Sagrado Selvagem
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O SAGRADO SELVAGEM NAS
PERIFERIAS URBANAS: AS TENSES
ENTRE TRADIO E MODERNIDADE
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RESUMO
No presente trabalho, nos propomos a discutir as noes de sagrado selvagem nas periferias urbanas. Com base no pensamento de Roger Bastide,
discutiremos at que ponto as instituies religiosas nas sociedades contemporneas conseguem, ou no, controlar ou domesticar o sagrado. Pretendemos ainda analisar em que medida elementos inerentes a determinados
grupos religiosos, como a possesso e o xtase religioso, participam do processo contribuindo para aumentar a tenso entre os ditames da tradio e os
anseios por novas vivncias com o sagrado, tornando-o selvagem ou, em
outras palavras, pouco domesticado. A intenso pela anlise nas regies de
periferia se d, essencialmente, pelo fato de concentrarem grupos religiosos
(como umbanda e pentecostalismo) que consideramos mais propensos a
um sagrado menos controlado pelas instituies religiosas.
PA L AV R A S - C H AV E
Sagrado selvagem; Roger Bastide; possesso; xtase religioso; periferias
urbanas.
1 . I N T RO D U O
O propsito deste trabalho analisar o conceito de
sagrado selvagem no contexto das periferias urbanas. Apoiamo-nos, para tratar do assunto, nas formulaes de Bastide
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(2006) sobre as noes em torno do sagrado, mais especificamente as circunstncias que podem torn-lo selvagem ou
domesticado. Tais conceitos aludem maior ou menor capacidade de as instituies religiosas administrarem a tenso entre
os fiis e sua tradio. Dizendo de outro modo, at que ponto
o conjunto de crenas e significados, principalmente na sociedade contempornea, mantm-se controlado pelas instituies,
ou constri-se a partir das vivncias cotidianas e particulares
daqueles que buscam uma relao prpria com o divino.
Em torno do problema emergem algumas questes: at
que ponto o sagrado pode, realmente, ser controlado? provvel que perambule solto pelos caminhos que bem deseja,
sem que seja possvel dom-lo? Seu carter misterioso ou
extraordinrio se que podemos atribuir-lhe definies
permite tal encarceramento em padres normativos, sejam
sociais ou religiosos?
Tais arguies renem, em torno de si, discusses mais
amplas. Entre elas: 1. a relao entre indivduos e religio nas
sociedades arcaicas (em que impera a tradio) apresenta diferenas significativas em relao s sociedades modernas (cujas
escolhas religiosas prevalecem); 2. na modernidade, h certa
oposio em questes doutrinrias ou litrgicas entre religies com maior ou menor grau de intelectualidade, como tambm religies consideradas mais ou menos racionais; 3. nas
sociedades contemporneas, encontramos enorme diversidade
religiosa, determinada, entre outras coisas, por diferenas socioculturais e geogrficas. Tais diferenas de certa forma caracterizam o sagrado no tempo e no espao, e, em certo sentido,
a maneira como as instituies o controlam.
Diante de um assunto to amplo, nossa especificidade
ser analisar o fluxo do sagrado pelas religies que encontram
nos espaos perifricos da sociedade, vistos tanto do ponto de
vista geogrfico como social. a, nos rinces afastados dos
grandes centros, que encontramos determinados grupos religiosos, como o pentecostalismo e a umbanda. principalmente sobre eles que recaem as suspeitas de um sagrado pouco
domesticado, o que talvez se explique por se afinarem to bem
com as cidades urbanas (e suas periferias), locais propcios
para um sagrado selvagem.
Cabe frisar que tal reflexo no se ater somente aos
referidos grupos, pois a discusso transcende, em muito, o
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2 . O S A G R A D O S E LVA G E M
Como arcabouo terico, , sem dvida, de grande e
atual relevncia para a compreenso da dinmica social da
religio (MENDONA, 2007). Os textos de Bastide (2006),
que fazem parte da obra O sagrado selvagem, foram reunidos
na dcada de 1970 por seu discpulo Henri Desroche ,
momento em que grupos como pentecostalismo e umbanda
demostravam grande insero junto populao mais pobre.
As razes disso fazem parte de nossa anlise. De l para c, o
campo religioso vem se reordenado com enorme intensidade.
Vimos o crescimento do pentecostalismo o mesmo no
ocorrendo com a umbanda e a perda de fiis, a cada dcada,
nas tradies religiosas como catolicismo e protestantismo
histrico. O nmero de pessoas que se declaram sem religio tem tido, tambm, aumento expressivo inclusive nas
regies de periferia. Grupos denominados Nova Era, compostos por uma imensido de prticas msticas e espiritualistas pouco institucionalizadas , ajudam a compor o cenrio
religioso contemporneo.
Diante disso, apresentam-se algumas questes: o que,
de verdade, significam os conceitos de sagrado selvagem, e,
por conseguinte, sagrado domesticado na obra de Bastide?
Como podemos encaixar os diversos grupos religiosos nessas
categorias? Quais so os limites entre uma noo e outra? Que
relao h entre os conceitos e o processo de crescimento ou
diminuio dos grupos religiosos em questo? Sabemos do desafio de responder a cada uma das questes, o que tentaremos
fazer no presente captulo.
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2 . 1 . N O E S D O SAG R A D O
S E LVA G E M E M B A S T I D E
Bastide (2006), ao introduzir o tema, pergunta: Ser que
a morte dos Deuses institudos (em doutrinas e dogmas!)
proclamada por Nietzsche acarretaria o desaparecimento da
experincia instituinte (transformadora) do sagrado em busca de novas formas nas quais se encarnar? O autor indaga,
ainda, se a crise das organizaes religiosas no se encontra na
incompatibilidade entre a experincia religiosa pessoal e os
quadros institucionais nos quais quiseram mold-la. H uma
suspeita nesse questionamento, de que, por parte das instituies, existe o anseio de retirar o poder explosivo caractersticos do sagrado considerado ameaador ordem social
(BASTIDE, 2006).
A crise das instituies religiosas permeou o debate acadmico e religioso durante uma boa parte do sculo XX, e,
nesse sentido, muito se falou sobre o assunto. Uns decretaram
o fim da religio, considerada por muitos uma m interpretao da realidade na poca, baseada, sobretudo na observao
da crise religiosa europeia. Outros, mais cautelosos, sugeriram
o declnio dos compromissos religiosos e o ganho da autonomia do indivduo em relao ao sagrado (PIERUCCI, 1998;
BARRERA, 2002; HERVIEU-LGER, 2008). Na percepo
de Bastide (2006), a crise religiosa o que, por exemplo, se
traduz no caso do cristianismo da perda de fiis ou diminuio
da presena e vnculo institucional, tanto nas igrejas catlicas
tradicionais ou protestantes histricas esboa, de certa maneira, o descontentamento de seguidores na rigidez doutrinria
e litrgica presentes nas instituies, que exemplificaramos
aqui por: 1. pouco espao para experincias emocionais; 2. pouca autonomia do prprio corpo; ou ainda 3. a experincia do
sagrado rigidamente marcada pela coletividade. Marcas de um
sagrado que se pretende domesticar.
Em determinados lugares, como na Europa, viu-se um
grande afastamento de pessoas das igrejas. Decorrncia de um
exacerbado controle doutrinrio? Nas sociedades tradicionais,
baseadas em uma solidariedade mecnica, cujos vnculos sociais so pautados por uma conscincia coletiva (DURKHEIM,
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Rizzi (1997) adota trs modelos de transe: transe de possesso com e sem dilogo, transe
de inspirao e transe medinico. O assunto ser desenvolvido adiante.
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2 . 2 . X TA S E R E L I G I O S O E A
COMUNICAO COM OS DEUSES
No que diz respeito a um dos mais profundos dramas
religiosos, que a comunicao ou tomada dos seres humanos
pelas divindades, possvel afirmar que, de uma maneira ou de
outra, e em algum estgio de seu desenvolvimento, foram encorajadas por todas as religies (LEWIS, 1971). Esses encontros extticos, comumente chamados de possesso que Lewis
define pela invaso do indivduo por um esprito possuem
enorme relao com outro importante aspecto de nosso tema:
o transe religioso. Rizzi (1997, p. 80) o define como um estado particular do indivduo, durante o qual se evidenciam
modificaes psicofisiolgicas, num contexto ritual religioso.
Pode, ainda, ser entendido como estado de dissociao, caracterizado pela falta de movimento voluntrio, e, frequentemente, por automatismo de ato e pensamento, representados pelos
estados hipntico e medinico (LEWIS, 1971, p. 41).
O transe tem sido associado s religies de tradio africana no Brasil com as afro-brasileiras identificados com
fragmentos de superstio, quando no a formas de patologia
(RIZZI, 1997). Tal associao ocorre, principalmente, devido
possesso pelas divindades: orixs, no caso do candombl, e
de entidades espirituais, na umbanda. Embora haja uma intensa associao entre o transe e possesso, ou mesmo a ideia
de que o primeiro decorrente do segundo, Lewis (1971) afirma que o transe pode ocorrer sem qualquer relao com entidades espirituais. Seria o caso para explicar algumas doenas.
Rizzi (1997), sintetizando as diversas opinies sobre o
assunto, adota os seguintes modelos de transe: 1. transe de
possesso dialogada, em que h comunicao entre entidades
e consulentes (como na umbanda); 2. transe de possesso sem
dilogo, em que apenas h a encarnao das divindades pelos
fiis, mas sem tal comunicao (como no candombl); 3. transe de inspirao, em que o fiel mantm sua personalidade, mas
investido pela divindade e torna-se seu porta voz (como no
pentecostalismo); e o 4. transe medinico, em que o mdium
torna-se um canal entre vivos e mortos (como no kardecismo).
Adotaremos esse modelo para analisar o transe nos grupos religiosos aqui descritos.
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Procurando, ento, responder nossa pergunta, o candombl, tanto no contexto rural como no urbano, apresenta
poucas caractersticas de um sagrado selvagem. Isso porque a
comunicao entre os adeptos e suas divindades faz parte de
um modelo, at certo ponto, controlado pela comunidade. O
transe acontece em situaes muito bem definidas, e no ocorre em situaes que poderiam ser inconvenientes (BASTIDE,
2006). Dentro da comunidade a possesso representa, para os
iniciados ou lideranas (pais e mes de santo), certo prestgio,
pois um elemento central. No implica em caos, ao contrrio,
justamente nesses momentos em que tudo est em ordem.
Evidentemente que existem os desvios, contudo, busca-se, o
mais possvel, control-los.
Mas nem tudo calmaria! O fim da escravido trouxe
um conjunto de mudanas na organizao social e forou certa
disperso de grupos que passaram a viver em stios ou fazendas,
isolados. Muitos negros assimilaram o catolicismo popular como religio. Outros comearam, de forma individualizada, a
misturar sua religiosidade, ou fragmentos dela, com elementos
da tradio indgena, do catolicismo popular e do espiritismo
(BASTIDE, 1971, 2006). Exemplo dessa mistura a macumba. J existindo nos meios rurais, foi nas grandes cidades, em
meio a toda a turbulncia do processo de urbanizao, que a
macumba pode ser vista como uma forma de culto. No apenas se distancia dos elementos tradicionais, mantidos pelas
naes africanas, mas que rene, em torno de si, todos aqueles
que vivenciam processos de desestruturao social, como ex-escravos, migrantes e a populao empobrecida de modo geral (BASTIDE, 1971).
Estendendo-se, dividindo-se em bairros, a cidade no permite
solidariedade de classe constituir-se em toda a sua generalidade ela a despedaa em grupos de vizinhana , e a macumba,
que j no retida por uma memria coletiva estruturada, embora permanecendo em grupo, se individualiza. Cada sacerdote
(ou quase todos) inventa novas formas de ritual ou de novos
espritos; [...] Estas so aceitas por homens que nada tm em
comum, ainda uma vez, alm da sua situao em baixo nvel da
escala social, e cujas formas de sociabilidade, a famlia, a profisso, so tambm desorganizadas. Da a fluidez dessa religio,
sempre em perptua transformao, o que torna difcil a descrio
da macumba (BASTIDE, 1971, p. 408, grifo nosso).
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3 . O S A G R A D O S E LVA G E M N A S
PERIFERIAS URBANAS
Abordaremos o sagrado selvagem no contexto das periferias urbanas. A inteno discutir como as religies que tm
como centralidade litrgica fenmenos emocionais e extticos transe e possesso se relacionam e operam em meio a
uma populao que habita regies cuja carncia se faz presente
em muitos aspectos de sua vida cotidiana (BARRERA, 2010).
Para tanto, seguiremos analisando os grupos religiosos que se
mostraram, historicamente, mais adaptados a essa realidade: a
umbanda e o pentecostalismo (CAMARGO, 1973). Este ltimo vem crescendo a cada perodo, principalmente nas periferias. No entanto, sua diversidade de denominaes o que
significa diferentes formas de relao com o sagrado torna a
tarefa de classificao bastante complexa, em torno de nosso
tema, se que ela possvel!
3 . 1 . O SAG R A D O N A P E R I F E R I A
Em que medida a construo do espao no apenas do
ponto de vista geogrfico, mas tambm sociocultural pode
interferir na relao dos indivduos com o sagrado? Existem diferenas, substanciais, entre centro e periferia, no que se refere
capacidade das instituies religiosas de controlar o sagrado?
Partimos da ideia de que existe, pelo menos em alguns
aspectos, uma relao direta entre as periferias e o sagrado selvagem, assim, determinadas situaes a seguir, apresentam-se
vinculadas formao dos espaos perifricos nas grandes cidades brasileiras. Entre elas esto: 1. processo tardio e desordenado de urbanizao e industrializao com influncias na
formao do espao urbano , visto que at as primeiras dcadas do sculo XX o Brasil era um pas eminentemente rural
(CAMARGO, 1961; SANTOS, 2008); 2. mudana, relativamente brusca, de uma mentalidade rural para uma cultura urbana, o que levou parcela da populao, em pouco tempo, a
mudar de uma estrutura social tradicional, baseados em fortes
laos religiosos e familiares, para o jeito de ser da modernidade escolha da pertena religiosa, famlias nucleares etc.
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igreja frequentem outras denominaes, o que permite-lhes conhecer outras formas de vivenciar a experincia pentecostal?
muito comum nas periferias encontrarmos pessoas visitando, tranquilamente, outras denominaes. No que isso
no ocorra nas regies centrais, mas certo que em determinados lugares as fronteiras tornam-se facilmente transponveis. O que diramos, ento, das pequenas igrejas, aquelas cujo
pastor tambm o fundador? Essas so, em geral, encontradas
aos montes nas periferias. Por tudo isso, consideramos que
tenso entre o sagrado selvagem e o sagrado domesticado na
igreja pentecostal, , atualmente, bastante intensa, e seu crescimento, a cada perodo, no cessar de aument-la.
4. CONSIDERAES FINAIS
Propusemo-nos, neste texto, a discutir as noes de sagrado selvagem nas regies de periferias urbanas. O tema nos
colocou um grande desafio: pr em debate a densidade terica
de Bastide e a realidade complexa do campo religioso brasileiro (especialmente em sua condio contempornea). Definir
as nuances entre o sagrado selvagem e o domesticado j , por
si s, um intento difcil. Encaixar a diversidade religiosa dentro dessa classificao, muito mais. Nesse sentido, no temos a
pretenso, aqui, de formular concluses, mas to somente discorrer alguns poucos comentrios.
O sagrado vive em uma constante tenso entre o desejo
institucional do controle e a busca insacivel pela liberdade. O
controle justifica-se pela necessidade da manuteno do status
quo, mais especificamente, de uma ordem religiosa e social (BASTIDE, 2006; MENDONA, 2007). por essa razo que religies tradicionais, baseadas na comunidade, conseguem maior
controle. Mas a selvageria irrompe nos momentos de transformaes sociais. Nesse aspecto, a poca em que vivemos bastante propcia a esse sagrado pouco domesticado, pois estamos
em tempo de intensas mudanas (BASTIDE, 2006).
J no bastassem a pluralidade e a diversidade religiosa,
consequncias de um mundo secular, as ltimas dcadas do
sculo XX, marcadas pelo processo de globalizao, contriburam para a flexibilidade das fronteiras culturais, e, por conseguinte, das religiosas (ORO, 1997; PACE, 1999; TERRIN,
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2003). No apenas as pessoas se sentem vontade para transitar de uma religio a outra, mudando de pertena, como ainda
visitar, e participar, de inmeras organizaes mantendo uma
pertena original (SOUZA, 2001). Opes o que no faltam.
Grupos religiosos, msticos, esotricos ou espiritualistas em
geral classificados como Nova Era ou Novos Movimentos Religiosos compem um universo de possibilidades, com raras
excees, pouco institucionalizadas, que permitem uma diversificada composio pessoal do sagrado (AMARAL, 2001;
CAMURA, 2003).
Como sugere Camura (2003), esses grupos transitam
entre os dois universos: por um lado utilizam-se de elementos
xamnicos, iniciticos, prticas mgicas diversas, elementos
dotados de poderes (pedras, cristais, talisms), batismo no Esprito etc. Por outro, conjugam slidas linhas de continuidade
com o projeto moderno, baseados na centralidade do indivduo. Este cada vez mais tornando-se o fiel da balana entre o
sagrado institudo e o sagrado selvagem.
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K E Y WO R DS
Sacred wild; Roger Bastide; possession; religious ecstasy; urban peripheries.
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