Ebook Literatura Cabo Verdiana
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Ebook Literatura Cabo Verdiana
Literatura Cabo-verdiana:
leituras universitrias
Cceres-MT
2015
UNEMAT Editora
Proibida a reproduo de partes ou do todo desta obra sem autorizao expressa dos (as) autores (as). (art.184 do Cdigo Penal e Lei 9.610,
de 19 de fevereiro de 1998 do Cdigo Civil Brasileiro de 2002).
SUMRIO
HOMENAGEM A SIMONE CAPUTO GOMES
APRESENTAO
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APRESENTAO
Cabo Verde completa este ano quarenta (40) anos de independncia.
Neste clima de comemorao, completei trinta e nove (39) anos de pesquisa da
Literatura e da Cultura Cabo-verdiana, que descobri lendo versos de Daniel Filipe. Tm sido dcadas de investigao e docncia, com a satisfao de ter inovado no campo da investigao, implantado a disciplina especfica nos nveis
de Aperfeioamento, Especializao, Graduao, Mestrado, Doutorado e Psdoutorado na rea de Letras, em vrias universidades brasileiras. Muitos alunos
foram formados na rea de Literatura Cabo-verdiana e, por extenso, de Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa nestes 39 anos, alm dos demais oito (8)
anos que perfazem quarenta e sete de docncia, em outras reas que abrangem a
Literatura Portuguesa e a Teoria da Literatura, com trabalhos nas reas de alfabetizao e de ensino para alunos com necessidades especiais.
Da trajetria na rea de Letras tenho recebido, para minha satisfao, o
reconhecimento dos meios acadmicos nacionais e internacionais e, em especial, da comunidade cabo-verdiana, representada por seu Presidente da Repblica e por sua Academia de Letras, que me outorgaram a Medalha do Vulco de
Primeira Classe (2007) e o ttulo de Membro Honorrio (2014), e ainda por seu
Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco, que publicou minha dissertao de
Mestrado, defendida em 1979 (quando dissertaes e teses de Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa ainda, timidamente, despontariam no Brasil e no
exterior a partir de 1980). Dessa caminhada guardo inmeros momentos de realizao, dos quais desponta esta homenagem idealizada pelos alunos formados
sob minha orientao Ps-doutores, Doutores, Mestres e atuais orientandos
cujas dissertaes e teses se debrua(ra)m especificamente sobre temas relativos
Literatura e Cultura de Cabo Verde.
A ideia desse livro surgiu dos prprios orientandos, no mbito de uma
viagem que fiz a Cabo Verde com um grupo de cinco (5) alunos da Universidade de So Paulo, membros do Grupo de Estudos Cabo-verdianos de Literatura
e Cultura CNPq-USP (do qual sou lder), com visita a 5 ilhas das 9 habitadas.
O objetivo de demonstrar a reao ao meu trabalho, sob a forma de coletnea,
foi logo acolhido por outros orientandos e orientados com entusiasmo e com
muito orgulho da maravilhosa produo que eles tm apresentado que introduzo ao leitor uma parte do que temos realizado, em prazerosa parceria, em vrias
universidades e em vrios nveis, sobre a Literatura de Cabo Verde.
Da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do perodo em que fui
Professora Visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) destaco
os trabalhos de Norma Sueli Rosa Lima e Sonia Maria Santos, que se dedicaram mais profundamente aos estudos sobre a revista Claridade e sua relao
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Encontramos logo no frontispcio do romance Os dois irmos1, de Germano Almeida, uma confisso do autor de que a histria que lhe serviu de motivao para a escrita do romance aconteceu pelos idos de 1976: Como agente do
Ministrio Pblico fui responsvel pela acusao de Andr pelo crime de fratricdio. S muitos anos depois percebi que Andr nunca mais me tinha deixado
em paz (ALMEIDA, 1995, p. 07).
Dessa forma, a escrita parece, para alm do ofcio de escrever, ser uma
maneira de o autor resgatar e compreender os motivos que levaram Andr
(nome fictcio), em sua volta ilha de Santiago, a matar o prprio irmo. Na
verdade, a consumao do crime ocorre no pela vontade do infrator, mas pela
intensa presso social exercida sobre ele, principalmente por parte do pai, que o
ignorou completamente at a consumao do fratricdio, que repararia, assim, a
(suposta) honra desfeita.
Diante do impacto do meio sobre Andr, tendo por consequncia o desfecho do crime, no sabemos at que ponto essa personagem realmente a culpada pelo fratricdio. Essa dvida enriquece o texto e instiga o leitor, que conclui
que Andr se viu obrigado a cometer um crime de acordo com a expectativa e os
valores de uma sociedade cujo cdigo de honra est acima de tudo.
No seu processo de composio de Os dois irmos, Germano Almeida aproxima fico e realidade, num artifcio de verossimilhana. Apesar do
autor se identificar como o agente do Ministrio Pblico durante o julgamento, o romance no narrado por essa personagem. O narrador, em terceira
pessoa, d a voz ao advogado de acusao (agente do Ministrio Pblico),
ao advogado de defesa, ao juiz, ao ru, famlia da vtima, aos amigos e
comunidade, sem nunca assumir a primeira pessoa, como veremos posteriormente. Dessa forma, a estria que enunciada como verdica no decorrer
da narrativa vai sendo assumida por diversas vozes, medida que essas vo
tomando a fala.
1 Daqui por diante tratado nas citaes como ODI.
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O desenvolvimento do romance concomitante ao julgamento de Andr e o leitor torna-se um expectador e pode formar seu juzo diante dos diversos pontos de vista apresentados. As vozes das personagens confirmam a mesma
estria; no entanto, cada verso ancora-se em uma vertente antittica: a de acusao e a de defesa do ru.
Ainda que o autor revele a estria logo no frontispcio do romance e
antecipe a sentena de Andr no incio da narrativa, o limite da verdade sobre
a culpa dessa personagem no alcanado, principalmente pelas circunstncias
em que o crime foi cometido. O juiz tem certeza de que Andr cometera o crime,
mas sente dificuldade em atestar sua real culpabilidade:
No lhe foi, porm, imediatamente bvia essa concluso definitiva e
a seguir leitura da sentena confessaria ter consumido no poucas
noites em agitadas, mas infelizmente inconcludentes insnias e por
vrias vezes tinha posto de parte a condenao por crime doloso que
se lhe afigurava demasiado singelo (ALMEIDA, 1995, p. 11).
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e que cultura temos para se saber que leis se adaptam quilo que somos (ALMEIDA, 1995, p. 203).
Este excerto demonstra a preocupao do autor na construo do narrador. Nael encontra-se num espao de fronteira que permeia entre a periferia e a
proximidade das demais personagens por estar fora da casa, mas tramitar livremente por ela. O narrador foi eleito por Zana como o porta-voz e depositrio da
histria que conta, que tambm sua prpria histria.
Eleito o porta-voz, Nael espera por cerca de trinta anos, quando quase
todos estavam mortos, para juntar os estilhaos de fatos que presenciou, de retalhos de outras histrias que ouviu e guardou, e tecer das cinzas do passado, com
os escassos elementos de que dispunha, a narrativa do romance. Dessa forma,
numa vertente rememorativa, faz das vozes dos outros uma nica voz para compor o seu relato, reconstruir sua prpria identidade do quartinho no fundo do
quintal, premido pela eterna dvida que carrega na busca de sua paternidade en-
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Por sua vez, Germano Almeida afirma na orelha do livro ser, na vida
real, a personagem do romance responsvel pela acusao de Andr, da a aproximao entre fico e realidade pela confluncia entre as linguagens literria
e processual do Direito. Como o autor buscou determinados fatos relativos no
passado, procurando interpret-los no presente com implicaes ideolgicas
pessoais, a forma da narrativa tem mais equivalncia com a fico do que com o
discurso jurdico, embora a linguagem do romance parea objetivar que as fronteiras entre o discurso jurdico e o literrio no sejam delimitveis.
A doao de dados biogrficos dos autores composio de suas obras tem
como funo criar uma verdade prpria da literatura, evitando reduzir-se reproduo de realidade, at porque, comoafirma Antonio Candido, o romance ser um
fracasso na medida em que quiser ser igual realidade (1992, p. 67). O mundo criado pelos dois autores metamorfoseia alguns aspectos constitutivos do real na criao
de um mundo prprio ficcional a que podemos chamar de suprarrealidade.
Referncias bibliogrficas
ALMEIDA, G. de. Os dois irmos. 2. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
______. O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Arajo. Lisboa: Arcdia, 1989.
ALMEIDA, H. Hatoum, O salto da vida para a arte. Jornal da Tarde, So Paulo, sbado, 8 jul.
2000.
ARCE, B. C. Tempo, sentidos e paisagem: os trabalhos da memria em dois romances de Milton Hatoum. In. Arquitetura da memria: ensaios sobre os romances Dois irmos, Relato de
um Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Org. Maria da Luz Pinheiro de Cristo.
Manaus: Editora da Universidade Federal Amazonas/ UNINORT, 2007.
3 Entrevista Treze perguntas para Milton Hatoum concedida Revista Magma n. 8 (p. 55-74) do
Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas / Universidade de So Paulo. So Paulo: Humanitas / FFLCH/USP, 2002 / 2003.
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partir da criao da Claridade Revista de Artes e Letras, em 1936, que possibilitou o advento de vrias publicaes literrias, sendo que em seu primeiro
nmero trouxe um captulo do primeiro romance cabo-verdiano: Chiquinho,
de Baltasar Lopes, considerado por ns como a primeira obra infantil e juvenil
cabo-verdiana. No entanto, as obras de literatura infantil e juvenil publicadas
no pas somente foram dinamizar o sistema literrio cabo-verdiano a partir da
independncia, em 1975, quando surgiram as primeiras obras impressas do gnero. At ento, a literatura para crianas e jovens era oral, composta por contos
populares, adivinhas, histrias de assombrao e de seres encantados.
Parece-nos cabvel, nesse contexto de formao da literatura infantil
e juvenil escrita no arquiplago, apontar a importncia do escritor diasprico
Jorge Arajo, cujo conjunto da obra publicada relevante no dilogo com os
demais espaos literrios de lngua portuguesa no somente africanos, mas tambm asiticos. de se notar tambm que seu primeiro livro infantil e juvenil,
Comandante Hussi, ganhador do prmio Gulbenkian de Literatura, tenha sido
escrito 28 anos aps a Independncia do seu pas do governo colonial portugus.
O fato tambm de Jorge Arajo ser um escritor que vive na dispora
muito significativo dentro do contexto da literatura cabo-verdiana que foi formada, no incio, essencialmente por escritores que tambm tiveram experincia
na dispora, em termos no somente de formao acadmica e profissional na
metrpole, mas tambm, em muitos casos, de desempenho de funes para o
governo colonial, seja na metrpole, seja nas demais colnias. Dentre esses escritores, apontamos aqueles inicialmente ligados Claridade, constituintes da
elite letrada do arquiplago, e que a historiografia da literatura cabo-verdiana
classifica como claridosos, haja vista suas ligaes, de alguma maneira, inclusive
temtica, com aquela revista: Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Ovdio Martins,
Onsimo Silveira, Lus Romano, Antnio Aurlio Gonalves, Gabriel Mariano,
Henrique Teixeira de Sousa, Pedro Duarte, Teobaldo Virgnio, Nuno de Miranda etc.
Assim, Jorge Arajo, da dispora, tambm est ligado ao sistema literrio cabo-verdiano, porque sua escrita profundamente marcada pelo contexto
sociocultural de seu pas. No mbito da produo disporica do autor, o tema
da emigrao estar presente na obra sob anlise, pois esse tambm um tema
recorrente dentro do conjunto da literatura cabo-verdiana.
Cabo Verde tem uma populao atual de aproximadamente 512 mil habitantes, segundo o censo de 2012, e uma populao diasprica muito superior
a esse nmero, o que faz com que os cabo-verdianos considerem que o Arquiplago composto no de dez ilhas, mas de onze ilhas, sendo esta ltima representada pela dispora. Segundo Jos Maria Semedo (1998, p. 92), a emigrao
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juvenil que parodia as estratgias geopolticas e militares comandadas pelo Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo Verde, em solo cabo-verdiano, durante a luta de libertao nacional desses pases. O palco do movimento de libertao da Guin e de Cabo Verde centrou-se na guerra de guerrilhas
nas matas da Guin e, ao tentar incluir os cabo-verdianos nessa luta, a partir de
Cabo Verde, a narrativa constri uma pardia poltica das mais instigantes.
O tempo da narrativa situa-se no vero de 1974, e o espao ficcional
a Praia de So Pedro, na ilha de So Vicente, onde quatro jovens adolescentes
Aristteles, Bob, Frederico e Zapata, sob o comando deste ltimo acampam
durante uma noite, armados de um revlver e de cinco balas, para defenderem
o pas de um possvel ataque americano. Quem lhes destina essa misso o
Comandante Zero, guerrilheiro cabo-verdiano nas matas da Guin e um dos
quadros mais importantes do PAIGC.
Em meio aventura de passar a noite numa praia deserta em que os
jovens tm medo do ataque, mas principalmente do escuro, desenvolvem-se na
trama o estreitamento de laos de amizade e um rito de passagem: a superao
desses jovens dos seus medos ancestrais do escuro e das sombras. Em meio ao
medo do escuro, em que a sombra de uma lagartixa era um crocodilo (ARAJO, 2008, p. 104), um dos adolescentes, Aristteles, protagonizar a primeira vtima do stress ps-traumtico da histria da vigilncia revolucionria na cidade
do Mindelo (Ibidem, p. 95).
O rito de passagem, para os jovens amigos, tem o seu coroamento quando amanhece:
Mal os primeiros e tmidos raios de sol espreguiaram a sua luz o areal
da praia de So Pedro, Zapata, Aristteles, Bob e Frederico abandonaram espavoridos o quartel-general da misso, desataram a correr
para fora da tenda, aos gritos, aos pulos. Aos abraos. Por momentos
regressaram todos idade da inocncia, da convivncia, felizes da
vida por terem conseguido ultrapassar a barreira do medo. Por terem
conseguido vencer o escuro da noite (ARAJO, 2008, p. 115).
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ras eleies livres da histria do pas; Zapata teve uma carreira fulgurante dentro
do Partido, compatvel com a vocao que demonstrava desde a adolescncia,
chegando inclusive a ser deputado da Assembleia Nacional; afastando-se do partido depois das eleies multipartidrias, passou a ser um empresrio do turismo e adotou seu verdadeiro nome: Salazar Antnio dos Santos.
Bob abandonou Cabo Verde e foi para Paris, estudando jornalismo na
Sorbonne. Foi um dos reprteres de guerra mortos no Iraque, em 2006.
Aristteles abandonou o PAIGC poucos dias antes da proclamao da
independncia, quando seu pai foi preso e enviado para o campo de concentrao do Tarrafal, na Ilha de Santiago. Emigrou para a Blgica, onde tornou-se um
famoso travesti, apresentando com sucesso um show intitulado Lili Marlene.
Frederico: acompanhou os pais de regresso a Lisboa nas vsperas da
independncia. Foi para Londres, onde se formou no curso de Gesto no Kings
College, e vive no bairro chique de Notting Hill Gate e um dos mais respeitados e admirados corretores da City (ARAJO, 2008, p. 140).
Um outro aspecto tematizado implicitamente na narrativa, subjacente
ao tema da emigrao, o da dispora, que constitui, alm do percurso de vida
do prprio autor, destino de trs das personagens da novela.
Na situao de dispora, as identidades se tornam mltiplas, justamente
pela convivncia com diferentes culturas. Stuart Hall lembra, a propsito dos
caribenhos que vivem na dispora, e aqui estendemos o exemplo para os caboverdianos, que junto com os elos que os ligam a uma ilha de origem especfica,
h outras foras centrpetas: h a qualidade de ser caribenho que eles compartilham com outros migrantes do Caribe (HALL, 2003, p. 27). Nesse particular, pensamos no somente nos emigrantes caribenhos, como quer Hall, mas
tambm em outros emigrantes que buscam semelhanas com populaes ditas
de minoria tnica, identificao com locais de assentamento e reidentificaes
simblicas, todos tentando, como nos lembra Hall, cavar um lugar junto sua
barbadianidade (Ibidem), ou seja, cabo-verdianidade, no caso em questo.
Na novela, no entanto, a questo da dispora tangencial, sub-reptcia
ao tema da emigrao, e as personagens que emigram para a Europa se adaptam
perfeitamente aos pases de acolhimento, sendo retratadas de forma irnica pelo
narrador, o que pode ensejar uma crtica ao distanciamento que protagonizam
da identidade cultural cabo-verdiana.
V-se, tambm, pela biografia das personagens, que elas ao fim e ao cabo
deixaram de ser revolucionrias, e se adaptaram comodidade da vida, sem
maiores questionamentos, como um cidado mdio no mundo globalizado que
no se preocupa com questes sociais, levando o leitor a se perguntar se aps a
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[...] os camaradas, dizia eu, nem imaginam quanto valem, por exemplo, as barbatanas de tubaro. [...] Os camaradas no sabem, mas os
nossos camaradas da Repblica Popular da China pagam uma fortuna por elas. Parece que fazem uma sopa que uma verdadeira iguaria
(p. 75).
A linguagem da narrativa dinmica, informal, utilizando diversas expresses tpicas da oralidade da juventude cabo-verdiana, algumas grias, e muitas vezes privilegiando a funo potica, que se presentifica no uso de metforas
e de deslocamentos semnticos, e da ironia, como podemos observar nos excertos abaixo2:
[...] seus olhos de plvora seca dispararam estrelas (p. 17).
[...] uma revoluo no se mede aos palmos. Se assim fosse, o que seria do camarada Mao? questionou com voz de algodo [...] (p. 34).
O fusvel da tranquilidade de Zapata no aguentou (p. 86).
[...] os olhos eram lmpadas de medo (p. 87).
Avana de mansinho, com pezinhos de l [...] (p. 99).
[...] j sussurrava as palavras de ordem [...] escondidas na saliva do
medo (p. 116).
Bob arregaou os ouvidos (p. 120).
[...] repetiu com palavras embrulhadas de ironia (p. 129).
Ao terminar a sua higiene matinal, Zapata sentia-se um guerrilheiro
de corpo e barba (p. 124).
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A cabea calva de Deus, com toda a fora simblica que o prprio ttulo
sugere, exige do olhar crtico-analtico partir da certeza de que ali se encontra um
texto de dimenses significativas extraordinrias, uma vez que histria e cultura
se fazem representar em um dilogo contnuo com um repertrio de referentes
sgnicos que, inicialmente, compreende-se a partir da inscrio cabo-verdiana
no mundo, para, em seguida, perceber-se a habilidade do poeta Corsino Fortes
de tocar o universal a partir do local. Escrevendo, pois, sua nao (BHABHA,
1998), Fortes escreve tambm a lio de se revisitarem as ancestrais demandas
mticas e simblicas da inscrio do ser humano no mundo.
Da unidade entre os trs poemas que foi projetada e construda desde
Po & fonema (1974), chega-se a uma leitura circular que toma e retoma as imagens comuns aos trs textos, ampliando-as sempre, a partir do momento em que
determinadas marcas culturais vo ficando mais claras. So esses referentes simblicos que, unidos histria que permeia o relato potico, constituem o epos
cabo-verdiano, ou seja, definem o somatrio de tradies, narrativas, episdios,
vises de mundo, crenas e rituais que, circulando pela cultura cabo-verdiana,
so traos distintivos, que compem, inclusive, uma implcita mitologia prpria.
A unidade formada pelas trs obras resultado de um projeto enunciado pessoalmente por Corsino Fortes em entrevistas com ele realizadas por diversos de seus crticos, inclusive por mim. Sendo A cabea calva de Deus resultado
de dcadas dedicadas elaborao poemtica da trade que a constitui, no h
como qualquer analista da obra abandonar a observao dessa unidade.
Em virtude do valor que possui o projeto de criao do poeta, reportome, neste ensaio, ao reconhecimento do lugar da fala autoral e inegvel identificao da voz engajada do poema, para, em seguida, apresentar algumas informaes sobre a estrutura da obra, que aparece detalhadamente analisada em A
cabea calva de Deus: o epos de uma nao solar no cosmos da pica universal
(ainda indita).
Oriundo da gerao claridosa, Corsino Fortes, nos seus primeiros passos pela literatura j vivenciava uma experincia decisiva para sua formao
como escritor. Do poema Mindelo primeira publicao, em 1959, com traos
surrealistas, e indicando a tendncia do jovem Corsino, que chegou a ser ABC
CORANTES, para o trabalho mais requintado com a linguagem obra A cabea calva de Deus (2001), foram anos de dedicao simultnea arte, justia,
poltica e construo identitria de seu pas. E, nessa participao ativa, Corsino teve o privilgio de vivenciar o duro e glorioso caminho da independncia
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almejada autonomia territorial aos propsitos especficos da independncia cultural, como suporte da independncia poltica face
insero de Cabo Verde, no mundo livre.
Assim, inserir a energia semntica e celular do agora povo agora
pulso agora po agora poema, no tecido literrio da sociedade cabo-verdiana, tem sido a contribuio esttica e emocional da nossa
trilogia A cabea calva de Deus.
O prprio poeta, portanto, declara a origem do engajamento de sua poesia, lembrando, implicitamente, um fator que no pode ser esquecido quando se
fala de literaturas ps-coloniais: sem um movimento contundente de demarcao das novas fronteiras que constituiro a independncia e a identidade nacional, no h como uma literatura gerada em um pas que passou pelo domnio
de um colonizador ganhar, de fato, uma independncia. Assim, o engajamento
uma atitude poltica necessria.
Vale tambm ressaltar, na resposta do poeta, a presena de duas palavras: redondo e trovadores, que, de certo modo, sintetizam o carter circular
de sua obra e a relevncia que a mesma d msica cabo-verdiana.
A voz engajada de Corsino Fortes, cujos ndices mais contundentes se
presentificam quando o eu lrico/narrador se manifesta, nos poemas, em primeira pessoa e quando so referenciados eventos histricos relacionados independncia de Cabo Verde, no se distancia, contudo, de outro aspecto igualmente
slido no que se refere produo literria: um escritor no se molda somente a
partir do barro de que feito, mas tambm da atitude contemplativa que reside
na face dos espelhos de que se utiliza.
Igualmente questionado por Patrice Pacheco, o poeta fala de seus espelhos, as leituras da poca de estudante de Direito em Lisboa:
Durante esse perodo, aprofundei, na medida do possvel, Amlcar
Cabral, Cames, Eliot, Homero, Pessoa, Saint-John de Perse, Ezra
Pound entre outros, como a poesia medieval portuguesa e francesa
e, nomeadamente, o patrimnio literrio e a tradio oral da caboverdianidade (In: PACHECO, 2007, p. 167).
obra:
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Ao se reconhecer um vanguardista regido pela gide de um excitador/intelecto a potenciar a expresso da resistncia cultural da mundividncia
substantiva do arquiplago, Fortes diz muito mais do que uma pretensa anlise da voz autoral aqui poderia fazer. Contudo, creio ser enriquecedora uma
especial colocao de Franco Crespi acerca do conhecimento reflexivo do ser
humano:
O conhecimento reflexivo do ser humano individual no nasce de
uma relao imediata do sujeito consigo mesmo, mas, pelo contrrio,
como resultado da mediao simblica da experincia vivencial afetiva originria, atravs das determinaes do significado que emergiram no interior do contexto especfico da nossa existncia histrica,
em seus condicionamentos particulares, materiais, sociais e culturais
(CRESPI, 1999, p. 28).
Como cabo-verdiano, Corsino Fortes, ao mergulhar nos condicionamentos particulares, materiais, sociais e culturais que revestiram, desde a juventude, sua prpria formao como ser individual, sofreu na prpria pele o
processo de mediao simblica que, curiosamente, caracterizaria sua prpria
obra como produo cultural que . Certamente, a experincia de escrever
A cabea calva de Deus promoveu no poeta, como personagem partcipe da
matria pica da obra, os efeitos que essa escritura promoveria, depois, nos
leitores e nas leitoras. Alis, sobre a recepo sua obra, Fortes respondeu a
Pacheco:
PP: Que papel pretende ver desempenhar a sua linguagem potica,
na vida do leitor comum? E a sua expresso potica dirigida a qualquer leitor?
CF: Creio que o fenmeno da emergncia potica contm, na sua
humanidade, o propsito de inscrever e potenciar a reinveno
do real no tecido social do destinatrio, independentemente da
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sua imediata ou remota inteligibilidade. Todavia, a triagem aferida pela tradio oral nos ensina que, na linguagem potica, se
no atinge o leitor comum pela via intelectiva, deve pelo menos
surpreend-lo, cultivando-lhe os sentidos pela via emotiva: sonorizao telrica, ritmos, msica etc (PACHECO, 2007, p. 169).
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Diviso dos cantos com nomeao inventiva e funo simb. Canto Primeiro: Tchon de pove tchon de pedra
. Canto Segundo: Mar & Matrimnio
. Canto Terceiro: Po & Patrimnio
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Referentes de uma histria pessoal ou privada permitem que a esse eu lrico/narrador se relacione figura do prprio poeta. Esse eu-lrico/narrador ora personagem principal de uma sucesso de eventos, ora espectador e valorizador
de aes alheias, ora vaticinador, ora revisor crtico de registros histricos e
culturais. Do trabalho com a linguagem figurada preocupao de, atravs do
espao dado lngua crioula na poesia, reafirmar outra face da identidade nacional, o que se recolhe uma conscincia lrica densa, ciente de seus recursos
de criao, assim como ciente de sua funo social como poeta e plenamente
compatvel com a voz autoral engajada j identificada.
A matria pica do poema a formao mtico-histrica da nao cabo-verdiana, considerados a todos os aspectos marcantes dessa identidade: a
fragmentao de seu territrio insular, espalhado em dez ilhas e muitos ilhus;
as fortes sobredeterminaes climticas e geogrficas que do ao signo seca e ao
signo chuva potencial semntico intenso; as injunes colonialistas que delinearam conjunturas econmicas e polticas muitas vezes desastrosas; a mestiagem
na formao da identidade nacional; a arte, principalmente a musical como forma de enfrentamento do cotidiano; entre outros.
Para elaborar uma epopeia de valor altamente simblico e metalingustico, Corsino Fortes fez uso artesanal da matria-prima de todo poema: a palavra.
E esse uso se caracteriza pelo forte investimento em trs figuras de linguagem
principais metfora, metonmia e personificao somadas a outras, de valor
esttico e sonoro relevantes no conjunto da obra: a sinestesia e a aliterao. Todavia, dada a grande gama de recursos lingusticos, desde figuras de linguagem
a figuras de dico e de pensamento, cabe uma ilustrao extrada de dois analistas de Po & fonema, cujos comentrios podem ser estendidos s duas obras
posteriores, uma vez que, sem dvida, Corsino Fortes soube manter uma real
identidade entre seus trs livros, tanto no plano formal quanto no do contedo.
Adilson Gomes, em Leitura crtica da obra Po & fonema de Corsino
Fortes, faz aluso a alguns recursos lingusticos utilizados pelo poeta em seu
primeiro livro. Reconhecendo na obra um hibridismo potico, Gomes aponta,
por exemplo, que:
Outro aspecto interessante a realar que Corsino cultiva o verso
curto, o versculo, socorrendo-se de ritmos diversos, habilmente
trabalhados, como se trabalhavam os diferentes tipos de estrutura
versificatria, no caso cabo-verdiano (o da morna-compasso a 4/4
em geral; a coladeira-compasso a 2/4; o funan-compasso a 2/4 e a
mazurca-compasso a 3/4) o que tambm denota a miscigenao da
msica popular, de Cabo Verde de influncias africanas e europeias
com sabor trovadoresco2, o que lhe permite uma melhor gesto da
2 GOMES aqui cita: LOPES FILHO, 1995, p. 122.
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contagem de rvore, assim como referncias a poente e nascente se somaram ao termo sol.
As palavras que integram o grupo de expresso verbal ou artstica so:
palavra, msica e tambor. Recebidos como msica foram todos os termos que
se referem a ritmos, tipos de msicas, instrumentos musicais, danas, com exceo de tambor, contado parte. Palavra engloba o termo em si e outros que
constituem partes de uma palavra (slabas, consoantes, vogais), gneros e manifestaes literrias ou textuais. Tambm poderiam estar neste grupo inseridos
os sememas relacionados s artes plsticas, visto que so muitas as referncias s
manifestaes picturais cabo-verdianas. O relevo intenso, porm, que dado s
expresses musicais me fez recortar apenas esta reincidncia, ainda que comentrios sobre a representatividade das artes plsticas para a identidade do pas
permeiem todo este estudo e sejam especificamente consideradas nas partes em
que se destaca essa presena.
As palavras que integram o grupo de expresso mstica so ovo e Deus.
H ocorrncias da palavra Jesus (e outras associadas a seu sentido), mas essa
no foi incorporada ao grupo, embora, como foi dito acerca de boca e artes
plsticas, comentrios sobre as referncias a Jesus na obra tambm faam parte
da anlise. A no incluso justifica-se pela corrente associao entre Jesus e o ser
humano.
A observao de todos os quadros revela que a estruturao da obra
corresponde ao prprio processo de construo da matria pica de A cabea
calva de Deus. A expresso humano-existencial, a expresso natural, a expresso
verbal e artstica e a expresso mstica, reunidas, representam os aspectos que
devem ser considerados para que a matria pica do poema a formao identitria de Cabo Verde se consolide. As metforas que nascem da imbricao
de todos os signos que compem esses quadros realizam a proposta de fuso
de todas as expresses enfocadas e geram, no todo, uma grande alegoria antropomrfica em que cada elemento, mesmo guardando uma significao cultural
original, consegue se desprender do prprio sentido para criar outro na associao com outros referentes.
Relacionando cada componente do ttulo da obra a um dos livros, teramos cabea indicando ser Po & fonema a primeira representao da identidade cabo-verdiana, tomada em sua fora de individualidade, marcando um ser
que desponta e se oferece viso e considerao. Com calva, imprimindo
adjetivao cabea, atribuir-se-ia a rvore & tambor a misso de caracterizar
a fundo essa identidade recm-inaugurada, ainda que custa de rememorar a
dor do nascimento. Ao mesmo tempo, o sentido de calva abre-se ideia de
ausncia, de silncio, de pulso pelo preenchimento do sentido, que se alcana
41
42
Assim, ao se tocar a ideia elementar da obra, ou seja, ao se tomar contato com seu vis cosmognico, percebe-se que o autor voltou-se diretamente
para uma das mais primitivas necessidades do ser humano: (re)conhecer sua
origem. Por essa razo, Ana Mafalda Leite (1995), quando destaca o carter redondo do cosmos literariamente elaborado por Corsino Fortes, est expressando a correta percepo de uma cosmogonia ligada s mais remotas origens e ao
reconhecimento de suas reverberaes no espao insular sob forma de imagens
que se interpenetram em um moto contnuo e espiral. Essa viso volta a valorizar, entre outras, a imagem do ovo, como signo da origem e expurga o evasionismo como soluo para a construo identitria.
Como ltimo aspecto do plano literrio da obra, destaco a figura do
heri. O heri em A cabea calva de Deus tem vrias faces: so as mulheres que
ficaram na terra, semeando no campo rido a continuidade de sua ptria; so as
crianas, incluindo aquelas que vivem nas ruas (como se recolhe das imagens
de quadros de Tchal Figueira que so liricizados no poema Pedras de sol &
substncia); so as figuras mais ilustres de artistas, literatos, ativistas polticos,
educadores, entre outros; so os companheiros de luta do eu-lrico/narrador,
que no s os nomeia como os instiga a continuar a luta; so trabalhadores,
como os pescadores, cumprindo sua funo de alimentar o povo; so as gentes
antigas e os antepassados imemoriais, que, somados, do vida humana terra
feita de pedra vulcnica. E a esse grupo se une o prprio eu-lrico/narrador, que,
em muitos trechos se revela, integrando-se no s ele ao percurso heroico do
povo cabo-verdiano como tambm sua famlia e seus laos de afeto e afinidade.
O herosmo que os planos histrico e maravilhoso constroem, sedimentados pelos recursos inventivos do plano literrio do poema, um herosmo metonmico, o que comprova a sintonia do poeta com a concepo literria de seu
tempo, o ps-modernismo. Ainda que o conceito de ps-moderno seja problemtico quando se fala de culturas que atravessaram outras realidades, como a
ps-colonial dentro do sculo XX, fcil verificar que, alm das questes de terminologias, existe, em todas as culturas que passaram por processos tardios de
independncia do formato colonial, uma constante e concreta dinmica de interao com o mundo. E o herosmo metonmico no depende, como forma de
estruturao pica, da circunstncia histrica (ou da realidade socioeconmica
ou poltica) em si, mas de uma viso mais ampla, e, por isso, mais universal da
insero do humano no mundo aps as conquistas tecnolgicas e a diluio cultural das fronteiras. Por isso, o povo cabo-verdiano, com seu prprio cotidiano
e seus prprios enfrentamentos, tem a fora metonmica da ao heroica pica.
E, nesse sentido, a condio ps-colonial entra at como um dado que
valoriza a carga simblica desses enfrentamentos, uma vez que a questo identi-
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tria possui nas culturas ps-coloniais, principalmente as do sculo XX, relevncia destacada. Por outro lado, a projetar o povo cabo-verdiano como uma fora
coletiva ora pluralmente representada, ora referida em fragmentos assumidos
por heris e heronas individuais Corsino Fortes abole a imagem de fragilidade associada submisso do povo s injunes fsicas da terra para compor
outra, na qual os potenciais mticos da criao, da superao, da fecundao e da
fundao so desenvolvidos. reconhecendo essa faceta da obra de Fortes que
Fraga comenta:
[...] a poesia fortiana abandona a temtica dos flagelados retratados
na prosa de Manuel Lopes e pinta uma tela potica visual como uma
encenao da vida, tendo em vista o Arquiplago como um teatro
verde de vida. O canto que se ouve o seguinte: J no somos os
flagelados do vento leste; por excelncia, uma imagem que se metaforiza com uma ao positiva da memria coletiva na representao do povo cabo-verdiano. Efetivamente, o homem cabo-verdiano,
preocupado com a luta e comprometido com a busca pela libertao
do prprio pas, torna-se um grande motivo de canto na obra de
Corsino Fortes, porque evidencia tambm traos de um antievasionismo (FRAGA, s/a, p. 13-14).
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Dando
Pernas aos montes E braos s montanhas
Dando face & sentido
s dunas do mar alto
Que respiram
as coxas
os seios
o sexo de Sahel
Lembro-me de ti! na frica do teu ventre
Interrogando-se
sobre istmo + a
proa do nosso destino
Quando plos e pennsulas de maremoto
Rasgaram & rasgavam
No vrtice da vida! na fractura da terra
A cesariana dos trs continentes
(FORTES, 2001, p. 221-222).
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LIMA, M. Po & fonema ou a odisseia de um povo. Estudo analtico de um poema de Corsino
45
46
Refletir sobre a poesia com o poeta brasileiro nos permite uma aproximao dos processos poticos das autoras selecionadas para nosso estudo.
Quando Carlos Drummond de Andrade interpela o leitor Trouxeste a chave? , ele nos convida a um corpo a corpo com o texto. Aceitamos o desafio
abrindo as pginas do livro de Vera Duarte, Preces e splicas ou os cnticos da
desesperana (2005), e adentrando o universo cabo-verdiano com o recorte de
um olhar feminino.
Vera Duarte representa uma das vozes da produo literria feminina
de Cabo Verde e sua obra volta-se para o contexto scio-histrico de sua terra,
os Direitos Humanos, a violncia contra as mulheres e crianas, apontando com
um princpio esperana (BLOCH, 2006) ante as tragdias que tm assolado a
histria do arquiplago.
A obra Preces e splicas ou os cnticos da desesperanatransita entre o
processo de construo potica e a construo de um microcosmo, Cabo Verde,
estendendo sua denncia ao macrocosmo (mundo), em prol dos excludos e vitimizados do continente africano, da Colmbia, de Kosovo, de Calcut.
As preces, splicas e cnticos presentes no ttulo sugerem uma
abordagem marcada pelo misticismo religioso perante as tenses da realidade
passada e presente do continente africano. Na verdade, a obra a apresentao
de um momento ntimo de orao entre o sujeito lrico e Deus, transposto para
a potica e exposto ao mundo num momento de extrema angstia e tristeza.
Porm, ao mesmo tempo em que o sujeito d abertura a esse dilogo, ele o questiona: Por que te conservas longe, senhor?/ Por que te escondes nos tempos de
angstia? (DUARTE, 2005, p. 56). Verifica-se no texto o clamor, a vontade de
orar, a esperana e o desejo de que a situao seja mudada; contudo, ao grafar o
pronome de tratamento referente a Deus em letra minscula, o eu lrico minimiza a carga de divindade, evidenciando que o apelo a ela pode no ter eficcia.
Essa desesperana com relao ao poder de Deus marcada na abertura da
obra pelo trecho do Canto V do poema Navio negreiro, extrado da obra do
poeta romntico brasileiro Castro Alves:
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So os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
So os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solido.
Ontem simples, fortes, bravos...
Hoje mseros escravos
Sem luz, sem ar, sem razo (DUARTE, 2005, p. 33).
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trombetas e taas esto conectados uns aos outros o stimo selo inicia as sete
trombetas (Apocalipse 8:1-5) e a stima trombeta inicia as sete taas (Apocalipse
11:15-19; 15:1-8).
O dilogo que a autora mantm com o apstolo Joo abre o momento
das splicas e o primeiro poema da referida seo Noite de San Jon. Nele, o
sujeito potico demonstra remorso pelas suas posses materiais e estilo de vida
abastado. Sua passividade ante a vida entediante, por no ter que lutar para conseguir o que necessita, expressa-se nas duas primeiras estrofes:
A minha mo sobre a tbua da mesa
Meus dedos que se espreguiam nos calos ausentes
E se soerguem cansadamente
Presos por um frenesim de vida
Meus braos esgotados pendentes de ombros pendentes
Minha cabea
(pobre cabea)
curvada abatida em abatimento tamanho...
(DUARTE, 2005, p. 51).
Os calos ausentes simbolizam o estilo de vida privilegiado; o abatimento tamanho (pela passividade ante as lutas que no so travadas por um
sujeito que possui casa gua luz e luxo [...] boa comida em boa mesa; DUARTE, 2005, p. 51) contrasta com o frenesim de vida. O estilo de vida do sujeito
potico mantido custa da explorao de outros.
Nota-se, no uso dos parnteses, digresses ou reflexes da poeta (pobre cabea) ou j me desesperei de ver os homens livres na sociedade igual
(DUARTE, 2005, p. 51). So observaes acerca da hipocrisia da falsa igualdade
vendida e consumida mundo afora.
Os versos que se seguem, contudo, evidenciam certo egosmo (ou tentativa de autopreservao), embora o sujeito potico se compadea do sofrimento
dos seus conterrneos: Mas o tempo passa e continuo sentada minha secretria/Tenho casa gua luz e luxo/Como a boa comida em boa mesa (DUARTE,
2005, p. 51).
Juntamente com o soprar do vento, tambores rufam, anunciando a tradicional festa de San Jon: Rufaram os tambores/E o So Joo soou vibrante na
noite longnqua/Da minha terra natal (DUARTE, 2005, p. 51). O So Joo
uma festa tpica de Cabo Verde, j que grande parte da populao do arquiplago adotou o catolicismo, herdado da colonizao portuguesa. E o rufar desses
tambores de So Joo parece associar-se s trombetas do Apocalipse, numa espcie de revelao da real situao de Cabo Verde e do continente africano:
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O recurso anafrico (h homens que no tm), para alm de mimetizar o ritmo dos tambores, refora a ausncia que assola os africanos, estabelecendo um contraponto com a abundncia que o sujeito potico possui: gua,
boa comida, casa, luxo. Ao desenhar o cenrio trgico vivido por longo tempo
pelos cabo-verdianos (secas prolongadas, fome), o sujeito potico estende-o ao
apocalipse no qual a frica e o mundo atual esto mergulhados. O som das
trombetas anuncia a tragdia que h de vir e se abater sobre a humanidade.
Diante da esmagadora e cruel realidade, o sujeito potico se v impotente:
Vislumbro
impotente
A esperana refugiada
Nos olhos vtreos de uma criana que
desesperadamente
Pede socorro (DUARTE, 2005, p. 53).
51
Como tambm para o poeta portugus Eugnio de Andrade, homenageado por Vera Duarte na obra em questo:
ROSA DO MUNDO
Rosa. Rosa do mundo.
Queimada.
Suja de tanta palavra.
Primeiro orvalho sobre o rosto.
Que foi ptala
a ptala leno de soluos.
Obscena rosa. Repartida.
Amada.
Boca ferida, sopro de ningum.
Quase nada (ANDRADE, 2005, p. 453).
Na obra da cabo-verdiana Vera Duarte, a rosa est presente j na Primeira Prece denominada Rosa entre cadveres, dialogando com Drummond
e Eugnio de Andrade, ao metaforizar na rosa a prpria poesia:
Em frica cresce uma rosa
a rosa mirablica
Flor da poesia
Uma rosa entre cadveres (DUARTE, 2005, p. 66).
H no poema, alm da insero contextual (a mirabilis4 uma flor
do deserto da Nambia, muito resistente), uma viso religiosa da rosa, uma vez
que comparada ao sangue do sacrifcio de Jesus: Porque o sangue a vida da
carne, e esse sangue eu lhes dou para fazer o rito de expiao sobre o altar [...]
pois o sangue que faz a expiao pela vida (LEVTICO 17:11, p. 134).
Em frica nasce uma rosa
Uma rosa entre cadveres
E dela brota um sol de sangue
Em frica cresce uma rosa
Rosa nica de dor e revolta
E dela queda um sol de sangue (DUARTE, 2005, p. 65).
No trecho exposto, a continuidade da dor e do sofrimento, expressa pe4 H uma antologia cabo-verdiana intitulada Mirabilis de veias ao sol: antologia dos novssimos poetas
cabo-verdeanos organizada por Jos Lus Hopffer Cordeiro Almada, editada pelo Instituto Caboverdiano do Livro e Editorial Caminho (1991).
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los verbos nasce e cresce, associa-se ao cenrio africano qual o mito da Hidra
de Lerna5: a cada cabea cortada, outras nascem no lugar. Na frica, a cada peste
dizimada, outra nasce e se instala com mais fora.
Num ambiente dominado pela dor, surge ento uma personagem que
sofre pelos pecados cometidos, mas no os aceita como tal, na Prece Segunda,
no poema Habitante do sculo vinte e um ou a Assilah do nosso sculo. Num
paralelo com o ritual catlico, a personagem faz um mea-culpa, repetindo para
si e para a divindade que, apesar do sangue que escorre pelas mos, inocente:
O sangue escorre-me por entre os dedos
Porm
No matei! No matei! No matei!
Poderia adormecer
Ao som tornado montono
Do meu protesto
a minha inocncia imaculada
Mas no me conveno (DUARTE, 2005, p. 67).
53
fome
guerra
violncia (DUARTE, 2005, p. 68).
Mesmo ciente de no ter cometido diretamente nenhum delito, compactuar e silenciar ante a violncia faz com que essa personagem se autoincrimine:
[N]o haver contudo inocente/Quando a morte opulenta (DUARTE, 2005,
p. 68) e a vida se resume a vivenciar um contnuo martrio, uma via dolorosa. De
forma semelhante da Paixo de Jesus Cristo, a frica passa pelas estaes de
sua interminvel via crucis: a misria, a fome, a guerra, a violncia.
Ainda que o sujeito potico tente resgatar sua culpa, toma para si sua
parcela de participao:
No pode haver um inocente
Quando a vida grita fome
E pede socorro
E os homens
So cadveres ambulantes
espera de sepultura
No pode haver um inocente
Quando a maior esperana
For o abrigo certo
De uma cova partilhada (DUARTE, 2005, p. 68-69).
O paralelismo do verso No pode haver um inocente sugere o inconformismo com a negao de participao nos extremos de violncia da frica, a
tentativa de despersonalizao de homens que so apenas cadveres espera de
sepultura apenas com um nmero, sem identidade:
De tanta a morte no tem rosto
S nmero
Um nmero indigente e gritante
Quarenta milhes o nmero da fome
Quarenta milhes o nmero da morte
Quarenta milhes de pessoas
Gente como tu e eu
A morrer de fome
Neste continente de condenados
Ah! mas a fome tem nome
Fome guerra
Fome corrupo
E m governao
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Fome sida
Fome estupidez
Fome tirania
E indiferena (DUARTE, 2005, p. 70).
O sofrimento uniformiza e retira a identidade dos indivduos. Um homem, mulher ou uma criana que sofre na frica igual a qualquer outro no
continente. O sofrimento muda de lugar, se fortalece, mas as vtimas so sempre
as mesmas. E ao lado delas, sero sepultados a esperana e o futuro: Que amanh?/Que homens? (DUARTE, 2005, p. 69).
O sujeito potico apresenta um cenrio de caos em que valores, regras e
mandamentos divinos so subvertidos:
Desonra teu pai e tua me
Rouba
Trai e mata
D sempre falso testemunho
E cobia tudo do teu prximo (DUARTE, 2005, p. 76).
Nesse contexto africano de problemas sociais, banalizao do sofrimento e degradao de valores, instauram-se a desolao, o declnio, o apocalipse e
suas sete pragas:
A guerra
A tirania
A corrupo
A m governao
A sida
A estupidez
A indiferena
(DUARTE, 2005, p. 71).
55
ocorre ao avesso, gerando escravizao e morte. As relaes humanas transformam-se em relaes de poder e opresso, explorao e riqueza, esfacelando a
harmonia entre o homem e a natureza:
Deste pecado original
Este pecado que nos surge
Esta abjeco que nos contamina
Mesmo inocentes
Mesmo incorruptos
Mesmo egoisticamente solitrios
Mas quando
Meu Deus
Quando? (DUARTE, 2005, p. 71-72).
Todavia, mesmo questionando o poder de Deus, o sujeito potico acredita nas palavras divinas de que futuras geraes sero abenoadas: a esperana que tem que nascer/ a esperana que vai renascer (DUARTE, 2005, p.
73). E, para que as novas geraes recebam a graa divina, personalidades importantes do contexto religioso se apresentam diante da convocao do eu lrico
com o intuito de concretizar a palavra de Deus, como ocorre no poema O novo
holocausto, inserido na Prece Terceira.
A dor perante a realidade africana exige do eu potico aes que, no
entanto, no consegue realizar sozinho: decide ento recorrer a figuras importantes na luta contra as injustias. Madre Teresa, religiosa de Calcut, conhecida
como Santa das Sarjetas, trabalhou para os excludos e marginalizados; Moiss
guiou o povo judeu para a liberdade; os apstolos expandiram a mensagem do
Evangelho; os Profetas anunciaram a vinda do Messias; e os Santos mediaram as
splicas dos homens a Deus:
Madre Teresa morreu
[...]
urgente convocar
Deuses
Santos
Profetas
Moiss e todos os apstolos (DUARTE, 2005, p. 77).
O desejo de fuga do ambiente hostil em que vive faz com que o eu lrico
passe a buscar um lugar paradisaco, a Cana da histria bblica. Sair para:
o movimento de libertao que torna possvel, tanto para o indivduo, como
para o povo ao qual pertence, caminhar para a vida: E bato s portas das ci-
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Nesse sentido, a potica de Vera Duarte direciona o debate para o campo social. Pelo termo social entendemos o que est em jogo nos problemas
suscitados a respeito da distribuio do trabalho e das riquezas, o que partilhado ou comum (RANCIRE, 2003). Logo, a ao poltica age no social como a
distribuio litigiosa de espaos e lugares. sempre uma questo de saber quem
est qualificado para um lugar particular e o que l feito (Ibidem, p. 201).
Assim, a persistncia, as splicas, os cantos e as confisses do sujeito potico representam a insistncia que se contrape ideologia e poltica do injusto. O
justo se comprometeu com Deus e espera uma resposta s suas preces e, para isso,
retoma a histria de lutas de seu povo, desejando que, aps tanto sofrimento, Deus
se compadea e o liberte dos opressores. Todavia, a justia divina s ocorrer se
houver a participao do homem: o povo ter que lutar para conquist-la.
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RANCIRE, J. Politics and aesthetics: an interview. ANGELAKI: Journal of the theoretical humanities. vol. 8, No. 2, August 2003, p. 191-210.
57
58
no apresenta dualidades temporais complementares: o repetitivo e o transformador, o duradouro e o instantneo, o banal e o excepcional. No se reduz,
portanto, a apenas uma esfera da vida, pois compreende a tenso entre a ordem
e o movimento, entre a estrutura e a ao (GUARINELLO, 2004, p. 25-26).
A complexidade do cotidiano traduz-se, em sntese, para alm dessas
tenses, naquilo que Agnes Heller chamou de heterogneo (2008, p. 32) por
englobar os mais diversos aspectos da vida, como as relaes familiares e de
trabalho, a vida privada, as sensibilidades, o descanso e o lazer, as relaes de
gnero, de etnia e a construo das identidades, todos eles amplamente abordados, na literatura, por Manuel Bandeira e por um grande nmero de poetas
cabo-verdianos, como mais adiante ser comprovado.
J na dcada de 1970, contribuies tericas fundamentais se voltam
para o estudo do mecanismo como as foras conservadoras hegemnicas se reproduzem no tecido social e para a dinmica de acomodao/resistncia (individual e coletiva) perante elas: Histria e cotidiano (1970), de Agnes Heller;
A revoluo urbana (1970), de Henri Lefbvre; e os artigos Manires de faire
et pratiques quotidiennes e Pratiques culinaires: une mmoire, de Michel de
Certeau e Luce Giard (1978), parte dos resultados de uma pesquisa desenvolvida
entre 1974 e 1978, que originou a publicao, em 1980, de A inveno do cotidiano, volumes 1 e 2.
Henri Lefbvre, em Critique de la quotidienne II: fondements dune sociologie dela quotidiennet (1991), preceitua que o domnio do espao fonte
de poder social sobre a vida cotidiana e se articula a outras formas de poder
social. Para ele, o cotidiano o produto histrico mais prximo do ser humano,
constituindo-se como instrumento para a abordagem emprica do real e como
forma de mediao entre particular e universal. O foco no cotidiano base para
a compreenso dos processos estruturantes das relaes sociais mais amplas.
Agnes Heller, mais enfaticamente, assevera que o cotidiano a raiz e
sustenta tudo o que se lhe sobrepe: a vida cotidiana no est fora da histria,
mas no centro do acontecer histrico (HELLER, 2008, p. 34). Segundo a referida pensadora, o cotidiano pode ser o ponto de partida da interpretao histrica
se encarado como diretamente relacionado com a histria social e cultural e sob
novas modalidades metodolgicas, tendo como contraponto a histria poltica
oficial (que selecionava acontecimentos histricos excepcionais).
Confluindo com as propostas de Henri Lefbvre e Milton Santos j
expostas, Agnes Heller considera que o cotidiano constitui-se, tambm, como
campo aberto a aes inovadoras e saberes criativos, o que envolve a literatura.
Para a pesquisadora, a vida cotidiana o fermento secreto da histria, pois
nela que ocorre a revoluo invisvel tramada por todos os homens no proces60
so de evoluo social.
Michel de Certeau (2005), por sua vez, afirma que, a partir da anlise
da vida cotidiana, possvel perceber e interpretar os movimentos de resistncia
ante as foras hegemnicas de reproduo e de controle social. O referido terico sublinha os meios de inventar o cotidiano ao escapar dos modelos de consumo impostos, subvertendo as representaes (e construindo micro-histria) a
partir de dentro do discurso dominante.
Em A inveno do cotidiano, Certeau retoma as ideias de Michel Foucault (2006) sobre a microfsica do poder e os espaos de controle na vida
social moderna e d visibilidade ttica popular de resistncia ou de reinveno
relacionadas ao cotidiano habitar, circular, falar, ler, ir s compras, cozinhar
nas operaes e usos individuais, que implicam operaes quase microbianas
que proliferam no seio das estruturas tecnocrticas e alteram o seu funcionamento (HARVEY, 2002, p. 41), definindo-a como
o movimento dentro do campo de viso do inimigo[...], e no espao
por ele controlado. [...] Ela opera golpe por golpe, lance por lance.
Aproveita as ocasies e delas depende, sem base para estocar benefcios, aumentar a propriedade e prever sadas. O que ela ganha no
se conserva. Este no-lugar lhe permite sem dvida mobilidade, mas
numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as
falhas que as conjunturas particulares vo abrindo na vigilncia do
poder proprietrio. A vai caar. Cria ali surpresas. Consegue estar
onde ningum espera. astcia. Em suma, a ttica a arte do fraco
(CERTEAU, 2005a, p. 100-101).
61
62
Atirar-me-ei ao cho
6 No poema A poesia do reverso (Poesia II), l-se: lusofricas bero tero/ o terceto da nova poesia// onde
passava a Pasrgada/ passa agora o pssaro da paz (ELSIO, in ALMADA, 1998, p. 231).
7 No Canto V do poema Vozes em unssono: Cantos III, IV, V e VI, l-se: Raios partam Pasrgada/ E
as suas Musas,/ Raios partam (NVADA, in FONTES, 2008, p. 248).
8 No poema Derivaes, l-se: Polifonte: no tem ptria, por opo./ Tanto se lhe d que faa sol/ ou
caia neve, nada o aquece/ ou arrefece. At gosta de Pasrgada,/ que, entre outras coisas,/ o melhor stio
do mundo/ para se andar de burro. (VIEIRA, in FONTES, 2008, p. 323-324).
9 No poema Da Pasargada a UR-Kassdins, l-se: Que empeste o fogo do sacrifcio/ que desabe o transversal da pasrgada/ e boceje o cemitrio das bruxas/ na hora em que o inferno exalar um bafo quente/ de
defuntos sobre o mundo ftido/ dos poetas... Amm... (1993, p. 16-19).
10 Pseudnimo de Jos Lus Hopffer Almada. No poema Parbola sobre o castanho sofrimento, l-se:
assumir-nos/ como criaturas decentes e dignas/ sob o olhar finalmente compadecido/ da lonjura fraterna da terra prometida/ da distncia prxima e tactevel/ de uma outra terra dentro da nossa terra/ da ilha
de todos os poemas/ pasrgada/ de carne e esprito saciados (SANTY AGU, in FONTES, 2008, p. 25-26).
11 No poema Festival na Boa Vista, l-se: Meu Deus!/ Onde estou?/ Eden?/ Olimpo?/ Pasrgada?
(2005, p. 162-165).
12 No poema Fuga ao diabo, l-se: Manuel Bandeira/ foi-se embora para Pasrgada/ eu vou emigrar
do planeta/ num tapete voador/ antes da privatizao do espao (2006, p. 350-351).
13 No poema Pasrgadas de sol, l-se: E tive conscincia, ento, do longnquo aceno dos delfins,/ Das
suas acrobacias e das suas estranhas e msticas melodias/ Em eterno e terno convite paixo lunar do
meio-dia em Pasrgadas de sol (SPNOLA, in RISO, 2011, p. 28-32).
63
Gritarei
Berrarei
Matarei
Em tal linha de pensamento tambm devem ser compreendidas as reverberaes, entre os poetas cabo-verdianos, de outra conhecida e difundida
imagem de Manuel Bandeira: a Estrela da Manh. No poema homnimo14 e
tambm ttulo da obra publicada em 1936 pelo autor brasileiro que ento completava cinquenta anos de idade, Estrela da Manh, verifica-se a existncia e
a fuso de dois mundos um ideal, de sonho, onde habita o que est por ser
atingido, e um material, da realidade das ruas, do cotidiano , que tambm
transparecem de forma lrica na literatura de Cabo Verde, mais especificamente nos textos poticos de Jorge Barbosa15, Osvaldo Alcntara16, Corsino Fortes17,
14 Na primeira estrofe de Estrela da Manh, de Manuel Bandeira, l-se: Eu quero a estrela da manh/
Onde est a estrela da manh?/ Meus amigos meus inimigos/ Procurem a estrela da manh (2000, p.
73-74).
15 No poema Carta para Manuel Bandeira, l-se: Nunca li nenhum dos teus livros./ J li apenas/ a
Estrela da Manh e alguns outros poemas teus./ [...]/ Ento/ sem qualquer palavra/ passar-te-ia a Estrela
da Manh. (1956, p. 53-54).
16 No poemas Nasceu um poema, l-se: H quanto tempo sentia esta sede que nunca se apagava,/ e
eu continha os meus soluos desesperadamente,/ como aquele a quem tarde de nascer a Estrela de Alva!
(1991, p. 31). J no poema Poro, l-se: Amigos, inimigos, onde pra/ Aquele que me prometeu a Estrela da Manh?/ [...]/Amigo, traze-me a Tua Estrela! (1991, p. 79).
17 No poema Mulher, l-se: Mulher! na palma/ palma da tua mo/ Que explode a Estrela da manh
(2001, p. 184-186).
64
Yolanda Morazzo, por sua vez, incorpora um verso (ainda que o modificando um pouco no teor e na forma) do poema Desencanto23, do autor
pernambucano, em seu O que h em mim a vida, escrito em 1962:
Manuel Bandeira
Tu disseste:
Eu fao versos
18 No poema Balano de uma paixo que interroga, l-se: agora diremos sculo e milnio terminais/
adiada a Estrela da Manh/ e um destino mais impenetrvel se perfila (2007, p. 71-73).
19 No poema Louvao da Claridade, l-se: Filho unignito da Estrela da Manh;/ Caboverde ancestral;/ pureza sem limites. Eu te sado,/ Baltazar [sic] Oswaldo Lopes da Silva Alcntara. (1986, p. 6).
Alm do poema, a imagem da Estrela da Manh tambm encontrada no conto Famlia: Clau Leda
tinha sio trancador de baleia no four-master Estrela da Manh porm ainda rapaz tenro pegou uma
asma muito ruim e resolveu fixar-se como comerciante. (2001, p. 131).
20 No poema IV- Sangrenta a Lua, l-se: Sangra a Lua para por fim lugar dar/ quela que para
sempre/ merc dos misteriosos Infinitos/ Sem histria nenhuma / De modo nenhum pode sangrar://
A Estrela da Manh. (2008, p. 186). Em VI- Os astros da terra, l-se: Com a Estrela da Manh/ Calarse-o os grilos,/ Estes secretos astros da terra. (2011, p. 115). J no poema Quem mais sou?, l-se: O
sol da meia-noite no deve nada/ Estrela da Manh nem a um anjo iluminado tardinha. (2002, p.
73). Finalmente, no poema nica e intacta, l-se: A Estrela da Manh/ - a nica que no h-de cair,/
A nica que de p e intacta/ Manter-se- ao alto que bela/ Presa daria para um relmpago sbito?
(2002, p. 73).
21 No poema em prosa 1. Os meninos, l-se: Queria ento estar ao lado deles e sem qualquer palavra,
passar-lhes a Estrela da Manh. (2001, p. 81).
22 No poema Pneumotrax (2000, p. 30), de Manuel Bandeira, l-se: Febre, hemoptise, dispnia e suores
noturnos./ A vida inteira que podia ter sido e que no foi./ Tosse, tosse, tosse.// [...] // - O senhor tem uma
escavao no pulmo esquerdo e o pulmo direito infiltrado./ - Ento, doutor, no possvel tentar o pneumotrax?/ - No. A nica coisa a fazer tocar um tango argentino.
23 Eis a primeira estrofe do poema Desencanto (1985, p. 189), de Manuel Bandeira: Eu fao versos
como quem chora/ De desalento... de desencanto.../ Fecha o meu livro, se por agora/ No tens motivo
nenhum de pranto.
65
66
De igual modo, o poema Ocorrncia em Birmingham, de Jorge Barbosa, ao focalizar o cotidiano, aproxima-se da potica de Manuel Bandeira, mais
especificamente de Poema tirado de uma notcia de jornal26, como possvel
observar nos seguintes versos:
John
de Birmingham
Alabama
USA
entrou na tabacaria.
Foi insultado
soqueado
expulso.
Na rua
o polcia
espancou
derrubou
cuspiu
prendeu o desordeiro.
Negro safado! (BARBOSA, in SANTOS, 1993, p. 148)
67
68
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70
Eugnio Tavares, um dos intelectuais cabo-verdianos mais atuantes, legou s geraes posteriores no apenas a forma modelar da morna bravense,
mas tambm importantes subsdios para a construo de uma nao mais digna
e justa. Nesse sentido, a sua produo em prosa, espalhada nos mais diversos
jornais que circularam em Cabo Verde e Portugal entre o final do sculo XIX e as
primeiras trs dcadas do sculo XX, revela um Eugnio Tavares comprometido
com a verdade e com a defesa dos interesses do povo cabo-verdiano.
Joo Nobre de Oliveira, ao discorrer sobre a sua atuao como jornalista, evidencia que
A sua pena tornou-se temida no meio poltico cabo-verdiano e colaborou nos rgos republicanos Voz Pblica, Batalha e Marselhesa;
[...] em vida, Pedro Cardoso considerou-o o maior jornalista caboverdiano (1998, p. 201).
Suas crnicas e cartas, recolhidas por Flix Monteiro sob o ttulo de Eugnio Tavares - viagens, tormentas, cartas e postais (1999), fornecem-nos um retrato da sua personalidade marcante e da vasta cultura que dominava.
A leitura mais minuciosa, nesta oportunidade, de textos tavarianos publicados em peridicos, especialmente a Revista de Cabo Verde e o jornal A Voz
de Cabo Verde, assim como de peas selecionadas de sua produo cronstica
e epistolar, busca demonstrar como o autor desenvolveu suas reflexes contra
as injustias sociais, desmandos de autoridades, abandono do arquiplago por
parte da metrpole num discurso de teor interventivo, que tinha por objetivo a
construo de um Cabo Verde mais humano.
Antes, porm, julgamos necessrio fazer um breve histrico da chegada da imprensa ao arquiplago de Cabo Verde, com o intuito de conhecer as
circunstncias que motivaram a criao da imprensa no-oficial naquela ento
colnia portuguesa da costa ocidental africana.
A instalao da primeira tipografia nas colnias portuguesas na frica
aconteceu em 1842, quase quatro sculos aps a chegada dos portugueses s
71
ilhas de Cabo Verde e 402 anos depois que Gutenberg inventou a imprensa. Sob
a gide da Imprensa Nacional de Cabo Verde e Guin, a 24 de agosto de 1842,
na vila de Sal-Rei, ilha da Boa Vista, dava-se estampa o primeiro nmero do
Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde. Com este feito, o arquiplago
acabaria por se transformar em pioneiro da imprensa na frica portuguesa.
Apesar do seu pequeno nmero de pginas, este boletim dividia-se em
duas seces: a Interior e a Exterior. A primeira seco subdividia-se, por sua
vez, em duas partes: a Parte Oficial, onde se publicavam textos do Governo, e a
Parte no Oficial, que se destinava publicao de outros textos que pudessem
ser teis aos leitores do Boletim Oficial. Publicado at o nmero 32, antes de se
fixar definitivamente na cidade da Praia, na Ilha de Santiago, em 1855, o Boletim tambm foi editado na Ilha Brava, por ocasio da transferncia da Imprensa
Nacional para a chamada Ilha das Flores, em virtude da epidemia que ento
assolava a ilha da Boa Vista, obrigando o deslocamento dos funcionrios mais
influentes, assim como do prprio Governador.
Tornou-se o veculo de informao oficial de Cabo Verde e do Distrito
da Guin Portuguesa at o ano de 1879, quando houve o desmembramento desta provncia do governo cabo-verdiano. A partir de ento, o Boletim permaneceu exclusivamente a servio do arquiplago, como Boletim Oficial do Governo
da Provncia de Cabo Verde.
Ainda no que diz respeito instalao da imprensa em solo cabo-verdiano, Joo Nobre de Oliveira esclarece que:
apesar da sua primazia na instalao do prelo em terras de frica,
Cabo Verde foi das ltimas colnias portuguesas a ter um jornal. Foi
em Angola, na cidade de Luanda, em 1855, que nasceu o primeiro
jornal da frica portuguesa: o Aurora. Era uma revista literria mas
a sua fundao representa de facto a aurora do jornalismo africano
de lngua portuguesa. A Angola, seguiram-se Moambique com o
Progresso, editado na cidade de Moambique em 1868; S. Tom e
Prncipe, com o Equador em 1870; Cabo Verde com o Independente, na cidade da Praia, em 1877 e, por ltimo, Guin-Bissau com o
Ecos da Guin, sado em Bolama, em 1920. Quanto a essa ltima excolnia h a registar que em 1883 foi editada uma folha intitulada
Fraternidade na cidade de Bolama, folha essa nmero nico cuja
venda se destinava a angariar fundos para apoiar Cabo Verde, ento
a braos com uma crise (OLIVEIRA, 1998, p. 18).
A histria da edio de jornais com temticas que procuravam dar nfase aos problemas gerados nas colnias iniciou-se por volta do ano de 1836. Eram
peridicos voltados para o ultramar e tinham a preferncia dos habitantes das
provncias para o caso de denunciar problemas que os afetavam, atacar gover72
73
74
sua fundao a Guilherme da Cunha Dantas e Joaquim Maria Augusto Barreto, ambos da ilha Brava, tendo a sua circulao durado aproximadamente doze
anos, de 1877 at 1889.
A respeito da imprensa escrita cabo-verdiana, Leila Hernandez acrescenta que:
No seu extremo provincianismo, ainda que sedimentando particularismos e regionalismos, a imprensa escrita unifica interesses comuns. So sete os peridicos que passam a circular a partir de 1877
at 1886, e comeam paulatinamente a sugerir algumas reivindicaes polticas, embora de forma tmida e, por vezes, ambgua. De
todo o modo, a lngua impressa acaba criando campos unificados
de intercmbio e comunicao, [...] embrio da comunidade nacionalmente imaginada (2002, p. 103).
Hyplito da Costa Andrade, no texto intitulado Instituio da Imprensa Nesta Provncia, defendia que:
O jornalismo [que] sabe fugir ao domnio do esprito parcial das
faces polticas, e no troca a sua magestosa independncia pela
degradante posio de instrumento de deshonestas ambies, de
vinganas miserveis, de desordem e desgraa dos povos, eleva-se
nas abenoadas azas da felicidade deelles altura em que todas as
classes generosas da sociedade o contemplam, filho da razo, amante
da verdade, respeitador do direito, centro de luz, anjo de paz.
A imprensa que no queima porta dos grandes das naes o incenso, cujo perfume suave se perde no thuribulo da adolao, sustentado em mos de indignos (Boletim Oficial n. 46, 1871).
No que diz respeito aos jornais publicados em Cabo Verde logo aps a
proclamao da Repblica, Eugnio Tavares, em uma de suas cartas (sob o pseu-
75
76
Com base nessas concepes de jornalismo, os intelectuais cabo-verdianos assumiriam o dever cvico de produzir artigos para os peridicos da poca,
expressando seu ponto de vista acerca dos mais variados temas que os envolviam.
Nesse contexto, a importncia de Eugnio Tavares (ou Nh Gnio Tavares, ou Nh Tatai, como tambm era conhecido) pode ser avaliada pelos inmeros eptetos que lhe foram atribudos pela imprensa do arquiplago, ao longo do
tempo, dos quais elencamos alguns deles: retratista incomparvel da sociedade
do seu tempo; polemista vigoroso; jornalista criterioso; prncipe dos jornalistas
cabo-verdianos; pioneiro na defesa do homem cabo-verdiano livre e independente; publicista rigoroso; humanista combativo e mordaz; o primeiro a proclamar a autonomia para Cabo Verde; precursor do nativismo cabo-verdiano4.
De acordo com Tom Varela da Silva, a produo esparsa de Eugnio
Tavares, publicada em vrios peridicos durante aproximadamente quatro dcadas, permite
reconstituir do autor a personalidade lcida e forte de que foi possuidor, vastamente testemunhados pela sua pena jornalstica. A obra
de Eugnio Tavares revela-nos uma personalidade robusta, munida
de um temperamento apaixonado e prtico, para quem raramente
o velho ditado, querer poder, teria ficado sem contedo, no que
dele dependesse. A riqueza de seu carcter inquebrantvel e bem
formado casa-se perfeitamente com a sua personalidade e temperamento, constituindo-o num homem-modelo que soube aproveitar
e tirar partido de todas as oportunidades que a vida lhe oferecera
(SILVA, 1998, p. 57).
A imprensa, para ele, era uma forma de expor, cobrar, questionar, chamar a populao mesmo que apenas a parcela possuidora de alguma formao
letrada a refletir sobre todas as dificuldades que levavam Cabo Verde a se manter em inrcia, face ao desinteresse das autoridades responsveis diretamente
pela administrao das ilhas. A este respeito, criticamente, assim se manifestava:
Em qualquer recanto do mundo civilizado, , o jornal, um drstico depurador: regula as funes do organismo oficial; purga-o de
humores txicos; lava-o de impurezas; corrige-lhe os aleijes; lanceta-lhe os bubes; [...] entre ns, porm, a Imprensa mais no tem
podido ser que uma firma desacreditada, uma infeliz s bolandas entre a fome quotidiana e a polcia correcional (Eugnio Tavares: pelos
jornais...5, p. 148).
4 Disponvel no site da Fundao Eugnio Tavares <www.eugeniotavares.com>. Acesso em maio de
2010.
5 Daqui por diante citado como TPJ.
77
78
[...]
No entraram inda V. Exas. Na convico de que a calamidade pblica da fome deve ser atacada nas suas causas?
No desconfiam V. Exas. de que possa ser tempo de pensar em explorao de nascentes? E regularizar sistemas de irrigao? Na utilizao de
todos os terrenos arveis? No estudo de adaptao de novas culturas?
No dever de tornar obrigatria a arborizao? (TVTCP, p. 275).
Em virtude do abandono dispensado pelo governo colonial sua terrame, Eugnio Tavares apontou outra soluo para o desenvolvimento de Cabo
Verde: defendeu abertamente a emigrao, principalmente para os Estados Unidos da Amrica, pas que era considerado por ele como o Eldorado, onde se
poderia alcanar a liberdade econmica e enriquecer culturalmente. Para Eugnio, a emigrao cabo-verdiana constitua um elemento de riqueza e civilizao
(TPJ, p. 129).
A respeito da sada dos cabo-verdianos da terra natal, Leila Hernandez
esclarece o contexto que a caracteriza, em certo sentido, como inevitvel:
A precariedade da vida econmica e a extrema pobreza, a fome e a
alta taxa de mortalidade, acentuadas nas pocas de secas, pragas e
epidemias, expulsam amplos setores da sociedade para fora do arquiplago. [...] A aspirao bsica do emigrante lutar por sua sobrevivncia e a de sua famlia para, num segundo momento, poder criar
melhores condies de vida. Nesse sentido, o emigrante equaciona
possibilidades de trabalho, levando em conta suas aspiraes referentes estabilidade do emprego, ao nvel e regularidade de remunerao e as possibilidades de ascenso profissional (2002, p. 104).
Ainda sobre a partida para a Amrica, Eugnio Tavares, no artigo intitulado A Emigrao para a Amrica, afirma que:
A emigrao cabo-verdiana para os Estados Unidos da Amrica colocou, de h bastantes anos, a ilha Brava fora das contingncias desoladoras da misria com negra base nas irregularidades pluviosas
caractersticas, peculiares zona geogrfica em que surgiu o arquiplago; e lhe ilustrou, e lhe puliu o seu povo; e a cobriu de habitaes risonhas e confortveis, recendendo ao aroma sadio e fresco do asseio
holands; e fez brilhar a conscincia no crebro do seu povo; e fez
brotar a compreenso de uma s moral que dignifica a atmosfera dos
lares mais pobres; e cultivou o sentimento de amor ao lar, famlia,
sem o qual o amor ptria, e os mais elevados sentimentos de civismo so utopias; e implantou o amor ao trabalho, independncia; a
coragem moral que vence todas as dificuldades, o desprezo da morte
que facilita todas as empresas (TPJ, p. 163-164).
79
Os dois tercetos corroboram o que Eugnio Tavares denunciava no nmero dois da Revista de Cabo Verde: Realizam-se emigraes em massa; e, merc do desprezo da metrpole, est-se operando uma radical desnacionalizao
do povo cabo-verdiano, principalmente dos naturais da ilha Brava (TPJ, 1997,
p. 18). A emigrao para So Tom encarada como desterro e como notrabalho, semelhante escravatura. Somente em liberdade o ser humano pode
realizar trabalho digno, a mxima proposta por Nh (Mestre) Eugnio e este
tipo de emigrao no traria rendimentos aos emigrados, muito pelo contrrio,
embrutecia-os e empobrecia-os.
Jos Antnio Nobre Marques Guimares, em O nativismo em Eugnio
Tavares (2005) lembra que um dos fios condutores da ao poltica e jornalstica
do poeta, desde cedo, ergue-se contra a contratao de serviais para So Tom.
Este trabalho, pesado e muito mal remunerado, era destinado aos cabo-verdianos que a ele se submetiam em virtude do estado miservel em que viviam, uma
vez que no tinham outra alternativa diante das sucessivas secas que assolavam
80
o pas e que causavam grande caos social. Havia, ademais, interesse por parte da
administrao colonial em se aproveitar desse cenrio de calamidades, j que
desta forma o governo portugus conseguia mo-de-obra quase gratuita para o
trabalho nas plantaes de cacau em So Tom.
Desmontando alguns argumentos do Sr. Leote do Rego a favor da mode-obra cabo-verdiana para So Tom, expressos em entrevista intitulada Pela
Imprensa do Pas, concedida ao jornal O Sculo, de Lisboa, Eugnio vai refutar
enfaticamente esta forma de emigrao usando o texto jornalstico como arma.
Confrontemos as ideias do Sr. Leote, citado em artigo-rplica tavariano:
para que o desenvolvimento da agricultura em S. Tom no sofra entraves, no lute com dificuldades por causa da falta de braos, isto
que se deve procurar manter; no por leis violentas mas pormeios
suaves de captao. Angola tem-nos faltado ultimamente com homens, em virtude dos ingleses; Cabo Verde, apesar de gritar com
fome,faz outro tanto e necessitamos estudar a srio um problema
grave como este. Ora, poder-se- resolver favoravelmente os nossos
interesses em S. Tom, conseguindo-se esta espcie de andamento
rotativa: o preto depois de ver a sua terra voltar para as roas por sua
livre vontade (REGO citado por TPJ, p. 90-91, grifos nossos).
81
Existe, porm, um meio de evitar que o desenvolvimento da agricultura em S. Tom sofra entraves: atrair trabalhadores no arrebanhar escravos! dando-lhes salrios, instruo, direitos. Do contrrio contar que, Cabo Verde, no ir para S. Tom um nico homem
que no leve o desprezo do povo cabo-verdiano (Ibidem).
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SILVA, T. V. da. Eugnio Tavares pelos jornais... In: Revista Pr-textos, dez. 98. Praia: Associa-
84
85
Em Cabo Verde, as conquistas femininas tm sido alcanadas paulatinamente, sobretudo no que diz respeito ao princpio da igualdade de gnero, apesar
de as cabo-verdianas terem sido postas, por longos anos, margem de uma sociedade que ignorava seus anseios. A independncia do pas (1975), cujas lutas
pela libertao contaram com a participao ativa de muitas mulheres, dentre
elas, Dulce Almada Duarte, como ressalta FERNANDES (2006), fator contributivo para a emancipao feminina, ao outorgar o direito ao voto eleitoral.
Anos mais tarde, em 1978, forma-se a Comisso Nacional Organizadora
das Mulheres de Cabo Verde (CNOMCV) e, em 1981, institui-se a OMCV (Organizao das Mulheres de Cabo Verde), organizao governamental responsvel por cuidar exclusivamente das questes femininas, composta por cabo-verdianas que tiveram participao no processo de luta pela autonomia do pas.
Objetivando assegurar a igualdade entre homens e mulheres e anular
toda distino, restrio ou excluso baseada no sexo, Cabo Verde adere, em
1979 (com ratificao em 1980 e em 2010), Conveno sobre a Eliminao de
Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher (CEDAW).
Em 1984, passa a ser regimentada a Lei de Despenalizao do Aborto,
que, para alm de suas controvrsias ticas, morais e religiosas, revela-se fulcral,
ao destituir das mulheres o estigma social de criminalidade. Em 1997, o aborto
seguro nas estruturas de Sade legalizado, por meio da Lei para a Interrupo
Voluntria da Gravidez (IVG).
Com a abolio do monopartidarismo, nos anos 1990, confere-se s mulheres maior destaque atravs da concepo de polticas especficas no III Plano Nacional de Desenvolvimento (1992-1995), conforme descrito por Simone
86
Em 2004, a violncia domstica (agresso ou maus tratos) contra as mulheres passa a ser crime punvel, conforme definido pelo Cdigo Penal (artigo
134), podendo a recluso variar entre um e quatro anos (PEREIRA, 2010, p. 88).
Seis anos depois, o Parlamento cabo-verdiano aprova o projeto de lei1 que transforma a Violncia Baseada no Gnero (VBG) em crime pblico, ao mesmo tempo em que o pas ratifica a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas
de Violncia e Discriminao contra as Mulheres (CEDAW) e a Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos.
Com o propsito de impulsionar e defender os direitos das mulheres,
as organizaes no-governamentais2 multiplicam-se a partir dos anos 1990, cabendo destacar: a Associao de Apoio Auto-Promoo da Mulher no Desenvolvimento (MORABI), de 1992; a Organizao das Mulheres de Cabo Verde
(OMCV), que passa a ser ONG em 1991; a Associao das Mulheres Empresrias Profissionais de Cabo Verde (AMEPCV), de 1992; a Associao Cabo-verdiana de Mulheres Juristas (AMJ), de 2000; a Rede de Mulheres Parlamentares
Cabo-verdianas (RMP-CV), de 2002; e a Rede de Mulheres Economistas (REDEMEC), de 2003.
Dentre as aes e instituies criadas pelo governo, destacam-se a Comisso Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania (CNDHC), de 2004,
em substituio ao Comit Nacional dos Direitos Humanos (que operou entre os
anos 2001 e 2004); o Instituto Cabo-Verdiano para Igualdade e Equidade de G1 Efetiva-se em maro de 2011. Entre os anos 2010 e 2011, o nmero de casos de violncia domstica
duplica em 11 concelhos; entre 2011 e 2012, o valor volta a dobrar em 9 concelhos (INE/ICIEG/ONU,
2012, p. 58).
2 Informaes disponveis no site Plataforma das ONGs de Cabo Verde: <http://www.platongs.org.cv/
index.php?option=com_content&view=frontpage&Itemid=1>. Acesso em 13 jun. 2013.
87
nero (ICIEG), de 2006, anteriormente designado Instituto da Condio Feminina (ICF); o Plano Nacional para Equidade e Igualdade de Gnero (2005-2011)3;
e o Programa do Governo 2011-2016 para a VIII Legislatura4, o qual considera a
problemtica de gnero um dos 4 elementos nucleares do Programa.
No que tange sade das mulheres, os avanos sanitrios tm colaborado para as baixas taxas de mortalidade em todas as idades. O relatrio dos Objectivos do Milnio para o Desenvolvimento 2008 (ONU/Cabo Verde5) considera a mortalidade materna em Cabo Verde relativamente baixa, se comparada
aos demais pases da frica subsaariana. O ndice de mortalidade materna no
pas tem diminudo desde os anos 1990, sendo as principais causas de bitos
maternos eclampsia, hemorragia e gravidez extra-uterina.
Sobre a sade mental, inteno substancial do governo de Cabo Verde
que todos os portadores de distrbios mentais e neurolgicos sejam bem assistidos por especialistas e possam usufruir de tratamento especializado, com prioridade a estratgias de combate ao suicdio, dependncia txica, ao alcoolismo,
sendo os grupos principais as crianas e os adolescentes, os deficientes, as mulheres vtimas de violncia, os idosos e aqueles que vivem na linha de pobreza.
Segundo a ltima abordagem estatstica e o mais recente estudo epidemiolgico dos transtornos mentais (Ibidem, 2008), realizados em 1988 e 1989,
havia 4,3 portadores de distrbios mentais para cada 1000 habitantes. Em 2010,
as doenas mentais e de comportamento ocupavam o 10 lugar entre as causas
de morte. Para prestar atendimento a esses pacientes, esto em funcionamento o
Hospital Dr. Agostinho Neto, o Hospital Dr. Baptista de Sousa e alguns hospitais
regionais, como o da Ribeira Grande.
A fim de defender os direitos dos cabo-verdianos que apresentem limitaes na esfera da sade mental, tem origem, em 2001, a Associao de Promoo da Sade Mental (A PONTE), ONG que presta assistncia humanitria aos
doentes e s suas famlias.
No entanto, embora haja esforos, nem sempre estes se mostram suficientes. O nmero de portadores de transtornos mentais que perambulam pelas
ruas de Cabo Verde aumenta a cada ano devido insuficincia em termos de
profissionais qualificados e de espao nos hospitais. Carente de uma legislao
direcionada sade mental, Cabo Verde aprova, em fevereiro deste ano, a pro3 INE/ICIEG/ONU. Mulheres e Homens em Cabo Verde: fatos e nmeros 2008.Disponvel em: <http://
www.ine.cv/actualise/publicacao/files/15c06ce8-5166-4607-ab90-1e914bc4235aMulheres%20e%20Homens%20em%20Cabo%20Verde.pdf>. Acesso em 13 jun. 2013.
4 ______. Mulheres e Homens em Cabo Verde: fatos e nmeros 2012. Disponvel em: <http://www.ine.cv/
actualise/publicacao/files/1103929942013Mulheres%20e%20Homens%20em%20Cabo%20Verde.pd>.
Acesso em 17 jun. 2013.
5 Disponvel em:<http://www.un.cv/omd.php>. Acesso em 18 jun. 2013.
88
posta de lei apresentada pelo governo, que estabelece os princpios gerais de sade mental e legitima o internamento obrigatrio dos portadores de transtornos
psquicos.
No campo cultural, evidencia-se em Cabo Verde o papel das mulheres
como transmissoras da sabedoria: elas intermediam, segundo GOMES (2008) as
tradies da comunidade, os costumes, as crenas, a msica (em especial, a morna, cuja principal expoente foi Cesria vora, a musa dos ps descalos, morta
em 2011), a culinria. Como os narradores de Benjamin6, os primeiros mestres
na arte de narrar, as cabo-verdianas prezam pela conservao do passado, ao
contar histrias para os filhos durante a noite.
A dana aparece como uma forma de emancipao ao possibilitar que
as mulheres se libertem da dominao masculina (no espao privado) e organizem-se a fim de partilhar as aflies do cotidiano (no espao pblico).
A revista Claridade, cujo surgimento se d em 1936, marca a constituio de um grupo que impacta o sistema literrio cabo-verdiano, a ponto de este
ser comumente periodizado em antes, durante e depois da Claridade. Preocupados com a realidade sociolgica das ilhas, os intelectuais Manuel Lopes,
Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa iniciam uma luta pela criao de uma
identidade cultural autnoma.
Embora tenha havido algum empenho em abordar questes femininas,
como o fez Baltasar Lopes no conto A Caderneta, em que relata o constrangimento sofrido por uma ex-lavadeira ao tentar ocultar do mdico sua atual situao de prostituta, o primeiro grupo claridoso foi liderado por homens e suas
publicaes eram quase que exclusivamente escritas por homens.
A literatura cabo-verdiana feita por mulheres surge ainda discreta com
a publicao da revista Mujer, incentivada pela OMCV que, entre os anos 1982
e 1984, edita 24 nmeros, incluindo assuntos concernentes ao universo feminino especfico (como amamentao, por exemplo), alm de pautas culturais e
polticas. Dentre as colaboradoras que produziram textos literrios figuravam
Vera Duarte, Lara Arajo (Madalena Tavares), Eunice Borges, Ivone Ramos e
Margarida Moreira.
A dificuldade de edio no pas, nos anos 1980, incita muitas escritoras
a produzirem para peridicos (GOMES, 2008), como o caso de Dina Salstio,
Manuela Fonseca, Ana Jlia, Alzira Pires, Helena Alhinho, dentre outras.
A antologia organizada por Jos Lus Hopffer Almada, Mirabilis de veias
6 Referimo-nos ao conceito de narrador abordado por Walter Benjamin, em seu ensaio O narrador.
Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura
e histria da cultura, 1994, p. 197-221.
89
90
e os seus costumes e tinha sido atirada s guas em dia claro que se fez escuro
(Ibidem, p. 72), e nas sucesses ora contnuas, ora descontnuas dos fatos, causando dvida a respeito do que real, cotidiano, e o que fantasia, imaginao,
loucura, remetendo-nos ao que Todorov (2007, p. 47-48) denomina tempo de
hesitao na literatura fantstica:
O fantstico, como vimos, dura apenas o tempo de uma hesitao:
hesitao comum ao leitor e personagem, que devem decidir se o
que percebem depende ou no da realidade, tal qual existe na opinio comum. No fim da histria, o leitor, quando no a personagem,
toma, contudo, uma deciso, opta por uma ou outra soluo, saindo,
desse modo, do fantstico.
O fantstico tambm se revela na demasiada preocupao com a quantificao e na medida exagerada da altura da porta fantstica da casa da parteira (3,99 metros). O nmero trs, por exemplo, aparece em vrias passagens do
livro (p. 14, 17, 18, 20, 22, 23, 24, 26, 48, 53, 86, 91, 93, 101, 104, 116, 151, 157,
166, 178, 190). Representao simblica da unio e da harmonia, o tringulo,
segundo Chevalier (2003) a primeira figura geomtrica produzida por linhas
retas, sendo um dos smbolos do sagrado. Ele denota as trs esferas csmicas,
planos inferior, material e superior, e as trs dimenses humanas, corpo, mente
e esprito. Da decorre a perfeio estabelecida com a triangulao entre as personagens Louca de Serrano, Fernanda/Genoveva e Filipa, cujo encontro, ao final
do romance, promove o fechamento cclico do tempo e da histria. Justificada
pela autora como forma de chamar a ateno do leitor para esta dimenso, a
altura da porta pode estar atrelada liberdade:
eu acho que o mundo tem que ir para a altura, para outros caminhos,
para outras aventuras. E a largura, quanto largura o (espao) que
est no cho, em que a gente no precisa muito para estar no cho,
a gente precisa muito para voar, mas pouco para estar no cho (SALSTIO, entrevista, 2009).
Liberdade que pretende ser alcanada por meio do discurso denunciativo, por vezes irnico, que percorre toda a obra e, em especial, as primeiras pginas, nas quais podemos conferir crticas ignorncia em relao s mulheres:
A jovem no teve direito a um tempo para dizer que no podia estar
grvida porque desconhecia macho na sua natureza, ignorante das
vezes em que algumas mulheres pelo mundo afora engravidam sem
terem sido tocadas por macho, acabando por se conformar com os
rtulos e rituais existentes para no incorrerem no desconforto incrdulo das demais criaturas (SALSTIO, 1998, p. 11).
91
magia negra
Inconfidncias titubeadas por vozes coladas ao cho revelaram que a
parteira que por algum tempo trocava do ofcio de ajudar a dar luz
inocentes criaturas para ajudar rapazes a entrar com sabedoria no
mundo adulto, ou ainda se entregava a actos de expurgar de males
ruins a virilidade dos homens, pela certa, devia ter poderosas alianas com foras ocultas, tal o desfecho vitorioso de cada interveno
(Ibidem, p. 13-14).
e s diferenas socioculturais
O chefe deu ordem de retirada e decidiu que passasse a constar do
relatrio a ser apresentado superiormente que, da prxima vez que
voltassem quele fim de mundo, deveriam ser enquadrados por uma
proteo policial porque os selvagens no ofereciam confiana [...]
(Ibidem, p. 20).
92
Serrano, na pena, pincel ou cmera de Dina Salstio, uma povoao pequena, rural (de sol, chuva, sementeira, colheita), fronteira
de fronteiras, pedao de terra forte, de pele lamacenta e alma rochosa, batida pelo vento incansvel; de mulheres e crianas improvisando o batuque em latas velhas, onde uma cabra amamenta
o beb e algum se afoga em grogue, evoca-nos um cenrio j conhecido: Santo Anto e, por extenso, Cabo Verde.
Esse aspecto tambm evidenciado por Jorge Carlos Fonseca7, que qualifica os nomes das personagens Bia e Maninha como muito comuns e tpicos de
Cabo Verde, alm de citar a linguagem e a simbologia empregadas no encontro
entre Maninha e Jernimo, e as caractersticas do clima da aldeia:
Jernimo ter feito Maninha mulher na oficina do quintalo (haver cena mais pressentidamente cabo-verdiana?!) ou a descrio do
tempo da gente de Serrano: era o sol, a chuva, as sementeiras e as
colheitas ou qualquer outro que no viesse envolto em promessas
que no decifravam [...].
Em sua obra Questes de literatura e de esttica (2010), Mikhail Bakhtin denomina cronotopo (do grego, cronos: tempo; topos: lugar) a interligao das relaes espaciais e temporais na literatura e sua indissociabilidade, constituindo-se como
centro construtivo dos acontecimentos mais importantes do romance. O processo de
absoro do cronotopo do tempo, do espao e do indivduo histrico real que se
mostra neles contribui de modo substancial para que a narrativa adquira um carter
tangvel. Em A louca de Serrano, a indissociabilidade entre tempo e espao se d por
meio da interseco entre os espaos rural e urbano e da sequncia de estgios temporais (a maldio de Serrano, o nascimento de Filipa, as festas que comemoram o final
de 1994). So os espaos que mantm latentes as marcas do tempo passado no tempo
presente, graas memria.
A questo da nomeao, manifestada pelo episdio dos batismos da aldeia e da louca, merece um olhar mais atento. O batismo da aldeia, ordenado
pela louca (que empresta sua voz velha parteira), fator desencadeador de sua
prpria nomeao. Dadas as afinidades semnticas entre a aldeia e a louca, o
nome escolhido pela populao para esta Louca de Serrano, expresso metonmica que a identifica como parte (contedo) integrante do continente.
Carregar o nome da aldeia sem se sentir parte desta revelada no desejo
da Louca de encontrar seu lugar (SALSTIO, 1998, p. 33) representa a perda
de identidade, a mortificao do eu; significa receber um status natal que no
pertence ao eu (DERRIDA, 2002), mas ao objeto, ao outro.
7 A louca de Serrano: o percurso de um inesperado e ingnuo mergulho ou as loucas confisses de um
leitor. Disponvel em <home.no/caboverde/dinasalustio.doc>. Acesso em 09 jul. 2013.
93
E como Maninha, que, por ser estril, carrega consigo as dores de pertencer a um mundo onde a fertilidade smbolo da imobilidade e normalidade
sociais:
Maninha consumia-se de inveja das companheiras que j tinham
crianas e iludia-se a olhar para o pequeno ba com as roupas do
beb, ao qual juntou um saco de plstico enorme e uma caixa de
papelo que dantes pertencera a uns sapatos [...]. Em todos aqueles
anos de esperana falhada qualquer tosto que juntava era para o
enxoval e nunca comprava um vestido ou uma saia para ela, porque
brevemente vou estar com barriga e nada me ir servir, sabe? e
continuava a sonhar, a modificar as roupas e a lavar mais uma fralda,
94
As histrias de vida dessas mulheres so observadas pela Louca, protagonista do romance, destinada a infinitas reencarnaes e posta margem da
sociedade, por ser fruto de um incesto. Por visualizar na personagem atitudes
de grandeza, o narrador enaltece sua histria de vida, a fim de que o leitor se
solidarize com ela:
Encontram-se aqui, sem dvida, pedaos da vida da mulher que
baptizou Serrano, conhecedora de todos os segredos do vale, origem
desta breve narrao, [...]; uma jovem que no encontrou homem,
mulher, bandido ou animal que fosse, que a tivesse chamado filha,
que a tivesse feito mulher e por isso, para se vingar, amaldioava as
criaturas do lugar que, por cumplicidade, tinham torcido o seu destino e a conheciam por Louca de Serrano (Ibidem, p. 26).
95
Ao lado dela (e, por vezes, confundindo-se com ela) aparece Filipa, mulher contempornea, representante da gerao feminina dos San Martn. Dentro
do espao em que o iletramento prevalece, os excertos narrativos da vivncia entre Filipa e a Louca resgatam uma sabedoria outra, como nos mostra o episdio
em que elas se encontram junto fonte:
Um dia, junto da fonte, enquanto Filipa chorava a morte de um peixe, ela disse-lhe que a morte no d sofrimento e que a nica dor
algum viver a vida que no lhe foi destinada, como ela prpria vivia,
cumprindo a maldio que cara por si, quando um homem interrompeu o seu voo, ainda criatura no saco, em noite de Lua Nova, a
caminho de sua verdadeira casa. Na hora em que Filipa deixava a
aldeia, a jovem, parecendo mais atrapalhada do que nunca, disselhe que um dia seria feliz porque encontraria o seu lugar, apesar das
centenas de luas que haviam de passar e dos imensos obstculos que
teria de vencer antes de achar o seu poiso (SALSTIO, 1998, p. 33).
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98
99
Dentre as personagens e episdios que transitam entre as obras, podemos citar, na novela In memoriam, Fernando Macedo e seu suicdio, que a
m-lngua atribui ao peso dos cornos (ALMEIDA, 1998a, p. 18) e a esposa,
D. Rosalinda, atribui sua fraqueza, sendo que o partido nico, do qual fazia
parte, tenta transform-lo em uma espcie de mrtir do comunismo nacional.
No romance Eva esse episdio retomado.
Um outro caso o de Joo Nuno e a guerra travada entre sua empregada
Lusa e suas namoradas, na novela As mulheres do Joo Nuno. Muitas dessas
estrias so retomadas em As memrias de um esprito, pelo olhar de Alrio, o
defunto narrador. Essa intertextualidade, endmica obra almeidiana, exige
que o leitor fique em alerta e expectativa permanentes, pois, segundo Paula Gndara:
O retorno s mesmas estrias, histria e personagens impede a demolio de expectativas. O texto nunca chega a um final definitivo,
mas ressuscita e recria-se num novo texto. [...] No h singularidade
de funes nem aceitao da figura tradicional do narrador e do romance como gnero literrio. Transgridem-se modelos e autoridades e, mais uma vez se levanta a questo da fronteira (GNDARA,
2008, p. 90).
Em As memrias de um esprito, as fronteiras acima mencionadas referem-se aos sentidos interdependentes que emanam das narrativas, mas tambm
s fronteiras de gnero, pois, no velrio de Alrio, conforme vo chegando os veladores, na maioria mulheres, o morto relembra as prprias aventuras amorosas,
e tambm contar as de seus clientes e amigos, com mincias das suas relaes
ntimas com suas diversas mulheres, que acabam por remeter s relaes sociais
de gnero.
Essas micronarrativas que perfazem o romance tm como um dos temas o jogo em que caa e caador se confundem, assim como o dominado e o
dominador, pondo em xeque os papis sociais de gnero tradicionalmente estabelecidos, conforme podemos notar no excerto abaixo, que traz um dilogo
entre Alrio e uma de suas namoradas:
Ondina disse por fim, devagar, como se tivesse estado longamente
a meditar a afirmao: A mulher vai para a cama com o homem,
nunca o contrrio. Pode ser, concedi agastado, mas eu gosto mais
daquelas que me dizem que me possuem, no o contrrio, porque
para mim uma relao de pura igualdade em que inclusivamente
estou mais exposto, mais sujeito ao fracasso... Ela interrompeu-me,
porm, tapando a minha boca com a mo aberta: No achas estpido estarmos a falar assim como se estivssemos zangados um com
100
Este excerto emblemtico quanto s nuances dessas personagens mulheres, sedutoras, imprevisveis, misteriosas, ambguas, decididas, autoritrias e,
acima de tudo, livres dos papis e das convenes sociais, para viverem o seu
erotismo. Elas demonstram suas preferncias sexuais, suas fantasias erticas, e
as vivenciam, muitas vezes, com dissimulao, fingindo que acatam a ditadura
patriarcal. A concepo de mulher engendrada no sculo XX representa-a com
conscincia do prprio o corpo, no abrindo mo do prazer que este pode lhe
proporcionar; essa ideia de feminilidade trouxe diversas consequncias s relaes sociais de gnero, conforme atesta Rosiska Darcy de Oliveira:
As consequncias sociais e morais da prtica generalizada de contracepo vo introduzir no esprito feminino a mais subversiva das
convices: nosso corpo nos pertence. A libertao do prazer e do
desejo das mulheres constitui a grande ruptura na histria feminina,
abertura que vinha, mais ou menos imperceptivelmente, se preparando desde o sculo XVIII (OLIVEIRA, 1991, p. 42).
Na narrativa de Germano Almeida, Alrio era um advogado bem sucedido profissional e pessoalmente que, depois de vrias aventuras amorosas
e polticas, levava uma vida tranquila, conforme ele mesmo testemunha: mas
depois que abandonei a poltica e a m vida e comecei com Alda a viver uma
pacata existncia de pequeno burgus (ALMEIDA, 2001, p. 30). Podemos entender que esta personagem encaixa-se nos padres da masculinidade patriarcal hegemnica, caracterizada principalmente pela virilidade e a heterossexualidade um verdadeiro macho. Segundo Elisabeth Badinter (1993, p. 134), a
masculinidade medida pelo compasso do sucesso, do poder e da admirao
que provoca. Porm, a sua fala, no excerto anterior, d-nos indcios de uma
crise de masculinidade, visto que, momentos aps, reclama dos modos bruscos
da amante: queria encontrar muito depressa o meu corpo dhomem, e depois
agarrou-o com uma mo firme [...] ordenou-me que fechasse os olhos depressa,
que no olhasse para ela (ALMEIDA, 2001, p. 188-189).
Observemos que Ondina fere a sensibilidade de Alrio, criando uma situao em que normalmente esses papis so invertidos, pois ele se torna um
objeto de prazer para ela, uma aventura fora do casamento, na qual no havia
espao para o amor, mas somente para o sexo.
Conforme sabemos, os estudos de gnero devem ser pautados sempre
pela categoria relacional; logo, entendemos que, se houve transformaes nas fe-
101
102
tural e que diferena nunca deve significar desigualdade (Ibidem, p. 43). Embora ela proclame um discurso patriarcal, assume um comportamento totalmente
oposto, do qual o leitor toma conhecimento pela voz de Alrio que, em determinada ocasio, fora seu advogado, amigo e confidente.
Em As memrias de um esprito, a personagem aparece como D. Rosalinda, mais madura e ainda mais ousada, levando para o velrio de Alrio, a reboque [,] o seu Teodoro (ALMEIDA, 2001, p. 41), o terceiro marido, e fazendo
questo de banhar o defunto:
Rosalinda acabou por ficar sozinha dentro do quarto [...] Curioso
como no cheguei a dar conta de me terem despido. Ela molha um
pano branco e comea esfreg-lo carinhosamente sobre mim, primeiro a cara e o cabelo, depois o pescoo e o peito numa carcia lenta
e suave, quase lbrica. Hum, sorrio, se calhar fui nabo em nunca a
ter experimentado, pelos jeitos tm razo os que dizem que ela no
de forma destituda, bem capaz de ser uma boa fmea na cama
(ALMEIDA, 2001, p. 42).
Alrio, conforme j vimos, apresentava fortes caractersticas de um modelo de masculinidade hegemnica patriarcal, praticamente um sinnimo de
heterossexualidade, mas, segundo Connell (1997, p. 39-40) mesmo esse modelo passvel de transformaes, uma vez que, assim como as feminilidades, a
masculinidade plural; esta assertiva bastante evidenciada no discurso e nas
atitudes de Alrio que, apesar de assumir um comportamento donjuanesco, em
alguns momentos se sente vulnervel. Assim, apesar de um aparente machismo
ao se referir a Rosalinda se calhar fui nabo em nunca a ter experimentado [...]
bem capaz de ser uma boa fmea na cama , podemos entender que a vulnerabilidade de Alrio metafrica e ironicamente representada na cena do banho
e no fato de ter sido despido pelas amigas, no exatamente pela sua mulher e
nem por amigos.
Podemos ir ainda mais longe e pensar que essa cena alegoricamente nos
remete ao fim do patriarcado, pois, apesar de a personagem no ser exatamente
tradicionalista, suas nuances configuram visivelmente uma masculinidade hegemnica, a encarnao da virilidade, que acaba por se reduzir a um corpo inerte,
manipulado por vrias mulheres.
Sendo a ironia um dos traos marcantes das narrativas almeidianas, o
autor cria situaes inusitadas e constri um narrador minucioso que remete o
leitor visualizao das cenas, tamanhas as elaboraes imagticas, como, por
exemplo, no fragmento a seguir:
Eu sorrio de onde estou, o que mais faltava elas virem agora brigar-
103
me depois de morto [...]. Mas parece que a pila est pouco preocupada com a lavagem porque Rosalinda larga-a e ela cai para o lado. Est
cansado, penso, desempenhou os seus deveres durante a vida, alis
foi a parte do meu corpo que mais trabalhou e tambm a que mais
cedo teve cabelos brancos. Descansa agora em paz, recomendo-lhe,
vais com a tranquilidade do dever bem cumprido, at que poderias
ter sido agraciado com um qualquer ttulo honorfico pelos abnegados servios prestados nobre causa da satisfao das necessidades
do mundo feminino (ALMEIDA, 2001, p. 48).
A supervalorizao do pnis estabelece relao com os modelos masculinos apresentados por Badinter (Ibidem, p. 133-189) que utiliza conceitos
de tipos de homem, definindo-os como o duro, o mole e o doce, traando, ou
tentando traar, uma trajetria de representaes masculinas patriarcais at as
novas masculinidades que surgem entre as demandas do feminismo da diferena que surgiu entre os anos 1970, final dos anos 1980, quando as mulheres se deram conta de que no era possvel reconstruir o feminino sem que o masculino
tambm fosse repensado (OLIVEIRA, 1991, p. 71-74).
Sob essa tica, Alrio apresenta nuances das trs tipificaes delineadas
por Badinter, pois, em suas reflexes, ele chega a sugerir um ttulo honorfico ao seu pnis, tornando-o metonmia de si mesmo; esse nvel de narcisismo
machista, que tende a promover uma hipervirilidade, articula-se ao conceito
de homem duro. J no seu dilogo com Ondina, percebemos traos do homem
mole, que vive uma desordem interna, quando expe sua insegurana companheira, cuja reao assemelha-se das mulheres que rejeitavam este modelo,
por consider-lo sucedneo do feminino tradicional; razo pela qual, por volta
de 1984, segundo Badinter (1993, p. 156), foi declarada a morte do homem mole,
cujo perfil era o oposto do duro, sendo a oposio a nica relao entre esses
dois tipos, resultando apenas uma inverso de papis e no chegando a haver,
efetivamente, uma reconciliao que resolvesse os conflitos internos masculinos
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Entre esses dois extremos, surge o homem doce, ou o homem reconciliado (BADINTER, 1993, p. 165), a partir de uma relao dialtica entre o duro
e o mole, por meio da rediscusso dos esteretipos femininos e masculinos, e,
desta forma, superando os conflitos internos e engendrando novas masculinidades. Tais tipificaes podem funcionar como balizas para refletirmos sobre os
processos de transformaes masculinas representados literariamente sem, contudo, consider-las estticas, visto que segundo Culler (2000, p. 110), as recentes
teorizaes sobre raa, gnero e sexualidade devem-se muito aos materiais fornecidos pela literatura, que problematiza questes polticas e sociais acerca da
construo da(s) identidade(s) que, nas teorizaes contemporneas, faz(em)
confluir pluralidade e dinmica.
Percebemos, no decorrer do romance, e na obra almeidiana de modo
geral, olhares diversificados sobre situaes comuns, conforme a tica das personagens que transitam entre a tradio e a modernidade, num contnuo processo de (des)construo das identidades e das relaes de gnero. Apesar do
alto grau de machismo, em algumas falas de Alrio percebemos uma certa gangorra em cujas extremidades, posicionam-se os sujeitos subalterno (a mulher, o
colonizado, o homossexual) e hegemnico (o homem, o colonizador, o heterossexual) que, ao se revezarem, colocam sob suspeita conceitos estticos sobre as
relaes sociais de gnero e mantm em trnsito feminilidades e masculinidades, rompendo, sobretudo, a passividade ertica da mulher na conjugalidade
(ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 34).
Ser que possvel, a partir da ruptura do papel tradicionalmente feminino no mbito privado, projetarem-se novas perspectivas nas relaes de
gnero no espao pblico?
Importante lembrar, aqui, que o pano de fundo das narrativas almeidianas
a sociedade cabo-verdiana, embora o autor opte por uma abordagem temtica que
no se restringe ao contexto de Cabo Verde, pois suas personagens figuram as diversas faces do ser humano e as ambientaes, s vezes, constroem-se na dispora.
Porm, importante considerar as reflexes de Antonio Candido quanto leitura
do texto literrio, uma vez que, para que esta seja realmente efetiva, preciso signific-la em seu contexto numa interpretao dialeticamente ntegra (CANDIDO,
2000, p. 6), que estabelea relaes entre o externo, o social, e o interno ao texto,
de modo que aquele desempenhe uma funo na constituio da estrutura textual.
Compartilhando dessa relao entre literatura e sociedade, de que nos
fala Candido, Cntia Schwantes (2002, p. 391) entende que:
[...] a literatura nos fornece sinais indiretos, muito mais do que diretos, sobre a sociedade na qual circulou, ou circula. A literatura no
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nos diz como somos, mas sim, como pensamos que somos, como
desejamos ser, e no limite, como no somos.
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Embora a citao acima seja extensa, ela nos d indcios de que Aninhas
seja um modelo de feminilidade em trnsito. A propsito, o nome da personagem fortalece esta hiptese por apresentar o primeiro nome no plural e o segundo associado ao modelo patriarcal da mulher perfeita, Maria, a redentora de
todas as Evas. Esta personagem aparece pela primeira vez em Estrias de dentro
de casa (1996), na novela Agravos de um artista, como a suposta autora de uma
carta que o escritor, cujo nome no citado, responde; no entanto, h muitas
pistas de que este escritor, cuja estria retomada na crnica Os agravos de um
escritor, em Estrias contadas (1999), seja Romualdo.
Em Dona Pura e os camaradas de Abril (1999), retratada a fase revolucionria de Aninhas. Antes disso, porm, na novela Agravos de Um Artista,
como a suposta admiradora do Artista na longa missiva que ele escreve ela
apelidada Anuchas, Anicha, Anusquinha, Quiducha, reforando o modelo de
feminilidade plural e em trnsito, pois observemos que houve uma transformao da Aninhas Maria da obra de 1996 para a de 1999, em que ela acaba se
convertendo em revolucionria. Aps a decepo com Natal, modelo de masculinidade hegemnica, ela assume novamente uma postura passiva na obra de
2001, ao lado de Romualdo vulgo Caga-Vrgulas um pseudo-intelectual que,
embora se autoproclame o primeiro e nico escritor profissional de Cabo Verde,
descrito pelo narrador como um tonto que todos sabem que a mulher abandonou por imprestvel (ALMEIDA, 2001, p. 29).
Romualdo detm uma imagem distorcida de si mesmo, considerandose um exemplo de masculinidade hegemnica e Aninhas convence-se (ou tenta
convencer-se) de que ele realmente superior e sente-se honrada por servir um
homem que sabia que iria ficar na Histria da Literatura Cabo-verdiana como
um de seus maiores e mais afamados escritores (Ibidem, p. 29); no entanto,
Romualdo desmascarado pelo narrador, que nos mostra que ele se configura,
na lgica patriarcal, mais como um masculino subalterno, uma vez que no tem
autonomia financeira e nem afeito prtica sexual, ou seja, at mesmo o poder simblico que ele julga ter sobre Aninhas falso.
So muitas as personagens e estrias mencionadas pelo narrador de As
memrias de um esprito que do margem ao estudo das relaes sociais de gnero. A maioria dessas estrias tem intertexto com outras obras do autor, que
constri personagens masculinas que partem de modelos caricaturais como Romualdo a complexos como Alrio; as personagens femininas so, na maioria das
vezes, complexas como Rosalinda, a ex-mulher de Romualdo, Ondina e tantas
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outras veladoras de Alrio, como Aninhas, que por trs de seu conformismo,
contentando-se em viver sombra de Romualdo, compensa sua frustrao na
comida, no obstante continue magra: devora tudo o que for comida que lhe
passe pela frente (Ibidem, p. 25).
As temticas da virgindade e do adultrio tambm so constantes nas
obras almeidianas. Em As memrias de um esprito, por exemplo, a maioria das
memrias de Alrio envolve o adultrio tanto feminino quanto masculino. Mas
sabemos que, na tica patriarcal, esse comportamento por parte dos homens
no condenado, pelo contrrio, motivo de orgulho e alarde; enquanto que
por parte da mulher alvo da m-lngua. Isto ressalta mais uma vez a desigualdade nas relaes sociais de gnero.
A virgindade tambm exigida da mulher; enquanto que, no homem,
louvada a experincia. E este raciocnio e prtica so transversais sociedade,
independentemente do status, do meio social (rural ou urbano), de fronteiras
geogrficas e temporais:
Ora temida pelo homem, ora desejada e at exigida, ela (a virgindade) apresenta-se como a forma mais acabada do mistrio feminino;
o aspecto mais inquietante deste e ao mesmo tempo o mais fascinante. [] o homem recusa ou reclama que a esposa lhe seja entregue
virgem (BEAUVOIR, 2009, p. 262).
Essas asseres de Simone de Beauvoir traduzem exatamente a centralidade da virgindade na cultura cabo-verdiana. Sobre esta questo, os comportamentos, papis e expectativas so claramente definidos. direito legtimo do homem que a esposa seja virgem, e a tradio reconhece-lhe o direito de devolver
a mulher como um objeto, caso seja defraudado. mulher cabe resguardar-se,
defender a sua virgindade, que representa a sua honra.
Quanto ao adultrio, Simone de Beauvoir acrescentava:
O adultrio reveste, alis, caracteres muito diferentes, segundo os
costumes e as circunstncias. A infidelidade conjugal apresenta-se,
ainda, na nossa civilizao, em que as tradies patriarcais sobrevivem, como mais grave para a mulher do que para o homem (BEAUVOIR, 2008, p. 360).
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ZINANI, C. J. A. Literatura e gnero: a construo da identidade feminina. Caxias do Sul: EDUCS, 2006.
111
Jos Luiz Tavares, pela representao esttica com que vem iluminando
a novssima literatura cabo-verdiana, assina um trabalho potico que vem reconfigurando o processo de afirmao identitria. o autor de Corao de lava
(2014), obra cuja leitura se partilha neste texto. Trata-se de um escritor caboverdiano do ontem recente, do agora presente, do aqui e da dispora, que, ao
lado de Corsino Fortes, Armnio Vieira, Joo Vrio, Mrio Fonseca, integra a
categoria de poetas que assinam uma produo literria de destaque no panorama literrio que j no se faz jovem e, por isso, vem servindo de mote a estudos
de interesse que marcam os percursos da literatura cabo-verdiana no que caracterizao da sua atualidade diz respeito. O autor assim se define:
Sou poeta e sou caboverdeano. O ser caboverdeano est subsumido
na condio de poeta. Clandestino na ditadura do mundo, como o
definiu Herberto Helder, o poeta nunca de um s lugar, de uma s
lngua, de uma s tradio. Hbrida e viajante a sua condio, e, no
meu caso pessoal, ainda mais, em decorrncia do ethos, das peculiaridades histricas e do longo afastamento do solo ptrio. [] Eu,
aprendiz da cincia da vertigem,/ pelo leve vnculo da cegueira/ que
deso aos pressagiados abismos (Entrevista a Maria Joo Cantinho,
in http://www.stormmagazine.com/novodb/arqmais.php?id=290&sec=&secn).
Com efeito, desde as primeiras publicaes poticas do autor, a demarcao acontece no sentido de uma busca e prtica de originalidade, no somente
pela tcnica e domnio versificatrio, mas igualmente pelo aturado trabalho que
circunstancialmente cada poema registra em temtica e verbalizao. O autor
coloca-se, em termos de afirmao da conscincia identitria que a sua obra
traduz, aparentemente margem do cnone, que ele prprio questiona no interior do texto, na vontade literria de pr em causa, ferir e questionar a pretensa
e instituda originalidade da expresso literria arrecadada pela produo que
prolifera no ambiente literrio cabo-verdiano. Como sustenta Bauman:
Em nosso mundo de individualizao em excesso, as identidades
so bnos ambguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e no
h como dizer quando um se transforma no outro. Na maior parte
do tempo, essas duas modalidades lquido-modernas de identidade
coabitam, mesmo que localizadas em diferentes nveis de conscincia. Num ambiente de vida lquido-moderno, as identidades talvez
sejam as encarnaes mais comuns, mais aguadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalncia. por isso, diria eu,
que esto firmemente assentadas no prprio cerne da ateno dos
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ns e do que todos ns. A reside o inexplicvel, o indizvel, a revelao do encoberto, a magia, o mistrio carregado de equvocos, pois, como confirma o poeta:
[]
Decerto o que te aguarda
tem a estranheza dessa promessa
lida no negrume quando escavando
a paisagem ouviste a msica extrema
do enxofre refletida contra o negro vivo
acendendo as lmpadas do teu estro.
Tudo excessivo, irrefutvel.
O devir esconde-se sob a capa da solidez
e da impenetrabilidade. E a vertigem
estende sua ossatura com a evidncia
do que no posterga um instante
eternidade bulindo estes flancos (TAVARES, 2014, p. 38).
No ttulo desta obra, presentifica-se uma imagem cara aos decifradores de sentidos. O primeiro elemento, Corao, o rgo metfora de vida,
porque central do indivduo. Assim, ele efetivamente o centro vital do ser humano, tomado como smbolo por vrias das nossas civilizaes. O seu duplo
movimento (sstole e distole) f-lo igualmente smbolo do duplo movimento
de expanso e reabsoro do universo, logo, no poderia ser mais expressiva e
adequada esta centralidade que pode apontar para o centro da terra cada vez
que um vulco entra em erupo, e mais ainda se atentarmos ao movimento que
os poemas que compem Corao de lava fazem: a forma de se manifestar aos
homens, expelindo material devastador e, ao mesmo tempo, constituindo fonte
de riqueza mineral, aceitao da imponncia divina e esperana na renovao de
espao e vida, inexplicavelmente mtica. Nesta perspectiva, reside a o centro
da vida, da vontade e da inteligncia.
Se aceitarmos que o Vulco toma a forma de uma montanha, a esta se
associa uma simbologia rica e mltipla. No caso do vulco do Fogo, o protagonista desta epopeia em verso, a sua elevao aproxima-o do cu como nenhum
outro elemento terrestre em Cabo Verde. A ttulo de exemplo, entre outras leituras possveis, ele pode simbolizar o termo da ascenso humana, o encontro entre
a terra e o cu, morada dos deuses, possuindo portanto duplamente a dimenso
do humano e do sagrado. Se por um lado nos d a noo de estabilidade, pela
sua imponncia, por vezes at de pureza, a montanha-vulco tambm temvel,
quanto maior a sua elevao, maior a sua grandeza e verticalidade triangular,
maior a carga simblica.
Sendo um Corao de lava, os seus movimentos exercem um efeito
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Sem resposta verbal, o apelo se faz tentativa de libertao dessa eternidade passado, onde possvel descortinar as coordenadas da nossa existncia e
o sentido da orientao que busca enquanto se medita e se escreve. Ouamos:
Mas grita, homem, que o inverno uma memria
benigna, e a mo que persigna haste e alvor,
e louvor o gesto que resgata ao exlio e terra
quebrantada restitui o bulcio das estaes
inaugurais, o timbre e o sopro para invocar
o sagrado nome do fogo, ou a grande hossana
vida que h de nascer, porquanto cantaste
na infncia do poema (decerto com a dissonncia
que no ignora o lastro da dvida e a dvida
acumulados), as aflies substantivas (TAVARES, 2014, p. 25).
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E, da comunho e da ruptura discursiva, entre a prosa e a poesia, Corao de lava vai convidando o leitor a ingressar, imperceptivelmente, num mundo
de iluso que hoje certamente memria, patrimnio e identidade. Por isso, ele
escreve:
No sei se dormes de noite na selva
das palavras que te nomeiam, mais concreto
que o poema por escrever, aguardando apenas
o fermento conveniente, isto , os resduos
do mundo nas travessas da alma,
mas sob umas quantas estrelas
e seu brilho vivaz h a memria imperiosa
desse rosto navegando no mar da noite,
povoado de incndios e sensuais devaneios
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Pela experincia individual, a construo da identidade do sujeito processa-se na sua percepo do mundo e das coisas que o compem. O indivduo,
enquanto ator social, estabelece interaes com os outros e com uma memria
coletiva, num processo em que a manuteno destas identidades to ou mais
consistente quanto mais ricas forem as interaes por elas mantidas no processo
de compreenso de si prprias e de suas intervenes na realidade (HALBWACHS, 2009).
Assim, ficamos entre a escrita peregrina que se pensa e dialoga consigo,
que nos conta histrias, as mesmas com que se partilha algo de muito ajustado
ao dia de hoje, e a imagem lida; e parece que algum fala por Deus, quem fala no
texto um poeta que nos confessa os efeitos da poesia nas suas fraquezas ntimas
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Em 1994, tendo ingressado na primeira turma de Doutorado da Universidade Federal Fluminense o anteprojeto de pesquisa apresentado naquela
Instituio examinava as relaes entre as poesias brasileira (da fase modernista
em diante) e cabo-verdiana. Pretendia eu estabelecer dilogo com as ento ainda chamadas de emergentes Literaturas Africanas de Lngua (Expresso) Portuguesa com a pesquisa sobre Modernismo Brasileiro, Gnero e Etnia que vinha
desenvolvendo, desde a Iniciao Cientfica e tambm no Mestrado, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na ocasio, a Professora Doutora Simone Caputo Gomes, ento docente
da UFF, acolheu a pesquisa, que foi defendida em 29/02/2000. Quase vinte anos
aps tenho a oportunidade, a convite da mesma Professora Simone, j agora
na USP, de voltar ao tema, no apenas para relembr-lo, mas para realizar um
balano, ainda que sucinto, sobre o desenvolvimento destes dilogos (dos poetas da Revista Claridade (1936-1962) com os modernistas brasileiros e com as
geraes sucessoras do chamado grupo claridoso), no exame das propostas da
Revista em seu esforo de construir uma identidade crioula, questionadora do
panorama colonialista e ditatorial, daquela poca, em Cabo Verde.
O eixo central dos estudos compreendidos entre 1994-2000 pretendeu
examinar o processo intertextual entre as Literaturas de Brasil-Cabo Verde, privilegiando o dilogo potico. Naquele percurso, procuramos evidenciar o salto
qualitativo, em termos de produo escrita, que deixava para trs uma outra
de feio mais colonial , que o aparecimento de Claridade operou na Literatura do Arquiplago e as sementes que lanou ao longo da trajetria das geraes
posteriores, no contexto de um projeto mais amplo, o de construo identitria.
Ressaltamos ainda que o Brasil, mais especificamente o sentimento de brasilidade e a construo de uma literatura nacional, funcionaram como uma das foras
catalisadoras daquele salto.
A articulao entre contexto e textos produzidos, mesmo nas geraes
posteriores (reverberaes) foi outro aspecto considerado, haja vista que a Revista, publicada em 1936, foi o mais importante acontecimento literrio coletivo
do Arquiplago ocorrido no sculo XX, pois ao poeta Jorge Barbosa devem-se
os crditos de ter sido o primeiro autor individual a afirmar-se como produtor
de uma nova potica, fundando assim a esttica da modernidade literria caboverdiana, com a publicao do [livro] Arquiplago (SANTOS, 1989, p. 15).
Obviamente que examinar os elementos que antecederam e possibilitaram o surgimento desta Revista, implica tambm verificar o legado que a suce124
feio de cultura hbrida, no sentido dos comunitarismos atentos, evidentemente, s armadilhas da globalizao neoliberal, que vinculam poder de Estado aos
das corporaes supranacionais.
Em termos culturais, diramos, como Glissant, que o mundo se
criouliza. Isto , torna-se cada vez mais mestio, mesclado, abrindose cada vez mais sem preconceito para a mistura, para a consolidao
das formulaes hbridas (Ibidem, p. 18).
Neste ponto, vale a pena retomarmos o papel que a antropofagia do brasileiro Oswald de Andrade representou, at mesmo para absolver de certas crticas o procedimento do grupo claridoso, que no se alinhou com a luta poltica
que faz da produo literria um instrumento de guerra, at porque um partido
poltico em Cabo Verde (o PAIGC) s se fundaria em 1956. A sua batalha foi
mais cultural do que poltica, centrando-se na luta pela legtima expresso ca126
interessante notar que o ltimo verso da citao, retirado de Pronominais, no corresponde ao original Me d um cigarro!, ou seja, o eu-lrico
transformou o pronome oblquo original me em mi, deglutindo-o e transformando-o em algo novo no discurso cabo-verdiano.
Desde a dcada de 1990, tericos, como Boaventura de Sousa Santos (1992) tm chamado a ateno para o fato de as identidades culturais no
poderem ser caracterizadas como rgidas ou imutveis, sendo resultados, transitrios e fugazes, de processos de identificao, pois mesmo aqueles aparentemente mais slidos como a de homem, mulher, pas africano, pas latino-americano ou pas europeu, escondem negociaes de sentido, jogos de polissemia,
choques de temporalidades em constante processo de transformao, responsveis em ltima instncia pela sucesso de configuraes hermenuticas que de
poca para poca do corpo e vida a tais identidades que se caracterizam, pois,
como identificaes em curso.
Bebendo de uma matriz semiperifrica, Cabo Verde se voltou, em um
primeiro momento para o Brasil, perifrico como ele, e, posteriormente, para si
mesmo, problematizando a sua questo identitria j por ocasio da poca de
Claridade, debate o qual a publicao nunca abandonou, como nos mostrou o
nmero especial da Revista Pr-Textos (1994) dedicado ao I Encontro de escritores cabo-verdianos, que na voz dos mais prestigiados representantes da literatura
do arquiplago, forneceu-nos importantes subsdios para discusso do que ser
cabo-verdiano face ao tringulo africano, portugus, mestio, isto , frica, Portugal, Brasil.
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A violncia proposta por Oswald estabeleceu uma nova leitura do gnero nacional, deslocando para ns um centro que nunca fomos, ao mesmo tempo que nos confere a conscincia de margem. A cultura brasileira ocuparia um
entrelugar, no meio da barbrie nativa e da civilizao europeia. A construo
do mito do matriarcado de Pindorama garante este deslocamento consciente
que trai o nacionalismo ufanista dos primeiros anos da Repblica e as propostas
cientificistas da Antropologia positivista.
Retomando as ideias de Boaventura de Sousa Santos, vejamos como ele
formulou uma reflexo, a partir do pensamento de Oswald, para as culturas de
lngua portuguesa: Santos indicou que a reflexo de Oswald a nica capaz de
explicar as especificidades dessas culturas, na medida em que, por um lado, reconhece a posio nuclear da metrpole lusitana entre as suas colnias e por um
outro, sua posio perifrica em relao as potncias europeias. Centro para as
suas periferias (as colnias), periferia para o centro poltico econmico- internacional. Assim, Portugal desempenharia esse duplo papel que viria a descaracterizar a originalidade de sua cultura: para Boaventura, no existe uma cultura
portuguesa, mas uma forma cultural portuguesa, o estar na fronteira; ao mesmo
tempo que absorve os traos da cultura europeia e os transmite s suas colnias,
nelas se amalgama e passa a receber o rtulo de cultura extica para as potncias
centrais. O homem portugus o civilizado diante do seu colonizado, ao mesmo
tempo que o brbaro para o civilizado europeu:
Andrade prope-nos um comeo que, em vez de excluir, devora canibalisticamente o tempo que o precede, seja ele o tempo falsamente
primordial do nativismo, seja ele o tempo falsamente universal do
eurocentrismo. Esta voracidade inicial e inicitica funda um novo e
mais amplo horizonte de reflexividade, de diversidade e de dilogo
donde possvel ver a diferena abissal entre a macumba para turistas e a tolerncia racial. Acima de tudo, Oswald de Andrade sabe que
a nica verdadeira descoberta a autodescoberta e que esta implica
presentificar o outro e conhecer a posio de poder a partir do qual
possvel a apropriao selectiva e transformadora dele (SANTOS, 1992,
p. 120).
Contemporaneamente, alguns autores se recusam a estratificar a Literatura Cabo-verdiana nos perodos pr-claridoso e ps, como Filinto Elsio, que a
situa como no claridosa, chamando a ateno para que os pesquisadores tambm considerem os autores novos ou pouco estudados (tanto pela Academia,
como pela Fortuna Crtica), mudando assim
um certo olhar que insiste no exotismo e no folclorismos para com
a escritas dos nossos homens grandes, como [...] Pedro Cardoso,
Baltasar Lopes, Jorge Barbosa [...] E ser com esta nova gente que
nos alinhamos na nova frica, na renascena de uma Africanidade diferente, outra e emancipada, que no tem pejos, nem esteios
de colonizados, nem complexos encravados de identidade; ser com
esta gente de liberto pensamento e de discurso livre, enquanto frica mltipla e plural, ao tempo que assume suas especificidades, que
nos assumimos, transculturais e mestios, prontos para a intermediao do dilogo entre todos os mundos, inclusive com aquele que
tambm nos de pertena, que o da Cultura de matriz Ocidental,
pela sua vertente tambm da lusofonia, ptria maior de Fernando
Pessoa e de todos ns poetas que inquilinos tambm desta lngua
que transcende. Espero ter entrado na essncia da questo, com a antropofagia que me move, enquanto ser cultural dos mundos, ou bem
no diapaso do poeta Manoel de Barros, um dos expoentes que me
ilumina, em como Para entrar em estado de rvore preciso partir
de um torpor animal de lagarto (ELSIO, 2011).
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es morais e fsicas de todas as espcies. Vontade transitria, episdica, no tem dvida, mas importante, porque esse no-me-amolismo meio gozado deu alguns momentos significativos da poesia ou
da evoluo espiritual de certos poetas brasileiros. Em ltima anlise, o tema do Vou-me embora pra Pasrgada o mesmo que est
cantado nas Danas, de Mrio de Andrade [...] Se percebe o eco
dele em alguns poemas de [...] Carlos Drummond de Andrade, pra
enfim se transformar de estado de esprito em constncia psicolgica
[...] em toda obra de Murilo Mendes. Fiz esta digresso para mostrar
quanto Manuel Bandeira perdeu de si mesmo para dar a um tema
useiro dos nossos poetas de agora a sua cristalizao mais perfeita
(ANDRADE, 1974. p. 196-197).
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135
136
Diante da produo ficcional da escritora cabo-verdiana Ftima Bettencourt impossvel ficar indiferente ao conto As mulheres que meu pai amou, que,
inserido no livro Semear em p (1994)1, destaca-se por apresentar o nico narrador com voz masculina no universo da coletnea. O modo fabular encetado por
Ftima Bettencourt lhe confere grande capacidade de convencimento e revela a
viso crtica da autora.
Essa voz masculina afigura-se dotada de autoridade, pois, apartada da
escritora, opera to convincentemente que parece ter vida prpria, assim torna
crvel a gesta (absurda) de seu pai-Don Juan em suas aventuras poligmicas. A
naturalizao do comportamento masculino justifica-se pela presena de um suposto amor desmedido que destoa das consequncias devastadoras para as mulheres. Esse descompasso introduz a viso irnica a respeito de um dos grandes
problemas sociais de Cabo Verde.
O conto opera como constructo2, neste caso elaborado com base na psicologia reversa:
Reverse psychology: a persuasion technique involving the false advocacy of a belief or behavior contrary to the belief or behavior which is
actually being advocated. This technique relies on the psychological
phenomenon of reactance, in which a person has a negative emotional response in reaction to being persuaded, and thus chooses the
option which is being advocated against3 (http://pt.urbandictionary.
com).
137
Chencha, Ins e Nita, inclusive a prpria me do narrador, todas tm passagens brevssimas na trama) e de todos os filhos, cujas existncias so brevemente
mencionadas.
Esse narrador prope-se a contar a prpria estria atravs da estria do
pai , mas no um narrador fivel. Segundo a postulao de Massaud Moiss
(2004, p. 366), quando no compreende claramente o que presencia, chama-se
narrador ingnuo ou inocente ou suspeito. A suspeio deve-se seguinte declarao:
4
Nessa linha de leitura, o pai retratado no conto, contaminado do comportamento do puer aeternus, no consegue exercer uma paternidade responsvel, ou seja, integrar o princpio do pai. O pai - D. Juan exemplifica a incapacidade de desenvolvimento da conscincia do que ser pai; assim, encontra
4 Histria essa em sentido diametralmente oposta sua prpria saga pessoal, que refora a assuno do
desejo ancestral de penetrao no universo ideal da dominao masculina, difundida pelo viriarcado.
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139
Segundo Dias, atravs de focos narrativos, a hermenutica do cotidiano procura historicizar aspectos concretos da vida de todos os dias dos seres humanos homens e mulheres em sociedade (1994, p. 347), apesar do discurso arrevesado, psicologicamente reverso, o conto acaba denunciando as tiranias do pai, evidenciando as
resistncias e os modos de sobrevivncia das vivas.
A realidade das mulheres cabo-verdianas, no arquiplago ou na dispora, tambm aparece em outras narrativas de Ftima Bettencourt, mas o tom trgico de outrora,
como o apresentado nas obras de Orlanda Amarlis7 (1974, 1983 e 1989) ameniza-se
gradativamente, seja pela apreenso memorialista que, de alguma maneira, relativiza
certas tragdias do contexto social, transfigurados pela fico, seja pela predominncia
da pobreza honrada e enobrecida que perpassa os outros contos da coletnea.
A proliferao das personagens femininas, annimas ou oriundas das camadas mais pobres da sociedade cabo-verdiana, ratifica um fio neorrealista que liga essas
representaes de mulheres pela tragicidade de seus destinos ficcionais finais sem
chances de autorrealizao , trao destacado por Ferreira Pinto (1990, p. 16) para o
Bildungsroman feminino. Como dados fundamentais da diegese, os registros da cultura
das classes populares e dos cotidianos annimos de mulheres compem parte central dessa mundividncia, levando-nos a considerar a assero de Bourdieu sobre a
dominao simblica masculina:
A diviso entre os sexos parece estar na ordem das coisas. Como
se diz por vezes para falar do que normal, natural, a ponto de ser
inevitvel: ela est presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado
nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes so todas sexuadas),
em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos
habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de
percepo, de pensamento e de ao (2012, p. 17).
8 Que parece constituir a ordem natural das coisas, mas retrata uma excluso social.
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de personagens masculinas caminha para uma representao equnime dos gneros sociais, apontando para uma trajetria de emancipao feminina, j com
certo avano atingido na dcada de 1990. Essa interpretao, no obstante, em
nenhuma instncia, significar a perda de espaos de representao.
A dominao viril sofre crticas veladas ou explcitas em Semear em p,
como nos casos das vivas apresentadas timidamente, embora os contos da autora focalizem mais personagens femininas que lutam pela sobrevivncia cotidiana, apesar do patriarcado nas famlias ficcionais. Presenciamos, neste conto,
o fidjo-matcho como (des)continuador da linhagem do pai pela psicologia reversa em que se erige o discurso.
No geral, a fico de Ftima Bettencourt introduz vrios tipos caractersticos da mundividncia cabo-verdiana como o velho arteso Nh Silvestre e
o contador de estrias Primo Bit. Tambm muitas personagens femininas se
projetam, seja como mulheres chefes de famlias estendidas (como nos contos
As mantas de mam e Secreto Compasso), ou por seu temperamento forte e
pobreza honrada (Prima Antnia, o complemento feminino de Nh Silvestre);
por outro lado, muitas personagens masculinas se apresentam ao desamparo
(Mucula, Nh Gregrio e Vav).
Em sntese, a dominao simblica masculina (BOURDIEU, 2012), o
viriarcado, a viso falo-narcsica, o primado do espao pblico, a libido dominandi, os princpios antagnicos das identidades masculina e feminina, a reduo da voz feminina discrio e ao silncio e dos comportamentos resignao, honra e castidade, assim como a violncia (fsica ou simblica) contra
as mulheres constituem um quadro9 que ser implodido, pouco a pouco, pela
apresentao d As mulheres que meu pai amou, com base nas estratgias de
construo das personagens; o protagonismo e a tomada de conscincia que levam a um gradativo empoderamento das personagens femininas, superao
de interditos patriarcais e de princpios de inferiorizao e excluso, enfim, o
caminho para a equidade de gnero (malgrado os inmeros entraves a essa realizao) so possibilidades propostas, num tipo de escritura que busca romper
com a cumplicidade entre o objeto da dominao e o sujeito dominante.
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145
Embora a evidenciao do aspecto relacional do gnero tenha relativizado os atributos da masculinidade, os estudos que se seguiram concentraramse nas mulheres e apenas na dcada de 1980 se voltaram com mais regularidade
e sistematizao para os homens e atualmente ganham fora. O referido pesquisador afirma que para compreender as reaes masculinas ao novo questionamento dos privilgios concedidos aos homens, precisamos desconstruir o
masculino, revelando-o como gnero permeado tambm pelas relaes sociais
de sexo (WELZER-LANG, 2004, p. 117).
Segundo Elisabeth Badinter (1986, p. 167), a relao homem/mulher
inscreve-se num sistema geral de poder que comanda a relao dos homens entre si. Ou seja, a mesma hierarquizao que revela a dominncia do homem
sobre a mulher determina as relaes entre os homens na sociedade. Robert
Connel, nessa perspectiva, afirma que:
146
Em Outros sais na beira mar, figuram modos de organizao das masculinidades e formas de representao do poder que se articulam com o masculino, como podemos observar no excerto abaixo:
Ficou por contar a histria de Santa Isabel. Aquela que dava o nome
ao hospital, mais tarde Agostinho Neto. Faltou contar-vos da santa
que se desfazia em sangue, em noites de lua e de vento. Do olho gordo dos meninos que se masturbavam nas infindas tardes. O Rogrio,
hoje governante, era um mestre a masturbar-se. Comandava a tropa e invocava o esprito. E castigava os de tibieza e fraco jeito, bem
como gozava os de pila pequena. O Rogrio era um alazo, cavalo
de Espanha, monta de Afonso Henriques, o conquistador, logo na
primeira pgina do nosso livrinho de Histria de Portugal (ELSIO,
2010, p. 172).
A reunio dos meninos remete para o momento de iniciao scio-sexual cujas prticas sugerem, nas palavras de Robert Connel (1995, p. 189), uma
narrativa convencional sobre como as masculinidades so construdas.
Daniel Welzer-Lang denomina casa dos homens esses momentos de
homossociabilidade nos quais os meninos buscam o acesso virilidade. De
acordo com o autor:
Em nossas sociedades [ocidentais de base judaico-crist], quando as
crianas do sexo masculino deixam, de certo modo, o mundo das
mulheres, quando comeam a se reagrupar com outros meninos
de sua idade, elas atravessam uma fase de homossociabilidade [...].
Competies de pintos, maratonas de punhetas (masturbao), brincar de quem mija (urina) o mais longe, excitaes sexuais coletivas a
partir de pornografia olhada em grupo, [...] Escondidos do olhar das
mulheres e dos homens de outras geraes, os pequenos homens se
iniciam mutuamente nos jogos do erotismo, eles utilizam para isso
estratgias e perguntas (o tamanho do pnis, as capacidades sexuais)
legadas pelas geraes precedentes. Eles aprendem e reproduzem os
mesmos modelos sexuais, tanto pela forma de aproximao quando
pela forma de expresso do desejo (WELZER-LANG, 2001, p. 462).
No excerto citado do romance, percebemos o carter coletivo e competitivo da iniciao sexual masculina (a que se refere Welzer-Lang) e o processo
de hierarquizao da masculinidade (mencionado por Connel), j que o mestre
147
Nha Gina, como j nos adiantara o narrador foi [...] a empregada que
me [o narrador] ajudou a criar, [e que] dizia bem l no fundo do quintal: cada
qual conte o seu conto (ELSIO, 2010, p. 19-20). A presena dela atua na constituio do sujeito que narra. Nesse sentido, ajudar a criar refere-se tanto aos
cuidados maternais, como prpria criao literria (cada um conte seu conto), ou seja, expresso simblica de certos valores.
1 No original: [...] interacta con la raza y la classe. Podemos agregar que constantemente interacta
con la nacionalidad o en el orden mundial.
148
Assim, a apreenso do mundo e de suas categorias de gnero passa tambm pelo aprendizado cultural, transmitido pelas j referidas narrativas convencionais (CONNEL, 1997), reproduzidas pelas prprias mulheres. O vaticnio de
Nha Gina reproduz a ideia de que o sexo feminino perigoso por excelncia
(BADINTER, 1986, p. 151), traduzida na imagem da sereia encantada, smbolo
dos perigos sedutores e funestos e de um saber sobrenatural [...] que perturba
os sentidos (LEXICON, 1995, p. 180).
Tal representao remete aos traos do esteretipo feminino definidos
por Elisabeth Badinter, referentes aos mecanismos de controle: tagarela, incoerente, afetado, secreto, esquecido, astucioso (BADINTER, 1986, p. 139, grifos
nossos). Segundo a autora, a imagem das mulheres como encarnao da alteridade e do desconhecido povoa o imaginrio masculino, transfigurada em feiticeira que encarna a desordem, a contracultura, o diabo... (Ibidem, p. 148).
A advertncia de Nha Gina aventa tambm certo medo do Outro, de
origem psicolgica nos homens que, para Elisabeth Badinter, quase universal,
ligado ao medo do sangue: Primeiro, o sangue menstrual, assustador e doentio,
mas tambm sangue da deflorao, que acredita-se trazer azar (idem, p. 149).
Nesse sentido, o sonho recorrente do narrador, sugere a latncia de um dualismo conflitante. No romance:
E a ela foi longe. Levou-me para as coisas de Lgia, essas manias de
variar pensamentos tntricos. Fez-me pensar no Buda de Porcelana,
que guardava minha cabeceira como um talism. Fez-me recuar
num tempo outro, de uma menina que se tornava mulher, esvada
em sangue, como aquele sonho da Santa Isabel, sodomizando a nossa adolescncia distante (ELISIO, 2010, p. 46).
Em verdade, desde ontem, que estava para acontecer algo. Logo cedo,
morreu meu amigo John, de um AVC fulminante. noite, ao abrir
uma lata de sopa, fiz um horrvel corte na mo e vazou muito sangue, o que me obrigou a ir urgncia do Hospital. Agora logo cedo,
depois de tentar desesperadamente falar contigo, recebo o teu email.
Ser que um homem pode com tudo isto? Diva, no duvido que tenhas uma percepo errada de tudo o que (no) aconteceu. Sobre
a Denise h aqui um enorme equvoco e no confundas percepo
com fonte limpa. Se nossa relao conheceu algum baixo, o que se
deve relativizar se calhar por razes de distncia e outras, podes estar
certa que no foi pela Denise (ELSIO, 2010, p. 96).
150
No contexto do romance, que procura evidenciar a marcante desigualdade social, a figura do justiceiro, paradoxalmente, pode sugerir desigualdade
de gnero que est na base da organizao social. A violncia que o caracteriza o aproxima do conceito do homem duro, proposto por Elisabeth Badinter
(1993): aquele que jamais se reconciliou com os valores maternos. [...] solitrio
porque no precisa de ningum, impassvel, viril a toda prova, [...], incapaz de
experimentar sentimentos (p. 131-134):
Uma efabulao insana. Agora estava ntido no binculo. Um grupo
de adolescentes, igualmente insano e claro pressgio de alastro, desce o morro e invade o bairro. Eis o antema da violncia. O annimo justiceiro, escondido na moita, aguarda os ditosos com chumbo
grosso. Que ningum fique vivo para contar o feito. Se tempo hou3 Segundo Robert Connel (1997, p. 8), a masculinidade liga-se a vrios fatores que determinam e diferenciam relaes de uma estrutura complexa, um modelo de estrutura de gnero que pressupe pelo menos trs
dimenses que diferenciam as relaes: de poder, produo e catexia.
4 No original: Una economa capitalista que trabalha mediante una divison por gnero del trabajo, es necesariamente, un proceso de acumulacin de gnero. De esta forma, no es um accidente estadstico, sino parte
de la construccin social de la masculinidade, que sean hombres y non mujeres quienes controlan las principales corporaciones y las grandes fortunas privadas (CONNEL, 1997, p. 9).
151
A personagem John, por sua vez, parece ligar-se a esse ideal de masculinidade e o persegue na militncia e na guerra:
John chegara a Conacri quase menino. Imberbe ainda. Tinha apenas
17 anos. Os pais fizeram-no saltar por Espanha e por Frana, evitando a tropa colonial. [...] Mas no foi fcil partir. Nunca fcil partir
de uma ilha. J tentaram partir de uma ilha? Uma ilha prende-nos
com peias invisveis. Os seus mltiplos braos prendem-nos o corpo.
[...] Fora recrutado em Frana por um emissrio de Amlcar Cabral.
Na altura, lera os textos do psiquiatra de Martinica, Frantz Fanon,
ele tambm de origem mestia, e comeou a reconstruir a sua identidade confusa. [...] Por tudo isso, no fora difcil para o emissrio
de Cabral convencer John, quase menino na altura, que seu destino
estava traado. Deixando o rio Sena a correr o seu destino ancestral,
John nem teve tempo para amar Paris. No pde, como planeara,
passear as pontes impregnadas de Libert, Egalit, Fraternit. (ELSIO, 2010, p. 29-30).
A anlise feita pelo terico indica que, as masculinidades, representadas, no contexto do romance, pelas personagens justiceiro e John, originamse do mesmo processo histrico marcado pela violncia, com qual o justiceiro
annimo se identifica e que, para John, consiste em fator de desajuste: John
ficara maravilhado com as ideias de Cabral, embora cedo, muito cedo, desajustara-se com alguns camaradas. Estes eram uns facnoras e sanguinrios como os
152
A desordem interna de John se traduz no pesadelo recorrente e sua tentativa de reestruturar-se aparece na definio dada pela personagem Luana, a
esposa:
Gosto da tua inteligncia. uma das qualidades que sempre me
atraram nos homens. Foi uma das armas fatais do John. Achava-o
153
Contudo, podemos perceber na composio da voz narrativa uma espcie de transposio ficcional da conciliao a que se refere Badinter que no
uma mera sntese dos dois machos mutilados precedentes. [Expressa a] dualidade dos elementos que tiveram que se separar, e at que se opor, antes de se
reencontrar (1993, p. 165).
Assim, so narrados os episdios j analisados da construo e da hierarquizao das masculinidades e a desestabilizao do lugar do masculino hegemnico pela presena da personagem Denise, no a mais bela, nem a mais
154
Como j mencionamos, a crise de identidade dos homens desencadeouse, sobretudo, com contestao da sociedade patriarcal pelas investidas feministas em diferentes momentos histricos. Nesse sentido, no romance, a referida
crise de identidade e os questionamentos relativos personagem feminina so
significativos.
A identificao entre o narrador e a Denise parece simbolizar o reencontro entre o masculino e o feminino. Declarar uma mulher como seu alterego,
permite ao narrador dar espao s manifestaes femininas e expor a fragilidade
da sociedade de base masculina hegemnica, pois os textos de autoria de Denise
(Dirio de Denise) e os de Luana (Correspondncia de Luana) instauram
uma perspectiva feminina ao questionar os valores do patriarcado, dos quais o
narrador ainda no se encontra totalmente desligado:
Tenho lido os teus textos e no sei porqu, mas acho que escreves no
feminino. Uma questo de sensibilidade sei l. As mulheres escrevem com o cltoris [sic], que um boto de sensibilidade que Deus
nos deu. E tu, meu amigo, tens um texto clitrico, com ganas pressentidas e mltiplos orgasmos. [...] E isso incomoda. Desestrutura
o arqutipo machista desta sociedade. Esta falocracia disfarada de
morabeza, mas que no passa de ditadura igual s outras (ELSIO,
2010, p. 142).
As observaes crticas de Denise permitem a irreverncia do narrador que vai da poltica foda ao explicitar as razes de o poeta escrever um
155
romance (ELSIO, 2010, p. 37), e sugere a ligao pouco pacfica entre o poder
e as relaes sociais de gnero, bem como atribui sexualidade um carter subversivo.
Os traos de poder associados masculinidade, no romance assim
como na sociedade, no se apresentam de maneira absoluta e essencialista, mas
apontam, como j afirmamos, um processo relacional, no qual os lugares dos
homens e das mulheres, antes predeterminados e bem definidos, so constantemente questionados e desestabilizados.
Dessa forma, a voz do narrador se apresenta como a escrita de um sujeito masculino em construo, revelada nas inmeras referncias metalingusticas. As reflexes, ancoradas na histria e na sociedade de Cabo Verde, indicam
a percepo de que tal construo um processo histrico e, portanto, pressupe revises e transformaes. Logo, a instabilidade atinge o sujeito e insinua
a possiblidade de mudanas no apenas individuais, mas tambm coletivas em
direo a uma sociedade mais igualitria.
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156
Em consonncia com a jornalista e escritora Margarida Fontes, no prefcio de Prato do dia (ELSIO, 2001), prope-se, neste estudo, discorrer acerca
da vasta, ainda que recente obra do cabo-verdiano Filinto Elsio. Poeta por excelncia, de gosto e apuro estilstico, Filinto tambm se aventura em outras paragens, quais sejam: crnica (Prato do dia, 2001), antologia (Cabo Verde: 30 anos
de cultura, 2005), romance (Outros sais na beira mar, 2010) e uma variedade de
incurses que faculta generosamente em seus blogs e pginas de redes sociais.
No entanto, aqui abordar-se-, especificamente, sua produo potica
que conta com seis ttulos publicados: Do lado de c da rosa (1995), O inferno
do riso (2001), Das Hesprides (2005), Das frutas serenadas (2007), Li cores & Ad
vinhos (2009) e Me_xendo no ba, vasculhando o U (2011).
Filinto Elsio inicia seu percurso potico com Do lado de c da rosa,
livro composto de textos lricos de cunho filosfico e mtico em meio s reminiscncias de imagens da sua terra natal. Obra constituda por um grupo de poemas
iniciais, que propem cantar a mais pura beleza (1995, p. 7) de quase premissa
desta rosa (Ibidem, p. 9).
Em seguida, o livro se despedaa em pequenas pores, a comear por
SAL, constitudo por poemas dedicados ao poeta Jorge Barbosa, quando questiona O que ser das sereias encantadas de Ulisses (Ibidem, p. 39). Depois,
ESTE FOGO DE ABRAAR A NUDEZ tece num explcito dilogo com Cames em quando que se apaga este fogo (Ibidem, p. 43). Em AO DENZEL encontra-se um sujeito potico a cantar lusofricas bero tero/o terceto da nova
poesia (Ibidem, p. 51), alm de outras unidades de singular temtica do fazer
potico, como DO PEDREGAL DA GRANDE RUNA, ESTRIAS E VIGLIAS
& MEPHISTOS PELO MEIO, BALADAS DA DVIDA E DA AFIRMAO,
PERFUMES NTIMOS, MINIMAIS & ETC, JUDY REVISITED, que metaforizam o lado de c como ofcio do poeta.
Fechando o ciclo de Do lado de c da rosa, tem-se SETE POEMAS DE
157
AMOR, com epgrafe do poeta Armnio Vieira, seguidos de MAIS SETE POEMAS DA SAUDADE, com epgrafe do escritor Eugnio de Andrade e, encerrando a obra, VOZ INTERIOR, que evidencia um sujeito potico comprometido
com questes tanto nativistas quanto estticas.
antes do Verbo
as ilhas tinham j
a voz imaterial da Poesis
incandescia o fogo
ao vulco das palavras
e no cataclismo
nasceu o arquiplago
antes da paranoia
do Verbo... naturalmente! (Ibidem, p. 142).
Filinto Elsio publica seu segundo livro de poemas O inferno do riso, explicitando um jogo intertextual com a Divina Comdia de Dante. A obra remete
epopeia desde a sua estrutura, j que constituda por seis cantos formados
por dez poemas cada, e tambm alude temtica dantesca desde o primeiro
canto, que justifica o ttulo da obra O inferno do riso (2001):
Um dia hs-de verserjar as esquinas
o lacre apodrecido das cartas por abrir
A palma das mos de si cartografia
e os teus dedos so pura mmica do inferno!
Sim tudo a rir e aos gritos
O carmim das bocas por beijar
Os seios prematuros os receios
O cio perverso das metforas... (2001, p. 22).
sul sotavento, onde se solta o vento (Brava, Fogo, Santiago e Maio), evidenciando a importncia deste elemento no universo cabo-verdiano:
Tntricas melodias a barlavento
Redemoinho e ces a ladrarem
Ventos do sul sopram saudade
[...]
Sotavento tens o mapa desenhado
Solstcios conheo-os de dizer
Outras soleiras ardilosas prosas (2001, p. 26-28).
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Dos ares fecha o ciclo dos elementos, e o sujeito potico suscita a mesma temtica do canto Dos ventos, encerrando a obra com apelo nostlgico, que
ecoa ao som da msica: Lembrana e nostalgia caem na solido do poente/ Essa
msica qualquer que me leva aos ares (2001, p. 67).
Dando continuidade ao seu navegar potico, Filinto publica Das Hesprides, obra mltipla, composta de poemas, prosa e fotografias. Aborda o mito
hesperitano, uma das origens atribudas ao arquiplago de Cabo Verde. Portanto, no prtico do livro, l-se: Este mito est presente no vate potico caboverdiano e vale a pena sentir (e pressentir) Cabo Verde, a partir da perspectiva
quase mitolgica. Importa deambular, como diria Jos Lopes, pelo nosso Jardim
das Hesprides ... (2005, p. 1).
Organizada em captulos, Das Hesprides faz um sobrevoo pelo arquiplago, iniciando sua rota por Cabo Verde, uma Breve histria das ilhas, dando
seguimento pelas ilhas de S. Vicente, Santa Luzia, Ilhu Branco, Ilhu Raso,
S. Nicolau, Sal, Santo Anto, Maio, Fogo, Brava, Boa Vista, Santiago
e finaliza com Cidade Velha.
No entanto, antes de todo esse trajeto, apresenta-se o texto Histrias do
Mar, no qual questionada a relao entre este e o arquiplago, a partir da pergunta: O que Cabo Verde sem as histrias do mar?. E ao longo do texto no se
percebe a preocupao em dar uma resposta precisa, mas sim um compromisso
de levar o leitor a sentir o que essa nao: Cabo Verde um mar de histrias!.
E estas palavras so seguidas por flashes fotogrficos dispostos a construir uma imagem do mar, acompanhados dos versos: Ondas que saltam/ventos
que silvam/a aventura crioula... (2005, p. 7). Nas pginas seguintes, novamente
surge uma sequncia de fotos que mostram o movimento de uma ave: Mas a
vida para o ballet das aves-marinhas.../elegantes no tapete das guas (2005, p.
8). Fechando a sequncia de fotos e poemas, tem-se uma sucesso de imagens de
pssaros encimadas pelos versos: Voo magnfico./Aberto para o vcuo./Apetece
gritar... de alegria. E abaixo das imagens, a sntese: Cabo Verde tambm um
pssaro turbulento/qualquer coisa assim.../sideralmente livre!.
Essa organizao constri toda a estrutura do livro, sempre a mesclar
texto narrativo com fotografias iluminadas pelos poemas. Assim, fechando a
obra, tem-se um pequeno texto conclusivo desse passeio ldico por Cabo Verde.
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Apesar de pequeno, Cabo Verde encanta pela sua diversidade e plasticidade. Cada ilha diz dos seus encantos, cores, praias
de sonho e gua cristalinas a desafiar o arco-ris. [...]
Pas rico, riqussimo na alma. Muita paz. Para o amor acontecer.
E vontade de cantar, maneira de Cesria vora
(2005, p. 156).
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Portanto, os aspectos materiais que compem seu fazer potico permitem uma incurso nos elementos textuais, originando e explicando o nascimento do poeta, em meio fluidez da gua que percorre toda a obra, atravs das
grutas, gretas e grotas, sugerindo diversificadas leituras luz da simbologia e do
espao do imaginrio que a permeia, revelando, assim, uma forte ressonncia
no somente dos recursos contemporneos que a estruturam, mas tambm do
dilogo que mantm com correntes estticas que a caracterizam.
Porm, a sua mais recente obra Me_xendo no ba, vasculhandoo U talvez a mais ousada de todas, recupera a escrita fragmentria da insular literatura
cabo-verdiana mais recente, aliando-a tambm a uma pluralidade de signos e
cdigos que reinventam o prprio fazer literrio, que culmina na exploso de
sons, cores e formas.
Em se tratando do universo potico, esta obra constituda de uma
plasticidade superior s demais, na medida em que contm pinturas do artista
portugus Lus Geraldes e as recitaes dos poemas por Nancy Vieira e Joo
Branco (compactadas em um CD que acompanha o volume de textos).
Composto por trinta e cinco poemas, subdivididos em cinco cadernos,
o livro Me_xendo no Ba. Vasculhando o U, no prprio ttulo, j ressalta traos se
no desconcertantes, ao menos estranhos escrita convencional. E esse detalhe
permanece no corpo da obra, pois os ttulos dos cadernos tambm apresentam
uma escrita diferenciada, inusitada que rapidamente captada quando se recorre ao som das palavras. Isso fica evidente no fragmento do poema t_oada
a seguir:
t_arde que finda
ou to simplesmente noite
(ainda) indecisa;
S grafema impreciso
VC de vossemec
(seno s d voc)
que ao tempo dos bichos
o poema tem mais riso
que almejado siso;
amide sem vogais
de atade consoantes:
amar-te em MR-T
FDR-T gemendo assaz letras
CMR-T engolindo-as todas
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na tua fonte
de todas as divas (2011, p. 44).
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Superando a oposio homem/mulher, masculino/feminino, as escritoras buscam dar visibilidade aos cotidianos femininos socialmente situados,
aprofundando detalhes, descortinando percepes e sentimentos que venham a
legitimar historicamente aqueles cotidianos. Numa sociedade falogocntrica, a
escrita feminina sempre negocia no estreito espao entre o apagamento e a possibilidade de representao, buscando espao naquele que parecia intransponvel
mundo masculino: a representao literria trata de questes relativas explorao feminina, desigualdade entre os gneros, discriminao e violncia a
que so expostas mulheres, objetivando representar as vozes daquelas enclausuradas em silncios e silenciamentos.
Virglio Pires, em seus dois pequenos contos Lulucha e Titina, dos quais
faremos um breve estudo, denuncia sutilmente e atravs das personagens as condies degradantes a que so submetidas muitas mulheres, que so representadas no anonimato para que possam melhor expressar, segundo a tica da criao
literria, a situao social de cabo-verdianas postas margem pela sociedade,
sem valorizao e historicizao de suas lutas dirias.
Antonio Candido afirma que atravs da ideia de sistema, procura-se
apontar o surgimento das obras no como fenmeno pontual, expresso individual, mas como um evento de natureza sociolgica, pois relacionado ao contexto social e ou ideolgico em que a obra foi formada (CANDIDO, 2001).
Virglio Avelino Pires, nesses contos, toma como protagonistas mulheres cabo-verdianas, seus sonhos e expectativas face a uma terra inspita, quase
improdutiva, denunciando inclusive a emigrao feminina mal sucedida que
pode desembocar na prostituio, temticas que foram e ainda so motivos de
pesquisas sob a tica sociocultural e econmica do gnero.
Para melhor compreender os textos e interpret-los, fundamental buscar apoio no contexto social e histrico em que se descortina o cenrio das lutas
travadas pela sobrevivncia dos ilhus e, especialmente, o cotidiano da mulher
crioula, sua situao socioeconmica e sua luta para superao das desigualdades de gnero.
A palavra de ordem, desde a dcada de 1960, foi a luta pela igualdade de
direitos e oportunidades entre os gneros, focada, no caso das mulheres, contra
a ideologia machista que lhes impunha a condio de objeto, e ainda na desmontagem de constructos alicerados na inferiorizao das mulheres pelos homens.
Cabo Verde tornou-se parte, em 5 de dezembro de 1980, do Comit
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Os artigos 4 e 5 ressaltam a necessidade de que os Estados Partes tomem as medidas apropriadas para:
modificar o padro de comportamento social e cultural dos homens e
das mulheres, com vista a alcanar a eliminao dos preconceitos e das
prticas que se fundem na ideia de inferioridade de um dos sexos ou
de papis estereotipados dos homens e das mulheres (Ibidem, p. 24).
lidade e a sua transformao , escolhemos esta linha para abordagem do discurso literrio em Cabo Verde, nesta recortando o ncleo temtico da excluso
social e das formas de discriminao das mulheres.
Nos dois pequenos contos que sero analisados luz dos procedimentos
de excluso e de discriminao sofridos pelas personagens femininas, segundo a
ideologia da sociedade patriarcal em que esto inseridas, os perfis femininos sero cotejados com os perfis sociais de mulheres cabo-verdianas no contexto das
respectivas ilhas (espao) e no(s) tempo(s) em que se desenrolam as narrativas.
Virglio Pires, nos contos selecionados, demonstraumacrtica subjacente (sobretudo com a prostituio) ao destino determinista das jovens caboverdianas que se afastam do reduto do lar, da misso de maternidade e das regras morais da famlia; deixa entrever os preconceitos masculinos embutidos na
representao das mulheres prostitutas e na anlise das causas da prostituio,
sobretudo as que residem em falhas ou quedas morais femininas. Observa-se
a preocupao do escritor em resguardar, na fico, a dignidade e a honra feminina e, por conseguinte, a honra da famlia.
Pelo que pudemos constatar da pesquisa desenvolvida em nosso Mestrado na Universidade de So Paulo (Literatura e representao social das mulheres em Cabo Verde: vencendo barreiras, 2010), orientada por Simone Caputo
Gomes, a literatura de cunho social produzida por homens no oferece soluo
para o problema, apenas se limita a recomendar que as mulheres se conduzam
estritamente segundo os parmetros patriarcais impostos, visto que o sistema
colonial e seus modelos marcaram durante sculos os ditames comportamentais
dos pases de lngua portuguesa. Entende-se, pois, a submisso das mulheres perante seus opressores jurdicos, sociais e polticos, ao aceitar tais regras que lhes
negam direito liberdade, desvalorizando ou deixando invisveis os exerccios
de papis sociais produtivos em seu cotidiano.
Os escritores, comprometidos com o bem-estar social, apresentam ao
leitor reflexes que focam problemticas que incomodam e/ou no se coadunam
com os padres sociais hegemnicos. A anlise da prostituio em Cabo Verde
centra-se, sobretudo, na abordagem dos atalhos que levam jovens a trilhar este
caminho, levando-se em conta toda a gama de preconceitos sofridos por elas,
arraigados numa ptica machista. No plano da diegese, o leitor pode observar o
cotidiano das personagens, vtimas da pobreza e da falta de perspectivas sociais,
acabando por serem levadas prostituio como meio de sobrevivncia.
A princpio, o conto Lulucha apresenta-se com uma singela estrutura,
quase pueril, descrevendo, na perspectiva das crianas que a personagem cuidava, as caractersticas psicolgicas da jovem, seu aspecto fsico, sua ternura e, a
seguir, a migrao do campo (interior da ilha de Santiago) para a cidade (Praia)
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Um conto aparentemente infantil adverte para os problemas decorrentes de mudanas de espao social para as quais a personagem no estava cultural nem profissionalmente preparada, na disputa de um mercado de trabalho
escasso, principalmente aps o fechamento das atividades do Porto Grande do
1 Modalidade musical proveniente do interior da ilha de Santiago.
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Entre as vrias denncias expostas nesse conto, Pires relata as secas cabo-verdianas de 1940, constantes, histricas, em que o arquiplago, sem recursos financeiros vindos de Portugal ou de qualquer outra instncia estrangeira,
fica marcado pela fome e pela misria em virtude da quase ausncia de agricultura de subsistncia. Grandes foram os esforos e planos emergenciais colocados
em prtica, na nsia de amenizar as calamidades que assolavam o povo. Consta
que, em 1947-1948, o governo mobiliza-se na construo de Postos de Servios
de Assistncia para socorrer o povo faminto, por no haver de onde tirar o seu
sustento. Segundo o relato de Antnio Carreira (1984, p. 116):
Em resultado da concentrao de elevado nmero de famintos junto
ao paredo de resguardo, do lado que d para a Praia Negra, onde se
construra um alpendre provisrio para acolhimento dos indivduos
que iam receber a rao diria fornecida pelos Servios de Assistncia, o muro de suporte, talvez devido m construo, e pela aco
da forte lestada que se fizera sentir, desabou arrastando na queda
centenas de pessoas. Isso aconteceu a 20 de Fevereiro de 1949.
172
A personagem masculina, por sua vez, passa a viver num mundo onrico , tentando reconstruir as lembranas que lhe restam da vida que tivera ao
lado de Titina. Nas palavras de Gaston Bachelard (1990, p. 75):
2
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micas por que passa Cabo Verde no tempo da narrativa. O marceneiro, amante
enganado, termina seus dias na cadeia, bbado, como ladro de brincos, broches, trancelins (PIRES, 2001, p. 505) para Titina, que tudo queria, ao contrrio do nada que pudera lhe dar.
Esta continua, contudo, sua trajetria: na primeira visita ao companheiro na priso, riu-se, brincou com todos os presos, disse coisas disparatadas e
todos acharam graa. Como sempre, ela se dividia em vrios pedacinhos e em
cada olhar, em cada sorriso, ela se distribua, se oferecia [...] Conheceu outros
homens, muitos outros (Ibidem, p. 505-506).
Assim como esses textos que apresentamos, na maioria dos contos de
autoria masculina que examinamos em nossa dissertao no h redeno para
as personagens femininas, retratadas, com nfase nos seus dotes fsicos, como
atraentes objetos de desejo e como vtima dos perigos que um futuro fatal lhes
destinar. O determinismo, no raro, acompanha o histrico dessas personagens mulheres, de quem se espera um estatuto virginal ou um honroso casamento, sendo qualquer passo em falso nesse sentido equivalente a uma condenao.
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177
gum jamais suspeitara. Praticamente mergulhadas no limbo, pouqussimas referncias vislumbro de suas existncias e por isso sou
levada a supor que se alguma delas ultrapassou esse estado quase vegetal. Foi silenciada e escamoteada de imprensa escrita, que como
quem diz, da Histria destas ilhas, ilhas que, todavia, fervilhavam de
atividade jornalstica.
Note-se que estamos falando de um perodo de mais de cem anos,
j que estou longe de vasculhar o livro todo, homrica tarefa (BETTENCOURT, 2001).
ciao de Apoio Autopromoo da Mulher no Desenvolvimento), o Instituto da Condio Feminina (1994) e o Grupo de Mulheres Empresrias, visando
atenuar ou solucionar problemas bsicos de sobrevivncia em Cabo Verde a
fome, a seca, a moradia e a desnutrio. Alm disso, a OMCV promoveu um
movimento de resgate da palavra ao incentivar a publicao de textos de mulheres no seu rgo divulgador: a revista MUJER. Nela, as principais escritoras do
pas puderam iniciar as suas carreiras.
As escritoras cabo-verdianas tm empreendido uma viagem pelo espao
crioulo, traduzindo cada ilha em metforas caracterizadoras do socius, retratos
animados pela tica da mulher que pormenoriza os fatos do dia-a-dia. A linguagem literria recupera as personagens, funes, objetos e tudo o que constitui
o universo cultural de Cabo Verde a fim de codificar e elevar o senso de caboverdianidade.
No interior das estruturas sociais, as mulheres, desde tenra idade, realizam tarefas quotidianas com o objetivo de manter o bem-estar da famlia.
comum ver, especialmente nos espaos rurais, meninas carregando gua, catando lenha, vendendo verduras, cuidando dos irmos menores e dos animais de
pequeno porte necessrios ao sustento da casa. Essas individuaes tecem uma
rede de relaes que aprofunda a importncia socioeconmica da mulher em
Cabo Verde. No espao exterior ao lar, ela quem agencia muitas das formas
possveis de troca. Vemos, ento, mulheres rabidantes (vendedora) trocando
moedas estrangeiras (cmbio), comprando e vendendo mercadorias de grande
porte (gneros alimentcios de primeira necessidade em grandes quantidades);
joalheiras ambulantes, com seus caixotes e banquinhos, vendendo ouro proveniente de Lisboa; mulheres que saem de madrugada para comprar peixe, verduras e mantimentos para negociar.
Nesse vaivm constante, a estrutura familiar sofre alteraes e as mulheres passam a empregar os prprios filhos e o marido como ajudantes imediatos.
Seu valor social e econmico vai sendo reconhecido e, embora analfabetas em
sua maioria, esto consolidando a fora do comrcio varejista no pas. Essas so
algumas das peculiaridades da cultura cabo-verdiana que as escritoras capturam, focalizando os papis desempenhados pelas mulheres e descrevendo suas
relaes e desdobramentos.
Esclarecemos que foi bastante lento o percurso histrico do aparecimento da escritura feminina no panorama literrio crioulo. O prelo foi instalado em
Cabo Verde em 1842 e, somente por volta de 1885 o cnego Antnio Manuel da
Costa Texeira criou o Almanach luso-africano, que iria motivar o surgimento do
Almanach de lembranas luso-brasileiro (mais tarde denominado como O novo
almanach de lembranas luso-brasileiro, 1851-1852). Antnia Gertrudes Pusich,
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Rocha Lima Barreto), nascida em So Vicente, licenciada em Economia em Lisboa, militante do PAIGC, conselheira da Presidncia da Repblica, co-fundadora do movimento Pr-Cultura. Poetisa e contista, colaborou em vrias revistas,
suplementos e antologias como: N Pintcha, Voz di Povo, frica, A Tribuna, Voz
di Letra, Mirabilis: de veias ao sol.
Escrevendo livros ou publicando em folhetins, as mulheres cabo-verdianas descrevem as ilhas e suas lembranas em prosa ou poesia. O romance tem
ocorrncia menor nas letras cabo-verdianas de autoria feminina, mas desponta
com Leopoldina Bastos, Dina Salstio, Vera Duarte e Ondina Ferreira.
A ficcionista Sara Almeida, que escreve desde 1946, publicou a novela
Depois telefono em 1983, entremeando na fico episdios da guerra colonial e
tambm da dispora, acentuando, em seu texto, as diferenas polticas e culturais entre a Guin Bissau e Cabo Verde, entre os africanos e os europeus.
A tranquilidade das ilhas, o papiar gostoso nas janelas e portas e outros
pormenores da vida crioula so aspectos acentuados pela escrita de Ivone Aida,
que recupera antigas mornas em seus contos, embalando personagens em amores no correspondidos, expostos no livro Vidas vividas (1990), que tem prefcio
de Orlanda Amarlis.
Como sintetiza Simone Caputo Gomes, a escritura de autoria feminina
segue um projeto claramente vinculado s vivncias do cotidiano cabo-verdiano, a instantes de vida, vidas vividas (GOMES, 2008, p. 181).
Ftima Bettencourt inicia seu livro de contos, Semear em p (1994), com
um texto intitulado Vov (uma histria de amor e morte), acentuando a importncia do ancio na cultura africana e patenteando a africanidade no seio da
cabo-verdianidade, transferindo, contudo, o ofcio de manter a tradio para a
mulher, que substitui o av morto na atividade de contar: Abramo-nos e chormos o nosso querido av; at nos sentirmos aliviados. Assumindo o comando
da situao, comecei a contar ao Julinho uma das histrias predilectas do vov
(BETTENCOURT, 1994, p. 5).
Traduzindo as tenses e os impasses de uma nacionalidade em construo, as escritoras harmonizam as dissonncias das vozes que vm das diferentes
ilhas, nas pginas produzidas a partir das vivncias dos ilhus, gente simples,
cujos gritos e sorrisos so plasmados pela fico. A tabanca, os finaon, as mornas, os batuques, as histrias de gongons, a pesca da baleia e o grogue representam marcas culturais que sobressaem nos casos contados e, com os fios da memria, vo-se cosendo fatos passados e presentes, projetando o futuro, tecendo
a nao com retalhos do cotidiano feminino e do seu cotidiano.
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No conto Nina (AMARLIS, 1974)1, Orlanda Amarlis, ainda que permanea na sua temtica mais constante a dispora cabo-verdiana , afasta-se, entretanto,
de outras questes recorrentes em suas narrativas: pobreza, como propulsora da emigrao, e gnero.
Neste conto, um jovem desloca-se a Portugal, mais precisamente Lisboa, para estudar agronomia, fato que nos leva a crer tratar-se ele de algum
oriundo da elite de Cabo Verde. Portanto, embora seja imigrante e faa parte da
comunidade cabo-verdiana, o rapaz, por seu nvel de educao, estabelece-se
num patamar superior de diferenciao social. Afinal, ele foi a Lisboa cursar a
faculdade de agronomia.
Conforme aponta Lus Batalha, os membros da comunidade cabo-verdiana em Portugal dividem-se em dois mundos:
[...] por um lado, o das pessoas que possuem educao secundria
ou superior, que defini algures (Batalha 2004, 2004b) como a elite colonial cabo-verdiana; por outro, o dos migrantes trabalhadores
cabo-verdianos, pessoas com pouca ou nenhuma educao escolar
(BATALHA, 2008, p. 25).
Aqueles a quem o estudioso chama de elite aparecem mais integrados nas camadaseconomicamente mdias e superiores da sociedade portuguesa.
Mesmo que o jovem do conto seja egresso de um Cabo Verde ainda colnia de
Portugal (o livro de 1974 e a independncia ocorreu em 1975), o fato de no
ser o imigrante clssico movido pela fome torna-o singular.
A emigrao cabo-verdiana se iniciou como consequncia da Segunda
Guerra Mundial, quando polticas econmicas de crescimento impulsionaram a
reconstruo de estruturas europeias devastadas pela guerra, principalmente na
dcada de 1950, o que atraiu enorme contingente de mo de obra no especializada.
Porm, foi na dcada de 1960 que grandes levas de imigrantes de Cabo
Verde comearam a chegar a Portugal. Desses, apenas um pequeno nmero tinha formao secundria e superior. Como no caso do jovem da narrativa de
Orlanda Amarlis, esses imigrantes vinham para estudar e, muitas vezes, conseguiam colocao compatveis com seus estudos na mquina administrativa da
metrpole. Lus Batalha ressalta:
1 Daqui por diante citado como N, na obra CSS.
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Esta elite instruda integrou-se facilmente quer na sociedade colonial, adoptando os seus ideais dominantes, que aceitou e com os
quais se identificou, quer na sociedade portuguesa ps-colonial,
onde se identificou, sobretudo, com o conjunto de valores conservadores que reflectem a nostalgia do velho imprio e da colonizao.
So pessoas que pouco ou nada tm em comum com a massa dos
trabalhadores migrantes vindos de Cabo Verde, a no ser uma identidade colectiva cabo-verdiana, suficientemente vaga e flexvel para
acomodar a grande diferena social (BATALHA, 2008, p. 27).
186
territrio africano, julga-se portuguesa e sempre apoiou as polticas colonialistas, julgava-se em p de igualdade com Nina. Conforme expe Lus Batalha:
A mudana poltica que acabou com o regime colonial e colocou o
PAIGC (Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo
Verde) no poder um marxista que falava de uma sociedade sem
classes e contra a propriedade privada, introdutor da reforma agrria
e das nacionalizaes desagradou ao sector mais conservador da
elite cabo-verdiana colonial (no fundo a maioria). O seu programa
poltico era visto como uma ameaa ao estatuto social dessa elite
formada no perodo colonial (BATALHA, 2008, p. 29).
Dessa forma, para algum recm-chegado das ilhas, era natural que o
rapaz tentasse adaptar-se ao universo em que viveria pelo perodo necessrio
sua formao universitria. Embora gozasse situao confortvel em relao
aos imigrantes comuns (viajava na carruagem de primeira classe quando do encontro com Nina), e no manifestasse grande desconforto em sua situao,
imigrante, vivena dispora, com todas as consequncias que esse fato acarreta.
Vive no entrelugar de duas culturas: europeia e africana. Sua identidade tornase, assim, binria num equilbrio entre dois mundos. Como argumenta Jonathan
Ruthenford 2000, p. 19), a identidade marca o encontro de nosso passado com
as relaes sociais, culturais e econmicas nas quais vivemos agora... a identidade a interseco de nossas vidas cotidianas com as relaes econmicas e
polticas de subordinao e dominao.
Mas se a glida reao de Nina, agora casada, durante o encontro na gare
refora a preconceituosa postura portuguesa frente imigrao africana, como
entender que no perodo em que o rapaz hospedou-se na casa da tia da menina
tenham desfrutado de uma relao de convvio to prxima? O mito da virilidade do negro, provavelmente, pode ser a resposta. Sempre considerada uma
ameaa pelos colonizadores europeus, a masculinidade de negro uma imagem
recorrente desde o tempo da escravido nas Amricas.
No conto de Orlanda Amarlis, o corpo do jovem cabo-verdiano que
dana que atrai Nina. Alicerado numa cultura oral, o africano tem no corpo
uma forma de expresso que se coaduna fala. Ao contrrio de outros povos
para quem os rituais de exaltao s divindades so feitos por meio de oraes
e splicas, os rituais africanos se manifestam em danas vigorosas. Lembremos
que a principal arma de defesa do negro escravizado no Brasil era uma dana, a
capoeira, que em movimentos sincronizados, msculos e sensuais tornou-se o
terror dos senhores.
Por tratar-se, ento, de uma cultura oral, busca na natureza o equilbrio
de foras do mundo visvel e invisvel, conjugada em termos de terra, gua, fogo
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No por acaso que as lembranas do jovem cabo-verdiano referem-se justamente dana. A Nina apresentada por ele uma jovem com quem compartilha momentos de frenesi ao som de ritmos americanos Let me see my Love (CSS, p. 28).
O corpo do rapaz representa a ponte entre dois continentes, duas culturas distantes,
intermediadas pelo rock and roll, ritmo surgido nos Estados Unidos em meados dos
anos 1950, de cujo trip faz parte justamente a msica negra daquele pas.
Tendo como mxima expresso musical o fado, msica melanclica e saudosista, a menina portuguesa buscou no vigor do cabo-verdiano o companheiro perfeito
para extravasar sua energia e alegria juvenil, usando a linguagem do corpo. Esses corpos negros que danam ao som de ritmos afros levaram P. Miller a cunhar a expresso
esculturas sonoras, juno de sonoridades e memrias encravadas em instrumentos
e tcnicas musicais que perenizam vibraes de corpos negros (MILLER, 2005).
Ainda que uma das principais manifestaes musicais de Cabo Verde seja a
morna, ritmo que traz alguma semelhana com o fado, tanto na cadncia como na melancolia - que neste caso expressa o sofrimento do cabo-verdiano as ilhas apresentam
uma gama elevada de sons, ritmos e danas.
Fruto do cruzamento entre ritmos africanos, europeus e sulamericanos, a
msica popular cabo-verdiana tem diversas representaes, bem como de locais diferentes, conforme sublinha Simone Caputo Gomes (2008, p. 147): tabanca da ilha de
Santiago (ritual, repetitiva, com bzios soprados em contraponto, tambores e cornetas
de lato), ritmos da festa do pilo na ilha do Fogo (o pilo de cuchir o milho utilizado
tambm como instrumento musical), tambores de San Jom, mazurca e contradana
(oriundas da Europa) cultivadas na ilha de Santo Anto, coladeira (exuberante, sensual, com traos da cumbia e da msica afrocubana), batuque da ilha de Santiago (grito
africano, mulheres tocando percusso nas coxas, com panos e bolsas de plsticos), finason (lamento escravo), funan (um transe hipntico), canto cristo da divina de So
Nicolau (a quatro vozes de mulher) e morna nostlgica da Boa Vista, com seus acordes
sincrticos (originrios da modinha brasileira cruzada com lundum, fado, samba, foxtrot e mambo).
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Para onde quer que tenha ido, o corpo do negro foi o principal veculo de
resistncia e transgresso. Por meio de jogos, dana, festividades, cerimnias religiosas, os negros recriaram tradies, inventaram novos smbolos, guardaram memria
ancestral e as ensinaram s novas geraes.
Dessa forma, esse corpo que dana, e no conceito de Slvio Romero quase
impossvel falar a homens que danam (ROMERO apud VELLOSO, 2007, p. 4), no
passou indiferente por Nina. Ao som frentico do rock and roll, nos bailes da Casa
dos Estudantes local criado durante a ditadura salazarista para apoiar e controlar
estudantes da colnia, mas que acabou se tornando bero dos lderes africanos em Lisboa cimentaram de vez a amizade (N, p. 26). Ainda que o rock no fosse o ritmo da
formao do jovem cabo-verdiano, seu corpo trazia a linguagem oral, visual e sonora,
evidenciando que o corpo e a memria so inseparveis nas culturas socializadas em
matizes orais. Como afirma Antonacci (2013, p. 154), suas tradies, transmitidas em
presena de corpos, materializam-se em gneros no-verbais de narrativas inerentes
moldagem de corpos enquanto fontes vivas, que perenizam rumores de culturas latentes em dobras da dominante civilizao ocidental crist.
Paralelamente linguagem de fora e ritmo que emana do corpo negro, outro atributo faz parte do imaginrio europeu: a articulao direta entre cor negra e
erotismo. Em sua pesquisa sobre a construo do sexo do homem negro na dispora,
principalmente na Pennsula Ibrica, Suely Aldir Messeder (2010, p. 9) afirma que o
mito da virilidade dos negros imigrantes no se restringe quela regio, pelo contrrio,
alimenta a fantasia sexual da mulher branca europeia. Ainda que as portuguesas sejam
mais retradas e conservadoras, tambm entre elas espalhou-se a crena, que a mulher
branca descobriu e difundiu, sobre a competncia sexual do homem negro.
Tambm Roger Bastide refletiu sobre esses encontros interraciais em funo
do mito de que os vares negros so virilmente superiores aos brancos. Mas pondera
que, embora esses encontros possam parecer um desafio ao racismo, resulta em racismo explcito ou disfarado, por conta dessa memria coletiva encravada nos corpos
racializados (BASTIDE apud MESSEDER, 2010, p. 5).
No toa que Nina, que por tantos anos foi companheiras de farras do jovem cabo-verdiano, ao som frentico da msica sada do toca-discos, teme que ele
possa tentar uma intimidade maior. Certa feita, a menina entra no quarto rapaz para
pedir uma caneta esferogrfica emprestada. Ele se levanta e fecha a porta; feito que a
garota interpreta como uma insinuao da parte dele para algo mais ntimo. Ela reage
bruscamente.
Ele dera uma gargalhada indo sentar-se.
Fincou os cotovelos sobre a mesa, descansou o queixo sobre as mos
e olhara-a trocista.
s parva, tinha-lhe dito.
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Aborrecido com a fria recepo de Nina ao seu chamado e cumprimento, ele no d devida ateno ao convite. Reflete sobre sua condio de imigrante
sem conseguir atinar com a dimenso da vida na dispora. No percebe que
o hibridismo resultante do encontro das mais diversas culturas no livre de
tenses. O pano de fundo que possibilita a mistura cultural composto pela
existncia de uma zona de contato. Nos termos de Mary Louise Pratt (1999, p.
29), zonas de contato so espaos sociais onde culturas dspares se encontram,
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Orlanda Amarlis sabe que o aludido processo civilizatrio europeu restringiu o mundo com sua prpria lgica cartesiana, desprezou saberes de outros
povos e universalizou o pensar ocidental. Mas as cincias europeias que com
seu racismo e racionalismo, perderam de vista os meios celebrando a vitria
da razo , em processo de globalizao, enfrentam diferenas que levam diferena. Como todas as formas de vida humana eram excludas em discurso
unificado de civilizao, a diferena, nas mutaes de ser o Outro, tornou-se
uma posio marcada de forma diferencial (performtica) dentro da cadeia discursiva (HALL, 2003, p. 8).
Claro que no se deve esquecer que o jovem cabo-verdiano no vive
numa situao de exlio, j que se encontra em Lisboa a estudo. Mesmo que
mantenha contato com seus conterrneos na Casa dos Estudantes, esses no
aparecem diretamente na narrativa, mas, sim, os portugueses. Como hoje se tornou impossvel ver o indivduo moderno como um ser unificado, uma vez que
as velhas identidades esto em declnio, o que surge em seu lugar o sujeito
fragmentado (HALL, 2003, p. 8).
Embora o jovem migrante tenha, no conto de Orlanda Amarlis, uma
identidade de origem que a liga aos demais habitantes do arquiplago, no expressa ao seu grupo a solidariedade e fidelidade habitual para quem vive na situao de dispora, fundamentalmente por uma questo de classe social. Ao
contrrio, parece comprovar asseres de tericos como Kenneth Thompson
(Apud HALL, 2003, p. 73-74), para os quais surgem hoje as identificaes globais, provocadas pelas trocas culturais entre as naes e a distncia em que as
pessoas se encontram de seu pas de origem.
Ah, Nina, ts com a mosca da nova vida. H-de te passar (N, p. 30).
Esse pensamento do rapaz como reao indiferena da jovem portuguesa a
prova de que ele no tem uma percepo abrangente de sua situao de jovem
negro imigrante. Por pertencer a uma elite cabo-verdiana julga-se livre do preconceito europeu. Ningum est.
Referncias bibliogrficas
AMARLIS, O. Cais do Sodr t Salamansa. Coimbra: Centelha, 1974.
ANTONACCI, M. A. Memrias ancoradas em corpos negros. So Paulo, EDUC, 2013.
BASTIDE, R. Le prochain e Le lointain. Apud MESSEDER, Suely Aldir. A construo do sexo
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Nesse sentido, abrimos o mapa e iniciamos uma viagem em busca dessa potica armeniana que to instigante e que nos oferece instrumentos para
perceber, sentir, experimentar esse espao de configuraes e transfiguraes, de
composies que recolhem da poesia o que ela tem no momento de sua apario: a prpria pulsao.
Para alm desse espao, que pode ser o de Cabo Verde como o do mundo, o poeta nos apresenta um tempo em que a vida acontece. Dialoga com outros poetas de todos os tempos e dos mais variados lugares, mas sempre o faz
trazendo esses sujeitos para o tempo em que ele questiona a prpria vida. No
se trata de um olhar novo, mas de um olhar atual para o atual, um olhar que
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O poeta ao se autodenominar vadio, coloca-se na condio de errante, passeia pelos caminhos que deseja. No caso de Armnio, essa liberdade lhe
permite experimentar os limites/deslimites da sua potica. E o leitor, ao fazer
essa viagem, pode, pelo caminho, ir recolhendo o que nele h de pedregoso, de
buraco, de lixo, de barco quebrado. Bilhete perdido.
Vieira nos apresenta um caminho a ser conhecido, experimentado, mas
nos alerta sobre o desconhecido. A ilha para onde se pretende ir nova para o
viajante, porque ser apresentada a ele durante a sua busca, nascer da sua prpria escolha. No h rota traada e definida: o mapa, a bssola e o navio esto
dentro do marinheiro. Essa viagem demanda um apagamento de tudo aquilo
que se sabe, porque deseja ser nova, e para isso, faz-se necessrio no olhar para
trs, qualquer vestgio pode alterar a maneira de escolher o caminho:
Apaga as escrituras todas. Se a missa ou o sino de qualquer igreja
chegarem aos teus ouvidos, o que ouves apenas o vento a sacudir os
ramos, um velho boi ruminando sempre a mesma palha. Em ti h
um marinheiro demandando uma ilha onde ningum ainda esteve.
Tambm em ti encontrars o mapa, a bssola e o navio. H coisas a
que no deves atribuir nomes. A tua ilha no tem nome (VIEIRA,
2009, p. 11).
Esse caminho que nasce do risco, da experimentao parece estar presente na potica de Armnio. Sua arquitetura o busca. Um texto que descontri
o j dado e, contudo, no o ignora, ao contrrio, quando o imprime na folha do
livro, apresenta-nos um novo olhar (atual), talvez aquele que confira ao texto
algo de potncia e vigor. Como se o poema, ao se constituir, tambm constitusse
o equipamento que o far ser caminho (s). O mapa que anteriormente localizava
o poema parece no ser mais eficaz. O leitor precisa ser atirado no espao da
poesia e l traar o mapa que quer seguir. A palavra, no como algo que se fixa,
e sim como algo que circula e retorna, e que transita. Nesse sentido, o espao
potico passa a ser lugar de cruzamento, de rede, de encontros, deslocamentos
e acidentes.
J no mais o mar que interessa ao poeta, mas sim o que ele guarda:
Que que sabem das negras tormentas os que jamais se lanaram ao
mar, sendo que o que agora importa no o mar das sete vias, o qual
apenas interessa aos peixes, mas o dorido eco de quanto no mar se
ouviu e o rduo poema que o regista (VIEIRA, 2009, p. 94).
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No a beleza nem a calmaria que o interessa, e sim o que o mar guarda como
eco dolorido de uma voz que s o poeta escuta e cabe a ele torn-la audvel para
o leitor.
O sonho: o jogo da palavra e o desejo da poesia
Essoutro quem sonha os teus sonhos. ele que te faz subir aos altos cimos onde a Musa dita o poema: ele quem
te leva aos stios de onde partem os navios.
Armnio Vieira
Para Armnio Vieira o inferno um lugar constante porque se apresenta como um espao de atrito, de questionamento e at mesmo de dor. O Paraso
um lugar de sonho e o poeta parece optar pelo espao dessacralizado, mais
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vivido e questiona o mover-se pelo tempo, pois aquele que diz no viajar est
mentindo. O tempo move e age sobre todos e cada viajante ao sofrer o desgaste
desse tempo encontrar consigo mesmo, num jogo que sempre recomea.
Tal como a poesia, que se expande e reconhece as fronteiras como ponto
de atrito e converso, o poeta trilha por esses caminhos sem a perspectiva do
futuro e se posiciona para a prxima partida. Rei, rainha, pees, tudo interessa,
todos esto no jogo. O tabuleiro est armado: uma nova partida. Que caminho
essa potica pode tomar? O poeta mesmo responde:
O poema, do qual ningum escreveu o derradeiro verso, sendo que
o primeiro qui a frase com que a Divindade separou a luz da escurido, quem sabe em que porto vai parar esse navio, se porventura
tal porto existe, acaso um penedo capaz de o suster (VIEIRA, 2009,
p. 114).
Armnio Vieira busca um texto que rompe com os modelos estabelecidos, caminha com as horas do seu tempo o presente , e percorre os espaos e
os vos desses espaos em movimento, sejam os que encarceram o ser ou os que
o libertam. J no h salvao, o que existe o tabuleiro, as peas e os jogadores
em busca de mais uma partida. O poema, tal como o jogo, acontece durante a
partida sem a nostalgia do passado nem a utopia do futuro.
O poeta cabo-verdiano no se interessa pelo lirismo, mas sim por outra
forma de articular a matria da sua poesia. O livro O poema, a viagem, o sonho,
do qual recolhemos uma pequena parte para refletirmos a respeito da potica
que se vem produzindo neste sculo, foi escrito numa praa, na cidade da Praia,
na Ilha de Santiago, ao telefone celular em forma de mensagem para um amigo
que estava em Portugal. A ideia do livro e da composio anuncia-se de forma
instigante, pois nasce do desejo de experimentar um novo suporte e, ao mesmo
tempo, dividi-lo com o outro. O poema configura-se como uma mensagem e,
nesse sentido, uma mensagem que viaja de um continente a outro e que chega
numa velocidade jamais antes imaginada. Ser que o poema seguinte pode ser a
resposta de um sms anterior? At que ponto o receptor dessa mensagem altera
o poema que vem a seguir?
Para essas perguntas no temos resposta. O livro intitula-se O poema, a
viagem, o sonho e podemos encontrar o que ele guarda de viagem tanto tematicamente quanto na sua prpria tessitura. O poema viaja inicialmente pelo SMS,
depois pela folha do livro e se d ao leitor para que ele tambm possa construir
a sua viagem, trilhando uma rota nada segura, porque no promete nenhuma
facilidade, mas risco e aventura.
Com a mesma imprevisibilidade da vida, o poeta recolhe o material da
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sua poesia e lana-a no espao no qual ela se constituir como uma possibilidade
de caminho, to cambiante e mltipla como o prprio mapa quando se destina
a ser lido no percurso da caminhada. O que os poemas oferecem so rotas desconhecidas e com vrias possibilidades de acesso. Cabe ao leitor compreender
que dentro de si que se encontra o marinheiro e todo o instrumental necessrio
para navegar e encontrar a sua prpria ilha. Uma potica que deseja ser o tempo
presente, o tempo da sua tessitura, sem a nostalgia do passado e sem as promessas do futuro.
Armnio Vieira, em seu livro O poema, a viagem, o sonho, confere sua
potica novas formas de dizer, incorpora a tecnologia na sua forma de produo
e estabelece um movimento que busca compreender a representao e o efeito
do tempo e da potica na atualidade.
O caminho percorrido pelo cabo-verdiano parece atender busca pelos
novos caminhos que a potica solicita, colocando em teste a forma de dizer e o
que dizer. Ao dialogar com outros universos, antigos e distantes, traz esses espaos e tempos para serem lidos no aqui e agora, oferece ao leitor um percurso que
l o tempo atual com toda fragilidade que lhe inerente, oferecendo diversidade
de trilhas e de possiblidades.
Referncias bibliogrficas
DOMENECK, R. Ideologia da percepo ou algumas consideraes sobre a poesia contempornea no Brasil In: Inimigo Rumor. N 18-2 semestre 2005/ 1 semestre 2006.
GOMES, C. S. Armnio Vieira: aulas magnas de arte potica. In: Revista Mulemba, 4. Rio de
Janeiro: UFRJ, julho/2011. Disponvel em<
http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_4_4.php>. Acesso em 20 de
outubro de 2014.
MALLO, A. F. Postpoesia Hacia um novo paradigma.Barcelona: Editorial Anagrama S.A,
2009.
VIEIRA, A. O poema, a viagem, o sonho. Lisboa-Cabo Verde: Editorial Caminho, 2009.
_______. Poemas. Cabo Verde: frica Editora, 1981.
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Raquel Aparecida Dal Cortivo: Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista de So Jos do Rio Preto. Atualmente bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Amazonas no curso de Doutorado em
Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa da Universidade de
So Paulo. Professora da Universidade Federal do Amazonas, Campus Vale do
Rio Madeira-Humait. Possui vrios artigos em revistas especializadas e captulos de livros, no pas. E-mail: [email protected]
Rute Maria Chaves Pires: Mestre em Cincia da Literatura /Teoria da Literatura
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa na Universidade de So Paulo. Professora de Literaturas Portuguesa e Africanas de Lngua Portuguesa da Universidade Estadual do Maranho. E-mail: [email protected]
Sonia Maria Alves de Queiroz: Mestre em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa) pela Universidade de So Paulo. Publicaes em peridicos
nacionais como Letra Magna e Revista da UNESP. E: mail: [email protected]
Sonia Maria Santos: Mestre em Letras Vernculas pela Universidade Federal Fluminense, 1998, com dissertao sobre Mornas eram as noites, de Dina Salstio, com
orientao de Simone Caputo Gomes; convertida em livro publicado pela Biblioteca
Nacional de Cabo Verde em 2001. Doutora em Letras Vernculas pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2006, com tese sobre a narrativa de autoria feminina em
Cabo Verde, com orientao de Carmen Lcia Tind Secco e co-orientao de Simone Caputo Gomes. Professora da FAP- Grupo Lusfona do Brasil, na Graduao
e na Ps-Graduao e Membro da Comisso Estadual da Verdade sobre Crimes da
Escravido no Brasil (Rio de Janeiro). E-mail: [email protected]
Suely Alves de Carlos: Mestre em Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa
pela Universidade de So Paulo, atualmente trabalha como professora de lngua
portuguesa e literatura na faculdade de teologia ITESP Instituto Teolgico de
Estudos Superiores de So Paulo. E-mail: [email protected]
Vilma Aparecida Galhego: Mestre em Literatura e Crtica Literria pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, doutoranda no Programa de Literaturas
Comparadas de Lngua Portuguesa na USP-SP. E-mail: [email protected]
*Doutores e Mestres orientados por Simone Caputo Gomes ou atuais orientandos; participantes do Grupo de Pesquisa Estudos Cabo-verdianos de Literatura
e Cultura CNPq/USP, liderado pela professora. E-mail: [email protected]
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