O Sistema de Epicuro
O Sistema de Epicuro
O Sistema de Epicuro
O sistema de Epicuro
dos elementos primordiais ao cultivo de si para a vida feliz
Dissertao de Mestrado
Dissertao apresentada como requisito parcial para
obteno do grau de Mestre pelo Programa de Psgraduao em Filosofia do Departamento de Filosofia
da PUC-Rio
Orientador: Prof. Dr Irley Franco
Rio de Janeiro
Abril de 2009
Livros Grtis
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O sistema de Epicuro:
dos elementos primordiais ao cultivo de si para a vida feliz
Ficha Catalogrfica
CDD: 100
Agradecimentos
minha orientadora Irley Franco pela parceria para realizao desta dissertao
me orientando, e pela receptividade em seus cursos.
minha querida professora Elena Garcia, que me acompanha com carinho e
preciosas orientaes desde minha graduao.
professora Barbara Botter, que na fase decisiva desta pesquisa contribuiu com
idias lcidas e estmulo revigorante.
Aos professores do programa de Ps-Graduao em Filosofia da PUC-Rio, com
os quais muito aprendi.
Aos colegas do programa de ps-graduao que muito contriburam com idias e
apoio.
Din e Edna por todos os auxlios prestados.
Ao amigo Alex pela ajuda crucial na reta final da pesquisa.
Agradecimentos especiais minha querida famlia, Francisca, Joo e Moiss,
sempre estimulando, e minha noiva Celine pelo seu apoio, confiana e idias.
Um agradecimento especial PUC-Rio pelas oportunidades oferecidas e
CAPES pela bolsa que me foi concedida.
Por fim, a todos que contriburam ao longo desta pesquisa.
Resumo
Palavras-chave
Epicuro; atomismo antigo; teoria do conhecimento; felicidade; prazer.
Abstract
Keywords
Epicurus; ancient atomism; theory of knowledge; happiness; pleasure.
SUMRIO
1. Introduo
12
2.
A Fsica
16
2.1
16
2.2
18
2.3
19
2.4
O desvio
21
2.5
25
2.6
A alma
26
3.
A Cannica
30
3.1
Do conhecimento
30
3.2
O processo de conhecimento
30
3.3
34
3.4
Sobre a linguagem
38
3.5
39
3.6
Linguagem e conveno
41
4.
A tica
44
4.1
O legado do tempo
46
4.2
48
50
4.3
54
56
59
62
66
4.4
O prazer epicreo
68
4.5
4.6
75
O hedonismo epicreo
78
4.6.1 1 Tese
80
4.6.2 2 Tese
82
4.6.3 3 Tese
84
4.6.4 4 Tese
85
4.6.5 5 Tese
87
5.
Epicuro e o cultivo de si
90
5.1
O retiro do sbio
91
5.2
O cultivo de si e os exerccios
93
5.3
A physiologia
95
5.4
Logisms e phrnesis
96
5.5
A Parrhesia
98
5.6
A amizade
100
5.7
A memria
103
6.
Concluso
106
7.
Bibliografia
110
7.1
110
7.2
Textos exegticos
111
11
1
INTRODUO
Esta a passagem mais controvrsa e espetacular do pensamento epicreo, pois, assumir o prazer
como princpio e fim da vida feliz o situa como um hedonista radical e, neste ponto h uma
reduo de seu projeto filosfico e, que tentaremos combater nesta dissertao; mas tambm o
coloca como um filsofo da felicidade e da razo que organiza um sistema que valoriza a vida e o
reconhecimento dos verdadeiros prazeres. Ver a passagem em: EPICURO. Carta sobre a
felicidade. Traduo de lvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. So Paulo: UNESP, 2002, p. 4345.
2
Medo da morte e dos deuses, alm de perturbaes e dores decorrentes do mau agir.
12
destacada produo filosfica dos sculos V e IV a.C, mas nessa comparao
incorrem deslizes, uma vez que, muitas vezes, so desconsideradas inmeras
transformaes que abalam a vida do homem grego.
Apresentou-se muitas vezes o perodo helenstico da filosofia grega como uma fase
de decadncia da civilizao grega corrompida pelo contato com o Oriente. Vrias
causas podem explicar esse juzo severo: em primeiro lugar, o preconceito clssico
que fixa a priori um modelo ideal de cultura e decide que somente a Grcia dos
pr-socrticos, dos trgicos e, a rigor, de Plato merece ser estudada; em segundo
lugar, a idia segundo a qual, com a passagem do regime democrtico ao regime
monrquico e o fim da liberdade poltica, a vida pblica das cidades gregas ter-seia extinguido. Os filsofos, abandonando o grande esforo especulativo de Plato e
Aristteles e a esperana de formar homens polticos capazes de transformar a
cidade, ter-se-iam resignado ento a propor aos homens, privados da liberdade
poltica, um refgio na vida interior. Esta representao da poca helenstica, que
remonta, creio, ao incio do sculo XX, continua a falsear a idia que se faz da
filosofia deste perodo 3.
e o que
Hadot faz referncia ao estudo The Failure of Nerve de G. Murray (In: Four Stages of Greek
Religion, 1912), observando que: quase todos os historiadores da filosofia posteriores a Murray
(Fustigire e Brhier, por exemplo) esto contaminados por esse preconceito.
Ver em: HADOT, Pierre. O que filosofia antiga. Traduo de Dion Davi Macedo. So Paulo,
Edies Loyola, 1999. p. 140 141.
4
Que para Epicuro o prazer, e sobre isso veremos nos prximos captulos como este filsofo
desenvolve seu hedonismo, bem como as caractersticas que o particularizam.
13
deixar de pensar na filosofia epicrea, como, tambm, uma resposta positiva a
crise de seu tempo.
O sistema epicurista tripartido fundava-se a partir da exigncia de uma
completa compreenso da natureza (Fsica; tema do primeiro captulo desta
dissertao). Para esse projeto, Epicuro funda uma ontologia na direo do
inferior (do invisvel) ao superior (visvel e material). Sua fsica econmica,
fundada em dois elementos, tornaria possvel a compreenso total do
macrocosmo: a constituio do universo e a explicao de toda sorte de
fenmenos.
O entendimento da fsica indicaria os passos para compreender os justos
critrios para a apreciao das imagens, dos fenmenos e das sensaes para
assim transform-las em idias e discursos que se apresentam aos nossos
sentidos (Cannica; tema do segundo captulo). Essas idias e discursos seriam a
base de apoio para o homem no enfrentamento de seus problemas existenciais,
citados anteriormente, e em suas aes cotidianas
deseja libertar o homem
Invertemos a ordem que Batista (2003) exps em sua pesquisa, no como uma crtica, mas como
um referencial prprio para nossa dissertao, pois vemos que o projeto de Epicuro tanto para
sustentar sua tica, como para assumir a via fsica como alternativa via categorial, deveria seguir
essas etapas. A esse respeito ver: BATISTA, Romulo Siqueira. O epicurismo e as imagens do
invisvel: as relaes entre a fsica e a teoria do conhecimento. (Dissertao). Rio de Janeiro, 2003.
6
Libertao de todos os infortnios que naturalmente podem se suceder por suas ms escolhas,
mas, principalmente, uma libertao das iluses: iluses de felicidade, de prazer, de amizade, de
ser sbio...
7
Como objetivo central do captulo citado, analisar-se- o que Epicuro concebe como o fim para a
vida feliz. Dever-se- tambm esclarecer o que ele entende por prazer, chegando assim a uma justa
apreciao sobre seu hedonismo, oportunamente aproximando Epicuro aos pensadores de seu
tempo e as antecipaes de sua doutrina do prazer vista nos filosofos clssicos.
14
15
2
A Fsica
2.1
tomos e vazio: As bases para a fsica e a cannica
Certa vez, quando ainda jovem, Epicuro teria respondido a seu professor,
que lhe perguntara sobre a origem do universo, que nada surge do nada 8. Essa
reflexo, j conhecida entre os gregos, viria desde seus primeiros mitos que
mostravam que no incio tudo era Caos. Essa crena ensinava aos homens que
tudo sempre houve e que no cosmos sempre estiveram presentes todos os
elementos possveis para sua constituio, mas dispostos numa massa catica e
desmedida, gerando assim, uma gama de questionamentos e hipteses que
inauguram uma filosofia cujo centro a physis.
Perguntar sobre a origem do universo como do Caos pde-se chegar
Ordem e sobre os elementos primordiais foi a questo central da filosofia dita
pr-socrtica e parece tambm ter sido o estopim para o despertar de Epicuro, que
se inspirou da teoria atomista de Demcrito, um contemporneo de Scrates, ou
mesmo antes, com Leucipo.
Leucipo, e de forma mais consistente, Demcrito 9, teriam afirmado que
tudo existe atravs da combinao de tomos e vazio, o que num primeiro
momento confere a essa teoria um status econmico, pois, de fato, com dois
elementos, Demcrito teria erigido um sistema que se arvorava em explicar tudo,
ou quase tudo, sobre a physis e sobre o prprio homem. Essa teoria sustentava que
os tomos seriam a ltima partcula indivisvel da matria, que existiriam em
nmero e formas incontveis, sendo tambm imperceptveis. Os agrupamentos
8
16
atmicos dariam origem a todas as coisas que existem e inversamente, sua
separao representaria a morte ou corrupo dos compostos. Essas caractersticas
dos tomos juntamente com seus movimentos e suas inumerveis combinaes,
dariam origem ao Cosmos e sua pluralidade, a todos os seres e objetos, chegando
por fim s sensaes 10. Ao que tudo indica, essa teoria fascinou Epicuro, fazendoo imaginar um princpio prximo ao homem, um princpio palpvel que se lhe
afigurou como uma alternativa frente quilo que ele teria aprendido em sua dita
iniciao platnica, alm de mostrar-se como uma via segura diante da mitologia,
teogonias e cosmologias da cultura grega. medida que avanava em sua
reflexo sobre a physis, percebeu que sua ontologia poderia tambm saciar os
anseios de sua poca.
Logicamente, seria ingnuo sustentar que Epicuro teria pensado num
sistema somente para apaziguar os temores do homem. Mas foi inegvel o apelo
que sua teoria conseguiu nesse sentido porque eliminara qualquer transcendncia,
retirando o peso do destino e do determinismo, dado que sobre estas pedras
repousavam algumas das maiores inquietaes dos homens.
Ao enfrentar os temores (da morte, do destino e dos deuses), Epicuro
concebia uma filosofia teraputica, libertadora, segundo a qual o homem deveria
primeiramente conhecer a physis e a si prprio. A physiologia proporcionaria
assim ao homem uma autarkia de si e, nesse sentido, orientar-se-ia sua tica.
Conhecer o mundo e a si mesmo seriam os primeiros passos para fixar a busca por
um saber, e mais adiante auxiliar o homem em seu agir e em sua busca para a
felicidade respondendo sobre o que a vida feliz, questo tida como tema central
em todas as escolas filosficas da antiguidade.
Pois, deve-se notar que as grandes escolas anteriores aos Jardins de Epicuro
(como, por exemplo, a Academia e o Liceu) buscavam da mesma forma dispor
aos cidados uma filosofia para a vida sbia assim, no se pode conferir este
mrito apenas aos epicuristas , mas seus objetivos se focavam mais numa
salvao da plis, enquanto a filosofia do Jardim visava antes a paz do homem e
sua felicidade ntima. Destarte, a compreenso dos princpios da doutrina epicrea
10
Nossas sensaes se originariam nos movimentos atmicos pelo modo como os tomos que
compem nosso corpo e sentdos, captam os tomos externos de acordo com cada situao e
condio da natureza.
17
seria a base para o homem conhecer seu mundo e a si mesmo, e
conseqentemente, desfrutar de uma vida bem-aventurada.
Logo, partindo da Fsica, a tarefa desta dissertao ter por objetivo mostrar,
primeiramente, como a filosofia de Epicuro valorizou a felicidade do homem e,
por conseguinte, a busca pelo prazer em contraposio busca da felicidade nas
escolas anteriores, voltadas para a plis, objetivo secundrio.
2.2
A doutrina e a elaborao dos princpios
11
, Wolff
12
A chamada via interdita aquela que aponta para o grande risco, especulando como possvel o
ser e o no ser.
12
WOLFF, Francis. Dois destinos possveis da ontologia: A via categorial e a via fsica. Analytica.
V. 1, n 3, 1996. Rio de Janeiro: UFRJ, p. 202
18
e, que fixaria um materialismo radical. Para escapar desta cilada, a teoria carecia
de dois termos fundamentais: o tomo e o vazio. Deve-se perceber o cuidado
desses atomistas (Demcrito e Leucipo) para com Parmnides, pois, ao afirmarem
o vazio, no pretendiam defender o no ser (aquilo que no existe), mas um certo
no ser, um princpio que garantisse o movimento dos tomos e a gerao dos
compostos, bem como a corrupo dos mesmos, dado que a no aceitao desse
princpio invalidaria qualquer projeto de uma fsica.
Sustentando estes dois elementos, o abderiano disse num de seus
fragmentos: na verdade, no existem as cores, os cheiros, os corpos... e toda sorte
de fenmenos sensveis. Na verdade s existiriam tomos e vazio
13
(esses dois
2.3
A elaborao dos princpios
Coube a Epicuro continuar o esforo dos primeiros atomistas. Para isso, foi
preciso assumir que tudo so tomos. Os tomos representam necessariamente
tudo o que material e mesmo aquilo que nos imperceptvel, mas possui
materialidade, como um odor ou um som. Contudo, no se poderia admitir apenas
a existncia dos tomos. Se houvesse somente tomos, assumindo assim apenas o
ser, ter-se-ia que declarar a existncia dos mesmos como um aglomerado, como
uma massa de tamanho e forma inimaginvel. Logo, fazia-se urgente outro
princpio, que possibilitasse o movimento.
13
19
encontrar-se em seus choques. Ainda sobre o vazio, Wolff
14
o analisa como de
existncia real e atual. Ora, existe como vazio intersticial para que sejam possveis
a multiplicidade das coisas e o movimento. Este autor 15 observa ainda que acusar
os atomistas de parricdio, pode ser um tanto precipitado. Pois enquanto os eleatas
defendiam que no h vazio, visto que o vazio no , e, assim, no h movimento;
os atomistas usavam o critrio da sensao para derrubar a tese eleata, dado que o
movimento visvel, culminando na existncia do vazio. Por fim, a partir dos
prprios argumentos eleatas, os atomistas inferiam o vazio, bastando para isso
reverter os fragmentos 2 e 3 do poema de Parmnides, abaixo transcritos:
14
15
Ibid,. p. 206.
16
18
20
Ora, se tudo que pensvel , o vazio . Pois, se o ser tido como pleno, o
no ser o vazio e, para o pensamento, o vazio tido como um lugar onde os
corpos podem estar. Este no-ser do vazio seria, portanto, um no-ser oposto
idia de negao, de no existncia. Ele pensvel
19
e, existe como a
2.4
O DESVIO
19
Demcrito afirma aqui que: o nada existe tanto quanto o alguma coisa.
BORNHEIM, G. op. cit., p. 113, Fragmento 156.
Ver em:
21
A mudana significativa neste atomismo viria com as contribuies de
Epicuro e, posteriormente de Lucrcio. Epicuro, o filsofo do Jardim, manteve os
elementos primordiais, implementando detalhes quanto ao movimento dos
tomos. Pois, se para Demcrito os tomos possuam tamanhos e formatos
diversos, Epicuro diz ainda que os tomos possuem pesos que lhes so
particulares. Isso explicaria e favorecia uma inata potncia de leve desvio de
trajetria quando do seu movimento de queda vertical no vazio idia do
clnamen ou declinatio que Lucrcio
20
22
sucessivos se produzissem, era necessrio que os tomos se desviassem na sua
direo natural de queda.
Ns no dispomos do texto de Epicuro que faz meno desta declinao, e ns no
sabemos se ele mesmo defendia esta idia. possvel Nausiphane seja o
idealizador, mas ns a encontramos de todas as maneiras nas obras dos epicuristas
posteriores. Com Lucrcio a declinao tem o nome de clinamen e destinada a
explicar os movimentos espontneos dos seres vivos. O necessitarismo de
Demcrito, que reconhece a necessidade e o acaso, se encontraria arruinado pela
hiptese da teoria da declinao, e ela permite compreender a liberdade humana
desde seus fundamentos no seio da teoria fsica. 22
Como destacaram Ottaviani, e Wolff mais acima, deve-se dizer que o desvio
foi marcadamente a grande diferena que levou o epicurismo a tomar caminho
oposto aos primeiros atomistas, e incorporar o desvio seria uma tentativa de
substituir as noes de tych e anank, pelo menos no que toca ao homem e aos
seres vivos, pois na natureza o movimento continuaria a depender, por um lado,
da necessidade; e por outro, o surgir dependeria do acaso. Logo, se Epicuro neste
sentido fere o princpio de causalidade explicando a origem do movimento como
sendo eterno (contudo Leucipo e Demcrito nada explicaram nesse sentido) para
fundamentar a necessidade e o acaso, dogmatizando sua fsica; inversamente,
podemos pensar que talvez o intuito de Epicuro fosse muito mais voltado a
compor seu projeto tico que, propriamente, aprofundar questes controversas e
inacabadas desde Leucipo.
Neste sentido, a fsica seria na verdade a primeira parte do projeto epicreo
de uma filosofia curativa voltada para a felicidade. Isso porque, essa fsica quando
assume o desvio, permite ao homem uma compreenso da liberdade que reside
nele mesmo e, por conseguinte, traz tona o tema norteador sobre o que a vida
feliz, aproximando a liberdade com o problema do saber conduzir-se frente a uma
realidade poltica adversa, ao desconhecimento do mundo e dos verdadeiros
prazeres que levam vida feliz.
De acordo com o exposto, Farrington, atento, reconheceu a Marx como o
primeiro a apreciar essa persistncia de Epicuro, notadamente interessado pelo
microcosmo, Homem (e sua liberdade de vontade), do que pelo macrocosmo,
Natureza.
22
OTTAVIANI, D. Premires leons sur les trois Lettres dEpicure. Paris: Presses Universitaires
de France, 1998. p. 14 -15.
23
(...) Dotar cada tomo de peso, por direito prprio, equivalia a dar-lhe uma
existncia separada; dot-lo com o poder de desviar equivalia a capacit-lo a fugir
do domnio da necessidade fsica. Assim, o atomismo, que foi inventado por
Demcrito para dar uma base fsica, foi adotado por Epicuro para servir de
fundamento tica.
A explicao de Marx, da relao entre o atomismo de Demcrito e o de Epicuro ,
indubitavelmente, correta; e embora no melhore a nossa opinio de Epicuro como
cientista, situa, numa luz clara, seu papel como filsofo tico e reformador. 23
24
Epicuro - And if there were no space (which we can also void and place and intangible nature),
bodies would have nothing in which to be and through which to move, as they are plainly seen to
move. LAERTIUS. op. cit., Carta Herodoto 40.
Igualmente, Lucrcio acompanha o mestre: - se no houvesse o lugar, o espao a que chamamos
vazio no teriam os corpos onde estar colocados, nem se poderiam de modo algum mover para
qualquer parte. LUCRCIO. op. cit., I 425.
24
e nos homens; ou ento, a uma radical postura, aceitando que tudo sempre existiu,
negando o movimento, e que tudo poderia nascer de tudo a qualquer momento,
uma vez que no h uma origem que explique a gerao e a corrupo das coisas.
Crticas parte, o atomismo de Epicuro orientou-se ao equilbrio, tanto da
natureza, quanto do homem.
Sua compreenso fsica mostra uma natureza cclica, tendo nela mesma a
capacidade ordenadora. Quanto ao homem, a physiologia, permite primeiro um
desvelamento do indivduo como ser autnomo e liberto das amarras do destino; e
segundo, como veremos melhor no prximo captulo, permite a total compreenso
da composio do homem e de suas sensaes
25
estudo da Cannica. neste sentido que seu atomismo se volta para o equilbrio,
pois o homem encontra-se como pleno conhecedor de si.
2.5
Sobre a estabilidade da natureza e os deuses.
26
importante notar o papel de destaque que a sensao ocupa no sistema epicreo, pois, a
partir dela que possvel intuir o vazio, garantindo assim, a fsica. Alm disso, mostrar-se-
adiante que as sensaes so tambm o ponto de partida para o conhecimento.
26
HIRSCHBERGER, Johannes. Historia da filosofia na antiguidade. 2 ed. Traduo e prefcio
de Alexandre Correia. So Paulo: HERDER, 1969. Ver p. 290.
25
desvio para justificar a liberdade da vontade e do agir
27
28
2.6
A alma
27
E para um projeto hedonista seria necessrio preservar a vontade eliminando qualquer fatalismo.
28
em:
Lcrcio insinua essa inteno de Epicuro libertar os homens desses temores. Ver
LUCRCIO. op. cit., I 146.
29
26
animao com graus menores e maiores de inteligncia. Esses seres possuem essa
inteligncia, pois, participam em sua constituio, alm dos tomos formadores da
matria corporal, tomos extremamente sutis, com tamanhos, velocidade, peso e
movimento distintos e particulares, que, por afinidade com cada ser, passa a
habitar seu interior. Estes tomos, mesmo agrupados, permanecem imperceptveis
e habitam o interior dos seres, sendo seu princpio de movimento. Deste modo,
um corpo sem esta alma se assemelharia a uma pedra, sujeito apenas ao desgaste
30
31
corpo, obedece aos impulsos do esprito, sendo nossa poro sensitiva, aquilo
atravs do que somos capazes de experimentar, de conhecer, de sentir prazer e
dor, logo, o esprito como que um princpio autnomo, pensante, emotivo e
movente. Logo, conclui-se que a alma, sob certo prisma, no apenas seria o
princpio energtico do corpo, que o anima, mas tambm ncleo de impulso e
movimento, e ainda nela que se d todo o projetar do pensamento 32 (ep
ibolaj
th dianoia)) para alm das sensaes.
No se pode esquecer que a alma para Epicuro material. Para Epicuro a
alma existe com o corpo e, na morte deste, a mesma se desfaz, se desagrega
perdendo todas as caractersticas e qualidades que possua enquanto alma que
30
H o desgaste tanto pelo fato do composto estar em contato exterior com outros tomos, mas
tambm porque em todo composto existe tambm o vazio, mesmo os compostos mais resistentes
como as pedras (e isso se observa como as pedras absorvem gua, ou seja, a gua nesse exemplo
penetra nos vazios que constituem a formao da pedra, contribuindo para sua degenerao). Nisso
se observa dois movimentos, externos e internos aos objetos.
31
BATISTA, Romulo Siqueira. Lucrcio e a natureza das coisas: entre o acaso e a necessidade
(Tese). Rio de Janeiro: PUC, 2007, p. 131.
32
27
habita um corpo. Forschner 33 diz que apenas os corpos efetuam e sofrem algo
(...) A alma humana representa as funes de atuar e sofrer. Nesse sentido
podemos tambm citar Silva 34 - Se a alma corprea mortal, e se dissolve com
a morte. Por isso A perda da alma tambm a perda da gerao da energia do
corpo.
E assim, a exemplo da morte do corpo, a alma ao morrer se espalha no
espao, resguardando a cada tomo formador apenas aquilo que lhe
fundamental, ou seja, suas caractersticas prprias imutveis: (...) logo que se
dissolve inteiramente o corpo, a alma se dissipa, e disseminada perde a sua fora e
os seus movimentos, de tal modo que ela tambm se torna insensvel. 35
Assumindo essa tese, Epicuro mantm a unidade do sistema no mundo da
physis, no havendo necessidade de assumir a imortalidade da alma bem como
uma necessria reminiscncia; e, por outro lado, Epicuro anula as lacunas sobre a
origem das coisas e dos seres; para ele, os corpos e as almas que se desfazem
espalhando seus tomos no espao daro origem a novos seres, dado que esses
mesmos tomos estaro participando de novos compostos, tendo em vista a
afinidade dos tomos entre si.
Todo esse quadro confere um valor inestimvel vida. Epicuro pretendia
em sua physiologia uma compreenso de todos os fenmenos. Pretendia uma
forma de fundar um conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo capaz de
eliminar, ou ao menos apaziguar, todos os sofrimentos e medos (vistos
anteriormente) que afetam e impedem a existncia feliz, alm de exaltar a
liberdade humana valorizando a existncia atual e seus verdadeiros prazeres. Seu
sistema deve explicar ainda a aquisio do conhecimento a partir de critrios
confiveis, decorrente da relao dos diversos complexos atmicos, como
veremos no captulo seguinte. Isso porque, se s h uma vida e a finalidade dela
33
SILVA. Markus Figueira da. Epicuro sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumar;
Natal: UFRN. 2003, p. 39-40.
35
EPICURO. Antologia de textos de Epicuro. In: Epicuro, Lucrcio, Ccero, Sneca, Marco
Aurlio. Traduo de Agostinho da Silva. So Paulo: Abril S.A., 1973. p. 25
28
deve ser a felicidade
36
36
Como j foi visto na introduo desta dissertao, o prazer, elo do sistema epicreo, o
princpio e o fim da vida feliz.
29
3
A Cannica
3.1
Do conhecimento
3.2
O processo de conhecimento
30
O conhecimento se daria naturalmente na relao de contato de qualquer ser
capaz de sentir e imprimir as sensaes sentidas. A nfase sensualista no processo
da formao do saber daria margem segura a afirmar que um determinado ser
sensvel e com capacidade de organizar, classificar e projetar informaes poderia
conhecer tudo aquilo que o circunda.
Para Epicuro, todo o conhecimento tem sua base nas sensaes (aisqhsij)
e impresses dos sentidos (fantasia)
37
responsvel por isto. O corpo humano captaria por meio dos sentidos todo o
manifestar dos fenmenos, e a alma, atravs dos mesmos, no contato com o objeto
percebido, produziria uma serie de impresses.
Digenes
38
39
40
37
38
39
STRIKER, Gisela. Essays on Hellenistic epistemology and ethics. NY, Cambridge University
Press. 1996, p. 79-80.
40
Neste caso traduziramos alhqej no como verdade, mas como realidade.
31
pode sobrepujar a outra, ou seja, vale dizer que todas so verdadeiras. Por
conseguinte, o erro ou falsidade diz respeito ao discurso que se faz, e o
conhecimento verdadeiro acontece na medida em que o pensamento analisa,
classifica, organiza e revisa as impresses dos sentidos. O exemplo de Reesor
41
Quando um homem v uma torre de uma certa distncia, sua impresso revela a
torre como pequena e arredondada, mas quando ele v a mesma torre de um
alcance mais prximo, sua impresso revela a torre como grande e quadrada.
Ambas as impresses so verdadeiras.
Deste modo, cada som, palavra, imagem, objeto captados pelos sentidos
incorreriam na alma pr-noes gerais, captadas unicamente uma vez e naquele
instante. Moraes
42
41
REESOR, Margaret. Anaxagoras and Epicurus. In: ANTON, John & PREUS, Anthony (Org.)
Essays in ancient Greek philosophy. v. II. NY: State University of New York, 1983, p. 97.
42
MORAES, Joo Quartim de. Epicuro: As luzes da tica. 1. ed. So Paulo: Moderna, 1998
(Logos), p. 30.
43
GLIDDEN, D. K., Epicurean prolpsis. In, ANNAS, Julia (Org.). Oxford studies in ancient
philosophy. v. III. Oxford University Press, 1985, p. 183.
32
Por exemplo, a imagem de um cachorro imprimiria na alma uma prolpse.
Ao v-lo novamente reforaria essa pr-noo. Contudo, a percepo de outros
cachorros, de outras raas, traria uma srie de dvidas pr-noo inicial. A
repetio das vrias raas de cachorro levaria a uma definio slida da idia de
cachorro, vista a capacidade da alma de analisar, ordenar percepes e torn-las
pr-noes. Desta maneira, podem-se entender essas prolpses como um arquivo
de conceitos gerais sempre disponveis ao homem. Da mesma forma que o gosto
de uma bebida ter sensaes distintas para um homem doente e um sadio 44; ou
da mesma forma que ao ver um remo na gua, o remo parece um instrumento
curvado e retorcido, e ao sair da gua tem sua aparncia reta e plana; deve-se
perguntar: nesses casos, h uma percepo verdadeira e outra falsa? Ou para a
formao das idias necessrio o erro e verificao? Na verdade, no h erro. H
no mximo, uma precipitao do discurso que busca a verdade. Um remo aparece
curvado e assim sempre ser enquanto estiver na gua; por conseguinte, esse
discurso no ser falso. Mas a seqncia dos eventos indicar a verdadeira forma
do remo, produzindo prolepsis verdadeiras sobre como realmente ele e como
ele se apresenta sob outras condies.
Moraes
45
montanha que parece uma cachoeira. Essa impresso do sentido verdadeira, mas
a afirmao de que aquilo uma cachoeira falsa, pois na verdade o brilho do
sol na pedra mida que d a sensao daquilo ser uma cachoeira. Neste sentido,
Epicuro afirma na Carta a Herdoto 50 que a falsidade e o erro se fundam
sobre a opinio.
Sobre estas etapas do processo de conhecimento, Epicuro possivelmente
pretendia responder ao ceticismo
46
44
A doena no individuo demonstra que h uma alterao nos tomos. Os tomos assim
degenerados percebem e formam impresses diversas daquelas que formariam sob condies
normais. Ou seja, sei que quando estiver doente minha refeio me parecer sem gosto. Mas no
verdade que ela sem gosto. Pois j experimentei minhas refeies sob vrios aspectos, podendo
afirmar com segurana que em tais ocasies ela ser assim ou assado.
45
46
33
ceticismo. Se cada sensao verdadeira e para conhecer algo seria necessrio
repetio da sensao (e isto pode no acontecer tal como fora antes, posto que a
sensao se d sempre no momento), isso no respondeu questo da
individualidade, pois cada indivduo continuaria tendo sensaes e juzos prprios
o que nos remete a discusso de Scrates no dilogo Teeteto
47
- e a fsica de
3.3
Sobre o que possvel conhecer
A questo sobre o que seria possvel conhecer afigurava difcil tarefa para
um sistema que admitiria o conhecimento como fruto de um sensualismo. De
incio seria possvel conhecer tudo aquilo que est na esfera material e acessvel
aos sentidos. Por outro lado, o problema se instalaria no que diz respeito ao que
nos invisvel, tal como s idias imateriais. Seria urgente responder a essa
questo at mesmo para salvar o estatuto atomista fincado numa de suas bases: a
idia do vazio.
E foi nesta lacuna que recaram as maiores crticas aos materialistas de um
modo geral, como se observa no dilogo Sofista de Plato, na passagem conhecida
como o combate de gigantes, mais precisamente em 245 e 247 quando o
estrangeiro apresenta um materialismo que no suporta seno, aquilo que
47
34
material. Sobre esta passagem, apesar de Cornford
48
identificar quais escolas esto sendo criticadas, temos por certo que a tese
democritiana apresentava uma via na direo do imaterial, o que tornava seu
materialismo oposto ao de cnicos e cirenaicos. Todavia, ainda restava rebater
sobre a insuficincia em assumir aquilo que imaterial.
O atomismo de Demcrito para existir necessitava do vazio, e quanto a isso
foi visto o suficiente, pois neg-lo invalidaria a prpria Fsica. Mas e quanto a
toda sorte de idias imateriais? Como seria possvel conhecer a idia de justia,
coragem ou amor? Demcrito s poderia faz-lo recorrendo s convenes, assim
como tambm o far Epicuro. Para ele, o homem dotado de razo; partindo
dessa afirmao, quando esse mesmo homem se orienta por meio dos fenmenos
sensveis, encadeando fatos e idias, analogicamente surgiriam intuies para
explicar aquilo que no pode verificar diretamente. Os fragmentos a seguir
conduzem a essa concluso:
raciocnio
concluses
De acordo com o exposto, infere-se que para o sistema baseado nos tomos
existir necessrio tambm intuir o vazio.
Quanto s idias imateriais, o sistema de Epicuro explicaria o modo como o
homem pode conhecer e definir idias como justia, amor, bem, etc.? Entende-se
que sim. Essas idias se formariam da mesma maneira que as materiais que
dependem das repeties das impresses dos sentidos. Contudo, essas idias se
formam na repetio dos sentimentos e emoes. Fatalmente, a formao dessas
idias seria tarefa rdua, uma vez que os sentimentos variam de indivduo para
48
49
35
indivduo, e neste caso o mesmo sentimento produziria pr-noes distintas em
diferentes indivduos. So as aes cotidianas (lidando com percepes e
sentimentos) que permitem ao homem formar esses juzos e engendrar na sua
alma as vrias pr-noes. No caso da justia, dito que A justia no tem
existncia por si prpria, mas sempre se encontra nas relaes recprocas, em
qualquer tempo e lugar em que exista um pacto de no produzir nem sofrer dano
50
53
50
Ibid,. p. 27.
51
52
So tantas as situaes de justia e injustia, amor e dio, beleza e fealdade, coragem e covardia
que conhec-las todas improvvel. Logo, pode ocorrer que A entenda a justia como Y; e B a
entenda como X; E eis que surge uma situao W inusitada a ambos. A e B podem concordar que
existe algo em comum nas trs situaes o que as identifica como justia e neste caso haver uma
conveno.
53
54
36
Bem, os tomos dos deuses, de extrema sutileza, emitem seus simulacros
que podemos conhecer, no atravs dos sentidos, mas por uma apreenso do
pensamento. Portanto, conhecer os deuses no se trataria de uma questo mstica e
no necessitaria de uma experincia direta com a divindade. Essa prolpse
55
se
Prolpse importante para o conjunto da tica, nela se reconhece o ideal de ataraxia. Desenvolver
uma vida apoiando-se nesse prolpse seria um dos passos para viver como um deus entre os
homens.
56
FARRINGTON. A doutrina de Epicuro, p. 114-115.
37
Teria o homem naturalmente nascido com a idia do bem? E neste caso,
essa idia se assemelharia ao bem hedonista, no sentido daquilo que faz bem a si?
Nasceria o homem com uma tendncia para buscar o bem, privilegiando essa
inclinao em se orientar por aquilo que lhe satisfaa, sendo o bem ou o bem-estar
seu nico guia (mesmo sem possuir conhecimento e prolpses para gui-lo)?
chamamos ao prazer princpio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que o
primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e
chegamos a ele valorizando todo bem como critrio do efeito que nos produz 57.
Mais sobre a natureza do prazer dever ser analisado no segundo captulo
desta dissertao; todavia, afirmar que Epicuro tenha defendido uma espcie de
tabula rasa onde o homem nasce sem saber algum um tanto arriscado devido a
ausncia de textos. Pode-se apenas especular somando indicaes e fragmentos,
concluindo a impossibilidade de conhecimentos inatos, e talvez mesmo a idia de
bem. Nela no se abarca nenhum conhecimento, mas uma inclinao natural, o
que valeria dizer que no h um conhecimento do bem ou prazer, mas um em que
tende a ele naturalmente. Sendo assim, ainda que sem referncias, visto no
epicurismo um proto-empirismo.
3.4
Sobre a linguagem
57
LAERTIUS. livro X. Sovran Maxims. Ver tambm Carta a Meneceu 129: Pleasure is our first
and kindred good. [] and since pleasure is our first and native good []
38
permitem reconhecer as formas e identific-las, e continua, ainda mais pelo fato
de que essas noes esto ligadas as palavras e a linguagem 58.
Epicuro formula que todo o conhecimento se origina e derivado da
experincia sensvel (mais especificamente, das percepes) 59. Neste contexto, se
afirmado que toda percepo verdadeira, ento no h equvoco quando se diz
vejo um homem adiante ou vejo que chove. O mesmo se d com as
sensaes, por exemplo: sinto fome.
Fazendo-se a correspondncia com um computador, pode-se entender essas
prolpses como milhares de arquivos que so salvos, abertos novamente,
modificados e mais uma vez salvos. Por meio da repetio de percepes e
sensaes, originam-se, formam-se e, tambm, modificam-se as pr-noes. As
percepes e sensaes humanas so agrupadas sob a forma de pr-noes na
alma e, para cada nova situao cotidiana, o homem faz uso dessas imagens para
agir e orientar-se. Concomitantemente, surge a linguagem.
3.5
A origem da linguagem
60
, sustenta que h de se
59
60
39
ponderar algumas peculiaridades, como por exemplo, aspectos que variam de
lugar para lugar, como mais calor ou mais frio, e que faro com que uma mesma
percepo desenvolva nos indivduos um determinado sentimento. Em outros
termos, uma determinada percepo A, num determinado lugar B, seria comum
maioria dos indivduos, resultando assim uma certa conveno para aquela
percepo. Em outro local C a forma com que os tomos estaro se
movimentando (vista as peculiaridades locais) far a lngua emitir um som
adequado a esse sentimento, diferentemente do que teria sido emitido naquele
local B. Esta a idia de Epicuro sobre a origem da linguagem exposta na Carta a
Herdoto (nos pargrafos supracitados), e que Lucrcio melhor explicita em Da
Natureza, V - 1030: quanto aos vrios sons, foi a natureza que obrigou a emitilos e foi a utilidade que levou a dar nomes s coisas. Destarte, a linguagem flui
naturalmente tendo o som produzido com a inteno de refletir a essncia das
impresses recebidas. Desta maneira, podemos admitir que, para Epicuro, a
linguagem surgiria ao modo naturalista, no podendo ser diferente. Sobre isso,
Lucrcio esclarece o que possivelmente Epicuro teria dito em suas obras que no
chegaram aos dias atuais:
Pensar que algum podia ter distribudo nome s coisas e que depois teriam os
homens aprendido esses primeiros vocbulos realmente ignorar tudo. De fato,
como poderia ele ter assinalado tudo com palavras e ter emitido vrios sons de uma
lngua, quando se supe que outros eram por esse tempo incapazes de fazer o
mesmo... Finalmente, que h de to estranho no fato de o gnero humano, que tinha
fora de voz e lngua, marcar as coisas com palavras, segundo as vrias sensaes,
quando os mudos animais, quando das geraes das feras costumam soltar gritos
diferentes e variados quando tem medo, ou quando sentem dor, ou quando lhes tm
prazer? 61
62
61
62
40
um peixe), mas, se o homem quiser contar como pegou esse peixe, dever narrar
todo o processo pelo qual passou, devendo conectar ordenadamente vrias prnoes. Mais importante ainda perceber que a linguagem, quando transmite uma
prolpse, como o vocbulo rvore, no est referindo-se a uma rvore em
particular. Nesse momento, no se est falando de um jambeiro ou de uma
amendoeira, mas faz-se aluso a uma idia universal de rvore. No obstante, as
palavras podem ser alteradas, pois, embora, cada percepo seja verdadeira e o
homem tenha forjado uma idia para essa percepo, novas prolpses iro
suceder-se e, utilizando o raciocnio, o homem poder organiz-las e formar novos
juzos. Aqui, observa-se que se a linguagem tem sua origem no modo dos tomos
se manifestarem, proporcionando uma determinada sensao e sua respectiva
prolpse, contrariamente, a linguagem no tem como fugir s convenes, tanto
no que toca ao que sensvel/visvel como quanto ao que no o .
3.6
Linguagem e conveno
41
possibilidade de nada. Assim, nome-lo trata-se de uma conveno e tambm de
uma inveno. A conveno ou a inveno completam a natureza, fornecendo as
palavras que esta no inspirou diretamente. 63.
Procede-se que o nomear de outras idias abstratas segue o mesmo modo de
conhecer essas idias. Seus significantes sonoros seriam o modo de preservar cada
um dos sentimentos em conceitos originados a partir dos mesmos. Cada situao
particular da prxis originaria sentimentos e percepes, diante das quais os
tomos da alma se agitariam e formariam pr-noes distintas. A propsito dessas
prolpseis, o homem pensa, discute e acaba por convencion-las com nomes. Com
isso, pode-se explicar porque, para certos indivduos, essas idias se mostram
diferentes. Elas so distintas, simplesmente, devido grande variedade de como
cada situao se apresenta e de como cada indivduo constri sua pr-noo
acerca do sentimento ou experincia 64.
Conclu-se, sobre a linguagem, que sua origem se explica pelo movimento
dos tomos captados pelos sentidos e transformados em pr-noes. Os sons so
meros significantes que conservam as sensaes que a natureza inspirou. Seguese, ento, que a linguagem se desenvolve como conveno e inveno para dar
conta daquilo que no perceptvel e de idias que nascem da prxis cotidiana.
Tendo fixado as bases de sua filosofia na via fsica, Epicuro pde tocar seu
projeto filosfico centrado no material e nas evidncias das sensaes. Logo, o
presente captulo no qual tratou-se cannica, mostra-se fundamental para esta
dissertao primeiramente, por complementar a fsica epicrea. Tendo visto a
fsica, a cannica ilustra o processo do conhecimento e como o homem a partir de
si mesmo, e por ter em si o princpio de ao, adquire atravs dos sentidos e
experincias todas as idias que orientaro suas escolhas. Segue-se da, a
necessidade do estudo da tica, visto que, a cannica epicrea no consegue se
desprender de um relativismo no qual o indivduo deve repetir ao mximo suas
experincias para solidificar suas idias (e isto interessante, pois, explica
razoavelmente a aquisio do conhecimento). Destarte, guiado somente por suas
63
64
42
sensaes, o homem carece ainda de uma reflexo que o conduza acerca do bem
agir, acenando com uma vida feliz; e do clculo que elimina as angstias, dores e
perturbaes decorrentes do que foi erroneamente desenvolvido pelo pensamento.
A defesa da tica epicurista como uma tica do cultivo de si orientada pelo prazer
ser nossa prxima tarefa.
43
4
A TICA
INTRODUO
44
para com a plis, de modo que a cidade carecia de cidados aptos para o seu
comando e, ainda, cooperativos com suas leis; por outro lado, havia uma rgida
conduta do homem em seu agir consigo mesmo. O homem grego deste perodo,
alm da crise dos valores, enfrentava tambm o desafio de conhecer a si mesmo,
oscilando entre a virtude e excesso, na tentativa de identificar aquilo que pudesse
lev-lo a eudaimonia.
Foi nesta direo que o tema do prazer hedon (e ideais hedonistas)
destacou-se, passando a ser exaltado como a via para felicidade, originando
discusses em todas as escolas filosficas, destacadamente a partir da metade do
sculo V a.C., no que tange a seu prprio estatuto, definindo primeiramente: a) o
que seria o prazer; b) como ele passara a ser confundido como o prprio bem; c)
porque ele seria a via mais acessvel felicidade.
Responder a essas questes e compreender a tica epicurista margeada pelo
eixo do cultivo de si e orientada pelo prazer (em oposio dor), apontando sua
relevncia no contexto helenstico, sero os objetivos diretos desse captulo.
Tambm aqui ser questionado num primeiro momento, o por qu do prazer se
configurar como o principal tema de preocupao moral neste perodo dos sculos
V e IV a.C.; Em um segundo momento, o por qu dos diversos pensadores
preocuparem-se com o cultivo de si e o que houve neste perodo que pode ter
afetado a todos os homens de modo que tudo que fora preconizado na formao
do homem grego as virtudes e a temperana fosse esquecido ou substitudo
pelo prazer.
Concomitantemente verificar-se- como Epicuro estruturou o tema dos
prazeres e desejos e como defendeu o prazer como fim de nossas aes na busca
para uma vida feliz; secundariamente, tambm interessante apresentar como se
pode assumir um hedonismo epicurista avesso ao hedonismo cirenaico.
Dando seqncia a nossa dissertao, devemos comear a analisar o
contexto que antecede o perodo helenstico e o modo pelo qual o prazer desponta
como o bem desejvel.
45
4.1
O legado do tempo
65
46
mxima amplitude, tendo inclusive, na figura de Aristipo de Cirene por sinal
discpulo de Scrates , as bases do hedonismo 66.
Bryant
67
A cena social foi marcada por uma efervescncia moral similar; enquanto os sbios
estiveram discutindo acerca da natureza do prazer, um nmero crescente de
cidados, os assim chamados apragmones desiludidos por dcadas de guerra e
partidarismo e o conseqente eclipse da cidade-estado por poderes imperiais
comearam a aplicar modos compensatrios de auto-indulgncia no domnio do
eros, do luxo e do refinamento esttico.
Todas as escolas helensticas parecem, com efeito, defini-la (filosofia) quase nos
mesmos termos e, antes de tudo, como um estado de perfeita tranqilidade da alma.
Nessa perspectiva, a filosofia aparece como uma teraputica dos cuidados, das
angstias e da misria humana, misria provocada pelas convenes e obrigaes
sociais, para os cnicos; pela investigao dos falsos prazeres, para os epicuristas;
pela perseguio do prazer e do interesse egosta, segundo os esticos; e pelas
falsas opinies segundo os cticos. 68
66
Valores hedonistas no surgiram naquele momento. E podemos dizer que esses valores
encorpam toda a cultura helenistica. Assim considera BRYANT:
Hedonistic values most notably the appreciation of feasting, mousik, and ta aphrodisiac had
long occupied a significant place in mainstream Hellenic culture, though ever subordinate, first to
the Heroic and then to the Polis-citizen ethos []
BRYANT, Joseph. Moral and Social structure in ancient Greece: a sociology of Greek Ethics
from Homer to the Epicureans and Stoics. NY: State University of New York, 1996, p. 408.
67
Ibid., p. 408-409.
68
HADOT, Pierre. O que filosofia antiga. So Paulo: Edies Loyola, 1999. p. 154.
47
At aqui, tem-se descoberto um referencial no conjunto de fatores que
seguramente desencadearam uma crise no seio da plis, abalando at mesmo os
mais virtuosos. Tendo visto isso, pode-se agora observar um cuidado que passa a
ocupar as discusses, revendo tanto os ideais da paidia e de vida sbia, como
tambm sobre os excessos que desvirtuam os homens no bom cumprimento de
suas funes na plis.
O presente trabalho complementa-se, em objetivo, diante da anlise de
Epicuro e seu projeto de uma filosofia asctica, coroada pela razo. Sua doutrina,
volta-se com ateno crise de seu tempo reflexo das guerras alexandrinas
principalmente, no que toca aos desejos e prazeres, pois, o gozar representava
naquele momento um caminho vivel para felicidade. Contudo, no escapou a
Epicuro que, o excesso no uso dos prazeres acentuava a desvirtuao dos valores e
nada contribua para a felicidade, seno momentnea, trazendo consigo dores e
sofrimentos que antes no se tinha.
4.2
Uma problematizao dos prazeres e seus excessos
69
, fruto do exerccio
48
Foucault previamente acena que no pretende fazer uma anlise sistemtica das
diversas doutrinas deste perodo que conta do sculo V ao sculo III a.C. Quando
prope analisar o comportamento dos indivduos e o modo de conduzir-se frente
aos prazeres, assim como tambm as prticas e exerccios espirituais que
compem o cuidado de si, nessa obra, Foucault se reporta com freqncia aos
textos de Xenofonte, Plato, Aristteles e ainda figura de Scrates, numa
exposio do perodo clssico. J no perodo helenstico e sua transio para o
florescimento romano, Foucault recorre quase sempre aos Esticos, esquecendo a
grande influncia da filosofia epicurista no comportamento moral do indivduo
neste perodo.
Ao passo que Foucault verificou que na Academia, no Liceu e no Prtico o
exerccio filosfico se voltara numa ascese projetando um homem sbio e virtuoso
em harmonia com o todo, acabou por empregar pouca ateno aos Jardins de
Epicuro. Essa ausncia de citaes causa surpresa j que a doutrina epicrea
apontava justamente para as mesmas questes, embora acenando com um sistema
distinto
70
HADOT, Pierre. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris: Albin Michel, 2002, p. 309310.
49
determinar os meios para atingi-la (...) No platonismo, mas igualmente no
epicurismo e no estoicismo, a libertao da angustia se obtm pois por um
movimento no qual se passa da subjetividade individual e passional objetividade
da perspectiva universal. Trata-se, no de uma construo de um eu, como obra de
arte, mas ao contrrio, um ultrapassamento do eu ou pelo menos de um exerccio
pelo qual o eu se situa na totalidade e se experimenta como parte dessa totalidade.
72
4.2.1
O IDEAL: A PAIDIA, O HOMEM E O SBIO.
72
50
O tema da virilidade tambm atravessa essa discusso, e volta-se
destacadamente sexualidade, onde o homem deveria ser ativo e dominante, mas,
principalmente, deveria ser sbio e prudente, tendo um bom governo de si. Isto
seria um dos pressupostos para se ter ainda o bom domnio da cidade e dos outros.
Neste ponto, o problema no reside quanto a forma que se dava a entrega na
relao heterossexual ou homossexual , mas diz respeito intensidade dessa
entrega e suas conseqncias, quer para sua sade quer para sua reputao.
Essa exposio sobre a paidia e opostamente seu desregramento d-nos
uma exata dimenso de como o saber conduzir-se, o agir corretamente, a
prudncia e o comedimento configuram o ideal de formao do homem grego
para a vida sbia. O sbio no somente aquele que possui saber acerca das
coisas, mas que o demonstra em seu estilo de vida. Neste passo, tanto no eixo
coletivo quanto no individual, o tema central encontra-se na questo da
desmedida.
Demcrito, em um de seus fragmentos, apresenta a figura do sbio:
Aquele que quiser viver em tranqilidade no se deve agitar demasiado, nem em
sua vida particular nem em sua vida coletiva; o que faz no deve ir alm da sua
prpria fora e de sua natureza; e deve tomar cuidado para que quando vier a
fortuna e tentar seduzi-lo, atravs de sua opinio, desmedida, possa afast-la e
guardar somente aquilo que estiver de acordo com suas foras. Pois a plenitude
comedida mais segura do que a desmedida. 73
[...] ele sempre ansiou por ser nomeado comandante [...] e ao mesmo tempo, servir
aos seus interesses pessoais em termos de riqueza e glria [...] Desfrutando at
ento de grande prestigio entre os habitantes da cidade, ele sempre cuidou de
satisfazer os seus prprios caprichos muito alm do que lhe permitiam as suas
73
51
posses, tanto na criao de cavalos quanto em outros gastos, e no foi pequena a
influncia desses desmandos na runa de Atenas. O povo preocupado na poca com
a enormidade de sua depravao na vida diria e tambm com seus desgnios,
revelados em cada uma das muitas intrigas em que se envolvia, passou a hostilizlo, considerando-o um aspirante tirania; de fato, embora na vida pblica ele
tratasse dos assuntos relativos guerra da melhor maneira possvel, na vida privada
ele ofendia todos os cidados com suas condutas, levando-os a confiar a cidade a
outras mos e a arrun-la por isto ao fim de no muito tempo [...]. 74
76
75
PLATO. O Banquete. In: PLATO. So Paulo: Abril S. A., 1972. (Os pensadores). p. 163.
O termo empregado viver segundo a natureza pode gerar dvidas quanto ao seu propsito uma
vez que esse mesmo preceito praticado tambm pelos esticos como indica Festugire :
76
a razo humana no seno uma parcela do Logos divino. Mas, como o Logos divino idntico
Natureza universal e, como, por outro lado, viver segundo a natreza viver segundo o Logos (...)
Tudo se resume, assim, a um consentimento Ordem, o que o mesmo, ao Destino.
FESTUGIRE, A. J. Epicuro y sus dioses. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires,
1960, p. 7 - 8.
J para Epicuro, esta prescrio consiste, de antemo, condio de autarkia. Est a condio
prpria do sbio que maestro de si e basta a si mesmo: a) orientado pelo que naturalmente
necessrio; b) moderando os desejos e prazeres que trazem consigo dores e perturbaes (estes,
desnecessrios).
52
sade. Desse modo, as prescries parecem apontar e transmitir ao homem
comum um modelo e uma moral para uma existncia feliz e harmnica.
Plato tambm se ocupou largamente em desenhar essa figura de sbio,
preconizando uma moral de si, cujo centro a sabedoria contemplativa. J
Aristteles, na tica a Nicmaco, trabalha fortemente o contedo moral do
homem para consigo mesmo. Nessa obra, a proximidade deste pensador com
Epicuro maior do que aparenta, podendo ser percebido um bom exemplo no
livro VII da mesma, quando ao falar das disposies morais que devem ser
evitadas, os temas permanecem os mesmos: os vcios, a incontinncia e a
bestialidade, os desejos que falseiam o que o verdadeiro prazer.
Ora, as inquietaes de todos os filsofos sugerem algumas certezas. Dentre
elas, a que indica os problemas dos limites. Embora a Grcia desta poca
possusse leis, havia uma moral da cidade e dos costumes. Entretanto, havia
tambm uma lacuna, que era o desconhecimento de si prprio, do homem
enquanto homem por isso, Foucault sugere a idia de um sujeito-experincia
77
78
na qual
o prazer o maior bem e, por isso, seria digna toda busca em sua direo
77
53
impunha ainda outra reflexo j que se desconhecia a prpria essncia do prazer:
na banalizao e no excesso, o prazer no mais era reconhecido como prazer.
Este gancho encaminha a verificao inicial acerca do que o prazer e, em
seguida, de como cada escola filosfica influenciou Epicuro em sua apreciao
sobre os prazeres.
4.3
O USO DOS PRAZERES COMO TEMA DE PREOCUPAO MORAL.
54
terceira via de prazer atribu-se aquelas faculdades que correspondem
memria e lembrana. Essa espcie de prazer no se origina de um desejo, nem do
acaso, mas sim, possivelmente de uma juno de ambos. Quando como s vezes
deseja-se algo, e por sua lembrana regozija-se, ainda que haja a impossibilidade
de satisfao de tal desejo; ou quando, o homem lembra-se furtivamente de sua
infncia e juventude, e na velhice, v-se diante da impossibilidade de uma srie de
aes.
H ainda uma quarta espcie de prazer, que diz respeito quilo que aponta
para a satisfao do conhecer das coisas, ou seja, quilo a que se atribui a
sabedoria. Essa espcie de satisfao brota na constante prtica intelectual,
filosfica e cientfica, aliada s demais virtudes, que assim conduzem o sbio para
o bem e para a felicidade. E uma quinta, que reside na faculdade de construir e
cultivar amizades. Por fim, uma sexta espcie, que habita na simples completude
de se estar so, na imperturbabilidade espiritual e corporal, no regozijo de no
necessitar de algo, de no ser esmagado pela gana do desejo, e tambm por, nem
chegar a desejar: pelo simples fato de se estar bem e feliz. Compreende essa
ltima ainda a ausncia de perturbaes cotidianas na vida coletiva, e tambm na
sustentao de uma boa sade corporal e mental. o prazer que se origina no
constante exerccio espiritual, askess, prazer que reside na ataraxia
79
e no bom
governo de si.
As diversas escolas e correntes filosficas, anteriores a Epicuro, trabalharam
essas vrias idias e modos de entender o prazer e suas demais definies. Mas
interessante notar que, em todas elas, este tema fora tratado inquietamente no
mbito da moral, principalmente por se tratar de um sentimento capaz de trazer a
corrupo ao homem: tanto espiritualmente, com perturbaes e preocupaes,
como atravs da corrupo do corpo, no uso abusivo e excessivo dos prazeres,
tornando urgente uma moderao no seu uso. No havendo um sentimento de
culpa ou de pecado entre estes gregos, o valor da inteno moral e a tendncia de
buscar para si o prazer representam o verdadeiro problema. Deve-se atentar,
contudo, para como estas seis espcies de prazer se postam frente idia moral,
distinguindo quais destas foram vistas por esses filsofos como tendendo para a
felicidade e quais aproximavam o homem dos vcios que os fragmentam. Para
79
55
chegar a Epicuro, ser importante ver como os Cirenaicos, Plato, Aristteles e
tambm Demcrito se posicionaram sobre este assunto.
4.3.1
Aristipo e os Cirenaicos
A escola cirenaica foi fundada por Aristipo de Cirene (435 355 a.C),
discpulo de Scrates, e a ela se atribui as bases do pensamento hedonista.
Segundo Jean Brun, os Cirenaicos viam no prazer o prprio bem: - sendo o
prazer o fim natural que todos os seres buscam, devemos identific-lo ao Bem 80.
Vale notar que o prazer , para eles, aquilo que deriva das sensaes imediatas.
Assim, cada prazer um prazer por si s e, para cada individuo, apresenta-se de
forma nica e especial. Deve ser, em razo desse fato, experimentado e
vivenciado.
Segue-se, que o prazer tambm critrio para a prpria verdade.
Hirschberger
81
80
BRUN, Jean. Los Socraticos. In: Historia de la filosofia. v. II (La filosofia griega). Direccin de
PARAIN, Brice. Mexico: Siglo veintiuno editores s.a., 1992, p. 254.
81
LAERTIOS, Digenes. Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres. 2 ed. Braslia: UNB, 1997. p.
69.
56
O prazer, sendo critrio de verdade, tambm guia das aes destes
homens. Se o prazer bom por si s, as aes devem sempre tender a ele,
valorizando de antemo o gozo individual. Logo, o prazer e o desprazer individual
o que deveria ser levado em conta para a escolha de determinado ato.
Como dito inicialmente, o ato de buscar o prazer no deixa de ser uma
preocupao do homem para consigo, mas uma postura que foi combatida por
todos os filsofos que viram o grau de degenerao moral do hedonista. O valor e
a conscincia morais, assim como os demais valores e virtudes so trocados por
uma moral egosta que, como conseqncia, leva o seu adepto incessante busca
pelo prazer, sem nenhum freio. A falta de limites levaria estes homens no s a
uma moral egosta, como tambm a necessidades e desejos vazios, a perturbaes
na sade e no esprito. Logo, os prazeres dos cirenaicos so aqueles que levam ao
excesso: os prazeres da glutonia e os prazeres da aphrodisia, da sexualidade. Seu
uso desmedido mostra que, o indivduo que utiliza o prazer sexual em si ou o
prazer de comer no considerado intemperante. A intemperana est na entrega
dos atos; por isso, o hedonista no s intemperante, como chega ao ponto da
incontinncia.
Deve-se lembrar tambm o momento em que floresce esse hedonismo, uma
poca onde somente o refgio para o prazer afigurava alguma felicidade. Em meio
peste, fome, e morte, tudo o que levasse ao prazer deveria ser legtimo,
como visto no testemunho de Tucdides. Essa doutrina marca fortemente o
pensamento e o comportamento da poca, influenciando o pensamento ticofilosfico e, de certa forma, o prprio Epicuro viria a ser influenciado por tal
tendncia.
O problema que os hedonistas chegam a uma irracionalidade. Embora
possam admitir vrias manifestaes do prazer, sero sempre privilegiados
aqueles prazeres que suscitam o maior xtase e alegria possvel. O Bem est na
maior quantidade de prazer que se possa obter com tal ao. Nisso h uma
inverso, no se busca a estabilidade do prazer, a qualidade do prazer, mas sim os
prazeres mais instantneos e violentos. O Bem e a felicidade, para estes homens,
no esto na durao e estabilidade do prazer, mas em sua intensidade. Dentre
estes prazeres de intenso movimento encontram-se aqueles do nvel sensvel: os
prazeres do corpo, principalmente os da sexualidade e do paladar.
57
A proximidade entre os cirenaicos e Epicuro percebida na perspectiva que
o filsofo do Jardim concebe, a princpio, o prazer realmente como o Bem,
embora no se trate do mesmo buscado pelo cirenaico. Visto que h vrias formas
de prazer, o epicurista visa queles durveis e estveis, usando-os comedidamente,
no tendendo nem para o excesso nem para a carncia. Por outro lado, medida
que o hedonista cirenaico busca o prazer por si s seja pela falta de perspectivas,
para aplacar sofrimentos, ou ainda, por medo da morte ou do castigo dos deuses
considerando digna a satisfao de qualquer prazer mesmo tendo fracos apetites,
no percebe que assim, vai rumo intemperana; por desconhecimento das
demais virtudes confunde o prazer com Bem, e esta inverso o aponta para a
ignorncia; tal confuso tambm pode se dar pela prpria fora do desejo que o
arrasta incontrolavelmente, acarretando a incontinncia.
O epicurista, por no temer a morte, aos deuses e, por conseguinte,
conhecendo as virtudes em seu exerccio filosfico, privilegia os bons prazeres,
fazendo mesmo um clculo acerca destes, escolhendo por fim, aqueles que no
carregam consigo qualquer dano, prejuzo ou perturbao tanto para si quanto
para os outros. Neste sentido, a viso de Brun corrobora nossa exposio:
O prazer do qual fala Aristipo um prazer positivo e ativo: esse um dos pontos
que diferem o hedonismo de Epicuro ao dos cirenaicos, posto que, para o filsofo
do Jardim, o autntico prazer ser o prazer do repouso (hdonh
katasthmatikh) que consiste principalmente na ausncia das dores. 83
Deste modo, os cirenaicos tendiam muito mais para uma postura cuja
satisfao individual vem frente de tudo, enquanto os epicuristas mais adiante se
aproximaro de uma espcie de utilitarismo onde o prazer relativizado e deve ser
refletido como o fim que coroa uma ao devendo tambm ser universalizado:
Formula a seguinte interrogao a respeito de cada desejo: que me suceder se se
cumpre o que quer o meu desejo? Que acontecer se no se cumpre. 84
Plato tambm ser crtico aos cirenaicos, e no Filebo, principalmente, ir
tecer um discurso onde se pode notar certa proximidade com as prescries
83
84
58
epicreas. Sim, porque Plato, da mesma forma que Epicuro e tambm
Aristteles, admite o prazer, o prazer comedido numa vida mista.
4.3.2.
Plato e o prazer no Filebo
59
Prot Nenhum desses dois tipos de vida me parecem desejvel, Scrates, e a
menos que eu esteja muito errado, ningum pensaria em desej-las.
Soc E quanto a vida combinada, Protarco, a vida que consiste na mistura das
duas?
Prot Voc se refere, por um lado, ao prazer, e a razo com a inteligncia, por
outro?
Soc Sim, esses so os ingredientes que me refiro.
Prot Todos, eu imagino, iro preferir esta vida mista a uma das outras opes
[...]. 86
87
88
86
87
88
Ibid, p. 61.
60
tal satisfao. A repleo na justa medida causa o prazer e tambm a harmonia. A
repleo desmedida, apesar de trazer algum prazer, traz desordem e desarmonia
no cosmo humano.
H aqui algo que proximamente Plato antecipa a Epicuro, quando indica
que a raiz do prazer reside na alma. Pois, para o filsofo do Jardim, prazer e dor
habitam em cada indivduo (na alma) na forma como prolpses, e segue-se que
essas pr-noes antecipam em cada ocasio um modo de repleo para o que se
sente no instante. Desta maneira, os epicuristas explicariam a falta que gera o
desejo simplesmente como fruto da perda natural e da dissoluo dos tomos,
assim como a repleo (que dependeria do justo uso das pr-noes adquiridas)
desses desejos representa estabilizao e harmonia desses tomos.
No sentido inverso, quanto as diferenas entre os filsofos que agora se
observa, enquanto para Epicuro o prazer mais elevado (no deixando de admitir os
demais prazeres) consiste no estado de ataraxia e aponia, para Plato prazer e
ausncia de dor, so idias completamente opostas 89. Admitindo isso, verifica-se
um hedonismo em Plato que considera prazer como um movimento que contrasta
simples ausncia de dor, esta ltima, uma posio neutra e desconhecedora do
prazer.
Outro ponto que Epicuro deixa de lado, mas que Plato desenvolve, diz
respeito ao puro prazer. Plato fala sobre os prazeres puros e que se poderiam
considerar verdadeiros:
[...] Soc So aqueles que se relacionam com as cores que chamamos de belas,
com figuras, com a maioria dos odores, dos sons e todas as experincias cujo
querer imperceptvel e isento de dor, mas sua satisfao perceptvel e
agradvel.90
90
Ibid, p. 100, 51 B.
61
enquanto os prazeres estveis correspondem aos prazeres puros platnicos, onde a
filosofia, o conhecimento, a medida e o clculo se voltam para o uso dos prazeres
naturais necessrios. O constante exerccio espiritual, ascese, constituiria a via de
construo deste prazer.
Tanto Plato quanto Epicuro apregoam os prazeres estveis, a continncia e
temperana em relao aos prazeres misturados. Estes dois pensadores concordam
que clara a vivacidade dos prazeres em movimento, e sua fase positiva aponta
para a anulao das dores. Contudo, sua fase negativa aponta para sua extrema
fugacidade, acarretando um movimento cclico. A no satisfao desses desejos,
levam os indivduos a dores maiores: so os prazeres da gula e da sexualidade,
este ltimo sendo o principal (hedon aphrodisiasein).
Esses eram os desejos e prazeres que figuravam como tema de preocupao
moral desde o tempo de Demcrito. De certo era razoavelmente justificvel na
mocidade de Plato momento de grande crise em Atenas a busca de todo e
qualquer prazer, pois sendo a vida efmera, restava ao homem transformar o
momento em prazer, compreendendo que os prazeres mais vivos e intensos seriam
o pice deste momento de felicidade. Ao se corromper a idia de uma vida mista
por uma vida de valorizao do prazer, o problema encontrava-se na destruio
tanto moral, quanto da sade. A simples busca hedonista faria com que o
indivduo rejeitasse e corrompesse puros prazeres, at mesmo o da amizade, j
que na nsia de saciar uma necessidade, os meios para tal se tornariam irrefletidos.
Visto algumas aproximaes entre Plato e Epicuro, devemos seguir agora
com uma breve pontuao da tica a Nicmaco e suas possveis influncias para
Epicuro.
4.3.3
Aristteles e a moderao
62
faz desaparecer essa disposio ou produz um movimento em sentido oposto. 3.
necessariamente agradvel as mais das vezes tender para o nosso estado natural, e
principalmente quando as coisas, se produzem segundo a natureza, tiverem
retornado ao seu estado prprio. [...] 4. ... As preocupaes, a aplicao intensa, os
esforos prolongados so penosos ... so agradveis os contrrios destes atos [...] 5.
agradvel tudo aquilo para que somos arrastados por um desejo interior. Porque o
desejo uma tendncia que nos impele ao agradvel. Entre os desejos uns so
desprovidos, e outros acompanhados de razo. Por desejos privados de razo
entendo aqueles que nos arrastam para alm de toda interveno da inteligncia;
tais so os desejos naturais, por exemplo, os que procedem do corpo: desejo de
alimento, sede e fome, desejos relativos a cada espcie de alimento; acrescentamos
os que se referem ao gosto, aos prazeres amorosos e, em geral os referentes ao tato,
ao olfato, ao ouvido e vista. Chamo desejos acompanhados de razo todos os que
nos arrastam, porque a inteligncia nos persuadiu a procur-los. H muitas coisas
que desejamos ver e adquirir, porque ouvimos falar delas e porque nos deixamos
persuadir de seus encantos [...].91
92
ARISTTELES. Arte retrica e arte potica. 15 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. Captulo XI,
p. 70.
92
63
isto seria mais que um indcio para mostrar que o prazer seria o Bem supremo. E o
prprio Aristteles admite o prazer como um Bem no livro VII da tica.
Igualmente admite que nem todos buscam o mesmo prazer e que, por admitir o
mais e o menos, os prazeres podem ser bons ou maus e, por isso, o prazer, para
Aristteles, no pode ser considerado um bem absoluto. E nisto se aproxima do
mestre quando este conclui no Filebo 93 que o prazer no basta a si prprio.
Aristteles mostra que o excesso torna todo prazer mau e prejudicial,
enquanto a moderao torna o prazer bom e desejvel, e que essa espcie de
prazer se faz de acordo com a satisfao natural. No livro III e no VII da tica,
Aristteles faz uma diviso dos prazeres como tambm o fez Plato e depois o
far Epicuro, distinguindo a natureza do prazer, dividindo-o entre os da alma e os
do corpo.
Por prazeres da alma classifica aqueles como o amor honraria e ao
conhecimento; contudo, afirma que os homens que amam estes prazeres no so
chamados nem de temperantes nem de intemperantes 94. J os prazeres do corpo
so aqueles que dizem respeito aos sentidos: viso, audio e olfato, e, em relao
a nenhum destes, algum ser chamado de intemperante:
[...] A temperana deve relacionar-se com os prazeres; no, porm, com todos,
pois os que se deleitam com objetos da viso [audio e olfato, e sobre este ltimo,
intemperantes seriam aqueles que deleitam em cheirar molhos e acepipes, porque
lembram os objetos de seu apetite] no so chamados temperantes nem
intemperantes 95
94
96
64
Ora, estes prazeres do corpo a que Aristteles se refere tambm so
acusados por Plato como casos especficos da intemperana. Ainda assim, o
Estagirista admite esta espcie de prazer como natural, como se observa no livro
VII da tica:
[...] Ora, das coisas que causam prazer algumas so necessrias, enquanto outras
merecem ser escolhidas por si mesmas e contudo admitem excesso, havendo mister
das causas corporais de prazer (pelas quais entendo no s as que se referem
alimentao como tambm conjuno sexual, isto , os estados corporais com os
quais dissemos que se relacionam a temperana e a intemperana) enquanto outras
no so necessrias, mas merecem ser escolhidas por si mesmas (como a vitria, a
honra, a riqueza e outras coisas boas e agradveis desta espcie [...]. 97
[...] Est claro, pois, que o excesso em relao aos prazeres intemperana, e
culpvel. Com respeito s dores ningum , como no caso da coragem, chamado de
intemperante por arrost-las nem por deixar de faz-las, mas o homem
intemperante assim chamado porque sofre mais do que deve quando no obtm
as coisas que lhe apetecem (sendo, pois, a prpria dor um efeito do prazer), e o
homem temperante leva esse nome porque no sofre com a ausncia do que
agradvel nem com o fato de abster-se. [...]. 98
97
98
65
afiguram como a maior qualidade do grego, j que isso presume o verdadeiro
autocontrole frente s vicissitudes.
Neste aspecto tm-se talvez a maior relao entre Aristteles e Epicuro, uma
vez que, ambos concordam que diversos so os prazeres e que, por sua
agradabilidade contribuem para felicidade. Todavia, a escolha de vida sbia
mostra que, muitas vezes deve-se recusar os prazeres quando estes corrompem o
bom governo de si.
Em um primeiro momento, podemos pensar tal qual Plato, como visto na
seo anterior desta dissertao, que se no h prazer, tm-se somente
neutralidade. Contudo, nossa leitura percebe que nessa condio, para Aristteles
99
o pleno sabor de ser maestro de si. Dotado dessa sensibilidade, o sbio reconhece
que nem todo prazer desejvel, pois, muitos deles provm de fontes aviltantes.
Desta forma, o sbio que recusa um prazer vil no se encontra em neutralidade,
mas prova um prazer que coroa sua ao.
A indicao moral urgente de um bom governo de si, de uma postura
intermediria, ecoar tambm nos Jardins; porm, o bem viver e bem agir
aristotlicos propendem fundamentalmente educao do sujeito poltico da plis,
haja vista a urgncia em formar jovens virtuosos que pudessem dirigir e salvar a
plis decadente. J com Epicuro, a boa conduo de si, completa-se em objetivo,
na recuperao do homem e de sua boa condio ntima, independentemente da
plis indicando que, perdido em suas prprias sensaes de dor e prazer, o
indivduo necessita da reflexo tica para gui-lo, mostrando-lhe os verdadeiros
prazeres que abrem caminho vida feliz.
4.3.4
Demcrito e as bases para Epicuro
99
66
Deve-se explicar o porqu de s agora analisar as influncias de Demcrito
para a filosofia de Epicuro, uma vez que, caso aqui se estivesse sendo seguida
uma ordem cronolgica, este pensador deveria ser o primeiro a ser investigado. A
presente escolha justifica-se pela sua influncia direta e decisiva para o
pensamento do filsofo do Jardim, e a exposio clara dos fragmentos de
Demcrito neste momento ser elucidativa, deixando ainda o caminho aberto para
a prxima seo, dedicada a Epicuro.
Como fora visto anteriormente, o que chegou de Demcrito at ns, por
meio de fragmentos, permite ver sua preocupao com a medida e prudncia,
comuns na formao e educao do nobre grego. Muitos so os fragmentos que
este pensador relaciona ao prazer e necessidade de prudncia e continncia, mas
dentre todos aqueles filsofos anteriores a Epicuro, Demcrito deve ser destacado
como sendo o primeiro a voltar-se, enfaticamente, para as idias sobre sensaes e
tambm para a utilidade, como mostram os fragmentos abaixo:
100
67
O que falar destas prescries? Demcrito as escreve assim como o far
Epicuro, em passagens curtas cujo modo visa a atingir diretamente seu leitor com
sua moral diretiva. Percebe-se nos fragmentos transcritos uma valorizao da
tranqilidade (euqumia), e aqui Hirschberger
101
4.4
O prazer epicreo
[...] Quando ento dizemos que o fim ltimo o prazer, no nos referimos aos
prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como
acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou no concordam com
ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que ausncia de sofrimentos
fsicos e de perturbaes da alma. No so, pois, bebidas nem banquetes contnuos,
nem a posse de mulheres ou rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias
de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que
investigue as causas de toda escolha e de toda rejeio e que remova as opinies
falsas em virtude das quais uma imensa perturbao toma conta dos espritos [...].
102
101
102
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Traduo de lvaro Lorencini e Enzo Del
Carratore. So Paulo: UNESP, 2002. p. 43-45.
68
Epicuro, da mesma maneira que os filsofos anteriores a ele, percebeu esta
inverso de valores onde o bem agir, o bom governo de si e as demais virtudes
perderam sentido e espao para a satisfao individual e gozo do momento,
devido a instabilidade provocada pela crise da plis, as guerras e doenas e
aos medos da morte e dos deuses.
Ao contrrio de Plato e Aristteles, que elevaram uma filosofia
salvacionista da plis e demonstraram uma tica no uso do prazer para o indivduo
sujeito poltico, Epicuro procura, antes de tudo, tomar certa distncia da
turbulncia poltica da plis para fixar-se nos jardins de sua propriedade por
acreditar na impossibilidade da razo obter xito numa profunda crise de comando
e autoridade
103
Hadot:
Alm desses agravantes, o sistema de vida epicreo preza essa retirada, tambm, pela
constatao de que os negcios da plis trazem mais perturbaes do que ganhos vida de quem
dela participa, por isso, devem ser evitados.
104
69
influncia para a posteridade) construram uma imagem do Jardim como um lugar
de orgias e deleites, tomando Epicuro como um promotor da boa vida e do
desfrute
105
manifestar dos desejos e prazeres e como essas manifestaes implicam uma vida
verdadeiramente prazerosa e feliz.
O conhecer
106
LEONHARDT, Jrgen. Ccero: filosofia entre cepticismo e confisso. In: Erler, M. & Graeser,
A. (org.). Filsofos da Antiguidade II. Do Helenismo at a antiguidade tardia. Traduo de Nlio
Schneider. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2005. p. 92
106
o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a sade
do corpo e para a serenidade do esprito, visto que esta a finalidade da vida feliz. Ver em
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). p 35.
70
natural (e at mesmo instintivo) buscar aquilo que venha a suprir tal
necessidade. natural, como j havia sugerido Aristteles, que ningum deseja a
dor ao invs do prazer. Destarte, a satisfao destes desejos, na medida em que
eliminam dores e perturbaes, necessria para a boa sade e harmonia do
corpo, em suma, para a felicidade
107
excessivamente tal prazer sem visar a eliminao de um mal incmodo como, por
exemplo, o comer s por comer, primeiramente detecta-se um apetite
descontrolado, viciado e, em seguida, perde-se o prprio prazer de ingerir algo.
Por isso os desejos naturais e necessrios devem ser comedidos, pois o seu
contrrio, alm de no visar uma repleo natural, traz at mesmo perturbaes
que antes no se tinha. De fato, s sentimos a necessidade do prazer quando
sofremos pela sua ausncia; ao contrrio, quando no sofremos, essa necessidade
no se faz sentir 108.
107
108
71
por si s, o desejo pela sua posse um tanto perigoso, porque o seu uso sem
limites leva intemperana e incontinncia.
O intemperante sabe que no necessita de tal alimento, que est comendo
apenas pela sensao agradvel, sabendo at que o abuso de tal alimento poder
lhe ser prejudicial; contudo, entrega-se ao desejo. Na mesma direo, o
incontinente aquele que j ultrapassou os limites da intemperana e j busca
satisfazer o desejo a qualquer custo onde, no consegue se conter e sente falta de
tal capricho a ponto de sofrer quando no tem seu desejo satisfeito. Isso era visto
por Aristteles como uma deficincia moral, frouxido 109.
Em Epicuro isso ser tambm um problema moral, mas, antes de tudo, um
problema de si, do indivduo. Por guiarem-se atravs de prolpses falsas acerca
dos verdadeiros prazeres, os indivduos agem orientados por prazeres intensos que
trazem mais desvantagens do que os bens oferecidos. Logo, uma vez que o prazer
sempre acompanha a falta ou a dor e vice-versa, o indivduo deve saber portar-se
diante da dor que suportvel, para gozar do prazer da repleo adiante; do
mesmo modo, deve saber conter-se:
E como o prazer o primeiro e inato bem, igualmente por esse motivo que no
escolhemos qualquer prazer; antes pomos de lado muitos prazeres quando, como
resultado deles, sofremos maiores pesares; e igualmente preferimos muitas dores
aos prazeres quando, depois de longamente havermos suportado as dores, gozamos
prazeres maiores. Por conseguinte, cada um dos prazeres possui por natureza um
bem prprio, mas no se deve escolher-se cada um deles; do mesmo modo, cada
dor um mal, mas nem sempre se deve evit-las. Convm, ento, valorizar todas as
coisas de acordo com a medida e o critrio dos benefcios e dos prejuzos, pois,
segundo as ocasies, o bem nos produz o mal e, em troca, o mal, o bem. 110
Para Epicuro, deve-se limitar o apetite por tais desejos, tambm porque,
quando se buscam comidas luxuosas desmedidamente, pode-se chegar
109
[...] Ora, o homem deficiente no tocante s coisas a que a maioria resiste, e o faz com xito,
mole e efeminado; pois a efeminao tambm uma espcie de moleza. Um tal homem deixa
arrastar o seu manto para evitar o esforo de ergu-lo e simula doena sem se considerar infeliz, ao
passo que o homem a quem ele imita realmente infeliz [...] o amigo de diverso tambm
considerado intemperante, mas na realidade mole. Porque a diverso um relaxamento da alma,
um descanso do trabalho; e o amigo de diverses uma pessoa que vai ao excesso em tais coisas
[...].
ARISTTELES. tica a Nicmaco, Livro VII, 7, 1150 b, p. 127
110
72
incontinncia; da, aquilo que bsico ou natural relegado ao segundo plano.
Em termos atuais, o indivduo rejeita o arroz com feijo preferindo nobres
carnes, pratos requintados ou mesmo fast food e a ausncia destes requintes,
por algum motivo, tambm traz sofrimento ao homem contemporneo
incontinente, ao passo que aquele que se basta com o natural comedidamente,
desfruta de grande prazer quando tem posse de semelhantes iguarias.
[...] entre os desejos mais naturais e necessrios que Plato classifica aqueles que
nos levam aos aphrodisia, e os prazeres que estes nos proporcionam tm como
causa, no dizer de Aristteles, coisas necessrias ao corpo e vida do corpo em
geral [...] Entretanto, por mais natural e mesmo necessria que possa ser, ela no
menos objeto de um cuidado moral; ela pede uma delimitao que permita fixar at
que ponto, e em que medida conveniente pratic-la [...]. 113
112
Em Plato decorrente da razo que acena para uma vida mista com primazia para a medida e a
boa proporo em todas as coisas; em Aristteles, pela prudncia.
113
73
pelo seu sabor agradvel e prazer momentneo, a fora intensa da hedon
aphrodisiasein arrasta o amante s doenas morais. Claro que o papel moral do
indivduo foi exaltado em Plato e Aristteles
114
o papel moral de si para si (o respeito que se deve ter com a prpria condio
ntima, que deve ser equilibrada), tambm no escapou a Epicuro.
116
114
E para eles os prazeres so efetivamente agradveis e, por isso, tambm, no devem ser
eliminados; todavia, devem ser limitados quando desvirtuam o homem de sua condio na plis.
115
116
74
exaltado como uma ascese epicurista e uma qualidade moral indispensvel para o
sbio. Ao passo que a intemperana naquilo que no natural nem necessrio
deve ser eliminado, uma vez que tambm uma deficincia, uma fraqueza moral,
prpria daqueles que no praticam a filosofia e de ignorantes.
4.5
Que prazer este que Epicuro aponta como bem? Ataraxia, aponia e
o tetraphrmakon.
117
75
(cada uma ressaltando um equilbrio especifico) que balizam a filosofia epicrea
como mtodo para atingir a ataraxia:
Na tua opinio, ser que pode existir algum mais feliz do que o sbio que:
119
, no exame de conscincia
119
Observado na terceira maxima deste tetraphrmakon e que, segundo Arrighetti, diz respeito ao
perfeito equilbrio dos tomos que compe o corpo (e aqui entendemos corpo como o complexo
corpo-alma. Grifo nosso).
Cf. ARRIGHETTI, Graziano. Epicuro y su escuela. In: Historia de la filosofia. v. II (La filosofia
griega). Direccin de PARAIN, Brice. Mexico: Siglo veintiuno editores s.a., 1992, p. 304.
120
SILVA. Markus Figueira da. Epicuro: sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumar;
Natal: UFRN. 2003. p. 81.
76
racionalidade, a justa medida no uso dirio, o bem agir sempre foram os preceitos
norteadores na formao do homem grego como homem sbio, status mesmo da
sua superioridade sob outros povos que, por sua vez, seriam chamados de
brbaros. Esses preceitos so vivos no pensamento epicreo, sendo essa tica
fundada na autarkia e no cuidado de si, na ascese dos desejos e na eliminao de
dores e perturbaes, o verdadeiro caminho para o Bem em sua filosofia. Contudo,
ao falar de eliminar dores e sofrimentos, isso no reduz o fim desta filosofia a um
negativismo ou mesmo a uma idia de neutralidade, como vimos com Plato.
Fundamentalmente o prazer o Bem para Epicuro; um prazer que tem seu
pice na razo que reconhece todos os prazeres e elege primeiro, queles que
no importando sua durao
121
122
121
Arrighetti indica que para Epicuro: possvel gozar de modo pleno em um dia, como em cem
anos. Cf. ARRIGHETTI, Graziano. op. cit,. p. 304.
122
77
4.6
O hedonismo epicreo
Para dar resposta questo proposta pelo ttulo deste item tornou-se preciso
trilhar o caminho percorrido, observando os seguintes elementos: a sociedade da
poca; fatos pontuais como foram a peste e tambm as guerras, e que a nosso ver
despontaram como agravantes para a fragilizao das bases morais que dizem
respeito ao cuidado de si; a anlise das filosofias da poca, em contraste com o
pensamento do prprio Epicuro, pretendendo com isso uma re-interpretao do
pensamento epicreo no que toca ao prazer (hedon).
Nesta seo, primeiramente procederemos anlise da filosofia moral
hedonista e, a seguir, ser feita uma justa comparao desta com o pensamento de
Epicuro e sua moral. Tambm importante deixar claro que o foco em questo
ser o prprio Epicuro e no os epicuristas de forma geral, uma vez que, de fato,
h uma proximidade de alguns fragmentos epicreos com aquilo que
reverenciado pelos hedonistas, mas que em sua essncia no coincide com o
concebido pelo nosso autor.
78
como a prpria felicidade. Assim sendo, aquele individuo que passa a assumir a
postura hedonista v o prazer como o prprio Bem
123
. No sero desejadas as
124
. O prazer
uma experincia para o individuo e um bem. Logo, virtuosa ser a alternativa que
proporcione maior quantidade de prazer para ele, mesmo que universalmente seja
prejudicial.
Frankena contribuiu ilustrando cinco proposies geralmente aceitas por
todos hedonistas (Vasquez 125 trabalha somente com as teses 2, 3 e 5):
1 Felicidade = prazer ou felicidade = aquilo que agrada.
2 Todos os prazeres so intrinsecamente bons ou tudo o que agrada em si mesmo
bom em si mesmo.
3 Somente os prazeres so intrinsecamente bons ou tudo o que bom agrada em
si mesmo agrada por si mesmo.
123
Segue-se que, embora, Epicuro tambm entenda o prazer como o Bem, percebe-se nitidamente,
com o aferido at aqui, a gradao do prazer que este filsofo concebe, e possibilita-nos distinguir
sua filosofia do hedonismo vulgar, como posto acima.
124
Esta premissa no uma regra. Como indica Vazquez o egosmo tico consiste em que cada um
deve agir conforme o seu interesse, sendo prazeroso ou vantajoso para si. Assim agem muitos
hedonistas quando, por exemplo, desprezam um prazer menor coletivo por um prazer pessoal
maior. Mas o hedonista poder tambm tender para um utilitarismo onde o mximo de prazer deve
vir acompanhado para um nmero maior de pessoas. Ambas as teses tm suas complicaes, e
neste momento, no cabe discuti-las aqui.
125
VZQUEZ, Adolfo Snchez. tica. 24. ed. Traduo de Joo DellAnna. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2004, p. 160 et. seq.
79
4.6.1.
1 Tese: Felicidade = prazer ou felicidade = aquilo que agrada.
Sobre a primeira tese indicada por Frankena lembra-se que Epicuro diz ser o
prazer o princpio e o fim da vida feliz. Analisando friamente, difcil negar seu
hedonismo nesse ponto, mas o hedonista original entende a relao felicidade =
prazer como a experincia agradvel; logo, o prazer fruto daquilo que
agradvel e que, por sua vez, tem sua origem na sensao e no movimento
constante daquilo que prazeroso, pois onde h o prazer continuamente no
haver dor ou sofrimento. Assim, este raciocnio serve de sustentao para o
hedonista sempre buscar o mximo de prazer.
Nesse ponto, o presente trabalho entra em concordncia com Markus Silva e
tambm com Mota Pessanha em seus apontamentos. O primeiro sugere que: [...]
O bem o prazer, e o prazer o estado de equilbrio alcanado e mantido pelo
126
80
exerccio da sabedoria [...]
127
medida e senso de limite. O hedonismo epicurista alia prazer e serenidade [...] 128.
Destarte, quando Epicuro exalta o prazer como princpio e fim da vida feliz, como
j visto, pensa nos prazeres estveis, at mesmo pelo fato de a felicidade ser para
ele um estado pleno de imperturbabilidade, harmonia e aphatia, ou seja, domnio
sobre os desejos. medida em que se busca incessantemente aquilo que
agradvel, extrapolando os limites daquilo que natural, buscando o desejo onde
no existe falta, torna-se evidente o descontrole sobre si, prprio daqueles que
desconhecem a si prprios e vivem numa v iluso de felicidade.
A anlise destas citaes nos levam a crer que Epicuro primeiramente
privilegiando outras manifestaes do prazer como a filosofia, o conhecimento, a
razo, a memria, o conhecimento physiolgico (e o conjunto destes
proporcionam prazeres que, por sua vez, agradam de modo estvel) contrario
posio hedonista em seus usos dos prazeres, pois, enquanto o hedonista tende
sempre para o que mais agradvel, Epicuro acena que o sbio deve procurar o
verdadeiro estado de prazer: em no sentir a necessidade de viver com a
necessidade e a ausncia das dores (ataraxia e aponia).
at mesmo contraditria a inteno hedonista de ver o prazer como
felicidade e pertinente a crtica de Frankena rejeitando esta tese, porque como
ele afirma, pode-se pensar em prazeres, mas no em felicidades. Felicidade, assim
pensada, um estado pleno, enquanto o agradvel e prazeroso especifico e
momentneo. O ponto de discordncia com Frankena nesta presente dissertao
est na insistncia deste autor em apontar Epicuro como hedonista no sentido em
que discutimos, ou seja, um hedonista tal como o cirenaico Aristipo. Sobre esta
primeira tese, ou entende-se seu hedonismo estvel onde o prazer sim princpio
e fim da vida feliz por visar uma plenitude individual, fim este compartilhado
pelas diversas escolas, ou considera-se Epicuro um hedonista, como o indica
Frankena.
127
128
PESSANHA, Jos Amrico Mota. As delcias do jardim. In: NOVAIS, Adauto (Org.) tica.
So Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura. 1992. p. 75.
81
4.6.2.
2 Tese: Todos os prazeres so intrinsecamente bons ou tudo o que
agrada em si mesmo bom em si mesmo.
Esta tese figura entre aquelas geralmente aceitas por todos os hedonistas, e
tambm por muitos dos classificados como no hedonistas (tal qual Aristteles,
por exemplo). Poder argumentar-se em favor desta sentena que o prazer
sempre um dos guias naturais de todo animal, que visa sempre quilo que
agradvel, ao passo que nenhum ser prefere a dor ou desprazer. Aristteles na
tica a Nicmaco recorre a Eudoxo que diz que ningum em s conscincia iria
preferir o desprazer ao prazer. Essa sentena tem validade tambm em Epicuro
que, no primeiro fragmento tico das Sentenas Vaticanas, diz que o prazer: o
primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda escolha ou recusa e
chegamos a ele valorizando todo bem como critrio do efeito que nos produz 129.
Ora, os no hedonistas objetam contra esta tese que no so todos os
prazeres bons, e ainda que no por serem desejveis que todos os prazeres so
bons. Um exemplo pertinente o caso da vingana, ou at mesmo a inveja,
sentimentos que proporcionam um prazer at mesmo indescritvel ao seu agente.
Nestes casos, apesar do apelo ao contedo moral da ao, que demonstra algo
reprovvel e um desvio de carter, no se consegue refutar o fato de que existe um
prazer a contido.
Acredita-se que Epicuro consegue aprimorar esta tese quando diz que:
nenhum prazer em si um mal, mas as coisas que nos proporcionam certos
prazeres acarretam sofrimentos s vezes maiores que os prprios prazeres 130. Ele
parece aceitar que o prazer, em si, sempre ser agradvel, embora tambm existam
prazeres impuros que, ainda que agradveis em si, devem ser rejeitados por suas
conseqncias.
Recordando o capitulo anterior, como Epicuro classificaria esta espcie de
prazer? Sem dvida, entre os da segunda espcie, ou seja, aqueles naturais no
necessrios. O desejo de vingana, no visa a satisfao natural de uma privao
129
130
82
ou dor, necessria vida natural. um desejo que pode ser prazeroso e bom, mas,
essencialmente, contm em si algo de inquietante, sendo um sentimento que o
homem no precisa nutrir. Lembrar-se- sempre que a misso da filosofia
epicrea teraputica, uma preparao para eliminar tudo aquilo que traga
consigo perturbao. Acredita-se que o epicurista no seu clculo, ao observar estes
exemplos, no veja dificuldade em concluir que, embora a ao acene com algum
prazer, moralmente m e desnecessria por si mesma e para si, em suas
conseqncias.
Nesse contexto, o que falar dos prazeres da aphrodisia e seu uso
intemperante como, por exemplo, no caso de uma traio? Um hedonista nunca
admitiria ser esta experincia m por si mesma e, ao contrrio, sempre a ver
como um prazer puro na perspectiva de sua grande intensidade, sendo, assim,
intrinsecamente boa e confundida com o bem. Como nos casos da inveja e da
vingana, Epicuro v o mesmo problema. Ele ir concordar no fato do gozo em si
ser bom (no sentido de agradvel, o que irrefutvel), mas deixa de ser uma ao
prefervel no momento em que as perturbaes pertinentes a ele se afiguram
possveis. O ato no seria reprovvel na perspectiva de um ato pecaminoso,
reprovvel pela divindade; ou mesmo reprovvel pela lei; todavia, passa a ser
reprovvel quando infringe os costumes e se configura como um desvio moral de
um indivduo que deveria ser temperante. Por isso, em Epicuro, o ato precisa
passar pelo exame do clculo
131
131
83
4.6.3
3 Tese: Somente os prazeres so intrinsecamente bons ou tudo o
que bom agrada em si mesmo agrada por si mesmo.
Esta tese admitida tambm por Vsquez geralmente aceita por todos
hedonistas. O contedo desta tese tratado de forma crucial no Filebo de Plato,
quando Scrates discute com seus interlocutores, que afirmam que somente o
prazer bom e o prprio bem. Se realmente tenta-se sustentar que somente o
prazer deve ser visto como bem prazeres do ventre como querem os hedonistas
(visto serem os mais intensos e imediatos) abdicando de prazeres estticos,
ticos, cientficos, da lembrana, e outras formas, esta tese torna-se insustentvel.
Por outro lado, compreendendo a fala somente os prazeres como sendo
referentes a todos os prazeres de forma conjunta, uma vez que todos so
experincias que encerram gozo, a tese torna-se coerente. Como afirma Frankena:
(...) o conhecimento, a excelncia, o poder, e assim por diante so simplesmente
frios, nus e sem valor, se no forem experimentados com o acompanhamento de
alguma espcie de gozo ou satisfao (...)
132
moral. Ele destaca que experincias prazerosas, como uma admirao esttica, no
correspondem diretamente a um valor moral, mas, inversamente, pode-se pensar
no caso de um marginal que agride uma vtima indefesa. Neste caso, o agressor
pode sentir um prazer em agredir ao passo que o agredido sente dor e desprazer.
Por mais foroso que seja, o prazer que sente o agressor agrada em si mesmo
para o agressor sendo inclusive um guia para que seja sempre prefervel obter o
prazer de agredir, do que a dor da vtima. Contudo, logicamente, a idia de bom
neste caso perde novamente seu valor moral, inexistindo a um limite entre justia
e injustia, quando o prazer serve de guia visando o fim que proporcione mais
prazer.
132
84
Acredita-se que Epicuro no faria objees no caso de se sustentar que
somente os prazeres so intrinsecamente bons e que tudo que bom em si
mesmo agrada em si mesmo quando por prazeres se entendam todas as
experincias que encerram prazer. Contudo, dialogando com o exemplo dado, o
prazer gerado, apesar de ser tido como agradvel ao agressor, no pode ser
considerado bom em si mesmo, visto as suas conseqncias futuras, e logo tratase de um prazer vo, que apesar de agradvel, no bom em si mesmo.
Admitindo isso no h por que dissociar o pensamento de Epicuro do de Plato ou
Aristteles. Pois ele assume definitivamente a variedade de prazeres,
privilegiando principalmente o conhecimento, a filosofia, a moderao e
proporo nas coisas.
4.6.4
4 Tese: Agradar o critrio para a determinao de que
intrinsecamente bom. o que torna as coisas como fins.
85
de uma regra de ouro. A moral epicrea se baseia num clculo para si prprio. No
clculo prazerdesprazer presente no caso da inveja, por exemplo, o prazer
geralmente ser menor que o desprazer, pois o individuo estar sempre inquieto
devido a uma retaliao, a um julgamento perturbador do seu esprito. Quanto
tese discutida, os fragmentos a seguir permitem compreender melhor o
pensamento de Epicuro:
Outra situao que pode ser pensada foi levantada por Moraes, to atual
quanto o consumo de drogas. Ele lembra bem que, em muitas situaes, os
homens usam drogas para driblar situaes desfavorveis, como os habitantes
andinos que mascam a folha da coca para suportar o ar rarefeito, alm de servir
como anestsico. Lembra tambm que a medicina moderna criteriosamente
manipula o uso da cocana e pio para aplacar dores intensas. Contudo, o seu uso
inconseqente leva a caminhos desgraados.
134
135
86
arrasadores e eliminam qualquer proveito e prazer que ela oferea. Esta tese
parece mesmo ser insustentvel e no pode tambm ser associada a Epicuro, uma
vez que foge do seu ideal de ataraxia e, tambm de autarkia, pois o indivduo
acaba por perder o domnio de si.
4.6.5
5 Tese: Uma atividade ou experincia intrinsecamente boa em
proporo quantidade de prazer que encerra (ou, melhor em
proporo predominncia quantitativa de prazer sobre a dor, que
nela se contm ou que lhe intrnseca).
87
traz menor prazer. Esta tese apenas sustentvel para si, mas como h a presena
do outro, estas experincias no morais no podem ser quantificveis.
H de se notar tambm que esta tese insustentvel medida que atos e
comportamentos cruis ou incontinentes possam ser preferveis por encerrarem
maior prazer. O fato que o mximo de prazer nem sempre o correto
moralmente. Vsquez traz um timo exemplo ao abordar a premissa que privilegia
a ao que oferece o mximo bem. Pensando numa guerra os mais necessitados
teoricamente so os que sentem a maior falta de alimentos e cuidados, como
crianas e idosos. Mas ao se distribuir alimentos populao, os mais
necessitados receberam mais alimentos em detrimento dos outros ditos menos
necessitados; um hedonista quantitativo, neste caso, poderia objetar sobre tal
ao, pois recebendo menos alimentos ele estaria mais vulnervel s dificuldades,
logo, aos sofrimentos. Assim a ao que melhor lhe atenderia seria a distribuio
igualitria dos alimentos, onde ele estaria recebendo mais alimentos,
proporcionando assim mais prazer para si.
Especulando com o que fora aqui visto, podemos perguntar: como Epicuro
se comportaria diante de uma situao catica como essa? Muitos comentadores,
inclusive Frankena e Vsquez, insistem em considerar Epicuro como um
hedonista quantitativo; contudo, Epicuro no se posicionaria desse modo, por
notar tambm que a solidariedade, como um veculo de amizade (exerccio
asctico que ser analisado no captulo seguinte), oferece mais a quem precisa,
sendo um ato em que a proporo de bem seria maior que o ato egosta que exige
mais para si.
88
cirenaicos que consideravam o prazer como o mximo bem, e deste modo,
entregavam-se intensamente aos prazeres.
A filosofia epicrea demonstra que o prazer que principia a vida feliz, tem
seu pice na combinao de ataraxia e aponia. Desta forma, a prtica de
exerccios ascticos como, por exemplo, o conhecimento physiolgico, o
controle e o clculo sobre os desejos so essenciais para a aquisio desse
mximo prazer, como esclarece Bryant:
136
89
5
Epicuro e o cultivo de si
INTRODUO
137
138
epicuristas:
A filosofia uma atividade que esclarece sobre o que foi erroneamente adicionado
pelo pensamento e assim liberta disto e de suas conseqncias negativas para a
vida. Esta arte e funo diagnostico-teraputica prioritria em relao arte
positiva de viver corretamente.
137
138
90
5.1
O RETIRO DO SBIO
139
conceito negativo que exprime excluso. O sbio que se retira da cidade, ora se
exclui, mas deve-se ter em conta o referencial. Pois, retira-se do centro da cidade e
se assume como um outro lugar, um outro grupo e outro ponto de vista. Destarte,
a filosofia epicrea pretendia ser teraputica acenando ao homem com a
possibilidade de bem-aventurana em meio a crise. Inversamente, a cura da cidade
ficaria relegada ao segundo plano, o que rendeu a Epicuro e sua escola duras
crticas por alguns comentadores desde a antiguidade, apregoando-se abrir mo
dos negcios da plis
140
THOMAS, Henry. Vidas de grandes filsofos. Traduo de Octvio Mendes Cajado. Porto
Alegre: Editora Globo, 1965.p. 38.
142
91
No se pode calar frente a essas fortes crticas, pois, primeiro deve-se
considerar que o retiro da vida pblica no foi exclusividade dos epicuristas,
como a seguir, Moraes 143 descreve:
E ainda, haja vista que insistir nos assuntos da plis, alm de trazer mais
perturbaes para o esprito, em nada proporcionariam prazer ao homem prazer
tanto no sentir-se cidado, como nas relaes pessoais ; o afastamento do sbio
seria natural, pois eles nada mais podiam fazer frente a deteriorizao da plis.
Hadot cita um trecho, que corrobora a presente hiptese, no qual Plato na obra A
Repblica
144
(...) Bem diminuto, Adimanto, , pois, o nmero restante dos que podem ter
dignamente comrcio com a filosofia [...] Ora, dentre este pequeno nmero, aquele
que se tornou filsofo e saboreou a doura e a felicidade que proporciona a possa
da sabedoria, que viu bem a loucura da multido e como no h por assim dizer
ningum que faa algo de sensato no domnio dos negcios pblicos, aquele que
sabe no possuir aliado com o qual pudesse ir em socorro da justia sem perder-se,
mas que, ao contrrio, como um homem cado no meio de animais ferozes, que se
recusa a participar de seus crimes e , alm disso, incapaz de resistir sozinho a
estes seres selvagens, pereceria antes de ter servido ptria e aos amigos, intil a si
mesmo e aos outros: penetrado por tais reflexes, mantm-se quieto e ocupa-se de
seus prprios afazeres; semelhante ao viajor que, durante uma tempestade,
enquanto o vento levanta turbilhes de poeira e chuva, se abriga atrs de um
pequeno muro, ele v os outros manchados de iniqidades e feliz se consegue
viver a sua vida neste mundo isento de injustia e atos mpios, e abandon-lo,
sorrindo e tranqilo, com uma bela esperana.
143
144
92
Visto isso, tendemos a concordar tambm com Bryant
145
considerando que
a opo de vida do Jardim ofereceu um modo de vida afirmativo tendo como base
o retiro coletivo. Nessa comunidade filosfica seria possvel praticar aquilo que se
tornara distante e turvo na plis: um modelo de vida asctico baseado na
moderao e em exerccios, como veremos a seguir que aspira um
melhoramento de si e a felicidade.
5.2
O cultivo de si e os exerccios
147
145
146
147
93
1 aprender a viver
2 aprender a dialogar
3 aprender a morrer
4 aprender a ler
148
Este importante aspecto, a escolha do modo de vida sbia, claramente uma confirmao da
hiptese apresentada no captulo anterior: na crise, mesmo os mais sbios mostram-se confusos em
seus comportamentos; continuam ensinando a virtude ou a poltica aos demais, entretanto, agem de
modo intemperante quando requisitados.
94
centrou como objetivo, quase missionrio, constituir uma filosofia e um modo de
vida no qual fosse possvel atingir a vida feliz, buscando-o na ataraxia, na aponia,
na temperana, no comedimento, na eliminao dos medos que atingem a
humanidade, no clculo sobre suas aes, sabendo conduzir-se e eliminando todas
as perturbaes, no afastamento da vida pblica decadente e, por fim, na amizade.
Esse cuidado de si, fundamentado no bem agir individual, tem como
requisito primeiro que o filsofo epicurista trabalhe seu conhecimento
physiolgico e o princpio dlfico dirigido a Scrates, que consiste em conhecer a
si mesmo. Esse conhecimento proposto por Epicuro ao invs de buscar o bom
governo da plis, como visavam Plato e Aristteles, a base para o bom governo
individual.
5.3
A Physiologia
95
resultando na formao de homens cada vez mais voltados para a poltica e para
aparncia perante as massas e, alm disso, homens cada vez mais crentes e tolos
pelo fato de desconhecer a prpria physis, sobre os deuses e a morte
151
. Sobre
tudo isto seria interessante rever o que j foi apresentado sobre a composio da
natureza no primeiro captulo deste trabalho.
Epicuro, em uma de suas teses fundamentais, expe com clareza o
fundamento do conhecimento physiolgico: De nada serve adquirir a segurana
em relao aos homens se as coisas que passam acima de ns, aquela que se
encontram sob a terra e aquelas que se espalham pelo espao infinito nos inspiram
temor 152.
Destarte, isento destes medos a partir do estudo e da compreenso
physiolgica - o homem pode voltar sua ateno ao presente e para si, assumindo
um comportamento sbio, no qual, a medida ser seu eixo norteador. O homem
deve ser sophs e temperante para viver bem este momento, para cuidar da sade
deste corpo e desta alma, sendo senhor de si. Nesse sentido, a autarkia, como
fundamento do sophs, necessita do constante exerccio e cultivo de si, na prtica
entre outros do logisms e phrnesis. Exerccios que conduzem o homem
sempre de maneira que a ataraxia seja alcanada.
5.4
Logisms e phrnesis
Sobre o exerccio aprender a morrer, sob a tica do cultivo de si, o lidar com a morte
ultrapassa a temtica do fenmeno e o morrer, como destacou Hadot, se apresenta como um
exerccio, no qual se deve aprender a morrer. Visto que no motivos para se temer a morte, todo
desespero seria infundado e dissipado. Assim, a preparao para uma bela morte tornaria evidente
as virtudes, as quais apenas possuem os sbios que cultivam suas existncias.
152
96
numa disposio prtica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que
bom ou mau para o homem
153
[...] A cada instante e perante cada coisa, perguntar e poder dizer se depende de [si]
ou no, e colocar todo o orgulho, toda satisfao, toda afirmao de si
relativamente aos outros, no fato de se reconhecer o que depende de si, um domnio
total, absoluto e sem limites [...]. 155
153
154
155
97
5.5
A Parrhesia
156
98
sujeito aos mesmos percalos. Destarte, mestre e aluno ajudam-se mutuamente
para alcanar o fim da ataraxia.
Hadot aponta que a direo de conscincia exercida por Epicuro assumia a
seguinte mxima: faze tudo como Epicuro te visse
157
158
[...] ele sabe, notadamente, que a culpa tortura a conscincia moral e que possvel
libertar-se dela reconhecendo as prprias faltas e aceitando as repreenses, mesmo
que elas provoquem algumas vezes o estado de contrio. O exame de
conscincia, a confisso, a correo fraterna, so exerccios indispensveis para
obter a cura da alma [...]. 159
158
159
99
verificar, calcular e projetar suas aes tendo em vista a imperturbabilidade e
serenidade da alma. A meditao no uma obrigao, mas uma tomada de
conscincia de si e transformao do eu.
5.6
A amizade
162
160
161
162
Sob essas bases Epicuro inicia sua teoria do direito. Teoria que analisaremos em pesquisas
futuras.
100
egosta, posto que, em sua origem, a amizade dependeria do interesse. Esta
sentena que permitiu tal questionamento, na verdade, fazia parte dos planos de
Epicuro para explicar a amizade. E fica claro no fragmento a seguir que a inteno
do filsofo era provar o exatamente o contrrio: No amigo quem sempre busca
a utilidade, nem quem jamais a relaciona com a amizade, porque um trafica para
conseguir a recompensa pelo benefcio e o outro destri a confiada esperana para
o futuro 163.
A presente dissertao concorda com Foucault, na Hermenutica do sujeito,
entendendo a utilidade num sentido particular. natural e inquestionvel que a
amizade nasa numa relao de convenincia por exemplo, nos aproximamos de
algum por diversos motivos, seja para afastar a solido, para um pacto de
segurana, para satisfazer um desejo, ou mesmo para ajudar em qualquer ocasio.
Entretanto, existe uma clara oposio entre a utilidade inicial e a escolha pela
amizade por si mesma. Inversamente, quem busca numa relao dita de amizade
somente a convenincia permite, forosamente, a comparao com a figura do
amante apaixonado, muito bem ilustrado no discurso de Lsias, no Fedro (231 234) de Plato. Neste dialogo, o amante depois de saciar ao mximo suas
vontades e aproveitar da companhia e juventude do amado logo depois o
abandona na iminncia de uma nova paixo. A aproximao entre os dois casos
clara na medida que, acabada a paixo ou a vantagem da relao, o amante
esquece o amado, logo no o ama verdadeiramente. No caso da amizade, quem
sempre busca a utilidade ou quem nunca est presente no amigo. Ainda sobre a
utilidade, ela explicada pelo prprio carter natural do homem como sendo um
ser para a comunidade, como indica Foucault
164
163
164
101
um futuro feliz, como se pode ver no seguinte fragmento: No temos tanta
necessidade da ajuda dos nossos amigos como na confiana da sua ajuda 165.
Cabe citar a pertinente perspectiva de Reale & Antiseri. Eles apontam que
depois de nascida a amizade, a partir da utilidade, ela de forma alguma imposta
ao individuo. Eles indicam que a phila - [...] rene os que sentem, pensam e
vivem de modo idntico [...] no amigo, Epicuro v um como outro eu. A amizade
seno til, mas o til sublimado [...].
166
Por fim, o cultivo da amizade configura uma ascese para Epicuro, na qual as
partes envolvidas aspiram sabedoria, onde a presena fraterna do outro favorece
a vida alegre e serena:
165
166
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia. v. 1. Antiga e Idade Mdia. So
Paulo: Paulinas, 1990, p. 249.
167
168
102
amizade apresentaria elevado grau de dramaticidade, no podendo ser considerada
como um prazer estvel e legitimamente um desejo necessrio.
Concordar com Duvernoy afirmando que a amizade se afigura como um
desejo natural, mas desnecessrio, por sua vez, no quer dizer que o sbio no
deva busc-la como visto anteriormente. Ciente desse vis dramtico, por outro
lado, a amizade se distancia daqueles desejos desnecessrios, pois, em sua
essncia, ela nunca se projeta ao excesso como no caso da avareza, egosmo ou
vantagens sobre o outro caso contrrio, no seria amizade. E, por isso, entendese que o desejo da amizade transita entre o desnecessrio e o necessrio, se
aproximando muito mais deste ltimo, pois, como indica Lucrcio 169, mesmo que
nasa do proveito, juntando vizinhos na base da concrdia, respeitando-se os
contratos, a amizade visa a estabilidade da felicidade assim como o alimento visa
a estabilidade do corpo. Ottaviani
170
5.7
A Memria (mnme)
169
170
103
O segundo eixo leva a memria ao mbito do prazer. No inicio do segundo
captulo deste estudo, atribuiu-se memria uma das formas de manifestao do
prazer, e sua ntima relao com o desejo. Basta retornar a Plato no Filebo
171
173
. Ainda nesta
O epicurismo considera, com efeito, que alm do mundo imediato, captado pelas
sensaes, h tambm um plano de realidade igualmente corprea, porm mais
sutil disposio do homem: seu arquivo de lembranas simulacros corpreos
(prolpses; grifo nosso) de sensaes , que ele pode utilizar para felicidade. Essa
171
PLATO. Philebus. Translation by Harold Fowler. London: Harvard University Press., 1990, p.
279-285, 34a 35e.
172
173
Ibid, p. 108.
104
duplicidade de planos sugere a distino platnica entre sensvel e inteligvel, mas
completamente diversa. Em Plato o plano inteligvel constitudo por idias ou
formas incorpreas, as quais a alma pode retornar por ascese e reminiscncia
(anamnesis), que nada tem a ver temporalidade do Aion, o eterno sempre. No
Epicurismo, a volta rememorao subjetiva, no eixo da temporalidade do vivido
sensvel, sem jamais perder o vnculo com o corpreo. 174
174
PESSANHA, Jos Amrico Mota. As delcias do jardim. In, NOVAIS, Adauto (Org.) tica.
So Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura. 1992. pp. 77 78.
175
176
105
6
CONCLUSO
106
Epicuro, a filosofia valorosa se contribuir para a felicidade) mas, oferecer uma
resposta crise de seu tempo.
Para compreender a amplitude da crise poltica, moral, e pessoal do tempo
de Epicuro, tentou-se fazer nesta dissertao um trabalho arqueolgico,
encontrando a raiz do problema na guerra do Peloponeso, ocorrida a pouco mais
de cem anos antes da fundao dos Jardins. A guerra trouxe consigo uma srie de
mazelas como a fome, a peste e a morte. Concomitantemente, trouxe tambm o
desequilbrio nas questes acerca do governo da cidade.
Pde-se constatar que esse quadro que se perpetuou at o tempo de
Epicuro, ora mais, ora menos turbulento colocou o homem frente a dilemas
existenciais cruciais, como por exemplo, qual o valor da vida?; para qu, por que
e para quem lutar e governar?; o que a felicidade, e como ser feliz?. Essas
questes, embora discutidas dentro dos ciclos intelectuais, mostraram que mesmo
os mais sbios encontraram-se confusos em respond-las no auge da crise.
Epicuro percebeu que apesar desses problemas serem visveis, e largamente
discutidos pelos filsofos que o antecederam, o xito obtido no alcanou a
dimenso esperada: primeiro, devido ao fato desta orientao salvar o indivduo
sujeito poltico, ou seja, visava formar o homem na sabedoria e na prudncia para
ser um bom cidado, ocupando seu lugar na plis e dirigindo-a; segundo, pois no
contemplou a todos, mas apenas a uma parcela de privilegiados com acesso a
Academia, ao Liceu, aos sofistas e, mais adiante, ao Prtico.
Para Epicuro, o grosso da populao e mesmo estes poucos privilegiados,
em sua condio ntima ainda padeciam de toda carga de tormentos,
principalmente, por desconhecer sobre si mesmos. E ainda, confusos acerca do
prazer e da felicidade, por no refletir e calcular sobre suas sensaes, deparavamse em mais um problema: o excesso no uso dos prazeres enquanto tentativa de
busca pela felicidade.
Destarte, seria uma grande lacuna para este estudo, deter-se unicamente em
uma anlise sistemtica da filosofia epicrea, deixando de lado a avaliao do
contexto e dos fatos, na medida em que estes so determinantes nas filosofias que
anteciparam e influenciaram Epicuro.
A anlise do perodo mostra que nas vrias escolas filosficas, de forma
geral, duas questes morais deveriam ser urgentemente respondidas: de um lado,
o tema da felicidade como a finalidade da vida; por outro, existia fatalmente a
107
problematizao dos prazeres e dos seus usos, na medida em que o contexto da
crise fortaleceu a doutrina hedonista, na qual o prazer o mximo bem ao alcance
do homem e at mesmo confundido com a felicidade.
A presente investigao pde concluir que Epicuro volta-se contra esse
hedonismo insensato e quantitativo que, intempestivamente, acentuava a
fragmentao do indivduo: tanto socialmente, enquanto sujeito poltico cidado
da plis, tanto quanto individualmente na relao que tem consigo (no que tange a
sua sade, sua serenidade fsica e espiritual).
Como foi visto, as consideraes sobre Plato e, principalmente, sobre
Aristteles foram pertinentes, pois evidenciaram algumas antecipaes evidentes
do epicurismo, ao ver que os excessos dos prazeres constituam a raiz problema
do homem em saber conduzir-se. Logo, era necessrio conhecer a verdadeira
natureza dos desejos como meio de conhecer a si prprio. O prazer, ento, pde
ser reconhecido e trabalhado na ascese dos desejos: na satisfao moderada dos
desejos naturais necessrios, na limitao dos desejos naturais no necessrios, e
na eliminao dos desejos nem naturais nem necessrios.
Os prazeres que Epicuro relaciona como o Bem so os prazeres estveis da
vida simples, dos quais fazem parte a satisfao de estar pleno, ou seja, no
desejar ou ter necessidades; de no sofrer dores fsicas ou espirituais; gozar da boa
sade; no ter perturbaes morais; o convvio entre amigos; os prazeres
proporcionados pela memria; e a satisfao, de um modo geral, dos prazeres que
no tragam consigo nenhuma perturbao e, sobrevm coroando todas as
atividades.
Deste modo, conclu-se que o hedonismo epicreo se resume no mais puro
prazer, o prazer da ataraxia; seu hedonismo se mostra ao alcance de todos que
compreendam seu Tetraphrmakon: a) Os deuses no so temveis; b) a morte
no nos traz riscos; c) no difcil atingir o bem; d) nem suportar o mal com
coragem. Esse qudruplo remdio resume os objetivos da filosofia de Epicuro,
permitindo a visualizao do seu carter missionrio e de solidariedade com o
homem, independentemente da sua poca; indica por quais vias o homem deve
encontrar a paz, como tambm obter a maestria de si e saber conduzir-se perante
todas as situaes.
108
Visto isso, no se pode deixar de reverenciar o valor da filosofia de Epicuro.
Ele falou do prazer, melhor do que ningum, assumindo verdadeiramente o modo
de vida da sabedoria e no de forma alguma exagero dizer que Epicuro, alm do
filsofo do prazer, foi tambm o filsofo da amizade e da felicidade. Um
humanista. Todo o corpo da doutrina se volta para o agir humano numa clara
reao de propiciar ao homem de seu tempo uma libertao. Libertao de todos
os infortnios que naturalmente podem se suceder, mas, principalmente, uma
libertao das iluses: iluses de felicidade, de prazer, de amizade, de ser sbio...
Enfim, sua filosofia se apresenta como um convite ao homem para cultivar a si
mesmo, visando a vida harmnica e a felicidade do homem, indicando todos os
caminhos para isso.
Resta transcrever aqui apenas o testemunho de Lucrcio que dimensiona o
alcance da filosofia epicrea entre os antigos: por um lado, seu fervor dogmtico e
missionrio; por outro, o indubitvel respeito e afeto que todos os discpulos
tinham para com seu mestre:
tu que primeiro pudeste, de to grandes trevas, fazer sair um to claro esplendor,
esclarecendo-nos sobre os bens da vida, a ti eu sigo, glria do povo grego, e
ponho agora meus ps sobre os sinais deixados pelos teus, no por qualquer desejo
de rivalizar contigo, mas porque por amor me lano a imitar-te. De fato, como
poderia a andorinha bater-se com o cisne, que poderiam fazer de semelhante em
carreira os cabritos de trmulos membros e os fortes, vigorosos cavalos? Tu, pai,
s o descobridor da verdade, tu me ofereces lies paternais, e nos teus livros que
ns, semelhantes s abelhas que nos prados floridos tudo libam, vamos de igual
modo recolhendo as palavras de ouro, de ouro mesmo, as mais dignas que houve
desde que o tempo tempo. 177
177
109
7
Bibliografia
7.1
Obras de autores antigos
110
7.2
Textos exegticos
111
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