Do Direito À Cidade Ao Fazer-Cidade
Do Direito À Cidade Ao Fazer-Cidade
Do Direito À Cidade Ao Fazer-Cidade
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DO DIREITO CIDADE
AO FAZER-CIDADE.
O ANTROPLOGO,
A MARGEM E O CENTRO*
Michel Agier
Para introduzir esta reflexo, eu devo dizer logo de sada que o vnculo
que ser estabelecido aqui entre etnografia das margens e antropologia da
cidade no pretende reproduzir a oposio radical ou mesmo ontolgica
entre a marginalidade e a centralidade em si. Muito ao contrrio, eu pretendo descrever uma dinmica, uma dialtica, uma relao necessria e, por
fim, certa continuidade entre uma e outra. Mais profundamente, eu desejo
implementar um mtodo que permita pensar a universalidade da cidade
fora de qualquer pretenso normativa, ou seja, segundo uma concepo ao
mesmo tempo epistemolgica e poltica. Baseada em pesquisa etnogrfica
urbana, esta concepo defende a ideia de uma construo/ desconstruo
de seu objeto cidade, rejeitando qualquer definio a priori da mesma
enquanto ferramenta analtica. A questo seria antes: o que faz e desfaz a
cidade permanentemente? Ela conduz divulgao de processos e portanto
poltica que impulsiona o movimento necessrio sua existncia, s suas
reproduo e transformao.
A cidade um objeto virtual, escrevia Henri Lefebvre em Le droit
la ville, no incio de 1968 (Lefebvre 2009:97). Esta afirmao foi em seguida
verificada,indiretamente, na constatao de que o urbano ultrapassava a
cidade: o filsofo, por extrapolao da cidade existente, antecipava o nascimento de uma sociedade completamente urbana tanto quanto planetria (Lefebvre 1970). Isto conferiu mais fora terica e poltica ideia de
uma virtualidade da cidade. Mais recentemente, o gegrafo David Harvey
observava, aps Lefebvre, que o direito cidade aponta no fundo para
alguma coisa que j no existe; um significante vazio, ele escreve,
tudo depende de quem lhe conferir sentido (Harvey 2011:42). Como em
eco, podemos observar que os atores dos movimentos sociais desta ltima
dcada, que reclamam o direito cidade, no leram necessariamente a
obra de Henry Lefebvre... mas fizeram deste apelo um horizonte de sua
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Epistemologia do fazer-cidade
Coisa humana por excelncia, a cidade a forma mais complexa e refinada da civilizao, escrevia Lvi-Strauss, mas ela lhe parecia ser tambm
o lugar de uma individualizao extrema e de umborramento dos limites
sociais, atingindo o inapreensvel caos.1 Multitude sem totalidade, a cidade
seria heterognea demais para que o etnlogo conseguisse aceder sua
complexidade sem se perder... ainda que seja tambm para ele, ocidental
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Nesta pesquisa necessria, a exemplaridade das antropologias enraizadas no campo e sensveis aos processos pode ser mais eficaz que a
representatividade dos dados estatsticos que dependem de definies a
priori externas, globais e normativas do que e do que no a cidade.
Dito de outro modo, h lugar, diante desta cidade desfeita e neste momento de crise urbana, para a imaginao e a representao de uma cidade
que seja o resultado da descrio da cidade pelo antroplogo, e que tenha
alguma chance de ser mais verdadeira que aquela produzida ou levada em
considerao pelas abordagens quantitativas, as representaes grficas e
as polticas urbanas. o que denominei cidade bis, ideia que no estranha
quela das cidades invisveis de Italo Calvino, enquanto ferramenta crtica
do realismo sociolgico dos experts da cidade, ou seja, da crena de que
a cidade uma coisa dada que se confunde com a realidade de tudo que se
passa ali. Ao falar em cidade bis, eu quis dizer que era possvel desenhar
uma cidade mltipla, partindo do ponto de vista das prticas, das relaes
e das palavras dos citadinos tais como o prprio pesquisador as observa, as
coleta e anota, direta e situacionalmente, e que esta cidade no menos real
que aquela dos urbanistas ou dos administradores. outra.
Partirei, portanto, da forma indutiva do raciocnio antropolgico, que
vai do campo teoria. Em qualquer pesquisa etnogrfica, todo objeto se
define por um limite, que o distingue de um exterior e o faz existir. De modo
mais geral, sempre sobre uma fronteira existente, na qual ganha sentido
a relao entre identidade e alteridade, que o outro comea a existir para
mim ou para ns. Podemos estender este princpio e considerar que o
lugar da fronteira, descentrado, o quadro privilegiado para se observar e
compreender a existncia de qualquer coisa.5 Se a cidade um conjunto
de coisas (edifcios, bens, relaes, agrupamentos, textos...) difceis de
definir como essencialmente urbanos, este conjunto procede de limites ou
fronteiras que o cirscunscrevem e a partir dos quais ele comena a existir.
Contudo, se quisermos ser coerentes com esta concepo relativa, devemos
precisar de sada que as delimitaes e as caracterizaes de cada cidade
estudada em um dado momento no so nem eternas, nem definitivas.
Esta ateno constituio de qualquer coisa por seu limite me leva
logicamente a apreender a cidade a partir do vazio deixado por sua no
existncia, a partir de seu limite, de sua negao, de seu exterior e de sua
margem: o menos longnquo de todos osalhures, segundo a bela frmula
do filsofo da cidade Jean-Christophe Bailly a propsito da periferia na
Frana (Bailly 2013). o ponto de observao ideal do movimento e da passagem de um estado a outro, de um ambiente ou de uma condio a outra.
o que me conduz a considerar que a etnografia das margens ou dos
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o espao com a condio de que a gente entre em acordo sobre isto e aquilo, por exemplo: vocs sero minha clientela eleitoral!. Ok, de acordo,
respondem os ocupantes, ns seremos seus eleitores, mas com as seguintes
condies etc.. H uma negociao, mas, para que ela exista, preciso que
em um dado momento alguma coisa tenha acontecido, uma comunidade em
movimento, pessoas que chegaram e fizeram o gesto poltico da ocupao.
Compreender o que se passou ali, ao se situar no interior da prpria situao,
na experincia vivenciada, permite descrever de que modo, em um certo
momento, pessoas expressaram uma injustia, com estas palavras, por exemplo: ns no somos marginais; temos direito a um alojamento (slogan do
movimento DAL Direito ao Alojamento, na Frana), ainda que, uma vez
tendo ocupado o espao, algum chegue e lhes diga: vocs so o meu curral eleitoral. A negociao vem aps o primeiro movimento, o da ocupao.
O que importante compreender, me parece, este agir ao mesmo tempo
poltico e urbano: ele marca uma linha de partilha entre antes e depois. Esse
movimento uma tomada do espao tanto quanto uma tomada da palavra,
o momento poltico porque aquele que cria uma situao radicalmente
nova.10 Eis por que os atores da margem, citadinos sem cidade, ocupam um
lugar parte, precrio mas exemplar nos movimentos que fazem a cidade.
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Concluso
A antropologia do fazer-cidade abordada de um ponto de vista social, poltico e cultural, que quis expressar aqui, permite evidenciar trs efeitos
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urbana, esta ltima sendo uma condio para a sedentarizao ainda que
provisria e da ancoragem local das pessoas em movimento.
Locais, particulares ou precrias, as prticas do fazer-cidade revelam
assim uma certa universalidade da cidade, no sentido de que deixam entrever
incios, gneses, processos e lgicas da cidade, cujo final no conhecemos.
Mas de qual cidade conhecemos o fim? Por mais monumentais, gigantescas, altas, densas,extensas, difusas ou disformes que sejam, todas as
cidades bem como todas as localidades esto destinadas transformao,
que uma forma de seu desaparecimento.
Notas
* Este artigo a verso escrita e aumentada da conferncia Da etnografia das
margens antropologia da cidade, proferida em 17 de outubro de 2014, no Colgio
Brasileiro de Altos Estudos (CBAE/UFRJ), no quadro do programa da ctedra francesa
do consulado da Frana na UERJ (Departamento de Antropologia). Eu agradeo a
Peggy Scremin (consulado da Frana), Patricia Birman (UERJ) e Jos Sergio Leite
Lopes (CBAE) por esta oportunidade.
Ver Claude Lvi-Strauss (1955). Yves Hersant (1999) a ele se refere na introduo ao dossi Lumires sur la ville. Jos Guilherme Magnani (1999) dedica um
estudo relao de Claude Lvi-Strauss com as cidades, particularmente brasileiras
e indianas. Ver tambm M. Agier (2011).
1
2
Ver particularmente Grard Althabe (1990) e Althabe, Marcadet, de La Pradelle
e Slim (1986). Na mesma perspectiva, ver igualmente de La Pradelle e Slim (2000).
Mais recentemente, ver Lallement (2015).
5
Para uma apresentao do descentramento como postura epistemolgica e
no culturalista, ver Agier (2015).
Ver Michel Agier e Sara Prestianni (2011). No caso do Brasil, ver o trabalho
pioneiro de Lygia Sigaud (2000).
6
8
Para apresentaes comparativas em escala regional ou global, ver Saglio-Yatzimirsky e Landy (orgs.) (2013); Davis (2006); Simone (2004).
10
Jacques Rancire situa neste acontecimento preciso o momento constituinte
da poltica (1995).
[N. T.] Rom designa, na Frana, famlias de migrantes oriundas da Romnia ou da Bulgria e consideradas nmades em funo de sua origem e cultura
historicamente comuns (ditos ciganos no Brasil).
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12
Ver a obra Considrant quil est plausible que de tels vnements puissent
nouveau survenir (organizada por Sbastien Thiery, 2014b), obra coletiva e manifesto
organizado pela associao Perou aps a destruio do acampamento denominado
rom de Ris-Orangis em abril de 2013. Ver igualmente Olivera (2011).
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Resumo
Abstract