O NÃO E O SIM - António Ramos Rosa
O NÃO E O SIM - António Ramos Rosa
O NÃO E O SIM - António Ramos Rosa
O No e o Sim
graffiti
Quetzal Editores
lisboa/1990
capa: rogrio petinga
c Antnio Ramos Rosa e Quetzal Editores
Quetzal editores
Rua Sanches coelho, 3, 9.o Esq.
1600 Lisboa
Telefones: 76 13 97, 76 25 93
telex: 65732 pegest p
Impresso por:
tipografia Guerra
Viseu
Depsito legal n.o 35297/90
NQz.02.026.94.90
fala,
mas no separes o no e o sim.
paul celan
na densidade da terra
A dana entre o sim e o no
A que numa torrente foi talhada
e era negra e ardente,
os instrumentos sobre os rins, o dorso
fascinante.
A que tendo vivido beira do desastre
reconstruiu a dana
entre o sim e o no.
A que se desmorona e se dissipa
e elctrica na lentido dos cemitrios,
quando o vento negro sobre o trigo,
os signos da opresso distende
superfcie prolixa.
A que, fracturada, ainda fulgura
quando diz a pedra e o frmito das ervas
e o sentido se subleva entre lacunas.
A que outrora foi delta e foi cavalo,
argila alegre e rosa de metal,
a metade de si mesma sob o musgo
mas ela dilacera ela ilumina
um rosto inanimado sobre as pedras.
Na densidade da terra
Basta um s corpo
um tronco erecto
um s pedao de terra trabalhada
de sulcos paralelos.
um despojo extremo.
Onde um n se desfaz,
uma amarra se rompe,
um novo elemento.
Tenacidade lenta
de densidade
extrema.
Podem seguir-se as fases,
podem-se ler as frases,
contar-se os instrumentos.
o que por trs est
de tudo o que aparece:
a relao do fundo,
a lmpada obscura,
a que ilumina o fundo.
Despertam as razes,
imperceptveis,
imperceptveis
fundos.
a terra e s a terra
que no obscuro esperava.
Nenhuma iluso ptica
ou jogo de aparncias.
Silenciosa rotao.
A face iluminada
a face da sombra.
Atravs da noite atravs da brancura
Com minuciosa febre
algum traa na folha
a sibilina trama
e um meticuloso desastre.
Secreta sob a pedra
escreve
sem encontrar a nascente
atravs da noite.
Nas tmporas
um turbilho de abelhas,
na boca
a cal que ainda desejo.
Escreve
com o gume dos dedos
dilacerando
a dvida
para desaparecer
como um gro entre os gros.
longo o abandono
de inesgotveis foras.
Uma ilegvel mo
multiplica a roda
do inaltervel.
Os sulcos so unnimes,
traos, portas, templos
atravs da brancura.
Entre os ciprestes
e os instrumentos
o silncio pronuncia
a permanncia.
Alma amante
Algo se recolhe porta atrs de porta.
Algo procura o centro.
No busca o mundo. S quer absorver-se
perceber-se a si mesma
soberanamente.
Quer estar imvel
na lenta plenitude
sem paixes.
Quer perpetuar-se abandonada isenta
atenuada e serenamente deslumbrante.
Quer secretamente ser sempre encantada
sem pedir mais que o oiro do seu sossego.
Longe, longe est do mundo, sem instrumentos,
mas o seu peito tem mil portas abertas.
Ela ascendeu vagarosa por impondervel adeso
e sem desejos, o seu Desejo consumando
na chama intemporal que o seu corpo amante.
Ningum poder chamar o seu nome ardente.
A sua certeza ningum e o seu cio vazio.
J no se ope a si mesma no seu nico arco
em que reuniu os dois plos num inviolvel nascer.
Est com todo o intacto remotssima e presente.
Sabe e tudo o que sabe area plenitude
que transparece nos meandros do silncio.
Ouve-se a frescura atravs da distncia.
uma deusa branca.
Luz e obscuridade
No sendo seno sopro ou murmrio
de uma subtil riqueza, um voo imvel
sobre altos fundos, elptica voz
branca, e que s fala
entre as hortnsias.
O barco do vento passa na tranquila hora.
Voz matinal
Cantando defendo a minha sombra
adolescente. Que amante ouvir esta cano?
Eu amo tudo o que vivo
e a minha nudez renova-me e inebria-me.
Movo-me como uma semente em silenciosos gestos
e o meu desejo confunde-se com o vagar das nuvens.
Ser a minha primeira alegria e sou tudo o que respiro.
Voz do solo
Quem sou eu entre o solo e o sonho?
Dano sozinha ao rumor da folhagem.
Minha pequena vida uma paixo.
Vejo o fulgor do que no tem nome nem sentido.
Os insectos pulsam sobre a minha pele.
Por vezes uma cobra levanta a sua cabea.
Sou sensual e subtil, amo o insignificante.
Conheo a solido das coisas e enlao-a
do meu pensamento e sou area.
Voz das plpebras
Adormecendo na pedra e sem figura
eu sou a voz das plpebras.
Tenho o fogo vegetal na minha pele
e no desperto entre as lagartas e os pssaros.
A gua corre sobre mim, eu sou um sonho
que demora na leve nudez
e o que digo o meu flego verde.
As minhas palavras no so palavras, so talvez sombra,
talvez msica. No me retenhas mas guarda o meu aroma
e faz dele uma palavra amante
em que o sentido se condense anoitecendo.
Anjos de terra
Anjos, existem anjos? Volveis seres
que so um instante de voluptuosa brisa
em que o tempo a forma do desejo
e do sono das folhas e das guas.
Anjos, sim, de terra, que segredam
a argila dos nomes, o movimento azul
do ar. Na sua companhia eu sou o vento
e o meu hlito confunde-se com as suas vozes.
A casa
A tua voz vegetal e eleva-se com o vento.
Quero demor-la, fazer dela uma casa
ou um tronco. Que seja a minha noite
Libertao
Escrevo atravs da nudez iminente
de amantes que atravessam grandes nuvens de vidro
e no espao sublevam os armrios de insectos.
Com eles construo a casa rsea, ocre e verde
e perpetuo o orgasmo nas paisagens abolidas.
Suspensa a linguagem no flanco do abismo
um naufrgio ardente, uma constelao
de dedos, uma aliana branca.
Da sua urna verde um grito de veludo
liberta a ave negra da separao.
A chama de fenosa
A sede desperta, vejo a orqudea de um ventre,
a neve de uma nuca. A sede desperta
com as slabas brancas entre umbigos e pssaros,
luas e violinos. As slabas desmoronam-se
mas a chama ascende
na frgil crepitao da primavera.
Vejo a sombra de um cisne, a silenciosa msica,
os delicados ps que pisaram as nuvens.
Vejo a cintura da chama no perfume das formas
e a gua e o fogo nos ramos de uma lmpada.
As mos ascendem para um rosto altssimo
em que intacta a ausncia da glria do desejo.
Memria da adolescncia
adolescncia dos dias, espirais do desejo
quando viver era viagem nas vrtebras da primavera!
Tanta sombra, tantas armas, tantas rvores,
no vigor verde um mar maravilhoso!
O estrpito das cabeleiras despertava as narinas
e o sexo das palavras ardia sob a argila.
Os poemas eram gargantas de vinho no veludo da lngua
e que felicidade ouvir o canto das plantas e o minsculo
martelar dos dentes da melancolia!
Afundavam-se os corpos em matrias magnficas
e as montanhas sonhadas tinham rumores de abelhas negras.
Sono
Adormeci no seio da terra: dilvio e osis.
O rosto era uma planta vermelha entre sombras elsticas.
Entre abelhas e montanhas, a fora do silncio
e o sexo uma colmeia ardente e o esplendor dos dentes.
Num flanco um lbio abriu-se e perfumava as sombras.
Toda a terra era carne exalao primeira
e nas espduas um tremor irisado
e a pirmide das nuvens, adorao suprema.
A palavra inicial
Madonna
Mais forte do que uma religio e mais elctrica
canta e despe-se entre drages e pssaros.
Levantam-se as montanhas vermelhas e os cavalos.
Ela canta entre as mquinas e as urtigas
e na ligeireza da sua fora verde
dissipa as muralhas negras e os obtusos negcios.
o seu corao um girassol de slex.
Rapariga ou andorinha, fabulosa lmpada
que soltas as tuas vestes e te salvas!
Danas como uma area anmona
e com a potncia do desejo, transparente amante,
tocas obliquamente os divinos flancos.
BREVES FULGORES
Descida area
o que desce pelo fumo
azul no fundo de uma cinza
e decanta os dedos
no adgio dos muros.
o que que ondula na penumbra
do declive?
o rumor do tempo,
a erva ferida?
Os contornos, as fibras,
os lentos aglomerados
verdes e negros ou azuis e rosa,
desagregam-se,
engendram a profusa semelhana.
J no tenho idade. Atravesso
a danarina desenhada
pelas nuvens da ausncia.
Na lngua area e slida
sou o corpo da ignorncia vegetal.
Os signos materiais
Estou atento
como um animal selvagem
Apalpo os signos
araucrias
lagartixas
aranhas e laranjas
as formigas do vento
Sinto a pele do espao
sobre as veias
to ntimos e remotos
como se cada um de ns
fosse o centro da ausncia.
A voz nua
Onde a voz nua
na obscura maresia
das slabas
submersas?
Uma idade de sombra reclama uma imagem,
um odor
inaudvel,
um lrio
na glande, no quadrante
solar.
Entre mirades de insectos
e nubladas bocas
surgem imagens verdes
como a sombra de uma rosa
ou um cavalo negro
sobre as cinzas da lua.
A voz nua perdeu o seu suave tacto
de arbusto de gua
e a inicial pureza do vazio.
Ausncia iluminada
Queremos viver
na frescura da folhagem
iluminados
por uma arma de gua viva.
E as palavras sero antigas
sero novas
como presenas redondas
na lucidez das horas.
Que nas mais suaves slabas
se possa diluir
toda a violncia
e s os frutos reinem
e os rios acendam
os meandros
de uma terra lavrada
pela respirao
da ausncia.
Sopro a sopro
Uma cabea sonha nuvens
para o mundo real.
A mo constri um barco
de folhas para o espao.
o corpo perfaz o mundo
em acordes nupciais.
A fragrncia derrama-se
em reverncias cintilantes.
Sopro a sopro, os tesouros
passam no ar ligeiro.
Que evidentes delcias
de musicais relevos!
ntimo dentro do espao,
agora sou quem sou,
(o que respira e recebe).
Tudo culmina aqui
em leve plenitude
(to fcil que de todos),
unnime confidncia.
Cratera branca
Na cratera branca coroam-se
de sombra as alianas
de filamentos. transparncia
vem-se as serpentes
vermelhas, os martelos
de uma elegncia fatal.
Estamos vendo o verde e o dourado
da perfeio nascente e da altura
imvel. Todas as palavras
so instrumentos ardentes que se inclinam
para o alvor da ateno e dos seus nmeros.
Ela
Ela alba atravessando as rvores.
Nela h uma colina e com seu flanco
v um sopro da terra, o rumor sob a lngua,
o equilbrio das margens, o silncio,
areias, bosques, solides.
Se enegrece ilumina os campos negros.
Desce ou ascende, sempre alba e sempre sombra.
Ela o caminho que nos guarda.
Primeira residncia
Na primeira residncia,
talvez gua, no pulso
transparente do olvido,
o que outrora era a beleza
o remanso
que restaura na sede a claridade.
Pureza bria de msica,
de quietude,
negrura aberta, primavera da matria,
um corpo de plpebras solares.
Revelao da noite
Era a sombra do fogo. E a lua azul.
De si to esquecida
no murmrio inexaurvel
do alvoroo da brisa,
gazela do vazio,
de transparentes msculos
e de sonmbulos raios.
Ser uma figura
aquela que nenhuma?
O crculo vazio
Eu sei, tu sabes, no sabemos.
A palavra o ouvido do deserto.
Ovo, vazio, sombra.
Um olho sibila dentro do crculo.
Eu vejo, ns vemos o sossego
de uma terra clara sem figuras,
escrita de uma asa indecifrvel.
Ningum aqui? Aqui reina ningum
em solido de inteligncia limpa.
Alianas
Alianas, onde
as alianas?
Ao fundo da lacuna
o dedo desce
e escava o calcanhar
incandescente
da deusa
de ningum.
Atravs de uma nuvem negra
Como se o dedo tocasse uma chama glida
como se tu nadasses
dentro da lmpada negra
ou nos negros clices da tua ferida,
como se a palavra de sbito se abrisse
para o centro
de ouro e sombra.
como se a gua ardesse e a pedra flusse,
bebe, bebe essa lama ardente
de sedentas slabas,
que todo o teu alento e a tua terra,
saboreia esse poo onde ainda ardem estrelas
e onde flutua a mo branca minscula
que move o corpo que entre nuvens navega.
Na casa
Um fio de msica vai desenhando o silncio.
Queremos habitar o sossego da penumbra.
Estas slabas conheceram a violncia das crateras
e o sangue das imagens. Estamos vazios,
quase serenos. Estamos j dentro do pndulo,
Na imensidade
Comigo estou de repente numa ilha
escarpada, inacessvel e segura.
A luz culmina e ilumina a sombra.
E como atenta ave estou pousado
no cimo de uma rocha fulgurante
na maior transparncia do silncio.
Insondvel prodgio, indomvel prodgio.
Dir-se-ia que sorri o universo.
Todo o ser em concordncia com o ser
no seu centro de energia em glria imediata.
Despojado e inteiro ergo-me de ver
e dilato-me luminosa imensidade.
Toda a matria cintila cristalina
em cpula no seu presente eterno
e to fundo e to por dentro que dir-se-ia
poder esquecer-se assim nesta viso vazia.
Estar assim o alvor na roda alta
da transparncia em que o azul prolonga
o antiqussimo sossego da materna idade.
Aquela paz e nitidez de nascimento
vai lavrando os campos visuais
e entrando nas delicadas zonas
onde tudo vulnervel e agora msica
e perfume de um animal do mar.
Mudo o amor de tudo contemplado
mas em que ondeia a densa melodia
perene da altitude e o ardor
absoluto da mais pura aridez.
Luz sem fim de clarssima frescura,
central repouso de um pas de sono,
delicada simplicidade de palcio,
um tesouro de chamas clidas que no queimem,
um horizonte de fragrncia tranquila.
Fundao do corpo
Fundar-te
com os instrumentos da gua,
e com a efervescncia
das mos. Estender-te
palmo a palmo,
como se a origem fosse coisa.
Recolher-te,
dilatando a viso de voo indecifrvel,
deslumbrar as slabas
com a evidncia dos despojos,
aprender dormindo
a conivncia do unnime,
ordenar os enigmas do teu corpo
na serenidade do nome.
Desenhar o olhar animal
sobre as superfcies nuas.
Unir todas as vozes que caminham para a noite.
Concentrar o fulgor do vazio
num vaso transparente.
Dos
ela
Ela
e a
Laura,
a conscincia abandonada,
canta entre runas brancas,
os desejos da terra.
Invocao de Laura atravs de Eusbio Lorenzo (2.a verso)
Quero inteirar-me
do que Laura deixou
sua carga azulada
de desejo e sombra
Espero o seu regresso
ou seja o seu princpio
que um canto da nvoa
sobre alcantis vermelhos
no dia em que ela ouviu
os imensos exrcitos
e com os cavalos entrou
na casa azul do mar
Laura eu te celebro
hora das cidades
de pedra e sangue
Em ti tudo olvido
ausncia e nostalgia
Mas tu regressas sempre
como uma antiga ferida
ou um astro de oiro negro
Sempre bela na cripta
do teu desejo branco
sempre que foges sentes
a ligeireza das rvores
Se tocas as palavras
tocas a lngua das ondas
num mistrio animal
Todos os segredos da luz
se enlaam no teu corpo
e o azul alegre
nos teus flancos azuis
Sobre as guas dos cimos
j ests perto do sol
impondervel cisne
num turbilho de oiro