A Festa Da Congada - Renata Nogueira Da Silva PDF
A Festa Da Congada - Renata Nogueira Da Silva PDF
A Festa Da Congada - Renata Nogueira Da Silva PDF
RESUMO: A reflexo que ora apresento busca compreender de que forma a congada de
Uberlndia - MG, uma prtica religiosa usualmente definida como tradicional, reelaborada
contemporaneamente por meio de trnsitos religiosos, polticos e tecnolgicos. A partir da
interpretao de verses do mito fundador, de rituais e do exame da relao entre os
congadeiros e os novos mediadores culturais, procuro entender a dinmica da congada e os
mecanismos que garantem a continuidade desta tradio.
PALAVRAS CHAVE: ritual, tradio e reelaboraes.
1. Introduo
A congada vem sendo registrada no Brasil desde o perodo colonial e aparece de forma
integrada ao calendrio catlico. Alvarenga (1960), por exemplo, destaca que a primeira
notcia documentada que se tem de uma congada realizada no Brasil de 1760, encontrada na
relao dos festejos do casamento de D. Maria I, rainha de Portugal. J Tinhoro (2000), faz
um recuo histrico maior do que o de Alvarenga. O autor regressa at 1711 e por meio de
pesquisas folclricas identifica a primeira coroao de rei congo no interior de uma irmandade
de Nossa Senhora do Rosrio, em Pernambuco. O autor retrocede ainda mais, para o final do
sculo XVII, e encontra notcias das primeiras manifestaes de coroao de reis, mas esta
realizada com aluso a reis de Angola e no de Congo. Tinhoro ressalta, inclusive, que a
coroao dos reis de Congo organizada por escravos e forros j era uma prtica disseminada
no sculo XVI, em Lisboa. Definir se as primeiras festas de congada no Brasil ocorreram no
sculo XVII ou no XVIII secundrio nesse trabalho, o que importante salientar que as
festas de congada datam do Brasil colnia e dramatizam relaes conflituosas construdas na
dispora africana no Novo Mundo.
Zamith (1995), a partir da leitura de Andrade (1959) e Brando (1985), define a
congada como um folguedo brasileiro, de carter religioso, que se apresenta em forma de
Terno uma categoria nativa utilizada para identificar os diferentes grupos que compem a congada.
Geralmente o terno composto por parentes consangneos ou simblicos e possui uma combinao de cores
especficas, que o distingue perante os demais. Em alguns casos, so essas cores que do o nome ao terno:
Camisa Rosa, Camisa Verde, Azul e Branco etc.
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Ainda possvel encontrar festas de congada que louvem Santa Efignia e Nossa Senhora Aparecida.
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O termo confraria aparece na literatura da temtica como sinnimo de irmandade. Os dois termos referem-se
instituio organizadora dos ternos de congada. As irmandades ou confrarias foram muito importantes na vida
da sociedade patriarcal e escravista do sculo XIX.
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O Moambique de Belm, coordenado atualmente pelo capito Ramon Rodrigues, foi muito importante para o
desenvolvimento desse estudo, pois a maior parte da pesquisa de campo foi realizada nele.
O lugar em que a santa apareceu varia nas verses contadas pelos grupos. Em algumas verses, a santa aparece
na gua, em outras, numa gruta, ou ainda, numa rvore.
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A congada composta por vrios grupos afro-brasileiros: Congo, Marinheiro, Moambique, Catup, Vilo,
Penacho, Caboclo, entre outros.
mais. Em algumas cidades do sul de Minas e do interior do Gois o tambor que a santa
sentou chamado de candombe, h inclusive rituais fechados com esse tambor. Em
Uberlndia esse termo no muito usado entre os congadeiros, embora seja conhecido.
De acordo com Brando (1985) as explicaes que os congadeiros do para suas
prticas oscilam entre um mito envolvendo fatos supostamente vividos pelos negros escravos,
na frica ou no Brasil, e as frmulas de votos e promessas feitos entre o "brincador" devoto e
Nossa Senhora do Rosrio. O autor descreve vrias verses do mito, mas, segundo ele, h
uma verso, que pode ser considerada a mais simples e generalizada do mito. Ao refletir
sobre essa verso do mito fundador, Brando prope que se busque compreend-la a partir das
seguintes unidades: a) Uma Nossa Senhora do Rosrio encontrada no deserto; b) Algumas
pessoas resolvem danar para a santa; c) Os Congos danam, a santa sorri e no os
acompanha; d) Os Moambiques danam, a santa os acompanha e colocada em uma igreja;
e) A santa retorna ao seu lugar no deserto; f) feita uma igreja no local onde a santa foi
encontrada. O autor salienta que a verso transcrita a seguir contada e recontada com
pequenas variaes at entre os mais novos.
Verso 2
Eles acharam a Nossa Senhora no deserto, numa loca de pedra, eles acharam ela
l. Ento fizeram uma reunio l e eles foram danar l. Ento o Congo chegou l,
danando l, ela riu, mas ficou quieta. Depois chegou o Moambique. Chegou l
tudo malumbado, um leno na cabea, de ps descalos, e a ela acompanhou. Eles
pegaram, fizeram uma igreja, puseram ela l na igreja. Ela voltou, ficou l no lugar
outra vez. A, eles pegaram e fizeram a igreja l no lugar. Isso a da antiguidade.
(Capito de terno de Congo)
financiados por leis de incentivo cultura e muitos de seus membros participam tambm de
ternos de congada, evidenciando dessa forma uma intensa circularidade das pessoas nas
manifestaes afro-brasileiras da cidade.
Assim como a Cia Bal de Rua e o Grupo Tabinha, alguns ternos de congada so
convidados para se apresentarem em atividades e eventos fora da cidade de Uberlndia e fora
do tempo e espaos sagrados em que acontece a festa de Nossa Senhora do Rosrio.
Entretanto, a congada difere do Tabinha e do Bal de Rua por seu carter religioso. O
De acordo com o Ministrio da Cultura, h mais de 650 Pontos de Cultura no Brasil, sendo cinqenta e cinco
localizados em Minas Gerais, dos quais dois esto em Uberlndia.
espacial quando os ternos fazem apresentaes fora dos momentos rituais. O autor afirma que:
Nessas situaes os Arturos e outros grupos lidam com as mudanas das noes
tradicionais de espao fsico (do terreiro/rua para o palco), de tempo (da
reinstaurao do tempo mtico de longa durao para a insero no tempo comercial
com hora marcada para inicio e fim da representao), de pblico (dos devotos
participantes para expectadores nem sempre devotos) e de funo (da celebrao
ritual para representao das celebraes). (...) Torna-se necessrio considerar que o
popular tradicional tem servido das tcnicas e meios modernos para afirmar e
ampliar atravs das mudanas, a sua significao social. (PEREIRA, 2002, p. 20).
Algumas dessas interpretaes sobre a comunidade dos Arturos podem ser usadas
tambm no estudo da congada de Uberlndia. A primeira delas refere-se s mudanas nas
noes sagradas de espao fsico, pois danar e cantar na rua, como geralmente acontece nas
festas de congada, diferente de danar e cantar em um palco, como ocorre nas apresentaes
em situaes extra-festa. Nesse aspecto, preciso levar em considerao que os grupos de
Uberlndia so grandes (mdia de cem a duzentos componentes) e organizar todas essas
pessoas num palco complicado. A segunda est relacionada questo do tempo. As festas
de congada so marcadas pelo tempo cclico dos mitos e, ao se apresentarem em outros
contextos, os grupos tm que se ajustar a um tempo linear, com hora marcada para incio e
trmino da apresentao. A terceira interpretao de Pereira, e que til na pesquisa sobre a
congada, a da formao de um pblico espectador que envolve no apenas devotos. No caso
de Uberlndia, a idia de pblico espectador bem forte e isso fica evidente, por exemplo, nas
apresentaes dos ternos nas proximidades da igreja no dia da festa. As ruas so
transformadas em palco, nas quais so organizados dois cordes humanos, um de cada lado.
entre esses cordes, demarcados ao mesmo tempo por cordas e pessoas, que os grupos passam
e se apresentam. Os congadeiros driblam os imprevistos do trajeto e inscrevem suas tradies
no meio urbano, recriando continuamente suas formas de louvao e devoo a So Bendito e
a Nossa Senhora do Rosrio.
Atualmente em Uberlndia a festa possui um pblico heterogneo, composto por fiis
do catolicismo, da umbanda e do candombl, universitrios, polticos, mdia, pesquisadores,
curiosos etc. Cada faixa desse pblico se relaciona de forma diferenciada com a congada. Os
fiis do catolicismo se relacionam com a congada pelo vis da f nos santos protetores, os
participantes da umbanda e do candombl concebem a congada como expresso das
religiosidades afro-brasileiras. H, inclusive, pais e mes de santo que danam em alguns
ternos. Durante a congada, h casos de fiis que acompanham determinado terno para
pagarem promessas e agradecerem bnos obtidas.
Os universitrios pesquisam e criam muitas vezes laos afetivos com os grupos que
estudam, chegando, em alguns casos, a se tornarem danadores de ternos. Um bom exemplo
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dessa postura pesquisador Cludio Santos, que no inicio de 2006 concluiu sua tese de
doutorado sobre o Moambique de Belm. Alm de pesquisador do terno, Cludio, conhecido
no grupo como Cabelo, tambm membro do Moambique de Belm, chegando a tocar
caixa (tambor) nos ltimos anos, um cargo que exige bastante conhecimento dos fundamentos
congadeiros.
Os polticos usam o espao da festa para se promoverem, espalham faixas pela Praa
do Rosrio, patrocinam camisetas, ajudam financeiramente alguns ternos e tm ainda aqueles
que assistem a festa. importante mencionar tambm os casos dos congadeiros que
conseguem popularidade atravs das atividades que desempenham em seus ternos e se
enveredam na poltica buscando dessa forma mais recursos para festa da congada e a
efetivao de polticas pblicas para a populao negra uberlandense.
A mdia e os pesquisadores muitas vezes se confrontam no espao da praa, embora
possuam ofcios diferentes, disputam fotos e entrevistas. Refletir sobre as relaes construdas
entre os agentes que de uma forma ou de outra contribuem na realizao da congada implica
evidenciar a polmica entre a preservao e a transformao, j que a entrada de novos atores
provoca a elaborao e a adio de outros significados festa. No debate entre a busca de
preservao e a possibilidade de transformao, Pereira (2002) elabora uma boa metfora e
acredito que tal metfora pode ser parafraseada na interpretao da congada em Uberlndia. O
autor diz o seguinte:
Embora continuemos a lidar com termos adjetivados como culturas populares e
culturas de massas, o importante percebermos que preservao e transformao
so mais do que conceitos. So processos que questionam as fronteiras das
vivncias sociais. (...) por isso a idia de janela em movimento, ou seja, das interrelaes que pressupem preservao e transformao paradoxalmente, uma
caixa de segredos aberta. (...) fica-nos a perspectiva de que para compreendermos as
inter-relaes entre a tradio e a modernidade vlido o princpio de que a nica
constncia est na mudana. (p.22)
A idia de janela em movimento uma boa sada para pensarmos as inter-relaes que
compe a festa de Nossa Senhora do Rosrio. Atravs dessa noo possvel entender como
se relacionam congadeiros e no congadeiros e assim enfatizar a dinmica da festa. Mesmo
que nos ltimos anos se perceba a insero de novos atores que atuam na realizao da
congada, ainda assim possvel dizer que as irmandades de santos de devoo continuam em
muitas cidades mineiras como Uberlndia, Ituiutaba e Araguari, sendo as principais gestoras
das festas de Nossa Senhora do Rosrio. Os novos atores que, por motivos diversos,
participam atualmente da congada, necessitam dialogar com as irmandades e reconhecer o
papel histrico que elas desempenham.
As irmandades atuam como administradoras da festa: so elas que autorizam a criao
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de novos ternos e que repassam a subveno fornecida pela prefeitura aos ternos. Apesar de
ser a instituio que representa os congadeiros, nem sempre as relaes que se estabelecem
entre os ternos e a irmandade so de harmonia. preciso ressaltar que as histricas tenses
entre igreja, irmandade e congadeiros, presentes desde a consolidao da festa nas cidades
pesquisadas, ainda se expressam contemporaneamente, e isso revela um processo negociado
de construo da identidade congadeira.
Os congadeiros atravs de prticas insurgentes buscam visibilidade na sociedade
uberlandense, se empoderam e ocupam o espao pblico da cidade criando e recriando
constantemente suas formas peculiares de louvao aos seus santos devocionais..
Na pesquisa verifiquei que os congadeiros desenvolvem mecanismos que visam
simultaneamente preservar determinados fundamentos10 e recriar outros, tendo em vista as
relaes e as estruturas de poder. Para a congada se manter na contemporaneidade
necessrio negociar, entretanto, essas negociaes, segundo os congadeiros que entrevistei,
ocorrem dentro dos limites dos fundamentos. Certa vez, conversando com Ramon, ele me
disse que h uns dez anos sua postura era mais radical e rgida, mas de alguns anos para c ele
aprendeu a flexibilizar suas aes. O capito relata que ao longo de sua vida como
congadeiro, militante, sindicalista e religioso aprendeu que se negocia quase tudo e que para a
tradio se manter ela tem que incorporar o novo. Ele completa sua fala enfatizando: tem
coisas que podem ser mudadas e negociadas, tm outras que so fundamentos, nessas
ningum pode mexer.
Gostaria de finalizar refletindo um pouco sobre essa ltima afirmao de Ramon, luz
das observaes de Carvalho (2005) sobre o negocivel e o no negocivel no que se refere
aos smbolos sagrados afro-americanos, nesse caso, aos smbolos congadeiros. O autor
assinala que a congada um espao ritual poderoso de afirmao da condio negra no Brasil,
equivalente importncia simblica do candombl, e indica que nos ltimos anos os
praticantes da congada tm enfrentado um difcil problema, gerado pela gravao dos cantos
rituais da congada por cantores populares. Em Uberlndia tambm h casos de cantores que
gravam, com ou sem a participao dos congadeiros, os cantos e os sons da festa do Rosrio11.
Na perspectiva de Carvalho, h uma enorme diferena de poder entre as comunidades
da congada e as empresas nacionais e internacionais que participam do circuito das produes
audiovisuais. Ainda preciso destacar que essas gravaes provocam reaes diversas nos
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Fundamento uma categoria congadeira utilizada para designar o conjunto de valores e regras que devem ser
seguidos pelo terno. um termo usado tambm no candombl e na umbanda para indicar o grupo de objetos
sobre os quais a fora dos orixs e de outras divindades assentada, ou seja, enterrada no terreiro ou em outro
lugar especial do local de culto, constituindo suas fundaes msticas.
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A ttulo de exemplo pode-se citar Milton Nascimento, no disco Tambores de Minas, e gravaes de CDs do
Projeto Emcantar e da Folia Cultural (ONGs de Uberlndia MG)
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