Mestres Artificeis Santa Catarina - IPHAN
Mestres Artificeis Santa Catarina - IPHAN
Mestres Artificeis Santa Catarina - IPHAN
SANTA CATARINA
Cadernos de Memria
Ferramentas de cantaria
MESTRES ARTFICES
SANTA CATARINA
Cadernos de Memria
Autores
crditos
Presidenta da Repblica do Brasil
Dilma Rousseff
Ministra de Estado da Cultura
Ana de Hollanda
Presidente do Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
Luiz Fernando de Almeida
Diretoria do Iphan
Andrey Rosenthal Schlee
Clia Maria Corsino
Estevan Pardi Corra
Maria Emlia Nascimento Santos
Execuo
Mestres Artfices: Santa Catarina
Fundao de Desenvolvimento
da Pesquisa - Fundepe
Pesquisa realizada para identificao de mestres
artfices detentores de saberes construtivos
tradicionais e registro das tcnicas que
dominam, com financiamento e superviso
do Iphan/Unesco/Monumenta/BID.
As opinies apresentadas nos textos desta
publicao so de responsabilidade de seus
autores, bem como o modo pelo qual as
entrevistas foram nele transcritas e citadas.
Equipe de Pesquisa - Mestres
Artfices em Santa Catarina
Coordenao editorial
Sylvia Maria Braga
Organizao
Mrcia Gensia SantAnna
Reviso do projeto grfico e diagramao
Raruti Comunicao e Design/Cristiane Dias
Reviso de texto
Fabiana Ferreira
Fotografia
Arquivo INRC/Iphan
Bernardete Wrublevski Aued
Joo Paulo Serraglio
Luis Fugazzola Pimenta
Marcelo Cabral Vaz
Margareth de Castro Afeche Pimenta
Novembro de 2009 a maio de 2010.
M586
ISBN 978-85-7334-217-8
CDD 720.288
www.iphan.gov.br | www.cultura.gov.br
Detalhe de lambrequins
Agradecimentos
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Apresentao
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Os Mestres Artfices:
O Tempo Lento da Repetio Criadora
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Sul Catarinense
52
Vale do Itaja
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Arquitetura austro-brasileira
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Planalto Norte
154
Consideraes finais
182
Referncias Bibliogrficas
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Santa Catarina
Stios e localidades
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Agradecimentos
A equipe do projeto
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APRESENTAO
Luiz Fernando de Almeida
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neste quadro mais amplo que devem ser situadas as chamadas tcnicas construtivas
tradicionais, importante saber-fazer a ser preservado como patrimnio intangvel.
Como se sabe, a arquitetura tradicional, fruto de um conhecimento profundo do
meio envolvente e da sua relao com os materiais, um dos mais importantes
testemunhos dos modos de viver de um povo e da viso de mundo de uma
cultura, que se manifesta na presena humana no territrio, integrando contextos
scioeconmicos, tcnicos e culturais. Essa ocupao, no entanto, no pode ser
compreendida (nem preservada) apenas em sua dimenso fsica, na medida em que
repousa, em ltima instncia, num saber-fazer que a gerou: as tcnicas construtivas
tradicionais.
Ao se tratar dessas tcnicas tradicionais no podemos perder de vista que, num mundo
em rpido processo de globalizao e homogeneizao cultural, elas se encontram
crescentemente ameaadas por um processo de rpido desaparecimento. Se esta vai
ser a tendncia dominante, pode ser detectada, no entanto, uma contra-tendncia
no que diz respeito s tcnicas tradicionais: o reconhecimento da necessidade de
se preservar o patrimnio edificado bem como a crescente preocupao ecolgica
tm levado sua revalorizao. Assim que, aos poucos, tem-se desenvolvido todo
um trabalho de pesquisa e recuperao da memria, atravs de vrias estratgias,
desde investigaes em laboratrios at consultas aos velhos mestres. Em alguns
casos, como em Portugal, ao se constatar que havia falta de tcnicos especializados
para a recuperao do patrimnio, chegaram-se a se estabelecer cursos como o de
Mestre de Construo Civil Tradicional, pela Escola Profissional de Desenvolvimento
Rural de Serpa, numa parceria com a Direo-Geral dos Edifcios e Monumentos
Nacionais. Nesta mesma linha, no Brasil a parceria Iphan/Monumenta/Unesco tem
desenvolvido vrios cursos para a formao de oficiais em diversas dessas tcnicas.
E aqui no se trata apenas de se recuperar tcnicas prprias para o restauro: o fato
que muitas dessas tcnicas construtivas tradicionais prestam-se perfeitamente
a uma construo ecologicamente mais adequada, conforme as vises mais
contemporneas de um desenvolvimento sustentvel. Assim, foi unindo essas duas
perspectivas preservao do patrimnio e novas construes sustentveis que
se criaram vrios projetos internacionais, entre os quais pode se destacar a Ctedra
Unesco sobre Arquitetura de Terra, Culturas Construtivas e Desenvolvimento
Sustentvel3 .
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outras prticas da vida social; Livro de Registros das Formas de Expresso, para as
manifestaes literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas; e Livro de Registro
dos Lugares, para mercados, feiras, santurios, praas e demais espaos onde
se concentram e reproduzem prticas culturais coletivas, podendo ainda serem
criados novos livros para abarcar melhor as especificidades do patrimnio.
Como um instrumento tcnico complementar ao registro cultural, o Iphan desenvolveu
o Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC), que tem como objetivo, na
sua formulao oficial, produzir conhecimento sobre os domnios da vida social
aos quais so atribudos sentidos e valores e que, portanto, constituem marcos
e referncias de identidade para determinado grupo social7. Alm das categorias
estabelecidas no Registro, o INRC vai contemplar ainda edificaes associadas a
certos usos, a significaes histricas e a imagens urbanas, independentemente de
sua qualidade arquitetnica ou artstica. Aqui cabe destacar que o inventrio tem
se mostrado um extraordinrio instrumento de preservao, no s por conseguir
trabalhar com uma determinada base espacial cuja escala pode variar referindose a um a vila, a um bairro, uma mancha urbana e mesmo a uma cidade , mas
principalmente por conseguir mostrar, dentro daquela base, as relaes que os
diversos bens culturais tm entre si. Sua metodologia tem a liberdade de ir do geral
ao particular, do material ao imaterial, da tradio reinveno, pois no se prende
a nenhum paradigma imobilizador ou a nenhuma utopia museificante. Ele parte do
princpio que entende a cultura como um processo vivo, e no limite, ele prope, em
seu conjunto, o que chamaria de uma epistemologia com base nas ontologias ou nos
conhecimentos produzidos sobre cada um dos bens inventariados (OLIVEIRA, 2005,
p.3). Assim, como anota Ana Gita Oliveira, o inventrio pode constituir, de fato,
instrumento organizador dos conhecimentos locais em nexos regionais e
nacionais, realizando tambm a sntese da dicotomia, j superada, entre
o material e o imaterial, referida na Constituio Federal de 1988. Vale
lembrar, porm, que essa dicotomia traduziu-se, durante as dcadas de 70
e 80, em uma tenso estruturante do campo patrimonial. O INRC prope a
sua superao. Ele permite ainda entender a abrangncia dos processos
culturais definidores desses bens, do poder transformador dos padres
culturais em curso, identificando as transformaes nas tradies a que
pertencem. (OLIVEIRA, 2005, p.3)
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O desafio da preservao
Finalmente, cabe chamar a ateno para outro
objetivo desse projeto: propor aes estratgias para
a preservao e transmisso do saber vinculado s
prticas tradicionais da construo. Em sua atuao
sobre o patrimnio imaterial, o Iphan tem desenvolvido
planos de salvaguarda, que, na mesma linha proposta
pela Unesco, vo atuar na melhoria das condies
sociais e materiais de transmisso e reproduo, que
possibilitam a existncia do bem cultural de forma
a apoiar sua continuidade de modo sustentvel.
No se trata aqui, como no caso do patrimnio
material, de apenas garantir a preservao de bens
culturais, mas muitas vezes de se garantir o apoio
Moinho tocado com energia
para sua sobrevivncia. Como se tem visto, esse
hidrulica, em restaurao
apoio pode acontecer de formas variadas, podendo
viabilizar desde a ajuda financeira a detentores de
saberes especficos, objetivando a sua transmisso, a organizao comunitria ou
a facilitao de acesso a matrias primas. Nesta perspectiva, o Programa Nacional
do Patrimnio Imaterial j realizou diversos Planos de Salvaguarda, podendo se
citar aqueles concernentes Arte Kusiwa Pintura corporal e Arte grfica Wajpi,
ao samba de roda do Recncavo baiano, ao oficio das Paneleiras de Goiabeiras,
viola de cocho, entre outros. As aes prioritrias nesses Planos de salvaguarda,
pautadas pelas questes observadas nos inventrios e debatidas com os segmentos
sociais envolvidos e interessados, se estruturam em duas linhas gerais: difuso
(produo de filmes, cd-roms e impressos) e articulao/fortalecimento de grupos e
comunidades (reunies, oficinas, etc).
Com isso, se retoma aquele desafio que j se colocava para o Centro Nacional
de Referncia Cultural nos anos 1980: como realizar um trabalho de preservao
orientado a partir da noo ampla e dinmica de referncia cultural? No se trata
aqui, como no caso da noo tradicional de patrimnio, de se preservar apenas em
sua materialidade bens de grande valor, valor esse reconhecido extrinsecamente
por tcnicos dos rgos de preservao. Aqui, ao contrrio, coloca-se a questo da
referncia que esses bens vo ter para os prprios sujeitos envolvidos na dinmica
de sua produo, circulao e consumo, reconhecendo-lhes, como anota Ceclia
Fonseca, o estatuto de legtimos detentores no apenas de um saber-fazer, como
tambm do destino de sua prpria cultura.
No caso das tcnicas construtivas tradicionais, a iniciativa de se realizar, atravs do
Projeto Mestres Artfices, o seu completo inventariamento parece-nos o primeiro
passo de um processo, que teria sequncia com a instaurao de um procedimento
de certificao desses mestres, que poderia se constituir em instrumento eficaz de
valorizao dos saberes tradicionais e, ao mesmo tempo, criar instrumentos legais de
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NOTAs
1. A prpria Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Intangvel, aprovada em 2003,
enuncia: Reconhecendo que os processos de mundializao e de transformao social por um lado
criam as condies propcias para um dilogo renovado entre as comunidades, porm, por outro,
tambm trazem consigo (...) graves riscos de deteriorao, desapario e destruio do patrimnio
cultural imaterial, devido em particular falta de recursos para salvaguard-lo.
2. MINC/IPHAN, 2003, p. 17. Nesta mesma linha vai a Conveno, que define o patrimnio imaterial
como os usos, representaes, expresses, conhecimentos e tcnicas junto como instrumentos,
objetos, artefatos e espaos culturais que lhes so inerentes que as comunidades, os grupos
e em alguns casos os indivduos reconheam como parte integrante de seu patrimnio cultural.
(UNESCO, 2003)
3. Criada em 1991, essa Ctedra Unesco agrupa o (Centro Internacional de Construo de Terra
(CRATerre-EAG), o Instituto de Conservao Getty e o Centro Internacional de Estudos sobre a
Conservao e Restaurao do Patrimnio Cultural
4. Some Considerations on the Protection of the Intangible Heritage: Claims and Remedies. Lyndel
V. Prott. Chief International Standards Section Division of Cultural Heritage, Unesco.
5. The Unesco Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore (1989):
Actions Undertaken by Unesco for Its Implementation. Mrs. Noriko Aikawa. Director Intangible
Heritage Unit, Unesco.
6. A esse respeito, confira BOSI, 1987.
7. http://portal.iphan.gov.br
8. http://www3.accu.or.jp/PAAP/
9. LONDRES, 2003, p. 14.
10. Lanado pelo Governo Federal em outubro de 2009, o Programa de Acelerao do Crescimento
das Cidades Histricas dever destinar, nos prximos anos, R$ 890 milhes para a preservao do
patrimnio histrico nacional. Atravs dele, as cidades histricas contempladas podero receber
obras de requalificao e infra-estrutura urbana e de recuperao de monumentos e imveis pblicos.
Tambm esto previstas aes de divulgao, nacional e internacionalmente, de stios histricos,
espaos pblicos, monumentos e smbolos scioculturais do pas, alm de cursos de especializao
para guias de turismo e da criao de uma pgina na internet bilnge sobre as cidades.
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Os Mestres Artfices:
o tempo lento da repetio criadora
Margareth de Castro Afeche Pimenta,
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Se forem pensados os ofcios, tal qual registrados pela origem e evoluo histrica,
algumas adaptaes devem ser realizadas tendo em vista o contexto de um pas de
capitalismo perifrico como o Brasil. Inserido tardia e subalternamente na economia
mundial, o Brasil apresentar formas particulares de trabalho. No podem ser
encontradas as corporaes de ofcio como foram criadas nas cidades europeias
por ocasio da passagem do feudalismo acumulao propriamente capitalista, que
sero gradativamente incorporadas evoluo das prprias sociedades locais. No
Brasil, os mestres construtores atuais, que no so herdeiros diretos das mesmas
tradies, aparecem, muitas vezes, desvinculados dos trabalhadores aos quais
deveriam comandar ou ensinar. Sem capacidade organizativa, nossos mestres,
apesar de deterem um saber-fazer que poderia ser transmitido, encontram-se, muitas
vezes, em condies isoladas de trabalho, devido, em grande parte, mobilidade e
rotatividade de trabalhadores.
A incapacidade de manuteno da renda pela qualificao profissional tambm
afugenta novos aspirantes, que so impelidos a um emprego pretensamente mais
estvel ou remunerador, desqualificando, muitas vezes, o trabalhador capacitado.
Assim, o critrio maior para se definir, no Brasil de hoje, o mestre artfice ligado
ao setor construtivo s pode ser o prprio domnio do saber-fazer, sem esperar a
reproduo de relaes tpicas dos modelos originrios.
Ao arteso capacitado em diferentes tcnicas construtivas que, por essa razo,
muitas vezes desempenha a funo de mestre de obras, v-se acompanhar o
trabalhador especializado. Tal desenvolvimento de uma especialidade no retirou do
arteso a habilidade ou a destreza naquilo que capaz de desempenhar. Poder-seia, analogicamente, estabelecer uma comparao com a passagem do artesanato
manufatura, com o desenvolvimento do trabalho parcial que mantm e at adestra
a capacitao do fazer:
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Concordando com Adam Smith (2003), Marx no identifica a diviso social do trabalho
com o processo de desqualificao do trabalhador, que ocorre somente quando a
habilidade no fazer transferida para a mquina com a passagem da manufatura
grande indstria.3 Assim, enquanto o trabalhador domina seu trabalho, ele pode ser
considerado qualificado, mesmo com alterao dos instrumentos de trabalho.
Algumas modificaes importantes tambm foram encontradas em relao aos
procedimentos de trabalho4 na pesquisa de campo efetuada em Santa Catarina.
Muitos mestres, apesar de deterem o saber-fazer em tcnicas tradicionais, combinam
trabalhos qualificados com procedimentos modernos, j que no conseguem sobreviver
somente pelo talento de sua capacitao. Poucos mestres encontrados conseguiram
dedicar-se somente s tcnicas tradicionais. Por outro lado, mesmo nestes casos,
foram detectadas transformaes nos materiais empregados e nos instrumentos de
trabalho. As madeiras de carpintaria utilizadas inicialmente desapareceram, porque
foram esgotadas ou proibidas ao uso, no sentido da preservao das espcies em
extino. Ao lado de instrumentos tradicionais e antigos, encontram-se tambm
novos equipamentos eltricos (como furadeiras, serras, etc.). No entanto, o resultado
final do trabalho o mesmo. A tcnica utilizada persiste, ou seja, a forma dos
encaixes permanece, apesar de mais rigidamente desenhados, sem as imperfeies
dos golpes da mo, aplicados diretamente na madeira.
Desta maneira, pode ser considerado um mestre artfice aquele que se serve de
ferramentas diferenciadas. Por algum tempo, considerou-se a introduo da fora
motriz mecnica como o ponto de ruptura entre artesanato e grande indstria, ou
seja, entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato, medido este somente pelo
tempo em que se pe a servio do processo de acumulao do capital. No entanto,
a diferena essencial no pode ser detectada neste ponto, mas sim no domnio do
trabalho pela destreza do homem:
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A origem da fora motriz, que pode ser humana ou mecnica, no define o processo
de desqualificao contnua do trabalhador com a passagem do artesanato
manufatura ou grande indstria. Neste exemplo de Marx, o homem usa a destreza
e a habilidade para a execuo do trabalho: a mo, que trabalha no fuso e estira e
torce. Apesar da utilizao de instrumento mecnico, a mo ainda domina o processo
de trabalho. Em vrias demonstraes, os mestres artesos, apesar da utilizao
de instrumentos transformados em relao s rudimentares ferramentas iniciais,
demonstraram que detm um saber-fazer, aperfeioado por prticas contnuas e
reparadoras. O exerccio da repetio criativa introduz procedimentos aprimorados
e aproxima-se, desenvolvendo uma intimidade com os materiais e os instrumentos,
de um trabalho que pode ser rapidamente transposto de uma avaliao tcnica ao
talento artstico.
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Notas
1. Pela datao apresentada no Dicionrio Houaiss, parece que os termos mestre (de 1255), ofcio
(sc.XIII) e oficial (sc. XIII) precedem, historicamente, o artfice (1517), de carter seiscentista.
A constituio histrica do trabalho artesanal, da Idade Mdia ao Renascimento, provavelmente,
deve estar no interior dessa evoluo.
2. Segundo Houaiss (2001) vagar vem do latim vaco,as,vacvi e vaci,tum,are e significa
estar vazio, desocupado (espao, lugar); ser livre; estar sem ocupao; ser; ter tempo para; ser
redundante. Permite assim, associar o fato de ser livre a ter tempo e poder, assim, realizar tarefas
repetitivas (consideradas redundantes), como ocorria, de fato, no trabalho artesanal.
3. El perodo manufacturero simplifica, mejora y multiplica las herramientas de trabajo,
adaptndolas a las funciones especiales y exclusivas de los obreros parciales., Marx, op.cit., p.
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4. Os elementos componentes do processo de trabalho so: 1) a atividade adequada a um fim,
isto o prprio trabalho; 2) a matria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; 3) os meios
de trabalho, o instrumental de trabalho. Marx, Karl. O Capital. Volume 1 - Parte III. Centelha Promoo do Livro, SARL, Coimbra, 1974.
5. Sem esquecer as colnias na rea que hoje constitui a Grande Florianpolis. Os alemes
chegaram a So Pedro de Alcntara em 1829. (CABRAL, 1970; PIAZZA, 1994)
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O Sul
Catarinense
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OFCIOS DA carpintaria,
marcenaria, cantaria e
ferraria
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Os Mestres Artfices do
Sul Catarinense
A regio sul do estado de Santa Catarina foi ocupada em sua faixa litornea por lusobrasileiros a partir do final do sculo XVII, ao passo que o seu interior foi colonizado
pela imigrao predominantemente italiana a partir da dcada de 1870.
Ocupou-se o litoral sul no mbito das disputas entre Portugal e Espanha pela posse
da regio do Rio da Prata. O porto de Laguna constituiu-se em ponto de apoio
navegao martima nas costas do sul do Brasil. Seu stio privilegiado pelas lagunas
foi escolhido como implantao estratgica. J o interior permaneceu com ocupao
rarefeita at o ltimo quartel do sculo XIX. Suas plancies e encostas at ento
foram utilizadas para a passagem dos caminhos de tropa que, originrios do RS,
demandavam os planaltos catarinenses, com destinao para as feiras de Sorocaba,
entreposto para o grande mercado que eram as Minas Gerais.
Laguna teve ocupao realizada por vicentistas desde 1684, coroando tentativas que
remontavam a 1676. Em 1696, seu fundador, Domingos de Brito Peixoto, deu incio
construo da igreja matriz. Laguna, apesar do pequeno nmero de habitantes,
tornou-se a nucleao mais importante da costa, devido s atividades de exportao:
Apesar da sua insignificncia e do escasso nmero de habitantes, tornou-se
na poca, a mais importante das pvoas existentes na costa catarinense.
(...) ...contava com cerca de 50 casais brancos, assistidos pelo seu vigrio,
gente que vivia da pesca e de uma agricultura rudimentar e cujas fontes
econmicas reduziam-se aos proventos da exportao de peixe seco e
carnes salgadas para Santos e Rio de Janeiro... (CABRAL, 1970, p. 43)
Em 1714, Laguna foi elevada categoria de vila. Seu distrito abrangia a Ilha de
Santa Catarina e o continente do Rio Grande. No primeiro quarto do sculo XVIII,
os lagunistas procederam conquista do Rio Grande. Entretanto, a determinao,
por razes econmicas, de abertura de caminho de tropas do sul para o planalto,
subindo por Ararangu entre 1728 e 1731, fez com que Laguna tivesse diminuda sua
importncia, perdendo a sua condio de ponto de partida e centro de expanso
para o sul (CABRAL, 1970, p. 53).
Na metade do sculo XVIII, para assegurar a dominao portuguesa, povoa-se
o litoral catarinense distribuindo por ele casais aorianos, confirmando-se assim
trs localizaes mais importantes na costa que foram Desterro na Ilha de Santa
Catarina, So Francisco do Sul no norte e Laguna ao sul.
A grande imigrao de europeus no lusitanos, que vai desencadear o povoamento
do interior de Santa Catarina e do norte do Rio Grande do Sul, acelera-se a partir da
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segunda metade do sculo XIX. Seus reflexos na regio sul do estado sero sentidos
nas ltimas dcadas, ao mesmo tempo em que se descobrem minas de carvo na
regio. Para sua explorao, construda uma estrada de ferro que, partindo do
porto de Imbituba, passava por Laguna e em Tubaro, subia o vale deste rio at os
locais da explorao carbonfera. Esse vetor econmico, com sua via de transporte
moderno, impulsionou a economia regional possibilitando a prosperidade das colnias
italianas e de suas pequenas propriedades.
Laguna v reforar-se sua posio porturia e de entreposto comercial ligada
regio colonial dos vales dos rios Tubaro e Ararangu. Laguna constitui um centro
urbano de maiores dimenses junto ao seu porto, com o estabelecimento de casas
comerciais e de servios.
Com a imigrao em desenvolvimento, Tubaro passa a ter importncia na rede
urbana regional. Criada como freguesia em 1836, desenvolvendo-se dada a
excelncia de suas terras, foi elevada a vila, sede do municpio desmembrado de
Laguna, tornando-se cidade em 1890 (CABRAL, 1970).
O movimento colonizador do interior do sul de Santa Catarina por imigrantes italianos
inicia-se em 1877. Comeando pela fundao da Colnia Azambuja, s margens do
Rio Pedras Grandes, em sua confluncia com o Rio Tubaro, teve maior prosperidade
ainda com a fundao de colnia no vale do Rio Urussanga, para onde se transferiu
a sede dos servios de colonizao.
A minerao e sua ferrovia foram elementos modernizadores do mundo de explorao
agrcola que se iniciava com a ocupao dos pequenos lotes rurais pela famlias de
imigrantes. Desde 1861, havia sido dada concesso para explorao de carvo mineral
em Lauro Muller, localidade ento chamada Minas, e entre 1874 e 1885, foi implantada
a Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina para escoar a produo de carvo.
Na continuidade do processo de expanso da imigrao italiana, em 1882 foi instalada
a Empresa de Terras e Colonizao de Gro Par, povoando a partir de 1882 os atuais
municpios de Gro Par e Orleans, para comercializar terras do dote da Princesa
Isabel e Conde dEu.
O stio inventariado apresenta grande influncia da cultura da imigrao italiana.
Aspectos da populao, do idioma e da culinria traduzem esta influncia em sua
religiosidade, suas festas, sua agricultura, suas vinhas e culinria, alm do linguajar
diferenciado. A toponmia alusiva s origens italianas e os sobrenomes marcando as
reas de implantao dos ramos familiares formam um mapa de fortes identidades
tnicas. A cultura material guarda tambm os aspectos da influncia cultural da
imigrao italiana, que se demonstram em edificaes coloniais e religiosas, como
os sobrados e as igrejas, com seus detalhes, que conformaram os ncleos iniciais
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destes povoados. A regio de imigrao italiana faz parte dos Roteiros Nacionais
da Imigrao do Iphan e possui 31 bens e stios edificados tombados pelo estado
de Santa Catarina, distribudos pelos municpios de Urussanga, Lauro Muller, Nova
Veneza, Orleans e Pedras Grandes.
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Eu fiquei l (em Nova Veneza) at a minha idade dos meus dezoito anos,
depois eu sa, fui para So Paulo, fiquei uns 15 anos, 16 anos em So Paulo.
A voltei, fui para Laguna, a, em 75 voltei novamente a Nova Veneza para
restaurar a cpula da igreja de Nova Veneza. Foi em 76 a restaurao l.
Trabalhei um tempo l. E logo em seguida j vim de novo para Laguna, e
estou at hoje. (BOSA, 2010)
E aqui (em Laguna na atividade de restauro) eu comecei, fui trabalhando,
fui... a turma comeou a me conhecer, tal e coisa e outra, ento todos os
servios a, os maiores servios, a, eu fiz a Pinto Ulissa, depois veio a
Candemil. Teve vrias casinhas pequenas no intervalo de uma coisa para
a outra, muitas casinhas pequenas eu fiz, eu restaurei, depois fiz uma
pequena restaurao onde que o prdio da CELESC, o Cine Mussi,
tantas que eu nem me lembro mais qual foi as outras, tantas que eu
nem me lembro mais. Estou aqui (em Laguna) desde 1975. Cheguei aqui
dia primeiro de dezembro de 1975. Surgiu naquela poca a Pinto dUlissa,
atravs do prefeito, que eu me dava muito com o prefeito, Mario Jos
Remor. (BOSA, 2010)
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Fbio conta como chegou a trabalhar no Centro Histrico de Laguna, por sua habilidade em
carpintaria e construo. Em seu percurso profissional, passou a fazer restauros em obras
sob fiscalizao e projetos de arquitetos, o que culminou no curso do Iphan, ministrado
por mestre Alcides Bosa. A partir destas experincias firmou-se a vocao para o trabalho
com tcnicas tradicionais:
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Parede de Pedra em obra de restaurao feita por mestre Fbio da Silva em Laguna
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mentos trazidos por seus ascendentes da Itlia. Em suas propriedades rurais algumas
dessas famlias, com a prosperidade adquirida na lavoura, montaram engenhos para
serrar a madeira que era retirada de suas prprias matas e das redondezas. A famlia
Benedet instalou-se em sua propriedade no quilmetro 107 da ferrovia, no atual
municpio de Lauro Muller.
Gilmar Benedet nasceu em Orleans em 1936. Reside nestas terras da famlia,
na margem esquerda do Rio Tubaro. Trabalhou toda a vida com carpintaria, e
descendente de famlia italiana de mestres neste ofcio.
Os Benedet eram em sete irmos que se instalaram na altura do quilmetro
107 da estrada de ferro. No incio este lugar era conhecido como o corte de
marcela, pois havia muita marcela. Depois da estrada de ferro ficou quilmetro
107. Agora dos Benedet... (BENEDET, Gilmar. 2010).
Gilmar comeou aprendendo carpintaria com seu pai, que montava engenhos e
atafonas. Desde pequeno pegava as ferramentas s escondidas para fazer brinquedos.
Seu pai montou as duas primeiras serrarias do lugar. Antes disso, tudo era serrado
a brao. Com seu pai, ajudou a montar o engenho de farinha.
Tudo era em famlia. Meu pai tinha 47 hectares, meu tio Celeste, outros 47
hectares. Os outros tios tambm tinham a mesma coisa. Era como uma
comunidade, A serraria servia para a comunidade, a casa de farinha, a
mesma coisa. A serraria era movida a roda dgua. O pagamento era feito
trocando um produto por outro. Raro era o pagamento em dinheiro.
(...)
Nos Benedet tudo o que tem de serraria, atafona, engenho de cana,
engenho de farinha e trilhadeira, tudo passou pelas mos de minha
famlia, mais especialmente do meu pai, do meu irmo, Altino, e das
minhas prprias mos. Na serraria, meu pai tinha que buscar a madeira no
mato. As madeiras eram falquejadas e puxadas em carro de boi. Depois
veio o carroo. Depois, ainda, o caminho. A primeira trilhadeira para
o trigo tambm foi feita por meu pai e o meu irmo Altino, para uso da
comunidade. (BENEDET, Gilmar. 2010).
Depois de casar-se, trabalhou um tempo com seu irmo, o carpinteiro Altino Benedet.
Juntos construram serrarias, faziam mveis apenas com instrumentos manuais. A
madeira era falquejada. Os encaixes todos feitos mo com arco de pua, formo e
outras ferramentas manuais.
Aos 25 anos, Gilmar Benedet, tendo que assumir as responsabilidades econmicas
pela constituio de famlia, empregou-se nas minas de carvo.
Mas quando vieram os filhos, em 1961, tive que procurar trabalho na
mina de carvo. Tornei-me operrio durante 15 anos e me aposentei. Eu
era amigo dos operrios. Mais de primeira vez, fui convidado para ser
encarregado, desde que abandonasse a amizade com os operrios. Jamais
aceitei. Mas eu nunca participei de sindicato e em 1974 fui eleito operriopadro. (BENEDET, Gilmar. 2010).
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Gilmar ensinou o ofcio para muitos, pelo menos trs deles ainda hoje praticam a
carpintaria, caso de Jos Antnio Benedet, seu sobrinho. Ensinou para os sobrinhos,
tinha pacincia e gostava de ensinar.
Jos Antnio Benedet nasceu em Orleans, em 1962, filho de Nair Leal e Altino
Benedet. Jos descendente de uma famlia de carpinteiros. O seu av, procedente
da Itlia, j tinha conhecimentos da profisso de carpinteiro.
Jos Antnio tem diploma universitrio de muselogo, mas diz que gosta mesmo
de apresentar-se como carpinteiro e trabalha tambm com restauro.
Jos Antnio ainda estava estudando no 2 grau (antigo ginsio) quando comeou
a trabalhar com seu pai. Cresceu vendo-o montar o Museu ao Ar Livre em Orleans.
Aprendeu a trabalhar com a madeira ajudando seu pai na construo e manuteno
de artefatos em madeira. Durante o dia trabalhava no museu ajudando seu pai
na construo e manuteno das edificaes e maquinrios em madeira e noite
estudava. Quando no tinha trabalho no museu, trabalhava na roa onde plantava
de tudo um pouco:
Tudo o que aprendi, devo ao meu pai. Ele era um mestre, tinha aquele jeito
italiano rigoroso. Um olhar seu bastava. Queria as coisas certas. Eu tinha
que fazer tudo certo, tudo com muito capricho. (BENEDET, J. A.. 2010).
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Recentemente fez, sozinho, uma roda dgua que integra a ferraria do museu.
Comeou preparando a madeira na forma e tamanho adequado. Montou pea por
pea com os instrumentos tradicionais como formo, serra e plaina manuais, bigorna,
cabea de malho, torno, moldes, entre outros.
Nas demais atividades de manuteno do museu tambm procura usar os
instrumentos disponveis em cada parte do prprio museu, da marcenaria, do galpo
de ferramentas, da serraria pica-pau e da ferraria na qual mantm e preserva
instrumentos como arco de pua, serra circular manual, entre outros. O Museu ao Ar
Livre em Orleans possui considervel acervo de instrumentos de trabalho que Jos
conserva e possui conhecimento detalhado sobre os seus usos.
Atualmente est procurando um jovem que queira aprender carpintaria, ocupao
que mais gosta de desempenhar.
Italino Bez Fontana nasceu em Urussanga em 1936. Descendente de famlia de
mestres marceneiros e carpinteiros, aprendeu o ofcio com mestres carpinteiros na
localidade de Rio Maina. O pai e o av trabalhavam com madeira, e ele chegou a
trabalhar com os quatro irmos.
Italino empregou-se como carpinteiro nas minas, trabalhando durante mais de 30
anos na Companhia Carbonfera Urussanga. Nas minas fazia caixas para embarque
de carvo, lavadores, mesas concentradoras para separao de carvo e telefricos
para seu transporte.
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Mestre marceneiro Alaor Antonio da Silva confeccionando lambrequins na marcenaria Bez Fontana
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As entrevistas com os trs irmos foram feitas em dias e lugares diferentes, pois
moram em localidades diferentes. Os pontos de vista expressos pelos mestres,
entretanto, coincidem e reforam as tradies da transmisso do conhecimento, do
aprendizado e prticas comuns dos mestres cortadores de pedras e canteiros da
regio de colonizao italiana de Urussanga.
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Nicanor Zavarize nasceu em Urussanga em 1950 e trabalhou com pedras a vida inteira.
Considera forte a relao dos italianos com esta atividade. Quem mexe com pedra
mais os italiano mesmo, afirma, com seu falar breve e preciso. Indagado, tambm
define sem pestanejar, com preciso e sntese mpares sua atividade: Cantaria
pegar uma pedra bruta, ir lascando at deixar ela retinha. (ZAVARIZE, Nicanor. 2010)
Tudo comeou brincando porque o pai trabalhava com pedra. Ento,
de manh, eu ia pra aula, de tarde, ia acompanhar o pai na pedreira e
brincando, brincando, l eu comecei. (...) O pai trabalhava o dia inteiro
cortando pedra e eu ia para a aula na parte da manh, de tarde ento ia
l ajudar, pegava umas pedrinhas pequenas, comeava a bater e assim
comeou. (...) Eu estudava l em Porto Alegre, que no caso naquela poca
o pai morava em Porto Alegre, da, fiz a quinta srie, o pai veio pra c,
da, aqui partimos para o servio. (...) Catorze anos eu j comecei, quando
eu vim de Porto Alegre comecei aqui, da, j praticando o dia inteiro,
no trabalhar mesmo na verdade, mas tava o dia inteiro na pedreira...
(ZAVARIZE, Nicanor. 2010)
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Comecei na pedreira. At 79 na
pedreira, dali para frente comecei
na construo. Na pedreira mais
grosseiro. Chegava num terreno,
olhava a pedra, achava que servia,
da, pedia pra falar para o dono do
terreno se cedia a pedra. A gente olha
se ela mais lisa, se no tem veia, no
caso. (O dono cobra) porcentagem.
Na poca era 7%, hoje no sei se
ainda isso. Foi de 71 a 79 que eu
trabalhei na pedreira. A, comecei
nas construo. Cantaria e colocao
tambm. No caso, no comeo era
poro de casas. A, revestimento de
parede, depois veio a cantaria. O
poro feito, mesmo, todo de pedra.
(ZAVARIZE, Nicanor. 2010)
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Ferramentas de cantaria
Ponteiros feitos por mestre Antenor Zavarize
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(Beneficia para)...revestimento de
casa, mais mesmo para adega.
Adega tem umas quantas feitas por
a. Poro de casa tambm tem. E
calada, tem muita calada de pedra
tambm. J foi feito bastante (coisas
para igrejas, marcos de portas)...
(esculturas) de pedra, fizemos...
(ZAVARIZE, Nilton. 2010)
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Consideraes finais
O sul catarinense modernizou-se de forma acelerada pela acumulao de capitais
oriundos da minerao e pelos processos de industrializao que a sucederam. Suas
cidades cresceram prsperas por longos perodos, enfrentando inevitveis crises,
superadas por uma sociedade que alterava as suas feies a cada ciclo vivenciado.
As formas de viver e de produzir alteraram-se, mas um fundo comum contnuo
permanece presente, constitudo por uma cultura que se moldou numa paisagem,
inicialmente ameaadora, transformada pelo trabalho de sucessivas geraes.
Os saberes dos ofcios tradicionais no sul catarinense foram
transmitidos de gerao para
gerao, sobretudo pelas relaes familiares e atividades
econmicas que tinham continuidades hereditrias. Algumas famlias mantiveram-se
nesses
ofcios
tradicionais,
reproduzindo as suas formas
de fazer at a atualidade. A
continuidade da manuteno e
da guarda deste saber prtico,
que no sobrevive sem o
exerccio contnuo da atividade,
est ameaada. Os relatos
apontam quase sempre para a
perda do elo que por geraes
Paisagem da regio de imigrao italiana do sul catarinense de descendentes de imigrantes
Belvedere, Urussanga
manteve vivos os vrios ramos
ligados construo e arquitetura tradicionais. Por inmeras vezes repetiuse a frase: o que vocs esto procurando no existe mais. Mas a persistncia
na indagao produzia nos interlocutores o efeito de buscar pela memria, e os
caminhos da identificao dos velhos saberes iam se abrindo.
Os saberes tradicionais ainda esto presentes nos gestos precisos, nos olhos e
ouvidos atentos, treinados pelo trabalho junto aos mestres, no domnio dos materiais
e das ferramentas que lhes do forma. A dificuldade de continuar colocando-os em
ao, em atividades capazes de manter a reproduo da vida desses e de outros
mestres artfices que podero vir, um desafio para a atualidade.
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Vale do
Itaja
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OFCIOS DA carpintaria,
marcenaria, cantaria,
pintura e Olaria
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Os Mestres Artfices do
Vale do Itaja
O stio e a paisagem cultural do Vale do Itaja
A delimitao do stio do Vale do Itaja para organizao dos ofcios e dos mestres
das tcnicas construtivas tradicionais dada por uma srie de fatores, como
questes geogrficas, migratrias e influncias culturais dos colonizadores, forma
de urbanizao e de industrializao desses espaos, que refletem na manuteno
dos ofcios e tcnicas construtivas.
O stio do Vale do Itaja formado pela juno das localidades do Mdio Vale e do
Alto Vale, devido a sua relao e interdependncia histrica, inclusive nos ofcios e
na manuteno de tcnicas tradicionais. A conexo entre as localidades do Mdio
Vale e do Alto Vale, atualmente, feita por uma rodovia principal, a BR-470. Essa
ligao era feita anteriormente atravs da malha ferroviria ou por diversas estradas
antigas de pequeno porte, ainda existentes. A maioria desses caminhos ainda de
terra ou foram caladas por calceteiros. Essas vias tm relao com as migraes
internas, j que os mestres se deslocam constantemente entre as localidades. Estes
deslocamentos, bem como a inter-relao e a interdependncia histrica entre estas
localidades, dificultam a delimitao de regies culturais.
Existe uma identidade aparente, indicando traos culturais
comuns, que perceptvel ao olhar, at para quem no
est inserido no contexto e no cotidiano local. Edificaes
histricas enxaimel, com estrutura de travamento de madeira
que utilizavam canela preta e elementos especficos de
cermica, como tijolos feitos sob medida e telhas planas ou
chatas produzidas somente na regio (Blumenau, Pomerode
e Rio dos Cedros). A utilizao de pedras de granito rosa e
cinza um dos fatores que reforam essa identidade local,
pois so extradas na localidade e utilizadas nas fundaes,
nos muros e nos calamentos das cidades, inclusive fazendo
desenhos e demarcaes de piso com a utilizao do mesmo
material, mas com cores diferentes (em Timb, por exemplo).
A Igreja Matriz de Blumenau e a Igreja Matriz de Brusque,
construdas na dcada de 1950 e 1960, com estas mesmas
pedras de granito retiradas do Alto Vale, demonstram a
relao entre essas duas localidades que formam o stio do
Vale do Itaja.
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Serraria em Ibirama
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As paisagens locais
Na maioria dessas localidades, temos a ocupao nos fundos de vale, nas margens dos
principais rios e ribeires. Atualmente, o que fica bem caracterizado, principalmente
nas localidades menores e mais afastadas, a manuteno parcial (no de todas)
das encostas sem urbanizao e marcadas por algum ponto referencial na paisagem,
como as igrejas, por exemplo. Isso facilita muito a leitura da paisagem, a percepo
do ambiente natural, relevo e formas de ocupao dos espaos naturais. Igrejas de
comunidades de descendentes de italianos no alto dos morros em Rio dos Cedros,
igreja enxaimel em cima do morro em Benedito Novo e a relao entre pontos
marcantes em cima dos morros em Ibirama (igreja, antigo convento, novo frum)
so alguns bons exemplos.
A preservao dessas encostas uma necessidade no apenas da paisagem, mas
tambm como forma de apropriao do espao, assim como fizeram os antigos
imigrantes. Regularmente ocorrem deslizamentos. A interdio de rodovias que ligam
estas pequenas localidades um fato normal, assim como as enchentes e enxurradas.
Em algumas cidades permanece essa relao, porm, em outras, o legado histrico
ignorado. Em Rio do Sul, ocorrem os dois fatos. Permanece a relao com a forma
de apropriao do espao pelos imigrantes em algumas localidades mais retiradas,
como Rio Sellin, mas ocorre tambm uma inverso na leitura da paisagem urbana na
regio central. Diversos viadutos e um sistema virio cruel aos pedestres, com at
seis pistas em mo nica, formam uma grande rotatria na rea central, prejudicando
a leitura da paisagem e de seus elementos mais significativos, dificultando inclusive
a localizao espacial na cidade.
Como forma de integrao entre a paisagem natural e a paisagem construda,
temos o exemplo da Rota do Enxaimel em Pomerode. Mas essa mesma forma de
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apropriao ocorre em diversas outras cidades que poderiam ser mais valorizadas
implantando um sistema de rotas, porque, assim, teramos a leitura e a percepo
real entre o ambiente natural, as intervenes e o modo como esses espaos foram
culturalmente apropriados. Devem ser pensados nestes termos algumas localidades,
como a de Mulde em Timb, Rio Sellin em Rio do Sul, em Rio Cerro e Nereu (casas
italianas de tijolo macio e enxaimel alemo) em Jaragu do Sul e o interior da Vila
Itoupava em Blumenau, alm de diversas outras espalhadas no stio do Vale do Itaja.
A presena do enxaimel marcante nos bairros rurais, pelo menos naqueles mais
antigos, que desenham uma rede de estradas paralelas s estradas mais usadas, as
estradas velhas, que, em si mesmas, explicam por onde se deu a colonizao do
Mdio e Alto Vale. Localidades como o Warnow em Indaial, o Rio Sellin em Ibirama,
o Mulde em Timb se comunicam por estradas rurais que atravessam os vales,
rodeadas de casas no estilo alemo ou italiano, muitas do incio do sculo XX e
algumas do fim do sculo XIX, acompanhadas de galpes e construes funcionais,
com os morros ao fundo. As casas nessas localidades, a maioria com enxaimel
alemo ou de tijolos macios italiano, so algo rebuscadas e agradveis, alm de se
harmonizarem com a paisagem rural.
Algumas dessas casas apresentam pinturas nas paredes internas, com padres
feitos a partir de moldes, outras contm desenhos nas paredes externas feitos com
os tijolos macios mais e menos queimados. Nessas casas moram os de origem,
como se classificam os que so descendentes de europeus, que so, s vezes, muito
pobres. Parece que este homem do interior, no decorrer das geraes, acaboclou-se,
adquirindo os hbitos da populao preexistente quando chegaram ao local. Andar
de ps descalos, preferir a comunicao oral escrita, fumar palheiro e tomar
cachaa, dormir na rede so hbitos comuns, junto com tocar pisto ou acordeom,
comer marreco ou polenta, e falar alemo ou italiano.
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produo. O filho do sr. Behling, havia trabalhado naquela marcenaria quando criana
e mostrou o sistema de funcionamento das mquinas.
Nessa regio, encontram-se tambm as olarias que produzem a telha plana. As trs
visitadas, esto entre as cinco que existem no Brasil, segundo os oleiros locais.
So olarias rudimentares a caminho da industrializao ou extino. Elas possuem
graus diferenciados de mecanizao, e duas delas ainda queimam a cermica num
processo que exige que se passe noites em claro cuidando dos fornos primitivos
feitos de barro. A mais rudimentar fica em Pomerode, na estrada para Blumenau.
Ali, a nica mquina utilizada a maromba, todo o resto feito de maneira manual.
A cermica Fischer, por exemplo, passou a automatizar o processo de produo
de telhas chatas, embora o forno queime num sistema rudimentar alimentado por
lenha. J a cermica Lenzi, em Rio dos Cedros, onde s funciona maromba, o forno
alimentado por uma mquina que queima a serragem dentro do forno, dispensando
o trabalhador da tarefa de alimentar a fogueira, que chega a 1000C.
Pode-se considerar que as tcnicas tradicionais esto estreitamente vinculadas s
tradies da cultura onde se localizam. No Vale do Itaja, os alemes prestam muita
ateno manuteno da identidade regional, relacionada aos traos culturais do
pas de origem. Adaptando-se ao meio diferenciado, fizeram crescer aqui uma regio
bem diferente do restante do Brasil, cujo patrimnio edificado se combina culinria,
s festas e religiosidade, para conformar um local impregnado de caractersticas
distintivas. Assim, os mestres puderam dar sua contribuio desenhando e construindo
os exemplares arquitetnicos que constituem a paisagem atual.
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Carpinteiro enxaimel
A relao entre a tcnica do carpinteiro enxaimel com a arquitetura
local, atualmente, d-se com a necessidade deste tipo de mo-deobra qualificada para execuo de obras de restauro ou reformas
de edificaes enxaimel. Se historicamente o mestre carpinteiro
enxaimel tinha importncia na construo de casas novas, hoje
em dia isso no acontece mais. Apenas um mestre encontrado
estudou a tcnica especificamente para a construo de novas
edificaes utilizando o travamento de madeiras, conforme o
enxaimel. Na viso deste mestre diferenciado, que aprendeu
estudando e no na prtica, o enxaimel a melhor representao
cultural da identidade local, visto que as pessoas se identificam
com esta arquitetura. Percepo esta, ligada diretamente com sua
viso mais crtica ao falso enxaimel, que o Poder Pblico tenta
vender como identidade local. Cansado de ver a reproduo deste
falso cenrio e preocupado com o desaparecimento das edificaes
histricas originais, tenta reinserir no cenrio local novas
construes enxaimel, o que acontece muito esporadicamente.
Cartaz do seminrio
ocorrido em Pomerode
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Houve ento uma ruptura entre os antigos construtores enxaimel que dominavam a
tcnica e os mestres atuais. A maioria dos mestres atuais fizeram tambm um curso
prtico (mas de curta durao) com arquitetos e um mestre alemo que dominava a
tcnica do enxaimel; e isso, principalmente, que os diferencia dos demais tipos de
carpinteiros encontrados em outras regies.
Os principais carpinteiros do enxaimel so pedreiros que fizeram o curso de enxaimel
oferecido pelo Iphan, Secretaria de Cultura de Pomerode e Fundao Catarinense de
Cultura. Entre eles, podemos destacar o sr. Lauro Grassmann que trabalha com seu
irmo Ivo Grassmann, e so conhecidos na regio como os irmos Grassmann de
Jaragu do Sul; e o sr. Sido Muller que trabalha com seu fiel parceiro Lino Siberino,
e so conhecidos na regio como a dupla Sido e Lino de Pomerode. Sabem executar
uma srie de tcnicas tradicionais por se dedicarem ao trabalho com restauro. O
processo de trabalho e a tcnica utilizada por eles so parecidos, com algumas
particularidades. Em geral, eles fazem primeiro um laudo tcnico (visual), analisando
o estado de conservao para definir o que deve ser substitudo ou pode ser restaurado.
feito ento um oramento, com as quantidades de material. Desmonta-se a
construo e substituem-se as peas estragadas. Em alguns casos, no necessrio
desmontar toda a edificao. Neste caso, quando preciso substituir os barrotes,
tem que macaquear a casa toda e os fechamentos tambm podem permanecer. Se a
edificao foi desmontada, necessrio reconstruir da mesma forma que se constri
uma edificao nova, primeiro toda a estrutura de travamento de madeira, desde a
base at o telhado, depois a cobertura e s por ltimo o fechamento, que pode ser
de cermica, tipo tijolo vista (Blumenau) ou rebocado (Joinville), de madeira ou de
taipa (estaca de madeira rachada com machado na vertical ou horizontal, s vezes
tranado de bambu, palmito, canela branca ou cedro).
Lauro Grassmann sabe fazer a anlise do reboco na hora, para ver se possui pelo de
animal ou capim na massa e conta como faz a sua massa:
A gente faz uma anlise do reboco, da, j v o que que foi usado. Bom,
pelo de animal, onde que ns vamos conseguir tanto pelo de animal?
Antigamente era fcil, porque todo mundo matava os animais em casa, da,
guardavam os pelos, pra fazer o trao. Mas hoje em dia no existe mais.
Substitui por capim. Alguns no tm nada, s vezes s cal, areia e barro,
existe tambm. Da, a gente vai misturando at que chega l no ponto. Tem
que lamber. [...] Quando lambe sente o gosto, se mais de barro sinal de
que no t boa ainda. (GRASSMAN, 2010).
Ele prepara a massa e a lambe para sentir o gosto. Pelo gosto, identifica se tem
muito barro, o que torna a massa quebradia, ento acrescenta mais areia, por
exemplo. Tambm espalha a massa em uma superfcie, analisa visualmente e vai
acertando o trao, at chegar ao ponto desejado.
Sido Muller tambm no possui uma frmula exata para acertar o trao do reboco:
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Travando a estrutura e
inserindo o pino
Volles afirma que os imigrantes construram casas enxaimel porque eram casas que
apontavam para o futuro, a ideia da pr-fabricao.
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H uma pesquisa pessoal que Volles vem fazendo para encontrar evidncias disso.
Mas muito difcil, pois na poca da represso cultura alem a maioria dos
documentos foi queimada ou extraviada. Segundo ele, existem casas idnticas em
regies diferentes da cidade, o que o leva a concluir que realmente houve uma
padronizao do enxaimel.
A importncia patrimonial, no entanto, no era reconhecida nos anos 80 e 90, com
rpidos processos substitutivos. Volles, por isso, pensa estar resgatando a identidade
da cidade:
Blumenau cresceu muito nos anos 80 e 90 e ocorreu um sentimento de
perda da identidade. As pessoas de fora vinham, compravam imveis
histricos, botavam abaixo e construam prdios sem nenhum contedo,
simplesmente uma caixa de concreto, erguida, ALUGA-SE. Fui obrigado a
fazer algo para no perder essa identidade.
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Heinz considera que est ensinando seus mestres de obras e seus pedreiros o tempo
todo, durante as obras. Coordenou um curso de carpintaria que o SENAI ofereceu
nos anos 90. Tambm foi convidado para coordenar o curso de interpretao de
projetos, mas no assumiu.
Altino Trisotto um pedreiro de Rio dos Cedros, que apesar de ter evoludo conforme
a necessidade da construo civil local, nunca deixou de executar trabalhos
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Seu pai, que faleceu em 2010, aos 95 anos, foi carpinteiro e gostava de marcenaria.
Foi ele quem ensinou Altino a trabalhar com madeira, a fazer madeiramento de
telhados, etc. Sobre a construo antiga, nos conta que:
O rejunte tradicional era feito exclusivamente com cal virgem. A massa era
feita somente com barro, areia e cal virgem. No estuque, o sarrafeamento
era feito com ripas de palmito, barro, areia, cal, capim ou pelo de porco.
Para fazer fogo a lenha, faz o reboco com cal, areia e barro e deixava
curar. Usavam cimento tipo queimado, sem ondulao, com vermelho (p
xadrez). A fundao era de pedra. A parede era dupla, feita com o tijolo
macio deitado (com barro, areia e cal). Antigamente, no se tinham pregos,
tinha que se usar o mnimo possvel. Mas se precisar fazer qualquer coisa
dessas, s pedir que eu ainda sei fazer. (TRISOTTO, 2010).
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Tijolos cortados
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O refinamento da marcenaria
Os marceneiros encontrados nesta regio fazem a marcenaria
mais refinada, trabalham em obras de restauro e so capazes
de reproduzir diversos formatos e detalhes de adornos, inclusive
fabricando seus prprios instrumentos necessrios para cada tipo
diferente de restauro, pois sabem fazer as facas, por exemplo.
Mestre marceneiro Lodimar Henschel
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O sr. Wienhage ensinou para aprendizes quando trabalhava na carpintaria Lotth, de Srgio
Murrad, popular Beto Carreiro. J foi solicitado pelos cursos de arquitetura e engenharia
da FURB para ensinar encaixes de marcenaria e carpintaria aos alunos do curso.
Lodimar Henschel comeou com o av, que passou o ofcio para o pai, que passou
o ofcio para ele, que, infelizmente, no o passou para mais ningum. Pensa que se
tivesse tido um filho homem, este aprenderia o ofcio tambm:
Em 1952, o pai abriu uma marcenaria na Itoupava Central, em Blumenau .
Eu era o nico homem dos filhos, cresci na marcenaria. Foi ali que comecei
a trabalhar com nove ou dez anos de idade e continuo o ofcio de marceneiro
at hoje, sempre no mesmo lugar. Em 1965, o motor estacionrio a
diesel da marcenaria foi substitudo pela energia eltrica, antigamente
era movida a roda dgua. Meu pai faleceu h um ano [em 2009], antes,
sempre trabalhei junto com ele. uma pena que no tive filho homem,
quem sabe ele podia ter aprendido esse ofcio. (Lodimar Henschel)
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Devido a um problema fsico, tinha muito medo de subir nos andaimes, que chegam
a ficar a nove metros de altura, mas se sente muito feliz quando finaliza uma obra.
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O trabalho de cantaria
A tcnica do canteiro algo constante na construo da paisagem e na adaptao
ao stio fsico. Como as ocupaes se desenvolveram principalmente nos fundos dos
vales, a populao local teve que dominar as encostas, caractersticas do relevo local,
com a utilizao de muros de pedras, tanto para a conteno, como para adaptao ao
relevo acidentado. Alm disso, o material muito utilizado tambm nas partes mais
baixas das cidades, em locais onde ocorrem cheias e enchentes com determinada
frequncia. Material este que passou a servir de referncia para a configurao da
arquitetura do local.
O canteiro encontrado em Blumenau, no Mdio Vale, domina a tcnica da cantaria e
faz muito trabalho com o granito procedente do Alto Vale. Clair da Silva denomina-se
canteiro, de cantaria, arte da pedra. Aprendeu aos treze anos de idade, quando era
ajudante do padrasto e trabalhava tirando pedras para barragens em uma pedreira.
Foi aprendiz por dois anos de Anacleto Testoni, mestre em cantaria, at a morte
deste. O Mestre Anacleto era descendente de uma famlia de canteiros e havia
herdado a profisso de seu pai. Clair foi para Blumenau com trinta anos e resolveu
optar pelo ofcio:
Optei por trabalhar com pedras porque ali haviam muitos morros, que iam precisar de muros.
Tambm porque gosto muito do trabalho com pedras. Aprendo tambm estudando as obras
antigas dos egpcios e astecas que vejo em documentrios e revistas.
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arredondado, onde tinha que deixar a pedra cnica. Consegue o formato que o desenho
propor, o segredo trabalhar conforme o veio da pedra. Domina tambm a tcnica
de fuga-seca, ou seja, assentamento de pedras sem argamassa. Demonstrou como
a pedra deve ser trabalhada para ficar bem plana. Trabalhou no restauro da igreja de
Blumenau, e lembra que l as pedras eram assentadas assim e tinham uma espcie
de rejunte entre elas por fora, feito de uma argamassa avermelhada:
Os padres tinham guardado a receita da massa, com a quantidade que tinha que ser posta
para ficar na mesma colorao.
Na regio do Vale trabalha com a pedra grantica, mas no oeste usa a pedra-ferro e
o arenito. Ele mesmo fabrica e tempera seus instrumentos:
Quando o ponteiro no est bem temperado podem voar fragmentos de metal, na velocidade
de uma bala. Eu mesmo fabrico e tempero meus instrumentos.
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A atividade ocorre num rancho de meia-gua, sem paredes, construdo pelo patro
num espao alugado, beira da BR-470. Trabalha com os granitos rosa, cinza,
azul e verde, que so explorados na localidade. Utiliza apenas ponteiros, cunha,
recravador, marreta e alavanca, alm dos culos de proteo. J tentou trabalhar
com madeira, mas ficou com saudade do trabalho com pedra. Gosta da liberdade que
tem no trabalho. Mesmo sendo registrado, no tem patro e nem encarregado, pode
trabalhar na hora em que quiser, pois ganha por produtividade, por pedra. Ensinou
ao filho de 16 anos o que sabe sobre a cantaria, mas no o incentivou a permanecer
na profisso porque acha um trabalho muito pesado.
O processo produtivo comea na mina, com a extrao do material, quando se
explode a pedra de acordo com os seus veios. A pedra grande, o chamado molo,
entregue pela pedreira - essa foi a primeira atividade que Lindomar desempenhou,
antes de se tornar cortador. Segundo ele, o segredo da cantaria achar o veio da
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pedra. a face, o sentido da pedra onde ela trabalha, que racha com uniformidade.
Depois, deve-se marcar os pontos onde vo ser feitos os ponchotes, que so os furos
onde se coloca a cunha. Para isso, deve-se riscar a pedra, com rgua metlica, de
acordo com as dimenses das peas que se quer cortar, marcar os pontos e fazer os
furos com o ponteiro (ferramenta), sempre trabalhando na metade da pedra. Isso
feito, basta colocar a cunha nos ponchotes e com uma leve batida, a pedra racha
exatamente no ponto que o mestre quer.
Lindomar diz que o resultado do seu trabalho so pedras para paraleleppedo, muros,
pedras para calamento, caladas e para encomendas especiais, como mesas, lareiras,
bancos, etc. Num dia comum, faz de 40 a 50 peas de dimenses de 20 cm x 20 cm x
40 cm. H distino das pedras que so procuradas, dependendo do usurio:
Essas pedras so destinadas a pessoas em geral, particulares e no caso
dos paraleleppedos so bastante procuradas pelas prefeituras. O pblico
abastado, porque as pedras so muito caras. Na pedreira se vendem pedras
mais baratas, mas s irregulares, no esquadrejadas assim.
Sobre as transformaes diz que mudou s o tamanho de pedra, pois antes era maior.
Agora menor, porque melhor para os pedreiros trabalharem, mais leve
para carregar.
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Com relao ao processo de trabalho, para o calamento de uma rua, geralmente tinha
apoio de um engenheiro agrimensor. O segredo era deixar os dois meio-fios no mesmo
nvel, e trabalhar sempre com a mesma curvatura ou embaulamento da rua:
Primeiro faz a terraplanagem, o meio fio e bocas de lobo. Precisava cuidar
para as residncias no ficarem muito abaixo do nvel da rua. O melhor meiofio era o de pedra, tinha que ter 30 cm de altura, 20 cm eram enterrados
e 10 cm ficavam acima do nvel do calamento. Depois, colocavam uma
camada de areia de mais ou menos 10 cm para lajota, para paraleleppedo
tinha que ser mais. A rua tinha que ser embaulada, um pouco mais alta
no meio e vir descendo. Assim a gua no cria poas, sempre corre para
a sarjeta. Para firmar o calamento, como no tinha o vibrador, passava
primeiro o caminho pipa da prefeitura vazio. Depois iam enchendo e
passando, at poder passar com todo o peso do reservatrio do caminho
cheio. Quando o calamento est pronto, se coloca uma camada de areia.
O segredo no varrer a areia que est por cima at depois de trs meses,
quando a areia j est bem assentada.
Ensinou o ofcio para aqueles que trabalharam com ele, como Beto Grandoski e
Osmar. Conta que a comunidade gostava do seu trabalho e era bastante elogiado. A
atividade foi seu meio de vida e sua principal fonte de renda. Mudou-se para Ascurra
em 1985, pois tinha muito trabalho ali. Agora est aposentado e faz trabalhos
artesanais, como casas em miniaturas e barcos em madeira.
129
130
Seu filho chegou a trabalhar com ele, entretanto no seguiu a profisso. Ensinou
o ofcio a Valmor de Andrade, de Getlio Vargas - SC, com quem trabalhou por 17
anos. Atualmente tem como aprendiz o sr. Dagoberto. Quando comeou a trabalhar,
usou ferramentas manuais, durante quatro anos, at poder comprar as mquinas
modernas. Antigamente s usava-se o serrote, cepilho, traador e o enx.
Com relao ao processo de trabalho, Horst detalhe as etapas:
Primeiro faz um oramento da madeira. Se for trabalhar em uma obra
de restauro comea a repor as peas estragadas. Quando so telhados,
faz de acordo com as plantas e com base na experincia. Instala os
barrotes, ps direitos, linhas, travessas, mos francesas, os fechamentos.
Faz a cobertura e s depois o assoalho. Quando armava a cobertura, era
realizada a festa da cumeeira, com cerveja e churrasco. Hoje em dia essa
festa no acontece mais aqui.
Se Horst no tem mais participado de festas desse tipo, elas ainda se realizam e se
mantm dentro de algumas poucas tradies no ramo da construo.
Festas e rituais
Uma das coisas que chamou a ateno nos relatos dos mestres foi a recorrncia
da lembrana da Richtfest, ou festa da cumeeira, principal manifestao ritualstica
praticada pelos mestres. Enquanto outras manifestaes eram apenas histrias
lembradas por folcloristas, a lembrana do Richtfest aparece em quase todos os
relatos, como manifestaes reais, presenciadas pelos carpinteiros e pedreiros, alis
caracterstica observada tambm em outras regies. A origem alem (Richtfest foi
traduzido como festa da erguida) e conta com a prtica de se amarrar um ramalhete
de galhos de plantas nativas na cumeeira do telhado.
Na poca ns sempre tinha, hoje eles no usam mais, mas quando ns
fazia a estrutura de uma casa, quando acabava os caibros em cima, da,
botava uma palmeira em cima e, da, dava um churrasco. Hoje a gente
no costuma mais botar, mas na poca ns sempre botava. A casa tava
armada, ns pegava um galho de qualquer rvore, no precisava ser
coqueiro, pegava qualquer rvore, quebrava um galho e pendurava l
em cima. Da, o patro j sabia, o dono da casa, que ele tinha que fazer
um... Isso uma tradio. Em portugus, no sei, em alemo se chama
Richtfest. (Sasse,2010)
131
Depois de colocado o galho, qualquer que fosse, o dono da casa devia pagar um
churrasco com cerveja ou cachaa para os trabalhadores, tal qual relata o Mestre
Mildon Grossl, do Planalto Norte:
Quando era armado, na armao, da, ponhava um pinheirinho em cima,
da, festejava. Quando era armada a casa, a, j era combinado de molhar
a garganta. A, ele [o dono da casa] tinha que dar festa. O nome da festa
Richtfest em alemo. Em portugus festa de armao. Isso quando eu
era um pi. Da, eles furavam uma linha dessas e faziam um torno de pau
e cada macetada que o dono da casa dava era uma cerveja, uma caixa de
cerveja. Se intalar tudo, da, tinha que pagar bastante. Ah, isso s vezes
dava uma bebedeira (risos).
Essa festa foi associada por alguns, atualmente, ao churrasco da lage. Mas quase
todos constataram que essa festa no mais to comum assim:
Quando a casa estava armada, se colocava um galho de alguma rvore no
topo, a, o dono devia pagar um churrasco, com comes e bebes. Hoje no
se faz mais. (Sasse, 2010)
Assim como Sasse, Horst sente a falta da Richtfest, a festa da erguida, que no
acontece mais na sua regio:
Quando armava a cobertura era realizada a festa da cumeeira, com cerveja
e churrasco. Hoje em dia essa festa no acontece mais aqui.
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Notas
1. Embora em Pomerode, por exemplo, existam
construes
enxaimel
urbanas
preservadas.
No Warnow, na Vila Itoupava e em Timb
tambm existem construes com caractersticas
urbanas. Geralmente se tornaram urbanas pela
expanso da malha da cidade.
133
arquitetura
austrobrasileira
134
OFCIOS DA construo e
da carpintaria
136
Os mestres da arquitetura
austro-brasileira
Quando o aprendizado da tcnica , ao mesmo tempo, transmisso da
cultura, o fazer e a expresso tornam-se indissociveis. Assim so os
mestres construtores de Treze Tlias.
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Os vnculos com a ustria ainda so muito fortes entre os habitantes de Treze Tlias.
Muitos moradores de Treze Tlias ainda tm parentes na terra de origem, o que permite
viagens regulares. Outros, devidos dupla nacionalidade, podem permanecer mais
tempo por l, trabalhando. Existe uma forte migrao procura de emprego, visando,
em geral, melhores salrios para a formao de alguma poupana domstica. Na
maior parte dos casos, os mestres deslocam-se primeiro, sozinhos, visando se instalar
e se adaptar, mas tambm para poder arcar com as despesas da viagem dos membros
da famlia. Depois, com as famlias j instaladas, acabam permanecendo, em geral,
um tempo maior que o previsto. As mulheres passam tambm a ingressar no mercado
de trabalho, ajudando na renda familiar. Como o tempo de permanncia se amplia,
alguns filhos desses migrantes agora j crescidos acabam permanecendo no local,
aps o retorno familiar. As viagens ustria permitem, tambm, uma requalificao
profissional, em geral em tcnicas modernas.
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Mestre Everaldo Marangoni em frente da sua residncia familiar, onde a equipe de pesquisadores foi
recebida
Nesse meio rural, era comum o trabalhador com diferentes habilidades combinar o
trabalho no campo com a construo das instalaes da propriedade agrcola. Apesar
de assinar a origem familiar na carpintaria, os migrantes dedicam-se construo
em geral. Por isso, no raras vezes, encontra-se na regio mestres construtores que
executam todas as etapas da obra, mesmo tendo preferncias pelo desenvolvimento
de algum tipo especfico de tarefa construtiva.
Apesar de muitos mestres serem de origem italiana, em Treze Tlias eles
realizam, atualmente, a arquitetura austraca. Na foto que quis tirar em frente
de sua casa, pode ser observado que a construo onde mora Everaldo possui
caractersticas austracas, como o acabamento do telhado, chamado no local de
espelho. Contribui, assim, para a homogeneidade da paisagem local, sem marcar
sua prpria origem cultural.
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Andr Moser estudou com o mestre austraco Lorenz Leitner, que veio para o Brasil.
Moser teve que se deslocar at So Paulo para o aprendizado com o mestre arteso:
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Moser sempre valorizou o estilo herdado do pai, que veio da ustria para o Brasil
com 25 anos. Assim como os Marangoni, Andr Moser diz que foi responsvel por
grande parte das obras de Treze Tlias: Pouca coisa aqui no passou pela minha
mo, diz ele.
Andr Moser segura um livro sobre
Treze Tlias, que j havia separado,
esperando pela visita daqueles que
queriam
conhecer
sua
trajetria.
Escrito em alemo, esse livro, referente
comemorao dos 50 anos da cidade,
conta a histria de Treze Tlias - que
se confunde com sua prpria histria
familiar. Mostra as antigas casas em
estilo e diz que se tivessem pegado
imbuia, (elas) estariam ali. Eram
tabuinhas (no tinha telhado) e com 10,
15 anos tinha que trocar. Pelo seu relato,
sempre se interessou em trabalhar
de forma criativa, demonstrando suas
habilidades artesanais:
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Essas informaes constam do folheto explicativo que Moser utiliza para fazer
sua propaganda. E continua, afirmando que os sinos constituam um meio de
comunicao entre os moradores das propriedades rurais e os povoados isolados
nos vales do Tirol. Marcavam, tambm, o tempo e ritmavam as tarefas cotidianas.
Os campanrios de Moser ajudam a compor a paisagem local. Muitas construes
apresentam um ou mais que despontam acima dos telhados. Rompem a horizontalidade
construtiva e inserem certa imponncia s construes de diversos tamanhos e
usos. Das residncias, aos prdios administrativos ou aos hotis, os campanrios
marcam uma constncia em termos de elementos figurativos simblicos.
Assim, construda passo a passo, a imagem da cidade volta-se para a representao
da cultura de origem austraca. Talvez, porque, diferentemente da italiana, ela
aparece de forma contundente somente nessa rea. J a cultura italiana faz parte
152
153
Planalto
Norte
154
OFCIOS DA construo e
da carpintaria
156
Iconografia bizantina e
Nossa Senhora Aparecida
157
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159
em que seu territrio era dominado pela Prssia, Rssia e ustria (WEIMER, 2005).
A tradio construtiva eslava no Brasil ainda carece de estudos mais aprofundados
(WEIMER, 2005).
A influncia alem chegou a partir da Colnia Dona Francisca (que deu origem cidade
de Joinville), atravs dos imigrantes que chegavam a partir do Porto de So Francisco
do Sul, pelo leste, e se espalharam por cidades como Rio Negrinho, Mafra e So Bento
do Sul. Como exemplo, temos as construes urbanas no centro de So Bento do
Sul e rurais na Estrada Dona Francisca. As construes urbanas diferenciam-se das
construes do campo. No campo, h casas com tijolos aparentes, casas enxaimel
e casas de madeira. Na cidade, so sobrados e casares, de tijolos revestidos, com
telhado e piso de madeira
A influncia eslava se deu especialmente a partir do Porto de Paranagu, de onde
os colonos eram enviados para Rio Negro (PR), e de l para a Colnia Lucena (atual
Itaipolis), mas tambm antes, atravs da Colnia Dona Francisca. A cultura eslava
se espalhou por vrias cidades do Planalto, como Rio Negrinho, Mafra, Canoinhas
e Itaipolis. H o predomnio, entre as construes antigas, de casas de madeira,
e fbricas, serrarias e moinhos com peas, estrutura e fechamento de madeira. A
cobertura de tabuinhas uma caracterstica da regio, e ainda pode ser encontrada
em apenas uma casa, segundo levantamos, no distrito de Moema, colnia ucraniana
em Itaipolis. Os principais exemplares da tradio polaca podem ser encontrados
no ncleo urbano de Alto Paraguau, em Itaipolis; e, da tradio ucraniana, nos
Conjunto histrico em Alto Paraguass, Itaipolis
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161
A Secretaria de Cultura de Itaipolis tem sido parceira do Iphan nas aes nos
bairros histricos. Em Trs Barras e em Rio Negrinho, as antigas estaes do Ramal
So Francisco da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande tambm so preservadas
pelos municpios, que pretendem criar uma linha de trem turstico que corte a regio.
Enquanto em Mafra, Itaipolis e Rio Negrinho o patrimnio escolhido para ser
preservado o da origem polaca e ucraniana, em So Bento do Sul, o de origem
alem, em Canoinhas e Trs Barras aparece o padro das construes de origem
norte-americana, ligadas construo da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande,
comandada por capitalistas norte-americanos e utilizando tecnologias daquele pas,
embora essa influncia no se reflita etnicamente.
162
Fazia a casa inteira. Bem no comeo a gente destroava o linhamento tambm, com a serra a
muque assim, n? Trazia as toras do mato, puxava com os cavalo num estaleiro ali embaixo,
na sombra. Da, esquadrejava bem a tora, da, decifrava ela, batia, e, a, serrava, um l de
cima e um embaixo. Isso era um tempo sofrido. Mas deu pra fazer, n? (GROSSL, 2010).
As fundaes podiam ser feitas com fatias de imbuia, utilizando-se somente a parte
do cerne da madeira, que mais resistente. O carpinteiro Jos Martins nos contou
sobre a construo de sua primeira casa, toda em madeira:
Vai um cepo num canto, outro em outro, depois ns colocamos o resto dos
cepo tudo na linha certa dos vigote. O cepo vai na terra, fincado. Cepo de
imbuia. Coisa boa, cerne velho, bem bom mesmo, partido. Ns fincava uns
trinta no cho, conforme a cada do cho, se fosse plaino. Se fosse dobrado
o cho, da, era mais comprido ainda. A gente ia l, olhava o cho, ento
ns dizia pro homem: corte cepo no s num comprimento, pode cortar
cepo com 50, 60, at 70, que o cho cado. L praquele lado ocupa cepo
comprido, e pra cima, onde mais alto, ocupa mais curto. O cepo, no partir
fica quadrado, s o cerne, 20 x 25 cm. (MARTINS, 2010).
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Imbuia
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Martelete na oficina de
Mestre Ryk Jakubiak
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senhor me paga? Ento no sabe fazer nada, mas ele primeiro quer saber
o quanto vai ganhar. Na poca no, no se falava em dinheiro, se falava
em aprender, era uma escola. Uma escola que a gente tinha praticamente
que pagar (JAKUBIAK, 2010).
Depois do perodo de trs anos, o sujeito torna-se um oficial, e vai demorar pelo
menos mais dez anos, estudando a profisso, para que se torne um mestre. O
aprendizado continua com mestres diferentes, e no Planalto Norte continua a
influncia do artesanato europeu, j que aparecem novos fluxos migratrios durante
o entre-guerras de populaes urbanas que trazem consigo saberes tradicionais. O
Mestre Mildon Grossl guarda muitas lembranas de seu companheiro Mestre Schroth,
carpinteiro alemo com quem trabalhou por vrios anos:
Depois servi o militar, de 18 anos, e depois voltei pra exercer a carpintaria,
e lavoura junto. [] Eu com mais um companheiro que eu tinha, o Schroth.
Ele era do estrangeiro. Eu j trabalhava com carpintaria, ele tambm era
um profissional. Trabalhei vinte anos junto com ele. Da, ele contava as
coisas da Alemanha. [] Ele veio a passeio, e trouxe as ferramentas junto,
pra trabalhar. O Schroth tinha 26 anos quando veio. Ele contava como era
l (GROSSL, 2010).
O fato de se aprender uma profisso costuma ser visto como a possibilidade de evoluir
social e economicamente. As famlias tinham essa sensibilidade e enviavam os filhos
para trabalhar com profissionais. muito comum que a transmisso do conhecimento
se d dentro da famlia, j que era uma sociedade rural onde a maioria dos problemas
devia ser vencida pelo ncleo familiar, autnomo. De incio, o trabalho na construo
faz parte do trabalho na roa, como o trabalho de tirar as toras do mato e cort-las.
Com o tempo, as cidades se estabelecem, e o mercado da construo comea a exigir
mais tempo dos profissionais, que passam a dedicar-se integralmente construo:
No comeo, de pi, a gente era lavrador, junto com o pai. Mas depois a profisso virou
carpinteiro (GROSSL, 2010). A mudana nas relaes de trabalho aparece com fora
com a construo da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, que mobiliza grande
parte das foras produtivas da regio e difunde o trabalho assalariado.
A permanncia da atividade dos mestres artfices depende do reconhecimento que a
sociedade oferece ao seu trabalho. Em So Bento do Sul, cidade industrial e com o
setor de patrimnio histrico mais organizado da regio, alguns mestres conseguiram
manter sua autonomia, e inclusive passar seu conhecimento adiante. o caso da
ferraria Colonial de Sinildo Schulze. Dois filhos de Sinildo, hoje com 35 e 27 anos,
167
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Inventividade cabocla
Alm da influncia europeia, um forte componente da formao da cultura do Planalto
Norte est na herana deixada pelos caboclos. A ocupao dos caboclos mais
antiga, e menos ligada aos cdigos das corporaes de ofcio. A experincia cabocla
se deu no embate com a floresta virgem e foi pura inveno. A criatividade cabocla
est presente em suas histrias e no seu trabalho, na reinveno dos velhos cdigos.
Com o pouco que sempre teve, o caboclo resolveu seus problemas, e ainda sobrou
tempo para danar e beber.
Antes da Lei de Terras de 1850 (THOM, 1983) os caboclos viviam sobre o territrio
do Planalto Norte sob um regime de posse sobre as terras devolutas e os grandes
latifndios. Trabalhavam recolhendo erva-mate, ou em trabalhos instveis para os
coronis, e viviam uma vida seminmade procura dos ervais e de trabalho. Sobre a
casa tradicional do caboclo de cima da serra recolhemos o seguinte depoimento:
O caboclo quando ele queria mudar de lugar l em cima, ningum dava
bola, ele podia se instalar, por exemplo, se o cara tinha uma propriedade
aqui de 50 lotes, outro mais 50, se ele se instalasse na propriedade dele,
naquela poca, ningum ligava. Ento, ele saa de manh, pegava a famlia
e cortava uma poro de bracatinga, ou uma madeira que rachasse bem.
Fazia os racho, fixava uma forquilha aqui e uma l, colocava uma linha
em cima, fazia o quadrado, n, amarrava um, em cima j tinha armao,
embaixo amarrava outra madeira, fixava as madeiras,
amarrava com taquara, tudo amarrado com taquara. Fazia
uma esteira de taquara tranada, uma parte assim, uma
parte no sentido contrrio, por exemplo, se a altura da casa
fosse dois metros, ele fazia a esteira de dois metros, do
comprimento que ele quisesse, depois emendava. Cercava
com aquilo, botava um sarrafeamento, uma madeira em cima
pra fazer os caibrinhos, colocava mais uma esteira de taquara,
enchia de capim-cortador, colocava uma parte, mais uma
parte, cruzado, assim, n, que ele cruzasse, que nem telha,
n, colocava mais um esteira de taquara por cima, e amarrava
umas madeira pro vento no tirar o capim. No outro dia ele j
vinha com a mudana. Era um colcho, os filhos; dois filhos,
quatro cachorros - por isso que eu disse que a parece casa de
caboclo - e s (TRIZOTTO, 2010).
172
O pai do sr. Jos Martins fazia casas num sistema prprio, rudimentar. Quanto ao
guilherme, um tipo de plaina que serve para fazer detalhes, que na histria foi
substituda por um pequeno serrote.
Pixirum e Richtfest
Para finalizao de uma casa, sr. Martins conta que poderia ser chamado um pixirum:
Pra fazer casa uma vez, tive que juntar acho que umas seis ou sete pessoas, pra alevantar a
madeira da primeira casa que eu tinha, l nos mato. Era uma casa grande, e a madeira era
de 12 x 14 cm de grosso. Era cada pau assim. A armao da frente, fizemo pixirum, tudo no
cho, colocava toda a madeira e fizemo Pixirum pra erguer a armao inteira, completa, pra
por no local, o pai s ficou com o machadinha de mo batendo, pra cair nos encaixe, deu tudo
certinho. [] Pixirum grande tinha carne vontade pra almoar, tudo. Baile, ainda ganhava
quem ia trabalhar. Meu pai fazia baile. Algum trabalhava
s vezes duas horas e j ganhava o baile (risos), ia s
pra ganhar o baile (MARTINS, 2010).
173
Em geral a festa da cumeeira caiu em desuso, pois era fruto de uma relao direta
entre os trabalhadores e dono da casa. Hoje essa relao passa por vrios graus de
mediao, e no mais possvel um momento de confraternizao entre trabalhadores
e proprietrios. Atualmente a construtora paga um churrasco para os empregados
em outro lugar que no a obra.
174
O canteiro Ivo
Webber e a Igreja de
So Miguel Arcanjo
O caso do sr. Ivo Webber, que
trabalhou na construo de uma
igreja de pedra em Porto Unio,
um caso muito especfico do
aprendizado e aplicao de uma
tcnica tradicional, a cantaria.
Julgamos que o caso merece
ser mencionado pela clareza da
lembrana do sr. Ivo, e porque
ilustra como se deu a difuso da
tcnica da cantaria pelo planalto
norte.
Sr. Ivo Webber, de Unio da Vitria,
descendente de alemes, hoje com
82 anos, comeou com a cantaria
em 1939, como aprendiz do
canteiro Joo Bodnar, descendente
de poloneses, que havia aprendido
o ofcio com espanhis, quando
trabalhou no aterramento do Canal
do Linguado, para a estrada de
ferro em So Francisco do Sul:
Ele (Joo Bodnar) foi trabalhar no
Linguado, em So Francisco, quando
eles fizeram aquele aterro. Ali tinha
dois espanhis, que eram espanhis
mesmo, eles que ensinaram ele a
profisso mesmo, ensinaram at para
fabricar plvora. Dois espanhis, eles
eram muito amigos, e eles ensinaram
muita coisa pra ele, isso ele sempre
falava. Depois daquilo que ele veio pra
c (WEBER, 2010).
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176
Muito emocionado sr. Ivo Weber nos levou at a igreja construda por ele, e disse que
precisava contar a histria da construo antes de morrer.
A igreja tem 22 x 12 metros e altura de 6,20 metros e feita toda em pedra-ferro.
A torre tem 15 metros. Comeava colocando as pedras dos cantos, aprumadas e
niveladas, e depois as outras da fiada, seguindo o nvel e prumo dos cantos-mestres.
Sr. Ivo Weber no seguiu a profisso, pois era muito trabalhoso e se ganhava muito
pouco. Alm disso, ningum mais construa com pedras.
Hoje mora em Unio da Vitria, e em sua casa comemos
po com salsicha e mostarda, aceitando o convite do sr.
Webber e esposa.
O futuro
Os mestres do planalto norte iniciaram seu trabalho em
servios pesadssimos, como a ferraria e a cantaria, e
tirando rvores gigantes do mato. Os que sobreviveram
adotaram trs procedimentos: a) engajamento na
construo civil moderna como pedreiro; b) especializao
e refinamento nas regies em que o mercado aceitou esse
tipo de trabalho; c) trabalho nas indstrias de mveis,
portas e esquadrias.
Embora o impacto da industrializao tenha transformado,
em grande parte, o trabalho dos mestres, no foi sempre
negativo, e muitos mestres s puderam seguir sua
profisso dessa maneira, como assalariados nas empresas.
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181
Consideraes finais
Sem desconsiderar todo o rduo trabalho feito no levantamento inicial, anterior ao
deslocamento das equipes para a realizao da pesquisa em campo, no prprio
local que as informaes fluem mais rapidamente. L, esses mestres construtores
saltam aos olhos, so reconhecidos pela comunidade. Muitas indicaes levam aos
mesmos personagens. A sociedade local distingue, claramente, aqueles que so
dotados de um saber-fazer digno de considerao.
Se os mestres artfices se atualizaram, devido s circunstncias em que se inserem,
eles ainda mantm uma capacitao tcnica e um saber-fazer que poderiam ser
revalorizados. Contrariamente s anlises ligeiras que confundem a tendncia
homogeneizao imposta pelo capitalismo com sua total realizao, ainda se
pode ter contato com o trabalho vivo desses construtores que marcaram os traos
distintivos das diferentes regies catarinenses. Sendo as ferramentas tradicionais ou
modernizadas (algumas mecanizadas), a evoluo no uso das ferramentas propese a apresentar resultado formal similar. O mesmo acontece com as diferentes
qualidades dos materiais utilizados (de madeiras diferentes, por exemplo). A mo
inteligente reconhece suas especificidades e cunha a obra. Mesmo com a variedade
das ferramentas ou de materiais, o modus operandi se mantm. A tcnica se reproduz,
sem repetio mecnica, porque os processos se aprimoram.
Assim, foram considerados mestres aqueles que tm domnio do saber-fazer nas
tcnicas tradicionais, apresentando capacidade de autonomia na execuo das tarefas.
Os mestres possuem a capacidade de antecipar os resultados do fazer, concebendo
o trabalho a ser realizado. Muitos deles o concebem antecipando o ato propriamente
produtivo. No entanto, em alguns casos, o mestre executa a obra a partir de
projeto externo, como o caso da execuo de igrejas ou projetos de restauro. So
usados, tambm, modelos dos pases de origem, tentando reforar os traos de
origem na comunidade local catarinense. Na maioria dos casos, independentemente
da originalidade do projeto, os mestres demonstraram compreenso da significao
de seu trabalho na totalidade do produto a ser obtido, mesmo quando executavam
tarefas especializadas. A intencionalidade do fazer e o domnio do resultado a ser
alcanado advm, ento, desse trabalhar meticuloso e exploratrio, buscando sempre
um recomeo no ato da repetio. Os mestres demonstraram, tambm, valorizar a
prpria qualificao profissional.
Os processos de aprendizado podem variar, mas a qualificao para o trabalho tcnico
se mantm. Dos cursos formais1 ao aprendizado direto, todos supuseram o processo
de aprendizado a partir da experimentao, da repetio e do aprimoramento. A
182
Nota
1. Alguns desses processos estruturados efetuados pelos mestres a seus aprendizes, foram
ministrados cursos pelo Iphan em tcnicas de restauro. Outros cursos resultaram da transmisso
sistematizada feita de mestre a mestre. Em geral, esse saber transmitido tinha a durao de trabalho
conjunto por um perodo de trs anos.
183
Referncias bibliogrficas
ABREU, Regina; CHAGAS, Mrio (orgs.).
contemporneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
Memria
Patrimnio:
ensaios
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185
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187
188
189
MESTRE
OFCIO
LOCAL
Fabio da Silva
Carpinteiro/Restaurador
Laguna
Pedreiro/Restaurador
Laguna
Alcides Bosa
Carpinteiro/pedreiro
Laguna
Carpinteiro
Orleans
Gilmar Benedet
Carpinteiro
Orleans
Aloisio Heinzein
Pedreiro/Carpinteiro
So Martinho Vargem do
Cedro
Clsio Coelho
Canteiro
Armazm
Canteiro
Armazm
Luiz Effting
Carpinteiro
So Martinho Vargem do
Cedro
Marceneiro
Urussanga
Marceneiro
Urussanga
Nicanor Zavarize
Canteiro/calceteiro
Urussanga
REGIO SUL
190
Urussanga
Achile de Pellegrin
Canteiro
Urussanga
Carpinteiro
Urussanga
Osvaldo Marques
Carpinteiro/Pedreiro/ Oleiro
Urussanga
Drio Lavina
Serrador
Urussanga
Oleira
Cocal do Sul
Canteiro
Cocal do Sul
Nilton Zavarize
Canteiro
Cocal do Sul
Lcio Bonetti
Carpinteiro
Pedras Grandes
Antenor Zavarize
Urussanga
Dorvalino Zatta
Pedreiro
Urussanga
Carpinteiro
Urussanga
Canteiro
Urussanga
MESTRE
OFCIO
LOCAL
Vergnio Bonot
Canteiro
Urussanga
Despio Bonetti
Pedreiro
Urussanga
Oleiro
Sango
Otavio Bertan
Oleiro
Morro da Fumaa
Oleiro
Sango
Oleira
Sango
Oleiro
Sango
Lauro Grassmann
Pedreiro e carpinteiro
Jaragu do Sul
Paulo Matile
Pintor
Jaragu do Sul
Lodimar Henschel
Marceneiro
Blumenau
Nilton Wienhage
Marceneiro
Blumenau
Heinz Dallmann
Pedreiro e carpinteiro
Pomerode
Carpinteiro enxaimel
Blumenau
Oleiro
Blumenau
Harold Schneider
Carpinteiro
Timb
Tanoeiro
Jaragu do Sul
Sido Mueller
Carpinteiro / Pedreiro
Pomerode
Lino Siberino
Pedreiro / Carpinteiro
Pomerode
Adir Lenzi
Oleiro
Rio do cedros
Altino Trisotto
Pedreiro
Lorivald Sasse
Carpinteiro
Rio do Sul
Serrador
Ibirama
Horst Jedliczka
Carpinteiro
Ibirama
Lindomar da Silva
Canteiro
Ibirama
Benvenuto Adami
Calceteiro / pedreiro
Ascurraa
Clair da Silva
Canteiro
Blumenau
Hilrio Stascheck
Carpinteiro
So Bento do Sul
Mildon Grossl
Carpinteiro
So Bento do Sul
Sinildo Schulze
Ferreiro
So Bento do Sul
REGIO NORDESTE
REGIO NORTE
191
MESTRE
OFCIO
LOCAL
Carpinteiro / Pedreiro
Mafra
Pedreiro / Carpinteiro
Mafra
Nicolau Tracz
Pedreiro / Carpinteiro
Mafra
Jos Martins
Carpinteiro
Itaipolis
Ryc Jakubiak
Ferreiro
Itaipolis
Lotrio Bail
Carpinteiro
Rio Negrinho
Clemente Pankio
Marceneiro e Carpinteiro
Itaipolis
Marceneiro
Itaipolis
Marceneiro/carpinteiro
Itaipolis
Ivo Weber
Canteiro
Porto Unio
Gilberto Gonchorovsky
Oleiro
Canoinhas
Andr Moser
Carpinteiro
Treze Tlias
Carpinteiro
Treze Tlias
Vitalino Marangoni
Carpinteiro / Marceneiro
Treze Tlias
Taipeiro
Lages
Taipeiro
Lages
Senir Almeida
Taipeiro /Pedreiro
Lages
Taipeiro / Carpinteiro
Bom Retiro
Luiz Massuquetti
Carpinteiro
Bom Retiro
Taipeiro / Carpinteiro
Lages
Nelson Momm
Carpinteiro/ Pedreiro
Bom Retiro
Carpinteiro
Nova Trento
Carpinteiro
Nova Trento
Ulderico Valle
Pedreiro
Nova Trento
Carpinteiro/ marceneiro
Nova Trento
Ferreiro
Nova Trento
Pedreiro
Nova Trento
REGIO MEIO-OESTE
REGIO DO PLANALTO
SERRANO
REGIO VALE DO
TIJUCAS
192
MESTRE
OFCIO
LOCAL
Gentil Leone
Pedreiro
Nova Trento
Flasio Shurhaus
Carpinteiro
S. Amaro da Imperatriz
Caieiro
Florianpolis
REGIO GRANDE
FLORIANPOLIS
193
194
195