Filosofia Do Exilio

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Revista Eletrnica do NIEJ/UFRJ Ano I n 3 2010

Para uma filosofia do exlio:


A. Rosenfeld e V. Flusser sobre as vantagens de no se ter uma
ptria1
Mrcio Seligmann-Silva

O tema proposto para a minha fala, Intelectuais e processos de circulao cultural, no


contexto da auspiciosa fundao de um Frum de Pesquisas Brasileiras na Freie Universitt Berlin,
provocou em mim algumas questes que, como vocs logo vero, no poderei responder
integralmente aqui. Interroguei-me como pensar o local e o papel do intelectual da chamada
periferia, em uma poca de circulao intensa e desconstruo das hierarquias do tipo periferiametrpole. Ou ainda, perguntei-me quais modelos de circulao cultural permitem pensar esta nova
situao nmade, que paradoxalmente ao mesmo tempo solicita um abandono do modelo (moderno)
do nacional e, por outro lado, refora o local, em resposta globalizao econmica e cultural, assim
como constri muros em torno dos novos blocos econmicos. E enfim, perguntei-me em que
medida as experincias de intelectuais exilados no Brasil permitem lanar uma luz sobre estas
perguntas.
A estas questes axiais que felizmente no sero respondidas integralmente devero
somar-se outras, dentro do desafio de pensar aqui com vocs o local da diferena em uma era de
homogeneizao econmico-cultural. Estas questes so verdadeiramente enormes. No poderei
entrar em vrios temas diretamente relacionados a esta reflexo sobre a dialtica entre o local e o
global, tal como, em que medida a intensa capitalizao do Brasil e de sua cultura tem alterado os
papis tradicionais projetados no Brasil como grande pas do futuro, terra virgem, serto a ser
civilizado pelo estrangeiro e pelos intelectuais locais. O Brasil tem se aburguesado e isto justamente

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sob um governo de um ex-proletrio. Ironias da vida. Aqui vou me concentrar em tentar ler a partir
da nossa situao atual indcios para uma nova cartografia dos campos de fora culturais. Parto de
um local chamado Brasil e do pressuposto de que novas rotas de circulao esto modificando
rapidamente nossas antigas concepes de periferia e de centro.
Diante do desafio de abordar temas to enormes, optei por discutir esta nossa atualidade
baseando-me de modo que pode parecer primeira vista contraditrio nas idias de dois
intelectuais de lngua alem que se exilaram no Brasil e morreram j h muitos anos. Coloco-me aqui
como uma espcie de porta-voz destes intelectuais, em um misto de homenagem e de pedido de
ajuda para pensar o nosso presente. Refiro-me a Anatol Rosenfeld, nascido nesta cidade de Berlim
em 28 de Julho de 1912, tendo emigrado em 1936, antes de concluir seu doutorado em filosofia na
Friedrich Wilhelm Universitt. Ele chegou ao Brasil no incio de 1937. Depois de trabalhar em uma
fazenda em Pedreira, perto de Campinas, e como caixeiro viajante, no final dos anos 1940 ele
retomou seus trabalhos intelectuais e passou a trabalhar como jornalista. Rosenfeld se tornou aos
poucos uma eminncia da intelectualidade paulista, particularmente daquela ligada USP, nos anos
da criao de vrios de seus cursos de cincias humanas. Amigo de Antnio Cndido, de Jac
Guinsburg (que se tornaria o editor de sua obra), ele se recusou a fazer uma carreira acadmica e
preferiu sua independncia como livre-pensador. Ele faleceu em So Paulo no final de 1973, ou seja,
depois de ter vivido 36 anos no Brasil, doze a mais do que vivera em Berlim.
O outro pensador que nos guiar nesta reflexo e ser sobretudo dele que falarei aqui
deixou o Brasil justamente em 1973, o ano da morte de Rosenfeld, para se fixar em Robion, na
Provance francesa e ento conquistar fama internacional como comuniclogo e se tornar o
intelectual brasileiro de maior repercusso no sculo XX. Refiro-me, claro, a Vilm Flusser. Ele
nasceu em Praga em 1920 e deixou aquela cidade em 1939 fugindo do nazismo que significou a
morte de toda sua famlia e o desaparecimento de seus amigos: todas as pessoas s quais eu estava
ligado de modo misterioso em Praga foram assassinadas. Todos. Os judeus nas cmaras de gs, os
tchecos na resistncia, os alemes na campanha russa. (Alle Menschen, mit denen ich in Prag gehemnisvoll
verbunden war, sind umgebracht worden. Alle. Die Juden in Gaskammern, die Tschechen im Wiederstand, die
Deutschen im russischen Feldzug. 1994:19). Aps um ano na Inglaterra ele foi para o Brasil, instalando-

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se em So Paulo. Como Rosenfeld, de quem se tornaria amigo e admirador, ele tampouco se tornou
um professor no sentido pleno. Apesar de ter lecionado na FAAP e na USP, nunca se integrou
plenamente no sistema acadmico e foi rechaado pelos filsofos, que estavam ento construindo o
Departamento de Filosofia da USP e desconfiavam do gnero de filosofia que Flusser praticava:
ensasta, extremamente erudito, mas de modo algum filolgico, como ento se praticava a filosofia
em So Paulo. Flusser se sentiu asfixiado e limitado no Brasil da ditadura e em 1973 decidiu se autoexilar: desta feita em um exlio cultural e no tanto poltico como ocorrera em 1939. Apesar da
admirao mencionada que ele alimentava com relao a Rosenfeld, este manteve a distncia de
Flusser, talvez tambm desconfiando de sua criatividade desregrada.
Mas no deixa de ser sintomtico que os dois exilados judeus de lngua alem se uniram
justamente na tentativa de fazer uma traduo para o alemo. Refiro-me traduo de excertos do
livro-poema Galxias de Haroldo de Campos. Esse livro foi publicado em 1984, mas os poemas
vinham sendo feitos desde o incio dos anos 1960. Esta traduo saiu no nmero 25 da revista rot
editada por Max Bense e Elisabeth Walter com o ttulo versuchsbuch galaxien. Vale a pena recordar
esta publicao no nosso contexto. Na introduo a esta traduo l-se sobre o texto de Haroldo:
enheit in der verschiedenheit. verschidenheit in der einheit (unidade na diferena. Diferena na unidade).
Estas expresses se referiam ao texto tanto do poema como da traduo, mas podem tambm ser
aplicadas unio de Flusser e Rosenfeld em um mesmo projeto. Projeto este no por acaso de
traduo e de traduo de um texto particularmente intraduzvel. O projeto galxia de Haroldo de
Campos foi uma empresa de radicalizao do gesto mallarmaico de disseminar os sentidos da poesia.
O poema transformado em dispora de palavras e de significados. Eis aqui uma prova da abertura
do poema e de sua transgermanizao feita por Rosenfeld:
e comeo aqui e meo aqui este comeo e recomeo e arremesso
e aqui me meo quando se vive sob a espcie da viagem o que importa
no a viagem mas o comeo da por isso meo por isso comeo escrever
mil pginas escrever milumapginas para acabar com a escritura por isso
recomeo por isso arremeo por isso teo escrever sobre escrever sobre
escrever o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapginas ou uma pgina em uma noite que o mesmo noites e pginas

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und hier fange ich an und hier fange ich


diesen anfang und fange gemessen wieder
an und fange mich und werfe
entfangend und vermesse mich wenn man
nach art des reisens lebt ist nicht die reise
wichtig sondern der anfang der deshalb
fange deshalb fang ich tausend seiten zu
schreiben fang ich tausendeinseiten an
zu enden mit der schrift anzufangen mit
der schrift anzufangen zuenden mit der
schrift deshalb fange ich wieder ich an deshalb
entwerfe entfangend ich deshalb ermess
ich ermesse ber schreiben zu schreiben
ist die zukunft des schreibens ich
berschreibe und berschreite in
tausendeinnchten tausendeinseiten oder
eine seite in einer nacht was daselbe ist
nchte und seiten...

Trata-se de dar um novo futuro para a escrita trata-se de acabar com ela para reinvent-la,
em uma viagem, escrevendo sobre a escritura, mas tambm sobreescrevendo: como em uma eterna
traduo. sobrescrevo sobrescravo, escreve de Campos, e Rosenfeld recria: berschreibe und
berschreite. Esse passo alm pode ser pensado tanto como o paragone do tradutor com o original,
como tambm o do autor com a tradio. Toda a cultura se transforma em berschreiben (transcrever,
transferir) e berschreiten (ultrapassar, transgredir), em ultrapassamento, mas tambm em perder-se na
viagem.
Cada um dos tradutores traduziu duas pginas-poema. Rosenfeld, alm da pgina de abertura,
traduziu um poema que justamente trata de viajantes em uma Hauptbahnhof (Estao Central). A cena
no por acaso se passa em um pas de lngua alem e vrias palavras em alemo pontuam o texto de
Campos. Rosenfeld traduz e traz para o alemo um texto j ele mesmo polinizado por este idioma e
cultura. Talvez esta cor alem que o tenha atrado para este poema. J Flusser elegeu dois poemas
dos mais rarefeitos em termos semnticos, sendo que ele em certos momentos se concentrou mais
em construir uma paleta sonora to rica quanto a do original, do que em tentar refazer em alemo os
fragmentos de sentido. Um dos poemas tem como tema a escrita e o livro. Em de Campos lemos:

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mas o livro poro mas o livro puro mas o livro disporo


brilhando no monturo e o coti diano o coito dirio o morto no armrio
o saldo e o salrio o forniculrio ddalodirio mas o livro me salva me
alegra me alaga pois o livro viagem mensagem de aragem plumapaisagem
viagemviragem ...

E Flusser verte:
aber das buch ist die ffnung
aber das buch ist die hoffnung aber das

buch ist die erffnung als erscheinung in


der erschweinung und der alltag und der
pralltag und die leiche in der speiche und
der speichel und der ausgleich der peisel
im heisel aber das buch ist mein heil mein
pfeil mein quell denn das buch ist reise ist
weiser des suselns ist gefiedergekrusel
ist reisegekreise ...

Nesta passagem vemos novamente a figura do livro-viagem, mas este livro tambm tratado
como disporo, ou, na verso de Flusser: das buch ist die erffnung (o livro a abertura). Ou
ainda, o livro viagemviragem, reisegekreise. Entre dispora e viragem, entre arado e monturo, o
livro uma figura da errncia, como o prprio poeta se coloca e seus tradutores com ele. A traduo
a performance desta dispora, desta viso do livro como viagem errante. Que dois exilados nos
inspirem estas palavras atravs da poesia disseminante de Campos algo que nos deve dar a pensar.
Mas por agora passemos por este portal tradutrio e nos dediquemos a Rosenfeld e em seguida a
Flusser, tentando apontar o que eles tm a nos ensinar sobre a dispora questo que para eles
estava longe de ser s terica.
Rosenfeld editou um importante livro lamentavelmente pouco lido hoje em dia chamado
Entre dois mundos. Ele trata da errncia de dezenas de intelectuais judeus entre a sua judeidade e uma
cultura local. Na bela introduo deste volume que inclui textos de Heine, Kafka, dos Zweig, de
Schnitzler, Dblin, Feuchtwanger, Gerchunoff, S. Bellow, Alberto Dines, I. Babel e Samuel Rawet,
para ficarmos com alguns dos mais conhecidos Rosenfeld escreve em tom quase que

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explicitamente autobiogrfico. Ele conhecia muito bem a sensao de estar entre os mundos, j que
pertencia tanto cultura alem, como judaica e brasileira.
Falando de Kafka e da interpretao de seu O Processo como uma espcie da alegoria da
situao do judeu, Rosenfeld comenta: De qualquer modo, Jos K. morre sem saber por qu.
Tambm as irms de Kafka morreram assassinadas, num campo de concentrao, sem saber por qu.
E fim semelhante teria tido o prprio autor de O Processo se tivesse vivido mais. Tambm Kafka teria
morrido sem saber por qu. (Rosenfeld 1967:6) Ele considera o caso de Kafka exemplar e
justamente por isso universal: ele vai alm da situao judaica. Este comentrio de Rosenfeld, em
1967, sintomtico, pois j adianta toda uma potente linha de leitura da cultura como sendo uma
cultura do exlio e da dispora. Ou seja, ele no procura simplesmente fazer uma leitura judaizante de
Kafka, algo que no seria nada original, mas sim tenta ler em Kafka traos do homem
contemporneo.
Ele recorda a teoria da lonely crowd, em moda ento, para se referir a este sentimento de
alienao do homem contemporneo e assim aproxim-lo de Kafka. Nenhuma pessoa de
sensibilidade, que viva realmente o momento atual, pode fechar-se inteiramente a esta teologia do
exlio frmula que talvez defina aspectos essenciais da obra kafkiana. Ele fala ainda de um
duvidoso privilgio de ser visto como uma espcie de pioneiro e paradigma desta experincia
contempornea. Reencontraremos em Flusser uma ordem de idias semelhante. Para Rosenfeld, no
entanto, o modelo do modelo, ou seja, o Kafka de Kafka tinha sido Heine. Este teria tambm
sofrido de complexo de exlio. Ele era o tipo acabado do judeu marginal. (1967:10)
Rosenfeld descreve Heine como um dracin, nascido em uma casa j sem tradio, num
mundo de semi-emancipados que o marcaria como um marginal, algum condenado a viver entre
dois mundos. Um estranho. evidente que estamos autorizados a ler na descrio que Rosenfeld faz
desta tradio dos exilados e marginais uma auto-reflexo de um exilado. Afinal ele mesmo nos
chama a ateno para a importncia documentria dos escritos. (1967:9) Para ele, toda literatura
possui algo de confisso e hoje sabemos que no s a literatura o possui ou ainda, de um outro vis:
se tudo literatura, sempre h confisso na escrita.
Rosenfeld ao falar de Heine descreve e teoriza algo que eu definiria como uma gerao
ponte. Mas esta gerao no pode ser reduzida a um perodo restrito. Podemos ver nela tanto Heine
(1797-1856), como Freud, nascido no ano de morte de Heine, ou ainda Kafka (1883-1924) e mesmo

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Walter Benjamin (1892-1940). Mas mesmo a gerao de Rosenfeld ainda sofreu de um complexo de
ponte. E Flusser, talvez mais libertado deste complexo, no deixou de cultivar uma verdadeira
obsesso pelas pontes e pela metfora das pontes e do pontificado. (Cf. Seligmann-Silva 2009 e
2009b) Rosenfeld descreve o complexo de exlio de Heine como uma autntica doena nervosa, que
estaria na origem de atitudes oscilantes, do fato dele ter passado boa parte de sua vida viajando, ter-se
convertido ao cristianismo para em seguida se arrepender amargamente disto, ter sido um ardente
patriota germnico e depois o fundador da Associao para a Cultura e Cincia dos Judeus e algum
que odiava tudo que se referisse Alemanha. Heine teria um anseio de integrao, uma sede de
amizade, ao lado do aguilho e da necessidade do deslocamento. Vale notar que esta compulso
viagem e ao deslocamento agiu de modo distinto em cada um destes exilados existenciais que
mencionei aqui: mas todos eles viveram na pele e na alma a situao de ponte e, com exceo de
Kafka, todos foram exilados polticos. Kafka, de certo modo, foi um exilado interno. Freud, Kafka
e Flusser23 perderam a famlia em campos de concentrao.
Rosenfeld escreve sobre Heine:

Nele, como expoente genial, tudo toma feies excessivamente agudas, mas as suas
peculiaridades so, em essncia, as de todos os marginais, sejam eles mulatos,
mestios da ndia, imigrantes ou sobretudo seus filhos nos quais se manifesta
incisivamente o drama da segunda gerao j sem as tradies dos pais e ainda
mal adaptada ao ambiente. (1967:14)

Ou seja, Rosenfeld faz de seu estudo sobre o exlio judaico um ensaio sobre os deslocados,
exilados e moradores de um mundo reificado. Novamente: estes judeus valem como exemplos, so
singulares, mas so universais. No por acaso Rosenfeld fala da dupla lealdade de Heine, conceito
amplamente utilizado para caracterizar a situao do tradutor, como aquele que deve ser fiel tanto
lngua de partida como de chegada: tarefa impossvel, como bem o caracterizou Benjamin ao
denominar seu famoso texto sobre a traduo com a expresso: Die Aufgabe des bersetzers. A tarefa,
mas tambm a desistncia e o fracasso do tradutor. O tradutor um pontfice, mas tambm algum
que vive no entre das lnguas e das culturas.

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Walter Benjamin, alis, que tambm foi um tradutor, de Baudelaire e Proust, entre outros
conhecia bem os canais comunicantes entre a traduo e o gesto da ironia, outra das marcas dos
exilados e de Heine, como recorda Rosenfeld. Com Thomas Mann, Rosenfeld afirma que a ironia
distncia e arremata: Distncia a situao do estranho e marginal. (1967:17) Este estranho,
Unheimlich, vive sem casa. Veremos que Flusser desenvolver uma filosofia que comportava um
estranho elogio da casa ambulante. O deslocado, na viso de Rosenfeld, recusa uma casa assim como
recusa um rtulo e uma identidade estanques. Assim, tanto mais ele rechaa os esteretipos e lugarescomuns que so projetados sobre certos grupos: Qualquer conceito sobre um grupo inteiro,
escreveu Rosenfeld, sempre um preconceito (1967:21s.). Como aquele que assume seu ser
estranho, o judeu teria se colocado no local de uma minoria fraca e se tornado um bode expiatrio.
este em boa parte o tema das histrias reunidas por Rosenfeld em seu livro Entre dois Mundos.34 Mas
algumas delas tratam tambm de como se pode viver bem na situao de exlio: Vive-se
perfeitamente bem entre dois mundos; de fato, escreve Rosenfeld, tal situao uma fonte de
enriquecimento, ele arrematou. (1967:27) Ou seja, o tradutor de culturas, a ponte entre o passado e
o presente e entre dois mundos, o judeu errante no seu exlio pode tambm transformar esta situao
aparentemente hostil em fonte de enriquecimento. Flusser foi decerto o intelectual do sculo XX que
melhor explorou esta possibilidade. Passemos a seus textos.
Mas Flusser no apenas construiu uma filosofia positiva do exlio, ele foi tambm um crtico
radical do nacionalismo. No seu universo, um aspecto era a contraparte do outro. Como algum que
vivera na carne as conseqncias do mal nacionalista, ele sempre tinha as antenas muito alertas pra
este perigo. Quando da queda do muro e da dissoluo dos blocos socialistas, ele foi uma voz isolada
que j anunciava as terrveis guerras nacionalistas que se tornaram realidade. Ele no tinha dvidas de
que os nacionalismos renasceriam como uma Fnix das cinzas (1994:94), como ele escreveu em
1991. O nacionalismo era um dos poucos aspectos da humanidade que faziam do otimista Flusser
um pessimista e inconsolvel crtico da cultura. O nacionalismo barrava a viso utpica que ele tinha
de uma sociedade ps-histrica. Ele via no pensamento romntico conservador as origens deste
modo nacionalista de pensar que ele criticou j no seu livro A histria do Diabo, de 1965. Eu cito:
os filsofos do povo alemo conseguiram encher de interesse existencial esse conceito, e
transform-lo de praga [!] em motivo de orgulho. enormemente fecunda essa inovao introduzida
pelo idealismo. J produziu pelo menos quatro guerras, incontveis fornos de incinerao, e

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revolues sangrentas. (2006:86) Hoje podemos dizer que este mal gerou na verdade dezenas ou
centenas de guerras. Desdobrando a lgica do nacionalismo, Flusser chega logo ao cerne do
pensamento poltico que determinou o nacional-socialismo: O povo ardentemente amado est
sempre rodeado de inimigos internos e externos. [...] E os nossos inimigos internos so aqueles que
no amam o povo, mas persistem num individualismo cego, no querem ser como a gente. So
traidores. Os nossos inimigos so odiosos, e o nosso dio a eles est em proporo direta com o
nosso amor ao povo. (2006:87) Estamos a um passo do raciocnio de Rosenfeld sobre o judeu
como estranho e como bode expiatrio. Flusser, de resto, escreveu diretamente sobre este tema em
vrias ocasies, mas sobretudo ao resenhar em 1982 o ensaio de Ren Girard intitulado Le bouc
missaire. (1995:101-106)
sobre esta base negativa que devemos ler as potentes reflexes de Flusser sobre a lngua, a
traduo e seu elogio do exlio e da circulao. Esta base era tambm, novamente, a sua vida. Assim
no nos surpreende mais se encontramos no mencionado livro de 1965 sobre a histria do diabo,
uma referncia ao carter autobiogrfico de toda cosmoviso. Aquilo que chamamos nossa
experincia individual , portanto, muito menos caracterstico, e muito mais tpico que suspeitamos.
(2006:94) Nesse livro, Flusser explora tanto a importncia da lngua materna, como tambm as
vantagens de abandon-la. Neste ponto o gesto da traduo essencial. Como j para Wilhelm
Humboldt, tambm Flusser acreditava que a lngua materna forma todos os nossos pensamentos, e
fornece todos os nossos conceitos. (2006: 91) E mais, toda lngua produz e ordena uma realidade
diferente. Se abandonamos o terreno da nossa lngua materna, escreve o exilado Flusser,

o nosso senso de realidade comea a diluir-se. O amor pela lngua materna


restabelece o nosso senso de realidade, porque nos proporciona a vivncia da
superioridade da nossa prpria lngua. [...] Se perdemos o amor pela lngua materna,
se aceitamos todas as lnguas como ontologicamente equivalentes, a nossa realidade
se desfaz em tantos pedaos quantas lnguas existem.

E Flusser conclui: E nos abismos entre estes pedaos abre-se o nada, muito precariamente
transposto pelas pontes duvidosas que as tradues oferecem. A perda do amor pela lngua materna
equivale a uma forma infernal da superao da luxria pela tristeza. (2006:91) Ou seja, o territrio
niilista aberto pelo tradutor tambm o terreno de onde brota a melancolia, Antimusa to conhecida
de Benjamin. Mas Flusser ensina tambm que este tradutor no necessariamente triste por ter
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abandonado o territrio e o abrigo da lngua mater. Como o prprio Flusser, ele/ela pode aprender a
ter muitas(os) amantes. Em uma entrevista de 1990 Flusser formulou o seguinte quanto traduo e
o seu amor pelas lnguas. Observem que novamente encontramos aqui a passagem do individual para
o universal, do biogrfico para o terico:

Mein Fall ist nicht spezifisch. Aber ich werde ber meinen Fall sprechen, weil er fr
andere Flle charakteristisch ist. Ich habe eine ungestillte, heisse Liebe zur Sprache.
Das ist auch biographisch erklrbar ich bin zwischen Sprachen geboren, ein
gebrtiger Polyglott. Und das gibt mir auch dieses seltsame Gefhl des unter mir
sich ffnenden Abgrunds, ber den ich unablssig springe. In dieser tglichen
Praxis der bersetzung denn bersetzung ist ein ber-Springen ist mir deutlich
geworden, dass von allen Maschinen, die der Mensch je erzeugt hat, die Sprachen
die grossartigsten sind.54 (1996:146)

Em outro artigo de 1991, tambm contra os neo-nacionalismos ps-Guerra Fria, chamado


Nationalsprachen, Flusser articula a idia de que aquele que realmente ama a sua lngua materna deve
saber amar outras lnguas. As belezas de cada lngua s podem vir luz nesta passagem de uma
lngua para a outra. E ele formula: wer seinen Nachbarn umbrigt, weil er eine andere Sprache als seine eigene
spricht, der hat keine Ahnung von seiner eigenen Sprache. (1994:14. quem mata seu vizinho porque ele fala
outra lngua que no a sua, este no possui a mnima idia da sua prpria lngua.) Decerto o ensaio
no qual Flusser leva mais adiante a sua filosofia do exlio e a sua teoria do ps-nacionalismo o belo
trabalho tambm amplamente autobiogrfico Wohnung beziehen in der Heimatlosigkeit, publicado
em portugus no volume Bodenlos com o ttulo Habitar a casa na apatricidade. Este texto, de
meados dos anos 1980, anterior, portanto, queda do bloco comunista, coloca-se como tarefa uma
explorao, afirma Flusser, do mistrio de minha apatricidade (2007:221), ou seja das Geheimnis
meiner Heimatlosigkeit (1994: 15), em um jogo de palavras dificilmente recupervel em portugus.
Flusser prope que devemos abandonar as nossas concepes de ptria. Ele nos convida a despir a
roupa da nao e a contemplarmos nosso corpo sem o mistrio que, como ele percebe, sustenta toda
idia de ptria. Como Freud em seu artigo sobre o Unheimlich, de 1919, Flusser explora tambm a
ambiguidade entre o familiar e o estranho, ou seja, entre Heimat e Geheimnis. O prprio, ou seja, o
heimisch, s existe com o seu avesso, o Unheimlich. desta dialtica entre o familiar e o estranho que
Freud deduz tanto o nosso sentimento de intimidade que parece aos outros como algo misterioso e

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insondvel , como tambm nossos contedos recalcados no inconsciente aparecem a ns mesmos


como inacessveis e cheios de mistrio.
Se a psicanlise tem como proposta o desvelamento desse mistrio, mesmo sabendo que este
mistrio nos constitutivo, Flusser por sua vez prope uma crtica radical do mistrio e da noo de
ptria dialeticamente determinada por esse mistrio. Novamente ele parte de sua vida para fazer esta
reflexo: Ich bin in mindestens vier Sprachen beheimatet und sehe mich aufgefordert und gezwungen, alles ZuSchreibende wieder zu bersetzen und rckzubersetzen. (1994:15. Sou domiciliado em no mnimo quatro
idiomas e me vejo desafiado e obrigado a traduzir e retraduzir tudo o que tenho a escrever(.
2007:221). Flusser parte para esta pesquisa, como Freud tambm, cruzando filognese e ontognese,
ou seja, ele discute fenmenos da espcie humana que se refletem e se repetem na histria de cada
indivduo.
Ele mostra como a humanidade apenas recentemente tornou-se beheimatet, ou seja
domiciliada, mas tambm, habitante de uma ptria, Heimat. Se em outros momentos Flusser recorda
que a noo moderna de patriotismo um fruto da Revoluo Francesa (1994:95), nesse ensaio ele
prefere uma visada a partir de uma longa temporalidade e afirma que o nosso patrismo seria uma
aquisio derivada do sedentarismo provocado pela inveno da agricultura. Nessa passagem do
nomadismo para o sedentarismo tambm teramos aprendido a submeter as mulheres. Tudo isto
para ele, no entanto, estava sendo revolucionado e superado lembremos novamente que estamos
em meados dos anos 1980 com a sociedade ps-industrial e ps-histrica.
Os milhares de migrantes, e ele inclui a os trabalhadores estrangeiros, os expatriados
(Vertriebene), fugitivos e intelectuais em constante deslocamento, todos no devem mais ser vistos
apenas como marginais (Ausserseiten), mas como vanguardas do futuro. (1994: 16; 2007: 223)

Die Vietnamesen in Kalifornien, die Trken in Deutschland, die Palstinenser in


den Golfstaaten und die russischen Wissenschaftler in Harvard erscheinen dann
nicht als bemitleidenswerte Opfer, denen man helfen sollte, die verlorene Heimat
zurckzugewinnen, sondern als Modelle, denen man, bei ausreichendem Wagemut,
folgen sollte. (1994:17. Os vietnamitas na Califrnia, os turcos na Alemanha, os
palestinos nos pases do Golfo Prsico e os cientistas russos em Harvard surgem
no como vtimas dignas de compaixo que devem receber ajuda para retornar
ptria perdida, mas sim como modelos a serem seguidos por sua suficiente ousadia.
2007:223)

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Reencontramos aqui, portanto, a idia acima vista com Rosenfeld de que minorias
expatriadas no caso ele falava especificamente dos judeus da Europa teriam uma espcie de
duvidoso privilgio de representar a humanidade hoje. De certo modo, Flusser leva adiante aquilo
que Rosenfeld denominou de teologia do exlio, ao se referir a Kafka. Isto no nos surpreende, j
que estes dois pensadores de Praga, Kafka e Flusser, de fato tinham muito em comum. Mas sobre
este duvidoso privilgio de sofrer o exlio, outros intelectuais judeus tambm escreveram, como
Derrida, em 1992, em seu conhecido ensaio Le monolinguisme de lautre, tambm dentro de um modo
de filosofar abertamente autobiogrfico. Toda uma linhagem do pensamento judaico do sculo XX
(com razes no XIX, como vimos com Heine), poderia ser traada aqui a partir deste mote.
Mas voltemos ao Flusser de meados dos anos 1980. No ensaio sobre a conquista da
apatricidade ele ainda descreve o seu Zusammenbruch des Universuns (desmoronamento do
universo), ou seja, a expulso de Praga, como um seltsamen Schwindel der Befreiung und des Freiseins
(1994:17. Uma rara vertigem da libertao e da liberdade 2007: 223). Ele v na Heimat, antes de
mais nada, uma tcnica (Technik). Como nos ligamos a ela com muitos fios, costumamos sofrer com
a ruptura dos mesmos. Flusser transformou este abandono em conquista, passou do luto da perda,
para uma reflexo sobre sua liberdade e seus ganhos. Ele conclui esta reflexo dando um passo de
sua situao de sobrevivente para uma reflexo filo-histrica. O que parece um pequeno passo para
um homem, revelado e transformado em um grande passo para a humanidade: So sind wir alle, wir
aus dem Zusammenbruch der Sesshaftifkeit emportauchenden Nomaden. (1994:17. Portanto, a partir dessa
quebra do sedentarismo, somos todos nmades emergentes. 2007: 223) Trata-se de aprender a
romper estes laos obscuros que nos atam idia de Heimat. Na sua experincia ele percebeu que a
nossa geheimnisvolle Verwurzelung (enraizamento secreto) na verdade obskurantischen Verstrickung
(1994:18. enredamento obscurantista, 2007:224) Esta libertao dos laos obscuros e at ento
considerados como profundos e naturais, leva a uma nova ordem tica.
Libertar-se da idia de Heimat no deve ser compreendido como uma conquista da
irresponsabilidade. Antes, a responsabilidade agora passa a ser algo mais srio e pensado como o
fruto de uma escolha refletida. Podemos eleger com relao a quem e ao que desejamos ser
responsveis. Aproximando esta teoria de Flusser da crtica que Hannah Arendt faz da noo de
poltica calcada na piedade que para ela surgiu na poca da Revoluo Francesa (1988:47-91)
podemos pensar que para Flusser tambm no se trata mais de abraar a comunidade abstrata do
povo, mas sim queles e s causas com as quais verdadeiramente nos identificamos. Flusser
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escreve: Ich bin nicht, wie der Zurckgebliebene, in geheimnisvoller Verkettung mit meinen Mitmenschen, sonder in
frei gewhlter Verbindung. Und diese Verbindung ist nicht etwa weniger emotional und sentimental geladen als die
Verkettung, sondern ebenso stark, nur eben freier. (1994:20. No sou como aqueles que ficaram em sua
ptria, misteriosamente amarrados a seus conscios, mas me encontro livre para escolher minhas
ligaes. E essas ligaes no so menos carregadas emocional e sentimentalmente do que aquele
encadeamento, elas so to fortes quanto ele; so apenas mais livres. 2007: 226)
Esta libertao das amarras da Heimat so to evidentes em Flusser que ele incapaz de
articular a sua identidade ou as suas identidades em termos nacionais. Ele se diz com as palavras:
Ich bin ein Prager und Paulistaner und Robionenser und Jude und gehre dem deutschen sogenannten Kulturkreis an,
und ich leugne dies nicht, sondern ich betone es, um es verneinen zu knnen. (1994:20. Sou praguense,
paulistano, robionense e judeu, e perteno ao crculo de cultura chamado alemo, e eu no nego isso,
mas sim o acentuo para poder neg-lo. 2007: 226) Ele no se diz tcheco, brasileiro, francs e alemo.
Seu sentido de pertena passa pelas cidades onde morou e pelas lnguas e culturas nas quais habitou,
no pelos pases. Mas esta pertena se d no ber-Springen, ou seja, no salto constante, na passagem
de uma vestimenta a outra, na superao contnua do prprio. Com esta casa multipolar e com a
estrangeiridade que esta situao criava para ele no interior de cada uma dessas ptrias, Flusser
aprendeu a olhar a Heimat de fora. E deste modo aprendeu como desconstru-la. Ele nota que o
estrangeiro aquele que normalmente, para sobreviver, aprende o cdigo secreto da Heimat. Ao fazer
isto, mostra que este cdigo era constitudo de regras inconscientes, mas que no se trataria na
verdade de nada especial, insondvel e muito menos natural.
As regras do local, do nacional, que so sempre sacralizadas, so reveladas como sendo
banais pelo estrangeiro. Der Einwanderer ist fr den Beheimateten noch befremdender, unheimlicher e eu
gostaria de acentuar esta ltima expresso als der Wanderer dort draussen, weil er das dem Beheimateten Heilige
als Banales blosslegt. Er ist hassenswert, hsslich, weil er die Schnheit der Heimat als verkitschte Hbschheit
ausweist. (1994:21). Para o residente, o emigrante ainda mais estrangeiro, menos familiar que o
migrante l fora, porque ele desnuda o sagrado, para os domiciliados, como uma coisa banal. Ele
feio e digno de dio, porque identifica a beleza ptria com uma belezinha kitsch. 2007: 227). Ele o
profanador, e nesse passo Flusser recorre novamente teoria do sacrifcio. O estrangeiro profana o
sagrado, ele mesmo , por vezes, sacralizado e sacrificado.
digno de nota que neste ponto de seu texto sobre a filosofia do exilado Flusser passa a
relatar a sua experincia no Brasil. Ele narra como ele se decepcionou justamente com o processo de
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transformao do Brasil em uma nao como qualquer outra. Sua trajetria nesse pas foi a de um
engajamento cada vez maior, pensando que aquele pas poderia ser tambm uma vanguarda do psnacional. Mas o golpe de Estado de 1964 e a institucionalizao burocratizante do saber em
Departamentos universitrios j natimortos mataram nele seu mpeto inicial.
Pela segunda vez Flusser foi convencido das desvantagens da Heimat. Ele resume esta
desiluso com o Brasil na frase: Es begannen sich Vorurteile zu kristallisieren. Das heisst, man begann, mit
dem Errichten einer neuen Heimat Erfolg zu haben. (1994: 24. Os preconceitos comearam a se cristalizar,
isto , a construo de uma nova ptria comeou a ser bem-sucedida. 2007: 230) Mas esta
novidade era na verdade a repetio da velha e execrada idia de nao que se concretizava outra
vez. Estava na hora de Flusser sair do Brasil. Foi este priplo por este pas chamado Brasil que
despertou nele a conscincia de que a Heimat nada mais seno a sacralizao do banal.
A ptria, seja de que maneira for, no nada alm de uma habitao enovelada de mistrios.
E ainda: quando se deseja manter a liberdade da apatricidade, adquirida com sofrimento,
necessrio que a gente se recuse a participar dessa mistificao dos hbitos. (2007: 232. Die
Enttuschung mit Brasilien war die Entdeckung, dass jede Heimat [...] nichts ist als Sakralisation von Banalen; dass
Heimat, sei sie wie immer geartet, nichts ist als eine von Geheimnissen umwobene Wohnung. Und dass man, wenn
man die in Leiden erworbene Freiheit der Heimatlosigkeit erhalten will, ablehnen muss, an dieser Mystification von
Gewoheiten teilzunehmen. 1994: 26).
A partir destas palavras de Flusser podemos pensar que tambm nossos estudos de rea e
sobretudo aqueles organizados a partir de naes, podem fazer parte desta mistificao. Imagino que
se quisermos fazer valer a lio que Flusser tirou de sua vida e da histria do sculo XX, que ele
viveu intensamente, a concluso neste ponto seria mais ou menos evidente: qualquer estudo que se
queira verdadeiramente crtico de um pas, da sua histria e da sua literatura, s ser vlido se ele
lutar no sentido de desacralizar e romper com estas mistificaes.
O pesquisador tem que saber vestir a roupa do estrangeiro, no para reproduzir os
esteretipos, mas, muito pelo contrrio, pela distncia obter um espao essencial para a crtica. Da
eu receber com alegria a notcia de que em Berlim se funda um Frum de Pesquisas Brasileiras. O
estudioso de fora tem o privilgio da distncia. E os por assim dizer nativos devem aprender a se
abrir para estas leituras vindas de fora. Trata-se de aprender a saltar, como Flusser, de idioma em
idioma, de universo cultural em universo cultural. Nesse sentido evidente que estudos brasileiros s

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fazem sentido em um contexto comparatista que permita a constante eroso das fronteiras e da idia
do prprio.
Flusser mesmo no faz explicitamente esse passo no sentido de uma crtica dos estudos
nacionais, nesse ensaio, mas no deixa de ser sintomtico que ele o feche com recurso de seu saber
de comuniclogo e de terico da esttica. Ele parte ento de uma afirmativa que reestrutura nossas
idias convencionais sobre a ptria e a habitao.
Ao contrrio do que geralmente pensamos, no a ptria que algo estvel e um ponto de
referncia. Podemos viver muito bem sem uma ptria. O que necessrio a moradia. Ohne
Wohnung, ohne Schutz von Gewhnlichen und Gewohntem ist alles, was ankommt, Gerusch, nichts ist Information,
und in einer informationslosen Welt, im Chaos, kann man weder fhlen noch denken noch handeln. (1997: 27.
sem habitao, sem proteo para o habitual e o costumaz, tudo o que chega at ns rudo, nada
informao, e em um mundo sem informaes, no caos, no se pode nem sentir, nem pensar, nem
agir. 2007: 232) Mas existe uma dialtica entre o conhecido e o desconhecido que move Flusser e
todos ns, como habitantes de casas para fora da redoma de sua moradia. Habitamos na
redundncia, ele afirma, para poder receber rudos e transform-los em informao. Meine Wohnung,
dieses Netz von Gewohnheiten, dient dem Auffangen von Abenteuern und dient als Sprungbrett in Abenteuer.
(1994:27. Minha habitao, essa rede de hbitos, serve para ser agarrada por aventureiros, e serve
tambm como um trampolim para a aventura. 2007: 233). Este convite para os rudos e para a
aventura, leva a um elogio do nomadismo, que nos transforma em caracis que levam suas casas nas
costas.
Flusser de fato a partir dos anos 1980 refletiu muito sobre as nossas moradias, invadidas por
aventureiros e abertas para a aventura. S assim podemos evitar a cristalizao da moradia em uma
Heimat. Flusser nos convida a desacralizar nossas belezas ptrias, porque sabe que Patriotismus ist vor
Allen ein Symptom einer sthetischen Krankheit (1994: 29. O patriotismo sobretudo o sintoma de uma
doena esttica. 2007: 234) Ele chegou a esta formulao sem passar pela teoria da ontotipologia
que alguns anos depois levou Philippe Lacoue-Labartthe e Jean Luc Nancy (2002) a analisar no
nazismo no apenas uma doena esttica, mas a prpria realizao do esttico. Hitler visto pelos
dois filsofos como o grande artista e arquiteto da raa alem. Ele queria criar um tipo e para tanto
visava aniquilar o que escapasse desse molde. J o aptrida valorizado por Flusser, justamente
questiona os moldes e relativiza a beleza da ptria. Flusser em meados dos anos 1980, quis ver nesse

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migrante um fragmento do homem do futuro. (1994:29; 2007: 235) Ele desconstri mistrios e vive
sem segredos.56 Ele sabe morar, mas recusa o mistrio da Heimat e os canais que nos prendem a ela.
Este homem que se aventura, como o ironista de Rosenfeld que vimos acima, sabe apreciar a
distncia e as novas perspectivas que esta libertao das amarras da Heimat significam. Como Flusser
formulou em um texto ainda do incio dos anos 1960, Fr eine Philosophie der Emigration (Para uma
filosofia da emigrao), Wenn sich der Mensch in die Ironie stellt, kann er seine Bedingung berblicken.
(1994:31; Quando o homem se coloca na ironia, ele pode observar o que o determina.) a revolta
(Emprung) que nos leva ironia, assim como o engajamento, que nos faz sair dela, formulou
Flusser naquela poca. A partir de seus textos dos anos 1970 e 1980 fica claro que ele na verdade
aprendeu a ficar na revolta e na ironia e a recusar o passo seguinte. O engajamento com a
desconstruo e no mais com a construo de ptrias faz com que no abandonemos este
interessante posto avanado de observao conquistado pela ironia. At os anos 1960, na viso de
Flusser, a emigrao seria o resultado da revolta e a imigrao derivaria do desejo de engajamento.
Mas depois, aps sua sada do Brasil, este engajamento se d na prpria emigrao. No h mais local
para se imigrar. A filosofia da emigrao de Flusser precisa ser atualizada e ele mesmo nos d os
elementos para esta reformulao a partir de sua decepo com qualquer projeto de construo de
ptrias.
Assim, por exemplo, no seu artigo Um entsetzt zu sein, muss man vorher sitzen, de 1989, (cujo
ttulo do manuscrito Vertreibung, Expulso) ele procurou ler os aspectos positivos do
banimento. Jogando com as palavras, ele escreve: Um Mensch im vollen Sinn dieses Wortes zu sein, muss
man entsetzt sein. (1994:35s.; Para sermos seres humanos no sentido integral desta palavras devemos
nos espantar). Segundo ele, para Aristteles a filosofia inicia com o Entsetzen, o espantar-se que nos
desorienta. O banimento, portanto, poderia nos ajudar a nos tornarmos mais humanos. Os trs
estgios do banimento, o sentimento de perda do solo e do cho (Boden), a sensao de irrealidade
em torno de ns e em ns e, em terceiro lugar, a sensao de se viver em uma realidade de segundo
grau, tudo isto, ns reconhecemos hoje, escreveu Flusser, como sendo a situao de todos ns.
(1994:37)
Ou seja, como vimos acima com a filosofia do exlio de Rosenfeld, novamente o deslocado, o
exilado, vale como uma espcie de representante radical, extremo, de uma situao que
tendencialmente toda a humanidade vive hoje. J em Planung des Planlosen, de 1970, ou seja, poucos
anos antes da segunda grande emigrao de Flusser, ele defendera a figura do viajante e de seu gesto,
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nascido de repente, de abandonar o seu local: Die Abfahrt ist Befreiung aus der Gewohnheit, und der
Entschluss zur Abfahrt ist das Ergreifen einer grundlegenden Freiheit: der der Bewegung. Ohne sie wrde es nicht
mehr lohnen zu leben. (1994:40; A partida libertao do hbito, e a deciso de se partir o tomar
uma liberdade fundamental: a do movimento. Sem ele no valeria mais a pena viver.) Lembremos
do complexo de exlio que vimos acima com Rosenfeld escrevendo sobre Heine e da compulso
viagem daquele poeta. O errante Flusser defende suas rupturas com argumentos que empenham a
dignidade de toda a humanidade.
Ele v no viajante um Homo ludens, algum que aposta no acaso, arrisca-se, mas ao mesmo
tempo vive de modo integral a sua liberdade. Talvez ele no estivesse equivocado aqui. Afinal a
teoria , como ele tambm afirma pensando na sua etimologia grega, sight seeing (1994:39), e de fato
Flusser viu muita coisa e pde decantar dessa leitura do mundo palavras que guardam uma sabedoria.
Como o Benjamin dos anos 1930, Flusser aproxima constantemente em seus textos sobre a viagem e
sobre o nomadismo Fahren e Erfahren, que encontra a sua correspondncia na relao de experincia
com o latim ex-periri. Es ist zwar richtig, dass der Sitzende be-sitzt, und der Fahrende erfhrt, oder dass der
Sitzende in der Gewohnheit wohnt und der Fahrende Gefahr luft. (1974:59; numa traduo aproximada:
correto que aquele que se senta possui e o que viaja experincia, ou o que se senta habita o hbito e o
que viaja corre perigo.) Na viagem coexistem tanto a experimentao, como a ousadia, a prova e o
perigo. Da Flusser criar tambm uma falsa etimologia entre Wagen (carro) e Wagnis (ousadia).
(1974:45) Este ser humano mvel, ele escreveu em um texto cheio de humor sobre o Wohnwagen
(Trailer), de incio dos anos 1970, seria a resposta ao unglcklichen Bewusstsein (a conscincia
triste) que Hegel j detectara no homem moderno, dividido de modo dialtico e sem sada, entre a
sua esfera privada e a pblica.
O homem ps-histrico seria, para Flusser, aquele capaz de abandonar esta tristeza e
transform-la em alegria via engajamento com o mundo. Ele mantm a revolta e se apega
emigrao, este ser que est livre de uma moradia fixa, engaja-se na mudana e no seu risco implcito.
Mas esta moradia que abandona o imvel e se torna dinmica j pode ser percebida nas mudanas de
nossas casas: Flusser observa que as nossas paredes esto sendo vazadas por cabos que conectam o
mundo em redes. Esta revoluo informacional tambm abole a condio existencial que gerava a
conscincia triste. No existe mais o interior das casas se opondo ao seu exterior. Agora o software
vale mais do que o hardware.
Podemos transpor esta idia de Flusser para uma reflexo sobre a nova posio dos
intelectuais da periferia no mundo em movimento e em rede que vivemos. Com a valorizao cada
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vez maior do software, ou seja, das idias, o jogo intelectual passa a ganhar muito mais vozes e aos
pouco tem abandonado, nos ltimos 30 anos, o tom monocrdico eurocentrista que sempre teve.
Tambm a direo destas trocas de informao tem mudado: no se do mais da Europa e Estados
Unidos para a periferia e desta de volta aos centros.
Aos poucos forma-se uma rede rizomtica. Assim como Flusser formulou que os novos
nmades caminham sem um destino fixo, num offenes Schweifen, um vaguear aberto, da mesma
forma as informaes circulam de modo descoordenado em todas as direes. Trata-se de uma
disseminao sem ordem como nas Galxias de Haroldo de Campos. O meio desta disperso no so
mais os arquivos, hardwares, mas os cabos. Os arquivos se digitalizaram. Flusser ainda usava a
metfora do ar e do vento pra se referir a esta disperso. Ao invs das paredes da casa, temos o vento
com o qual o viajante se depara. Este ar tambm, para ele, pneuma, spiritus e ruach. Mas, ele arremata,
erst gegenwrtig wird die Streuung des Geistes (Diaspora) zum Zentralbegriff des ontologischen und des
anthropologischen Denkens. (1994:61s.; apenas agora a disseminao do esprito (dispora) tornou-se
um conceito central do pensamento ontolgico e antropolgico.) Em um tom proftico que lhe era
caro, Flusser descreve a situao de um novo mundo no qual as paredes vo cedendo e o vento da
informao transforma tudo da noite para o dia, entrando em todos os cantos da casa e dentro de
ns. Como vimos, nesta mesma poca ele j tinha graves reservas com relao a estas transformaes,
que ele saudava.
Assim como Walter Benjamin, que em um mesmo texto podia oscilar entre a posio
melanclica e a euforia diante das catstrofes de sua poca, lamentando-as ora como o fim do
histrico, ora comemorando-as como a libertao do entulho da histria, Flusser tambm oscila
entre comemorar a nova era ps-histrica, com a superao das idias de Heimat, de propriedade, de
hierarquia entre as culturas e os gneros, e, por outro lado, criticar um novo fascismo que se
articulava quer via os neo-nacionalismos, quer via uma apropriao fascista deste cabeamento do
mundo. Trata-se de conseguir avaliar esta nova situao para guiar a nossa ao neste mundo, que
Flusser via como um deserto no qual o vento dispersa os gros em uma tempestade sem fim.
(1994:62) A catstrofe do presente torna o mundo unbewohnbar (inabitvel), mas, ao mesmo tempo,
nos condena liberdade. (1994:64)
Para concluir retomo a idia flusseriana que via a dignidade do ser humano ligada e
dependente da sua liberdade. Em um ensaio de 1984 chamado Exil und Kreativitt (Exlio e
criatividade), no qual ele novamente faz uma teoria positiva do Vertriebene, ele apresenta o banido
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como aquele que primeiro pde perceber que no somos rvores. Ele descobre que talvez a
dignidade humana consiste justamente em no possuir razes. (1994:10.7 er entdeckt, [...] dass vielleicht
die menschliche Wrde eben darin besteht, keine Wurzeln zu haben Ns lamentavelmente vivemos em um
mundo no qual no apenas esta afirmao das razes ainda um mote constante na construo dos
povos e das naes, como tambm, apesar de toda tempestade de informao, continua a se afirmar
as diferenas como que naturais entre estes mesmos povos e culturas. A dialtica que Flusser
conhecia e descrevia to bem, que permite a um povo hospedeiro transformar seus hspedes em
vtimas de sacrifcios76 (1994:109), infelizmente no para de se desdobrar na atualidade. O duvidoso
privilgio, to bem descrito por Rosenfeld, destes milhares e milhes de banidos ainda no se
desdobrou em uma tica da convivncia capaz no s de aceitar as diferenas, mas de incentiv-las,
assim como de promover a constante diferenciao: a polinizao mtua, criativa. Talvez estejamos
agora na situao da segunda gerao de que falava Rosenfeld. Ainda oscilamos entre a tradio
histrica e a ps-histrica. Se os intelectuais possuem ainda algum papel nos processos de circulao
cultural, deve ser este de promover a diferena e a desconstruo das entidades identitrias
sacralizadas.
Permitam-me pela ensima vez citar Flusser aqui neste contexto, j que as palavras dele so
insubstituveis: Schliesslich noch ein Wort zur Aufgabe des Intellektuellen: Er soll jene Mcke sein, welche die
Leute sticht, um sie fr Erfahrungen zu ffnen und um ihre Krper und Gedanken fr vorurteilsloses
Standpunktwechseln zu motivieren. (1994 84. Finalmente, ainda uma palavra sobre a tarefa do
intelectual: ele deve ser aquele inseto, que pica as pessoas, para abri-las para experincias e para
motivar seus corpos e pensamentos para mudanas de ponto de vista sem preconceitos.). Faamos
desta mxima um lume para nossas discusses.

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Notas
1

Palestra apresentada no Simpsio de Inaugurao: O Brasil no contexto mundial: desafios e perspectivas

no contexto da fundao do Frum de Pesquisas Brasileiras da Freie Universitt Berlin no dia 5 de fevereiro
de 2010.
2

Como Flusser o expressou em um obiturio de Rosenfeld de 1973: A. Rosenfeld sempre irritava. Irritava-

me a sua insistncia no respeito s fontes. Tal insistncia cortava as asas da minha imaginao e encurtava o
seu vo. Irritava-me a sua constante volta para o que ele considerava ser a realidade, e o que para mim no
era seno uma das camadas da realidade, e no a mais significativa. Tal volta constante me parecia ser pedestre.
Irritava-me a sua posio, que me parecia rgida e dogmtica, to diferente da fluidez aberta que se me afigura
como a indicada na situao de ideologias interpenetrantes e em decomposio mtua como o a nossa. [...]
Devo confess-lo: a existncia de A. Rosenfeld era, para mim, irritante, porque questionava a minha prpria
forma mentis. Mas agora, que ele deixou de existir, no me sinto mais vontade. Pelo contrrio: a sua
ausncia funciona como freio ainda mais irritante. Ser isto a imortalidade? Esta passagem apresenta de
modo sucinto esta relao de amizade-inimizade. Estas diferenas apontadas por Flusser so fundamentais,
eles eram dois intelectuais que habitavam universos distintos, mas elas no impediram a admirao mtua,
apenas tornaram esta admirao mais interessante e temperada.
3

Como lemos em um pequeno ensaio biogrfico de Flusser feito por Izabela Maria Furtado Kestler: aps a

invaso alem Tchecoslovquia O pai de Flusser preso a seguir e espancado at a morte no campo de
concentrao de Buchenwald. A me e a irm de Flusser foram assassinadas em Auschwitz. (2003 94)
4

Recordo, para evitar injustias, que Rosenfeld prefaciou este volume, mas no foi o nico organizador.

Figuravam alm dele no trabalho de seleo e notas: Jac Guinsburg, Ruth Simis e Geraldo Gerson de Souza.
Com relao ao antissemitismo, vale lembrar do pequeno e pungente livro de Rosenfeld sobre Os
Protocolos dos Sbios do Sio, onde ele faz um histrico deste documento do dio anti-judaico, uma
verdadeira mquina antissemita que at hoje alimenta este preconceito. (Rosenfeld 1982)
5

Meu caso no especfico. Mas vou falar sobre o meu caso porque ele caracterstico para outros casos. Eu

tenho um amor inquieto, quente com relao lngua. Isto tambm pode ser esclarecido biograficamente eu
nasci entre as lnguas, um poliglota de nascena. E isto tambm me d essa sensao singular do precipcio
abrindo-se sob mim, sobre o qual eu salto ininterruptamente. Nesta prtica cotidiana da traduo pois

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traduo saltar tornou-se claro para mim que, de todas as mquinas que o ser humano j criou, as lnguas
so as mais estupendas.
6

Neste sentido seria interessante lembrar da atrao de Walter Benjamin pela arquitetura de vidro de um

Adolf Loos e de Le Corbusier. Benjamin no seu ensaio Experincia e Pobreza, de 1933, data fatdica,
comemora um conceito novo e positivo de barbrie. (1985 116) Ele elogia o homem novo, o
contemporneo nu, despido da tradio, vivendo como em uma tabula rasa. Ele v o vidro como um
inimigo do mistrio (1985 117), idia que, acho, seria muito cara a Flusser.
7

Tambm nesta teoria da hospitalidade ambgua Flusser se adiantou a Derrida. Cf. Derrida 1997.

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