O NÃO E O SIM - António Ramos Rosa

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antnio ramos rosa

O No e o Sim
graffiti
Quetzal Editores
lisboa/1990
capa: rogrio petinga
c Antnio Ramos Rosa e Quetzal Editores
Quetzal editores
Rua Sanches coelho, 3, 9.o Esq.
1600 Lisboa
Telefones: 76 13 97, 76 25 93
telex: 65732 pegest p
Impresso por:
tipografia Guerra
Viseu
Depsito legal n.o 35297/90
NQz.02.026.94.90
fala,
mas no separes o no e o sim.
paul celan
na densidade da terra
A dana entre o sim e o no
A que numa torrente foi talhada
e era negra e ardente,
os instrumentos sobre os rins, o dorso
fascinante.
A que tendo vivido beira do desastre
reconstruiu a dana
entre o sim e o no.
A que se desmorona e se dissipa
e elctrica na lentido dos cemitrios,
quando o vento negro sobre o trigo,
os signos da opresso distende
superfcie prolixa.
A que, fracturada, ainda fulgura
quando diz a pedra e o frmito das ervas
e o sentido se subleva entre lacunas.
A que outrora foi delta e foi cavalo,
argila alegre e rosa de metal,
a metade de si mesma sob o musgo
mas ela dilacera ela ilumina
um rosto inanimado sobre as pedras.

Na densidade da terra
Basta um s corpo
um tronco erecto
um s pedao de terra trabalhada
de sulcos paralelos.
um despojo extremo.
Onde um n se desfaz,
uma amarra se rompe,
um novo elemento.
Tenacidade lenta
de densidade
extrema.
Podem seguir-se as fases,
podem-se ler as frases,
contar-se os instrumentos.
o que por trs est
de tudo o que aparece:
a relao do fundo,
a lmpada obscura,
a que ilumina o fundo.
Despertam as razes,
imperceptveis,
imperceptveis
fundos.
a terra e s a terra
que no obscuro esperava.
Nenhuma iluso ptica
ou jogo de aparncias.
Silenciosa rotao.
A face iluminada
a face da sombra.
Atravs da noite atravs da brancura
Com minuciosa febre
algum traa na folha
a sibilina trama
e um meticuloso desastre.
Secreta sob a pedra
escreve
sem encontrar a nascente
atravs da noite.
Nas tmporas
um turbilho de abelhas,
na boca
a cal que ainda desejo.
Escreve
com o gume dos dedos
dilacerando

a dvida
para desaparecer
como um gro entre os gros.
longo o abandono
de inesgotveis foras.
Uma ilegvel mo
multiplica a roda
do inaltervel.
Os sulcos so unnimes,
traos, portas, templos
atravs da brancura.
Entre os ciprestes
e os instrumentos
o silncio pronuncia
a permanncia.
Alma amante
Algo se recolhe porta atrs de porta.
Algo procura o centro.
No busca o mundo. S quer absorver-se
perceber-se a si mesma
soberanamente.
Quer estar imvel
na lenta plenitude
sem paixes.
Quer perpetuar-se abandonada isenta
atenuada e serenamente deslumbrante.
Quer secretamente ser sempre encantada
sem pedir mais que o oiro do seu sossego.
Longe, longe est do mundo, sem instrumentos,
mas o seu peito tem mil portas abertas.
Ela ascendeu vagarosa por impondervel adeso
e sem desejos, o seu Desejo consumando
na chama intemporal que o seu corpo amante.
Ningum poder chamar o seu nome ardente.
A sua certeza ningum e o seu cio vazio.
J no se ope a si mesma no seu nico arco
em que reuniu os dois plos num inviolvel nascer.
Est com todo o intacto remotssima e presente.
Sabe e tudo o que sabe area plenitude
que transparece nos meandros do silncio.
Ouve-se a frescura atravs da distncia.
uma deusa branca.
Luz e obscuridade
No sendo seno sopro ou murmrio
de uma subtil riqueza, um voo imvel
sobre altos fundos, elptica voz
branca, e que s fala

quando, relmpago, na sombra se retira


a flor velada do silncio.
Ainda outra vez, mas a primeira vez,
rosto abolido, rvore deslumbrante!
De to pura leveza tu me ligas
ao centro mais obscuro de mim
onde se irisa o espao e vibra a dor.
Ritmo, o grande embalo, a escuta nua.
Ritmo, que de nada nasce, pouco a pouco
e que sem ser figura perfeio nativa,
fbula e risos, vegetao liberta.
Em plena luz a grande flor secreta
ainda velada no seu fragrante vu.
o breve o aberto, o instante azul,
em que as sementes e as suas lgrimas se confundem,
infortnio e felicidade conjugados
na opulenta ligeireza do jardim.
Cego ainda na sua luz submerso
o olhar da palavra em seus meandros
e hesitante, mas soberano j
nos cintilantes signos.
A cadeia frgil, mas subtil a engrenagem
que o fogo irriga abrindo a clara esfera.
E ainda que desvio, a sequncia respira
nas pausas em que a noite j cintila
e nas altas margens de um desejo ardente
que em sombras desiguais uma secreta ris
ordena, fluindo, em paralelas linhas.
O desejo
No h outro desgnio
que a glria de no pensar
indestrutvel.
No h outro desejo
do que ir ao encontro da inatacvel realidade.
Vertical
obliquamente
seguro com os seus olhos cerrados
que vem atravs de tudo a substncia amante
liberta-se de todas as escamas
nu para a beleza e para a verdade.
vido
mas de uma avidez que quer outra avidez
e se equivale a ela sem argcias de poder
pleno e despojado para a colheita ardente
de um s corpo em dois. Nupcial.
Na verdade do seu incndio
que lavra entre nocturnas brisas
o desejo o campons da origem
que na sua nudez celebra o todo intacto.
Num
o
sem
que

torpor que leveza num sono de acordado


luminoso veleiro que vai abrindo os diques
estrpito e dando incio aos voos
no so sonhos

mas onde a terra sonha


na mais secreta exalao
na mais silenciosa exalao.
Cada um feito dos silncios que o outro ama
e o nome que no disse e que se vai dizer
respira j mulher e homem
e sol e rio e folhas mos dadas ao sol
terra e corpo num nico corpo pronto a morrer
porque est na fonte como uma serpente enrolada
porque o amor tem o odor da terra
porque a primavera uma palavra e um ser.
De sbito dentro
De sbito entrei. Era
uma msica
de um barco imvel no encanto
de ser toda a atmosfera, no descanso
da mais ntima sombra adormecido,
como na essncia de um sonho.
Um mbito sem nome, em total olvido,
o universo completo no jardim.
E a montanha em silncio, a solido de estrelas,
um dorso longnquo e sobre ele as ondas
caladas, majestosas.
Era a imortal maturidade de um s instante,
a verdadeira vida aqui, plena, revelada,
o gozo sem af da formosura imensa,
toda a verdade presente e sem histria,
msica absoluta de humana divindade.
O centro vulnervel
Um escoro sinuoso,
um rudo iluminado.
Centro. Talvez
um centro,
vulnervel, mvel,
onde no tocam
formas.
Distante no sossego
de ser e de no ser.
Ignoto e leve
sob as nossas vozes.
Flui, flui
num errante frescor
de quieta claridade.
Fundo sem fantasmas
fugacssimo como
um pulso horizontal.
Sempre em reserva
sob longas distncias,

quem poder sonh-lo


ou dar-lhe a mo amiga?
No seu domnio est
como verdade inteira
como evidncia ltima.
Inexpugnvel, sim,
mas s vezes prodgio
de profundo sossego
no mbito completo.
A alma ento consuma-se
lcida no presente,
ondulao suprema
de imvel plenitude.
Com a pedra na garganta
o que est com a pedra
na garganta
bebeu da prpria pedra.
Ele quer pousar
no sopro subterrneo
da palavra
entre as espinhas.
Para alm das silhuetas
ele quer palpar
os sulcos
de um rosto de ningum
Haver ainda um templo ou uma estrela
de ar ou de gua
ou sangue. Haver sangue
haver sol
na pedra?
Ele explora ainda
para fluir para florescer
com as tranquilas garras
nos escombros
ou que talvez na pedra
se abra o olho da sombra.
coroao solitria
Impregnada de grandes certezas que trespassam
mas vegetal e incerta ainda
quanto a um percurso incandescente pela noite
e plcida de estrelas luzes indelveis
que so na solido inflexvel
a resoluo que no vibra e finamente
cristalizam numa nocturna primavera
e exactas sem gozo frigidssimas
dizem a distncia e a intangvel glria,
na imensidade unida jamais nossa,
enamorado tesouro, essencial realidade,
em que o desejo um tranquilo marulho

ptria sem ptria, incgnita evidncia


e caudal congelado de extrema amplitude,
navios sem memria, revelao no revelada,
fatal indolncia de um universo esttico
que nunca ser nosso, profundamente suave
no silncio coroado pela solido estrelada!
Concavidade area
Concavidade
palmas
veias de vento
dentes e papilas
volantes calcanhares
profunda; fibras talhadas e abertas
para as clareiras do cu
cintura fundamental
virilhas entre o fogo e o ar
repouso do silncio no som
e do som no silncio
livre tumulto de profunda harmonia
pura paixo das plpebras
erguida com a mesa e alta como um cimo
sabor de estbulo entre nuvens divinas
lcida sonmbula de sandlias de argila
preguiosa elegncia entre as esquinas do fogo
incandescncia de um manancial
suave ardor longnquo sobre a pele
ptria volante.
As palavras
H palavras que so sombras de rvores
ou um blsamo da terra,
um pressentimento de espuma,
um incndio do tacto,
uma reverncia ao desconhecido.
Amo as palavras que so s vezes sonmbulos cavalos,
satlites de granito,
raparigas cegas no fundo das casas,
veias de uma estrela submarina.
Como no am-las pela brisa
se so ptalas de um clamor silencioso
ou anjos sossegados dormindo sobre a terra
ou lcidas e brias, majestosas e puras,
magnficas como um dorso recamado de estrelas,
intacta revelao de invioladas luas?
Desconfio das palavras, mas s vezes so leves musicais,
aves que planam sobre uma cidade branca,
ilhas mgicas, selados vasos, cordeiros recm-nascidos,
caravanas vermelhas, armadilhas de cristal,
amoroso tremor da matria terrestre.
Como um boi nocturno das guas eu procuro
essas guitarras plantadas nas plantas
que atravs de eclipses e da distncia
erguem uma rvore de msica ou uma pirmide
ou as lianas vivas que me defendem dos abismos.
Como esttuas de ar as palavras levantam-se

na harmonia delirante do nmada do deserto.


Quer sejam suspiros entre arbustos ou sonmbulas melodias esto sempre altura dos se
us prprios desejos.
Quer o crebro sangre ou a terra estremea
o seu cerimonial inesgotvel, as suas relquias vivas.
So abelhas ou astros que buscam alimento
nos ninhos de amndoa ou nos espelhos da lua?
Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos,
nos seus cavalos subterrneos, nos seus densos diamantes.
Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e sombras,
sei que so anjos de argila, antiqussimos arqueiros
que disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas.
Vozes da Terra
Uma voz
Sou eu, sou eu ainda,
diz uma voz no deserto.
Sou eu, que vos conheo,
eu, que fui folha e agora sou aragem.
Uma palavra sou, entre cinzas e cinzas,
e atravs da noite
queria brilhar para vs,
para vs, ainda.
Sou eu, que atravessei o turbilho
e pulso ou spala
deportada
sou um sinal verde que respira ainda.
Sou ainda uma voz
para dar o alarme
atravs de...?
Outrora, ou talvez no,
fomos a frescura do sol
a abbada vegetal
a cintilante escrita o mesmo sopro.
Como poderei ser ainda o livro aberto
sobre o mar
e todas as coisas nuas, os segredos
inacabados e toda a dor da terra?
Sim, eu sou ainda,
a desaparecida, a errante, a sem caminho,
jamais no centro
e que dorme ainda e esquece
mas se confunde com o sobressalto
de algo que acaba de nascer, que nasce.
No ltimo lugar da luz
Vem. Aqui o ltimo lugar da luz,
o som fresco, o sossego ardente.
Fala e habita sob as escuras folhas.
H uma linguagem neste murmrio longnquo
do fundo do arvoredo entre minsculas luzes.
Os pssaros calaram-se. Vejo ainda os eloendros.
Se adormeceres o teu sono ser verde

entre as hortnsias.
O barco do vento passa na tranquila hora.
Voz matinal
Cantando defendo a minha sombra
adolescente. Que amante ouvir esta cano?
Eu amo tudo o que vivo
e a minha nudez renova-me e inebria-me.
Movo-me como uma semente em silenciosos gestos
e o meu desejo confunde-se com o vagar das nuvens.
Ser a minha primeira alegria e sou tudo o que respiro.
Voz do solo
Quem sou eu entre o solo e o sonho?
Dano sozinha ao rumor da folhagem.
Minha pequena vida uma paixo.
Vejo o fulgor do que no tem nome nem sentido.
Os insectos pulsam sobre a minha pele.
Por vezes uma cobra levanta a sua cabea.
Sou sensual e subtil, amo o insignificante.
Conheo a solido das coisas e enlao-a
do meu pensamento e sou area.
Voz das plpebras
Adormecendo na pedra e sem figura
eu sou a voz das plpebras.
Tenho o fogo vegetal na minha pele
e no desperto entre as lagartas e os pssaros.
A gua corre sobre mim, eu sou um sonho
que demora na leve nudez
e o que digo o meu flego verde.
As minhas palavras no so palavras, so talvez sombra,
talvez msica. No me retenhas mas guarda o meu aroma
e faz dele uma palavra amante
em que o sentido se condense anoitecendo.
Anjos de terra
Anjos, existem anjos? Volveis seres
que so um instante de voluptuosa brisa
em que o tempo a forma do desejo
e do sono das folhas e das guas.
Anjos, sim, de terra, que segredam
a argila dos nomes, o movimento azul
do ar. Na sua companhia eu sou o vento
e o meu hlito confunde-se com as suas vozes.
A casa
A tua voz vegetal e eleva-se com o vento.
Quero demor-la, fazer dela uma casa
ou um tronco. Que seja a minha noite

com um ardor de eternidade. E a sabedoria


de estar entre plantas tranquilas.
Tudo estar comigo perto de uma nascente
e eu mover-me-ei entre nocturnas veias
e sobre as pedras lisas.
Vejo os barcos da sombra entre as constelaes
e estou perto, estou perto. A minha casa aqui.
Voz entre as ervas
Eu tambm sou entre sombra e chama
um leve som de luz evanescente.
Chama-me e entre as pedras eu serei um hlito
e o prprio nome que aos teus lbios sobe.
Faz de mim a tua viso, a tua redonda porta.
Eu digo o que o vento diz e as ondas mnimas.
A noite no responde, mas as plpebras resplandecem.
Eu no estou s: sou uma multido minscula
que respira entre folhas flutuantes.
Eu no sou ningum.
Eu nada espero, eu espero, eu espero
que acendas o meu nome
neste puro repouso apaixonado.
Voz entre rvores
Ouo a tua voz de mil murmrios e de um s espao
de uma s viso silenciosa.
Tu j comeaste h muito com o sol e com os pssaros.
A tua luz ilumina as folhas e as pedras.
Eu sou o que comea, o que quer comear
para estar contigo entre as rvores e a gua.
Aspiro a luz com o hlito de uma criana.
Estou enraizado numa pedra junto a um ribeiro.
Tu cantas e o espao que canta, um s desejo
que principia e adormece e no sono principia.
Voz silenciosa
o que ser uma figura do silncio?
o que ser apenas o hlito de uma folha?
Algum me descobrir no meu crculo minsculo?
Quem falar s pedras? Quem dir a palavra?
Inclino-me sobre a gua com um suave desejo
e quase canto no silncio, adormecendo.
Amo a luz tranquila e o meu pequeno corpo
leve como uma clara chama. O mistrio meu.
Mas se algum vier acariciar as pedras
eu cantarei na sua boca, descerei ao fundo
da garganta e serei nas suas veias
o frmito feliz de uma pedra harmoniosa.
Memria cia origem
Quando teria sido? Mas o aroma
o paraso de um momento, o cimo vegetal.

Se algum fala a boca da folhagem


ou o ouvido da pedra. Quem est flutuando?
Aguda e esquiva a glria da pungncia.
A mais profunda delcia pulsa na garganta
e o ouro do pranto concentrado e profuso.
Consuma-se a essncia de montanhas interiores.
mais que uma viso, um profundo barco
carregado de aromas e de sombras fresqussimas.
Que mais dizer? A luz canta um momento.
Estamos to longe de tudo que talvez seja o princpio.
O deus adormecido
Ningum me pode ensinar o que a aragem diz.
Eu vi um deus em repouso sob a sombra das nuvens.
A viso era to calma e luminosa sob as rvores
que eu prprio era parte da divindade revelada.
Magnfico era o ser que eu olhava extasiado
mas sem distancia alguma, na clara plenitude.
No era de outro mundo, mas o mundo suspendia-se
no hlito divino E eu no estava a mais,
porque o meu corpo ondulava leve como uma chama
em unssono com os haustos do deus adormecido.
Um deus adormecido num jardim
eu vi o seu sorriso sob a sombra das folhas
e vi-o adormecer. Senti que mergulhava
em plcidas guas. Um tesouro
fulgurava entre as pedras e os limos.
Que tranquila a paixo, toda silncio e luz!
Como um grande barco verde a folhagem navegava.
o corao do estio pulsava nas cigarras.
o sorriso do deus era um comeo infinito.
o desejo no sono abria-se completo
numa corola de gua, fogo e ar.
Os smbolo desfizeram-se em imediatas evidncias.
Estvamos no seio da realidade ardente.
O deus do vero
Chamar-te-ei deus porque s o meu desejo
e o meu desejo o sol do ar, o sol do sol.
Sinto a febre fresca do teu hlito
na densa conscincia deste vero.
Atravs da madeira oio as vozes imveis,
veladas, ao nvel do silncio.
Atravs de ti respiro na violncia do calor
em que o sangue do tempo bate nas paredes.
Todas as figuras adormeceram no vazio.
Mas os teus mil ecos ressoam no sossego
e so eles que aprofundam esta cmara do estio.
Como tu concilias a solido e a harmonia
e na vacuidade unificas as ntimas estrelas
com a surda veemncia de um mundo submerso!
transparente deus que sem estar ests
no sossego luminoso deste pequeno quarto

em que serena pulsa a verdade do ser vivo!


A deusa do ar
Quem ela? Apenas um tremor
de slabas dispersas, um sopro de cores,
um lucilante sono. Eu quero ser
a sua frescura annima, a sua lngua solar.
O vento a respirao
e a conscincia de uma leveza nupcial,
verde e lcida interior a uma matria adolescente.
Entre a espessura das rvores perpassa a sua msica.
No h identidade mais gil nem inquietao mais pura.
No seu incerto znite ela transcende a solido.
A vida uma fuga sobre runas verdes.
O tempo abolido por mecanismos tnues.
Oio o latir dos troncos, os horizontes sossegados.
Chegam os altos cavalos do vento com as suas lnguas de sal.
Tudo o que eu no fui ou o que sou se erige para a celebrar.
Sem certezas ou sonhos sigo um fluxo azul
e mais do que na esperana do mundo navego no silncio liso.
O deus que transparncia
Ningum me sada nas esquinas do papel.
Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.
Mas nos dedos sinto o rumor de um segredo vegetal.
como se procurasse alargar a mo dos deuses.
como arder com a gua na brancura ofuscante
da ressaca. E as palavras da casa se levantam
a janela a porta a cama e a cadeira.
So presenas espessas e ntidas no perfil.
Assim se forma um crculo com energia erguida
nas slabas preenchidas pela coerncia do mundo.
Maternas so as sombras em torno de um centro verde
que foi talvez um deus antigo que se esqueceu
e o esquecimento o seu signo: a transparncia.
Metamorfose do vazio
Nem hostil nem secreto,
nem sequer indiferente,
aqui ests como o branco no branco
para seres talvez o mar ou o horizonte
um deserto ou um osis,
exploso de um anelo ou conscincia azul.
Os teus raios esto suspensos, imersos no vazio
e no emitem mensagens para o sol
e as tuas mandbulas mordem as silabas de areia.
No h nenhum anjo prisioneiro na tua ilha cinzenta
porque tu s a ausncia sem msica e sem mundo.
Nada em ti cresce como um desejo ou como um canto
mas por ti que os animais do vento,
que buscam a fonte oculta,
renem os vestgios do silncio

e no teu peito neutro


talham as arestas da terra
e as palavras que se acendem como rvores.
As razes
As razes no falam. No esto atrs. Nem no fundo.
As raizes vo frente. Puxam-nos para a frente.
Por vezes engrossam nos sapatos. Cheias de suor e cobertas de bocas.
Trazem os olhos cheios de noite e de formigas
e tm o peso de sculos de po e morte, de me e cal. Projectam-se para o sol em latidos
de sangue
mas caem num fundo de chumbo ou numa imvel sombra.
Crescem, crescem sempre com as cabeas feridas,
rfs de um horizonte soterrado em escamas.
Ascendem garganta com os dentes da terra
mas sustm o grito como se fosse um osso.
Que querem elas dizer? Alegria, rvores,
astros? Ou a intensa sombra do silncio?
Elas impelem-nos para a frente, para um futuro antigo
de lgrimas adolescentes e marinhas,
de rios juvenis, de grandes luas
e o corao late em guas vivas.
Mas quando a noite chega,
que obscuro tropel dentro da garganta,
que pssaros cegos dentro das plpebras,
que montanhas e montanhas de sangue,
que navios de pedra sobre a sua rede inextricvel!
Quando se acalmam nas clareiras do sono,
quando os gritos se transformam nas vozes brancas do silncio
ento as suas linhas se harmonizam altas e tranquilas
em abbadas vegetais, em arcos e ogivas
que ondulam iluminadas por uma luz subterrnea.
A garganta
Garganta, astro de agonia e de volpia,
em que passam as profundas guas,
corredor do abismo e cascata da sede,
veemncia vertical de plenitude e sombra,
a luz se levanta com um marulho azul
e a noite despe-se com diamantes secretos.
Substncia que ascende para a amorosa conscincia
que funde a energia e o xtase
e o rio do desejo com a manh do mar.
Fragrante gesto em liquida vigilncia,
tnel veloz e lento girassol,
archote do clamor das nuvens,
queda e ascenso de um pssaro fulgurante,
a profunda, a silenciosa palavra
completa
que ainda no ascendeu aos lbios,
tesouro e chama e pedra e asa,
msica
de uma nascente mgica,
rosa anelante
do silncio,
bosque de sombra

que a luz aspira,


delcia e chama,
cristal vertiginoso.
A tarde
Quase no vemos os prodgios fiis,
a parede solar, o torso unnime,
o fulgor da cabeleira sobre o mar,
o palcio de todos, de ningum.
Evidente mas subtrado evidncia
quanto vemos sem ver pelo excesso
de estar em profuso imediata.
Qualidade lisa, ondulao silente
que rene a plenitude e o longnquo,
plana ecloso de um insondvel fundo
que no alvor da superfcie se consuma.
Todo o sossego se nivela, ondeando em sombra
e sol. A tarde em sua integridade
fatalmente suave.
A torrente
A torrente oferece-se
em pressentimentos
de flexvel alegria
em ondas de mos
em emanaes felizes.
A torrente estende-se
em nuvens e clareiras
em unidade presente
em graa magnfica.
Oferece-se estende-se
em facilidade leve
em arroios frescos
em ilhas e acasos.
Resvala refulge
em troncos e em mesas
nos arados do tempo
em profusas e cmplices
nuvens ascendentes.
Prdiga futura
flui entre os tumultos
em feliz equilbrio
demorando suave.
Reconhece recebe
no seu subtil encanto
as mquinas e os corpos
o frenesim das buzinas.
Tal uma deusa ligeira
num luminoso sono
num desgnio de graa

absorve a dor e a nsia


e no mais do que o ar.
cntico
Outrora agora
Outrora eram as cordilheiras incandescentes
e todos os lbios de outono fresco e de verdura
Oh porque no vem a primeira forma, a verde lucidez
do dom maravilhoso da feminina festa?
Na magnfica e mgica perfeio do silncio
h um olho negro, o veludo de um pbis
em que as palavras se aventuram em frmitos nostlgicos.
Ondulante e translcida no imutvel vazio
move-se a mo da deusa area como num vaso sagrado
e tudo o que ela toca imortal tranquilidade.
a mo que escreve
o que eu procuro ou no procuro
um toque de palavras pelas rvores,
um misterioso vagar entre as estrelas brancas
do vazio ou as imagens puras
do primeiro olhar.
Quantas pedras e navios, quantos desenhos
no abandono magnfico das salas!
E os diadema de pedra e o longo desespero
dos animais entre as rendas e as pratas.
Neste momento a minha mo no tem autor
e tudo o que ela escreve atravs de um seio
desconhecido. Como se despreocupada ela soubesse
a dissonncia negra na consonncia do oiro.
Eu vejo sobre a mo o meu retrato de anmona
sangrenta. E os pequenos cavalos nos bosques e jardins.
Tudo o que a mo escreve a minha juventude errante
que nunca existiu e que aqui perpassa na sua misria deslumbrante.
A coisa amada
D-me o sangue das tuas ancas, d-me o sangue
dos teus seios e o jardim do teu sexo.
Eu quero nascer
pela forma errante da respirao igual,
pelas bocas que atravs das nuvens comunicam.
Um desejo absoluto circula em todo o espao.
Eu quero-te porque tu s a coisa amada
em que me transformo no flanco das palavras.
De uma odorfera fenda avermelhada,
em linhas irisadas, entre verdes cristais,
sobes, soberanamente escandalosa.
A palavra e o silncio

No s ningum, eu sei, nem mesmo o eco


ou a espuma longnqua do horizonte.
Sinto o suar da terra, a fragrncia sem nome
de uma rvore de campos silenciosos.
Sem pulso, sem voz e sem o rosto
oio as palavras que saem do silncio.
Lbios e dedos, artrias e razes,
tecidos flutuantes e secretos rumores,
uma escura mar, naufrgio de cabelos.
Em tudo isto cresce a fora lenta
do mar silencioso sobre a fronte.
E os vocbulos com nervos e tendes
concentram em estreitos corredores
os cavalos mutilados e rebeldes
que se levantam entre o olvido e o desejo.
Ignorncia no azul
Lentamente, eis o que a mo, lentamente,
lentamente sobre o mistrio e o repouso.
Estas primeiras silabas so o rumor dos olhos
e a lentido clara das suas longas ancas.
Lentamente, lentamente, devora as rvores verdes,
desenha as linhas negras. Vai modelando
pensamentos e rios, animais e cidades,
vesturios e destinos. Ligeireza da matria
em silenciosos halos e murmrios verdes.
No azul da ignorncia a nudez completa
e ela diz aquilo que ns no conhecemos.
Beleza negra
Era lancinante aquela beleza negra
com uma fenda verde entre os sobrolhos.
Mais delicada que um clice, mais trmula que um ramo.
Adorvel amante que uma nuvem circunda
de sangue e de lgrimas deslumbrantes.
Ela dissipou a noite com a clara glande
e na nudez apaziguaram-se as montanhas.
Nas ancas esguias h um tesouro de gua.
Como se fosse de orvalho a sua frescura refulge.
O peito abre-se como um leque sob as rvores.
Nascente
Perene o repouso da nascente
e a sua desordem voluptuosa.
Ela suscita as sensaes suaves
que so, mais que verdade, simpatia.
As clidas gargantas se refrescam
mesmo nas montanhas calcinadas.
Sem destino. num translcido abandono
os pensamentos exalam-se no ar
e dele recebem os frutos nupciais.
A eternidade um lbio aberto
que em suave abundncia mata a sede

e faz do ser um frmito de volpia


que acende a nostalgia e a consuma.
A miraculosa coisa
A miraculosa coisa que se esperava
e que era to diferente e semelhante
em graciosa dignidade de repouso
(o oiro e a sombra sobre o verde)
o hlito inicial, as flexveis muralhas,
a nudez das formas em movimentos magnficos,
os caminhos que ascendem segundo a respirao,
o vocabulrio das nascentes e os segredos entre nuvens.
A letra errante
Ele ser o que diz e sobretudo o que no diz
nas pginas de relmpagos imveis.
Dos poros escoa-se o rumor
de um mar longnquo ou de um touro encarcerado.
Precipita-se a nudez nos espelhos onde h poos
e tudo o que ele escreve a rebentao da terra
e as sombras marejadas por um mar que larga a pele.
Do corao aos rins sente pulsar a vaga
que traz o sabor do basalto ao corao
e o desfralda entre os destroos e a cinza.
Assim se desfaz e refaz a letra errante
que se extravia e num rasgo revela
a lngua do intacto, o corpo soberano.
Uma nuvem
Uma clareira negra e a respirao da pele
mais lenta. Cpula sem cpula e sem o movimento.
Louvor do ignorado que no transparece mas flui
sob as carcias imponderveis do amante.
quase atroz o corpo extremo, a lmpida tortura
no meio da nuvem inviolvel sem beijos e sem sonhos,
flor nocturna, flor sem flor, montanha lcida!
Rebentao
Vem sempre dar pele o sabor das imagens
e a coroa lisa, sem espuma, dessas vagas
que, rebentando, abrem um abismo verde
que, aps a nusea, revolteia em nebulosa
de espelhos e cabelos e arrebatados dedos
em que se multiplica o corpo encapelado.
pela matria que se engendra a matria
quando as cristas se incendeiam de oiro azul
e o puro mistrio repousa no movimento das ondas.
As palavras no teatro
Porque no so lmpadas, as palavras sangram

mas como num teatro ou no convs de um navio.


Elas envolvem-se nos braos do acaso
e incendeiam-se para alm das portas
despenhando-se como as ondas das montanhas.
E h versos que das mais longnquas galerias
lanam tranquilos caminhos de gua
ou num patamar, luz da claraboia,
estendem a sossegada seda que sem pssaros ou nuvens
consumasse a imobilidade de um suavssimo segredo.
Por vezes como se tivessem pobres lenos nas mos trmulas
arqueiam os dentes para a misria das suas rvores.
Mas quando magnficas em substncia solar
levantam a potncia da terra e as indstrias vegetais
condensam nas vozes a noite os homens e o dia.
Escrevendo
escrevendo esperava que um misterioso entusiasmo
produzisse na pgina o cristal do mundo
e as suas rvores, os seus amantes, os seus rios
como figuras mgicas de um canto.
E que a gua imvel entre brancas runas
no reflectisse as imagens nem os sonhos
e violncia dos flancos das figuras
trouxesse o xtase da beleza que no flui.
Figura
A tua figura desperta a minha energia subtil
e ascende primeira forma sublime e simples.
Primavera do mundo e aromtico barco
e na palma da mo a delicada inicial.
Neste instante as luzes so passagens transparentes
e eu coloco o teu ventre novamente na paisagem.
Venho de ti e vou para ti antes do primeiro jacto
num cncavo seio na cpula do segredo,
que to fechado como a no respirao
e que se abre no rosto dos meus membros.
Presena total
Aderncia area ao oiro do infinito
das infindveis esferas, sem vertigem,
igualdade e confiana, nmero, amor, inteligncia,
o puro tempo da infinita majestade,
o hlito sem sopro, o mar sem movimento.
A minha sombra
A minha sombra revela-me ningum,
fortuita folha sem animal viveza,
instante nulo ou lmpada vazia
do fugaz viver, sombra de nada.
Rosa submersa

Est submersa como uma rosa verde sob as vagas.


o poema que ela espera a paisagem desejada.
Flancos e cabelos, todo o mistrio animal
e o suor e o sangue nos seus membros de esttua.
Sorri porque a semente entrou no seu sexo vermelho.
o cu j se inclina sobre o talento das pernas.
Que maravilhoso olhar! Nuvens e rios areos,
ventos, suspiros, deuses. deslumbrada pedra
que libertas o sorriso da adorao inicial
e salvas o mundo na espuma do teu sangue!
A sombra
No procuro saber donde vem a sombra
nem ver o seu rosto que eu adoro
porque ela a substncia do incio
e a elstica consolao da inocncia.
o deserto findou no ventre da montanha.
Um volvel palcio ergue-se sobre as ondas.
As mquinas de guerra afundam-se na areia.
A terra completa em contnuas confluncias.
Perderam-se os olhos falsos e as mos frias.
No se toca nenhuma forma, no se beija nenhum lbio.
o silncio ascende, uma toalha de silncio,
o silncio desce, uma esfera de silncio.
A sombra no tem barco nem lmpada nem vozes.
o nascimento comeou e sem cessar comea
e quer mais sombra e sombra pela fora da origem.
Espao
Comeo pela linha mais vagarosa e negra
de esplendor e misria, de obsceno paraso.
Onde o azul selvagem, onde a terra longe.
o amoroso ser toca os demnios brancos
e as matrias brias dos amantes felizes.
terras, terras inocentes, templos, terraos,
nebulosas e montanhas, sossego imortal!
Espao, espao, imobilidade imersa.
Aventura
Aproximo-me. Apenas me aproximo.
como se uma boca
ou uma plcida espdua de volpia
no perturbasse as armas e os lbios
da nostalgia liberta de uns nocturnos cabelos.
No se abriram as clareiras da sombra
nem os anis das cavernas radiosas.
Mas nas constelaes e no fulgor das lmpadas
brilham os segredos que ningum conhece.
imaculados frutos nas axilas do tempo!
ardente sexo que perfumas a noite
enquanto algum pronuncia o vocabulrio do vento!
A aventura sacode a sua cabeleira.
Este o mundo do desejo na sua nocturna transparncia.

Libertao
Escrevo atravs da nudez iminente
de amantes que atravessam grandes nuvens de vidro
e no espao sublevam os armrios de insectos.
Com eles construo a casa rsea, ocre e verde
e perpetuo o orgasmo nas paisagens abolidas.
Suspensa a linguagem no flanco do abismo
um naufrgio ardente, uma constelao
de dedos, uma aliana branca.
Da sua urna verde um grito de veludo
liberta a ave negra da separao.
A chama de fenosa
A sede desperta, vejo a orqudea de um ventre,
a neve de uma nuca. A sede desperta
com as slabas brancas entre umbigos e pssaros,
luas e violinos. As slabas desmoronam-se
mas a chama ascende
na frgil crepitao da primavera.
Vejo a sombra de um cisne, a silenciosa msica,
os delicados ps que pisaram as nuvens.
Vejo a cintura da chama no perfume das formas
e a gua e o fogo nos ramos de uma lmpada.
As mos ascendem para um rosto altssimo
em que intacta a ausncia da glria do desejo.
Memria da adolescncia
adolescncia dos dias, espirais do desejo
quando viver era viagem nas vrtebras da primavera!
Tanta sombra, tantas armas, tantas rvores,
no vigor verde um mar maravilhoso!
O estrpito das cabeleiras despertava as narinas
e o sexo das palavras ardia sob a argila.
Os poemas eram gargantas de vinho no veludo da lngua
e que felicidade ouvir o canto das plantas e o minsculo
martelar dos dentes da melancolia!
Afundavam-se os corpos em matrias magnficas
e as montanhas sonhadas tinham rumores de abelhas negras.
Sono
Adormeci no seio da terra: dilvio e osis.
O rosto era uma planta vermelha entre sombras elsticas.
Entre abelhas e montanhas, a fora do silncio
e o sexo uma colmeia ardente e o esplendor dos dentes.
Num flanco um lbio abriu-se e perfumava as sombras.
Toda a terra era carne exalao primeira
e nas espduas um tremor irisado
e a pirmide das nuvens, adorao suprema.
A palavra inicial

Majestade negra, a soberana palavra


suspensa sobre o poema, com um odor a sexo
e a animal sem espao.
As sensaes agitam lentamente as tuas plpebras
e sublevam os campos, o asfalto e o ar.
Quem no ouve o amoroso clamor das tuas rvores
e as estrelas presas na garganta?
Tu desejas envolver os deuses com os teus joelhos
nas nuvens. Mesmo nas partes mais sombrias
do teu corpo, mesmo nos teus tmulos desertos,
o teu afecto o triunfo de um cntico
com as altas guas e as tmidas lianas
e o olho negro do sol e as matrias da sombra.
No repouso do princpio
Adormeo sem viso quando a sombra se condensa
e tudo se suspende sem rosto e sem figura.
o eterno esta lentido, esta ascenso sem armas.
Os meus olhos esto vazios, os meus lbios tranquilos.
Na mgica anulao o desejo s silncio.
Ondulam dentro do crebro harmoniosos cabelos
como uma cascata imvel.
As formas no se distinguem. o princpio
sem paixo, sem memria, sem os rumores do sangue. Dir-se-ia que se dorme, mas a alt
a adolescncia
destas tranquilas guas como um barco aceso
pela nupcial ternura. Toda a cincia se transcende
na igualdade que vive a diagonal do ser.
Na plenitude da sombra
Estarmos na sombra tranquilos e vazios
quando ela desce num lento apocalipse
e o sossego inclina os seus ribeiros
sem seios nem cabelos e sem formas vibrantes.
E aniquilados adoramos o vazio da plenitude.
A fora tanquila descansa em nossos msculos
e cada vez mais a pobreza uma rvore.
No ouvimos, no vemos, no sabemos.
A sombra aglomera-se sem desenhos nem lbios.
Sem morrer, sem nascer e nascendo e morrendo
no sossego sem formas, na igualdade da sombra.
O uno duplo
Os secretos ornamentos do pudor, adorao
de ntimas rvores e de um dorso sem estrelas,
aliana soberba de dois seres numa rvore,
deus semelhante ao sossego do mar e das montanhas,
as mos na obscena fenda da terra incendiada,
a lngua na glande e nos cabelos verdes,
o rio nas ancas, silencioso ciclone,
a volpia da mo sobre as pernas de vespa,
o palcio do pbis, a negra arquitectura,
argila e ar e luz de uma floresta natal,
o xtase de ser duplo sobre a lngua da terra.

Madonna
Mais forte do que uma religio e mais elctrica
canta e despe-se entre drages e pssaros.
Levantam-se as montanhas vermelhas e os cavalos.
Ela canta entre as mquinas e as urtigas
e na ligeireza da sua fora verde
dissipa as muralhas negras e os obtusos negcios.
o seu corao um girassol de slex.
Rapariga ou andorinha, fabulosa lmpada
que soltas as tuas vestes e te salvas!
Danas como uma area anmona
e com a potncia do desejo, transparente amante,
tocas obliquamente os divinos flancos.

BREVES FULGORES
Descida area
o que desce pelo fumo
azul no fundo de uma cinza
e decanta os dedos
no adgio dos muros.
o que que ondula na penumbra
do declive?
o rumor do tempo,
a erva ferida?
Os contornos, as fibras,
os lentos aglomerados
verdes e negros ou azuis e rosa,
desagregam-se,
engendram a profusa semelhana.
J no tenho idade. Atravesso
a danarina desenhada
pelas nuvens da ausncia.
Na lngua area e slida
sou o corpo da ignorncia vegetal.
Os signos materiais
Estou atento
como um animal selvagem
Apalpo os signos
araucrias
lagartixas
aranhas e laranjas
as formigas do vento
Sinto a pele do espao
sobre as veias

Bichos nocturnos e teias de luz


Sabores espessos
centelhas de pedra
cintilantes dedos
slabas sob a chuva
algaravia verde
a disperso no centro
Sonmbulas construes
de uma energia branca
Leveza
Vi-te subir.
As guas separaram-se das guas.
o meu alento era um puro elixir.
Tu davas-me os passos com que caminhava para ti.
Ligeiro, to ligeiro entre os trepidantes cascos
de obscuros navios. Slabas de linfa
no vento sonmbulo.
Tenho a garganta cheia
de abelhas verdes e o corpo
balana-se
como um fruto
grvido de magnificncia.
Vertical nadador
sustento a pulso as vermelhas corolas
que ligam a lua e o sol.
Arredonda-se a inocncia no centro da voragem.
o ar incendeia os nervos dos segredos.
o sopro da serpente fertiliza
os alvolos brancos
at que as espduas toquem o fundo
e o sangue se incline
transformando o destino em puro incio.
Uma viso
No mais profundo verde
onde est atravessado o brao
e a proa roda
Silenciosa com os escaravelhos brancos
talvez uma viso da morte
ou antes o navio do sono
com as veias arrancadas
volta da cintura
Ou talvez uma plpebra verde
finalmente mortalmente
to longe de tudo
to perto de ti
Irm obscura

Sabemos que j no vem


- as plpebras dizem sim?
garganta
garganta onde o sol
deixou as espduas violetas
E ainda
ainda
um rumor de cintura desatada
pelos teus dedos
irma obscura
na crislida
(imagem
e no imagem)
estes so os teus membros
e o teu sopro
estes os gros de luz
e o teu hmus negro
Ser um nome
opala
os membros de uma ave
o rebanho translcido
(infinitesimal na imensidade)
terra que germina
na ausncia
Num crculo denso
Ressoaria talvez
num crculo
de densidade crescente
como uma espdua
como um touro de gua
voando sobre as rvores
Oferta que se tece
da brancura dos signos
a terra os seus nmeros
a membrana sonora
as minsculas mos
das rvores
Um brao nada
para a lmpada
das folhas
limitando os seus limites
Um ombro
ascende
abbada negra
onde cintila o oiro
A cavalgada
serena
atravs da fora errante
para alm dos ltimos pomares
brancos

onde o corpo toca


as suas prprias slabas
incestuosas
Quase
Obscurece-se de um lado
para ti
como uma ptala de sombra
Reina nos detritos
entre aranhas
nos minsculos torvelinhos
do instante
Quase rumina
na sua cripta
quase uma folha permevel
quase uma estrela
em forma de boca
Regresso
Perguntas? Viajo
na liberdade clara
de um sossegado mar
sem sombras nem relmpagos
Nada mais do que estar
em natural potncia
como num esquecido ninho
de um incessante regresso
Sem nostalgia nem esperana
entro na boca da terra
onde encontro a nascente
e o movimento nico
o sossego presente
Para ver
No te chamo desesperana,
terra branca,
pedra
do meu silncio.
Uma palavra fornece ainda a argila
uma vez mais
e a mo escreve
os olhos que ho-de ver
as verticais palavras do deserto.
Porque
porque as tuas mos conhecem
os redondos insectos

das razes, os poros de fogo


dos animais rupestres,
porque no s promessa
mas o repouso
da pedra que delira,
porque te quero fundar
na viso vazia
da superfcie nua.
A juventude
Era um tronco
de cavalos e serpentes
e o sal sobre as vrtebras da escrita.
A roda passou pelo cipreste branco.
Foi ento que eles viram com um olho na palma
uma deusa de argila.
Os campos cobriram-se de nascentes
e na origem brilhava a lua das palavras
enquanto os rios de pedra trepavam as montanhas.
A contemplada
Vi-te, desejada,
contemplada, ouvi-te
na rvore em que nadavas.
Mais pobre. Mais nua. Inicial.
Ouvi-te numa cratera de silncio.
Com a pedra. Contigo. E a palavra
era um lbio do ar ou uma tmpora
que se abria:
cercava-te
com uma s mo clara,
eram caminhos
em crculo, eram palavras
como martelos na folhagem,
era o peso da lua sobre o rosto,
era o dilogo com a pedra,
era contigo,
raiz e sombra,
com o teu olho de argila,
com o teu membro de fmea como um dardo.
Atravs da noite
Era a noite errante,
uma fora amontoada
e o vento negro
entre as estrelas.
As torres de granito
junto a um mar de fogo,
as espirais da nvoa.
Moviam-se os montes?
os muros e as pginas.
As veredas extinguiam-se

sob alucinadas guas.


Ajoelharam-se
os cavalos de ferro
entre o clamor dos corpos.
Os espelhos negros
desuniam-se
e ardiam
numa fogueira silenciosa.
As orquestras cegas
da ausncia
dispersaram os signos.
Ouviam-se latidos
e soluos.
As portas da montanha resistiam.
As palavras
Palavras cegas, palavras
mudas, mas com olhos
de pedra.
No silncio vazio, ainda
esperam?
Se viesse um homem,
leve como um anel,
fluindo como uma rvore,
talvez com o seu peso de slaba
retivesse o vazio
do centro.
Sobe,
sobe, com a sua rvore,
at nudez do no escrito,
para tocar as tmporas
da palavra cega. Sobe
at raiz do lbio
que nunca disse o nome
que inicia
sempre.
Nocturno
Silvos entre silncios
sobre a pausada
elegia dos passos.
Noite pressentida na placidez
das sombras
e das lmpadas
que, quase frgidas, prometem
uma confiana de lbios e de plpebras.
o arteso da noite o ntimo forasteiro
vai ordenando o tumultuoso veludo
das sombras e recolhe-as
entre parnteses de pedra.
Acordes nas invisveis redes
do ar, tesouros obscuros,

to ntimos e remotos
como se cada um de ns
fosse o centro da ausncia.
A voz nua
Onde a voz nua
na obscura maresia
das slabas
submersas?
Uma idade de sombra reclama uma imagem,
um odor
inaudvel,
um lrio
na glande, no quadrante
solar.
Entre mirades de insectos
e nubladas bocas
surgem imagens verdes
como a sombra de uma rosa
ou um cavalo negro
sobre as cinzas da lua.
A voz nua perdeu o seu suave tacto
de arbusto de gua
e a inicial pureza do vazio.
Ausncia iluminada
Queremos viver
na frescura da folhagem
iluminados
por uma arma de gua viva.
E as palavras sero antigas
sero novas
como presenas redondas
na lucidez das horas.
Que nas mais suaves slabas
se possa diluir
toda a violncia
e s os frutos reinem
e os rios acendam
os meandros
de uma terra lavrada
pela respirao
da ausncia.
Sopro a sopro
Uma cabea sonha nuvens
para o mundo real.
A mo constri um barco
de folhas para o espao.
o corpo perfaz o mundo
em acordes nupciais.

A fragrncia derrama-se
em reverncias cintilantes.
Sopro a sopro, os tesouros
passam no ar ligeiro.
Que evidentes delcias
de musicais relevos!
ntimo dentro do espao,
agora sou quem sou,
(o que respira e recebe).
Tudo culmina aqui
em leve plenitude
(to fcil que de todos),
unnime confidncia.
Cratera branca
Na cratera branca coroam-se
de sombra as alianas
de filamentos. transparncia
vem-se as serpentes
vermelhas, os martelos
de uma elegncia fatal.
Estamos vendo o verde e o dourado
da perfeio nascente e da altura
imvel. Todas as palavras
so instrumentos ardentes que se inclinam
para o alvor da ateno e dos seus nmeros.
Ela
Ela alba atravessando as rvores.
Nela h uma colina e com seu flanco
v um sopro da terra, o rumor sob a lngua,
o equilbrio das margens, o silncio,
areias, bosques, solides.
Se enegrece ilumina os campos negros.
Desce ou ascende, sempre alba e sempre sombra.
Ela o caminho que nos guarda.
Primeira residncia
Na primeira residncia,
talvez gua, no pulso
transparente do olvido,
o que outrora era a beleza
o remanso
que restaura na sede a claridade.
Pureza bria de msica,
de quietude,
negrura aberta, primavera da matria,
um corpo de plpebras solares.
Revelao da noite
Era a sombra do fogo. E a lua azul.

Raiz a raiz, gema a gema,


constru um murmrio, a estrela de um jardim.
Era uma ordem da amplitude, a transparente corola
que revelava a noite, as areias infinitas.
Era e no era um sonho entre o desejo e a
consumao incandescente. As espadas
nubladas ardiam sobre as praias.
consumao
Nem mesmo a pedra.
E muito menos o azul da terra,
o cio das colinas.
o sopro vem da inabitvel
noite qual damos
o sangue das palavras.
Talvez nada se perca
se o informulado cresce
como quem se abre ao vento,
essoutro
nome,
que foi outrora firmamento
e hoje a medula
em que se consuma a lngua
do desejo.
A silenciosa
Onde est a pedra
que habita uma nuvem?
Onde a sombra da chuva?
Onde a silenciosa,
a verdadeira?
Estrela de nada, vegetal
vertigem, sopro
do vazio.
No fulgor da mo
onde est a mesa?
O inquilino deslocado
Coroado pela febre azul
sem a indolncia da gua do poema.
Intermedirio de uma cloga
sem estrelas.
Provisrio inquilino deslocado
em carris enferrujados
de uma ansiedade viva
sem halos de lamentos.
Nenhuma

De si to esquecida
no murmrio inexaurvel
do alvoroo da brisa,
gazela do vazio,
de transparentes msculos
e de sonmbulos raios.
Ser uma figura
aquela que nenhuma?
O crculo vazio
Eu sei, tu sabes, no sabemos.
A palavra o ouvido do deserto.
Ovo, vazio, sombra.
Um olho sibila dentro do crculo.
Eu vejo, ns vemos o sossego
de uma terra clara sem figuras,
escrita de uma asa indecifrvel.
Ningum aqui? Aqui reina ningum
em solido de inteligncia limpa.
Alianas
Alianas, onde
as alianas?
Ao fundo da lacuna
o dedo desce
e escava o calcanhar
incandescente
da deusa
de ningum.
Atravs de uma nuvem negra
Como se o dedo tocasse uma chama glida
como se tu nadasses
dentro da lmpada negra
ou nos negros clices da tua ferida,
como se a palavra de sbito se abrisse
para o centro
de ouro e sombra.
como se a gua ardesse e a pedra flusse,
bebe, bebe essa lama ardente
de sedentas slabas,
que todo o teu alento e a tua terra,
saboreia esse poo onde ainda ardem estrelas
e onde flutua a mo branca minscula
que move o corpo que entre nuvens navega.
Na casa
Um fio de msica vai desenhando o silncio.
Queremos habitar o sossego da penumbra.
Estas slabas conheceram a violncia das crateras
e o sangue das imagens. Estamos vazios,
quase serenos. Estamos j dentro do pndulo,

presos luz de uma espessa antiguidade.


Nada, nada. Como se estivssemos num cntaro
rodamos no repouso
com as plpebras fendidas.
Assim, na ondeao flor da casa
conhecemos as clareiras e os recantos,
vamos subindo, vamos descendo pureza antiga
que d uma nova flexo nossa voz.
Ode propiciatria
Abrir o pulso das rvores, alcanar espao,
caminhar desprendendo, concentrando abrir,
ordenar os campos, demarcar as fronteiras.
Ainda no sabemos, ainda no samos, ainda no comemos.
Vamos para o cerne, para a raiz do dia.
Olhar agora para a nascente branca. Olhar
para ver sem olhar. Receber a pura fora
da fora, irrigar os campos,
acariciar o sopro, respirar pelos olhos.
deuses vivos e amados, configuraes
que s esperam o reconhecimento da palavra!
O brancura area, mbito contemplado!
Que o exerccio desperte a lucidez dos lbios
e os animais do corpo ondulem soltos e transparentes.
Abrir os vasos do tempo, libertar as essncias subtis,
rodar, rodar a esfera, abrir a terra,
acender a rotao, pousar na aura com os nomes,
limpar, limpar as razes da lua,
penetrar na espessura onde o mundo se arredonda,
mover os opacos membros da deusa da montanha,
estar, estar no indolente ofcio da sabedoria,
ir at ao fundo mais ntimo da pedra,
avivar os veios das mquinas vegetais,
gravar a ascenso dos gros na gravidez silenciosa,
consagrar a lentido que culmina nas abbadas,
manter a herana do fogo na deriva,
contemplar o fulgor do sono na penumbra dos arbustos
e regressar ao desejo, coroa do repouso.
Agora sustentar a trave, alargar a esfera,
contemplar o estremecimento dos volumes,
aderir superfcie densa, purificar as guas,
estar atento distraco da transparncia,
pesar as formas inteiras nos msculos repousados,
crescer animalmente na liberdade do espao.
Corpo de aroma
Se foste corola ou barco,
mas quando?
minha irm,
minha leve amante, minha rvore,
que o mundo levantava
na inocncia absoluta
do instante.
Alta estavas no amplo e recolhida
como uma lmpada,
alta estavas na varanda branca.

Se acaso ainda podes ser aroma


dos meus olhos,
corpo no corpo,
retiro e substncia, linha alta
da delcia,
nada te pedirei na minha nsia
de puro espao,
de azul imediato,
de luz para o olvido e o deserto.
Antimensagem
Quem poder dizer
palmas, dentes, vida?
Um pulso desenrola
uma caligrafia
de sangue e cinza.
Os planetas, os palcios
esto vazios. As moscas
e as ervas
proliferam
no labirinto.
Runas, imundcies, latas e retratos
velhos, eis o que resta
da sonora pompa.
Aqui, alm, ainda a mo
que se prolonga
em busca de uma casa.
h talvez ainda
traos indelveis
que so asas numa ferida branca,
mas as mandbulas do poeta
mordem as slabas de areia.
Esto ali
Esto ali abertos, esto vazios.
Sangraram. Foram imagens. Derramaram-se.
Um deles inclina-se como um cntaro
numa cratera.
Outro tem suspenso o dedo desolado
sobre a fenda
de uma plpebra.
Erraram de estria em estria,
semelhantes, estranhos,
rodando sem repouso.
Ningum os formar de novo.
Ningum fixou as suas palavras de sangue
quando o tempo lhes beijava a boca.
Que longnquo arvoredo
sopra para ns

o hlito de um olho embriagado?


Esto ali abertos, esto vazios.
Ensurdeceram sobre espinhas
sem caminho. Emudeceram
sem razes. Como podem
florescer,
como podem ser ainda
a translucidez
da pgina?
A ondulao do afogado
O afogado magnfico, ondulado.
Ter ele atingido a pedra intacta,
a delicada e longnqua
adolescente submersa?
o que que ele escava? Escava o vento
com as fibras do p que ningum sopra.
o que que ele encontrou sobre as escadas
de olvido, essas escadas de algas?
No, no possui garras
para alcanar o cntaro fecundo
ou a cratera vazia.
Talvez ele encontre a madeira harmoniosa
de um bero errante.
Com as suas pernas ainda nervosas e elsticas
talvez ele encontre.
O afogado magnfico, ondulado.
Depois de ler a Perfeio das Coisas de jaime Rocha
Como se faz um livro?
Livro que eu no sou, que no meu filho
nem a sombra do meu filho.
Vou faz-lo sombra da lua
com o vento e a terra
com uma solitria aranha
e um pedao de hidra.
Um voluptuoso enxame
corre para os esgotos do sol.
H um odor a enxofre
num sepulcro de pedra
e ouve-se a serpente metlica
nas runas da guia.
o que desejamos ser, o que ns somos
agora cavalo e salmo, peixe e lua.
Estamos na garganta dos vocbulos
com a sede imensa da montanha.
Que sabemos ns do que sabemos?
Buscamos um deus nalguma rvore?
Toda a matria tempo e silncio
na sua contnua, profunda, suavidade.

Na imensidade
Comigo estou de repente numa ilha
escarpada, inacessvel e segura.
A luz culmina e ilumina a sombra.
E como atenta ave estou pousado
no cimo de uma rocha fulgurante
na maior transparncia do silncio.
Insondvel prodgio, indomvel prodgio.
Dir-se-ia que sorri o universo.
Todo o ser em concordncia com o ser
no seu centro de energia em glria imediata.
Despojado e inteiro ergo-me de ver
e dilato-me luminosa imensidade.
Toda a matria cintila cristalina
em cpula no seu presente eterno
e to fundo e to por dentro que dir-se-ia
poder esquecer-se assim nesta viso vazia.
Estar assim o alvor na roda alta
da transparncia em que o azul prolonga
o antiqussimo sossego da materna idade.
Aquela paz e nitidez de nascimento
vai lavrando os campos visuais
e entrando nas delicadas zonas
onde tudo vulnervel e agora msica
e perfume de um animal do mar.
Mudo o amor de tudo contemplado
mas em que ondeia a densa melodia
perene da altitude e o ardor
absoluto da mais pura aridez.
Luz sem fim de clarssima frescura,
central repouso de um pas de sono,
delicada simplicidade de palcio,
um tesouro de chamas clidas que no queimem,
um horizonte de fragrncia tranquila.
Fundao do corpo
Fundar-te
com os instrumentos da gua,
e com a efervescncia
das mos. Estender-te
palmo a palmo,
como se a origem fosse coisa.
Recolher-te,
dilatando a viso de voo indecifrvel,
deslumbrar as slabas
com a evidncia dos despojos,
aprender dormindo
a conivncia do unnime,
ordenar os enigmas do teu corpo
na serenidade do nome.
Desenhar o olhar animal
sobre as superfcies nuas.
Unir todas as vozes que caminham para a noite.
Concentrar o fulgor do vazio
num vaso transparente.

Escrever sobre a gua os jardins do teu corpo.


Fazer de cada verso o movimento de um dardo.
Tocar-te os olhos
como minsculas nascentes.
Descobrir entre as folhas um palcio branco.
Atingir um ponto de aroma e de sabor
e ver o ar visvel na umbilical vidncia.
Num insondvel abrao adormecer em ti
at ao maravilhoso abandono das tuas veias.
Invocao de Laura atravs de Eusbio Lorenzo (1.a verso)
Quero inteirar-me sobre um outeiro perdido
do que Laura deixou, sua carga azulada
de desejo e sombra, de matinais fervores
e as ilhas submersas da sua estranha lngua.
Espero o seu regresso ou seja o seu princpio
que um canto da nvoa sobre alcantis vermelhos
e o dia em que ela ouviu os imensos exrcitos
e com os cavalos entrou na manso azul do mar.
Laura, eu te celebro luz obstinada
de um vero intenso de abelhas e cigarras.
Tu sabes que a hora das cidades de pedra
e de sangue. Os ciprestes desejam-te.
Corres pelos campos azuis mas ests imvel
ouvindo as folhas mortas, o bater das ondas
nas pedras. Contemplas as esfinges brancas
no leito do rio. E tudo diz olvido e ausncia,
mas Laura um corpo noutro corpo
e na sua morada fria ela recebe o sol.
Laura, como uma palavra branca ou um aroma
de girassol numa obscura barca.
Sem espelhos ou mscaras ouves o latido vegetal
que uma antiga ferida no sono do silncio.
Mas tu regressas sentindo o perfume do alvor
e a msica e a gua, a rosa verde do fogo.
o teu corao, Laura, acalenta a nostalgia
e como se ao longe houvesse sempre um barco.
Tu foges, mas a tua fuga o teu lugar
e sentes no teu peito a ligeireza das rvores.
Desenho-te em linhas negras e tu s branca
mas tambm como um arbusto tecido de espuma marinha.
Quando tocas as palavras tocas a lngua das ondas
e o azul alegre, a ignorante negrura da terra.
Bela
bela
bela
bela
bela

no perfume da forma e do silncio,


na cripta do seu desejo branco,
como uma grande ave sobre um lago,
como a terra musical,
com o negro e o verde das suas ancas.

As palavras imprevistas e negras que ela disse


foram de paixo e fria e ardor e sabedoria
e todas foram coroar um animal mistrio
com uma nuvem azul de tranquila energia.

Dos
ela
Ela
e a

acordes do tempo e do segredo da luz


criou um novo corpo entre nuvens e rvores.
percorre agora os planos azuis do tempo
fulgurante brancura das palavras vazias.

Laura,
a conscincia abandonada,
canta entre runas brancas,
os desejos da terra.
Invocao de Laura atravs de Eusbio Lorenzo (2.a verso)
Quero inteirar-me
do que Laura deixou
sua carga azulada
de desejo e sombra
Espero o seu regresso
ou seja o seu princpio
que um canto da nvoa
sobre alcantis vermelhos
no dia em que ela ouviu
os imensos exrcitos
e com os cavalos entrou
na casa azul do mar
Laura eu te celebro
hora das cidades
de pedra e sangue
Em ti tudo olvido
ausncia e nostalgia
Mas tu regressas sempre
como uma antiga ferida
ou um astro de oiro negro
Sempre bela na cripta
do teu desejo branco
sempre que foges sentes
a ligeireza das rvores
Se tocas as palavras
tocas a lngua das ondas
num mistrio animal
Todos os segredos da luz
se enlaam no teu corpo
e o azul alegre
nos teus flancos azuis
Sobre as guas dos cimos
j ests perto do sol
impondervel cisne
num turbilho de oiro

Bibliografia de Antnio Ramos Rosa


Poesia
O Grito Claro, 1958, Viagem atravs duma Nebulosa, 1960, Voz inicial, 1960, Sobre
o Rosto da terra, 1961, Ocupao do Espao, 1963, terrear, 1964, estou Vivo e Escrevo
So1, 1966, A Construo do Corpo, 1969, Nos seus Olhos de Silncio, 1970, A Pedra Nua,
1972, horizonte Imediato (Antologia), 1974, No Posso Adiar o Corao (Vol. 1 da obra
potica), 1974, Animal Olhar (Vol. 2 da obra potica), 1975, Respirar a Sombra Viva
(Vol. 3 da obra potica), 1975, Ciclo do Cavalo, 1975, Boca Incompleta, 1977, A I
magem, 1977, A Palavra e o Lugar (Antologia), 1977, As Marcas no Deserto, 1978,
A Nuvem sobre a Pgina, 1978, Figuraces, 1979, Crculo Aberto, 1979, O Incndio dos Asp
ectos, 1980, Declives, 1980, Le Domaine enchant, 1980, As Marcas no Deserto (Edio b
ilingue portugus francs), 1980, Figura: Fragmento, 1980, O Centro na Distncia, 1981
, O Incerto Exacto, 1982, Matria de Amor (Antologia), 1983, Quando o Inexorvel, 19
83, Gravitaes, 1984, Dinmica Subtil, 1984, Mediadores, 1985, Fico, 1985, Volante Verd
e, 1986, Vinte Poemas para Albano Martins, 1986, Clareiras, 1986, No calcanhar d
o Vento, 1987, A Mo de gua e a Mo de Fogo (Antologia), 1987, A Livro da Ignorncia, 1
988 (Prmio Pessoa), O deus nu(lo), 1988, Trs Lies Materiais, 1989, Acordes, 1989
Ensaio
Poesia, Liberdade Livre, 1962 (2. a edio, 1985), A Poesia Moderna e a Interrogao do
Real, 2 volumes, 1979, Incises Oblquas, 1987
Antologia
Lricas Portuguesas, 1969

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