Genocidio Dos Caiçaras
Genocidio Dos Caiçaras
Genocidio Dos Caiçaras
GENOcOIO
DOS CAlARAS
JJ
(J)
Priscila Siqueira
GENOCDIO
DOS CAlARAS
Prefcio de
DALMO DALLARI
V Edio
1984
PREFCIO
Este livro a denncia de um genocdio. Ao mesmo tempo,
seguindo a trilha do clssico "Parceiros do Rio Bonito", de
Antnio Cndido, tambm o registro de uma cultura agonizante. Em termos muito atuais, pode-se dizer ainda que um
retrato fiel da face desumana do desenvolvimento econmico.
Alm disso tudo, sado da pena de uma jornalista que
sempre manteve fidelidade a seu compromisso humanista, este
livro O testemunho
sucinto, preciso e corajoso, de uma
agresso humanidade. Essa agresso contnua, sem obstculos e sem punies .. favoreci da pela degradao dos costumes
polticos que atingiu o Brasil nas ltimas dcadas e apoiada no
mito do progresso econmico necessrio, que vem sacrificando
grande parte da humanidade em favor do enriquecimento de
alguns indivduos.
O cenrio deste livro o Litoral Norte do Estado de So
Paulo e um trecho do Litoral Sul fluminense. Vivendo h
muitos anos na regio, e tendo olhos para ver, Priscila Siqueira
vem testemunhando
e sofrendo a deteriorao fsica e social
daquela rea. Atravs de reportagens publicadas nos jornais "O
Estado de So Paulo e Jornal da Tarde" tem procurado denunciar os aspectos mais agudos das prticas antisociais, antiecolgicas e at mesmo antibrasileiras que se tm verificado naquela
parte do litoral brasileiro. Este livro uma continuao de seu
trabalho de jornalista.
A par do carter de denncia, este livro de Priscila Siqueira
um importante registro de caractersticas e manifestaes da
cultura calara, em vias de extino. A terra e o mar so
prolongamentos
das comunidades e com ambos o caiara vive
em verdadeira comunho espiritual, respeitando-os como fontes de vida. Sem nenhuma preocupao com a acumulao de
riquezas, o caiara vive a "boa pobreza", que, longe de ser um
estado de privaes e desnimo, a opo pela vida simples,
espontnea e alegre. E assim, como fica demonstrado neste
livro,
caiara sempre viveu feliz.
Outro aspecto muito interessante da cultura calara, registrado por Priscila Siqueira, a religiosidade, que se manifesta
de modo ingnuo e alegre, atravs de festanas, com muito
colorido e muita dana, havendo ainda os ltimos sinais da
congada, com seus reis e seus guerreiros.
Curiosamente, conforme o testemunho da Autora, o rdio de pilha penetrou nesse ambiente e colocou o caiara em
contacto permanente com o resto do mundo, praticamente
sem agredir seus valores e tradies. Esse dado muito interessante, pois revela a possibilidade de divulgao de informaes
mesmo onde elevado o nmero de analfabetos e sem provocar deformaes culturais.,
Mas a vida simples e feliz do caiara parece destinada a um
breve desaparecimento. o que nos revela este livro-denncia
de Priscila Siqueira. A gente calara, que por sculos teve o mar
corno via de acesso quase nica, encontrando nisso um fator de
proteo, no conseguiu resistir aos "piratas" vindos da terra.
Favorecidos pela proteo dos governos militares que infelicitaram o Brasil nos ltimos anos, chegaram os aventureiros
de vrias espcies. A simulao de um "milagre econmico",
que foi uma das muitas imoralidades impostas ao Brasil pelos
governos militares, foi pretexto para grandes investimentos
pblicos e para que pseudo-revolucionrios
se valessem de
informaes confidenciais e do poder arbitrrio para ganhar
dinheiro na esteira desses investimentos.
A estrada RioSantos, embora prevista antes desse perodo, entrou de carnbulhada nesse processo desenvolvimentista.
Polticos sem escrpulos, especuladores imobilirios, empresas multinacionais e pessoas ricas procura de "parasos"
para recreao descobriram o Litoral Norte paulista e Sul fluminense. Foi o comeo do genocdo (morte fsica), acompanhado
de etnocdio (morte cultural) dos caiaras e de agrupamentos de
ndios guaranis existentes na regio. Com preciso e coragem
Priscila Siqueira relata neste livro o que tem sido esse processo,
contando "o milagre e o santo", na antiga expresso brasileira,
descrevendo agresses e identificando agressores. Desapossamento de terras, aes de jagunos, fechamento de praias e
NDICE
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Prefcio
Milhes de mil-ris
Apenas uma mulher
Em paz na terra dos pais
Terror multinacional
Se a pesca fracassar
Antigos piratas e nova pirataria
Vomitando sangue
Um Brasil com mais justia
O caso da pranteada velhinha
Subindo o morro do abrigo
O rio que est mais escuro
De coronel para coronel
Histrica vitria
Documentao fotogrfica
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MILHES DE MIL-RIS
Soberano Rei de Congo,
Eu desejava saber no nome
Desses teus queridos fidalgos
Para trazer na memria
Deste Prncipe exaltado
O secretrio
I o porque, se no passado o capitalismo chegou a seinteressar por sua mo de obra farta e barata, hoje o qUi:'
lhe cobia so as terras valorizadas ao extremo, principalmente depois da abertura da rodovia Rio-Santos.
E sem a terra, que lhe garante acesso ao mar, o caiara
no pode sobreviver. Na terra beira-mar, o caiara sobrevive com o produto da pesca, sua principal fonte de
alimentao. Para ele, o oceano to essencial quanto o ar
que respira. Ao lado do "peixe de cada dia", a banana, o
feijo, o milho, a cana e a mandioca, matria prima de uma
excelente farinha. E com tudo isso, fortes e vivas manifestaes culturais, como a congada em honra de So Benedito, o resado, a Folia do Divino.
A cozinha caiara cheia de segredos. O "azul marinho" - prato tpico da regio, na base do peixe e da banana
verde, que tem este nome pela intensa cor azulada que
adquire, no d para ser feito apenas com uma receita
culinria. preciso" consertar" o peixe de vspera, saber o
ponto exato da banana - nem verde, nem madura - e
"perceber" a hora de se colocar a gua. Quando o "azulmarinho" est pronto, o "bentrecha" - parte do peixe
situada logo aps sua cabea na altura das nadadeiras - (o
ombro do peixe) a mais disputada na mesa caiara.
Os "causes", as "lendas", os "pasquins", povoam sua
-cultura: o mundo caiara mgico e l tudo pode acontecer
_ espritos se confundem com a realidade, a poesia se
infiltra nas histrias de amor mal sucedidas - como na
lenda dos dois namorados do Pontal da Cruz, em So
Sebastio - ou o bom humor e a stira registrando os
fatos ocorridos no cotidiano deste povo, como os "pasquins" de Ilhabela - verdadeiros jornais falados, em versos - muitos deles recolhidos pela saudosa professora
Gioconda Mussolini.
At os primeiros anos da dcada de 50, a terra onde
moravam esses caiaras tinha pouca valia. Da eles vive. rem em paz, praticamente isolados do resto do mundo. H
quem compare o litoral entre as cidades do Rio de Janeiro e
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.,
eu no queria assim,
O Cacique do Embaixador
IrI
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I
.......
As 40 famlias de caiaras que vivem em So Gon alinho aprenderam a conviver com o medo. Desde h muito
que jagunos armados, montados a cavalo, patrulham esta
praia em nome da empresa S.A. White Martins que, entre
outras coisas; mantm o monoplio de oxignio no Pas.
Posseiros h comprovadamente mais de cem anos, os
caiaras de So Gonalinho, praia do lito ai sul flu ine~se, deveriam estar tranqilos em suas terras. No cartrio
"deParaty existe um inventrio datado de 1845 que registra os bens do capito-rnor Antonio Jos Pereira da Cruz e
de sua mulher, Ana Maria Lapa, provando que"as terras
do lugar chamado So Gonalinho foram lanadas Fazenda Nacional pela quantia de Hum conto quatrocentos
dez mil e quinhentos ris, pelo pagamento dos impostos
atrazados" desse capito. Esse documento demonstra que
a posse dos caiaras est situada em cima de terrenos da
Unio.
Apesar disso, na ao de reintegrao de posse movida pela White Martins, a empresa se diz legtima senhora e
possuidora da fazenda So Gonalinho, "inclusive dos
acrscimos da Marinha". Seu gerente, Jlio Cesar Cassano, entrevistado, chegou a afirmar:" estamos recuperando
Jo:~.
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'L...
--
Gonalo foi desativada, os caiaras que l moravam conseguiram recuperar seus roados e as condies de vida
comearam a melhorar, apesar da grande distncia da
cidade: "A gente andava um dia inteiro para chegar a
Paraty e l trocar a farinha de mandioca ou a banana e o
peixe salgado por alguma coisa que precisssemos".
Para Jair da Silva, com a construo da Rio-Santos "o
negcio engrossou: a empresa contratou um policial reformado da PM carioca, entre os anos de 1972 e 1973, que
bateu e desrespeitou muita gente, at que acabou matando dois posseiros, Amncio Bonifcio da Cruz e o filho
dele, Vitrio da Cruz". A empresa comeou ento a chamar
os caiaras para fazer um "acordo" com eles, "dando o que
bem entendia pelas terras". Jair afirma que a "White Martins j destruiu 50 casas de posseiros para nada de til
fazer com a terra - s guard-Ia para especulao imobiliria". ainda este membro do PDS de Paraty que assegura: "A titulao registrada em cartrio pela White Martins
de 2.500 metros quadrados, e no entanto reivindica mais
do dobro do que legalmente possui".
espantoso o que a White Martins consegue.
Clarice Maria da Conceio uma velha caiara, me
de muitos filhos, nascida e criada em sua posse de So
Gonalinho. Para sua surpresa, em meados de 83 recebeu uma intimao do Juiz de Direito de Paraty pondo-a a
par da ao de despejo - "rito sumarssimo" - que a
White Martins movia contra ela. Alegao da empresa:
existe entre ambas um contrato de arrendamento rural. E
na ao judicial foi mesmo anexado um contrato de arrendamento que se destinava ao exerccio de explorao agrcola ou agro-industrial. Acontece que Clarice no sabe
assinar nem mesmo o seu nome - "e eu no botei o dedo
em papel nenhum, no".
O advogado que defende Clarice, Jarbas Macedo de
Camargo Penteado, do escritrio de Sobral Pinto, desde
1976 vem acompanhando a luta dos caiaras deste litoral
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Como disse o reprter Edilson Martins numa entrevista com [arbas, "no dia que este pas pertencer ao seu
povo, esta historinha haver de ser narrada nas escolas
pblicas como testemunha de um Brasil obscurantista e
feudal". Um obscurantismo e feudalismo que podem tambm ser reproduzidos na histria do relacionamento do
advogado Antonio Francisco Maia e os caiaras de So
Gonalinho. Esse advogado detm a maiona das aes de
defesa dos caiaras, levadas at eles por Jair da Silva, que
filho de So Gonalinho, ex-presidente do sindicato dos
trabalhadores rurais, ex-presidente do PDS de Paraty e
membro da igreja evanglica Brasil para Cristo, da qual a
maioria dos moradores desta praia faz parte. O advogado
Antonio F. Maia tambm j foi advogado do sindicato dos
trabalhadores rurais quando Jair era o presidente. Coincidncias? Tanto Maia como seu colega Alrio Campos tambm atuaram junto aos caiaras da praia de Trindade, por
interferncia de Jair da Silva, quando as ameaas de expulso dos posseiros comearam a ser feitas pela multinacional Adela.
Segundo os trindadeiros, os advogados prometiam
iniciar o processo de usucapio e para tanto conseguiram
as procuraes dos caiaras. Mais tarde o discurso mudou:
Campos e Maia aconselhavam os trindadeiros a venderem
suas terras, "pois contra multinacional nada se pode fazer". Alm disso, os advogados afirmavam que se os posseiros recusassem a oferta da Adela, "acabariam ficando
sem nada".
Em So Gonalinho a histria se repete. Conforme o
contrato firmado entre Maia e os posseiros (muitos deles
analfabetos e crentes nas palavras do "irmo de f"), o
advogado dever ficar com 20% do produto da venda de
suas posses, caso vena a ao judicial. O que Maia recomenda aos caiaras de So Gonalinho que reivindiquem
um preo maior por suas posses, o que, evidentemente,
lhe trar maior lucro. Mas, com nenhum caiara Maia
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SE A PESCA FRACASSAR
E se padeo de boa piz,
A terra da cristandade;
Assim mesmo semo em piz
Benedito seja louvado,
O Primeiro Fidalgo
iam cantando em outras praias de Ilhabela, como a Enxovas e Castelhanos, recolhendo dinheiro para as solenidades.
Mas no foram somente as manifestaes religiosas
que mudaram, em Bonete. Os trs aparelhos de televiso
instalados, e que funcionam a bateria, tiram muita gente
da viola ponteada no terreiro para acompanhar os captulos das novelas que falam de realidades distantes da vida
desses caiaras.
Antnio Aguinaldo, 85 anos de idade, 26 netos e
tantos bisnetos que perdeu a conta, a pessoa mais idosa de
todo o Bonete, de opinio que muita coisa mudou em sua
praia: "no meu tempo no havia canoa a motor, e para ir
at So Sebastio levava um dia e meio de viagem; para ir a
Santos, quatro dias remando sem parar - a gente fundeava em qualquer lugar e cozinhava a bordo mesmo".
Para Santos eram levados ovos de galinha; laranja,
abacate, e l faziam compras de sal, milho e pano para a
costura das mulheres. Antnio Aguinaldo acha que agora
os tempos so melhores: "temos uma aposentadoriasqnha
e o povo tem mais onde trabalhar, apesar de no termos
mais a terra". Os empregados em Bonete trabalham nas
fazendas de coco, na limpeza das plantaes, ganhando
salrio mnimo. "No tempo" de Antnio o fio de confeco
das redes era comprado na cidade e os mais velhos do lugar
as teciam - "e a gente no matava o peixe para vender.
Quando sobrava o pescado, o povo salgava tudo para
alimento do lugar".
Por que tanta gente foi embora de Bonete?
O velho Antnio tem uma explicao mstica: "Meu
pai sempre me dizia que viria um tempo em que o povo
no ia achar um lugar bom para morar. Ia viver como
formiga de um lado para outro. Calhou que esta era j
chegou".
Mas Malaquias, homem novo, de outra opiruao
mais realista: "O pescador fica na terra quando tem condies de trabalhar e sustentar a famlia. Se a pesca evoluir,
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a pele sardenta de muitas crianas de Bzios. Mas a aparncia de outras' - cabelos negros e lisos, pele morena,
olhos de jaboticaba - atesta a inonfundvel ascendncia
indgena. evidente que tudo isso no conta para os novos
piratas das corporaes imobilirias.
Como no conta, para os novos piratas, a festa e o
baile desta comunidade. A casa de [osefinaest sempre
montada para uma festa. As paredes de sua casa foram
pintadas por ela mesma, e as decorou com desenhos de
flores, navios, animais e helicpteros. Estes se explicam
por ser elemento constante com a chegada das multinacionais do petrleo nesta regio litornea. O cotidiano destas
pessoas alegre e "nos casamentos tem dana at o sol
nascer". A viola seu instrumento mais popular, mas as
radiolas de pilha, sambas, chorinhos e modas caipiras fazem o deleite da maioria.
O radinho de pilha o maior elo de ligao desta
comunidade com o mundo. Por ele pode-se ficar sabendo
do roteiro dos barcos de pesca, que levam muitos de seus
parentes, geralmente os mais novos, "embarcados" em
busca de uma nova vida. o rdio de pilha que supre
outros elementos religiosos: "Todos os dias fao minhas
oraes e ponho uma garrafa de gua para ser benta pelo
padre que fala no rdio. confessa [osefina, que tem um
retrato do padre Donizete de Tamba pendurado na parede. Alm da imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira dessas famlias que tm todas algum tipo de parentesco entre si.
As comemoraes de So Pedro so esperadas durante o ano todo. A nica capela, situada no Guaxuruna,
dedicada ao santo protetor dos pescadores, conhecida em
Bzios como a Casa de So Pedr~. Para sua festa, no fim
de junho, acorrem famlias de buzianos que moram agora
em Santos ou no bairro de So Francisco, em So Sebastio,
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VOMITANDO SANGUE
Soberano meu rei Senhor
Eu parte vos venho d
Que a guerra est muito forte
Eu nela, no posso entr.
preciso dar um grito
Para ansim agrument
O Secretrio fala ao Rei
Poluio do mar, expulso da terra, caminhos centenrios fechados por cancelas e guaritas. Agora assim, na
ilha da Madeira, Itagua no litoral sul do Rio de Janeiro,
desde quehTI8 anos atrs a Metalrgica Ing se instalou
no lugar. A empresa responsvel por 50% da produo
nacional de cdmio -lanando somente por uma de suas
chamins duas vezes mais zinco e 30 vezes mais cdmio do
que o permitido por lei, conforme relatrio da Feema.
Com isso, o mangue situado na rea estuarina, que
era nascedouro natural de camares, caranguejos e mexilhes, agora uma imensa lagoa de guas lamacentas e
mortas. Eos peixes, segundo os pescadores da ilha, "s do
muito longe da praia". Com isto, "s os que tm barco
muito grande podem ir buscar os peixes".
Quado a Ing chegou na ilha da Madeira tratou muito
bem os pescadores que a viviam. Manuel Francisco da
Silva, 74 anos, nascido na ilha, neto de madeirenses, um
dos mais velhos do lugar, lembra-se do "mdico japons
que a empresa trouxe pra ns - era uma beleza. Ela
.trouxe at um caminho de remdio".
Mas foi s o comeo. Logo em seguida, a empresa
fechou a passagem de servido, isolando as mais de mil
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nesta nica via de acesso ao Sono um mata burro, impedindo assim o trfego de animais, o que obrigava aos moradores a carregar nas costas o que quisessem transportar
por
terra. Um desses caiaras, Jorge Lopes Coelho, quanto
teve o brao ferido pelo machado, trabalhando
na roa,
teve que andar por duas horas entre os rochedos at
chegar na praia das Laranjeiras.
A ento foi levado de
carro at a Santa Casa de Paraty a fim de ser socorrido. O
carro, estava proibido de trafegar pela estrada do Sono.
E por tudo isso que os moradores
do Sono fizeram
passeata, no comeo de 83, pelas ruas de Paraty, chamando a ateno da populao urbana para os problemas que
vivem. Nos cartazes que levavam liam-se dizeres pedindo
"terra para os que nela trabalham".
Embalando sua lenta
trajetria, hinos da igreja Brasil para Cristo. Num deles, os
crentes, homens e mulheres to sofridos da praia do Sono,
pediam "um Brasil com mais Justia que caminha em
direo a Deus".
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o CASO
DA PRANTEADA VELHINHA
mento jurdico, os interesses principalmente dos posseiros, que no tm como pagar um advogado, sejam defendidos. Mas Lcia Helena acredita que "na base da luta que
estamos travando necessrio que tenhamos assessoria
jurdica prpria, para inclusive trabalhar juntamente com
o sindicato. Na realidade, o que acontece que toda a
batalha travada pelos direitos do cidado acaba sendo
travada dentro de um frum. A luta uma luta jurdica, e
o papel do advogado identificado com a causa do posseiro
marginalizado e oprimido, que no exija metade de sua
terra para defend-lo, de capital importncia".
55
.,."
..
~~
i
I
Sebastio,
assumiu
o caso dos posseiros do Morro do
Abrigo. Euclides Vigneron, responsvel por tal escritrio,
solicitou a ajuda do grupo especializado em terras, criado
dentro da Superintendncia,
com pessoas como Fausto .
Pires de Campos e Adriana Mattoso,
que trabalharam
com os posseiros caiaras no litoral sul fluminense.
Por
isso, o prefeito nomeado, Dcio Galvo, afirmou na imprensa da regio que o problema era uma intriga poltica
do PMDB, que estaria querendo v-lo fora da Prefeitura.
Ele deve ter-se esquecido que a primeira denncia em
relao ao caso tenha partido de um poltico do prprio
PDS.
Pedro Vicenttini,
Juiz de Direito de So Sebastio,
garante que no permitir mais nenhuma violncia contra
os posseiros do Morro do Abrigo. "Continuem
trabalhando na terra e defendam
sua posse, pois isto compete a
vocs", afirma Vicenttiniaos
posseiros. Estes esperam que
a Sudelpa realize o mais rapidamente
possvel a demarcao de suas terras para continuarem
lutando por elas na
Justia. Pois, como diz Abel. "eu sou mineiro mas meus
filhos j so caiaras nascidos nesta terra".
o RIO
Prncepe,
escuta i,
Sinal de guerra
esto dando
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59
{
~""'1
----
"--
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Lgrimas de alegria, risos descontrolados que mostravam o medo da notcia no ser verdadeira - esta a
reao dos posseiros das fazendas Barra Grande e Taquari, no Municpio de Paraty, quando o prefeito Edson Lacerda irrompeu escadas acima anunciando aos berros a
notcia - "O Presidente Joo Figueiredo desapropriou
para fins de reforma agrria a rea onde vivem os posseiros destas duas fazendas". Isto tudo aconteceu no dia 4 de
outubro de 1983, quando a ento juza da Comarca de
Paraty - Tereza Maria Savine - estava prestes a iniciar
uma audincia com os caiaras e seu advogado Jarbas
Macedo Penteado, da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro e do escritrio de Sobral Pinto. Sob o tmido olhar
do advogado da parte contrria, a comemorao comeou
ali mesmo: afinal, a luta pela posse destas terras j se
arrastava. h mais de cinco anos e cerca de cem famlias que
sempre viveram neste lugar estava seriamente ameaada
de expulso de suas casas e roas. So dois os decretos
presidenciais que dispem sobre reas prioritrias para
f~ns ~e reforma agrria na fazenda Barra Grande e Taquari (nmeros 88.789 e 88.791). Na fazenda Taquari foram
desapropriados 98~ hectares, num total de quase dez milhes de metros quadrados, beneficiando 54 famlias; na
63
1
Barra Grande, foram desapropriados
630 hectares num
total de quase 6.300.000 metros quadrados, beneficiando
56 famlias. Conforme Jarbas Penteado "o objetivo de [ais
decretos a reformulao fundiria nesta regio litornea,
condicionando o uso das terras sua funo social, para
que se promova justa e adequada distribuio da proprie-
. dade".
Os proprietrios
dos ttulos dessas fazendas recebero seu pagamento em ttulos da Dvida Agrria, que se
resgatam a partir de dois anos aps sua emisso. "Essa foi
uma atitude muito corajosa do general Venturini, ministro dos Assuntos Fundirios", afirma Jarbas Venturini
recebeu, em janeiro deste ano, o prefeito e o presidente da
Cmara de Vereadores de Paraty, juntamente com Jarbas
Penteado, quando ento foram levadas ao ministro as
provas de que os posseiros dessas duas fazendas no eram
simples parceiros da terra, nem to pouco invasores na
rea, j que as certides de bitos de seus antepassados e
suas certides de nascimento mostravam que eles sempre
viveram ali. "Cabe agora ao INCRA requerer judicialmente a emisso de posse das terras desapropriadas."
O ofcio que estas famlias enviaram ao coordenador
do INCRA no Rio de Janeiro, em 1981, relata sua luta: Muito tempo atrs, no fim do sculo passado, tinha na
fazenda Barra Grande um coronel chamado Honrio Lima, que dizia ser o dono destas terras. A moravam quase
cem famlias de trabalhadores, aproximadamente
seis pessoas por famlia. Todos trabalhavam na terra e suas casas
foram construdas
por eles prprios. Viveram mais de
trinta anos sem nada cobrarem deles. Depois esta fazenda
t
foi vendida para o senhor Joaquim Flores dos Santos
Callado que a teve por 25 anos, quando todos os trabalhaodores viveram livres com toda a liberdade para trabalhar. Criaram seus filhos e vieram os netos (...)"
As dvidas contradas por Joaquim Callado fizeram
com que vendesse a fazenda para Albino Gonalves. Foi
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Ir
ento que o filho de Albino, Nestor Gonalves - "conhecido grileiro em Angra dos Reis", segundo o relatrio ~
recebeu a fazenda de herana do pai. Na poca da Segunda
Grande Guerra, ele soltou gado nas lavouras dos posseiros, destruindo toda a plantao e provocando a retirada
de muitos deles sem que recebessem qualquer indenizao.
Por volta de 1949, um grupo de italianos, liderado
pelo ento novo proprietrio
dos ttulos da fazenda Guiseppe Cambarelli - exigiu dos posseiros o pagamento
de um tero de sua produo agrcola, "33% de cada produo que eles obtinham sem o auxlio de ningum, a no ser
da terra". Esse tipo de pagamento foi feito, no incio, sem
recibo. A partir de 1964, as fazendas contrataram
para
administr-Ias um indivduo chamado Jos Garcia, que se
dizia sargento do Exrcito. Ele, juntamente
com diversos
capangas armados, atemorizaram
e coagiram os caiaras
na cobrana do "tero" dos senhores feudais. Em troca, a
administrao
se comprometeu
a fornecer conduo para
que os trabalhadores
se locomovessem
at suas roas,
alm de oferecer condies de armazenamento
e escoamento da produo de banana - tens que, sem surpreender ningum, nunca foram cumpridos.
Depois da morte de Guiseppe Cambarelli, as fazendas passaram a ser administradas
pela viva Iolle Fabri
Cambarelli. E "com novos capatazes ela comeou a proibir
os lavradores de trabalhar em novas plantaes e de consertarem suas casas, para no futuro poder acusar os posseiros de no trabalharem direito na lavoura". Em 1976, os
moradores
foram obrigados a assinar um contrato de
parceria - "fomos ameaados por um delegado de polcia
que acompanhou o administrador que ia entrando de casa
em casa". Muitos dos caiaras, porm, no ~ssinaram o
contrato apesar da intimidao ostensiva. Aqueles que
aceitaram o contrato foi-lhes prometido que a "contribuio voluntria" dada fazenda cairia em 20% e at mesmo
10% da produo que tivessem na terra.
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:
I
I,
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HISTRICA VITRIA
Glorioso Benedito
Glorioso Benedito
Sant que no tem vexame
Sant que no tem vexame
Benoado que nos livre
Benoado que nos livre
Dos castigos deste mundo
Dos castigos deste mundo
Do canto "Chib"
"Se tenho de morrer, que seja em minha terra", afirmava Antnio de Jesus, pai de sete filhos que por trs
vezes foi expulso dos barracos que construa em Trindade.
Durante muito tempo, Antnio, um dos lderes na luta de
resistncia dos caiaras nesta praia, morou beira de
estradas, na praia e nas matas da Serra do Mar, recusando-se a abandonar as terras em que seus pais sempre
plantavam. A luta de Antnio foi igual a de muitas outras
famlias que, expulsas de suas casas, se embrenharam na
mata, passando a viver em cavernas e cabanas improvisadas.
Nem sempre o cotidiano dos trindadeiros foi de sofrimento. Quando a especulao imobiliria no havia chegado a este litoral, a vida era' outrapara estes posseiros de
mais de 200 anos, como atestam os documentos do Cartrio de Paraty. Os mais velhos testemunham: A gente no
carecia de dinheiro, no, com um dia de caminhada a gente
chegava a Paraty, onde trocava a farinha e a banana por
querosene ou pelo que precisasse, s vezes um pano pra
mulher fazer vestido".
A populao de Trindade, onde existem muitos loiros
?e olhos azuis ou verdes, toda protestante, pertencentes
as .seitas pentecostais Assemblia de Deus, Brasil para
Cnsto e Adventista, cujas sedes foram construdas em
regime de mutiro por todos os habitantes da praia. Uma
das explicaes para a ausncia da Igreja catlica na
comunidade seria o seu difcil acesso; impedindo um contato mais constante com O padre catlico.
A mudana radical na vida destes protestantes comea em 1972 quando os ttulos de propriedade da Fazenda
Laranjeiras, com uma rea de 1403 hectares, foi adquirida
pela Companhia Paraty Desenvolvimento Turstico S.A.
A companhia, cujo presidente era o general Candau da
~onse~a, que havia sido presidente da Petrobrs, pertencia
a holding Adela. A fazenda Laranjeiras foi vendida por um
milho de dlares, conforme atesta a escritura lavrada no
17.0 Ofcio de Notas do Rio de Janeiro, das mos do
JI
70
ex-governador Carlos Lacerda, do antigo Estado da Guanabara. Esta fazenda englobava as praias de Laranjeiras,
Picinguaba (em Ubatuba, no Estado de So Paulo), Sobrado, Vermelha, Galhetas, Brava, De Fora e Cachadao.
Por que estas terras, antes s ocupadas por caiaras,
comeam a se tornar to importantes para os poderosos
grupos econmicos? A sociloga Maria Christina de AImeida Braga, que conviveu muitos anos com os caiaras de
Trindade e sobre eles elaborou vrios estudos, tem uma
resposta clara - "Baseada no projeto Turis e em muitos
outros trabalhos cientficos realizados sobre esta praia,
podemos dizer que a estrada Rio-Santos, a BR-10l planejada no governo de Castelo Branco, em 1967 - foi
concebida para atender s necessidades do escoamento das
reas metropolitanas do Rio de Janeiro e So Paulo. Sendo
uma alternativa de ligao rodoviria entre estes dois palas
econmicos, satisfaria s necessidades do capital j instalado na regio: o Parque Industrial de Santa Cruz, porto de
Sepetiba, Estaleiros Verolme, Usina Nuclear Angra e os
terminais petrolferos de Angra dos Reis e So Sebastio".
Como a segunda fase da BR-101, no seu trecho entre
Ubatuba e Santos, nunca foi concludo, a grande realizao do ento Ministro dos Transportes, Mrio ndreazza,
serviu apenas ao segundo propsito dos planejadores da
estrada, a que Maria Christina se refere:" A BR-101 possibilita, ao mesmo tempo, a explorao turstica de uma das
regies mais bonitas do pas e abre perspectivas para os
investimentos dos grupos empresariais. Conseqentemente, h uma redefinio do uso da terra, transformada
em mercadoria e extremamente
valorizada", Tal
formulado por Carlos Lacerda, em sua entrevista ao jornal
"O Estado de So Paulo", de sde outubro de 1972, em uma
materia intitulada "Imobilirios gananciosos e imobilistas
gananciosos": "A essa valorizao corresponde o valor que
se faz com ela (terra) ... onde a terra passa a valer mais do
que a banana permite, o desejvel no plantar bananas e
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mais diversos recursos. Em 1977; numa declarao Imprensa, John Sillers. ento representante da empresa na
praia, afirmava que "a vastido da rea propiciava a ao de
grileiros", Devido a isto foram envidados homens armados a Trindade, "armamento convencional, como revlveres, fuzis, rifles e metralhadoras". Sillers dizia ter procurado acordo com os trindadeiros,
mas no admitia "a
presena de terceiros nas posses". Um dos terceiros a que
Sillers se referia o atual senador de So Paulo, Severo
Fagundes Gomes, que em 1973, atravs de Ivete Maciel,
conhecida neste litoral pela alcunha de "Loba do Mar",
adquire as praias de Baixo, Cepilho, De Fora e Canhadao,
revendendo-as posteriormente.
Trindade, como outras praias ao longo da Rio-Santos,
foi catalogada como sendode"dasse A", pelo projeto Turis
da Embratur Este projeto data dos anos 72 e 73 e foi
inspirado no modelo francs de desenvolvimento turstico
da regio costeira. Sob a pretenso de desenvolver turismo de massa - compreendido como a classe mdia motorizada a procura de lazer - as praias deste litoral foram
classificadas em trs categoriais: A, B e C. As praias consideradas classe A, como Trindade, seriam reservadas para
as classes sociais de maior renda. O projeto Turis foi
elaborado na poca em que Severo Gomes era Ministro da
Indstria e Comrcio, ao qual a Embratur est ligada.
Na "via crucis" dos caiaras de Trindade, estavam
envolvidos os advogados do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Paraty-Alrio Campo e Jos Maia, enviados a
esta praia por Jair Alves, ento trindadeiros para iniciarem
um processo de usucapio de 'suas posses que, segundo
Jarbas Macedo Pen teado - advogado que posteriormen te
defende os caiaras - estava muito bem montado. Para
[arbas, este dado mais um indcio da m inteno destes
dois profissionais que, mais tarde, retornam a Trindade
para propor uma acordo aos caiaras, "pois contra a companhia nada se pode fazer". Alguns trindadeiros se nega73
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tirar o amigo do fogo tambm, para que ele no se queime ... O que o caiara vai fazer na cidade? Favela? Favela j
chega o que est na cidade. Eu acho que aumentar mais
favelas no d. O cara tem de ter a liberdade dele na terra
em que nasceu."
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o interior
Acabou-se de imprimir
aos 2 de maio de 1984 sob orientao de
Oficina Grfica
Fotocomposio: Studio Artgraph
Edio a cargo de
Massao Ohno - Ismael Guarnelli/Editores
Caixa Postal 62673 - CEP OllSO
So Paulo - Brasil