Introduo Filosofia

PRIMEIRA PARTE. UNIDADE 1: A Tradio Filosfica e os

Diferentes Modos de conceber a Filosofia
Irley F. franco e Danilo Marcondes

Um Filsofo. Jean Honor Fragonard (1732-1806).

A pergunta O que filosofia? admite vrias respostas, conforme a consideramos de um ponto
de vista histrico, isto , desde o seu surgimento, ou de um ponto de vista temtico,
dependendo dos vrios filsofos que desenvolveram suas prprias concepes do trabalho
filosfico e escreveram sobre os mais variados temas, utilizando, alm disso, os mais diferentes
estilos literrios, desde poemas (tal como fizeram os pr-socrticos), at os dilogos (expresso
literria escolhida por Plato), cartas, tratados (como o da maior parte dos filsofos) e aforismos
(como, por exemplo, os de Nietzsche).

Isso mostra que durante toda a tradio filosfica encontram-se vrias possibilidades de tratar
de certas questes consideradas pela filosofia como sendo fundamentais.
Destacamos aqui, com propsito meramente didtico, cinco vises gerais do que filosofia.
1.
2.
3.
4.
5.

Filosofia como sabedoria de vida.

Filosofia como viso de mundo.
Filosofia como atitude crtica e questionadora.
Filosofia como sistema de pensamento.
Filosofia como busca pelo autoconhecimento.

Tais vises no se excluem mutuamente, embora apresentem perspectivas diferentes ao longo

da tradio filosfica. Ao contrrio, no mais das vezes, essas vises se complementam, se
implicam.
Quando tentamos alm disso exemplific-las atravs de filsofos, damo-nos conta de que a
filosofia da maioria dos filsofos partilha de duas ou mais vises simultaneamente, dependendo
do aspecto que privilegiamos no estudo de sua obra. Assim por exemplo, podemos dizer com um
bom grau de segurana que Plato pode ser includo em (1), (3) e (5); Aristteles em (1), (3),
(4) e (5), e assim por diante.
No que se segue, vamos tentar explicar mais detalhadamente o que caracteriza cada uma dessas
vises, procurando sempre que possvel fornecer exemplos que possam esclarecer melhor o seu
sentido.
1. A Filosofia como Sabedoria de Vida
A filosofia como sabedoria de vida corresponde a uma viso da filosofia prtica, isto , uma
reflexo voltada para as condies e os critrios segundo os quais tomamos decises em nossa
vida concreta, no que nos baseamos para isso e como visamos sempre o melhor resultado,
embora nem sempre consigamos antecipar como consegui-lo. Segundo essa concepo, a
filosofia importante enquanto pode contribuir para nossa vida prtica e no enquanto
discusso terica de problemas abstratos. Essa sabedoria de vida freqentemente vista como
resultando de nossa experincia, de uma atitude mais reflexiva, que no se deixa perturbar por

questes ou controvrsias menos importantes. De acordo ainda com essa concepo, a moral
a rea central da filosofia.
Exemplos dessa concepo podem ser encontrados em todos os filsofos que se preocuparam
com as aes morais como sendo resultantes, no de um cultivo pessoal qualquer, no do
acmulo de experincias de vida quaisquer, mas de reflexes sobre os princpios morais que
determinam nossas aes.
Sobre o sentido de sabedoria implicado nessa viso filosfica, preciso observar o seguinte:
trata-se a de uma sabedoria que depende do tempo e da experincia, entendendo-se com isso
que adquirida, conquistada, mas que no nata como a inteligncia e a memria, por exemplo.
Envelhecer, contudo, no basta para tornar algum sbio. Envelhecer traz com certeza rugas; a
sabedoria, ao contrrio, no surge naturalmente com a idade; ela precisa ser cultivada. A
sabedoria no se cultiva por um conjunto de conhecimentos acumulados (tais como o saber
fazer bolo, sapatos, ou o saber dirigir um carro, e falar diversas lnguas), por isso nada tem a ver
com a cincia, no sentido em que entendemos hoje a palavra cincia. Um mdico, por exemplo,
pelo fato de conhecer tcnicas que o autorizam a operar corpos na tentativa de cur-los, no
necessariamente sbio. A sabedoria aqui em questo no resultante do aprendizado de uma
tcnica, mas do aprendizado de reflexes e experincias que nos levem a pensar e agir o mais
acertadamente possvel na vida.
Dentre os antigos, Scrates, Plato, Aristteles e os filsofos helenistas de um modo geral, esto
certamente a includos, pois todos eles dedicaram algum aspecto de sua filosofia filosofia do
bem-viver, cujo principal objetivo adquirir uma sabedoria que conduza os homens felicidade.
As respostas aqui so muito variadas, mas a pergunta Como devemos viver, de modo a
vivermos bem? essencial e comum a todas elas. para ela que convergem todas as questes
acerca do sentido das virtudes quais so?; o que so? como obt-las?; por que e
para que obt-las?; quem as possui?; etc. e tambm acerca das no-virtudes. Para alguns,
como o caso de Scrates, a vida virtuosa a vida mais sbia; para Plato, no dilogo Filebo, a
boa vida deve misturar e equilibrar sabedoria e prazer; para outros, como o caso dos filsofos
hedonistas, uma vida puramente de prazer que ir conduzir o homem felicidade, para outros

ainda, como o caso dos esticos e dos epicuristas, a melhor vida a da neutralidade, pois o
verdadeiro prazer s pode ser obtido eliminando-se ao mximo a possibilidade da dor.
A filosofia como sabedoria vai variar de acordo com o que os homens consideram que seja o
mais alto valor da vida. A sabedoria humana nesse tipo de concepo est sempre a servio do
bem viver. Ela deve dirigir as aes humanas visando a conquista do objetivo mais alto do bem
viver: a felicidade humana. O problema aqui saber em que consiste a felicidade, que bens
devemos eleger como sendo os que conduzem a ela, pois seu significado varia dependendo da
poca e do contexto.
A palavra grega que traduzimos por felicidade, por exemplo, eudaimonia, uma palavra cuja
etimologia mostra que seu sentido nada tem a ver com o nosso sentido de felicidade.

Eudaimonia significa prosperidade, boa fortuna, bom destino. O homem feliz (eudaimon)
aquele cujo destino afortunado, seja porque possui qualidades que lhe foram dadas por uma
divindade (daimon) e que por essa razo conduz a vida sempre em direo ao melhor, seja
porque, como querem os filsofos, adquiriu esses dons ao longo da vida. A palavra no se
refere, como a nossa felicidade, a um estado de esprito, relativo alegria ou ao prazer e
dificilmente se refere a algo subjetivo e momentneo.
Algumas noes filosficas de felicidade podem ser bastante complexas, como a de Aristteles,
na tica Nicomaquia, ou a de Nietzsche, em Assim falou Zaratustra. Mas a essas noes
voltaremos mais adiante, no mdulo de tica e Poltica. Por enquanto ficamos com o bsico.
Foi uma concepo de filosofia como sabedoria que levou Plato a acreditar, em determinado
momento de sua vida, que a filosofia fosse o nico caminho para a realizao da justia. Em A

Repblica, ele expe seus ideais polticos, os quais, a convite de seu amigo Dion, cunhado de
Dioniso II, rei de Siracusa, tentar mais tarde, embora sem sucesso, pr em prtica. Sua tese
central recorrentemente criticada por toda a tradio filosfica a de que a cidade justa
deve ter como governante o filsofo, porque somente a filosofia pode capacitar o homem a
discernir o que a justia e, a partir desse discernimento, construir uma cidade.

No livro IV de A Repblica (427d-434d), Plato faz um paralelo entre o Estado e os indivduos

que o compem, a fim de demonstrar que as qualidades de uma comunidade so as mesmas
que se encontram nos indivduos. Indivduos justos, isto , que tm as trs partes de sua alma
em equilbrio e sob as rdeas da razo, constroem cidades justas; se a cidade composta por
almas desequilibradas, a cidade ser igualmente desequilibrada e injusta.
Das almas dos indivduos, portanto, e tudo o que se relaciona a elas depende a cidade justa. E o
carter do filsofo construdo a partir da constatao da injustia, ele mesmo Plato tendo
experimentado essa injustia com a condenao de Scrates morte. portanto a partir de um

pathos, e no de uma intuio ou de uma racionalizao que Plato concebe seu desejo de ver a
cidade governada pelo filsofo.
No texto abaixo, a viso que Plato tem de si mesmo quando, por volta dos setenta anos de
idade, fazendo uma retrospectiva de sua vida, conta o que o levou filosofia, em carta dirigida
aos "Amigos e Associados de Dion.
O Depoimento Autobiogrfico de Plato na Carta VII 324b-326b

"Quando eu era jovem experimentava o mesmo sentimento que tantos outros jovens. Eu
imaginava que, to logo me tornasse dono de mim mesmo, imediatamente passaria a me
ocupar dos afazeres da cidade. Mas eis em que situao encontrei os afazeres da
cidade."
"Como a ento constituio (politeia) era odiada por muitos, houve uma revoluo e os
cinqenta-e-um cidados que a lideraram ficaram com o poder em suas mos: onze
ficaram encarregados da cidade e dez do Pireu [...], mas trinta formavam a mais alta
autoridade poltica, com poderes ilimitados. Desses, alguns eram meus parentes e
conhecidos e, naturalmente, convidaram-me imediatamente a participar de sua
administrao, como se eu estivesse pronto para me ocupar desses assuntos."
"Isso no me causou nenhum espanto, porque eu era jovem e imaginava que com
certeza eles iam administrar a cidade de modo a conduzi-la de uma vida injusta a uma
condio justa; e passei a prestar bastante ateno no que eles faziam. E eis que eu

vejo, em pouco tempo, esses homens fazerem a constituio anterior parecer uma Idade
de Ouro."
"Dentre outras coisas, eles tentaram obrigar meu j idoso amigo Scrates a quem eu
no hesitaria em chamar de o homem mais justo daquela poca a ir com outros
prender e trazer fora um cidado para que este fosse executado. Seu objetivo, era
envolver Scrates, quisesse ele ou no, em suas aes polticas (ton pragmaton);
Scrates, entretanto, recusou-se a obedecer, e preferiu correr o risco de sofrer a pior
das penalidades a ter que participar de seus atos infames. Foi ento que, considerando
esses fatos, e outros do mesmo gnero que no eram menos graves, fiquei revoltado e
me afastei dos crimes que estavam sendo cometidos."
"No muito tempo depois, caram os Trinta, e com eles a constituio de ento. E eis que
novamente, mas com menos intensidade, me veio o desejo de participar da vida pblica.
A situao no havia ainda se estabilizado, e, mesmo com o novo governo, muitas coisas
deplorveis ainda estavam acontecendo. No surpreendente que em pocas de
tumulto os homens se aproveitem para vingar-se violentamente de seus inimigos,
embora os exilados, que agora retornavam ao poder, se comportassem, de um modo
geral, com muita moderao."
"Apesar disso, no sei por que infortnio, este Scrates, nosso companheiro, foi
convocado, por alguns homens do poder, a comparecer diante de um tribunal para
responder mais mpia das acusaes, e a que menos lhe convinha. Uns o acusaram de
impiedade contra os deuses da cidade e outros o julgaram culpado e condenaram
morte e executaram o homem que outrora, quando eram eles mesmos que estavam
banidos, se recusara a participar da priso criminosa de um de seus amigos."
"A mim, que observava tudo isso e considerava que tipo de homens administrava as
coisas polticas (ta politika) e as leis e os costumes, parecia ser tanto mais difcil
administrar corretamente as coisas pblicas (ta koina) quanto mais atentamente eu
observava e mais velho me tornava."

"Nada podia ser feito sem amigos e associados leais, e homens assim eu no
encontraria com facilidade nem entre os meus conhecidos, pois a nossa cidade no vivia
mais de acordo com os costumes e os princpios dos nossos antepassados, e era
igualmente difcil fazer novos amigos sem grandes dificuldades. Alm disso, a corrupo
nas leis escritas e nos costumes se intensificou assustadoramente. De modo que eu, que
inicialmente senti um desejo ardente de participar da vida pblica, estava agora tonto
vendo tudo desintegrar-se minha volta".
"E embora eu no conseguisse parar de pensar num meio que pudesse trazer uma
melhora para essa situao e para a poltica em geral, continuei observando,
aguardando o momento oportuno para a ao, at que, finalmente, compreendi, com
relao a todas as cidades existentes, que no havia uma nica que fosse bem
governada. Pois tudo o que nelas diz respeito s leis encontra-se num estado
praticamente incurvel, a menos que uma ao miraculosa seja acompanhada de boa
sorte. E eu fui necessariamente levado a acreditar, num elogio verdadeira filosofia, que
somente ela pode capacitar os homens a discernir o que a justia nas cidades e nas
vidas dos indivduos."
"As geraes humanas, portanto, no vero o fim de seus males, at que a classe dos
verdadeiros filsofos atinja o poder poltico, ou que os polticos, por uma graa divina, se
tornem verdadeiros filsofos."

2. A Filosofia como Viso de Mundo

A filosofia como viso de mundo est muito ligada anterior, pois tem tambm um sentido
prtico. Contudo, mais abrangente, mais geral, incluindo uma concepo mais ampla de
realidade em seus aspectos cognitivos, polticos, estticos, ou seja, uma viso mais integrada
das vrias questes sobre a realidade, podendo inclusive servir de base para a tomada de
decises prticas.

Retrato do Filsofo e Poeta Vladimir Solovyov (1885, St. Petersburg, The Russian Museum)

A filosofia como viso de mundo tem um modo global de conceber a realidade. Os filsofos
comprometidos com esse tipo de filosofia interpretam o mundo a partir de certos pressupostos
que uma vez adotados determinam globalmente seu modo de ver. Tais filosofias por terem, de
um modo geral, objetivos prticos se ligam naturalmente ao tipo (1), mas, pelo fato de se
organizarem em torno de um elemento bsico a partir do qual se torna clara sua compreenso
das coisas, tendem a se assemelhar s filosofias do tipo (4).

Para bem compreendermos o significado desse tipo de filosofia, necessrio que entendamos
viso de mundo conforme o sentido da palavra que lhe deu origem: Weltanschauung.

Weltanschauung uma palavra alem que significa literalmente viso de mundo ou cosmoviso,
mas que foi regularmente adotada em diversas lnguas para se referir a um tipo de filosofia cuja
viso compreensiva a partir de certos pontos de partida. A palavra pode ser usada tambm
para descrever o modo como um determinado indivduo concebe o mundo, ou ainda no sentido
de ideologia.
As vises de mundo funcionam como a famosa frase de Arquimedes: Dem-me uma alavanca e

um ponto de apoio e eu moverei o mundo e elas de fato so, pelo menos aparentemente,
geniais.
Embora no sendo um filsofo, o nome de Sigmund Freud pode ser lembrado para ilustrar esse
modo de conceber, pois, a partir da noo de inconsciente, a psicanlise interpreta toda a
realidade humana nas suas mais diversas formas de expresso: a religio, a arte, a cincia, as
relaes sociais, etc.
Outro exemplo de viso de mundo encontra-se na filosofia de Karl Marx, um dos mais
importantes filsofos do sculo XIX. O marxismo, avalia e explica diversos domnios da realidade
humana, a partir do modo de produo de uma sociedade. O estgio de desenvolvimento das
tcnicas e das condies de produo, as foras produtivas, explica as relaes de produo
estabelecidas e as formas de diviso de classes sociais. As relaes de produo no regime
feudal, por exemplo, se explicam pelas relaes entre o senhor e o escravo; no capitalismo os
proprietrios dos meios de produo e os trabalhadores assalariados. a partir das foras
produtivas e das relaes de produo adotadas por uma sociedade que o marxismo avalia suas
instituies sociais: jurdicas, familiares, polticas etc.
O marxismo teve grande importncia poltica na Europa e no mundo, sobretudo enquanto crtica
aos modos de produo do capitalismo.


Soldados bolcheviques nas ruas de Moscou, durante a Revoluo Russa de 1917, movimento que determinaria a
diviso do mundo em dois blocos antagnicos: capitalistas versus comunistas e que duraria mais de setenta anos.

O pensamento revolucionrio de Marx foi aplicado em diversos pases. Juntamente com Friedrich
Engels, Marx escreveu o Manifesto Comunista, que deu origem ao processo revolucionrio russo,
no sculo XX. Tanto Marx quanto Engels consideravam o capitalismo um sistema injusto que gera
pobreza e desigualdades sociais graas explorao do capital sobre a fora de trabalho do
operariado (ou proletariado).
As filosofias vises de mundo foram muito criticadas pelo filsofo alemo, fundador da
fenomenologia, Edmund Husserl. Em seu ensaio, A Filosofia como Cincia Rigorosa, ele afirma
que a filosofia deveria ter como ideal a cincia no sentido mais rigoroso de cincia. E Husserl
dedicou decnios de sua vida meditao, com o objetivo de provocar uma viragem da
filosofia que convertesse em realidade o comeo radical iniciado pelos gregos de uma filosofia
capaz de se apresentar como cincia. Uma cincia universal e apoditicamente fundada, a
terra firme da filosofia, como Husserl costumava cham-la, que tornasse possvel o
desenvolvimento de uma autonomia pessoal e abrangente para a humanidade, essa era a nica
soluo para a crise existencial que Husserl diagnosticou no homem ocidental.

Embora Husserl tenha influenciado grandes filsofos do sculo XX, tais como por exemplo, Martin
Heidegger, e os franceses Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Michel Henry e Jacques
Derrida, seu ideal de filosofia como cincia jamais vingou nas filosofias posteriores. Ao contrrio,
as filosofias afastaram-se radicalmente da cincia e tornaram-se cada vez mais vises de
mundo.

3. A Filosofia como Atitude Crtica e Questionadora

A filosofia como atitude crtica e questionadora atribui filosofia um papel essencialmente
questionador, ou seja, de colocar em questo nossas opinies e crenas habituais, perguntar
sobre seu sentido e seu fundamento, problematizar o senso comum, buscar alternativas, no
aceitar a primeira resposta dada, a soluo aparentemente mais fcil e mais bvia.

Scrates e seus alunos. Ilustrao de um manuscrito srio do incio do sculo XIII.

A atitude crtica j era um aspecto presente no pensamento dos primeiros filsofos. E essa
atitude se dava no apenas em relao ao que era externo ao seu pensamento por exemplo,
o mito , pois os filsofos das primeiras escolas filosficas tinham opinies discordantes acerca
das mesmas questes. parte da atividade da filosofia, desde a sua origem, o debate.
A aspirao sabedoria, conforme a etimologia da palavra, fundamenta a atitude crtica: no
sendo uma sabedoria, mas uma aspirao a ela, a filosofia se concebe como um tipo de
ignorncia que se reconhece ignorante, e que, embora possa supor a possibilidade do
conhecimento absoluto, consistentemente realiza-se como uma mera busca.
Atravs dos dilogos de Plato conhecemos o primeiro grande filsofo crtico dos homens, da
sociedade e de si mesmo: Scrates. S sei que nada sei, era seu refro. Scrates nunca
escreveu nada; tudo o que dele sabemos atravs de outros pensadores, em especial Plato,
Xenofonte e Aristteles. Scrates andava pelas ruas interrogando os que estavam sua volta.
Seu mtodo de perguntas e respostas reduzia o interrogado a um estado de perplexidade tal
que o deixava paralisado e confuso. Por essa razo costumava-se dizer que as palavras de
Scrates eram como o veneno da torplia marinha.
Plato, Mnon 79e-80b:

"Ouvia dizer, Scrates, antes mesmo de conhecer-te, que no fazias outra coisa seno
ficar tu mesmo embaraado e fazer os outros ficarem embaraados; e agora, parece-me,
ests me enfeitiando, entorpecendo e literalmente encantando de tal modo que estou
saturado de embaraos. E se me for permitido fazer alguma brincadeira, tu realmente
pareces-me ser semelhante, tanto em aparncia quanto em outros aspectos, quela
larga torplia marinha. Pois ela paralisa quem quer que dela se aproxime e toque, e
parece que isso foi o que fizeste em mim agora; pois realmente estou paralisado tanto
na alma quanto nos lbios, e no sei mais o que responder-te. E entretanto j discursei
sobre a virtude mil vezes e para muitas pessoas; e o fiz muito bem tambm, como me
pareceu na poca. Mas agora no posso sequer dizer o que ela . Eu acho que uma
sbia deciso a tua a de nunca sair daqui e nem ficar ausente; pois se tu fizesses tais
coisas em outra cidade onde s um estranho, possivelmente serias preso como bruxo.

O objetivo de Scrates no o efeito de paralisao produzido. Esse efeito no provocado

seno para obter um outro: mostrar ao interrogado sua ignorncia, mostrar a quem pensa que
sabe que na verdade nada sabe. Ao fazer com que o sujeito reconhea a prpria ignorncia,
Scrates pretende provocar nele um genuno desejo do saber:

Plato, Mnon 84a-c:

"Ests notando, Mnon, o progresso que ele j fez na sua rememorao? Primeiro ele
no sabia qual era a linha que pertence ao quadrado de oito ps, do mesmo modo que
agora ainda no sabe. Mas antes pensava sab-lo, e respondeu confiantemente como se
de fato soubesse, e no pensava estar em embarao, enquanto agora, embora ele no
saiba mais do que sabia antes, ele, pelo menos, se sente em embarao e no mais
acredita saber. /Dizes a verdade./ E, ento, no verdade que ele agora se comporta
melhor com relao s coisas que no sabia? /Acho que sim./ Fizemos a ele algum mal
colocando-o em embarao e paralisando-o como faz a torplia? /Acho que no./ Pelo
menos parece que o colocamos em posio mais provvel para encontrar a maneira
como as coisas so. Pois agora, sabendo que no sabe, sentir mais prazer em buscar,
enquanto antes facilmente diante de muitos e freqentemente supunha falar coisas
sensatas; acerca do dobro do quadrado, por exemplo, dizer que necessrio a linha ser
dupla em longitude. /Parece que sim./ Pensas que ele antes tentaria buscar e
compreender aquilo que pensava saber embora no soubesse, antes de ele, convencido
de que no sabe, cair em aporia e desejar avidamente pelo saber? /Acho que no,
Scrates./ Ento ele foi beneficiado por ser paralisado? /Acho que sim."
A filosofia de Plato, embora, em determinados momentos, tenha a pretenso de atingir a
certeza, sob muitos mais aspectos se enquadra dentro desse perfil questionador. Primeiramente,
ela no uma filosofia afirmativa, suas teses no so apresentadas atravs de afirmaes ou de
concluses definitivas; ao contrrio, so apresentadas como hipteses a serem examinadas e
grande parte de sua obra termina em aporia (impasse). O exame se d, alm disso,
dialogicamente, isto , atravs de perguntas e respostas; de modo que tanto as perguntas
quanto as respostas, apesar de escritas, guardem as propriedades da palavra viva e se
distanciem ao mximo das terrveis propriedades da escrita.

Segundo Plato (Fedro 275a-276a), a escrita negligencia a memria e produz o esquecimento

nas almas dos que aprendem; quando se tem o escrito guarda-se muito pouco na alma, pois

recebendo uma grande quantidade de informao, sem instruo adequada, os que esto
aprendendo acreditaro ser muito sbios, quando, na verdade, so, em grande parte, ignorantes
e difceis de se lidar, tendo-se tornado sbios em aparncia, ao invs de sbios de verdade. A
palavra viva, ao contrrio, aquela que animada pela presena humana, por suas entonaes,
pausas, flutuaes de volume, expresses faciais, gesticulaes etc., uma espcie de escrita na
alma.
A filosofia como atitude crtica e questionadora pode ser abordada tambm do ponto de vista da
desconfiana. Alguns filsofos nos ensinam a suspeitar de tudo o que est nossa volta, e isso
envolve no apenas o plano moral, isto , aquele onde formamos nossas opinies, crenas,
dogmas, desejos e iluses, mas tambm o plano da realidade fsica.
Aqui, mais uma vez, podemos citar Plato como o primeiro exemplo bvio de desconfiana da
realidade. Segundo Plato, no devemos confiar em nossos sentidos, pois eles nos enganam.
No devemos observar o mundo atravs dos sentidos, pois estes iro produzir julgamentos que
nem sempre correspondero realidade. Somente a razo pode nos dar clareza.
Observa-se essa desconfiana em inmeras passagens de Plato. No Poltico (277d), ele
compara o conhecimento do homem a um sonho: "Cada um de ns como um homem que

vendo coisas em sonhos acredita conhec-las perfeitamente, mas que ao acordar percebe que
no conhece nada".

Em nenhum outro lugar entretanto como na famosa Alegoria da Caverna (no livro VII da

Repblica), Plato expressa sua desconfiana com relao ao mundo sensvel. Na imagem de
Plato, os seres humanos nascem e crescem nos subterrneos de uma caverna escura e funda.
Acorrentados pelos ps, mos e pescoo, no podem se mover. Atrs deles, uma fogueira
ilumina esttuas de homens e animais que so transportados sobre um muro. A voz dos
carregadores ecoa dentro da caverna. De costas para a luz e de frente para uma parede, os
prisioneiros vem apenas as sombras dos que se movem atrs deles e atribuem a essas

sombras as vozes que ouvem e julgam que isso, que nada mais do que uma projeo sobre a
parede, seja a realidade.
Essa imagem serve para ilustrar nosso estado de ignorncia com relao ao mundo em que
vivemos. Ela mostra que o que supomos ser verdadeiro mera iluso e que um esforo deve ser
dispendido para descobrirmos a verdade (aletheia), pois na sequncia do mito, o filsofo
aquele que se desata das correntes e sai da caverna em direo luz.
No toa que muitos conectam atualmente esse mito a um recente (1999) sucesso
cinematogrfico: Matrix. No filme, entretanto, no Plato o filsofo aludido, mas Ren
Descartes. Voc nunca teve um sonho, Neo, que parecesse a voc absolutamente real? E se

voc jamais conseguisse acordar desse sonho, como iria saber a diferena entre o mundo do
sonho e o mundo real? eis as palavras que o personagem Morpheus dirige ao heri do filme
Neo, quando este descobre que o mundo no passa de uma simulao eletrnica, de uma
imagem virtual criada por mquinas inteligentes para ocupar sua mente enquanto essas mesmas
mquinas sugam seu corpo para obter a energia que ele cria.
E Morpheus vai mais alm, quando Neo conclui que sua vida nada teve de real, pois embora a
questo seja eminentemente filosfica, a resposta de Morpheus parece ser inspirada na fisiologia
moderna: O que real? Como voc define real? pergunta ele a Neo. E em seguida
conclui: Se voc est falando a respeito do que sente, do que cheira, do que pode provar ou

ver, ento real apenas um conjunto de sinais eltricos interpretados pelo seu crebro
O filme contudo parece referir-se no filosofia de Plato mas de Descartes, quando em suas

Meditaes no distingue a vida do sonho:

Ren Descartes (scs. XVI-XVII)
Meditaes. Primeira Meditao:

Todavia devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume
de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes
menos verossmeis, que esses insensatos em viglia. Quantas vezes ocorreu-me sonhar,

durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo,
embora estivesse inteiramente nu dentro do meu leito? Parece-me agora que no com
os olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabea que eu mexo no est
dormente; que com desgnio e propsito deliberado que estendo esta mo e que a
sinto: o que ocorre no sono no parece to claro e to distinto quanto tudo isso. Mas,
pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando
dormia, por semelhantes iluses. E, detendo-me nesse pensamento, vejo to
manifestamente que no h quaisquer indcios concludentes, nem marcas assaz certas
por onde se possa distinguir nitidamente a viglia do sono, que me sinto inteiramente
pasmado: e meu pasmo tal que quase capaz de me persuadir que estou dormindo.
Ren Descartes Meditaes. Cogito ergo sum.

Suporei, pois, que h no um verdadeiro Deus, que a soberana fonte da verdade, mas
certo gnio maligno, no menos ardiloso e
enganador

do

quer

poderoso,

que

empregou toda a sua indstria em enganarme. Pensarei que o cu, o ar, a terra, as
cores, as figuras, os sons e todas as coisas
exteriores que vemos so apenas iluses e
enganos de que ele se serve para
surpreender

minha

credulidade.

(...)

Permanecerei obstinadamente apegado a

esse pensamento; e se, por esse meio, no
est em meu poder chegar ao conhecimento
de qualquer verdade, ao menos est ao meu alcance suspender meu juzo. (...) Mas que
sei eu, se no h nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da
qual no se possa ter a menor dvida? No haver algum Deus, ou alguma outra
potncia, que me ponha no esprito de tais pensamentos? Isso no necessrio; pois
talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu ento, pelo menos, no serei
alguma coisa? Mas j neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no
entanto, pois que se segue da? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos

que no possa existir sem eles? Mas eu me persuadir de que nada existia no mundo,
que no havia nenhum cu, nenhuma terra, espritos alguns, nem corpos alguns; no me
persuadi tambm, portanto de que eu no existia? Certamente no, eu existia sem
dvida, se que eu me persuadi, ou apenas pensei alguma coisa. Mas h algum, no sei
qual, enganador, muito poderoso e muito ardiloso que emprega toda a sua indstria em
enganar-me sempre. No h pois dvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por
mais que me engane, no poder jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu
pensar alguma coisa. De sorte que, aps ter pensado bastante nisto e ter examinado
cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim, concluir e ter por constante que esta
proposio, eu sou, eu existo, necessariamente verdadeira, todas as vezes que a
enuncio ou que a concebo em meu esprito.
4. A Filosofia como sistema de pensamento

A filosofia como sistema de pensamento prxima filosofia como viso de mundo, mas tem um
carter mais sistemtico, mais elaborado, visando desenvolver um saber sistemtico, isto
integrar as vrias questes da filosofia, da cincia dos vrios tipos de saber em um todo
articulado em que as vrias respostas so vistas como diferentes aspectos do mesmo tipo de
problema.
Pode-se dizer que sob vrios aspectos a filosofia como sistema aproxima filosofia e cincia. A
idia de sistema consiste de uma concepo segundo a qual h uma relao entre as vrias
partes de um todo, que embora diferentes, se complementam e se integram, remetendo umas s
outras.
Talvez a primeira concepo de filosofia como sistema se encontre em Aristteles, cuja obra
consiste de uma espcie de verdadeira enciclopdia do saber da poca, indo desde as questes
mais gerais sobre a natureza da realidade e de nosso conhecimento dela, que seriam
tipicamente filosficas, isto , de carter mais geral e abstrato, at questes sobre o
conhecimento do mundo concreto.
Aristteles escreveu muitos tratados de biologia (embora naquela poca no se usasse ainda
esse nome), analisou na Potica a tradio literria grega, tanto o teatro quanto a poesia,
discutiu na Poltica as vrias formas de governo e seus fundamentos, e se preocupou tambm

com questes metodolgicas na Lgica. Mas, na concepo aristotlica, esses no so apenas

vrios tipos de conhecimento que se sucedem, mas formam parte de um todo, que o sistema
do saber, e se organizam de acordo com princpios gerais.
Aristteles distingue trs grandes reas, o saber terico, em que temos basicamente a cincia,
os vrios tipos de conhecimento; o saber prtico, em que estabelecemos os princpios segundo
os quais fazemos alguma coisa e tomamos decises, incluindo a tica e a poltica; e o saber

produtivo, segundo o qual o ser humano produz ou cria, tal como na poesia. Portanto, o sistema
inclui todas essas partes, mas as divide segundo certos princpios.
Um dos mais importantes exemplos de filosofia como sistema encontra-se na Idade Mdia no
pensamento de So Toms de Aquino (1225-1274), em seu livro Suma Teolgica. O livro foi
composto entre 1266 e 1274, e inspirado na obra de Aristteles. A idia da suma consiste
precisamente de uma sntese das grandes questes, no caso de So Toms, filosficas e
teolgicas. Parte da questo da existncia de Deus e de como se pode prov-la pela razo,
examina a criao do mundo por Deus e em seguida examina o mundo (discutindo, por exemplo,
a causalidade), chegando at ao ser humano e sua natureza. Os temas da Suma esto portanto
concatenados em uma viso sistemtica, que parte das questes mais gerais e procura encadelas at chegar s mais especficas, discutindo em cada parte os principais argumentos a favor e
contra as teses examinadas.
No perodo moderno (sc.XIX), o grande sistema da filosofia foi o de Hegel, que busca
igualmente discutir as diferentes formas de saber humano, mas analisa tambm a sua formao
em um processo histrico, busca entend-lo como realizao de um determinado objetivo,
segundo o qual a conscincia humana busca inicialmente conhecer o real, mas em seguida tenta
encontrar outras formas de alcan-lo, ou atingi-lo como a atravs da arte, procurando superar
a separao entre a mente e a realidade que o conhecimento parece pressupor.
A grande inovao do sistema de Hegel em relao ao de Aristteles, com quem partilha a
preocupao de integrar diferentes formas de experincia humana, da cincia arte e poltica,
consiste no fato de Hegel fazer uma anlise histrica das vrias etapas de formao da cultura
humana, desde o surgimento com os Assrios e Babilnios, at o seu momento presente, a
Europa do sculo XIX.

A partir de Hegel, a filosofia reconheceu a importncia da anlise histrica de sua formao,

considerando cada etapa como etapa de um processo mais amplo, e discutindo as vrias
contribuies dessas etapas para a formao da tradio. Hegel aponta tambm para as crise e
transformaes que ocorrem ao longo dessa tradio, que em grande parte resulta de conflitos e
rupturas em seus diferentes momentos.
5. A Filosofia como busca pelo autoconhecimento

A filosofia como busca do autoconhecimento est ligada a uma concepo cujo objetivo principal
remonta s palavras do orculo retomadas por Scrates Conhece-te a ti mesmo, isto , reflita
sobre si mesmo, entenda suas preocupaes, limitaes, desejos, necessidades e, atravs dessa
busca, chegue a um amadurecimento, a uma atitude mais reflexiva, mais equilibrada.
Scrates:
Conhece-te a ti mesmo

A necessidade de situar o pensamento em relao

experincia de vida do indivduo uma exigncia do
prprio Descartes enquanto filsofo que em vrias de
suas obras, principalmente nas Meditaes e no Discurso
do Mtodo, nos apresenta uma justificativa autobiogrfica
para as idias que expe, procurando explicar como e
porque chegou a elas. Trata-se de algo inusitado na
tradio filosfica, pelo menos com esta importncia e
centralidade, talvez com a exceo das Cartas de Plato
e das Confisses de Santo Agostinho, principalmente pelo
sentido que Descartes d a estes elementos biogrficos que nos permitem como que refazer o
percurso de seu pensamento. O sujeito pensante entra em cena, a autoridade da obra passa a
ser dada no mais pela escola a que pertence ou pela tradio em que se encontra, mas pelo
testemunho de seu autor, como um processo de reflexo e de autoconhecimento, que para ele
o ponto de partida do trabalho do filsofo.
Diz Descartes no Discurso do Mtodo (1a.parte): Terei a satisfao de mostrar neste discurso

os caminhos que segui, e de apresentar minha vida como em um quadro. significativo que

Descartes escreva quase sempre na primeira pessoa do singular, em um estilo muito diverso do
tratado clssico, abstrato e impessoal. E em seguida, acrescenta:
Desde a infncia nutri-me das letras, e, por me haver persuadido de que por meio
delas se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que til vida,
sentia um imenso desejo de aprend-las. Mas, logo que terminei todos esses anos
de estudos (ao cabo dos quais se costuma ser recebido na classe dos doutos),
mudei inteiramente de opinio. Achava-me com tantas dvidas e indecises, que me
parecia no ter obtido outro proveito, ao procurar instruir-me, seno o de ter
revelado cada vez mais a minha ignorncia. E, no entanto, eu estudara numa das
mais clebres escolas da Europa, onde pensava existir homens sbios se que
existiam em algum lugar da Terra.
Examina portanto a sua formao e conclui que embora tenha recebido uma boa educao, isso
foi insuficiente. Prope ento:
Eis a razo pela qual, to logo a idade me permitiu sair da sujeio de meus
preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras. E decidindo-me a no
mais procurar outra cincia, alm daquela que pudesse existir em mim prprio, ou
ento no grande livro do mundo, passei o resto de minha mocidade viajando [...]
recolhendo diferentes experincias, testando a mim mesmo nas armadilhas que a
sorte me proporcionava e, por toda a parte, fazendo uma tal reflexo sobre as
coisas que se me apresentavam, para que pudesse tirar delas algum proveito.
(1a.parte).
Este o sentido do subjetivismo de Descartes, a busca no indivduo, no sujeito pensante, da fonte
do conhecimento: Mas depois que, por alguns anos, apliquei-me a estudar no livro do mundo, e

a procurar adquirir alguma experincia, tomei um dia a deciso de estudar tambm a mim
prprio, e de empregar todas as foras de meu esprito na escolha dos caminhos que devia
seguir (id. ibid.). O conhecimento da natureza, a leitura do livro do mundo, s pode ter valor
se for precedido e acompanhado do autoconhecimento, da reflexo sobre o sujeito do
conhecimento ele prprio.

Esse processo consiste em um exame de sua prpria mente, como diz Descartes a um de seus
interlocutores, o padre Bourdin (Resposta s Stimas Objees s Meditaes Metafsicas):
Se vs tivsseis um cesto de mas dentre as quais vrias estivessem
podres, contaminando assim as restantes, o que fazer seno esvazi-lo todo
e tomando cada ma, uma a uma, recolocar as boas no cesto e jogar fora
as ms.
A mente como este cesto e devemos portanto esvaziar-nos de todos os nossos conhecimentos
e crenas j que dentre eles h alguns que no so confiveis, mas no sabemos quais at
examin-los todos. Vemos assim que a filosofia como autoconhecimento, nesta concepo de
Descartes, se aproxima da atitude crtica e questionadora, consistindo mesmo no meio pelo qual
se adquire essa atitude.
Uma outra filosofia do autoconhecimento o Existencialismo. Chamamos existencialistas todas as
filosofias que afirmam o primado da existncia sobre a essncia, isto , que supem que a
existncia precede a essncia. O existencialismo nasceu com o filsofo dinamarqus Sren
Kierkegaard (1813-1855), mas seu mais clebre representante foi o filsofo francs Jean-Paul
Sartre (1905-1980) e influenciado por ele o filsofo argeliano Albert Camus (1913-1960).