Do Direito À Cidade Ao Fazer-Cidade

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MANA 21(3): 483-498, 2015 DOI http://dx.doi.org/10.

1590/0104-93132015v21n3p483

DO DIREITO CIDADE
AO FAZER-CIDADE.
O ANTROPLOGO,
A MARGEM E O CENTRO*
Michel Agier


Para introduzir esta reflexo, eu devo dizer logo de sada que o vnculo
que ser estabelecido aqui entre etnografia das margens e antropologia da
cidade no pretende reproduzir a oposio radical ou mesmo ontolgica
entre a marginalidade e a centralidade em si. Muito ao contrrio, eu pretendo descrever uma dinmica, uma dialtica, uma relao necessria e, por
fim, certa continuidade entre uma e outra. Mais profundamente, eu desejo
implementar um mtodo que permita pensar a universalidade da cidade
fora de qualquer pretenso normativa, ou seja, segundo uma concepo ao
mesmo tempo epistemolgica e poltica. Baseada em pesquisa etnogrfica
urbana, esta concepo defende a ideia de uma construo/ desconstruo
de seu objeto cidade, rejeitando qualquer definio a priori da mesma
enquanto ferramenta analtica. A questo seria antes: o que faz e desfaz a
cidade permanentemente? Ela conduz divulgao de processos e portanto
poltica que impulsiona o movimento necessrio sua existncia, s suas
reproduo e transformao.
A cidade um objeto virtual, escrevia Henri Lefebvre em Le droit
la ville, no incio de 1968 (Lefebvre 2009:97). Esta afirmao foi em seguida
verificada,indiretamente, na constatao de que o urbano ultrapassava a
cidade: o filsofo, por extrapolao da cidade existente, antecipava o nascimento de uma sociedade completamente urbana tanto quanto planetria (Lefebvre 1970). Isto conferiu mais fora terica e poltica ideia de
uma virtualidade da cidade. Mais recentemente, o gegrafo David Harvey
observava, aps Lefebvre, que o direito cidade aponta no fundo para
alguma coisa que j no existe; um significante vazio, ele escreve,
tudo depende de quem lhe conferir sentido (Harvey 2011:42). Como em
eco, podemos observar que os atores dos movimentos sociais desta ltima
dcada, que reclamam o direito cidade, no leram necessariamente a
obra de Henry Lefebvre... mas fizeram deste apelo um horizonte de sua

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ao em meio urbano e transformando o urbano. Neste sentido, o que me


parece possvel descrever, ao estudar o fazer-cidade dos citadinos, de
que, de qual sentido e de que matria preenchido este significante vazio
denominado direito cidade. E a resposta que eu proponho a seguinte:
a cidade feita essencialmente de movimento.
O princpio de relatividade pode ser aplicado dinmica urbana como
a todos os objetos da cincia social. Ele nos permite evitar os pensamentos normativos que, por sua vez, tendem a congelar as dinmicas sociais.
De fato, para o universo urbano, assim como para o universo em geral, podemos evocar simultaneamente a relatividade no espao (ela pode ser observada
quando postulamos a igualdade espistemolgica entre todas as formas urbanas
assim como entre todas as culturas) e a relatividade no tempo (as cidades nascem, transformam-se ou desaparecem, como o demonstram sobre este ltimo
aspecto as histrias de Detroit ou Filadlfia). Se a antropologia pode e tem
todo o interesse em se apoiar nesta teoria da relatividade urbana no tempo e
no espao, porque a dinmica e a transformao podem ser reconhecidas
em um saber livre de amarras polticas, normativas e institucionais, como o
saber antropolgico. So portanto a descrio e a compreenso do movimento permanente de transformao urbana no tempo e no espao que podem
constituir a contribuio do olhar antropolgico sobre a cidade.
Este movimento o de fazer-cidade. Ele incitado por uma ausncia
(a cidade est morta, escrevia Lefebvre) e impulsionado por uma imagem: um mito perdido, um horizonte inatingvel. De fato, no temos seno
cidades ideais ou cidades de fico cientfica, dizia ainda Lefebvre (2009:110)
e, segundo o filsofo da cidade Jean-Christophe Bailly, ns vemos por trs
de qualquer cidade o fantasma de um ideal perdido. Da perda provm a
potncia da virtualidade da cidade, horizonte de um apelo e de uma exigncia (Lefebvre 2009:107). Horizonte aberto, o movimento permanente
do fazer-cidade que pode nos permitir encontrar alguma coisa da cidade
que observamos nas experincias concretas do espao.

Epistemologia do fazer-cidade
Coisa humana por excelncia, a cidade a forma mais complexa e refinada da civilizao, escrevia Lvi-Strauss, mas ela lhe parecia ser tambm
o lugar de uma individualizao extrema e de umborramento dos limites
sociais, atingindo o inapreensvel caos.1 Multitude sem totalidade, a cidade
seria heterognea demais para que o etnlogo conseguisse aceder sua
complexidade sem se perder... ainda que seja tambm para ele, ocidental

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que realiza seu trabalho de campo em lugares exticos, o local em que


mantm sua vida privada, seu local de repouso. No melhor dos casos, a cidade
poderia ser segundo as palavras irnicas que Lvi-Strauss utilizou para
seus prprios comentrios sobre So Paulo, onde viveu de 1935 a 1939
o lugar para uma etnografia de domingo (apud Magnani 1999).
No entanto, esta abordagem etnogrfica, fundada sobre a pesquisa
relacional, local e microlgica que pareceu justificar a suposta incompatibilidade entre a antropologia e a cidade imensa, complexa e impenetrvel,
precisamente aquela que torna possvel, do meu ponto de vista, a elaborao
de uma antropologia da cidade.
Meu argumento epistemolgico: a relao de construo e desconstruo entre o campo de pesquisa e o objeto de pesquisa que torna possvel
um olhar antropolgico sobre a cidade. Dito de outro modo, a resposta
questo de saber se uma antropologia da cidade possvel se encontra no
corao mesmo do modo de conhecimento da antropologia, que constri
e desconstri seus objetos de pesquisa a partir de sua maneira particular,
emprica, relacional e reflexiva de apreender o campo. Em primeiro lugar,
porque esta abordagem permite descrever a cidade do interior por aquela
ou aquele que est implicada(o). Eu s observo situaes, escrevia Jean
Bazin a propsito da pesquisa antropolgica em geral, e precisava a propsito da sociedade (o que pode ser dito tambm a propsito da cidade):
No uma coisa que eu possa observar. Por mais distante ou pequena
que ela seja, o ponto de vista de Sirius no me acessvel (Bazin 1996).
Minha prpria abordagem deve muito s reflexes formuladas de maneira
pioneira por Grard Althabe, segundo as quais a situao de pesquisa e
de comunicao vivenciada pelo etngrafo o que funda o ponto de vista
antropolgico sobre a cidade o lugar de onde se fala , o que restitui
toda a potncia analtica ao carter relativo e subjetivo da etnografia.2
Podemos at mesmo reverter a nosso proveito o desconcerto dos urbanistas, dos socilogos e de outros experts em estudos urbanos e em poltica
da cidade, segundo os quais a cidade se desfaz, diluindo-se no exterior at o
urbano desterritorializado e planetrio, e fragmentando-se em seu seio segundo os princpios de um novo urbanismo por afinidade (Donzelot1999).3
Podemos opor a este desconcerto as questes e a abordagem da antropo-lgica das cidades, j que buscam compreender a gnese e o processo da
cidade em geral. Elas visam descrever os comeos da cidade por toda parte
onde ocorrem. Assim, a compreenso das cidades ter muito a ganhar ao se
dirigir no mais somente ao que se perde nos espaos da no cidade,4 mas
tambm ao que nasce ali mesmo, como expresso de uma dialtica mais
geral do vazio e do pleno, do fraco e do forte.

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Nesta pesquisa necessria, a exemplaridade das antropologias enraizadas no campo e sensveis aos processos pode ser mais eficaz que a
representatividade dos dados estatsticos que dependem de definies a
priori externas, globais e normativas do que e do que no a cidade.
Dito de outro modo, h lugar, diante desta cidade desfeita e neste momento de crise urbana, para a imaginao e a representao de uma cidade
que seja o resultado da descrio da cidade pelo antroplogo, e que tenha
alguma chance de ser mais verdadeira que aquela produzida ou levada em
considerao pelas abordagens quantitativas, as representaes grficas e
as polticas urbanas. o que denominei cidade bis, ideia que no estranha
quela das cidades invisveis de Italo Calvino, enquanto ferramenta crtica
do realismo sociolgico dos experts da cidade, ou seja, da crena de que
a cidade uma coisa dada que se confunde com a realidade de tudo que se
passa ali. Ao falar em cidade bis, eu quis dizer que era possvel desenhar
uma cidade mltipla, partindo do ponto de vista das prticas, das relaes
e das palavras dos citadinos tais como o prprio pesquisador as observa, as
coleta e anota, direta e situacionalmente, e que esta cidade no menos real
que aquela dos urbanistas ou dos administradores. outra.
Partirei, portanto, da forma indutiva do raciocnio antropolgico, que
vai do campo teoria. Em qualquer pesquisa etnogrfica, todo objeto se
define por um limite, que o distingue de um exterior e o faz existir. De modo
mais geral, sempre sobre uma fronteira existente, na qual ganha sentido
a relao entre identidade e alteridade, que o outro comea a existir para
mim ou para ns. Podemos estender este princpio e considerar que o
lugar da fronteira, descentrado, o quadro privilegiado para se observar e
compreender a existncia de qualquer coisa.5 Se a cidade um conjunto
de coisas (edifcios, bens, relaes, agrupamentos, textos...) difceis de
definir como essencialmente urbanos, este conjunto procede de limites ou
fronteiras que o cirscunscrevem e a partir dos quais ele comena a existir.
Contudo, se quisermos ser coerentes com esta concepo relativa, devemos
precisar de sada que as delimitaes e as caracterizaes de cada cidade
estudada em um dado momento no so nem eternas, nem definitivas.
Esta ateno constituio de qualquer coisa por seu limite me leva
logicamente a apreender a cidade a partir do vazio deixado por sua no
existncia, a partir de seu limite, de sua negao, de seu exterior e de sua
margem: o menos longnquo de todos osalhures, segundo a bela frmula
do filsofo da cidade Jean-Christophe Bailly a propsito da periferia na
Frana (Bailly 2013). o ponto de observao ideal do movimento e da passagem de um estado a outro, de um ambiente ou de uma condio a outra.
o que me conduz a considerar que a etnografia das margens ou dos

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limites o mtodo ideal para uma antropologia da cidade. No a margem


como fato social, geogrfico ou cultural, mas a margem como posio epistemolgica e poltica: apreender o limite do que existe e que existe sob
a aparncia oficial e afirmada do realizado, do estabelecido, do ordenado,
central e dominante permite perceber a dialtica do vazio e do cheio e
descrever o que, a partir de quase nada ou de um estado aparentemente
catico, faz cidade.

Um objeto exemplar, mas precrio:


o fazer-cidade dos citadinos sem cidade
A partir de pesquisas etnogrficas realizadas na frica e na Amrica Latina,
interesso-me por diferentes aspectos desta questo: a fundao da cidade
desde as margens urbanas bairros populares ou invases, estabelecimentos provisrios de migrantes, campos de refugiados ou, para dizer
de modo mais geral, interesso-me por pensar a cidade a partir dos espaos
precrios e de um certo despojamento de bens, de sentidos e de relaes.
Existem mltiplas maneiras de se fazer cidade. Mltiplos processos nos
falam sobre um comeo de cidade em geral, como aquele que me pareceu
possvel evidenciar ao observar os campos de refugiados que considerei
como rascunhos de cidade (Agier 2011).
Detenhamo-nos um instante sobre o caso dos acampamentos de estrangeiros de Patras, na Grcia, e de Calais, no norte da Frana, duas cidades
porturias nas quais os migrantes estabeleceram acampamentos que ficaram
de p por 12 anos, no primeiro caso, e por seis anos, no segundo, antes de
sua destruio pela polcia em julho e setembro de 2009.6 Com o tempo, o
que emerge do interior desses locais precrios, no lugar das primeiras tendas
etoldos emergenciais, so pores de cidade feitas de tela, sucata e madeira.
Tbuas de madeira ou gradis de arame roubados prximo ao porto servem
para fabricar as estruturas das cabanas. Estrados de madeira so dispostos
sobre o solo para isolar as tbuas, enquanto as paredes so isoladas graas
a placas de poliestireno dispostas lado a lado; o restante destas paredes
feito detoldos de plstico e de papelo. Pedaos de carpete encontrados
pelas ruas se tornam tapetes, e patchworks de tecidos e de cobertores servem de cortina.
So citadinosordenadores que aparecem nesses lugares nascidos
como refgios, abrigos ou esconderijos no corao da Europa. O que fazem
se parece com o que denominamos, nos bairros perifricos da frica, da
sia ou da Amrica Latina, bairros espontneos, informais ou em au-

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toconstruo: as prticas e os saberes aprendidos e experimentados nas


situaes sociais precrias so comparveis. A partir da matria-prima disponvel (terra, gua, madeira da floresta) ou da matria residual de produtos
manufaturados (tbuas de madeira, estrados de madeira, toldos de plstico,
tecidos de sacolas, folhas metlicas de embalagens, placas de poliestireno
etc.) uma arquitetura dos acampamentos se desenvolve, como, alis, uma
arquitetura das favelas ou dos bidonvilles.
Paradoxo desses locais fora de lugar (hors lieux), ao mesmo tempo
frgeis localmente, eles se estabilizam em uma dimenso supralocal. Assim,
aps 12 anos de existncia, o acampamento de Patras tornou-se um ponto
de referncia para os migrantes, um ponto fixo em suas mltiplas rotas. Patras conhecida de todos aqueles que tentam essas rotas, bem como o so
Zahedan (na fronteira entre o Ir, o Paquisto e o Afeganisto), Calais (no
norte da Frana), Roma (ver Mazzitelli 2012) ou a Gare de lEst em Paris.
Estes locais tornaram-se, em parte, cruzamentos cosmopolitas: so as etapas
do percurso que tm o mundo como escala, um percurso sempre arriscado,
imprevisvel que vai agora do Afeganisto (ou do Paquisto, ou do Ir)
Europa, mas o exlio pode mudar de permetro. o caso do exlio africano
que se dirige principalmente Europa (via Mediterrneo ou leste da Europa),
mas que tende a se orientar, recentemente, em direo ao Oriente Prximo,
Amrica Latina e sia, criando assim novas rotas e novos locais-etapas
nestes novos percursos.
Estes pontos de referncia cosmopolitas nos percursos transnacionais
so tambm bastante locais e o so duplamente. Se eu me refiro a Patras e
a Calais, posso observar, antes de mais nada, que eles tm vrios anos de
existncia: umaptina foi feita, recm-chegados encontraram habitats que j
estavam l, j construdos e habitados e se inseriram como nos inserimos
em um lugar antropolgico (Aug 1992). Este ltimo j tem um pouco
de histria (12 anos de existncia em Patras, quase sete anos em Calais),
algumas relaes internas (amizades tecidas e desenvolvidas nos momentos de espera, mas tambm rivalidades e tenses em Patras com os curdos
iraquianos ou sudaneses). Ele tem tambm uma identidade externa (em
Calais, denominado a floresta dos afegos, na Grcia, o acampamento
de Patras). Por fim, estes estabelecimentos j fazem parte da histria das
cidades nas quais nasceram: histrias de conflitos e de solidariedades tanto
em Patras como em Calais.
Quando os conflitos colocam em cena habitantes das cidades de chegada, autodenominados ribeirinhos ou autctones, assim como as autoridades administrativas, os apoios provm de outros habitantes e de associaes
destas cidades, que podem ser humanitrias, jurdicas ou polticas. Assim, o

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acampamento de Patras deve seus 12 anos de existncia (de finais de 1996


at a sua destruio pelo fogo e as retro-escavadeiras em julho de 2009)
persistncia de uma tolerncia municipal, resultado de um acordo entre
a presso de certos nativos pouco acolhedores, as associaes de defesa
dos direitos dos estrangeiros e os migrantes em busca de uma via para um
porto/ fronteira e instalados no acampamento. Apesar do importante turn
over dos ocupantes, alguns puderam se estabelecer ali por at dois anos,
abrindo uma loja de restaurao, de produtos de primeira necessidade,
trabalhando ocasionalmente nos laranjais vizinhos ou ainda ocupando posies de liderana. Mahmoud apresentado como lder do acampamento.
Sua formao de assistente social, mas l, na migrao, ele circula entre
Patras e Atenas. Ele o proprietrio de uma das duas lojas do acampamento.
Ele nos diz: Patras uma cidade fora da lei.
Diferentemente desses acampamentos que encontramos nas fronteiras
e nos interstcios das cidades, alguns campos de refugiados so mais estabilizados e duram vrias dcadas (Agier 2014a). Nestes casos, a forma
dos campos-cidades que emerge. A abordagem que adotei para lidar com
esses locais fora de lugar (hors lieux) a de uma etnografia urbana dos
acampamentos. Aqui tambm a questo no tem qualquer contedo normativo ou evolucionista. Procuro dar conta das criaes sociais, mudanas
culturais e eventualmente de novas formas polticas que aparecem, a partir
do momento em que as pessoas se encontram reunidas por um tempo indefinido em um dado espao, qualquer que seja ele, e que pode ser considerado
como uma implantao relativamente permanente e densa de indivduos
heterogneos, segundo os termos utilizados por Louis Wirth para definir a
cidade nos anos 1930 (Wirth 1984). Procuro tambm compreender as transformaes do espao que esta situao implica: um acampamento que tem
cinco anos de existncia j no mais um alinhamento de tendas, ele pode
se assemelhar tanto a um imenso bidonville como pode fazer pensar em um
museu etnogrfico onde cada um tenta, com os materiais que encontra por
ali, reconstituir o melhor possvel seu habitat de origem. O resultado , por
vezes, uma paisagem hbrida, os toldos de cor azul e branca da UNHCR7
recobrindo as frgeis construes feitas de galhos ou de terra, os tecidos dos
sacos nos quais se v estampado Unio Europeia ou USA servindo de
cortina na entrada das tendas.
Esses processos de comeo de uma cidade e comeo de uma vida
social, econmica, cultural, poltica indita podem ser comparados, por
exemplo, ao se passar de um campo de refugiados a uma favela, de um acampamento autoinstalado de migrantes clandestinos, aos antigos acampamentos dos comerciantes itinerantes na frica (Dias 2013; Agier 2013).

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Ocupao e favela. A poltica do acampamento


Na frica e na Amrica Latina, a proporo de urbanizao dita informal
, como sabemos, muito importante. Nestes contextos, a cidade, caso seja
apreendida inteiramente e segundo a igualdade epistemolgica defendida
mais acima, pode ser descrita como um espao multiforme e extremamente
precrio. As palavrasbidonville, slum ou favelaressoam por toda parte midiaticamente ou no plano poltico, mas so inoperantes e mesmo contraproducentes no plano do conhecimento. Trata-se da cidade, mas autoconstruda,
do habitat, mas em tbuas de madeira, em toldos plastificados ou de papelo,
que se transformar progressivamente utilizando materiais mais slidos
(tijolos, cimento). Ao suspender qualquer julgamento cultural, esttico ou
social, todas estas formas devem ser consideradas como partes do processo
da cidade em contextos de desigualdades.
Diante de algumas grandes favelas ou complexos de favelas do Rio de
Janeiro, podemos ser levados a comparar e a reconhecer uma forma urbana
atualmente conhecida no mundo inteiro por intermdio das mdias e da pesquisa, ou ainda pelas polticas pblicas: aquela das mega-slums, uma forma
que compartilham tambm, por exemplo, os bairros e as zonas denominadas
Chalco na periferia da cidade do Mxico, Agua Blanca em Cali, New Bell em
Douala, Dharavi em Mumbai e muitas outras ainda. Os termos genricos que
as designam, slum ou bidonville e mais ainda mega tm o inconveniente
de estigmatizar globalmente a populao que ali vive e torn-la muito mais
homognea sociologicamente do que na realidade. Por outro lado, eles revelam uma forma urbana amplamente disseminada nos pases do Sul global.
E pode-se pensar que a publicidade que se faz deles os tira um pouco de sua
invisibilidade, o que pode contribuir para torn-los objeto de pesquisa e de
debate pblico.8 Mas para o pesquisador, nomear e classificar no diz nada,
preciso descrever e compreender os processos cujas formas observamos e
que no so seno um momento. o que eu gostaria de tentar agora, tendo
em mente a proposio que guia esta reflexo, a compreenso do fazer-cidade
como processo geral ou mesmo universalizvel.
A qual cidade a favela d nome? Se a favela clebre no mundo todo
por designar um processo universal de conquista do espao. Ela encarna
uma modalidade de cidade como movimento. Favelas, slums, bidonvilles:
preciso ao mesmo tempo esquecer e desconstruir as palavras para encontrar
o sentido dos processos que elas no fazem seno nomear.
No caso das invases que esto na origem das favelas,9 algum chegou
e ocupou um espao vago. Em seguida, outra pessoa chegou, declarando ser
o proprietrio ou ter um direito sobre esse espao e disse: eu te deixo ocupar

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o espao com a condio de que a gente entre em acordo sobre isto e aquilo, por exemplo: vocs sero minha clientela eleitoral!. Ok, de acordo,
respondem os ocupantes, ns seremos seus eleitores, mas com as seguintes
condies etc.. H uma negociao, mas, para que ela exista, preciso que
em um dado momento alguma coisa tenha acontecido, uma comunidade em
movimento, pessoas que chegaram e fizeram o gesto poltico da ocupao.
Compreender o que se passou ali, ao se situar no interior da prpria situao,
na experincia vivenciada, permite descrever de que modo, em um certo
momento, pessoas expressaram uma injustia, com estas palavras, por exemplo: ns no somos marginais; temos direito a um alojamento (slogan do
movimento DAL Direito ao Alojamento, na Frana), ainda que, uma vez
tendo ocupado o espao, algum chegue e lhes diga: vocs so o meu curral eleitoral. A negociao vem aps o primeiro movimento, o da ocupao.
O que importante compreender, me parece, este agir ao mesmo tempo
poltico e urbano: ele marca uma linha de partilha entre antes e depois. Esse
movimento uma tomada do espao tanto quanto uma tomada da palavra,
o momento poltico porque aquele que cria uma situao radicalmente
nova.10 Eis por que os atores da margem, citadinos sem cidade, ocupam um
lugar parte, precrio mas exemplar nos movimentos que fazem a cidade.

A margem e o centro. O agir urbano como movimento e desejo


O fazer-cidade deve ser entendido como um processo sem fim, contnuo e
sem finalidade. Ele faz sentido no contexto de uma expanso contnua dos
universos sociais e urbanos. Eis por que parece possvel elaborar a hiptese
terica (e a aposta poltica) segundo a qual o fazer-cidade uma declinao
pragmtica, aqui e agora, do direito cidade, sua instaurao. O movimento essencial nesta concepo da cidade como construo permanente.
Uma de suas declinaes o deslocamento. Este ltimo j est presente
em outra noo que atravessa toda a proposio do direito cidade de
Lefebvre, aquela da centralidade.
O movimento em direo ao centro desde as periferias e os subrbios
ou as zonas de misria um deslocamento e uma conquista espacial em
certa medida. o que ilustra a interpretao feita por Henri Lefebvre, retomada por David Harvey (2011), da Comuna de Paris de 1871 como uma luta
urbana mais que proletria. Pois a Comuna um desejo de revanche e,
para alguns, uma nostalgia do mundo urbano destrudo por Haussmann,
e ela estabelece uma relao com estratgias de controle e de modernidade
(Harvey 2011:14). Para este autor, a centralidade histrica desapareceu

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atualmente, mas h um impulso em sua direo. Este impulso em direo


a uma centralidade virtual encarnada pelo corao vital e pela identidade da
cidade, ao mesmo tempo desejo insacivel e movimento infinito da fronteira
em direo ao centro, o motor do agir urbano.
Os debates recentes a propsito do contedo e das formas das lutas urbanas ganhariam fora se pensassem a cidade a partir de espaos precrios
da margem. Precariedade, mas exemplaridade do limite, como enfatizamos
mais acima. Assim, uma das questes polticas que se colocam na Frana
atualmente a de saber se preciso manifestar-se em passeatas e protestos
para obter alojamentos decentes para as famlias denominadas roms,11 ou
se preciso defender e reforar a instalao precria, urbaniz-la, ou seja,
torn-la mais habitvel, ou mesmo confortvel, e assim impor sua existncia,
sua presena no mundo e na cidade.12
Esta questo conduz imediatamente a duas respostas, que se apresentam
geralmente em oposio. O que se deve fazer? Manifestar-se nas ruas contra
este tratamento de exceo o acampamento13 que questiona frontalmente o humanismo que reivindicam (em nome do pertencimento s sociedades democrticas) os mesmos que implementam essa governana urbana
de exceo para populaes consideradas estrangeiras? Ou ajudar as pessoas
que ali esto a ocupar e a habitar o lugar para impor aos fatos sua presena
e seu reconhecimento? A alternativa pode no ser uma oposio, mas uma
poltica que se desdobra. o que ilustra um fato observado na Amrica Latina
nos acampamentos urbanos de migrantes, assim como nos antigos campos de
refugiados que se urbanizam na frica, na sia ou no Oriente Prximo: a forma
ocupao tornou-se mundialmente uma das maneiras para os mais pobres
de fazerem reconhecer seu direito a estar ali. A ocupao urbana um agir poltico cujo objeto um direito humano e, ao mesmo tempo, um direito cidade.
As duas formas so igualmente polticas, mas de modos distintos.
O movimento mais radical atualmente, aquele que faz com que ainda exista
a questo poltica do horizonte da cidade, o que a faz existir no como
uma abstrao, mas como uma imanncia, uma construo em curso e em
movimento. Uma poltica do acampamento que se confunde com a poltica
em geral, no momento em que o mundo em geral se torna cada vez mais
urbano, at formar, em breve, uma imensa conurbao.

Concluso
A antropologia do fazer-cidade abordada de um ponto de vista social, poltico e cultural, que quis expressar aqui, permite evidenciar trs efeitos

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do agir urbano, que podemos resumir, guisa de concluso, da seguinte


maneira:
Em primeiro lugar, ele permite a sobrevivncia em um distanciamento
(um acampamento, uma invaso de um local vazio). o gesto primeiro da
invaso entendida como desobedincia e como ilegalidade assumida
ainda que o termo invaso seja atualmente considerado incorreto pelos
meios associativos e acadmicos, como, por exemplo, em Salvador, onde o
termo foi por muito tempo (at os anos 1990) considerado e ainda continua
a ser na linguagem popular equivalente a favela, no Rio de Janeiro, e
equivalente tambm a invasin, em castelhano, utilizado, por exemplo, na
Colmbia para designar os setores mais pobres e ilegais das periferias urbanas.
Em segundo lugar, o agir urbano continua na presena recalcitrante
sobre o prprio local deste distanciamneto (eu ficarei aqui, no importa
o que haja), sob a forma mais estabelecida, seno durvel, da ocupao.
Em terceiro lugar, o agir urbano opera uma transformao urbana
graas a mecanismos durveis de instalao. Nesta ltima configurao
podem ser destacadas trs declinaes possveis a partir de trs exemplos
quase simultneos. Na Frana, o reconhecimento dos acampamentos denominados roms como bidonvilles o objeto de uma luta semntica.
Esta ltima levada a cabo por alguns assistentes socais, associaes e
pesquisadores, por um lado, que defendem o termo bidonville e tendem
assim a uma urbanizao da questo rom. Por outro lado, a polcia, os
governos distritais e o Ministrio do Interior (mas tambm alguns assistentes sociais, associaes e pesquisadores) utilizam os termos campos
e acampamentos, geralmente associados a populaes estrangeiras;
neste caso, o paradigma da segurana e eventualmente humanitrio que
prevalece. Nesta mesma configurao da instalao e da transformao
urbanas, pode-se ainda notar a urbanizao dos campos de refugiados
ou mesmo a reconstruo urbana planificada de campos de refugiados
palestinos destrudos no Lbano (Puig 2014), e por fim no Brasil, a legalizao das favelas ou a poltica chamada de favela-bairro,que prevaleceu
desde a dcada de 1990 aps um longo perodo de repetidas tentativas de
erradicao pelos poderes pblicos.14
Na acumulao destes trs efeitos de invaso/ ocupao/ instalao
encontra-se o movimento do direito cidade enquanto direito de estar ali
e de ali levar uma vida urbana. neste momento, nesta pragmtica, que
o fazer-cidade se torna objeto real e observvel do direito cidade. Para
alm da necessidade humana de fundao e refundao permanente dos
lugares, por mais precrios que sejam, esta dinmica da cidade e do agir
urbano mostra o estreito vnculo entre a mobilidade das pessoas e a expanso

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urbana, esta ltima sendo uma condio para a sedentarizao ainda que
provisria e da ancoragem local das pessoas em movimento.
Locais, particulares ou precrias, as prticas do fazer-cidade revelam
assim uma certa universalidade da cidade, no sentido de que deixam entrever
incios, gneses, processos e lgicas da cidade, cujo final no conhecemos.
Mas de qual cidade conhecemos o fim? Por mais monumentais, gigantescas, altas, densas,extensas, difusas ou disformes que sejam, todas as
cidades bem como todas as localidades esto destinadas transformao,
que uma forma de seu desaparecimento.

Recebido em 16 de setembro de 2015


Aprovado em 22 de outubro de 2015
Traduo de Roberta Ceva

Michel Agier antroplogo, directeur dtudes na cole des Hautes tudes en


Sciences Sociales (EHESS) e pesquisador no Institut de Recherches pour le
Dveloppement (IRD). E-mail: <[email protected]>

Notas
* Este artigo a verso escrita e aumentada da conferncia Da etnografia das
margens antropologia da cidade, proferida em 17 de outubro de 2014, no Colgio
Brasileiro de Altos Estudos (CBAE/UFRJ), no quadro do programa da ctedra francesa
do consulado da Frana na UERJ (Departamento de Antropologia). Eu agradeo a
Peggy Scremin (consulado da Frana), Patricia Birman (UERJ) e Jos Sergio Leite
Lopes (CBAE) por esta oportunidade.
Ver Claude Lvi-Strauss (1955). Yves Hersant (1999) a ele se refere na introduo ao dossi Lumires sur la ville. Jos Guilherme Magnani (1999) dedica um
estudo relao de Claude Lvi-Strauss com as cidades, particularmente brasileiras
e indianas. Ver tambm M. Agier (2011).
1

2
Ver particularmente Grard Althabe (1990) e Althabe, Marcadet, de La Pradelle
e Slim (1986). Na mesma perspectiva, ver igualmente de La Pradelle e Slim (2000).
Mais recentemente, ver Lallement (2015).

Ver tambm Mongin (2005).

DO DIREITO CIDADE AO FAZER-CIDADE

Ver Franoise Choay (2006), particularmente os textos reunidos na segunda


parte da obra, O urbano, pp. 129-251. Entre as vrias obras sobre a violncia da
segregao urbana, ver os trabalhos j clssicos de Teresa Caldeira (2000) sobre So
Paulo e de Mike Davis (1990) sobre Los Angeles.
4

5
Para uma apresentao do descentramento como postura epistemolgica e
no culturalista, ver Agier (2015).

Ver Michel Agier e Sara Prestianni (2011). No caso do Brasil, ver o trabalho
pioneiro de Lygia Sigaud (2000).
6

[N.T.]: Alto Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados.

8
Para apresentaes comparativas em escala regional ou global, ver Saglio-Yatzimirsky e Landy (orgs.) (2013); Davis (2006); Simone (2004).

Invaso o termo utilizado em Salvador, Bahia, para designar o que no Rio


e em outros lugares denomina-se favela. Conservo este vernculo, observando (retornarei a este ponto mais adiante) que o termo voluntariamente utilizado h alguns
anos pelas associaes da Bahia no mais invaso, mas ocupao.
9

10
Jacques Rancire situa neste acontecimento preciso o momento constituinte
da poltica (1995).

[N. T.] Rom designa, na Frana, famlias de migrantes oriundas da Romnia ou da Bulgria e consideradas nmades em funo de sua origem e cultura
historicamente comuns (ditos ciganos no Brasil).
11

12
Ver a obra Considrant quil est plausible que de tels vnements puissent
nouveau survenir (organizada por Sbastien Thiery, 2014b), obra coletiva e manifesto
organizado pela associao Perou aps a destruio do acampamento denominado
rom de Ris-Orangis em abril de 2013. Ver igualmente Olivera (2011).

13

Ver Michel Agier, Lencampement du monde (2014b).

Esta insero e esta estabilizao do sujeito urbano outro, vindo da margem,


no tecido da cidade levam a outras questes e problemticas relativas ao controle dos
espaos urbanos, das economias, das trocas e dos modos de vida na cidade. o que
ocorre atualmente nas polticas ditas de pacificao nas maiores cidades brasileiras.
14

495

496

DO DIREITO CIDADE AO FAZER-CIDADE

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497

498

DO DIREITO CIDADE AO FAZER-CIDADE

Resumo

Abstract

Neste artigo, proponho definir a antropologia da cidade como a explorao


etnogrfica e a compreenso reflexiva das
situaes, dos lugares e dos movimentos
que fazem cidade. Fazer-cidade o
meio para a instaurao do direito cidade, aqui e agora. De acordo com esta
concepo, algumas prticas polmicas
ou eventualmente minoritrias (invases,
ocupaes) ganham um sentido radical
de um ponto de vista terico, pois fazem
nascer a partir das margens, das fronteiras, do precrio, do vazio e da desordem
um desejo e um apelo em direo a um
horizonte de cidade sonhada, virtual ou
ideal. O movimento do fazer-cidade
incitado por uma ausncia (ao se afirmar
que a cidade est morta) e impulsionado
por uma imagem, um mito perdido, um
horizonte ainda que inatingveis. Neste
contexto e segundo um princpio geral
de relatividade, a antropologia da cidade
no produz nem se refere a nenhuma
definio normativa da cidade em si, mas
a concebe como o movimento contnuo de
sua construo e desconstruo.
Palavras-chave Cidade, Margens, Acampamentos, Favelas.

In this article, I define the anthropology


of the city as an ethnographic exploration and reflexive understanding of the
situations, places and movements that
make the city . City-making is the
means for the instauration of the right to
the city in the here and now. According
to this view, certain polemical or, perhaps, minority practices (invasions,
occupations) attain a radical sense from
a theoretical point of view, since they
give birth from the edges, the frontiers,
the precarious, the empty and the disorder to a desire and a demand for a
dream city, whether virtual or real. The
movement of city-making is incited by
an absence (in the claim that the city
is dead) and driven by an intangible
image, a lost myth, a horizon. In this
context, and according to a general
principle of relativity, the anthropology
of the city neither produces nor refers to
any normative definition of the city per
se, but conceives it as the continuous
movement of its own construction and
deconstruction.
Key words City, Edges, Camps, Favelas.

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