos de
pesquisas sob a tica sociocultural e econmica do gnero.
Para melhor compreender os textos e interpret-los, fundamental buscar apoio no contexto social e histrico em que se descortina o cenrio das lutas
travadas pela sobrevivncia dos ilhus e, especialmente, o cotidiano da mulher
crioula, sua situao socioeconmica e sua luta para superao das desigualdades de gnero.
A palavra de ordem, desde a dcada de 1960, foi a luta pela igualdade de
direitos e oportunidades entre os gneros, focada, no caso das mulheres, contra
a ideologia machista que lhes impunha a condio de objeto, e ainda na desmontagem de constructos alicerados na inferiorizao das mulheres pelos homens.
Cabo Verde tornou-se parte, em 5 de dezembro de 1980, do Comit
167

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

sobre a Eliminao da Discriminao contra as Mulheres, em decorrncia da


Conveno de 1979 sobre Todas as Formas de Discriminao contra as Mulheres, uma das primeiras convenes de proteo aos direitos humanos ratificadas
pelo Estado de Cabo Verde.
Esse processo continuou a ser alimentado nas dcadas de oitenta e noventa, metamorfoseando-se de acordo com os desafios e configurando-se hoje
como uma prioridade assumida pelo Governo daquela Repblica.
A promoo das mulheres, de sua cidadania, igualdade e dignidade faz
parte de uma meta que, no obstante em andamento, j demonstra resultados
eficientes. Estratgias e polticas pblicas de emancipao econmica das mulheres, especialmente as que vivem no ambiente rural e nas periferias urbanas,
apoio e promoo das mulheres chefes de famlia, que lutam sozinhas para criar
seus filhos e fornecer-lhes educao adequada, combate violncia domstica,
tm sido prioridades cabo-verdianas para eliminar as diversas formas de discriminao que tm feito parte do cotidiano feminino desde a dominao colonial
e que persistem nos dias atuais.
Para tanto, o Governo de Cabo Verde elaborou um Plano Nacional para
a Igualdade e Equidade de Gnero (2005-2009), no sentido de avanar no cumprimento do objetivo de garantir os direitos das mulheres.
Em seu artigo 3, a Conveno (p. 23) complementa:
Os Estados Partes devem tomar, em todos os domnios, nomeadamente no poltico, social, econmico e cultural, todas as medidas
apropriadas, incluindo disposies legislativas, para assegurar o pleno desenvolvimento e o progresso das mulheres com vista a garantir-lhes o exerccio e o gozo dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais, numa base de igualdade com os homens.

Os artigos 4 e 5 ressaltam a necessidade de que os Estados Partes tomem as medidas apropriadas para:
modificar o padro de comportamento social e cultural dos homens e
das mulheres, com vista a alcanar a eliminao dos preconceitos e das
prticas que se fundem na ideia de inferioridade de um dos sexos ou
de papis estereotipados dos homens e das mulheres (Ibidem, p. 24).

Todas as formas de trfico de mulheres e de explorao da prostituio


feminina so objeto do artigo 6 da Conveno (Ibidem, p. 25).
Considerando que h dois modos bsicos de construir conhecimentos
um mais vocacionado para a elaborao terica e outro para a reflexo da rea168

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

lidade e a sua transformao , escolhemos esta linha para abordagem do discurso literrio em Cabo Verde, nesta recortando o ncleo temtico da excluso
social e das formas de discriminao das mulheres.
Nos dois pequenos contos que sero analisados luz dos procedimentos
de excluso e de discriminao sofridos pelas personagens femininas, segundo a
ideologia da sociedade patriarcal em que esto inseridas, os perfis femininos sero cotejados com os perfis sociais de mulheres cabo-verdianas no contexto das
respectivas ilhas (espao) e no(s) tempo(s) em que se desenrolam as narrativas.
Virglio Pires, nos contos selecionados, demonstraumacrtica subjacente (sobretudo com a prostituio) ao destino determinista das jovens caboverdianas que se afastam do reduto do lar, da misso de maternidade e das regras morais da famlia; deixa entrever os preconceitos masculinos embutidos na
representao das mulheres prostitutas e na anlise das causas da prostituio,
sobretudo as que residem em falhas ou quedas morais femininas. Observa-se
a preocupao do escritor em resguardar, na fico, a dignidade e a honra feminina e, por conseguinte, a honra da famlia.
Pelo que pudemos constatar da pesquisa desenvolvida em nosso Mestrado na Universidade de So Paulo (Literatura e representao social das mulheres em Cabo Verde: vencendo barreiras, 2010), orientada por Simone Caputo
Gomes, a literatura de cunho social produzida por homens no oferece soluo
para o problema, apenas se limita a recomendar que as mulheres se conduzam
estritamente segundo os parmetros patriarcais impostos, visto que o sistema
colonial e seus modelos marcaram durante sculos os ditames comportamentais
dos pases de lngua portuguesa. Entende-se, pois, a submisso das mulheres perante seus opressores jurdicos, sociais e polticos, ao aceitar tais regras que lhes
negam direito liberdade, desvalorizando ou deixando invisveis os exerccios
de papis sociais produtivos em seu cotidiano.
Os escritores, comprometidos com o bem-estar social, apresentam ao
leitor reflexes que focam problemticas que incomodam e/ou no se coadunam
com os padres sociais hegemnicos. A anlise da prostituio em Cabo Verde
centra-se, sobretudo, na abordagem dos atalhos que levam jovens a trilhar este
caminho, levando-se em conta toda a gama de preconceitos sofridos por elas,
arraigados numa ptica machista. No plano da diegese, o leitor pode observar o
cotidiano das personagens, vtimas da pobreza e da falta de perspectivas sociais,
acabando por serem levadas prostituio como meio de sobrevivncia.
A princpio, o conto Lulucha apresenta-se com uma singela estrutura,
quase pueril, descrevendo, na perspectiva das crianas que a personagem cuidava, as caractersticas psicolgicas da jovem, seu aspecto fsico, sua ternura e, a
seguir, a migrao do campo (interior da ilha de Santiago) para a cidade (Praia)
169

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

e a sua gradativa derrocada, trajetria que, como adiante perceberemos, se faz


frequente na escrita literria cabo-verdiana sob a tica masculina: Lulucha era
contente. Estava sempre a sorrir. Tinha a boca grande, e quando ria os dentes muito brancos apareciam. Era boa para os meninos. certo que s vezes aplicava ao
Chico algumas sonoras palmadas... (PIRES, 2001, p. 498).
A estria da galinha Pelada, ndice do enredo implcito (a degradao
moral de Lulucha), agua a reflexo do leitor. Observemos as pistas deixadas
pelo narrador:
Quando Lulucha partiu, Pelada j tinha voltado com a ninhada...
Daquela vez, quando Pelada voltou, vinda do monte de bredos que
ficava atrs de casa, Pedrinho gritou: So treze, Lulucha quem
acertou. Lulucha tinha partido. O pequeno calou-se e ficou a pensar
na caminhoneta verde que se sumiu l longe, na recta da Bolanha, e
levou Lulucha para a Praia (Ibidem).

A migrao interna do campo para a cidade, to frequente na vivncia


cabo-verdiana, diz respeito no somente aos homens, mas a muitas mulheres
jovens que se aventuraram por esta trilha, e Lulucha a representao ficcional
de moas que, como ela, sonhavam ter melhores oportunidades de trabalho. Todavia, h um entrave nessas partidas: muitas delas s levavam consigo os sonhos
na bagagem; sem estudos, sem qualificao profissional, que futuro promissor
poderiam esperar? Que setores empregatcios haveriam de contrat-las? Seriam
empregadas domsticas em casas de famlias mais afortunadas?
Todavia, as meninas rurais, que criavam galinhas e faziam dessas uma
extenso familiar (nomeando-as), no possuam sequer noes de como compor uma mesa, que comportamento ter s refeies etc.
Lulucha sonhava em conhecer as magias da capital cabo-verdiana
(Praia), sinnimo de poesia, a praa com msica de corneta, diferente do funan1 do interior, de gaitas e ferrinhos:
As lojas eram deslumbrantes. Tinham toda a espcie de brinquedos.
Carrinhos de corda, gaita, bolas, tambores, bicicletas, triciclos, bales [...] Lulucha dizia que, quando fosse Praia, havia de trazer aos
meninos muitas coisas (Ibidem, p. 499).

Um conto aparentemente infantil adverte para os problemas decorrentes de mudanas de espao social para as quais a personagem no estava cultural nem profissionalmente preparada, na disputa de um mercado de trabalho
escasso, principalmente aps o fechamento das atividades do Porto Grande do
1 Modalidade musical proveniente do interior da ilha de Santiago.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Mindelo (ilha de S. Vicente). Muitos dos investimentos foram aniquilados e os


trabalhadores, vtimas daquela situao econmica, viam-se desempregados ou
com subempregos para sustento das suas famlias.
Outra personagem feminina indicia o destino de Lulucha no conto: Nh
Simoa, representante da sabedoria popular dos ancios e da oralidade crioula,
que d conselhos para que a jovem no se afaste de seu povoado. Para Lulucha e
os meninos, Nh Simoa, velha e feia, simboliza o mau-agouro e a bruxaria:
Diziam que era bruxa. Os meninos faziam figas e metiam a mo na
algibeira para ela no ver. Acocorava-se a um canto do quintal. E se
Lulucha cantava aquela cantiga Nh S. Pedro c nh matam Caela
/ Parm Cala badjadra fox, ela dizia Menina, abranda o brio do
corpo... Rapariga nova pensa que o mundo lhe pertence ... Lulucha
ento respondia: figas, Nh Simoa. A mim feiticeira no come. Tenho sangue amargo, fique sabendo (Ibidem, p. 497).

Lulucha, ao emigrar para a cidade da Praia, sem abrandar o brio do


corpo e escapando de um casamento com o John, rapaz trabalhador da Assomada (interior rural da ilha de Santiago), acaba por cumprir a profecia de Nh
Simoa encantada pelo brilho ilusrio da capital, passa por uma metamorfose
que aponta para a trajetria de muitas outras jovens do arquiplago:
Muitos anos se passaram, e os meninos cresceram. J no perguntavam: Mambia, Lulucha no volta? Um dia, Pedrinho encontrou
Lulucha na Praia. Aquele belo sorriso tinha desaparecido. Lulucha
tinha agora um ar triste. Pedrinho no pde ver nela a Lulucha dos
seus tempos de menino. Ela parecia-se, no vestido curto e apertado,
no jeito, no falar com Minguinha, com Maria Zizinda. Elas moravam
na Ponta Belm. E Pedrinho perguntou receoso:
Onde moras, Lulucha?
Moro... na Ponta Belm.
Conheces Minguinha... Maria Zizinda?...
Lulucha no respondeu. Depois baixou os olhos e contou a Pedrinho
a sua histria, desde que os tinha deixado. Uma histria vulgar e
muito triste. Semelhante, talvez, histria de Minguinha, semelhante histria de Maria Zizinda (Ibidem, p. 499-500).

A intermediao da passagem da alegre moa rural triste prostituta da


cidade se d pelas mos do Manito Mendes, clebre pelas proezas, rpido o
manejo da navalha, com vrias cadeias no currculo:
Lulucha deixou John e foi para a Praia com uma pessoa que no conhecia [...] no ouviu os conselhos de nh Simoa, nem os de Mambia. Nem reparou nas lgrimas de Pedrinho.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Quando subia para a carroceria da caminhoneta, ria-se alegremente,


e os dentes brancos apareciam (Ibidem, p. 500).

O mesmo eixo temtico repete-se no conto Titina, que apresenta em


flash back passagens da vida de uma personagem masculina. Neste conto, porm, a estrutura inversa: o homem escravizado pela paixo nutrida pela personagem Titina. Dona de seu destino, por opo e rejeio pobreza qual se
submetia vivendo ao lado do annimo companheiro, Titina opta por sonhar
com mudanas espaciais (Dacar, Guin, S. Tom) que porventura venham a lhe
proporcionar melhores condies financeiras. Observe-se que Dakar (Dacar)
, com frequncia, um destino de prostituio para moas cabo-verdianas e S.
Tom o lugar do contrato ou ilha da sujeio.
Neste conto, em especial, Virglio Pires tematiza o amor obsessivo de
um homem por Titina e o desfecho de sua estria; sem ela, o amante mergulha
no inferno do grogue, da imundcie e da fome:
Descia lentamente a escada de cimento. Os sapatos furados faziam
um som oco ao baterem nos degraus. L em cima, na feira, havia alegria e vida, mas para ele tudo estava terminado, com o ltimo clice
de aguardente. Agora era uma noite sem sono, entre lenis sujos,
que o esperava. E a fome do dia seguinte (PIRES, 2001, p. 504).

Entre as vrias denncias expostas nesse conto, Pires relata as secas cabo-verdianas de 1940, constantes, histricas, em que o arquiplago, sem recursos financeiros vindos de Portugal ou de qualquer outra instncia estrangeira,
fica marcado pela fome e pela misria em virtude da quase ausncia de agricultura de subsistncia. Grandes foram os esforos e planos emergenciais colocados
em prtica, na nsia de amenizar as calamidades que assolavam o povo. Consta
que, em 1947-1948, o governo mobiliza-se na construo de Postos de Servios
de Assistncia para socorrer o povo faminto, por no haver de onde tirar o seu
sustento. Segundo o relato de Antnio Carreira (1984, p. 116):
Em resultado da concentrao de elevado nmero de famintos junto
ao paredo de resguardo, do lado que d para a Praia Negra, onde se
construra um alpendre provisrio para acolhimento dos indivduos
que iam receber a rao diria fornecida pelos Servios de Assistncia, o muro de suporte, talvez devido m construo, e pela aco
da forte lestada que se fizera sentir, desabou arrastando na queda
centenas de pessoas. Isso aconteceu a 20 de Fevereiro de 1949.

Vrias vidas se perderam naquele acidente do Posto de Assistncia, j


que os famintos se encontravam no horrio de almoo quando o paredo desa-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

bou, sem dar-lhes a oportunidade de fuga. Este acontecimento relatado pela


personagem masculina, num flash de memria:
E recordou-se do grande desastre. O paredo do quintal da Assistncia tinha cado, esmagando os que ali estavam recolhidos. Era a hora
do rancho e os famintos fizeram a sua ltima refeio. O sangue correra, encharcando aquele cho amaldioado e as rvores cresceram
cerradas, ensombrando o lugar (PIRES, 2001, p. 504).

Mulher pouco dada ao trabalho, Titina prefere viver na emigrao,


custa de quem a sustente. descrita como interesseira, usa seu corpo e sua sensualidade para manuteno de sua ganncia, sempre em busca de mudanas,
com esprito inquieto e aventureiro. A descrio destaca o perfil negativo, leviano da mulher, de personalidade forte, em contraponto fraqueza do companheiro (Titina que o tornava mole. Mole e desavergonhado como um cachorro;
Ibidem, p. 505).
No entanto, Titina acaba, como ele, por trilhar decepes e perdas, em
trajetria descendente:
Agora era uma preta como qualquer outra, carregada de filhos, peitos cados, roupas desleixadas. No tinha nada da rapariguinha dos
bailes da Achada e dos passa-noites do Paiol [...]. O seu corpo, a sua
maneira de falar, o seu sorriso, um olhar, os pormenores mais significantes sugeriam-lhe uma comparao. Ela no era a mesma. Mas
isto fora h muito tempo. Tudo tinha passado. Tudo mudara para
pior. Depois do regresso de S. Tom, Titina procurara a sua vida. Conheceu outros homens, muitos outros. E a pouco e pouco se foram
afastando (Ibidem, p. 505-506).

A personagem masculina, por sua vez, passa a viver num mundo onrico , tentando reconstruir as lembranas que lhe restam da vida que tivera ao
lado de Titina. Nas palavras de Gaston Bachelard (1990, p. 75):
2

O mundo real apaga-se de uma s vez, quando se vai viver na casa


da lembrana. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa
natal, a casa de intimidade? Essa casa est perdida, no a habitamos
mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos.
Ento ela mais do que uma lembrana. uma casa de sonhos.

Neste conto, tanto a personagem masculina quanto a feminina passam


por transformaes que espelham, de certa forma, as convulses sociais e econ2 O onirismo se d atravs de alucinaes visuais sob forma de sonhos vividos, muitas vezes com tanta
intensidade que podem surgir no curso de estados confusos, inclusive por intoxicao alcolica. Vide
BACHELARD, 1990, p. 76.

173

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

micas por que passa Cabo Verde no tempo da narrativa. O marceneiro, amante
enganado, termina seus dias na cadeia, bbado, como ladro de brincos, broches, trancelins (PIRES, 2001, p. 505) para Titina, que tudo queria, ao contrrio do nada que pudera lhe dar.
Esta continua, contudo, sua trajetria: na primeira visita ao companheiro na priso, riu-se, brincou com todos os presos, disse coisas disparatadas e
todos acharam graa. Como sempre, ela se dividia em vrios pedacinhos e em
cada olhar, em cada sorriso, ela se distribua, se oferecia [...] Conheceu outros
homens, muitos outros (Ibidem, p. 505-506).
Assim como esses textos que apresentamos, na maioria dos contos de
autoria masculina que examinamos em nossa dissertao no h redeno para
as personagens femininas, retratadas, com nfase nos seus dotes fsicos, como
atraentes objetos de desejo e como vtima dos perigos que um futuro fatal lhes
destinar. O determinismo, no raro, acompanha o histrico dessas personagens mulheres, de quem se espera um estatuto virginal ou um honroso casamento, sendo qualquer passo em falso nesse sentido equivalente a uma condenao.
Referncias bibliogrficas
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Vtimas e Rebeldes: mulheres escrevem Cabo Verde


Sonia Maria Santos

Ao reivindicar a visibilidade e a legitimidade da mulher como sujeito


produtor de sentidos, a crtica literria feminista colocou em questo as formas
como o poder se estabelece. Sob o olhar institucionalizado, as anlises literrias
propostas por mulheres tiveram de criar alguns desvios para traar as rotas de
um percurso outro, que contemplasse as problematizaes de um novo momento, no qual os papis das mulheres enquanto agentes e produtoras de sentidos
pudessem ser encarados face s inquietaes geradas no interior do antigo discurso.
Descobre-se nesse processo a duplicidade de papis da mulher escritora, ao mesmo tempo objeto olhado e sujeito voyeur que espreita os outros e
reflete sobre si mesma. Esta mulher, interpretada pelas instituies de poder,
observa as experincias concretas do meio social, analisando as posturas e os
conhecimentos gerados a partir das objetivaes e subjetivaes que os homens
e mulheres executam em seus cotidianos.
Construindo um espao cada vez mais alargado pelas pesquisas e produes sobre o assunto, os estudos feministas, livrando-se das antigas convenes, mobilizam a crtica e o sistema poltico como um todo, ao destacarem
mulheres nos espaos acadmicos, trazendo superfcie textos aprisionados na
obscuridade do anonimato. Convergindo seus esforos em prol de uma genealogia literria feminina, grupos de pesquisadoras reveem o passado literrio, para
inventariar as produes escondidas pelo tradicionalismo de uma crtica preconceituosa e arrogante em seus postulados.
A luta empenhada pela crtica feminista compatibiliza a materialidade
do social com as abstraes da prtica discursiva mantida dentro dos limites dos
jogos de linguagem. Num ambiente de efervescncia poltica e cultural como o
de Cabo Verde, a escrita torna-se o principal veculo de explanao de ideias e
conceitos, dando aos indivduos a possibilidade de traduzirem em letra pessoas
e paisagens.
Mesclando traos do mundo exterior e interior, o sentimento de crioulidade se fortalece pelo saber construdo entre as frestas do poder e vai, por
assim dizer, costurando os desejos fragmentados pelo colonizador. O discurso
patriarcal, revisto, libera critrios de valor, abrindo possibilidades ao surgimento
da escrita feminina que, embora tmida, no deixa de merecer da crtica olhares
de aprovao e por vezes encantamento.
Esses critrios, ainda pautados por uma crtica europeia, amalgamamse ao corpo negro da oralidade presente nos batuques, possibilitando uma for176

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ma cabo-verdiana mestia de ser e de criar. Ao mesmo tempo, ampliam-se as


perspectivas das teorias que tratam do feminino, permitindo a proliferao de
textos que retratam a realidade vivenciada pelas mulheres, porque na cultura
que as relaes de poder so constitudas, e nela os textos literrios encontram
seu suporte material.
Observando e experienciando o ambiente ao seu redor, a mulher escritora registra a vida, reportando-se s cenas quotidianas femininas (e por isso o
discurso toca o ntimo do/a leitor/a) e s indagaes comuns ao homem moderno, incidindo sobre o terreno da micropoltica das questes sociais.
Os textos femininos instigam polmicas, provocam rupturas, criticam
comportamentos ou atitudes previsveis de indivduos inseridos numa cultura
patriarcal, interrogando as prprias incertezas das mulheres e o seu papel na
construo da cultura, articulando vrias instncias do saber e possibilitando
uma maior compreenso da realidade circundante.
Em Cabo Verde, conhecer a cultura em que vivem e tambm a si prprias a proposta das escritoras, cujas formas poticas e narrativas percorrem
uma geografia de afetos e modos de estar. O pensamento lgico registra os movimentos do desejo pelos caminhos do mundo social vigente e visvel. Lendo os
textos das escritoras, descobrimos pontes que interligam formas, gneros, temas
que intercambiam sujeitos, caracteres e sentimentos. As intimidades do fazer
percebidas pelo foco feminino so matrias vivas de expresso, veculos promotores de transio entre mundos singulares, aproximando-os e forjando novas
formas de histria.
A confluncia de saberes antigos, oriundos da tradio, com novas formas de construo do conhecimento forma um caleidoscpio de cenas multifacetadas e coloridas, que deixa entrever processos de intensidade do viver.
Vale destacar um fragmento de crnica de Ftima Bettencourt, que metaforiza com a Pgina em Branco a visibilidade que era vedada situao social
feminina no arquiplago at meados do sculo XX:
Acontece-me por vezes ter que procurar umas coisinhas por a e foi
ao passar as folhas do avantajado volume de A Imprensa Cabo-Verdiana de Joo Nobre de Oliveira que de repente me dei conta de que
entre 1820 e 1930 praticamente no havia mulheres em Cabo Verde,
concluso que, por demasiado absurda, sou obrigada a recusar.
Elas na verdade vegetavam por a, pelas sombras da casa. Quietas e
calmas iam tendo os filhos, os que Deus mandava e os maridos determinavam, mas nem o amor nem a dor as faziam soltar um suspiro
que fosse que delas desse sinal de presena. Como vagos fantasmas
faziam a lida da casa, se pensavam ningum sabia, se sonhavam nin-

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

gum jamais suspeitara. Praticamente mergulhadas no limbo, pouqussimas referncias vislumbro de suas existncias e por isso sou
levada a supor que se alguma delas ultrapassou esse estado quase vegetal. Foi silenciada e escamoteada de imprensa escrita, que como
quem diz, da Histria destas ilhas, ilhas que, todavia, fervilhavam de
atividade jornalstica.
Note-se que estamos falando de um perodo de mais de cem anos,
j que estou longe de vasculhar o livro todo, homrica tarefa (BETTENCOURT, 2001).

Se voltarmos a nossa reflexo para a participao feminina no horizonte


cultural e poltico cabo-verdiano, notaremos que, embora represente um constituinte bsico da cultura de seu pas, a mulher no valorizada como tal, seno
a partir do perodo ps-independncia (1975). No rastro das ideias revolucionrias dos anos 1970, mulheres cabo-verdianas da classe mdia se engajaram na
luta poltica e engrossaram as fileiras dos descontentes com o sistema colonialista, ajudando a estruturar a arquitetura poltica, social e econmica do pas Cabo
Verde.
Destacamos nomes como: Dulce Almada Duarte, natural de S. Nicolau,
que aderiu ao chamado da luta contra o colonialismo portugus, vindo a pertencer aos quadros dirigentes da guerrilha e ocupando cargos como Diretora
do Patrimnio Cultural no Ministrio de Educao e Cultura; Ana Maria Cabral, companheira de Amlcar Cabral, que participou do Conselho Cientfico da
Fundao Amlcar Cabral. Outras mulheres voluntrias de grande expresso se
apresentaram tambm como guardis do ideal revolucionrio, desempenhando funes estratgicas para o desenvolvimento nacional. Podemos citar Paula
Fortes, Zezinha Chantre, Lili Cabral, Elisa Andrade, que organizaram grupos de
mulheres, cuidaram dos enfermos, orientaram e acolheram crianas, consolidando a importncia da mulher crioula na espinha dorsal da sociedade.
As Conferncias das Mulheres realizadas no Mxico (1975), em Nairbi
(1985) e em Beijing (1995) contriburam para o avano das discusses e elaborao de programas e propostas de ao em favor das mulheres, visando reduo
da pobreza, supresso das diferenas nos domnios da educao e do emprego,
participao efetiva nas atividades econmicas e eliminao da violncia domstica.
A mulher crioula ganhou uma ampliao de seu espao poltico com a
presena da OMCV (Organizao das Mulheres de Cabo Verde) que, a partir de
1981, fomentou o desenvolvimento feminino nas ilhas, atravs de incentivos s
prticas culturais, editando boletins informativos sobre a educao formal a fim
de que a mesma se processasse em grande escala no territrio cabo-verdiano
Essa organizao apoiava outras instituies como a MORABI (Asso178

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

ciao de Apoio Autopromoo da Mulher no Desenvolvimento), o Instituto da Condio Feminina (1994) e o Grupo de Mulheres Empresrias, visando
atenuar ou solucionar problemas bsicos de sobrevivncia em Cabo Verde a
fome, a seca, a moradia e a desnutrio. Alm disso, a OMCV promoveu um
movimento de resgate da palavra ao incentivar a publicao de textos de mulheres no seu rgo divulgador: a revista MUJER. Nela, as principais escritoras do
pas puderam iniciar as suas carreiras.
As escritoras cabo-verdianas tm empreendido uma viagem pelo espao
crioulo, traduzindo cada ilha em metforas caracterizadoras do socius, retratos
animados pela tica da mulher que pormenoriza os fatos do dia-a-dia. A linguagem literria recupera as personagens, funes, objetos e tudo o que constitui
o universo cultural de Cabo Verde a fim de codificar e elevar o senso de caboverdianidade.
No interior das estruturas sociais, as mulheres, desde tenra idade, realizam tarefas quotidianas com o objetivo de manter o bem-estar da famlia.
comum ver, especialmente nos espaos rurais, meninas carregando gua, catando lenha, vendendo verduras, cuidando dos irmos menores e dos animais de
pequeno porte necessrios ao sustento da casa. Essas individuaes tecem uma
rede de relaes que aprofunda a importncia socioeconmica da mulher em
Cabo Verde. No espao exterior ao lar, ela quem agencia muitas das formas
possveis de troca. Vemos, ento, mulheres rabidantes (vendedora) trocando
moedas estrangeiras (cmbio), comprando e vendendo mercadorias de grande
porte (gneros alimentcios de primeira necessidade em grandes quantidades);
joalheiras ambulantes, com seus caixotes e banquinhos, vendendo ouro proveniente de Lisboa; mulheres que saem de madrugada para comprar peixe, verduras e mantimentos para negociar.
Nesse vaivm constante, a estrutura familiar sofre alteraes e as mulheres passam a empregar os prprios filhos e o marido como ajudantes imediatos.
Seu valor social e econmico vai sendo reconhecido e, embora analfabetas em
sua maioria, esto consolidando a fora do comrcio varejista no pas. Essas so
algumas das peculiaridades da cultura cabo-verdiana que as escritoras capturam, focalizando os papis desempenhados pelas mulheres e descrevendo suas
relaes e desdobramentos.
Esclarecemos que foi bastante lento o percurso histrico do aparecimento da escritura feminina no panorama literrio crioulo. O prelo foi instalado em
Cabo Verde em 1842 e, somente por volta de 1885 o cnego Antnio Manuel da
Costa Texeira criou o Almanach luso-africano, que iria motivar o surgimento do
Almanach de lembranas luso-brasileiro (mais tarde denominado como O novo
almanach de lembranas luso-brasileiro, 1851-1852). Antnia Gertrudes Pusich,
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

de So Nicolau (filha de Antnio Pusich, governador de Cabo Verde e oficial de


Marinha), despontou para a literatura no Almanach. Ainda sob o peso da estrutura educacional da poca, Antnia Gertrudes escreveu textos lricos elegacos,
laudatrios e histricos, experimentando ainda outros gneros como o dramtico, o ficcional e o jornalstico. Fundou e dirigiu o Jornal da Instruo e publicou
textos poticos nos jornais da poca: A beneficncia, a Assemblia literria e A
cruzada. Vale ressaltar que Antnia Gertrudes foi uma das primeiras autoras
africanas a ser publicada e a ganhar importncia em Lisboa, contrariando o perfil do cnone crioulo, notadamente masculino.
Alm dela, Maria Lusa de Sena Barcelos (Africana) e Gertrudes Ferreira Lima (ou Humilde Camponesa) foram poetas que tambm surgiram no
Almanach de lembranas luso-brasileiro (1851-1932). Num mundo de valores
colonialistas e patriarcais, essas autoras conseguiram alcanar um lugar na histria literria, inaugurando, no processo da identidade das letras cabo-verdianas,
a viso das mulheres sobre as instituies sociais e culturais que as oprimiam.
De 1936 at 1960, a revista Claridade irradiava sua luz sobre o Arquiplago, conclamando funcionrios mdios e profissionais liberais (que escreviam
sob o impacto do Modernismo) a analisar sociologicamente a personalidade
cultural das ilhas. Sob o lema: Fincar os ps na terra, o cotidiano cabo-verdiano comeava a ser desvendado por olhares inquietos de mulheres que compartilhavam dessa manifestao identitria. Yolanda Morazzo Lopes da Silva Cruz
Ferreira Yolanda Morazzo , neta do escritor e ensasta Jos Lopes, insere-se
nesse contexto ao lado de Silvia Crato Monteiro. Convivendo com a elite intelectual dos anos 1960, Yolanda Morazzo participa tambm de outras iniciativas que
se a seguem Claridade como: Suplemento Cultural, Morabeza, Ponto e Vrgula e
Arquiplago. Cntico de Ferro o seu trabalho mais citado (1976). uma autora
antologiada por J. de Figueiredo em Modernos poetas caboverdianos (1961), por
A. Simes em Ns... somos todos ns (1969), por Manuel Ferreira em No reino de
Caliban (1975) e tambm por Russell Hamilton em Literatura africana, literatura necessria, v.1 (1984).
Certeza (1944) enriquece a via identitria de Claridade com ideias marxistas, de um grupo de jovens embebidos pelas concepes neorrealistas, tradutoras do inconformismo crescente com relao s injustias sociais; em sintonia
com o panorama mundial, coloca o Arquiplago no centro dos acontecimentos
histricos, com produes de forte contedo regionalista em oposio concepo de Metrpole. Certeza tem em Orlanda Amarlis a configurao perfeita da
fora da mulher cabo-verdiana na luta pela construo de seu pas. ela a nica
mulher a participar de um importante momento para a Literatura Cabo-verdiana, buscando a afirmao cultural por meio do questionamento da identidade,

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

da africanidade e da cabo-verdianidade. A seca, a dispora e as questes sociais


so temas recorrentes na escritura de Orlanda Amarlis, que mergulha no imaginrio das ilhas para registrar as dificuldades da mulher crioula, articuladora
da famlia e da sociedade. a nica escritora entrevistada por Michel Laban na
obra Encontro com escritores, v.2.
Em 1974, Orlanda Amarlis publicava Cais-do-Sodr t Salamansa, depois Ilhu dos Pssaros em 1983 e A casa dos mastros em 1989. Privilegiando as
mulheres em seus contos, procurou registrar suas vidas e seus desejos de liberdade.
Mergulhando tambm nas inquietas guas da escritura feminina, a poesia de Maria Guilhermina se inseriu no Suplemento Cultural, peridico que sucedeu Certeza nos anos 1950 e 1960, em que despontaram os poetas Gabriel
Mariano, Ovdio Martins e outros. Acompanhando o calor das discusses desse
momento de forte aquecimento da intelectualidade, os Boletins do Ginsio Gil
Eanes, organizados pelos alunos desse estabelecimento de ensino em Cabo Verde, construram a armadura poltico-literria que sustentou os valores da nacionalidade livre do jugo colonial. Era, pois, mais que hora de informar ao mundo
sobre o Arquiplago pela via da escrita cunhada na luta. As mulheres escritoras
tambm clamavam por liberdade em suas produes. Nesse momento, Maria
Jos da Cunha divulgou seus poemas escritos em crioulo, a fim de marcar a africanidade moldada na cabo-verdianidade, construda passo a passo no cotidiano.
O livro Contravento, organizado por Lus Romano em 1982 apresentou alguns
dos poemas dessa autora, que acentuava a aproximao com a frica.
Maria Margarida Mascarenhas (M.M.M.) registrou o viver nas ilhas,
desnudando a vida de homens e mulheres considerados por ela como fermentos necessrios construo do pas. Participou da direo de Presena Crioula,
rgo da Casa de Cabo Verde, e colaborou ainda com Sel, movimento literrio
dos anos 1960: Eu contista me confesso... [...] No texto e no pretexto a contista autobigrafa atravs do fio condutor das estrias, em completa identificao
e sobreposio com as personagens: o Povo cabo-verdiano (MASCARENHAS,
1988, p. 7).
A coletnea potica Canto liberto (1981), por exemplo, teve o mrito de
divulgar tanto as escritoras que publicaram uma nica vez como tambm outras
que descobriram, no ofcio da palavra, um canal eficaz para o entendimento do
mundo e de si mesmas. Alice Wahnon Ferro, Alcia Borges, Arclia Barreto, Ana
Jlia, Alzira Cabral, Dina Salstio, Eleana Lima, Lara Arajo, Ldia do Rosrio,
MGNela, Nely, Eunice Borges, Lara Arajo ou Madalena Tavares, Manuela Fonseca, Margarida Moreira, Maria Jos da Cunha e Lusa Chantre foram algumas
escritoras que se firmaram no cenrio literrio desses frteis anos.
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Faremos referncia apenas produo das que se destacaram devido


importncia de seus trabalhos na sociedade e frequente presena nos peridicos que alimentaram a produo literria feminina. Paula Martins (Ana Paula
Martins), sobrinha do poeta Ovdio Martins, sociloga, jornalista, poeta, escreveu na imprensa (Voz di Povo, Jornal de Letras, Artes e Ideias) e colaborou com a
antologia Mirabilis: de veias ao sol.
Vera Duarte, nascida em So Vicente, ocupou importantes cargos pblicos como Diretora Geral do Gabinete de Estudos do Ministrio da Justia,
dirigente da Organizao das Mulheres de Cabo Verde, Juza Conselheira do
Supremo Tribunal de Justia, membro da Associao dos Escritores Caboverdianos, membro da Comisso Africana dos Direitos do Homem e da Comisso
Internacional de Juristas, Ministra da Educao e Ensino Superior, Vice-presidente da Academia Cabo-verdiana de Letras. poeta, ficcionista, colaboradora
Mudjer, Ns na Luta, Ponto & Vrgula, Razes, Unidade e Luta, Fragmentos, Voz
di Letra, Voz di Povo, A Tribuna, Pr-Textos, Revue Noire, Ekhos do Paul, Antologia de poesia caboverdiana, Mirabilis: de veias ao sol. Publicou, entre outras,
obras de poesia: Amanh amadrugada. (1993) e Arquiplago da paixo (2001),
Preces e splicas ou os cnticos da desesperana (2005); romance (A candidata,
2003), crnicas (A palavra e os dias, 2013).
Dina Salstio (Bernardina de Oliveira), assunto de nossa dissertao de
Mestrado, uma autora nascida em Santo Anto que parte do particular para
atingir a compreenso do geral, ou seja, da realidade cabo-verdiana vislumbra a
humanidade contida em outras culturas, operando uma relao de equivalncia
entre as dores e alegrias do seu povo e do restante do mundo. Assistente social,
a autora exerceu a funo de produtora de rdio, diretora da Rdio Educativa,
funcionria do Ministrio dos Negcios Estrangeiros; co-fundadora das revistas Mudjer e Ponto & Vrgula, membro da Associao dos Escritores Cabo-verdianos e da Academia Cabo-verdiana de Letras, ficcionista e poetisa, mescla os
gneros literrios e surpreende o leitor com um estilo inovador, ora crtico e at
humorstico, ora reflexivo e filosfico. Colaborou em vrios jornais e revistas
como: Fragmentos, Voz de Letra, A Tribuna, Montanha, Ekhos, Pr-Textos, Revue Noir, produzindo tambm livros infantis e obras de carter pedaggico. Seu
livro de contos, Mornas eram as noites (1994), os romances A louca de Serrano
(1999) e Filhas do vento (2009) mostram a fora das mulheres na estrutura social da comunidade, como fora modificadora de comportamentos e motora de
transformaes sociais. Seus textos seguem uma temtica moderna de cunho
universalista, interrogando o narrador ao fim das estrias e convidando o leitor
a interagir com o texto por meio da reflexo.
Outra autora de carter relevante Arclia Barreto (Arclia Manuela da

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Rocha Lima Barreto), nascida em So Vicente, licenciada em Economia em Lisboa, militante do PAIGC, conselheira da Presidncia da Repblica, co-fundadora do movimento Pr-Cultura. Poetisa e contista, colaborou em vrias revistas,
suplementos e antologias como: N Pintcha, Voz di Povo, frica, A Tribuna, Voz
di Letra, Mirabilis: de veias ao sol.
Escrevendo livros ou publicando em folhetins, as mulheres cabo-verdianas descrevem as ilhas e suas lembranas em prosa ou poesia. O romance tem
ocorrncia menor nas letras cabo-verdianas de autoria feminina, mas desponta
com Leopoldina Bastos, Dina Salstio, Vera Duarte e Ondina Ferreira.
A ficcionista Sara Almeida, que escreve desde 1946, publicou a novela
Depois telefono em 1983, entremeando na fico episdios da guerra colonial e
tambm da dispora, acentuando, em seu texto, as diferenas polticas e culturais entre a Guin Bissau e Cabo Verde, entre os africanos e os europeus.
A tranquilidade das ilhas, o papiar gostoso nas janelas e portas e outros
pormenores da vida crioula so aspectos acentuados pela escrita de Ivone Aida,
que recupera antigas mornas em seus contos, embalando personagens em amores no correspondidos, expostos no livro Vidas vividas (1990), que tem prefcio
de Orlanda Amarlis.
Como sintetiza Simone Caputo Gomes, a escritura de autoria feminina
segue um projeto claramente vinculado s vivncias do cotidiano cabo-verdiano, a instantes de vida, vidas vividas (GOMES, 2008, p. 181).
Ftima Bettencourt inicia seu livro de contos, Semear em p (1994), com
um texto intitulado Vov (uma histria de amor e morte), acentuando a importncia do ancio na cultura africana e patenteando a africanidade no seio da
cabo-verdianidade, transferindo, contudo, o ofcio de manter a tradio para a
mulher, que substitui o av morto na atividade de contar: Abramo-nos e chormos o nosso querido av; at nos sentirmos aliviados. Assumindo o comando
da situao, comecei a contar ao Julinho uma das histrias predilectas do vov
(BETTENCOURT, 1994, p. 5).
Traduzindo as tenses e os impasses de uma nacionalidade em construo, as escritoras harmonizam as dissonncias das vozes que vm das diferentes
ilhas, nas pginas produzidas a partir das vivncias dos ilhus, gente simples,
cujos gritos e sorrisos so plasmados pela fico. A tabanca, os finaon, as mornas, os batuques, as histrias de gongons, a pesca da baleia e o grogue representam marcas culturais que sobressaem nos casos contados e, com os fios da memria, vo-se cosendo fatos passados e presentes, projetando o futuro, tecendo
a nao com retalhos do cotidiano feminino e do seu cotidiano.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

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Corpos negros que ecoam do outro lado do Atlntico


Suely Alves de Carlos

No conto Nina (AMARLIS, 1974)1, Orlanda Amarlis, ainda que permanea na sua temtica mais constante a dispora cabo-verdiana , afasta-se, entretanto,
de outras questes recorrentes em suas narrativas: pobreza, como propulsora da emigrao, e gnero.

Neste conto, um jovem desloca-se a Portugal, mais precisamente Lisboa, para estudar agronomia, fato que nos leva a crer tratar-se ele de algum
oriundo da elite de Cabo Verde. Portanto, embora seja imigrante e faa parte da
comunidade cabo-verdiana, o rapaz, por seu nvel de educao, estabelece-se
num patamar superior de diferenciao social. Afinal, ele foi a Lisboa cursar a
faculdade de agronomia.
Conforme aponta Lus Batalha, os membros da comunidade cabo-verdiana em Portugal dividem-se em dois mundos:
[...] por um lado, o das pessoas que possuem educao secundria
ou superior, que defini algures (Batalha 2004, 2004b) como a elite colonial cabo-verdiana; por outro, o dos migrantes trabalhadores
cabo-verdianos, pessoas com pouca ou nenhuma educao escolar
(BATALHA, 2008, p. 25).

Aqueles a quem o estudioso chama de elite aparecem mais integrados nas camadaseconomicamente mdias e superiores da sociedade portuguesa.
Mesmo que o jovem do conto seja egresso de um Cabo Verde ainda colnia de
Portugal (o livro de 1974 e a independncia ocorreu em 1975), o fato de no
ser o imigrante clssico movido pela fome torna-o singular.
A emigrao cabo-verdiana se iniciou como consequncia da Segunda
Guerra Mundial, quando polticas econmicas de crescimento impulsionaram a
reconstruo de estruturas europeias devastadas pela guerra, principalmente na
dcada de 1950, o que atraiu enorme contingente de mo de obra no especializada.
Porm, foi na dcada de 1960 que grandes levas de imigrantes de Cabo
Verde comearam a chegar a Portugal. Desses, apenas um pequeno nmero tinha formao secundria e superior. Como no caso do jovem da narrativa de
Orlanda Amarlis, esses imigrantes vinham para estudar e, muitas vezes, conseguiam colocao compatveis com seus estudos na mquina administrativa da
metrpole. Lus Batalha ressalta:
1 Daqui por diante citado como N, na obra CSS.

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Esta elite instruda integrou-se facilmente quer na sociedade colonial, adoptando os seus ideais dominantes, que aceitou e com os
quais se identificou, quer na sociedade portuguesa ps-colonial,
onde se identificou, sobretudo, com o conjunto de valores conservadores que reflectem a nostalgia do velho imprio e da colonizao.
So pessoas que pouco ou nada tm em comum com a massa dos
trabalhadores migrantes vindos de Cabo Verde, a no ser uma identidade colectiva cabo-verdiana, suficientemente vaga e flexvel para
acomodar a grande diferena social (BATALHA, 2008, p. 27).

Conforme salientado, esse segmento tratava-se de um grupo diminuto,


j que a massa dominante era composta por trabalhadores sem qualquer formao profissional e de baixa escolaridade. Se nas dcadas anteriores Revoluo
dos Cravos, em 1975, a populao portuguesa aceitou os imigrantes no s em
funo da escassez de mo de obra resultante da emigrao portuguesa para
outros pases europeus mas tambm resultante da Guerra Colonial em frica
(LOPES FILHO, 2007, p. 66), a partir dos anos ps-revolucionrios, muitos portugueses espalhados pelo mundo voltaram terra natal e passaram a ver os cabo-verdianos como estrangeiros, j que Cabo Verde tornara-se independente.
Os imigrantes no so mais bem-vindos. Portanto a integrao desses imigrados
na sociedade de acolhimento encontra obstculos que vo alm da questo colonizador x colonizado.
Voltando narrativa de Orlanda Amarlis, o jovem cabo-verdiano no
nomeado-a nica referncia um chamado feito por jovens portugueses no
comboio: Olha quem ele (N, p. 30) conhece a jovem portuguesa que d
ttulo ao conto quando fora hspede na casa da tia de Nina, precisamente na
poca em que veio para se matricular em agronomia (N, p. 26). A pirralha de
longas tranas gostava de comer as guloseimas que chegavam de Cabo Verde,
fato que nos mostra como o rapaz ainda permanecia preso aos hbitos das ilhas,
neste caso, alimentares. Segundo Joo Lopes Filho, o emigrante em Lisboa tenta
adaptar-se culinria portuguesa/ocidental, no dispensando, sempre que possvel, os pratos cabo-verdianos, que so um regalo para o convvio (LOPES FILHO, 2007, p. 67).
Nina cresceu e a amizade e a camaradagem entre intensificaram-se. Tornaram-se inseparveis, cupinchas para as futuras farras (N, p. 27). Nota-se que
a jovem clara de olhos azuis no v problemas em compartilhar momentos de
festa e prazer com o rapaz negro. Chegaram mesmo a certas intimidades, beijos
e carcias.
Mas a Nina que ele v na gare outra. Na figura distante e incolor, linear e abstrata, indecisa e glacial (N, p. 25), o rapaz no consegue divisar quaisquer feies familiares. Posto a knock-out por Nina com sua indiferena, o jovem

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

cabo-verdiano reflete obre os diferentes mundos em que agora vivem. No lhe


permitira a aproximao, sequer, do mundo diferente a que ela pertencia agora.
Arredara-o com a segurana sempre usada quando era preciso escolher (N, p.
29).
No momento da escolha, a jovem loira de olhos azuis no fugiu regra.
Apesar da camaradagem da infncia e adolescncia, nunca se casaria com ele.
Aborrecia-a a ideia de vir a ter filhos de cor. (N, 29). Perpetuou-se o estigma da
cor da pele, com toda a carga negativa que a isso se atribui. Claro est que, mesmo pertencendo a um classe mdia que no opinio de Lus Batalha se v como
portuguesa-cabo-verdiana ou cabo-verdiana-portuguesa (BATALHA, 2008,
p. 29), o jovem no pde fugir ao preconceito.
Para Franz Fanon (2008, p. 31), a estrutura scio-econmico-cultural
gerada pelo colonialismo deixou razes profundas em nossa maneira de ser. Para
que houvesse uma estrutura diferente, seria necessria uma ruptura com o pensamento escravista, coisa que no aconteceu. Continuamos formando hordas de
cidados aos quais se negam os mais elementares direitos e que engrossam os
bolses de misria das periferias.
Frutos da razo Iluminista, marcas profundas foram deixadas no Ocidente. Desumanizar povos africanos, reforando uma imagem de atraso e barbrie, nutriram o pensamento europeu e formaram seu conceito de civilidade
e superioridade, fato que por si s justificaram relaes de domnio e tutela do
resto do mundo. Na trilha de Fanon (2008, p. 31), o colonizador visto como
representante do mundo civilizado, e o colonizado pertence ao mundo animal,
sendo, portanto, um ser de instintos primrios, sem valores nem cultura, voltado
a crendices e supersties. Sem dvida esse um dos traos mais marcantes da
herana colonialista, pois sempre tendemos a valorizar o que estrangeiro em
detrimento de nossos valores culturais.
Portanto, ao refutar a ideia de unir-se a um negro e com ele ter filhos,
Nina reafirma o pensamento dominante na sociedade portuguesa que define
os imigrantes das colnias como africanos ou jovens de origem africana. Tal
hbito se d, inclusive, com aqueles que tiveram a cidadania portuguesa reconhecida durante a ditadura de Antnio Salazar expediente utilizado como forma de arrefecer e desestabilizar as lutas pela independncia e os nascidos em
Portugal.
Se a reao de indiferena de Nina na gare colocou o jovem a knock-out,
imagine-se a humilhao sofrida no momento de exploso do preconceito por
parte da garota portuguesa. Humilhao que se junta ao estranhamento, j que a
moa at aquele momento mantinha uma relao de camaradagem com o rapaz.
Alm do mais, oriundo que era da elite das ilhas, que no considera Cabo Verde
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

territrio africano, julga-se portuguesa e sempre apoiou as polticas colonialistas, julgava-se em p de igualdade com Nina. Conforme expe Lus Batalha:
A mudana poltica que acabou com o regime colonial e colocou o
PAIGC (Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo
Verde) no poder um marxista que falava de uma sociedade sem
classes e contra a propriedade privada, introdutor da reforma agrria
e das nacionalizaes desagradou ao sector mais conservador da
elite cabo-verdiana colonial (no fundo a maioria). O seu programa
poltico era visto como uma ameaa ao estatuto social dessa elite
formada no perodo colonial (BATALHA, 2008, p. 29).

Dessa forma, para algum recm-chegado das ilhas, era natural que o
rapaz tentasse adaptar-se ao universo em que viveria pelo perodo necessrio
sua formao universitria. Embora gozasse situao confortvel em relao
aos imigrantes comuns (viajava na carruagem de primeira classe quando do encontro com Nina), e no manifestasse grande desconforto em sua situao,
imigrante, vivena dispora, com todas as consequncias que esse fato acarreta.
Vive no entrelugar de duas culturas: europeia e africana. Sua identidade tornase, assim, binria num equilbrio entre dois mundos. Como argumenta Jonathan
Ruthenford 2000, p. 19), a identidade marca o encontro de nosso passado com
as relaes sociais, culturais e econmicas nas quais vivemos agora... a identidade a interseco de nossas vidas cotidianas com as relaes econmicas e
polticas de subordinao e dominao.
Mas se a glida reao de Nina, agora casada, durante o encontro na gare
refora a preconceituosa postura portuguesa frente imigrao africana, como
entender que no perodo em que o rapaz hospedou-se na casa da tia da menina
tenham desfrutado de uma relao de convvio to prxima? O mito da virilidade do negro, provavelmente, pode ser a resposta. Sempre considerada uma
ameaa pelos colonizadores europeus, a masculinidade de negro uma imagem
recorrente desde o tempo da escravido nas Amricas.
No conto de Orlanda Amarlis, o corpo do jovem cabo-verdiano que
dana que atrai Nina. Alicerado numa cultura oral, o africano tem no corpo
uma forma de expresso que se coaduna fala. Ao contrrio de outros povos
para quem os rituais de exaltao s divindades so feitos por meio de oraes
e splicas, os rituais africanos se manifestam em danas vigorosas. Lembremos
que a principal arma de defesa do negro escravizado no Brasil era uma dana, a
capoeira, que em movimentos sincronizados, msculos e sensuais tornou-se o
terror dos senhores.
Por tratar-se, ento, de uma cultura oral, busca na natureza o equilbrio
de foras do mundo visvel e invisvel, conjugada em termos de terra, gua, fogo
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

e ar. Como argumenta Maria Antonieta Antonacci (2013, p. 229):


Culturas que se expressam e comunicam, guardam e transmitem
energias em performances corporais, associando tempo a espao,
homem natureza, arte vida. Que produzem e repassam culturas
mediando mensagens e pessoas em presena e fabricao contnua
de corpos, em interlocues extraverbais, via imagens e metforas,
figuraes e representaes, simbologias e significados, recorrendo a
rituais e ritmos, provrbios, adivinhaes e outros recursos lingusticos.

No por acaso que as lembranas do jovem cabo-verdiano referem-se justamente dana. A Nina apresentada por ele uma jovem com quem compartilha momentos de frenesi ao som de ritmos americanos Let me see my Love (CSS, p. 28).
O corpo do rapaz representa a ponte entre dois continentes, duas culturas distantes,
intermediadas pelo rock and roll, ritmo surgido nos Estados Unidos em meados dos
anos 1950, de cujo trip faz parte justamente a msica negra daquele pas.
Tendo como mxima expresso musical o fado, msica melanclica e saudosista, a menina portuguesa buscou no vigor do cabo-verdiano o companheiro perfeito
para extravasar sua energia e alegria juvenil, usando a linguagem do corpo. Esses corpos negros que danam ao som de ritmos afros levaram P. Miller a cunhar a expresso
esculturas sonoras, juno de sonoridades e memrias encravadas em instrumentos
e tcnicas musicais que perenizam vibraes de corpos negros (MILLER, 2005).
Ainda que uma das principais manifestaes musicais de Cabo Verde seja a
morna, ritmo que traz alguma semelhana com o fado, tanto na cadncia como na melancolia - que neste caso expressa o sofrimento do cabo-verdiano as ilhas apresentam
uma gama elevada de sons, ritmos e danas.
Fruto do cruzamento entre ritmos africanos, europeus e sulamericanos, a
msica popular cabo-verdiana tem diversas representaes, bem como de locais diferentes, conforme sublinha Simone Caputo Gomes (2008, p. 147): tabanca da ilha de
Santiago (ritual, repetitiva, com bzios soprados em contraponto, tambores e cornetas
de lato), ritmos da festa do pilo na ilha do Fogo (o pilo de cuchir o milho utilizado
tambm como instrumento musical), tambores de San Jom, mazurca e contradana
(oriundas da Europa) cultivadas na ilha de Santo Anto, coladeira (exuberante, sensual, com traos da cumbia e da msica afrocubana), batuque da ilha de Santiago (grito
africano, mulheres tocando percusso nas coxas, com panos e bolsas de plsticos), finason (lamento escravo), funan (um transe hipntico), canto cristo da divina de So
Nicolau (a quatro vozes de mulher) e morna nostlgica da Boa Vista, com seus acordes
sincrticos (originrios da modinha brasileira cruzada com lundum, fado, samba, foxtrot e mambo).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Para onde quer que tenha ido, o corpo do negro foi o principal veculo de
resistncia e transgresso. Por meio de jogos, dana, festividades, cerimnias religiosas, os negros recriaram tradies, inventaram novos smbolos, guardaram memria
ancestral e as ensinaram s novas geraes.
Dessa forma, esse corpo que dana, e no conceito de Slvio Romero quase
impossvel falar a homens que danam (ROMERO apud VELLOSO, 2007, p. 4), no
passou indiferente por Nina. Ao som frentico do rock and roll, nos bailes da Casa
dos Estudantes local criado durante a ditadura salazarista para apoiar e controlar
estudantes da colnia, mas que acabou se tornando bero dos lderes africanos em Lisboa cimentaram de vez a amizade (N, p. 26). Ainda que o rock no fosse o ritmo da
formao do jovem cabo-verdiano, seu corpo trazia a linguagem oral, visual e sonora,
evidenciando que o corpo e a memria so inseparveis nas culturas socializadas em
matizes orais. Como afirma Antonacci (2013, p. 154), suas tradies, transmitidas em
presena de corpos, materializam-se em gneros no-verbais de narrativas inerentes
moldagem de corpos enquanto fontes vivas, que perenizam rumores de culturas latentes em dobras da dominante civilizao ocidental crist.
Paralelamente linguagem de fora e ritmo que emana do corpo negro, outro atributo faz parte do imaginrio europeu: a articulao direta entre cor negra e
erotismo. Em sua pesquisa sobre a construo do sexo do homem negro na dispora,
principalmente na Pennsula Ibrica, Suely Aldir Messeder (2010, p. 9) afirma que o
mito da virilidade dos negros imigrantes no se restringe quela regio, pelo contrrio,
alimenta a fantasia sexual da mulher branca europeia. Ainda que as portuguesas sejam
mais retradas e conservadoras, tambm entre elas espalhou-se a crena, que a mulher
branca descobriu e difundiu, sobre a competncia sexual do homem negro.
Tambm Roger Bastide refletiu sobre esses encontros interraciais em funo
do mito de que os vares negros so virilmente superiores aos brancos. Mas pondera
que, embora esses encontros possam parecer um desafio ao racismo, resulta em racismo explcito ou disfarado, por conta dessa memria coletiva encravada nos corpos
racializados (BASTIDE apud MESSEDER, 2010, p. 5).
No toa que Nina, que por tantos anos foi companheiras de farras do jovem cabo-verdiano, ao som frentico da msica sada do toca-discos, teme que ele
possa tentar uma intimidade maior. Certa feita, a menina entra no quarto rapaz para
pedir uma caneta esferogrfica emprestada. Ele se levanta e fecha a porta; feito que a
garota interpreta como uma insinuao da parte dele para algo mais ntimo. Ela reage
bruscamente.
Ele dera uma gargalhada indo sentar-se.
Fincou os cotovelos sobre a mesa, descansou o queixo sobre as mos
e olhara-a trocista.
s parva, tinha-lhe dito.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Nina no lhe respondeu. Todavia, faz-lhe sentir da a dias. Nunca


casaria com ele. Aborreci-a a ideia de vir a ter filhos de cor (N, p. 29).

Nesse momento crucial da relao de ambos, ponto em que se encerram


as reminiscncias do rapaz em relao ao seu passado com Nina, torna-se claro
que a menina portuguesa no v no jovem negro cabo-verdiano um possvel
marido. Se o relacionamento sexual interracial comum e at incentivado, o casamento, entretanto, fica fora de qualquer cogitao, j que uma das consequncias da miscigenao, dentro o fora do casamento, o filho de sangue mestio.
certo que se pode argumentar que o rapaz no tinha inicialmente a
inteno de casar com uma europeia branca. Ter-se hospedado na casa de Nina
foi um acaso, ou melhor, deriva do fato de ele pertencer elite das ilhas, estando,
portanto em condies de arcar com o custo de uma moradia mais dispendiosa,
pois na maioria das vezes as famlias portuguesas brancas, devido ao racismo,
recusavam-se a alugar quarto a pretos (BATALHA, 2008, p. 31).
Se no almejava casar-se com uma mulher europeia branca, e sempre pensara terminar o curso e voltar para Cabo Verde onde casaria com uma
crioula sabe-de-mundo (N, p. 29), o fato que nas narrativas feitas pelo rapaz
h uma presena constante de portugueses. Dentre os jovens que encontra no
comboio, destaca-se a loura com uns olhos azuis como os de Nina (N, p. 31).
Porm, como os de Nina, frios e alheios. O envolvimento com amigos portugueses evidencia que, por sua condio econmica, o jovem cabo-verdiano, ainda
que recm-chegado das ilhas, mantm um certo acesso sociedade portuguesa.
Mas, talvez diferentemente do seu julgamento, essas relaes so superficiais, como a de Nina, situao emblemtica do status do imigrante africano
em Portugal, mesmo para aqueles que l esto para estudar ou em funes superiores. O convite feito pelos jovens no comboio somente para diverso:
Queres ir connosco?
Vamos pr li. Vamos estar um bocado ao ar livre.
Os outros esto nossa espera. Levam sandes e dry gin.
Se quiseres estamos ali (N, p. 31).

Aborrecido com a fria recepo de Nina ao seu chamado e cumprimento, ele no d devida ateno ao convite. Reflete sobre sua condio de imigrante
sem conseguir atinar com a dimenso da vida na dispora. No percebe que
o hibridismo resultante do encontro das mais diversas culturas no livre de
tenses. O pano de fundo que possibilita a mistura cultural composto pela
existncia de uma zona de contato. Nos termos de Mary Louise Pratt (1999, p.
29), zonas de contato so espaos sociais onde culturas dspares se encontram,

191

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

chocam, entrelaam uma com a outra, frequentemente em relaes assimtricas


de dominao e subordinao como o colonialismo, o escravagismo ou seus
sucedneos praticados em todo o mundo.
Particularizando a questo, pois no tem noo da situao econmica,
social, da opresso e do isolamento em que vive o imigrante comum, ressente-se
com a jovem: Nina? Qual Nina? A Nina das pndegas, das gargalhadas intempestivas, a dos cigarros fumados a meias, ou aquela, a tal da gare, senhoril, de
riso incolor e distante? To distante como tudo a separ-los j um do outro (N,
p. 31).
Dessa maneira, Orlanda Amarlis, ao apresentar uma personagem que
mesmo estando na dispora sai do seu foco mais constante pobreza e gnero
, propicia uma discusso que vai alm da questo do imigrante que busca outra
terra por necessidade. Neste conto, fica mais fcil perceber o preconceito, ainda
que, por vezes, parea estar mais latente que explcito, pois o rapaz no consegue
estabelecer relaes pessoais mais profundas e duradouras com os naturais da
metrpole.
Pelo olhar aguado e perspicaz de Orlanda Amarlis, conseguimos perceber aquilo que o jovem cabo-verdiano no consegue: no basta uma boa situao econmica para anular o preconceito. Mesmo que nos momento de festa
sua presena seja desejada, por sua alegria e vigor fsico, no basta um corpo
que dana. Para o pensamento racional, cartesiano e cristo do Ocidente, e consequente noo de detentor do saber e da cultura, dos quais se fez tutor, um
homem negro no um homem, o corpo negro sempre foi visto como mquinas explorveis, mercadoria com preo, tanto no sistema escravagista quanto no
capitalista, ao mesmo tempo em que o assemelha a um animal em contraste com
o homem branco, denunciou Franz Fanon (2008).
O jovem cabo-verdiano que segue no comboio de primeira classe atordoado com a indiferena da antiga companheira de festas no percebe a dimenso histrica de tudo que se passa a sua volta. Criado com privilgios inexistentes para a quase totalidade dos habitantes da ilha, e pertencente a uma classe
social que mantinha estreitas relaes com a metrpole do Imprio Portugus
que por cinco sculos subjugou pases africanos, dentre esses, o dele, no nota
que sua situao social no impede que ele, como todos os africanos, esteja fora
do processo civilizatrio europeu.

Mas Orlanda Amarlis nota. Se o jovem no nomeado a personagem principal da narrativa, por que o conto se chama Nina? Jane Tutikian, em
seu livro Inquietos olhares, quem esclarece:

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Na obra de Orlanda Amarlis o estrangeiro figura como superior


cultura nacional e sua importao significa, em ltima anlise, esse
reconhecimento, uma vez que tal processo configura o prprio espelhamento: olhar o Outro e construir sua imagem significa revelar
a imagem que o Mesmo tem de si (TUTIKIAN, 1999, p. 103-104).

Orlanda Amarlis sabe que o aludido processo civilizatrio europeu restringiu o mundo com sua prpria lgica cartesiana, desprezou saberes de outros
povos e universalizou o pensar ocidental. Mas as cincias europeias que com
seu racismo e racionalismo, perderam de vista os meios celebrando a vitria
da razo , em processo de globalizao, enfrentam diferenas que levam diferena. Como todas as formas de vida humana eram excludas em discurso
unificado de civilizao, a diferena, nas mutaes de ser o Outro, tornou-se
uma posio marcada de forma diferencial (performtica) dentro da cadeia discursiva (HALL, 2003, p. 8).
Claro que no se deve esquecer que o jovem cabo-verdiano no vive
numa situao de exlio, j que se encontra em Lisboa a estudo. Mesmo que
mantenha contato com seus conterrneos na Casa dos Estudantes, esses no
aparecem diretamente na narrativa, mas, sim, os portugueses. Como hoje se tornou impossvel ver o indivduo moderno como um ser unificado, uma vez que
as velhas identidades esto em declnio, o que surge em seu lugar o sujeito
fragmentado (HALL, 2003, p. 8).
Embora o jovem migrante tenha, no conto de Orlanda Amarlis, uma
identidade de origem que a liga aos demais habitantes do arquiplago, no expressa ao seu grupo a solidariedade e fidelidade habitual para quem vive na situao de dispora, fundamentalmente por uma questo de classe social. Ao
contrrio, parece comprovar asseres de tericos como Kenneth Thompson
(Apud HALL, 2003, p. 73-74), para os quais surgem hoje as identificaes globais, provocadas pelas trocas culturais entre as naes e a distncia em que as
pessoas se encontram de seu pas de origem.
Ah, Nina, ts com a mosca da nova vida. H-de te passar (N, p. 30).
Esse pensamento do rapaz como reao indiferena da jovem portuguesa a
prova de que ele no tem uma percepo abrangente de sua situao de jovem
negro imigrante. Por pertencer a uma elite cabo-verdiana julga-se livre do preconceito europeu. Ningum est.
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193

Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

do homem negro na dispora: um estudo sobre as relaes dedesejo nas masculinidades de


vares migrantes na Espanha. Salvador: Fazendo Gnero 9, 2010.
BATALHA, L. Cabo-verdianos em Portugal: Comunidade e Identidade. In: GIS, P. Comunidade(s) cabo-verdiana(s): as mltiplas faces da imigrao cabo-verdiana. Lisboa: Observatrio
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TUTIKIAN, Jane. Inquietos olhares. So Paulo: Arte e Cincia, 1999.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

O poema, a viagem, o sonho: o mapa de uma potica


Vilma Aparecida Galhego

O poema: rotas em coliso


O poema retorna estao donde partem os comboios
rpidos, os quais, viajando em linha reta, por mais que
rodem, jamais alcanam o trmino.
Armnio Vieira

Descrever os processos pelos quais a potica da contemporaneidade se


constri implica percorrer os caminhos movedios e cambiantes da palavra, que
ora parece desejar essa potncia de incompletude. O poema, apartado de uma
tradio que o definia, parece acontecer num espao e num tempo que merece
ser mapeado, no mais para marcar lugares fixos, mas para apontar caminhos,
bem como possveis deslocamentos em dilogo. O que o poema ainda tem a
dizer nessa sociedade tecnolgica? Como ele ainda pode acontecer em relao
com a escrita que se anuncia literria? O que diz o poeta nesse tempo e nesse
espao que se multiplica, que se desdobra, que se sobrepe num emaranhado
de lugares? O que pode ainda a poesia recolher do cotidiano, da desesperana,
do tempo fragmentado, da tecnologia, da tradio potica? O que interessa ser
dito e como isso pode ser feito, conferindo ao texto o estatuto de arte? E o poeta?
Quem esse sujeito? Como se articula nesses espaos?
Augustn Fernandz Mallo, em seu livro Postpoesia hacia um nuevo
paradigma (2009), apresenta-nos uma reflexo acerca do lugar que a poesia precisa ocupar para que se revitalize, uma vez que parece estagnada. Esse lugar o
de contnua investigao, de experimentao, de dilogo com as outras artes e
saberes, inclusive com a cincia. Essa conexo pode tirar a poesia de seu estado
de letargia e provocar o seu renascimento:
De la misma manera que las clulas actan por duplicacin de lo
ms pequeno a lo ms grande, y acogen em su estrutura toda la informacin del passado para lanzarla al organismo futuro, la poesia
postpotica intenta ser esse germen proteico, esa clula, que recoja
la tradicin, experimente com ella, la ensamble a todos los mbitos
de la cultura del Siglo 21, y la relance hacia um futuro orgnico, no
esttico, complejo, sin que por ello deba arrastrar proyectos utpicos
del passado (MALLO, 2009, p. 12).

Mallo ainda nos esclarece que a poesia a que chama de postpotica


deve pertencer ao seu prprio tempo e estar atenta a tudo que a cerca, expandindo-se a ponto de receber aquilo que margem, fraturado, irresolvvel, que

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

amplo e indefinido e que est contido na prpria vida. No mais interessa


uma rota que j est traada com o horizonte definido, mas sim o que esse caminho oferece durante o percurso. essa paisagem que interessa ser captada,
compreendendo que ela se altera e que escapa s mos de quem tenta ret-la. O
lugar em que se situa o texto postpotico construdo a partir do movimento,
de diversas composies possveis, por isso, pleno de possibilidades, constituindo-se num campo que anuncia vrias perspectivas com toda a fragilidade que
lhe inerente e nos apresenta:
Um mapa, que, como todo mapa, se transforma minuto a minuto,
se halla recorrido por lneas que se pierden em sus extremos, carreteras abiertas, espcios areos, trenes subterrneos, metrpolis, horizontes tunelados, cartografias (Y afiada, lector, a cada uno de esos
lugares la palavra postpoticos/as). Espacios a mdio nominar o an
innominados (MALLO, 2009, p. 14).

Ricardo Domeneck parece compartilhar dos pressupostos de Mallo


quando nos aponta o caminho que a poesia, em especial a brasileira, tem ocupado: o de bibel cultural, fruto de uma falta de investigao sistemtica, tornando-se uma prtica de bom gosto. Domeneck aponta-nos a necessidade de rever
a situao em que se encontra a produo potica brasileira, e preocupa-se com
o fato de a poesia ter se tornado algo domesticado e nos alerta sobre as armas
de combate inerentes ao texto potico, que precisam ser revitalizadas e historicizadas.
A viagem: o espao da palavra e o risco da poesia
Um rio que jamais o mesmo rio, eis a cruel metfora.
Herclito, que em tal rio navegou, tambm nele se afogou.
Armnio Vieira

Nesse sentido, abrimos o mapa e iniciamos uma viagem em busca dessa potica armeniana que to instigante e que nos oferece instrumentos para
perceber, sentir, experimentar esse espao de configuraes e transfiguraes, de
composies que recolhem da poesia o que ela tem no momento de sua apario: a prpria pulsao.
Para alm desse espao, que pode ser o de Cabo Verde como o do mundo, o poeta nos apresenta um tempo em que a vida acontece. Dialoga com outros poetas de todos os tempos e dos mais variados lugares, mas sempre o faz
trazendo esses sujeitos para o tempo em que ele questiona a prpria vida. No
se trata de um olhar novo, mas de um olhar atual para o atual, um olhar que

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

compreende o fazer potico como um trabalho que no se desvincula da sua


cultura e de como ela se movimenta. Desconstri os mitos e os coloca num lugar
banal, numa rua qualquer, num lugar sem importncia. Dessa maneira o tempo
age sobre eles como age sobre qualquer mortal. E junto do tempo, o desgaste, o
cansao, a transformao. Num de seus poemas constatamos isso: A Vnus de
Milo est gorda e fez cesariana, Apolo tem rugas e usa lunetas, Cupido cresceu
e sofre de hrnia. Acabou (VIEIRA, 1981, p. 41). A linguagem expressa e experimenta o diverso.
O poeta encara a finitude das coisas, das pessoas, da vida e no a mascara em seus textos, o fim anunciado como algo inevitvel: , afinal, tempo que
age sobre todos e tudo.
Essa potica se oferece, muitas vezes, de maneira cortante e bastante
cida, desesperanada e at pessimista; entretanto, ela tambm convive com o
humor e com a ironia. O poeta, ao escrever, joga as peas no tabuleiro, e como
no jogo, move as peas, sem pressa. Ganhar a partida significa vencer tantos
obstculos e isso que interessa a Armnio Vieira: encontrar a forma de dizer,
sem precisar recorrer a nenhum modelo; ao contrrio, inaugura o seu jogo e
permite-se construir, a cada jogada, o seu percurso, revelando o contato com a
msica, com o cinema (principalmente), com a filosofia, com as artes plsticas,
com a poltica e com tantos outros segmentos que compem a nossa forma de
organizar e viver planetariamente.
O caminho traado pelo poeta apreende os espaos que podem ser os
de Cabo Verde como os de qualquer lugar do mundo. Uma potica que questiona o percurso para no incorrer no caminho dado e j to trilhado. No recua
diante das encruzilhadas, ao contrrio, elas se fazem presentes tambm como
caminho, mesmo quando anunciam a desorientao. No h medo de perderse, afinal, quem joga, corre esse risco. Sobre a vocao do poeta, informa-nos
Simone Caputo Gomes:
A vocao do texto literrio produzido por Armnio Vieira para a
universalizao da arte potica (e tambm do discurso ficcional)
atesta a maturidade de um sistema literrio o cabo-verdiano.
Se a opo tomar, por exemplo, o seu trajeto de poeta como um
provvel paradigma para uma leitura da srie literria cabo-verdiana embora Armnio nunca se proponha a paradigmas, autodenominando-se to vadio quanto o vagabundo Carlitos chapliniano
[...] possvel acompanhar o percurso das motivaes de um sistema
que se forma a partir do impacto de questes locais/regionais e da
busca de uma cabo-verdianidade literria, voltada para o infinito,
que se vai consolidando como linguagem autnoma. Capaz de introduz(ir) mtrica nos teoremas/ e faz(er) da geometria um livro de
poemas (GOMES, 2011).

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

O poeta ao se autodenominar vadio, coloca-se na condio de errante, passeia pelos caminhos que deseja. No caso de Armnio, essa liberdade lhe
permite experimentar os limites/deslimites da sua potica. E o leitor, ao fazer
essa viagem, pode, pelo caminho, ir recolhendo o que nele h de pedregoso, de
buraco, de lixo, de barco quebrado. Bilhete perdido.
Vieira nos apresenta um caminho a ser conhecido, experimentado, mas
nos alerta sobre o desconhecido. A ilha para onde se pretende ir nova para o
viajante, porque ser apresentada a ele durante a sua busca, nascer da sua prpria escolha. No h rota traada e definida: o mapa, a bssola e o navio esto
dentro do marinheiro. Essa viagem demanda um apagamento de tudo aquilo
que se sabe, porque deseja ser nova, e para isso, faz-se necessrio no olhar para
trs, qualquer vestgio pode alterar a maneira de escolher o caminho:
Apaga as escrituras todas. Se a missa ou o sino de qualquer igreja
chegarem aos teus ouvidos, o que ouves apenas o vento a sacudir os
ramos, um velho boi ruminando sempre a mesma palha. Em ti h
um marinheiro demandando uma ilha onde ningum ainda esteve.
Tambm em ti encontrars o mapa, a bssola e o navio. H coisas a
que no deves atribuir nomes. A tua ilha no tem nome (VIEIRA,
2009, p. 11).

Esse caminho que nasce do risco, da experimentao parece estar presente na potica de Armnio. Sua arquitetura o busca. Um texto que descontri
o j dado e, contudo, no o ignora, ao contrrio, quando o imprime na folha do
livro, apresenta-nos um novo olhar (atual), talvez aquele que confira ao texto
algo de potncia e vigor. Como se o poema, ao se constituir, tambm constitusse
o equipamento que o far ser caminho (s). O mapa que anteriormente localizava
o poema parece no ser mais eficaz. O leitor precisa ser atirado no espao da
poesia e l traar o mapa que quer seguir. A palavra, no como algo que se fixa,
e sim como algo que circula e retorna, e que transita. Nesse sentido, o espao
potico passa a ser lugar de cruzamento, de rede, de encontros, deslocamentos
e acidentes.
J no mais o mar que interessa ao poeta, mas sim o que ele guarda:
Que que sabem das negras tormentas os que jamais se lanaram ao
mar, sendo que o que agora importa no o mar das sete vias, o qual
apenas interessa aos peixes, mas o dorido eco de quanto no mar se
ouviu e o rduo poema que o regista (VIEIRA, 2009, p. 94).

Poderamos ler, na esteira da caminhada, o questionamento do poeta e


o seu desejo de ouvir esses sons que so tambm poema, a matria do poema.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

No a beleza nem a calmaria que o interessa, e sim o que o mar guarda como
eco dolorido de uma voz que s o poeta escuta e cabe a ele torn-la audvel para
o leitor.
O sonho: o jogo da palavra e o desejo da poesia
Essoutro quem sonha os teus sonhos. ele que te faz subir aos altos cimos onde a Musa dita o poema: ele quem
te leva aos stios de onde partem os navios.
Armnio Vieira

Augustin Fernandz Mallo reflete acerca daquilo que podemos esperar


de um poeta: que pratique a postpoesia. Para ele, esse sujeito potico algum
que no est preocupado com regras que atendem a uma tradio consagrada
da potica. Esse poeta, que escreve na atualidade, compreende os mapas cruzados, enxerga as zonas de fronteiras, no descarta nenhum elemento, pois tudo
pode ser parte do caminho a ser construdo:
As, a um poeta que practique la poesia postpoticapoco le importa
que a um verso neoclssico le siga la fotografia de um macarrn o
una, em aparincia, incomprensble eciacin matemtica si esa solucin, metafricamente funciona. Este talante, naturalmente produce
zonas hbridas, cartografias em ocasiones literalmente monstruosas
(recordemos que monstruoso unicamente significa: aquello que no
estd em su prpria naturaliza), y es sa la zona de fronteira (MALLO,
2009, p. 36).

O poeta cabo-verdiano parece partilhar desse fazer postpotico na


medida em que dialoga com as ideias propostas por Mallo. No se furta angstia nem ao trabalho que essa poesia expandida oferece. Experimenta, tateia,
arrisca-se (como no jogo). Embora as peas sejam as mesmas, a cada jogo se
fazem novas porque ocupam novos lugares e o poeta tambm se refaz, porque
compreende o movimento do jogo, da vida:
De sonho em sonho, chega ao Inferno o sonhador, sendo que, ao
despertar, se v no meio de uma briga de assassino a que de todo
alheio, da qual porm no acha via de fugir, e assim se arrisca a morrer ou a ter que matar, eis a sina de quem, sonhando muito, nunca
cessa de viajar entre um inferno e outro inferno (VIEIRA, 2009, p.
103).

Para Armnio Vieira o inferno um lugar constante porque se apresenta como um espao de atrito, de questionamento e at mesmo de dor. O Paraso
um lugar de sonho e o poeta parece optar pelo espao dessacralizado, mais
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

prximo da vida e daquilo que lhe inerente.


H uma busca pela palavra hbrida, que se anuncia e se apresenta de
diversas formas, que se dissolve e recompe no ato da leitura.
Em Postpoesia podemos encontrar um esboo, j que no se trata de
modelo, do que possa ser o poeta que escreve no tempo atual, submetido a uma
velocidade e a um despedaamento do ser, bem como a uma sobreposio dos
espaos num novo ritmo. O poeta aquele que constri a sua arte e o equipamento que possa l-la. ao mesmo tempo o arteso e o crtico, sendo que a
instabilidade e a heterogeneidade no atuam como prejuzo, ao contrrio, so
ferramentas. Vieira compreende isso e nos devolve em forma de poesia quando dialoga com os mais variados campos do saber, quando olha para o mundo
sintonizado em sua gregariedade, consciente dos processos que articulam e
dissipam a sua potica:
Para el postpoeta, no hay programa ni reglas que seguir, no hay um
futuro que alcanzar, no hay passados que hipotequen el futuro ni futuros colectivos a los que llegar. Hace suyas las palavras de Dewey, el
futuro es meramente uma promessa, um halo que rodea al presente
((MALLO, 2009, p. 38).

Se o futuro uma promessa, a nica possibilidade da vida no tempo


real, s pode acontecer no momento do respiro, com toda a sua circularidade,
com idas e vindas, com a velocidade imprimida no dia a dia, e mesmo que houvesse o futuro, o que poderamos esperar dele? Vieira questiona a eternidade e
as promessas que a acompanham:
A Eternidade, estrangeiro velado numa estao algures, cuja razo
por que ali se encontra o que ningum sabe, porm certo que ele
no vai partir. E, assim, arranca o trem, levando o que o Destino,
o qual se entretm jogando jogos de obscuros fins e arbitrrias regras, oferta ao tempo. De tal estrangeiro, que se furta as coisas que se
medem e pesam com mquinas que ao tempo foram dadas, apenas
o homem, o homem somente, se d conta de tal estrangeiro numa
estao, alheio ao trem, do qual ele no passageiro, nem pode, j
que o Destino, de si mesmo recluso, no pode libertar-se de tal estrangeiro, pois o viajante que nunca viaja apenas mscara sua e seu
nico parceiro num jogo que s se pode jogar a um, o qual no tem
comeo nem fim (VIEIRA, 2009, p. 117).

A vida apresenta-se impressa como um ato solitrio e o tempo do futuro


como um estrangeiro que no sabemos o porqu e nem como se ocupa desse
tempo infindo, j que o que conhecemos finito e se apresenta, a todo instante, de diversas maneiras para todos ns. O poeta descarta o tempo que no o
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

vivido e questiona o mover-se pelo tempo, pois aquele que diz no viajar est
mentindo. O tempo move e age sobre todos e cada viajante ao sofrer o desgaste
desse tempo encontrar consigo mesmo, num jogo que sempre recomea.
Tal como a poesia, que se expande e reconhece as fronteiras como ponto
de atrito e converso, o poeta trilha por esses caminhos sem a perspectiva do
futuro e se posiciona para a prxima partida. Rei, rainha, pees, tudo interessa,
todos esto no jogo. O tabuleiro est armado: uma nova partida. Que caminho
essa potica pode tomar? O poeta mesmo responde:
O poema, do qual ningum escreveu o derradeiro verso, sendo que
o primeiro qui a frase com que a Divindade separou a luz da escurido, quem sabe em que porto vai parar esse navio, se porventura
tal porto existe, acaso um penedo capaz de o suster (VIEIRA, 2009,
p. 114).

Armnio Vieira busca um texto que rompe com os modelos estabelecidos, caminha com as horas do seu tempo o presente , e percorre os espaos e
os vos desses espaos em movimento, sejam os que encarceram o ser ou os que
o libertam. J no h salvao, o que existe o tabuleiro, as peas e os jogadores
em busca de mais uma partida. O poema, tal como o jogo, acontece durante a
partida sem a nostalgia do passado nem a utopia do futuro.
O poeta cabo-verdiano no se interessa pelo lirismo, mas sim por outra
forma de articular a matria da sua poesia. O livro O poema, a viagem, o sonho,
do qual recolhemos uma pequena parte para refletirmos a respeito da potica
que se vem produzindo neste sculo, foi escrito numa praa, na cidade da Praia,
na Ilha de Santiago, ao telefone celular em forma de mensagem para um amigo
que estava em Portugal. A ideia do livro e da composio anuncia-se de forma
instigante, pois nasce do desejo de experimentar um novo suporte e, ao mesmo
tempo, dividi-lo com o outro. O poema configura-se como uma mensagem e,
nesse sentido, uma mensagem que viaja de um continente a outro e que chega
numa velocidade jamais antes imaginada. Ser que o poema seguinte pode ser a
resposta de um sms anterior? At que ponto o receptor dessa mensagem altera
o poema que vem a seguir?
Para essas perguntas no temos resposta. O livro intitula-se O poema, a
viagem, o sonho e podemos encontrar o que ele guarda de viagem tanto tematicamente quanto na sua prpria tessitura. O poema viaja inicialmente pelo SMS,
depois pela folha do livro e se d ao leitor para que ele tambm possa construir
a sua viagem, trilhando uma rota nada segura, porque no promete nenhuma
facilidade, mas risco e aventura.
Com a mesma imprevisibilidade da vida, o poeta recolhe o material da
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

sua poesia e lana-a no espao no qual ela se constituir como uma possibilidade
de caminho, to cambiante e mltipla como o prprio mapa quando se destina
a ser lido no percurso da caminhada. O que os poemas oferecem so rotas desconhecidas e com vrias possibilidades de acesso. Cabe ao leitor compreender
que dentro de si que se encontra o marinheiro e todo o instrumental necessrio
para navegar e encontrar a sua prpria ilha. Uma potica que deseja ser o tempo
presente, o tempo da sua tessitura, sem a nostalgia do passado e sem as promessas do futuro.
Armnio Vieira, em seu livro O poema, a viagem, o sonho, confere sua
potica novas formas de dizer, incorpora a tecnologia na sua forma de produo
e estabelece um movimento que busca compreender a representao e o efeito
do tempo e da potica na atualidade.
O caminho percorrido pelo cabo-verdiano parece atender busca pelos
novos caminhos que a potica solicita, colocando em teste a forma de dizer e o
que dizer. Ao dialogar com outros universos, antigos e distantes, traz esses espaos e tempos para serem lidos no aqui e agora, oferece ao leitor um percurso que
l o tempo atual com toda fragilidade que lhe inerente, oferecendo diversidade
de trilhas e de possiblidades.
Referncias bibliogrficas
DOMENECK, R. Ideologia da percepo ou algumas consideraes sobre a poesia contempornea no Brasil In: Inimigo Rumor. N 18-2 semestre 2005/ 1 semestre 2006.
GOMES, C. S. Armnio Vieira: aulas magnas de arte potica. In: Revista Mulemba, 4. Rio de
Janeiro: UFRJ, julho/2011. Disponvel em<
http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_4_4.php>. Acesso em 20 de
outubro de 2014.
MALLO, A. F. Postpoesia Hacia um novo paradigma.Barcelona: Editorial Anagrama S.A,
2009.
VIEIRA, A. O poema, a viagem, o sonho. Lisboa-Cabo Verde: Editorial Caminho, 2009.
_______. Poemas. Cabo Verde: frica Editora, 1981.

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

AUTORES DOS CAPTULOS*


Antonio Aparecido Mantovani: Doutor em Letras (Estudos Comparados de
Literaturas de Lngua Portuguesa) pela Universidade de So Paulo; Professor
Adjunto do curso de Letras da UNEMAT Universidade do Estado de Mato
Grosso Campus Universitrio de Sinop. E-mail: [email protected]
Avani Souza Silva: Doutora em Letras pela Universidade de So Paulo (Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa), especialista em Lngua
Portuguesa pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, trabalha com
formao de professores no ensino de literatura. Tem textos publicados sobre
literatura africana de lngua portuguesa e literatura infantil e juvenil, africana e
brasileira, em revistas acadmicas e em anais de congressos. E-mail: [email protected]
Christina Bielinski Ramalho: Doutora em Letras (UFRJ, Cincia da Literatura, 2004) e Professora Adjunta de Literaturas de Lngua Portuguesa e Estgio
Supervisionado da Universidade Federal de Sergipe. Especialista em estudos
picos, desenvolveu, de 2010 a 2012, projeto de Ps-doutorado (USP/FAPESP),
supervisionado por Simone Caputo Gomes, sobre a trilogia pica do caboverdiano Corsino Fortes. autora, entre outros livros, de: Um espelho para Narcisa: reflexos de uma voz romntica (1999), Elas escrevem o pico (2005), Dois
ensaios sobre poesia (2007), Histria da epopeia brasileira (com Anazildo Vasconcelos da Silva, 2007), Poemas picos: estratgias de leitura (2013) e A cabea
calva de Deus, de Corsino Fortes: o epos de uma nao solar no cosmos da pica
universal (2015). E-mail: [email protected]
Cludia Maria Fernandes Corra: Doutora em Letras pela Universidade de So
Paulo (Letras Modernas) e Professora Adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras (Ingls) da Universidade Federal de Rondnia. Participou de eventos no Brasil e no exterior. Tem artigos publicados em peridicos nacionais e internacionais,
dentre eles ARIEL (Canad) e Kunapipi (Austrlia). E-mail: [email protected]
rica Antunes Pereira: Doutora em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa) pela Universidade de So Paulo. Ps-doutora pela
Universidade de So Paulo e pela Universidade de Aveiro, com pesquisas sobre
as relaes da Literatura Cabo-verdiana com o Brasil. Autora da obra De missangas e catanas: a construo social do sujeito feminino em poemas angolanos,
cabo-verdianos, moambicanos e so-tomenses (2013) e co-organizadora (com
Simone Caputo Gomes) da coletnea Literatura cabo-verdiana: seleta de poesia
e prosa em lngua portuguesa (2015). E-mail: [email protected]
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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Genivaldo Rodrigues Sobrinho: Doutor em Letras pelo Programa de Estudos


Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa da Universidade de So Paulo
USP. Professor Adjunto do curso de Letras da UNEMAT Universidade do
Estado de Mato Grosso Campus Sinop. Publicou artigos sobre literatura em
coletneas e nas revistas Via Atlntica, Scripta e Crioula. E-mail: [email protected]
Juliana Primi Braga: Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa pela Universidade de So Paulo. Tem artigos publicados nas revistas Scripta, Forma Breve (Portugal) e Nau Literria. Atualmente professora em cursos de ps-graduao na Universidade Estcio de S, rea de Letras.
E-mail: [email protected]
Mailza Rodrigues Toledo e Souza: Doutora em Letras (Estudos Comparados
de Literaturas de Lngua Portuguesa) pela Universidade de So Paulo e membro
do grupo de Estudos Cabo-verdianos CNPQ/USP. Pesquisas na rea de Gnero
social nas literaturas de lngua portuguesa. E-mail: [email protected]
Maria de Ftima Fernandes: Cabo-verdiana. Doutora em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa) pela Universidade de So Paulo.
Professora da Universidade de Cabo Verde. Publicaes no Brasil e em Cabo
Verde. E-mail: [email protected]
Norma Sueli Rosa Lima: Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, criou e coordenou curso de Ps-Graduao Lato Sensu de Literaturas de Lngua Portuguesa & Cultura Afro-Brasileira e Indgena
na Universidade Catlica de Petrpolis, com o apoio do Instituto de Pesquisa,
Educao e Tecnologia, e foi diretora da Faculdade de Letras da Universidade
Estcio de S. Atualmente Professora Adjunta do Departamento de Letras da
Faculdade de Formao de Professores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (FFP-UERJ). Possui vrios artigos em revistas especializadas e captulos
de livros, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected]
Pedro Manoel Monteiro: Doutor em Letras (Estudos Comparados em Literaturas de Lngua Portuguesa) pela Universidade de So Paulo, professor adjunto
Departamento de Lnguas Vernculas e docente do PPG/MEL da Universidade
Federal de Rondnia. Lder do Grupo de Pesquisas LILIPO/UNIR desde 2005
e pesquisador do Grupo de Estudos Cabo-verdianos CNPQ/USP, desde 2009.
E-mail: [email protected]

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Literatura Cabo-verdiana: leituras universitrias

Raquel Aparecida Dal Cortivo: Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista de So Jos do Rio Preto. Atualmente bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Amazonas no curso de Doutorado em
Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa da Universidade de
So Paulo. Professora da Universidade Federal do Amazonas, Campus Vale do
Rio Madeira-Humait. Possui vrios artigos em revistas especializadas e captulos de livros, no pas. E-mail: [email protected]
Rute Maria Chaves Pires: Mestre em Cincia da Literatura /Teoria da Literatura
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa na Universidade de So Paulo. Professora de Literaturas Portuguesa e Africanas de Lngua Portuguesa da Universidade Estadual do Maranho. E-mail: [email protected]
Sonia Maria Alves de Queiroz: Mestre em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa) pela Universidade de So Paulo. Publicaes em peridicos
nacionais como Letra Magna e Revista da UNESP. E: mail: [email protected]
Sonia Maria Santos: Mestre em Letras Vernculas pela Universidade Federal Fluminense, 1998, com dissertao sobre Mornas eram as noites, de Dina Salstio, com
orientao de Simone Caputo Gomes; convertida em livro publicado pela Biblioteca
Nacional de Cabo Verde em 2001. Doutora em Letras Vernculas pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2006, com tese sobre a narrativa de autoria feminina em
Cabo Verde, com orientao de Carmen Lcia Tind Secco e co-orientao de Simone Caputo Gomes. Professora da FAP- Grupo Lusfona do Brasil, na Graduao
e na Ps-Graduao e Membro da Comisso Estadual da Verdade sobre Crimes da
Escravido no Brasil (Rio de Janeiro). E-mail: [email protected]
Suely Alves de Carlos: Mestre em Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa
pela Universidade de So Paulo, atualmente trabalha como professora de lngua
portuguesa e literatura na faculdade de teologia ITESP Instituto Teolgico de
Estudos Superiores de So Paulo. E-mail: [email protected]
Vilma Aparecida Galhego: Mestre em Literatura e Crtica Literria pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, doutoranda no Programa de Literaturas
Comparadas de Lngua Portuguesa na USP-SP. E-mail: [email protected]
*Doutores e Mestres orientados por Simone Caputo Gomes ou atuais orientandos; participantes do Grupo de Pesquisa Estudos Cabo-verdianos de Literatura
e Cultura CNPq/USP, liderado pela professora. E-mail: [email protected]

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