Incursões Nórdicas No Ocidente Ibérico (844-1147)
Incursões Nórdicas No Ocidente Ibérico (844-1147)
Incursões Nórdicas No Ocidente Ibérico (844-1147)
Tese de Doutoramento em
Histria Medieval
Maro 2012
AGRADECIMENTOS
Hlio Pires
RESUMO
A Idade Vikingue, que teve incio no final do sculo VIII, atingiu,
inevitavelmente, a faixa ocidental da Pennsula Ibrica, onde o primeiro ataque
registado ocorreu em 844. O que se seguiu foram mais de duzentos anos de incurses,
primeiro por piratas nrdicos e, a seu tempo, por cruzados do norte da Europa que
viajavam rumo Palestina. O presente trabalho analisa esse perodo da Histria no
contexto maior da Idade Vikingue e das mutaes ocorridas na Escandinvia da poca.
Comea por apresentar as fontes essenciais para o estudo do tema, incluindo aspectos
crticos a ter conta na sua leitura, antes de entrar nos vrios sculos de ataques e, no
final, fazer uma recolha dos vestgios deixados pelos nrdicos.
Hlio Pires
ABSTRACT
The Viking Age, which started at the end of the 8th century, inevitably reached
the western part of the Iberian Peninsula, where the first recorded attack took place in
844. What followed were more than two hundred years of incursions, first by Norse
pirates and, in time, by northern European crusaders who travelled to Palestine. The
present work analyses that period of History in the greater context of the Viking Age
and the changes that took place in Scandinavia at the time. It starts by presenting the
essential sources for the study of the topic, including critical aspects that need to be
taken into consideration when reading them, before entering the several centuries of
attacks and, in the end, recording traces left by the Norse.
ndice
Introduo
1. Terminologia
1.1. Vikingue
1.2. Normandos
1.3. Nrdicos
2. A Idade Vikingue
4. Estado da Arte
11
5. Estrutura e notas
16
I. Fontes
Captulo 1: Fontes norte-ibricas
1.1. Origens e ideologia
21
25
26
27
29
30
31
32
34
36
36
De expugnatione lyxbonensi
37
Espaa Sagrada
38
39
40
42
2.3. Al-Muqtabis
44
45
47
3.2. Morkinskinna
54
3.3. Fagrskinna
56
3.4. Heimskringla
58
60
grip af Nregskonungasgum
61
Orkneyinga saga
62
Kntlinga saga
63
64
65
66
II. Histria
Captulo 5: Terras vikingues
69
71
5.2. Embarcaes
74
5.3. Comrcio
77
5.4. Religio
81
85
90
92
95
99
104
111
114
114
117
120
127
129
131
132
134
136
148
151
154
155
156
157
159
161
168
170
175
177
187
190
193
195
197
199
206
213
216
219
222
225
III. Vestgios
Captulo 11: Lendas e festas
231
232
234
236
236
11.5. A Pastorinha
237
238
239
241
243
245
248
250
251
253
257
13.1. Os Gunderedos
258
260
261
Concluso
265
Bibliografia
275
Anexos
297
Introduo
1. Terminologia
As palavras tm os seus significados e, frequentemente, tambm ideias feitas e
preconceitos associados. Isto uma verdade que tem originado mal entendidos, erros
de persistncia varivel e incontveis recursos a dicionrios. E tambm o motivo pelo
qual o presente trabalho deve abrir com uma explicao sobre o significado de termos
essenciais da pesquisa. Caso contrrio, corria-se o risco de a leitura ser, desde o incio,
enviusada pelos pressupostos populares sobre vikingues e ter como vtima final a
compreenso dos dados aqui apresentados.
Vikingue
As enciclopdias e dicionrios de Lngua Portuguesa so um bom ponto de
partida por constiturem depsitos bvios de definies, etimologias e sentidos. Por
exemplo, a Enciclopdia Luso-Brasileira de Cultura da Verbo contm o termo viking,
que define como um povo cuja vida, mais do que a de qualquer outro do seu tempo,
estava ligada ao mar, desenvolvendo tcnicas de construo naval, de navegao e
de guerra martima altamente eficientes (Machado 2003, 516). A Focus - Enciclopdia
Internacional da Livraria S da Costa remete para Normandos, que diz ser o nome dos
vikings a quem o rei de Frana cedeu em 911 a regio francesa que passou a ser
chamada Normandia (Rocha et al. 1964, 614), enquanto o Dicionrio de Lngua
Portuguesa Contempornea da Academia das Cincias de Lisboa define um viking
como um indivduo pertencente aos Vikings, povo de navegadores escandinavos, que
entre os sculos VIII e X, efectuou diversas incurses em regies litorais do ocidente
europeu (2001, 3750). O Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa mantm a definio
de povo de navegadores, acrescentando guerreiros e mercadores e estendendo a sua
actividade ao sculo XII, e fornece uma grafia portuguesa para o termo: vquingues
(Machado 1981, 540). O mesmo faz o Dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa, que
indica tambm o nrdico antigo vkingr como etimologia da palavra (Houaiss & Villar
2003, 3713). Numa nota ligeiramente diferente, mas relevante, o Grande Dicionrio
Enciclopdico oferece o significado de nome dado aos navegantes escandinavos que,
1
Normandos
Normando um termo associado a vikingue, aparecendo frequentemente nas
fontes latinas (normannus) com o significado bvio de homem do norte; nas crnicas e
documentos do norte da Pennsula Ibrica, surgem variantes como Lordemanos ou
Leordemanos. At ao final do sculo X, possvel us-lo como sinnimo de vikingue,
mas, dado que os nrdicos que se estabeleceram na Normandia tero sido assimilados
no espao de poucas geraes, a partir do ano 1000 est-se perante um sentido novo
do termo: o de algum de cultura latina, afrancesado ainda que com vestgios
escandinavos e oriundo da Normandia. Territrio esse, alis, assim denominado por
ter sido, em parte, doado a um vikingue por volta de 911 e parcialmente colonizado
por nrdicos, o que viria a dar ao termo um valor gentlico especfico de uma regio de
Frana, mas sem que tivesse eliminado o sentido mais geral de algum vindo do norte,
nomeadamente um pirata. Isto pode tornar o uso do vocbulo confuso a partir do
sculo XI, principalmente se no se conseguir identificar a origem dos normandos em
causa. Por exemplo, tanto quanto o relato medieval permite perceber, os que
participaram na conquista de Lisboa em 1147 tero vindo de Inglaterra, o que quer
dizer, com toda a probabilidade, que est a falar-se de cruzados oriundos da
Normandia ou dos territrios por ela conquistados (como Inglaterra em 1066) e no de
vikingues.
Assim, os dois termos no so necessariamente sinnimos e, dessa forma, por
poder ser confuso mais ainda do que j o nas prprias fontes medievais -
desaconselhvel o seu uso como um equivalente puro e simples de vikingue.
Nrdicos
Este termo significa, em portugus, algum de raiz germnica oriundo do norte
da Europa. , por isso, mais apropriado do que escandinavo, que poderia, na acepo
actual, incluir a Finlndia, que de matriz fino-grica, e excluir os territrios nas Ilhas
Britnicas que foram colonizados ou conquistados por vikingues e de onde partiram
vrios bandos de piratas. Alm disso, porque o parmetro cronolgico deste trabalho
vai para l de 1100, exige-se um termo que permita mencionar a matriz cultural dos
atacantes sem cometer o anacronismo de vikingue, cuja Idade terminou no sculo XI,
ou cair nos problemas de escandinavo. Da, portanto, que o ttulo refira incurses
nrdicas.
2. A Idade Vikingue
A diviso clara da Histria em perodos tem o seu qu de artificial. uma
simplificao da realidade nascida da conscincia de padres ou de fenmenos
dominantes que, dessa forma, baptizam uma dada poca. Se, por um lado, facilita a
compreenso, por outro, pode ofuscar diferentes realidades e acarreta o risco de
tomarmos os limites de um perodo como momentos de mudana brusca, quando a
Histria algo mais fluido e diverso.
No caso da Idade Vikingue, o fenmeno dominante o da pirataria nrdica,
cuja ecloso, tradicionalmente, datada de 793, quando o mosteiro ingls de
Lindisfarne foi saqueado. O acontecimento chocou clrigos como Alcuno que, numa
carta escrita a partir da corte carolngia, interpretou o sucedido como um castigo
divino pelo desleixo moral do Rei da Northumbria e do seu povo. No entanto, h
registo de um outro ataque alguns anos antes, em 789, no sul de Inglaterra, onde um
grupo de nrdicos foi confundido com comerciantes e acabou por matar o
representante rgio local. Um dos manuscritos da Crnica Anglo-Saxnica acrescenta
mesmo que eles eram oriundos de Hrthaland, na Noruega (Crnica de Laud;
Garmonsway 1953, 55). E, antes de 789, possvel que j existissem piratas nrdicos
no Bltico. No estamos, portanto, a falar de um fenmeno que tenha surgido de um
dia para o outro em 793, nem do aparecimento de povos desconhecidos na costa
inglesa: entre as crticas feitas por Alcuno aos cristos da Northumbria est a imitao
do corte de cabelo e barba de pagos ou, nas palavras da prpria carta, no sois vs
7
agora ameaados por aqueles cujos modos vs quisesteis seguir? (Whitelock 2010,
233). Isto deixa no ar a possibilidade de ter havido contactos entre nrdicos e Ingleses,
por ventura comerciais, antes de 793. Pelo menos, os Francos tero tido essa
experincia, dada a sua expanso para norte e a consequente proximidade geogrfica
com a Escandinvia. Por estes motivos, e por muito grande que possa ter sido a
surpresa de Alcuno, a Idade Vikingue no nasce do nada, mas vem no seguimento de
uma expanso comercial nrdica no Bltico, mais ou menos agressiva, e de contactos
entre a Europa ocidental e o norte. E esse perodo marcado pela pirataria ter
comeado por volta de 789, quando os assaltantes nrdicos entram no registo
cronstico da Europa ocidental.
Mais difcil datar o final da Idade Vikingue. Uma das ltimas grandes
campanhas nrdicas contra a Inglaterra teve lugar em 1066, quando o monarca
noruegus Haraldr harri (Governante Rgido) tentou, sem sucesso, conquistar o
trono ingls, abrindo, no entanto, caminho para a vitria de Guilherme, Duque da
Normandia, nesse mesmo ano. Duas dcadas depois, esteve em preparao uma
expedio dinamarquesa que no chegou a destino e regista-se ainda uma campanha
de saque em 1153, liderada pelo rei noruegus Eysteinn Haraldsson. Ao mesmo
tempo, a pirataria nrdica persistiu na Esccia at ao ltimo quartel do sculo XII. a
continuidade prpria dos fenmenos histricos que no comeam de um dia para o
outro nem estacam no momento em que se diz ter terminado uma poca. E por isso
que a diviso em perodos assenta, muitas vezes, em datas simblicas que anunciam
uma nova realidade sem, contudo, equivalerem a uma ruptura plena com o passado. A
conquista de Ceuta em 1415 pode ter sido o primeiro passo da Expanso Portuguesa,
mas no significou o fim imediato da realidade medieval. H prticas ou padres que
persistem e que s muito lentamente desaparecem e foi assim com a pirataria nrdica,
que teve um longo crepsculo at s ltimas dcadas do sculo XII.
Qual, ento, o momento que anuncia o fim da Idade Vikingue? Para o presente
trabalho, optou-se pelo terminus marcado pela expedio dinamarquesa que nunca
chegou ao seu destino, em 1086. O fenmeno da pirataria nrdica pode ter persistido,
mas o contexto era j outro: tinham acabado as grandes vagas de incurses, que
passaram a ser fenmenos largamente regionais, afirmava-se o ideal de cruzada crist
e comeavam a surgir, na Escandinvia, Estados monrquicos fortes. O que
8
que, no se tratando de uma ilha, o oeste ibrico est ligado ao resto da linha costeira,
mas, dada a necessidade de se limitar o espao de anlise, optou-se por um dado
quadrante em toda a sua extenso que, porventura, ser um dos mais relevantes da
Pennsula: afinal, ponto de passagem obrigatrio nas viagens martimas entre o Golfo
da Biscaia e Gibraltar e, nesse sentido, com hipteses de abranger um maior nmero
de incurses. Em segundo lugar, porque a continuidade geogrfica complementada
pela histrica e cultural. No errado afirmar que aquilo que viria a ser o Reino de
Portugal foi, de origem, parte integrante do territrio da Galiza e que, mesmo depois
de consagrada a separao poltica das duas entidades, permaneceu uma unidade
lingustica e cultural galaico-portuguesa, ricamente expressa na literatura medieval e
constatvel ainda hoje, nomeadamente no idioma, no obstante as mutaes de
sculos e o melindre poltico da questo. Alguns diro que, no perodo dos ataques
vikingues, o espao galego-portugus no chegava ainda ao Algarve. um facto! Mas
tambm verdade que a linha de fronteira entre o norte cristo e o sul muulmano no
ocidente ibrico esteve em mutao entre os sculos IX e XII: estava no Douro em 868,
no Mondego em 878 antes de recuar para norte em 987, quando Almanor tomou
Coimbra, e depois no Tejo em 1147. Limitar o parmetro geogrfico da pesquisa at
este ltimo rio era uma hiptese, mas, a incluir territrio sob o domnio rabe entre o
Douro e o Tejo, porqu excluir o resto da faixa ocidental peninsular s porque,
poca, no fazia parte do espao galego-portugus? Mais valia analisar todo o
quadrante oeste.
Assim, o presente trabalho resultado do estudo das incurses nrdicas no
ocidente da Pennsula Ibrica e, de forma a determinar onde acaba o territrio sob
anlise, tomaram-se por referncia as actuais fronteiras orientais da Galiza e de
Portugal. No se entenda por isto que sero ignorados os acontecimentos a leste de
Ribadeo ou da foz do Guadiana: a Idade Vikingue no nasceu nem se limitou aos
actuais territrios galego e portugus, pelo que, naturalmente, sero referidos
momentos como o saque de Sevilha de 844 ou a dinmica das incurses nas Ilhas
Britnicas e em Frana. Nem de outra forma poderia ser se quisermos colocar em
contexto ou entender melhor o sucedido no ocidente ibrico.
Quanto ao parmetro cronolgico, era bvio que teramos que incluir a Idade
Vikingue em toda a sua extenso ou, mais concretamente, a partir da primeira
10
4. Estado da Arte
No obstante ser um tema pouco tratado em Portugal, o estudo das incurses
nrdicas no oeste ibrico conta j com alguns sculos de Histria, principalmente sob a
forma de pequenos artigos ou referncias dispersas e subordinadas a outros tpicos.
Uma das primeiras abordagens ao assunto encontra-se no primeiro volume da
Corografia Portugueza de Antnio Carvalho da Costa, que sugere uma origem nrdica
11
para o nome de uma povoao minhota (1706, 218) e, ainda no sculo XVIII, o Portugal
Renascido de Manoel da Rocha ocupa parte do captulo 13 com a questo dos
gentios que motivaram a construo do Castelo de Guimares (1730, 337-40). Mais
de cem anos depois, a presena de vikingues no actual territrio portugus voltaria a
ser objecto de anlise num trabalho intitulado Invases dos Normandos na Pennsula
Ibrica, cuja autoria original pertence a Ernest Mooyer, mas que foi publicado entre
ns graas a Gabriel Pereira (1876). Ter sido a primeira obra inteiramente dedicada
ao tema a circular em Portugal, pese embora a dimenso reduzida de cerca de vinte
pginas. Tefilo Braga tocaria no assunto na sua Histria do Direito Portuguez (1868) e,
pouco mais de duas dcadas depois, as aces dos homens do norte seriam
novamente analisadas, desta vez por Adam Kristoffer Fabricius, cuja pesquisa seria
acolhida pela Sociedade de Geografia de Lisboa e publicada em 1892 pela Imprensa
Nacional. Ainda no sculo XIX portugus, de realar a publicao, a partir de 1856, dos
Portugaliae Monumenta Historica por Alexandre Herculano, que tornou mais
acessveis algumas das fontes documentais essenciais para o tema, e o estudo de
Alberto Sampaio sobre as Pvoas Martimas do Norte de Portugal, incorporado numa
nica publicao com outros trabalhos seus j no sculo XX (1979).
A centria seguinte traria mais estudos e referncias aos vikingues entre os
estudiosos portugueses, mas sem que tivesse surgido um trabalho detalhado sobre o
tema. Em 1922, o primeiro volume da Histria de Portugal de Fortunato de Almeida
incluiu uma breve referncia investida nrdica de 844 (1922, 109), enquanto, uns
anos mais tarde, Antnio Aguiar Cardoso publicou um pequeno trabalho intitulado
Terras de Santa Maria, onde dedicou algumas pginas notcia medieval do
pagamento de um resgate e a hipteses de assentamento nrdico no actual territrio
portugus (1929, 53-6 e 75). Ter sido tambm pela mesma altura que Jos Leite de
Vasconcelos comeou a dar forma sua Etnografia Portuguesa, que s seria publicada
aps a sua morte, mas cujo quarto volume contm algumas referncias aos homens do
norte (1982, 19-27). Ainda em 1928, outra Histria de Portugal, desta vez dirigida por
Damio Peres, voltava a fazer meno breve aos ataques dos homens do norte (1928,
441-2, 456 e 460). Trs anos depois, do Instituto Alemo da Universidade de Coimbra
saiu uma recolha e breve anlise das fontes sobre o tema, pela mo de Lus Saavedra
Machado (1931). A mesma dcada traria ainda referncias aos vikingues no segundo
12
15
5. Estrutura e notas
Por uma questo de clareza e de comodidade de leitura, convm ainda
acrescentar alguns dados sobre a estrutura bsica das pginas que se seguem e o
modelo de referncias bibliogrficas pelo qual optmos.
Assim, a primeira parte deste trabalho inteiramente dedicada apresentao
e anlise das principais fontes escritas, organizadas de acordo com a sua origem:
norte-ibricas, rabes, nrdicas e outras da Europa ocidental alm-Pirinus. Os trs
primeiros grupos abrem com uma contextualizao histrica e literria antes da
abordagem individual das fontes, na qual se procede anlise das questes de autoria,
datao e transmisso manuscrita de cada uma. Algo que pensamos ser relevante,
porque todos esses aspectos pesam no valor dos textos enquanto fonte histrica.
necessrio saber quando e por quem foram redigidos, com que motivao e como
que foram preservados para se perceber se so muito ou pouco fidedignos e em que
aspectos. Correndo o risco de dizer o bvio, o facto de algo estar escrito no quer dizer
que seja necessariamente verdadeiro, porque o autor pode ter adulterado a
informao, moldado os acontecimentos de acordo com as suas motivaes e a
transmisso oral ou escrita pode ter adicionado ou retirado contedo. E, por esse
motivo, necessrio fazer uma anlise crtica de cada uma das fontes. No que tudo o
que dizemos a respeito da autoria e datao de crnicas e outras narrativas tenha
implicaes na anlise dos acontecimentos histricos que elas transmitem, mas, em
alguns casos, as consideraes crticas fazem a diferena. Por exemplo, Ibn al-Qutiya
diz que os vikingues chegaram a Alexandria antes de voltarem ao Estreito de Gibraltar
e, se no tivssemos em conta que o seu trabalho incorporou tradies populares,
talvez fssemos levados a acreditar nele. Da mesma forma, podamos pensar que So
Rosendo lutou activamente contra os vikingues, no fosse o facto de o nico texto que
o refere ser a sua prpria hagiografia, cuja narrativa est longe de ser rigorosa. Ou
assumir que o noruegus lfr Haraldsson passou pela costa galega-portuguesa por
haver sagas nrdicas que o colocam perto de Gibraltar, quando a referncia mais
antiga a essa viagem se encontra num poema cuja transmisso oral pode ter
acrescentado elementos em prosa. Nenhuma destas consideraes poderia ser feita
sem um olhar crtico sobre as fontes, motivo pelo qual comeamos por analis-las.
16
17
18
I.
FONTES
19
20
Captulo 1
Fontes norte-ibricas
1. Origens e ideologia
Para perceber o valor de uma obra como fonte de informao histrica, assim
como o contexto que moldou o seu contedo, por vezes preciso recuar no tempo
para analisarmos a origem e orientao de alguns textos. No caso das crnicas
asturianas e das suas sucessoras imediatas, essa raiz distante encontra-se na Hispnica
suevo-goda.
Chegados Pennsula Ibrica no sculo V, os Visigodos assumiram o controlo do
territrio mais ocidental da Europa cerca de cem anos depois. Atingida a unidade
religiosa com a converso de Recaredo ao catolicismo, em 589 (Garca Moreno 1998,
136-8), seguiu-se a territorial em 625 e a unificao legislativa com o Liber Iudicorum
de Recesvindo em 654 (Garca Moreno 1998, 168-9). A Hispnia ganhava tambm um
sentido de identidade, processo para o qual contribuiu a Historia de regibus Gothorum,
Vandalorum et Suevorum de Isidoro de Sevilha, que foi terminada entre os anos de 620
e 6242. Apresenta uma narrativa que vai do Gnesis at aos reis do seu tempo,
passando pelos imperadores romanos e organizada luz do conceito de idades do
mundo e, nesse sentido, uma obra universalista. Mas o nfase final nos monarcas
visigodos d-lhe um carcter nacional que anuncia o nascimento da Hispania enquanto
realidade poltica e territorial, provida de uma identidade e destino providencial
(Rodrguez Alonso 1975, 18-9). As prprias referncias cronolgicas manifestam esse
ideal pelo uso da Era Hispnica, cujo ano zero marca a pacificao do territrio pelos
Romanos em 38 a.C. (Oliveira Marques 1992, 411).
No incio do sculo VIII, o Reino Visigtico encontrava-se imerso em conflitos
internos. Nunca esteve totalmente livre deles, motivados que foram por um clero
interventivo, uma nobreza ambiciosa e um sistema monrquico electivo, mas a
situao agravou-se aps a sada de cena do rei Vamba em 680, numa abdicao
assombrada por suspeitas de um golpe palaciano (Garca Moreno 1998, 175-6). Em
2
Existem duas redaces da obra, uma breve e outra mais extensa. Tero sido concludas por volta de
620 e 624, respectivamente. Cf. Rodriguez Alonso 1975, 25-30.
21
702, sobe ao trono Vitiza, que ainda tentou uma pacificao da nobreza custa de
novas concesses classe nobilirquica e em prejuzo dos cofres da Coroa (Garca
Moreno 1998, 188). Conseguiu, no entanto, associar ao trono um favorito seu
chamado quila, a quem o monarca confiou o governo das provncias Tarraconense e
Narbonense. Falecido o rei por volta de 709, o seu herdeiro putativo permaneceu nos
territrios por ele administrados, sem ir a Toledo reclamar a coroa, enquanto as
intrigas palacianas obrigaram alguns membros da sua famlia a abandonarem a capital
e a procurarem refgio na Galiza. Reunidas em Toledo, as elites secular e religiosa que
se opunham a quila elegeram, ento, Rodrigo, Governador da Btica, proclamando-o
rei em 710. O favorito de Vitiza ainda reagiu, mas sem sucesso.
O contexto de guerra civil e de ressentimentos internos apresentava-se como
uma oportunidade para as autoridades islmicas no norte de frica, que fizeram
desembarcar no sul da Pennsula uma pequena fora, em Julho de 710. No Vero do
ano seguinte, chegou Ibria um novo exrcito muulmano com o objectivo de
conquistar o territrio, apresentando-se diante das tropas de Rodrigo junto s
margens do rio Guadalete. O rei visigodo foi derrotado e abandonado e o que se
seguiu foi o rpido colapso da Hispnia, com Toledo a render-se sem combate. Em 712,
desembarca outro exrcito islmico que toma Medina Sidonia, Sevilha e pe cerco a
Mrida, onde os partidrios de Rodrigo ofereceram resistncia at Junho de 713 (LviProvenal 1950a, 15-6). Em 714, tomada vora, Santarm e Coimbra (Mattoso
1992a, 321), a que se junta Saragoa, Burgos, Leo, Astorga, Lugo e talvez Viseu. Em
apenas trs anos, quase toda a Pennsula Ibrica ficou sob domnio muulmano e a
ascenso de uma elite islmica de lngua rabe ditou o desaparecimento das condies
polticas e sociais que deram azo Histria de Isidoro de Sevilha. O desaire visigtico
no ficou, no entanto, sem resposta.
Sem que se saiba ao certo como e por quem, por volta de 718, na cadeia
montanhosa das Astrias, um grupo de habitantes revoltou-se contra os novos
senhores muulmanos. Eram liderados, reza a lenda, por um homem chamado Pelgio,
a quem tradies posteriores e politicamente motivadas atribuem uma genealogia
entroncada nos monarcas de Toledo (Mattoso 1992b, 442). No ano de 722, em
Covadonga (uma vez mais, segundo a lenda), os revoltosos derrotaram um exrcito
muulmano, abrindo caminho fundao do Reino das Astrias e ao incio do que
22
ficaria conhecido como a Reconquista Crist. Seria uma lenta guerra de conquista da
Pennsula aos muulmanos que duraria at queda de Granada em 1492, mas que em
Portugal estaria concluda em 1249, quando se d a tomada de Faro.
Cerca de um sculo depois desse momento fundacional, a historiografia
hispnica resgatada da sua dormncia. Ter sido Alfonso II, chamado o Casto, quem
tomou a iniciativa e ordenou a recolha de textos isidorianos, assim como memrias e
tradies sobre os ltimos reis visigodos. O jovem Reino das Astrias vivia ento o seu
primeiro renascimento cultural e procurava, no sem surpresa, afirmar o seu prestgio.
Assim, em 791, o Rei Casto fixou a capital em Oviedo e iniciou um projecto de
construo monumental com vista organizao administrativa e glorificao do
reino. Ter sido tambm nesta poca que comeou a ganhar forma o ideal hispanogodo, que procurava fazer da monarquia asturiana a herdeira legtima e directa do
Reino Visigtico: sintomaticamente, segundo a Crnica Albeldense (XV:9; Gil Fernandez
et al. 1985, 249), Alfonso II instituiu, na Igreja como no palcio real, os costumes e
sistema de governo que os Godos tinham em Toledo. E, como parte desse projecto
poltico, surgem os primeiros passos na recuperao da tradio historiogrfica de
Isidoro de Sevilha. Como j outros mencionaram, mais do que mera influncia literria,
estava presente o desejo de dar continuidade a uma mundividncia e em fazer reflectir
sobre o Reino das Astrias o esplendor da Hispnica visigtica (Gil Fernandez et al.
1985, 16). As crnicas asturianas, tal como, depois delas, as leonesas, so produto
dessa ideologia e, ainda que com hesitaes iniciais, reflectem o desejo de ligar
directamente o trono asturiano ao godo.
Numa poca de profunda religiosidade socialmente transversal, os registos
histricos so tambm moldados por uma perspectiva teocntrica. A Histria
desenrola-se sob o olhar atento de Deus e a vontade divina manifesta-se em
acontecimentos fulcrais que recompensam, salvam ou punem os homens. Assim, por
exemplo, para os autores das crnicas asturianas foram os actos de Vitiza e os pecados
cometidos no reinado de Rodrigo que levaram queda do Reino Visigtico (Rotense 5
e 7; Gil Fernandez et al. 1985, 198 e 200) e a Providncia que permite a fundao do
Reino das Astrias (Crnica Albeldense XV:1; Gil Fernandez et al. 1985, 247). Neste
aspecto, o relato segue de perto o modelo bblico, evidenciado pelo prprio autor da
verso Rotense da Crnica de Alfonso III, que cita passagens do Evangelho segundo S.
23
24
2. Crnica Albeldense
Das crnicas norte-ibricas relevantes para o tema das investidas nrdicas, a de
Albelda a mais antiga e a primeira das trs grandes que foram redigidas no Reino das
Astrias, se contarmos separadamente as duas verses da Crnica de Alfonso III.
A verso manuscrita original no chegou aos nossos dias, embora, nesse
aspecto, a Albeldense no seja dos piores casos, dado que sobreviveu num cdice do
Mosteiro de Albelda, datado de cerca de 976 (Gil Fernandez et al. 1985, 81). O ttulo
com que hoje a conhecemos deriva, portanto, do nome do documento que preservou
a crnica. O ano em que foi terminada indicado pelas ltimas linhas do prprio texto
como tendo sido o de 883, embora j se tenha proposto que foi inicialmente concluda
dois anos antes. S depois teria sido acrescentada uma parte final, encerrando a
crnica tal como a conhecemos no referido ano (Gil Fernandez et al. 1985, 34).
J a autoria uma questo menos clara e, at data, sem nome. GmezMoreno sugeriu que tivesse sido escrita por um monge do Mosteiro do Monte Laturce
(Gil Fernandez et al. 1985, 33-4), hiptese recusada por Cladio Snchez-Albornoz
(1967, 72-9), que prope, em alternativa, uma autoria ovatense. De resto, o prprio
texto denuncia alguma familiaridade com a cidade de Oviedo, enunciando igrejas e o
interior de edifcios, incluindo o prprio palcio real (Albeldense XV:9; Gil Fernandez et
al. 1985, 248-9). Por isso e pelo seu contedo, tanto narrativo como ideolgico,
alinhado com o ideal hispano-godo, possvel que o autor tivesse sido algum da corte
de Oviedo ou, pelo menos, familiarizado com os crculos de poder do Reino das
Astrias. No final do captulo 11, a crnica inclui mesmo a nota de que Alfonso II jaz
aqui entre os altares que mandou edificar.
25
3. Crnica Proftica
Trata-se de uma crnica do final do sculo IX, contempornea da Albeldense,
em cujo texto foi incorporada em dado momento da preservao manuscrita. Enrique
Flrez public-las-ia em conjunto na sua Espaa Sagrada, mas, em 1932, GomzMoreno deu narrativa o nome de Crnica Proftica (Gil Fernandez et al. 1985, 37).
O ttulo deve-se ao contedo do texto que, aps abrir com uma genealogia
mtica dos rabes, relata a sua entrada na Pennsula Ibrica, a queda dos Visigodos e
lista os primeiros governantes muulmanos da Hispnia com o objectivo confesso de
prever a sua expulso eminente do territrio. A base da previso era uma profecia
bblica e, por esse motivo, a crnica foi apelidada de proftica.
26
Espanhola. Mas a verso de Sergote , por sua vez, cpia de outra obra, doada
Biblioteca do Escorial em 1578 e destruda num incndio em 1671. Igualmente
complexo caso do chamado Cdice Ovatense de Morales, que uma reproduo de
sculo XVI de um texto do Bispo de Oviedo que, supostamente e por sua vez,
reproduziu parte de uma obra da poca de Alfonso III (Gil Fernandez et al. 1985, 45-8).
Melhor sorte teve a verso Rotense, assim denominada por ter sido preservada no
Cdice de Roda, datado, o mais tardar, do sculo XI (Gil Fernandez et al. 1985, 54).
A publicao desta ltima verso em 1910 abriu o debate sobre qual das duas
seria a mais antiga. De incio, a tese dominante defendia a anterioridade da Ad
Sebastianum, mas foram vrios os estudiosos que acabaram por propor o oposto.
Entre eles esteve Cladio Snchez-Albornoz, que baseou a sua teoria no carcter mais
popular de alguns episdios e nas diferenas de estilo e de contedo, como o uso de
um latim menos cuidado na composio da Rotense, caracterstico de um leigo ou
clrigo pouco culto (Snchez-Albornoz 1967, 97-8). O mesmo estudioso sugere at que
o autor tenha sido o prprio Alfonso III ou um grupo sob a sua orientao (1967, 1023). Curiosamente, a Rotense no faz de Pelgio um descendente dos reis de Toledo, o
que talvez indique que o desejo de fazer do trono asturiano um sucessor directo do
visigodo tenha tido origem no nos crculos polticos, mas antes no meio religioso. E
ter sido a um clrigo que o texto foi depois enviado para reviso, originando a verso
Ad Sebastianum, que denuncia uma autoria erudita e est plenamente integrada no
ideal hispano-godo. A data de composio da Rotense no certa: a ser posterior
Crnica de Albelda, pode estabelecer-se o ano de 883 ou 884 como terminus post
quem, conforme sugere Ruiz de la Pea (Gil Fernandez et al. 1985, 39). E, se tomarmos
igualmente como certa a autoria de Alfonso III, seja ela literal ou apenas orientao do
monarca, ento a crnica teria sido terminada o mais tardar em 910, ano da morte do
rei. A data de concluso da Ad Sebastianum dever encontrar-se tambm nessa janela
temporal de cerca de vinte e cinco anos.
A respeito das incurses nrdicas, ambas as verses da Crnica de Alfonso III
referem os mesmos acontecimentos que a Albeldense, se bem que, como veremos,
possa fazer-se uma leitura diferente dos que ocorreram por volta de 860. Uma vez
mais, a proximidade cronolgica com os acontecimentos favorece a sua credibilidade
enquanto fonte histrica, embora se possa questionar a validade da Ad Sebastianum
28
5. Crnica de Sampiro
Editada, pela primeira vez, em 1615 por Prudncio de Sandoval, uma crnica
reconstruda, dado que chegou aos nossos dias atravs da sua incluso noutros dois
textos: a Histria Silense5 e o trabalho de Pelgio de Oviedo. So ambas verses do
sculo XII, mas a primeira tida como a mais fiel e a segunda como estando carregada
de interpolaes e alteraes.
Tal como o texto que nos legou, tambm o que hoje se diz sobre a identidade
do autor uma reconstruo. Pelgio de Oviedo identificou Sampiro como o Bispo de
Astorga e houve de facto um prelado com esse nome e cargo, tal como se conhece a
existncia de um notrio da corte de Leo tambm ele chamado Sampiro. J no sculo
XX, Prez de Urbel seguiu a teoria de Pelgio e fez uma reconstruo biogrfica com
base em documentos da poca, traando a vida de Sampiro desde o seu nascimento
em Bierzo, nos actuais limites de Leo com a Galiza, at sua morte como Bispo de
Astorga, por volta de 1042. Pelo meio, ter sido notrio na corte de Bermudo II, que o
acolheu, e ainda de Alfonso V, por vezes exercendo, julga-se, o papel de conselheiro da
famlia real (1952, 129-30).
A preservao manuscrita da crnica est ligada da Histria Silense, dado a
incluso da primeira nesta ltima. Sem ela, restar-nos-ia apenas a verso interpolada
de Pelgio de Oviedo, que moldou o texto ao seu gosto e chegou mesmo a adulterar a
narrativa. Uma diferena entre as duas verses a forma como Bermudo II
retratado: Pelgio tinha uma opinio negativa do monarca, mas o autor original da
crnica teria a posio oposta, dado que foi acolhido e protegido por esse rei. Assim,
Sampiro descreve Bermudo II como um bom governante, estimando igualmente
familiares do soberano. Quanto a fontes, ter usado a Albeldense e j se colocou a
hiptese de ter recorrido a um texto hoje perdido sobre o reinado de Ramiro III, dado
o grau de detalhe da narrativa (Prez de Urbel 1952, 44). A proximidade cronolgica
tambm pode ter permitido o recurso a testemunhos orais da poca e, a esse respeito,
29
6. Histria Silense
uma narrativa incompleta e de autor parcialmente desconhecido: eis duas
caractersticas desta crnica que, no que se refere s incurses nrdicas, pouco mais
faz do que repetir as suas antecessoras.
Foi publicada, pela primeira vez, em 1721 nas Antiguidades de Espaa de
Francisco Berganza, que indicava como autor um monge do Mosteiro de So Domingos
de Silos. A tese foi seguida por Flrez em 1763, quando tambm ele publicou a
narrativa no tomo XVI da sua Espaa Sagrada, com o ttulo de Cronico do monge de
Silos (Prez de Urbel & Gonzalez Ruiz-Zorrilla 1959, 10). Desse modo, o texto passou a
ter a denominao de Silense. No ter sido composto antes de 1109, dado que o
autor indica ter iniciado o trabalho depois da morte de Alfonso VI, que ocorreu nesse
ano. Prez de Urbel e Gonzalez Ruiz-Zorrilla acreditam, por isso, que a Histria ter
sido escrita algures durante a segunda dcada do sculo XII (1959, 69). O referido
monarca , alis, o tema da crnica, mas a narrativa termina sem cumprir o objectivo a
que o autor se props.
30
7. Cronico Iriense
Foi durante muito tempo menosprezado, confundido com um texto de sculo
XV intitulado Crnica de Santa Maria de Iria ou considerado um apndice Historia
Compostelana. Mas, de acordo com Manuel Garca Alvarez, o Cronico Iriense uma
obra anterior e de algum valor histrico (1963, 70-2).
Desde o sculo XVI que diversos textos aludem a uma histria antiga dos Bispos
de Iria e Compostela (Garca Alvarez 1963, 25), mas a crnica s seria publicada na
Synopsis histrica chronolgica de Espaa de Juan de Ferreras, em 1702. De entre os
manuscritos que contm o Cronico Iriense, o mais antigo data do final do sculo XII,
existindo ainda uma cpia idntica do mesmo perodo (Garca Alvarez 1963, 31-2).
As teorias sobre a datao reflectiram durante muito tempo a posio de
Flrez, que considerou o Cronico um trabalho intimamente ligado Historia
Compostelana. Garca Alvarez menciona que tambm chegou a ser proposta a data da
ltima entrada, que o ano de 984, e ainda o final do sculo XI (1963, 80-2). O mesmo
estudioso focou-se numa srie de detalhes para propor um perodo aproximado para a
composio do Cronico: refere, por exemplo, o uso do topnimo Compostela, que
comum apenas a partir do sculo XI, e a referncia igreja compostelana de So
Martinho, cuja construo comeou no final do sculo X, tornando plausvel que o
autor escrevesse numa altura em que o templo j estaria concludo. Se a isto
juntarmos a distino clara entre o Cronico e a Historia Compostelana, que Garca
Alvarez defende com base na ideia de que os autores no usaram os trabalhos um do
outro, ento torna-se possvel datar o texto da segunda metade do sculo XI, talvez
mesmo dos anos em redor de 1080 (Garca Alvarez 1963, 85-90). A autoria uma
questo de resoluo muito mais difcil: possvel sustentar a hiptese de a obra ter
31
sido composta por um clrigo de Santiago de Compostela, mas sem certezas quanto
sua identidade.
O relato do Cronico , por vezes, fragmentrio, como se construdo a partir da
juno de peas de origens diferentes. Algumas delas so conhecidas, como os
trabalhos de Hidcio e Isidoro de Sevilha, mas Garca Alvarez chama-lhe uma
refundio de textos e at de tradies populares (1963, 98). Actualmente, tem o valor
de conservar informao de fontes hoje perdidas, enquanto na Idade Mdia, com a
proliferao de outros trabalhos que abordavam os mesmos temas, teria falhado nessa
mais-valia. Desse modo, ter acabado por cair no esquecimento at ao sculo XV,
altura em que dela se fez uma verso galega intitulada Crnica de Santa Maria de Iria.
Esta ltima nem sempre concorda com o Cronico, devendo encarar-se mais como
uma reescrio e no apenas uma traduo para galego.
O valor do texto para o estudo das incurses nrdicas no ocidente peninsular
varivel. Se, por um lado e conforme veremos, o recurso a tradies populares arrisca
a confuso ou exagero de episdios histricos, por outro, o Cronico Iriense contm
um relato da grande incurso de 968 que merece uma leitura atenta, nomeadamente
em conjunto com a Histria Compostelana.
8. Historia Compostelana
Publicada, pela primeira, em 1765 no volume XX da Espaa Sagrada de Flrez,
a quem se deve o ttulo de Historia Compostelana, trata-se de uma obra composta
aproximadamente entre 1107 e 1149. De incio, foi planeada como um registo
documental e narrativo dos sucessos da Igreja de Compostela, que passou de diocese a
arquidiocese durante o governo eclesistico de Diego Gelmrez.
Tanto a autoria como a datao exactas da obra so em parte incertas. Foi
certamente composta por mais do que uma mo ao longo de vrias dcadas e a
identidade de alguns dos autores geralmente aceite. Nuno ou Munio Afonso tido
como o primeiro deles e quem concebeu a obra como um registo documental com um
relato narrativo e acompanhado pela transcrio de documentos oficiais. No fundo,
uma combinao da gesta de uma crnica com o registo prprio de um cartulrio,
preservando a memria de feitos e privilgios. A data de incio da composio difcil
de precisar: Emma Falque Rey, tradutora e editora da obra em 1994, recua at 1107,
32
9. Chronica Gothorum
Foi com este ttulo que, parcialmente, apareceu publicada, pela primeira vez,
em 1632, na terceira parte da Monarquia Lusitana de Antnio Brando. Flrez, que a
incluiu na sua Espaa Sagrada, chamou-lhe Chronicon Lusitanum, com base no critrio
de que se referia mais a Portugal do que aos Godos. Existe ainda um texto bastante
prximo chamado Brevis Historia Gothorum.
Na realidade, semelhana de outras fontes coevas ou anteriores do norte da
Pennsula Ibrica, a Chronica comea com a presena visigtica no territrio e a
invaso muulmana, para depois se deter em acontecimentos de 987 a 1184 e,
essencialmente, no actual territrio portugus. Faz, por isso, uma verdadeira
contextualizao da reconquista na faixa ocidental da Pennsula.
A histria interna da crnica complexa. Antnio Brando ter tido acesso a
um documento em tempos propriedade de Andr de Resende, que o datou do sculo
XIII, mas que Pierre David no d como mais antigo do que o sculo XIV (1947, 280-1).
Dessa fonte, hoje perdida, ter transcrito a verso da Chronica Gothorum que se
encontra nos apndices da Monarquia Lusitana. Mas Brando diz ter encontrado
tambm um texto semelhante, mais resumido e que refere ter retirado de
documentos dos mosteiros de Alcobaa e Santa Cruz de Coimbra, verso a que se deu
o nome de Brevis Historia Gothorum. A complexidade do tema adensa-se se tivermos
em conta as dvidas sobre Antnio Brando, cujo trabalho , muitas vezes, dado a
falsidades e exageros.
No sculo XX, o estudioso Pierre David focou-se nos primrdios da
historiografia portuguesa e naqueles primeiros textos a que deu o nome de Annales
Portucalenses Veteres. Originrios de Santo Tirso, onde tero sido escritos antes de
1079, os Annales foram, mais tarde, copiados em Santa Cruz de Coimbra, algures
depois de 1131 (Mattoso 1993a, 50), e servido de fonte para a Chronica Gothorum.
34
Assim, segundo Pierre David, aquilo que Brando afirmava ter encontrado em
documentos de Alcobaa e Coimbra foram, na realidade, fragmentos dos Veteres
(1947, 283). Os Annales registariam acontecimentos de 987 a 1079, de Almanor a
Alfonso VI, at serem expandidos primeiro at ao ano de 1111 e depois at 1168
(David 1947, 288-9). Ambas as expanses teriam deixado vestgios em documentos de
Coimbra, mas tambm na Chronica Gothorum e na Brevis Historia, onde tero sido
incorporadas as notcias de acontecimentos at 1122. Os restantes quarenta e seis
anos do relato cronstico dos Annales tambm acabaram por ser utilizados, mas com
acrescentos e transformaes dado o enfoque no primeiro rei portugus, que ocupa
um lugar central no texto da Chronica Gothorum de 1125 a 1184. Este ltimo ano
marca, alis, o limite cronolgico da narrativa, embora Pierre David considere que a
derradeira notcia est incompleta e props, por isso, que ou o autor no terminou o
trabalho ou a ltima pgina encontra-se perdida. Autor esse que, acrescente-se,
desconhecido, podendo-se apenas sugerir tratar-se de um clrigo de Santa Cruz de
Coimbra.
Sobre a datao, a questo complicada pela possibilidade de diferentes
partes terem sido redigidas em diferentes perodos. Alexandre Herculano que, em
1856, editou a Brevis Historia Gothorum e a Chronica Gothorum nos seus Portugaliae
Monumenta Historica (Scriptores I, 5-17), defendeu a existncia de dois autores, um
que se ocupou da parte inicial nos ltimos anos do sculo XI e outro que, j depois de
1212, trabalhou essencialmente as notcias referentes ao reinado de Afonso Henriques
(David 1947, 285). Pierre David, no entanto, no cr que a Chronica Gothorum tenha
sido redigida para l de 1200 (1947, 284).
O valor da Chronica e da Brevis Historia para o estudo das incurses nrdicas
prende-se com episdios que tiveram lugar no territrio portugus nos sculos XI e XII,
incluindo o ataque a Sintra pelo rei noruegus Sigurr jrsalafari, que analisaremos em
conjunto com o contedo de textos nrdicos. O registo escrito pode ser
cronologicamente prximo dos acontecimentos, ainda que indirectamente preservado
por ter sido copiado dos Anales Veteres para a Chronica e a Brevis Historia. Talvez se
possa atribuir a isso algumas diferenas entre estes dois ltimos textos ou, conforme
veremos, a aparente continuidade entre ambos no que diz respeito a Sintra.
35
Annales Complutenses
Tambm chamados de Anales Castellanos Segundos, so um trabalho de
autoria desconhecida. Foram sugeridas datas de composio como 980, mas SnchezAlbornoz no pe de parte um perodo posterior (1980, 704). Provavelmente, tero
sido escritos medida que se davam os acontecimentos. A sua conservao fez-se
graas incluso num cdice escrito nas Astrias, talvez no Mosteiro de San Juan de
Corias, e os Annales seriam publicados em 1762 no volume 23 da Espaa Sagrada. So
relevantes para o estudo das incurses nrdicas devido a uma referncia que poder
estar relacionada com o ataque de 968.
36
De expugnatione lyxbonensi
Quando, em 1147, o primeiro rei portugus atacou e tomou Lisboa, f-lo com o
auxlio de cruzados que viajavam pela costa ocidental da Pennsula Ibrica a caminho
da Palestina. O episdio ficou registado por escrito por um cruzado ingls, que nos
legou um relato detalhado da viagem e cerco da cidade.
O nico manuscrito completo actualmente existente encontra-se, desde a
primeira metade do sculo XVI, no Colgio de Corpus Christi da Universidade de
Cambridge, podendo ser datado da segunda metade do sculo XII primeira dcada
da centria seguinte (Nascimento 2007, 9). Conforme indicado pela abertura do
prprio texto, o autor ter sido um cruzado cujo nome comeava pela letra R. No se
conhece, no entanto, o antropnimo completo, o que deu origem a diversas teorias
sobre a sua identidade. Uma das hipteses sugere um deo Roberto, cnego da S de
Lisboa desde 1147 at s ltimas dcadas do mesmo sculo. Outra aponta antes para
um presbtero Raul que, numa doao ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra com a
data de 1148, descreve a conquista de Lisboa e a construo de um ermitrio dedicado
Virgem, junto do qual tinham sido sepultados cruzados ingleses. Quanto ao
37
destinatrio do relato, que se apresenta como uma carta, apenas temos a abreviatura
de Osb. de Bawdsey, correspondendo talvez a um Osberno ou Osberto.
Sem surpresa, a descrio da tomada da cidade no deve ser entendida como
um texto neutro, mas como um trabalho que respondeu a um objectivo. O autor ter
sido sensvel ao seu prprio contexto pessoal, ao do destinatrio e realidade
peninsular, onde o primeiro rei portugus pugnava pelo reconhecimento da
independncia de Portugal junto da Santa S. Nesse sentido, a conquista de Lisboa e a
divulgao escrita do feito juntavam elementos importantes para a construo de uma
opinio favorvel em Roma: a exaltao de uma vitria militar que manifestava o favor
divino do monarca portugus contra o infiel; a consagrao internacional do
episdio por via do seu registo e transmisso documental; e a influncia de
movimentos religiosos em ascenso junto do Papado, nomeadamente os cistercienses.
Precisamente por ser um texto que responde a objectivos concretos, difcil
pensar nele como uma carta espontnea de um cruzado em viagem. Pelo contrrio,
dever ter sido uma narrativa planeada e para a qual o autor ter tido acesso a
documentao da chancelaria rgia. Quanto a nrdicos, o relato da conquista de
Lisboa menciona a presena de Normandos na expedio de cruzados, embora,
conforme j dissemos, no estejamos perante vikingues, mas sim nativos do Ducado
da Normandia, assimilados pela cultura francesa e prximos dos Ingleses. E o texto
ser tambm til pela descrio que faz de Lisboa e das suas muralhas, aspectos que
so relevantes na anlise do ataque de 844 e da expedio de Sigurr jrsalafari, j no
sculo XII.
Espaa Sagrada
uma obra monumental que conta actualmente com cinquenta e seis volumes
e cuja autoria original de Enrique Flrez, um clrigo agostiniano espanhol do sculo
XVIII. O primeiro tomo foi publicado em 1747 e, dois anos depois, eram j cinco os que
tinham vindo a pblico. Aps a morte de Flrez, em 1773, o trabalho foi continuado
por Manuel Risco (Javier Campos & Sevilla 2000, lxiii).
Em termos de contedo, uma obra com falhas e lacunas prprias da
historiografia do seu tempo e com transcries aqum dos padres crticos actuais.
Mas tambm verdade que a sua monumentalidade permitiu a preservao de
38
informao que, caso contrrio, teria sido perdida e, fruto da sua abrangncia e da
pesquisa intensa do autor, a Espaa Sagrada actualmente um instrumento de
trabalho importante, muitas vezes incontornvel, no estudo da Idade Mdia da
Pennsula Ibrica. Tanto ao nvel das fontes primrias como da anlise das mesmas.
disso sinal as referncias frequentes a Flrez neste e noutros captulos, dado que pelas
suas mos passou a generalidade das fontes cronsticas dos primeiros sculos da
Reconquista.
Dessas mesmas fontes h, no entanto, edies crticas modernas, que foram as
utilizadas neste trabalho. Da Espaa Sagrada retiramos, por isso, apenas documentos
de menor dimenso, como contratos ou doaes contidas nos apndices de diferentes
volumes, justificando, assim, a incluso da obra neste captulo.
39
Captulo 2
Fontes rabes
1. Contexto histrico
Enquanto, no norte cristo da Pennsula Ibrica, o Reino das Astrias retomava
a tradio isidoriana e criava os seus primeiros registos cronsticos, a sul, na parte do
territrio tomada por exrcitos muulmanos, sucediam-se as convulses e os projectos
polticos que formaram o cenrio das incurses nrdicas e a realidade presente de
alguns dos autores que as registaram.
poca da conquista rabe da Pennsula Ibrica, o mundo muulmano era
liderado pela dinastia dos Omadas, cujo califado tinha a sua capital em Damasco. Mas,
em 750, incapaz de lidar com as divises crescentes, a famlia reinante derrubada
pela revolta dos Abssidas e o Califado de Damasco chega ao fim. Ao massacre dos
Omadas sobrevive um prncipe Abd al-Rahman que, aps um priplo de alguns
anos pelo Mdio Oriente e norte de frica, desembarca no Andalus em 755. No ano
seguinte, entrou em guerra com o governador peninsular de ento e, aps conquistar
algumas das grandes cidades do sul, proclamou-se emir (Lvi-Provenal 1950a, 67-9).
Era o incio do Emirado Omada de Crdova.
A subida ao poder de Abd al-Rahman significou a independncia do Andalus do
resto do imprio islmico, ao mesmo tempo que operavam as mudanas culturais
geradas pela conquista da Pennsula Ibrica. A lngua da nova elite espalhou-se pelas
massas medida que se sucediam as vagas de imigrantes e aumentam os convertidos
ao Islo. Multiplicaram-se as escolas cornicas e, mesmo entre os que permaneciam
adeptos do cristianismo, o idioma dos novos senhores ganhava terreno: no sculo IX,
dois cristos de Crdova queixavam-se de que os membros da sua comunidade no
sabiam escrever latim, mas sim rabe (Rubiera Mata 1992, 17).
O Emirado Omada de Crdova persistiu at 929, no porque tenha sido
derrubado, mas porque passou a Califado quando um dos seus monarcas, Abd alRahman III, foi proclamado califa (Lvi-Provenal 1950b, 321-3). A curva descendente
dos Omadas inicia-se apenas nas ltimas dcadas do sculo X, depois da subida ao
trono de Hisam II em 976. Ainda uma criana, ficou sujeito regncia da sua me por
40
interesse de dois homens: al-Mushafi e Muhammad ibn Abi Amir, esta ltimo hajib ou
perfeito do palcio e que ficaria para a Histria como Almanor (o Vitorioso) (LviProvenal 1950b, 397 e 402-4). Em 978, um golpe palaciano afasta al-Mushafi do
poder e Abi Amir, entretanto j popular entre as massas e o exrcito, quem ascende
ao cargo de primeiro-ministro de Hisam II sob a proteco da rainha-me (LviProvenal 1950b, 407). Deste ponto em diante, e principalmente a partir de 981,
Almanor seria o senhor de facto do Califado de Crdova, arredando o califa para uma
posio cerimonial e secundria. E, para ajudar a assegurar o poder, liderou
campanhas militares vitoriosas contra o norte, chegando mesmo a saquear Santiago
de Compostela em 997. Dir-se-ia que foram tempos de glria para o Andalus, mas
vieram a um preo: ao reorganizar o exrcito, Almanor recrutou berberes e
mercenrios cristos que requeriam pagamentos constantes e arredou da cena poltica
os Omadas, cujo prestgio foi desgastado. Quando morreu, em 1002, deixou um
califado que parecia forte, mas que no tardou a caminhar para a desagregao
(Torres 1992, 423).
A Almanor sucedeu o seu filho, Abd al-Malik al-Muzaffar, que faleceu logo em
1008. Hisam II era ainda vivo e califa de poderes reduzidos, mas acabou por ser
deposto por um primo seu, iniciando um perodo de profunda instabilidade e
fragmentao polticas. Porque, medida que o clima de guerra civil esvaziava de
poder a autoridade central omada, surgiam autoridades regionais, a seu tempo reinos
independentes ou taifas, lideradas por aristocratas, mercenrios e at antigos
funcionrios do palcio real. Apareciam um pouco por todo o lado, como em Toledo,
Badajoz, Sevilha ou Silves, e com durabilidade varivel, dado que depois ainda lutavam
entre elas. guerra entre Estados muulmanos juntava-se a presso dos reinos
cristos a norte, que no deixaram de aproveitar a fragmentao a sul para
conseguirem ganhos territoriais. Ou, ento, impunham tributos s taifas e agiam como
mediadores dos conflitos entre elas, qual lobo a guardar o rebanho. Inevitavelmente,
teria de haver uma ovelha cuja morte desse o sinal de alarme e foi o que sucedeu em
1085, quando Toledo foi tomada por Alfonso VI de Leo e Castela. Alarmadas, as taifas
viraram-se para os Almorvidas, africanos recm-convertidos ao Islo que tinham j
conquistado Marrocos e instalado a sua capital em Marraquexe (Rubiera Mata 1992,
41
estudioso o estatuto de descendente da nobreza visigtica por via de uma neta do rei
Vitiza. Era, portanto, um exemplo de integrao da aristocracia pr-rabe na realidade
peninsular ps-711, julgando-se, alis, que na sua obra se encontram conservados
vestgios de narrativas picas morabes, hoje perdidas (Armistead 2003b, 418). AlQutiya iniciou os estudos na sua cidade natal, tendo eventualmente partido para
Crdova, onde ensinou Gramtica, Lei e Estudos Religiosos.
A datao do manuscrito preservado em Paris no certa, suspeitando-se,
pelas marcas de gua no papel, que tenha sido escrito algures entre 1350 e 1450
(James 2009, 2 e 8). Um perodo de cem anos que dista bastante do tempo de vida de
al-Qutiya e que obriga a considerar a transmisso da obra desde o sculo X. Neste
sentido, David James, editor moderno da Histria, chamou a ateno para a diferena
entre o texto actualmente existente e as citaes que autores rabes fazem de alQutiya, um deles, Ibn Hayyan, cronologicamente bastante prximo. O editor nota, por
exemplo, que este ltimo cita passagens mais extensas do que as contidas na verso
actual da Tarikh, o que coloca a hiptese de Ibn Hayyan ter recorrido s tradies
orais que o prprio al-Qutiya transmitia e que nunca chegou a incluir no seu trabalho;
ou, em alternativa, que a verso actualmente existente seja um resumo do trabalho
original do autor sevilhano (2009, 16 e 18). A mesma possibilidade tinha j sido
avanada por Armistead, que sugeriu ainda que a Tarikh poder ter sido ditada por alQutiya a alunos seus ou, pelo menos, editada por eles (2003b, 418). Em qualquer caso,
e David James conclui nesse sentido, possvel que tenham existido diferentes verses
da Histria logo a partir do sculo X, das quais o texto preservado em Paris ser um
exemplo, e, consequentemente, que a obra de al-Qutiya nunca tenha tido um formato
final (2009, 19).
O valor histrico da Tarikh pode, por isso, ser varivel e justo perguntar at
que ponto uma fonte fidedigna para um tema to especfico como as incurses
nrdicas no ocidente da Pennsula Ibrica. Certamente que o recurso a tradies orais
e a falta de indicaes explcitas nas citaes no favorece a credibilidade de al-Qutiya,
mas tambm verdade que as suas referncias a vikingues so limitadas. Isso permite
que, uma vez cruzadas com outras fontes, possamos fazer uma avaliao crtica de
forma a distinguir o que ter base histrica do que foi objecto de desenvolvimentos
fantasiosos. Alm disso, preciso ter em mente que al-Qutiya foi um autor
43
3. Al-Muqtabis
Da autoria de Ibn Hayyan, este texto no seria tanto uma obra original, mas
antes uma recolha de informao sobre o Califado Omada de Crdova, muitas vezes
retirada de trabalhos anteriores hoje total ou parcialmente perdidos. Uma antologia,
por outras palavras, e com detalhes prximos de uma edio crtica moderna, na
medida em que Ibn Hayyan teve o cuidado de indicar lacunas e acrescentar notas
clarificadoras sobre as suas fontes.
Apesar da reputao de grande ou o maior historiador da Pennsula Ibrica
islmica, pouco se sabe da vida do autor. Ter nascido em Crdova por volta de 987,
filho de um secretrio de Almanor, e teve o privilgio de uma educao cuidada. A
nomeao para o cargo de escrivo do governador da sua cidade natal trouxe-lhe mais
do que vantagens monetrias: permitiu-lhe juntar aos relatos do seu prprio pai o
acesso a documentao til para os seus escritos histricos, alm de que aprofundou o
contacto prximo com os conflitos polticos do seu tempo (Antua 1946, 11-2). Isso e
uma conscincia erudita do passado ureo do Califado tero ajudado a formar os
ideais pr-Omadas de Ibn Hayyan, que foi um crtico da fragmentao do Andalus e do
nascimento das taifas. Constata-se isso mesmo no Matin, uma obra de sete volumes
hoje preservada apenas indirecta e parcialmente, mas onde analisava e criticava a
realidade poltica dos seus dias. Os ltimos anos da sua vida tero sido passados em
recolhimento, afectado que estava pela perda de viso, morrendo em 1076 (Armistead
2003a, 413).
Se o Matin no chegou aos nossos dias, a sorte do Muqtabis no foi muito
melhor. Dos dez volumes que teria, apenas sobreviveram partes do segundo e
terceiro, este ltimo guardado em Oxford (Antua 1946, 25), assim como excertos
preservados em autores posteriores que usaram a obra como fonte. So disso exemplo
Ibn al-Athir (1116-1233), al-Nuwari (1278-1332) e Ibn Jaldun (1332-1406). Acresce
ainda um manuscrito descoberto na cidade argelina de Constantina por volta de 1886
e do qual se fez uma cpia guardada na Biblioteca da Real Academia de Histria, em
Madrid. No , no entanto, um original de Ibn Hayyan, mas uma reproduo feita a
44
partir de outra cpia de Ceuta que, segundo o texto, estaria datada de 1249 (Garca
Gmez 1967, 26). J o manuscrito que conserva parte do segundo volume do Muqtabis
foi descoberto por Lvi-Provenal na dcada de 1930, dado como perdido por algum
tempo e, finalmente, redescoberto e entregue guarda da Real Academia de Histria
em Madrid. Pelo rigor que se atribui a Ibn Hayyan e pela riqueza das fontes por ele
consultadas, muitas delas hoje perdidas, o seu trabalho tido como fidedigno e uma
pea essencial para o estudo da Ibria islmica. certo que, ao tratar-se de uma
antologia e no de uma obra original, o rigor do compilador no assegura
necessariamente o valor histrico dos textos compilados, mas tambm verdade que
Ibn Hayyan recolhe, por vezes, vrios relatos do mesmo episdio, o que permite, em
alguns casos, colocar em confronto as diferentes narrativas e fazer uma comparao
crtica.
Interessa-nos, neste caso, a crnica sobre os reinados dos emires al-Hakam I e
Abd al-Rahman II, contida na poro sobrevivente do segundo volume do Muqtabis, e
o registo das notcias e ordens que chegavam ou saam do palcio dos senhores do
Andalus, retirado do manuscrito de Constantina. Em ambos os textos, encontramos
referncias a ataques ou avistamento de grupos de piratas nrdicos.
4. Al-Bayan al-Mughrib
Trata-se de uma obra tardia, mas, ainda assim, de valor por conter informao
que, de outra forma, estaria hoje perdida. E se pouco se conhece da vida de Ibn
Hayyan, para a do autor da Histria do Andalus, Ibn Idhari al-Marrakusi, a informao
ainda mais escassa.
Sabe-se que viveu entre a segunda metade do sculo XIII e a primeira da
centria seguinte, encontrando-se a escrever a sua crnica em 1312-13.
Desempenharia um papel de liderana em Fez, onde era kaid, e estaria bem
informado sobre a Histria dos territrios islmicos no Mediterrneo ocidental e
oriental (Bosh-Vil 1971, 805). A sua obra sobre a Histria do Andalus e do Magreb
est dividida em trs partes, sendo a segunda a que nos interessa para o estudo das
incurses nrdicas, j que se refere Ibria islmica at ao sculo XII. Desde o sculo
XIX que se conhecem manuscritos que contm a obra, com a excepo da terceira
parte, que s veio a ser encontrada e publicada por Levi-Provenal no sculo XX (e,
45
ainda assim, com lacunas). Quanto ao valor do seu trabalho, Ibn Idhari no ignorou a
realidade poltica dos seus dias e demonstra parcialidade em favor dos Almadas e
Almorvidas. Este aspecto no necessariamente prejudicial para o presente estudo,
dado que os relatos de interesse referem-se ao perodo Omada e, mesmo que se
queira ver nisso uma possibilidade para denegrir o Califado, a comparao do relato de
Ibn Idhari com outras fontes permite alguma avaliao do seu valor histrico.
No sendo um Muqtabis, rico e diverso nas fontes citadas, a Histria do
Andalus consegue ser, ainda assim, um trabalho de algum valor.
46
Captulo 3
Fontes nrdicas
1. Origem e aspectos crticos
As fontes nrdicas de interesse para o estudo dos ataques vikingues no oeste
ibrico foram compostas, quase todas, em nrdico antigo e na sua maioria na Islndia
ou por Islandeses. E parte da informao foi preservada sob a forma de poesia
transmitida oralmente, at sua integrao em trabalhos de prosa do sculo XII em
diante.
At introduo do alfabeto latino, as runas eram usadas para um registo
escrito limitado, regra geral, a pequenas informaes, inscries memorialistas e
algumas prticas mgico-religiosas. A transmisso de memria e conhecimento seria
feita, na sua maioria, por via de tradies orais: poesia eddica e skldica, ttir
(pequenas narrativas) e os ulur, que consistiam em listas mtricas de informao
temtica, como genealogia, sinnimos ou geografia mitolgica (Quinn, 2000, 51-4). So
estas tradies que, no sculo XII, comearam a ser utilizadas na composio de
trabalhos escritos e preservadas, muitas vezes, de forma fragmentada.
Por volta do ano de 1117, a Assembleia Geral islandesa a Alingi
determinou a redaco dos primeiros cdices legais do Pas. At ento, as leis tinham
sido preservadas oralmente, em particular pelo Orador da Lei que, todos os anos, por
altura do Solstcio de Vero, devia recit-las numa sesso da Assembleia. A passagem
para o registo escrito acontecia cerca de cem anos depois da converso oficial ao
cristianismo e representava a primeira grande utilizao secular do modelo literrio
latino. Poucos anos mais tarde, algures entre 1122 e 1135, surge o Libellus Islandorum
ou slendingabk de Ari orgilsson, o primeiro livro de Histria da Islndia de que se
tem conhecimento e cuja primeira verso, infelizmente, no chegou aos nossos dias. O
ttulo, simultaneamente em latim e em nrdico antigo, denuncia a conjugao do
modelo erudito trazido pela Igreja, de que o autor era clrigo, com a base popular e
oral da informao contida na obra. O mesmo Ari ter sido ainda responsvel pelo
Landnmabk, que consiste num registo da colonizao da ilha, de 870 a 930, com
referncias a cerca de mil e quinhentas propriedades e narrativas sobre mais de
47
48
aparecimento das sagas de reis e por muito tentadora que seja a ideia de uma
evoluo organizada, comeando com as genealogias compostas por Ari e Smundr,
passando pelas breves biografias da Noruega e terminando nas histrias islandesas
sobre monarcas. No seguro que este modelo corresponda ao que de facto sucedeu
(Andersson 2005, 221), at porque as primeiras sagas de reis surgem no mesmo
perodo em que tero sido redigidas as sinopses norueguesas, seno mesmo um pouco
antes. A teoria de que foram as biografias de lfr Tryggvason e So lfr a
impulsionar o processo tambm no consensual, tal como no certo qual foi a
primeira saga do gnero: a Hryggjarstykki, a Orkneyinga saga, a Hladajarla saga e
outras j foram propostas para essa posio pioneira (Andersson 2005, 213-5).
As informaes vindas da Islndia que Theodoricus monachus refere estariam
na forma de poesia skldica, a julgar pela importncia que lhe foi atribuda enquanto
fonte histrica nas sagas e compndios do sculo XIII. Do termo islands para poeta
skld os seus temas so, com frequncia, confrontos violentos, expedies martimas
e feitos hericos, juntamente com referncias a corvos, lobos e guias, aluses a
deuses e gigantes, assim como episdios e locais mitolgicos. Mas tambm teve os
seus poemas de amor e de escrnio e adaptou-se aos novos tempos aps a converso
ao cristianismo, integrando temas da nova religio e simplificando as regras de
composio (Ellen Gade 2000, 75). No fundo, foi uma tradio fluida semelhana de
todas as que so vivas.
Actualmente, conhecem-se apenas dois casos de poesia skldica cujo registo
escrito contemporneo da Idade Vikingue, ambos em runas: um encontra-se na
Pedra de Rk (g 136), na Sucia, e est datado do sculo IX (Ellen Gade 2000, 66); o
outro surge na Pedra de Karlevi (l 1), na ilha sueca de land, e data de cerca do ano
1000, contendo uma estrofe composta em drttkvtt ou mtrica de corte (Jansson
1987, 134). E o skld mais antigo de que se tem notcia ser do sculo IX, um
noruegus chamado Bragi Boddason inn gamli (o Velho), a quem so atribudos versos
preservados no sculo XIII, nomeadamente na Edda de Snorri Sturluson.
A mtrica conhecida como drttkvtt um dos motivos para a complexidade
da poesia skldica, regendo a estrutura de cerca de cinco sextos dos poemas
conhecidos (Poole 2005, 269). Caracteriza-se por uma construo tipicamente
organizada em estrofes de oito versos de seis slabas cada, ligados por aliterao e
49
rima interna (Jesch 2008, 296). As regras de composio complexas, conjugadas com o
uso de perfrases conhecidas como kenningar podem originar um resultado crptico
e difcil de interpretar, mas tambm asseguram que uma estrofe no possa ser
facilmente alterada sem causar o seu colapso estrutural. E isto, por sua vez, abre
caminho a uma preservao na oralidade e perpetuao da memria das
personagens dos poemas. O que seria particularmente importante no uso da
drttkvtt, cujo nome mtrica de corte, de drtt (squito) e kvea (recitar) (Poole
2005, 269) sugere um meio ligado aos centros de poder poltico e militar.
Muita da poesia skldica caracteriza-se pela proximidade cronolgica aos
acontecimentos relatados e o facto de os autores, na sua maioria, serem conhecidos.
No que no haja casos de anonimato ou de poemas sobre temas mitolgicos, mas,
mesmo quando o tpico so deuses e gigantes, os versos podem incluir dados sobre o
contexto da composio e o autor. De tal forma que se conhecem os nomes de quase
quatrocentos sklds, dos sculos IX ao XIV8, e que parte do corpus sobrevivente inclui
informao histrica que permite a sua datao. Estamos, afinal, a falar de um tipo de
poesia com uma forte componente panegrica, destinada a preservar a memria de
acontecimentos contemporneos, nomeadamente a de feitos militares, ou a
engrandecer o passado de lderes, em versos que se queriam informativos nos
detalhes e to duradoiros quanto pedra9. O poeta, por sua vez, esperava
reconhecimento e recompensas pelo servio prestado, estando, por isso mesmo,
interessado em assinar o seu trabalho. So conhecidas histrias de sklds que
ascenderam em estatuto social ou riqueza pela composio de poemas, exibindo anis
de ouro, mantos vermelhos e armas oferecidas por reis e chefes. E h at o caso de
uma composio que recebeu o nome de Vellekla (Escassez de Ouro), provavelmente
porque o poeta achou que o seu patrono deixava algo a desejar em termos de
retribuio material.
Foi com base nos interesses de quem compunha e de quem era agraciado,
assim como nas complexidades mtricas, que a poesia skldica recebeu o estatuto de
fonte histrica na Idade Mdia. O prprio Snorri Sturluson, no sculo XIII, fez uma
50
defesa dos poemas que citou e usou para a composio do seu trabalho,
considerando-os vlidos enquanto fonte desde que correctamente compostos e
cuidadosamente interpretados. Nas linhas com que abre a sua Saga Separada de So
lfr, o mesmo autor diz o seguinte:
E, ainda assim, parece-me muito importante para a verdade aquilo que dito
em palavras directas em poemas ou outra poesia que tenha sido composta sobre
reis ou outros chefes que eles mesmos ouviram ou naquelas elegias que os poetas
traziam aos filhos deles. Aquelas palavras que esto em poesia so as mesmas
que foram no incio, se esto correctamente recitadas, apesar de depois cada
pessoa as ter aprendido por outra [oralmente] e no podem, assim, ser alteradas.
troca da composio de peas que servissem os projectos de Hkon. E o cenrio ter-se repetido em reinados posteriores: lfr Tryggvason, lfr Haraldsson e Haraldr
Sigurarson parecem ter estado conscientes do potencial poltico da poesia panegrica
e, dessa forma, recorrido ao servio de sklds, numa oportunidade dourada agarrada
por dezenas de Islandeses. Para o fenmeno contribuiu tambm a estrutura poltica e
social da ilha.
O sistema sado do processo de colonizao da Islndia caracterizava-se,
essencialmente, pela ausncia de uma autoridade executiva central, rgia ou outra, a
organizao em assembleias e a preponderncia de chefes locais os goar. Estes
seriam, em teoria, primus inter pares com quem os proprietrios rurais entravam em
relaes de fidelidade e a quem recorriam para a sua representao e defesa legais. De
incio, o sistema ter funcionado de uma forma minimamente equilibrada, mas o
tempo trouxe uma competio feroz entre diferentes famlias, medida que elas
concentravam nmeros crescentes de chefias. semelhana de outras classes
aristocrticas, aos goar interessava a preservao ou engrandecimento da sua
linhagem, o que equivale ao reconhecimento do valor das tradies pr-crists como
fonte de informao e base de trabalho para novas composies. Por exemplo, no final
do sculo XII, o goi Jn Loptsson foi objecto de um poema que traava a sua
ascendncia at ao rei Haraldr hrfagri da Noruega (Ellen Gade 2000, 85). Da tambm
a figura do bom pago, que corresponde a uma integrao dos avoengos pr-cristos
na linhagem ilustre de uma famlia crist, ou mesmo a incluso de deuses tidos como
antigos reis divinizados pelo povo aps a sua morte: numa de duas listas genealgicas
contidas no slendingabk, o prprio Ari orgilsson, que era oriundo de uma das
famlias de chefes, apresenta-se como descendente de Njrr e Freyr (Whaley 2000,
171). No incio do sculo XIII, o interesse pela poesia skldica conjuga-se com as lutas
entre as principais famlias islandesas, quando alguns dos seus membros seguiram o
exemplo de sklds anteriores e compuseram poemas em honra de lderes
estrangeiros, principalmente Noruegueses, recebendo deles recompensas que
elevavam o seu estatuto na Islndia. Snorri Sturluson foi um desses casos.
Foi neste contexto que os Islandeses adquiriram um estatuto especial na
preservao de poesia skldica e na sua incorporao em obras escritas. Para os ilhus
comuns, era uma oportunidade de trabalho; para as elites, uma maneira de reforar
52
53
preservada (2005, 172). O que obriga a alguma cautela quando, na anlise das
incurses nrdicas no oeste ibrico, fizermos uso das sagas de reis.
Contrariamente s sinopses norueguesas, a narrativa dessas sagas
geograficamente abrangente. A diversidade talvez tenha sido inspirada pelo trabalho
original de Ari orgilsson, uma vez que, segundo o Prlogo de Snorri Sturluson ao seu
Heimskringla, aquele incluiria vidas de monarcas escandinavos e ingleses. Assim, para
alm da Noruega, entre os cenrios centrais de uma ou mais sagas de reis encontramse as ilhas Orkney, as Faroe, a Dinamarca e ainda a Sucia, ficando a Islndia de fora e
no obstante ser essa a origem da generalidade dos seus autores. Nas primeiras
dcadas do sculo XIII, composio de sagas individuais junta-se a sua apresentao
colectiva em grandes compndios, que iremos analisar de seguida. E provvel que o
primeiro deles tambm tenha ficado a dever uma parte significativa do seu contedo
aos prosimetra e ttir (pequenas narrativas).
2. Morkinskinna
Na forma actual, cobre o perodo que vai de 1030 a 1157 e ter sido a primeira
obra a atingir uma dimenso que, na Escandinvia, assinala o incio de um perodo
literariamente marcado pelas grandes colectneas em vernculo.
O mais antigo manuscrito actualmente existente foi enviado da Islndia para a
Dinamarca em 1662 e usado duas dcadas depois como fonte para a Historia Rerum
Norvegicarum de ormur Torfason. Foi ele quem lhe deu o nome de Morkinskinna,
que quer dizer pergaminho apodrecido, provavelmente em referncia ao seu estado
de conservao. Esto, alis, em falta diversas partes do manuscrito (Andersson &
Ellen Gade, 2000, 5) e o prprio final do texto abrupto, especulando-se que cobriria
um perodo mais extenso, possivelmente at 1177 (Andersson 2005, 216). Ter sido
redigido na Islndia na segunda metade do sculo XIII, talvez por volta 1275, por duas
pessoas que, suspeita-se, tero copiado de uma verso mais antiga, actualmente
perdida (Andersson & Ellen Gade 2000, 5-6). O ano de 1220 tem sido, de resto,
apontado por diversos acadmicos como a data aproximada para a composio
original do Morkinskinna10, cujo autor desconhecido.
10
Por exemplo, Kalinke 1984, 152; Sawyer 1993, 219-20; Ellen Gade 2000, 69; Andersson 2005, 217.
Veja-se neste ltimo a nota de rodap nmero 34 para a discusso sobre a datao.
54
55
Kalinke, em 1982, alertava para o gosto dos autores do Morkinskinna pelo episdico e
dramtico e para o enfoque dado s qualidades guerreiras de um Sigurr aventureiro
que complementam as de bom governante do seu irmo e co-monarca noruegus,
Eysteinn Magnsson (Kalinke 1984, 154-7 e 159-60).
3. Fagrskinna
Trata-se do segundo dos grandes compndios nrdicos medievais e o primeiro
a incluir informao sobre a passagem de So lfr pela costa galego-portuguesa.
Cobre o perodo que vai de Hlfdan svarti (o Negro), chefe de um dos reinos
noruegueses no sculo IX, at guerra civil e ascenso ao trono de Sverrir, em 1177.
O mesmo ormur Torfason que baptizou o Morkinskinna tambm o
responsvel pela denominao de Fagrskinna, que quer dizer pergaminho belo,
distinguindo, assim, as duas obras pelo estado de conservao dos respectivos
manuscritos. Infelizmente e com a excepo de uma folha hoje preservada em Oslo,
no chegou at aos nossos dias qualquer exemplar medieval. A Biblioteca Real de
Copenhaga ter tido dois, um mais longo que o outro, mas ambos foram destrudos no
incndio de 1728, restando cpias das dcadas anteriores. Com base na folha
sobrevivente, supe-se que o manuscrito mais curto datava de meados do sculo XIII,
enquanto o mais extenso seria posterior em cerca de cem anos (Finlay 2004, 35-6).
Perante estes dados, a questo que se levanta a da data de composio do
Fagrskinna. A ser correcta a datao da verso mais breve, no ter sido depois de
1250. Se juntarmos a isto o uso provvel do Morkinskinna como fonte e, por sua vez, a
utilizao do Fagrskinna na redaco do grande compndio seguinte, o Heimskringla,
tradicionalmente datado cerca de 123012, ento ser possvel avanar com a dcada de
1220 para o perodo de composio original da obra; segundo alguns, mais
precisamente por volta de 1225 (Andersson 2005, 217). semelhana do pergaminho
apodrecido, desconhece-se a identidade do autor, embora j tenha sido proposto que
seria noruegus ou islands e que teria redigido a obra na regio de Trondheim, na
Noruega (Einarsson 1993b, 177). Alison Finlay prefere chamar a ateno para os laos
12
56
surge como uma verso resumida, mas que refora, ainda assim, a narrativa
transmitida por outras fontes.
4. Heimskringla
o terceiro grande compndio nrdico medieval e o nico cuja autoria
conhecida ou, pelo menos, tradicionalmente atribuda a uma figura histrica.
tambm o mais extenso dos trs, iniciando a narrativa num passado mtico e
terminando no ano de 1177. Pelo meio, surge o relato da passagem de dois reis
noruegueses pela costa ocidental da Pennsula Ibrica.
O mais antigo manuscrito que chegou aos nossos dias d pelo nome de Kringla
e est datado de meados do sculo XIII ou, pelo menos, anterior a 1270. , por isso,
cronologicamente prximo do que ter sido a data da composio original, mas,
porque subsiste apenas uma folha, muito do texto conhecido por cpias como as que
foram feitas no sculo XVII pelo islands sgeir Jnsson. Os restantes exemplares
existentes datam do sculo XIV e encontram-se mais ou menos incompletos,
nomeadamente o Codex Frisianus e o Jfraskinna (Whaley 1993, 276). No final do
sculo XVII, uma primeira edio do texto original com uma traduo em sueco,
preparada pelo antiqurio Johan Peringskjld, foi publicada sob a designao de
Heimskringla, que se tornou, desde ento, o ttulo comum da obra. O termo deriva das
duas primeiras palavras do manuscrito Kringla - kringla heimsins ou o crculo da
Terra (Hollander 1964, xxv).
O islands Snorri Sturluson tido como o autor do compndio, embora
nenhum dos manuscritos o mencione como tal. J se tentou prov-lo a partir de
referncias noutros textos, mas nem sempre com muito sucesso, e o acadmico sueco
Lars Lnnroth colocou a questo ao nvel da autoria pessoal ou, em alternativa, a mera
conduo dos trabalhos de composio (Andersson 2005, 219; tambm Clover 2005,
246). Apesar das dvidas, Snorri Sturluson persiste como autor do Heimskringla em
edies da obra e em estudos literrios.
Nasceu em 1178 ou 1179 na Islndia ocidental, no seio da famlia Sturla, mas
mudou-se para o sul do Pas aps a morte do seu pai, escassos trs anos depois. Foi
acolhido por Jn Loptsson, dicono e, poca, um dos mais influentes chefes
islandeses. Educado em Oddi, a sede da famlia do seu tutor e um centro cultural na
58
Islndia de ento, Snorri ter tido acesso a um repositrio de conhecimento que mais
tarde verteria nas obras que deixou. Especula-se sobre a existncia de uma escola
naquele local, mas certa apenas parece ser a de uma biblioteca da famlia onde teria
sido possvel encontrar poesia em vernculo, registos histricos e talvez at tradues
islandesas de obras latinas (Faulkes 2008, 311).
No obstante o facto de Jn Loptsson ter sido dicono, Snorri Sturluson no foi
um autor clerical, mas seguiu uma vida secular e profundamente envolvida nas lutas
pelo poder na Islndia de ento. Aos vinte anos, casou-se com a filha de Bersi
Vermundarson, proprietrio rico do sul da Islndia, e acumulou diversos cargos de
chefe. De 1215 a 1218 e de 1222 a 1231, foi ainda Orador da Lei na Alingi e estendeu
as suas jogadas polticas at Noruega, para onde partiu em 1218. Snorri conheceu o
jovem rei Hkon IV e o respectivo sogro e regente, o jarl Skli, recebendo deles
presentes e ttulos honorficos, em parte por servios prestados - incluindo a
composio de poesia panegrica mas tambm porque o monarca pretendia somar a
Islndia aos seus domnios. A generosidade rgia vinha, por isso, com o desejo de
auxlio na anexao da ilha, uma expectativa a que Snorri ter anudo, mas que acabou
por no concretizar. Em 1224, iniciou uma relao com Hallveig Ormsdttir (Faulkes
2008, 312), que tinha a fama de ser a mulher mais rica da Islndia, e uma das filhas de
Snorri casou-se com o chefe Gizurr orvaldsson.
Em 1237, est de volta a territrio noruegus, arriscando-se a ser repreendido
por promessas quebradas e, talvez por isso, passa mais tempo com o sogro do
monarca. Regressa Islndia em 1239, mas foi precedido por boatos de conluio
poltico com o jarl Skli, que acabaria por perder a vida numa revolta contra o rei
Hkon IV, em 1240. A situao de Snorri foi agravada pela ascenso de Gizurr
orvaldsson, que era seu cunhado, mas, nem por isso, deixava de ser um rival: era,
alis, um dos principais chefes islandeses e o novo veculo dos planos noruegueses.
Gizurr quem, em 1241, recebe de Hkon IV uma comisso para obrigar o autor islands
a voltar Noruega ou mat-lo sob a acusao de traio. Snorri morre, a 23 de
Setembro de 1241, na sua casa em Reykholt.
O Heimskringla ter sido escrito entre os anos de 1225 e 1235 e com recurso a
muitas das fontes dos compndios anteriores (Andersson 2005, 217). Nelas inclui-se a
saga separada de So lfr, do mesmo autor, embora seja mais rica em ttir do que
59
5. Outras fontes
s trs colectneas acima apresentadas juntam-se ainda quatro obras de algum
valor para o estudo das incurses nrdicas, por conterem referncias breves ao
ocidente peninsular.
Historia Norwegie
Trata-se de um trabalho escrito em latim por um autor desconhecido e que foi
publicado pela primeira vez em Oslo em 1918. Encontra-se maioritariamente
preservado num manuscrito escocs datado de cerca de 1500, mas h outros mais
antigos com excertos da obra (Ekrem & Boje Mortensen 2003, 28-32).
60
grip af Nregskonungasgum
J o referimos vrias vezes no presente captulo, mas o uso que, mais frente,
daremos ao Resumo das histrias dos Reis da Noruega aconselha a que se faa uma
breve apresentao da obra.
Preservado num manuscrito islands da primeira metade do sculo XIII, o grip
uma pequena narrativa sobre os monarcas noruegueses, dos sculos IX ao XII
(Driscoll 1995, ix). O ttulo pelo qual a obra actualmente conhecida data apenas do
sculo XVII e, no obstante o ser breve por comparao com as sagas de reis, contm
episdios detalhados. O manuscrito existente ter vrias pginas em falta (Einarsson
1993a, 5) e ser ainda uma cpia de um original mais antigo, tambm ele maior e,
julga-se, oriundo da Noruega. Este ltimo aspecto indiciado por elementos
lingusticos e por um enfoque em Niarss (na actual regio de Trondheim). O seu
autor ter sido um clrigo e a data de composio aproximada 1190, por se julgar
que ter sido antes de 1200, mas depois de 1188 (Driscoll 1995, xiii). Quanto a fontes,
o grip ter recebido informao da Historia de antiquitate regum Norwagiensium de
61
Theodoricus e da Historia Norwegie ou, pelo menos, de uma fonte comum s duas
obras13. Mas o autor ter tambm recorrido a tradies orais, nomeadamente poesia
skldica, com sete versos a serem citados no texto.
O interesse do grip para o estudo das incurses nrdicas no ocidente ibrico
resume-se ao episdio da expedio de lfr Haraldsson, o episdio hipottico de um
deposto rei de York e ainda a datao da cruzada do rei Sigurr jrsalafari.
Orkneyinga saga
A Saga dos Chefes das Orkney , como o ttulo indica, uma obra sobre os lderes
das Ilhas Orkney. Abre com trs breves captulos sobre um passado mitolgico, antes
de saltar para o sculo IX e encerrar a narrativa com acontecimentos do final do sculo
XII e comeo da centria seguinte. O autor ter sido um islands, possivelmente ligado
a Oddi, o mesmo centro cultural e poltico onde Snorri foi educado e que mantinha
laos prximos com as Orkney (Plsson & Edwards 1981, 9-10).
A datao da obra um tema complexo, agravado pelos problemas
relacionados com a preservao da saga. Plsson e Edwards sugeriram que a narrativa
teria sido originalmente escrita pouco depois de 1192, ano da canonizao de
Rgnvaldr Kali, Chefe das Orkney e um dos heris da obra, e que a verso actualmente
existente teria sido terminada por volta de 1235. Mas j foi proposta uma hiptese
alternativa que sugere antes os anos de 1165 a 1189 para a composio original e
atribui a Snorri a responsabilidade pelo texto que conhecemos, que teria sido reescrito
(Andersson 2005, 214). Nesse sentido, h ainda uma terceira hiptese que atribuiu a
autoria a um islands entre 1200 e 1210 (Wrth 2005, 162). A preservao
relativamente tardia num manuscrito do final do sculo XIV no ajuda ao
estabelecimento de uma data de composio precisa.
semelhana de outras sagas, a Orkneyinga saga no pode ser considerada
uma narrativa histrica de acordo com critrios modernos, mesmo tendo preservado
informao que, de outra forma, se teria perdido. antes Histria romanceada, com
todos os problemas crticos que isso implica, mas passvel de ter transmitido ou
13
A discusso sobre qual ou quais as fontes comuns pode ser lida na introduo crtica obra em
Driscoll 1995, xv-xvii.
62
Kntlinga saga
A Saga dos Descendentes de Kntr uma obra de meados do sculo XIII que
tem como elemento central da narrativa a vida de So Kntr, Rei da Dinamarca de
1080 e 1086. Encontra-se preservada numa cpia de 1700, feita a partir de um
manuscrito de cerca de 1300, hoje perdido, e ainda num cdice do sculo XVI.
Em boa medida, uma obra baseada no Heimskringla. O autor da Kntlinga
saga ter usado a lista rgia de Ari orgilsson, uma biografia de So lfr e poesia
skldica; e o compndio escrito por Snorri ter mesmo servido de modelo, com So
Kntr a ocupar o lugar central em vez de So lfr. De resto, o enfoque na monarquia
dinamarquesa e, ao que parece, o tratamento que d s relaes com a Noruega,
indicam uma composio na Dinamarca depois de 1257 (Malmros 1993, 359-60). O seu
valor como fonte para o nosso tema resume-se referncia enigmtica a uma
personagem que recebe a alcunha de o Galego.
63
Captulo 4
Fontes francas e britnicas
Se, para um tema que incide sobre nrdicos na Pennsula Ibrica, o recurso a
fontes ibricas e nrdicas , mais do que bvio, fundamental, j sobre o uso de textos
britnicos e francos poder perguntar-se at que ponto se justifica um captulo
prprio. Mas as investidas que atingiram o ocidente peninsular foram parte de uma
dinmica maior que deu o nome Idade Vikingue e, por entre as referncias a ataques
nos territrios franco e britnico, surgem, por vezes, menes sua propagao para a
Pennsula Ibrica. So casos raros de informao textual, certo, mas justificam, ainda
assim, uma apresentao das fontes onde podem ser encontrados. E elas so trs: os
Anais de So Bertino, a Histria dos Normandos e os Anais da Irlanda. H uma quarta
a Crnica Anglo-Saxnica da qual fazemos amplo uso na abertura dos captulos 7, 8 e
9, mas, dado que nos servimos dela para sustentar informao sobre o que se passou
em Inglaterra e no contm referncias ao sucedido na Pennsula Ibrica, deixmo-la
fora do presente captulo.
1. Anais de So Bertino
Publicados, pela primeira vez, em 1641 em Paris, no so nem anais no sentido
de um registo anual oficial (pelo menos no em toda a sua extenso), nem um produto
da comunidade do Mosteiro de So Bertino, localizado no norte de Frana.
A origem dos Anais de So Bertino est ligada aos Anais Reais Francos,
produzidos durante o reinado de Carlos Magno e nas dcadas imediatamente a seguir
sua morte. A derradeira entrada refere-se ao ano de 829 e os Anais de So Bertino
comeam com o relato do ano seguinte, sendo que a autoria dos anos iniciais no
certa. Ter sido algum que se manteve prximo de Lus, o Pio, sucessor de Carlos
Magno e sobrevivente das revoltas de 830; talvez Fulco, capelo rgio e fiel apoiante
do monarca, e na qualidade de autor individual ou como coordenador de um grupo de
escribas da corte (Nelson 1991, 6-7). Mais fcil estabelecer uma segunda autoria,
atribuda a Prudncio, que ter sido responsvel pelo registo anual a partir de 835 e da
referncia ao primeiro ataque nrdico Pennsula Ibrica, em 844. A sua morte, em
64
861, ter levado os Anais de So Bertino at s mos de Hincmar, Bispo de Rheims, que
copiou a obra. A ele deve-se a continuao do registo at ao fim da sua vida em 882.
Depois da morte de Hincmar, o texto no foi retomado. A produo de
trabalhos analsticos continuou, sim, mas no este em particular. O mais antigo e
completo manuscrito uma cpia feita no sculo XI e preservada na biblioteca do
Mosteiro de So Bertino (Nelson, 1991 16), de onde os Anais receberam o ttulo actual.
II.
HISTRIA
67
68
Captulo 5
Terras vikingues
A Escandinvia de onde partiram as primeiras incurses nrdicas que atingiram
a Europa ocidental, ainda no final do sculo VIII, era, sem surpresas, uma realidade
diferente da actual. No s no que diz respeito ao territrio, onde o nvel do mar, a
aco do tempo e a prpria interveno humana ditaram alteraes ao longo de vrios
sculos, mas tambm em termos religiosos e polticos.
Comecemos pelo ltimo aspecto ao dizer que nenhum dos actuais Estados
nrdicos existia. O que hoje a Dinamarca, a Sucia e a Noruega era um retalho de
comunidades de maior ou menor dimenso, governadas colegialmente, por magnatas,
por chefes, reis ou por combinaes destes elementos. Podiam estar integradas em
espaos polticos maiores ou permanecer independentes, tal como podiam num
momento expandir o seu territrio para, aps uma derrota militar ou a morte de um
lder, reverterem para entidades mais pequenas. Tero existido reis que reclamavam
uma autoridade geograficamente alargada, mas com um poder nominal ou limitado
pelas assembleias e senhores locais que, tal como o elevavam, podiam romper laos
com um monarca. Quanto Finlndia, viria a ser o destino de vagas de colonos e
expedies nrdicas, oriundas nomeadamente da actual Sucia, e a Islndia estava a
ainda por descobrir.14
No que diz respeito religio, a Escandinvia era predominantemente
politesta, prestando culto a deuses como Oinn, rr, Freyr, Freya e Frigg, a que se
juntavam os antepassados e os gnios da terra. O cristianismo no seria desconhecido,
principalmente na actual Dinamarca, onde a proximidade nem sempre pacfica com o
Imprio Franco permitiu o contacto religioso pelo menos nas primeiras dcadas do
sculo IX. E conhece-se, pela mesma altura, a expedio missionria de Anskar regio
do lago Mlar, de que o seu discpulo Rimbert, a seu tempo segundo Arcebispo de
Hamburgo-Bremen, nos deixou um relato em tons hagiogrficos. No existiam cidades,
mas a vida econmica era j animada por vrios postos comerciais e os primeiros
14
Apesar de j se ter proposto a presena humana na Islndia por volta do ano 700. Cf. Christiansen
2006, 224-5.
69
centros urbanos, como Hedeby, Kaupang e Birka, o ltimo dos quais foi local de
pregao de Anskar. De resto, o territrio encontrava-se ponteado por pequenas
comunidades agrcolas ou piscatrias, seno mesmo quintas isoladas, ainda que
algumas delas pudessem ser satlites de sales senhoriais. Ou ento reuniam-se
comunitariamente em torno de mercados sazonais, que eram tambm momentos de
celebrao religiosa e de reunio de assembleias que discutiam assuntos de interesse
comum. A comunicao por terra era demorada, mas menos em terrenos alagados ou
em massas de gua durante o Inverno, ao providenciarem uma forma de estrada
gelada. Caso contrrio, o transporte martimo e fluvial, este ltimo quando o declive e
profundidade o permitia, forneciam rotas mais cleres para o transporte de pessoas e
bens. Uma ideia das dificuldades de comunicao -nos dada por Ado de Bremen,
cuja Histria dos Arcebispos de Hamburgo-Bremen, escrita no sculo XI, refere que a
viagem da Escnia at Sigtuna, nas margens do lago Mlar, demorava um ms por
terra, mas apenas cinco dias por mar (IV:28; Tschan 2002, 209). Com um contraste
destes, que certamente no seria menor no sculo VIII, comea a compreender-se a
importncia das embarcaes na cultura e quotidiano da Escandinvia antiga.
H que pr ainda de parte a ideia de que as sociedades nrdicas eram
comunidades igualitrias lideradas por responsveis eleitos em assembleia. Porque,
por um lado, eram sociedades organizadas hierarquicamente que, do topo para a base,
iam de magnatas e chefes a homens livres ricos, outros nem tanto, arrendatrios de
terrenos agrcolas, servos e escravos. E, por outro, porque os membros das
assembleias podiam ser pelo menos influenciados pelos lderes locais, quando no
largamente controlados por redes clientelares.
O perodo vikingue traria mudanas a esta Escandinvia antiga, processo sobre
o qual no faltam obras publicadas e do qual no nos ocuparemos a fundo no presente
trabalho, por no ser esse o seu objectivo. Mas porque nada acontece no vazio e a
realidade nrdica reflecte-se nas incurses que atingiram a faixa ocidental da
Pennsula Ibrica entre os sculos IX e XII, til apresentar com um pouco mais de
detalhe alguns dos aspectos acima enunciados.
70
1. Territrio e comunidades15
Geograficamente, a Escandinvia uma regio diversificada. A sul, no que hoje
corresponde Dinamarca, o terreno pouco acidentado e o ponto mais elevado (pelo
menos actualmente) encontra-se a apenas 173 metros acima do nvel do mar. Uma
extenso de territrio a que se d o nome de Jutelndia prolonga-se desde o norte da
Alemanha e encontra-se rodeada por centenas de ilhas, sendo a Zelndia e a Funen as
maiores, estrategicamente localizadas na ligao entre o Bltico e o Mar do Norte. Do
outro lado do estreito, as regies costeiras da Escnia e Halland eram separadas do
resto da actual Sucia por uma rea florestal, situao que se repetia mais a norte,
entre a Gtaland, no sul sueco, e a terra dos Svear junto ao lago Mlar, onde
actualmente se encontra Estocolmo. O territrio que hoje corresponde Sucia
encontra-se, alis, rasgado por longos rios e grandes lagos, sendo pouco acidentado no
sul e centro (principalmente nas regies litorais), mas ganhando altitude medida que
avana para ocidente, onde embate com a cordilheira montanhosa que cruza o que
hoje a Noruega. A costa sueca tambm abundante em pequenas ilhas, como as que
preenchem o Mlar (a cidade antiga de Estocolmo est construda sobre uma delas), e
depois surgem duas de maior dimenso, a land e a Gotland, a primeira com uma
localizao tangente costa sueca e a segunda mais prxima do centro do Bltico. A
Noruega o mais acidentado dos actuais Estados nrdicos, com a maior parte do
territrio acima dos quinhentos ou mesmo mil metros de altura, nalguns casos
acolhendo glaciares. Ao todo, cerca de dois teros do actual territrio noruegus
montanhoso, o que reduz a rea propcia agricultura. As grandes excepes so a
costa sul onde hoje se encontra Oslo e a regio de Trndelag, que no ultrapassam
os 200 metros acima do nvel do mar. Ambas tm acesso a rotas martimas por via de
um grande fjord, o que, conjugado com o terreno menos acidentado, contribuiu para a
centralidade desses territrios nas lutas norueguesas pelo poder. De resto, sobram
reas de maior ou menor dimenso presas em vales ou entre o mar e as montanhas,
muitas vezes rasgadas por fjords, ou at mesmo em algumas das milhares de ilhas que
existem ao longo da costa norueguesa. No relato que fez ao Rei Alfredo de Wessex, no
final do sculo IX, o noruegus Ohthere (Ottar) refere que a terra boa para pasto ou
15
71
cultivo encontra-se junto ao mar, onde, mesmo assim, consegue ser bastante rochosa
nalguns stios (Somerville 2010, 3).
Como em qualquer parte do mundo, o territrio no ficou imune aco
humana e a fenmenos naturais. Pelo contrrio, mudou e, nalguns casos, com
consequncias para as comunidades que o ocupavam, nomeadamente com a descida
do nvel do mar no litoral escandinavo, onde a subida das guas a partir do fim da
Idade do Gelo foi ultrapassada por uma subida mais rpida da terra. O fenmeno no
foi uniforme e, nalguns pontos da Escandinvia, alguns terrenos tero mesmo sido
alagados, como no sul da Jutelndia (Sawyer 1993, 30). Mas, na generalidade da costa
nrdica, principalmente naquela onde o declive mais suave, a descida do nvel do
mar foi visvel e moldou o destino de povoaes costeiras, ora condenando-as
extino por inacessibilidade dos seus portos, ora ditando a sua transferncia para a
nova linha de costa.
A organizao territorial das comunidades que ocupavam a Escandinvia na
alvorada do perodo vikingue no inteiramente clara. Fronteiras naturais como a
massa florestal que separava a Escnia do resto da actual Sucia podem dar a
impresso de grandes unidades territoriais, mas a verdade que, dentro desses
espaos vastos, naturalmente definidos, poderiam existir diferentes autoridades
polticas e militares e, por consequncia, diferentes comunidades autnomas ou
mesmo independentes.
falta de um mapa contemporneo e de registos escritos da poca, -nos
difcil determinar com preciso as fronteiras nesse perodo. De nada serve usar os
limites actuais como forma de aproximao aos antigos: Noruegueses, Dinamarqueses
e Suecos so identidades cujo processo de construo poltica comeou no perodo
vikingue, prolongando-se pelos sculos seguintes e, por vezes, com alteraes de
fronteiras que ditaram aquilo a que hoje chamaramos uma mudana de
nacionalidade. A Escnia, por exemplo, fez parte da Dinamarca at 1658, altura em
que passou a ser territrio sueco. E nunca demais lembrar que olhar para as
comunidades antigas como sendo uma mera forma primitiva das actuais, como se o
passado anunciasse o presente, mais no do que projectar o ltimo no primeiro.
72
73
2. Embarcaes
A capacidade de sustentar a construo e manuteno de uma frota era um
elemento essencial na expanso ou preservao do poder de chefes e reis. Nada de
surpreendente num territrio onde, como vimos, os meios de comunicao mais
cleres eram os fluviais e martimos, o que quer dizer que funcionavam tambm como
a forma mais rpida de deslocar foras de combate. Mas o que era verdade para a
guerra era tambm para o comrcio, independentemente da sua dimenso local,
regional ou internacional. E isso fez do navio um elemento central na cultura nrdica
antiga.
Os mais antigos vestgios arqueolgicos de uma embarcao escandinava
provm de Nydam, na Dinamarca, e consistem num barco a remos com cerca de 23.5
metros de comprimento datado do sculo IV a.C.. O perodo exacto em que se deu a
introduo da vela no certo, mas seria, pelo menos, conhecida a partir do sculo
VIII17, altura em que surge nas representaes pictricas de barcos em pedras na
Gotland e, cerca de cem anos depois, em moedas de postos comerciais nrdicos (Bill
2008, 171). Do pictrico para uma embarcao de facto, a descoberta do navio de
Oseberg no fjord de Oslo em 1905, datado de cerca de 820, deu-nos o primeiro
exemplo material de um barco vela do perodo vikingue.
Estruturalmente, as embarcaes nrdicas que protagonizaram as incurses
dos sculos VIII a XI eram flexveis e aptas para a navegao em guas com pouca
profundidade. Contribuam para isso o casco trincado, um calado pouco profundo e
tcnicas de construo que passavam pela utilizao das formas naturais da madeira,
concedendo maior resistncia e flexibilidade ao navio: rvores com troncos direitos e
altos eram usadas para tbuas, enquanto ramos curvos ou o seu ponto de juno com
17
Cf. Bill 1997, 185. A possibilidade de uma data anterior no sculo V no impossvel para os Jutos e
Anglos, na Jutelndia.
74
o tronco podiam servir para peas de madeira com um ngulo idntico ou prximo. A
ausncia da serra ter contribudo para isso, uma vez que, falta de uma ferramenta
que permitisse cortar livremente a matria-prima, ela era segmentada ao longo dos
veios, dando-lhe uma resistncia natural (Bill 1997, 193).
Quanto s dimenses, variava naturalmente conforme as posses do
proprietrio, mas tambm de acordo com o uso previsto para a embarcao. Se fosse
destinada actividade blica ou, pelo menos, actividade comercial que envolvesse a
presena de uma fora militar para proteco, seria necessrio haver espao para um
nmero considervel de pessoas e estar previsto o uso de remos. Os navios longos que
povoam o imaginrio referente aos vikingues e que tero sido usados nas investidas
piratas caracterizam-se por serem compridos, estreitos, providos de vela e de dezenas
de remos. disso exemplo o Hedeby 1, construdo por volta de 985 e encontrado
afundado junto do posto comercial que lhe deu nome: teria 30.9 metros de
comprimento, apenas 2.6 de largura e sessenta remos. Outro exemplo o Skuldelev 2,
datado de 1042 e com pelo menos 29.2 metros de comprimento, 3.8 de largura e
tambm cerca de sessenta remos. Tambm os havia mais pequenos, como o Skuldelev
5, que tem apenas 18.3 metros de extenso e vinte e seis remos (Bill 2008, 175-6), o
que deve acautelar-nos contra a utilizao de navio longo (langskip) como um termo
particularmente tcnico ou at sinnimo de embarcao vikingue. No s o nome
parece referir-se apenas ao facto de ser um barco invariavelmente comprido (Jesch
2001, 123), como tambm se conhece uma referncia a navios longos mandados
construir por Alfredo de Wessex em 897; e, acrescenta a Crnica Anglo-Saxnica, no
eram baseados nem no modelo frsio, nem dinamarqus. Mas, no caso dos barcos
nrdicos, independentemente do comprimento exacto, as caractersticas essenciais
mantm-se: estreitos e flexveis, prontos para atravessarem o Bltico (caso do Hedeby
1) ou o Mar do Norte (como o Skuldelev 2) e protagonizarem investidas em que
podiam ser movidos pelo vento, mas sem estarem inteiramente dependentes dele.
Diferentes so os navios construdos especificamente para a actividade
comercial, com uma capacidade de vrias toneladas e providos de vela, mas com
espao reduzido para a tripulao e, consequentemente, limitados no nmero de
remos. O exemplo mais antigo de que se tem vestgios arqueolgicos data do final do
sculo X e foi encontrado afundado perto de Kaupang: teria 21 metros de
75
barcos menos nobres e mais comuns. Se na guerra vale tudo, uma vez confrontados
com a necessidade de atravessarem o mar, os nrdicos recorreriam s embarcaes a
que pudessem deitar mo.
3. Comrcio18
As dcadas que antecederam o perodo vikingue assistiram ao aparecimento de
postos comerciais permanentes na Escandinvia, naquilo que seriam as primeiras
comunidades do tipo urbano. E se certo que algumas acabaram por ser
abandonadas, o modelo subsistiu e viria a frutificar, levando fundao de novos
povoados com o apoio de lderes reis ou magnatas que, por um lado, patrocinavam
o centro urbano e, por outro, retiravam dele dividendos.
A
existncia
de
mercados
sazonais
antes
do
perodo
vikingue
18
77
encontrados vestgios de zonas de trabalho sob a forma de buracos feitos por estacas
enterradas a pique (para suportar os edifcios), produtos inacabados, moldes e
instrumentos usados no fabrico de objectos de metal, assim como pesos e moedas
rabes. So, no entanto, achados menos frequentes do que nas primeiras
comunidades urbanas e o panorama geral parece ser o de actividade comercial
intensa, mas breve, que o que se espera num mercado sazonal. Mesmo a prpria
residncia senhorial parece ter sido temporria, usada de modo intermitente, se bem
que principescamente, no s pelas suas dimenses, mas tambm pelos achados nela
encontrados: produtos importados do Imprio Carolngio, a saber, armas, copos de
vidro e peas de joalharia. Artigos de luxo, por outras palavras.
Tiss um exemplo entre muitos, j que, por toda a Escandinvia, h registo de
mercados peridicos, onde os excedentes eram escoados, produtos adquiridos e
artesanato transaccionado: em Helgo, na Escnia, at meados do sculo VIII, altura
em que foi movido para um local prximo; nas actuais ilhas suecas da Gotland e land
e ainda na Dinamarca, numa multiplicao de centros de comrcio que ligaram a
Escandinvia ao Bltico oriental e Europa ocidental (Christiansen 2006, 70-1). Um
desses stios, localizado na Jutelndia, comearia por ser sazonal: Ribe, junto da costa
ocidental dinamarquesa, ter sido palco de comrcio desde o incio do sculo VIII, com
a transio da sazonalidade para a actividade ao longo do ano inteiro a ocorrer entre
770 e 780, perodo em que os lotes passam a indicar vestgios de presena contnua de
pessoas (Feveile 2008, 127). E, por lotes, quer-se dizer isso mesmo: parcelas de terreno
separadas e organizadas com vista ocupao humana.
De entre os mercados permanentes, um dos mais conhecidos Hedeby, hoje
no norte da Alemanha, mas, poca, no limite sul da Dinamarca. Ter sido para l que,
em 808, segundo os Anais Reais Francos, o rei Godofredo transferiu os comerciantes
de um povoado eslavo chamado Reric, pilhado pelo monarca. Estava, desse modo, a
eliminar concorrncia e a enriquecer com novos mercadores o posto de comrcio
dinamarqus, cujos vestgios arqueolgicos recuam at ao perodo de 726 a 750
(Christiansen 2006, 71). A localizao de Hedeby, estrategicamente situada entre o
Bltico e o Mar do Norte, a Escandinvia e a Europa mais a sul, tambm favorecia o
seu dinamismo comercial: para alm de nrdicos e eslavos, por l tero tambm
passado Francos, Germanos e mesmo rabes, dado que se conhece o relato de al78
Tartushi, que esteve em Hedeby por volta de 950 (Graham-Campbell 1980, 92).
Ohthere refere a mesma povoao no seu relato ao Rei Alfredo de Wessex e d a
entender a sua posio estratgica ao dizer que se encontra entre os Venedos, os
Saxes e os Anglos (Somerville 2010, 4). Os achados arqueolgicos reflectem essa
diversidade: s em moedas, conhecem-se exemplares anglo-saxnicos, bizantinos,
alemes e islmicos, para alm das de produo escandinava (Hilberg 2008, 104); alis,
a povoao ter mesmo cunhado moeda, para alm de ter acolhido uma pequena
comunidade crist desde o sculo IX, que teria o seu prprio proco (Christiansen
2006, 72). A autoridade parece ter sido exercida por um representante do rei e, a dada
altura, Hedeby foi fortificada por uma muralha de terra.
Mais a norte, a cerca de 30 quilmetros a ocidente de Estocolmo, numa ilha no
lago Mlar, um outro posto comercial nrdico chamado Birka apresentava um cenrio
semelhante: um porto, uma muralha de terra, uma autoridade rgia, uma comunidade
crist entre pagos e contactos comerciais com o ocidente e oriente europeus. Como
mercado, Birka datar de meados do sculo VIII, tendo sido abandonada por volta de
970, vtima da descida do nvel do mar que tornou progressivamente difcil o acesso ao
seu porto. Mas, enquanto existiu, esteve organizada em lotes habitacionais dispostos
em torno da baia e atravessados por arruamentos. Teve um forte situado num
afloramento rochoso e, a partir do sculo IX, passou a ser defendida por uma muralha
de terra (Ambrosiani 2008, 97-8). Pela mesma altura, So Anskar chegou a Birka e,
depois de receber autorizao de um rei a que a Vita do santo d o nome de Bjrn,
pregou e fundou uma comunidade crist. O mesmo texto refere ainda a existncia de
uma assembleia (captulos 11 e 19; Robinson 2010, 45 e 51). Quanto a contactos
comerciais, Birka escoava produtos nrdicos ao mesmo tempo que recebia ou
intermediava a troca de mercadorias vindas da regio do Reno, Dinamarca, Bltico,
leste europeu e Mdio Oriente. Entre os achados arqueolgicos, encontram-se
milhares de ossos de patas de esquilos, martas e raposas, indiciando a preparao e
comercializao de peles, mas tambm cermica do leste, provavelmente de outro
posto comercial com presena nrdica, chamado Staraja Ladoga (Ambrosiani 2008,
98), e ainda moedas de prata rabes.
79
Figura 1: Representao artsica de Kaupang (Flemming Bau, ap. Skre 2008, 119)
80
4. Religio
As crenas religiosas so o ltimo aspecto a analisar neste breve olhar sobre as
terras nativas dos vikingues. Porque a cristianizao engendrou uma mudana poltica
e mental sem, no entanto, ter causado uma ruptura completa com prticas passadas. E
porque, lendo as fontes escritas, fcil pensar que os piratas e invasores nrdicos
eram especialmente violentos e atribuir, como o fazem alguns autores, essa
agressividade s suas crenas religiosas.
A imagem popular dos vikingues , ainda hoje, a de homens brutais, dedicados
pilhagem de cidades e mosteiros, matando ou capturando, para depois exigirem
resgates ou engrossarem o trfico de escravos. Nada de novo no mundo da pirataria,
portanto, tanto em pocas anteriores como posteriores, j que o objectivo sempre foi
o de enriquecer depressa pela extorso declarada e agressiva. E quando a violncia dos
vikingues comparada com a de outros grupos do mesmo perodo, percebemos que
os nrdicos no se distanciavam das prticas de guerra habituais dos reinos cristos.
Dizem os Anais Reais Francos que Carlos Magno ordenou a execuo de quatro mil e
81
83
nesse caso, seria necessrio perguntar pelo porqu de mais de meio sculo entre o
primeiro ataque conhecido, em 789, e a chegada do chamado grande exrcito a
Inglaterra em 869, de cujas fileiras saram colonos nrdicos que receberam (ou
tomaram para si) terras inglesas. Dificilmente poder dizer-se que as dcadas iniciais
foram de explorao violenta, dado que a costa da Europa ocidental no seria terra
incgnita para os escandinavos, que j tinham laos comerciais com o ocidente cristo.
O objectivo inicial parece ter sido simplesmente o de chegar, pilhar e partir. S mais
tarde, quando comearam a surgir as primeiras bases permanentes, que as vagas de
colonos surgem atrs dos bandos de piratas ou foras militares nrdicas.
Na discusso sobre as causas da Idade Vikingue entra tambm a instabilidade
poltica na Escandinvia. A ascenso e queda de magnatas, reis, chefes ou mesmo
prncipes que falhavam a sucesso ao trono originavam grupos de exilados. E estes
podiam tentar recuperar posses e estatuto alm-mar, dedicando-se pirataria para,
com os fundos e fama assim conseguidos, voltarem a terras nrdicas e reclamarem
uma posio de poder. Um exemplo do sculo IX o do rei dinamarqus Horik, morto
em 854 por um sobrinho seu que tinha sido votado ao exlio, mas que ganhou fama e
fortuna como vikingue, tendo regressado ento Dinamarca para tirar o trono ao seu
tio. Recorde-se a teoria que junta este motivo para as incurses com uma hipottica
origem da palavra vkingr no topnimo Viken, regio prxima da actual Oslo, quando a
influncia crescente de reis dinamarqueses sobre o sul da Noruega, nomeadamente
em Vestfold, ter empurrado chefes noruegueses para o exlio e, dessa forma, para a
actividade pirata em Inglaterra (Sawyer 1997, 8). A tese pode no ser unnime, mas,
num processo semelhante, no impossvel que alguns chefes noruegueses tenham
desejado autonomizar-se da Dinamarca, que exercia a sua influncia em parte pela
oferta de artigos de luxo germnicos e francos. E, partir de 800, os magnatas da
Noruega podem ter passado a adquirir esses artigos directamente por via de
expedies piratas (Christiansen 2006, 108).
Nesta questo, ser talvez til olhar para o Bltico, dado tratar-se de um mar
mais pequeno e onde os fenmenos associados Idade Vikingue no ocidente
pirataria, migrao e colonizao estavam j presentes antes das primeiras incurses
na costa inglesa e francesa. Na Litunia, os vestgios de presena nrdica parecem
remontar ao sculo VII (Valk 2008, 488), enquanto, na regio do lago Ladoga,
87
89
Captulo 6
A chegada dos vikingues Pennsula Ibrica
1. Os motivos
No h nenhum relato nrdico coevo que nos descreva as razes que levaram
os vikingues a descerem at Pennsula Ibrica. As fontes francas e britnicas por
vezes deixam indcios de motivos para incurses especficas, como a que chegou ao
oeste ibrico na dcada de 960, mas um caso que confirma a regra de silncio. Assim
sendo, os estudiosos do tema desdobraram-se em teorias sobre o porqu da vinda de
vikingues ao territrio mais a ocidente da Europa.
Tem sido popular a tese de que foram atrados pela fama de Santiago de
Compostela. Expresso dessa hiptese o termo Jakobsland, atribudo pelos nrdicos
Galiza por referncia a So Tiago (Jakob) e que tem sido usado por autores modernos
para indicar o fascnio e, consequentemente, a atractividade do santurio do apstolo
para os piratas nrdicos. So disso exemplo Magdalena Stork Gadea (1985, 15),
Vicente Almazn (1986, 92-3) e Miguel Gonzlez Garcs (1987, 82), mas a teoria
merece pouco crdito e por vrios motivos. Em primeiro lugar, porque est por
encontrar uma inscrio rnica datvel do sculo IX onde o referido topnimo possa
ser lido. Singul Lorenzo refere uma pedra que fala sobre os feitos blicos de um
Gunnar Gunnarson em Jakobusland, mas no indica a referncia da inscrio, nem
muito menos uma datao da mesma (1999, 21). O termo aparece posteriormente,
certo, e Almazn d disso exemplos, como veremos no captulo seguinte, mas a sua
utilizao na Escandinvia do sculo XII no prova do uso da expresso trezentos
anos antes. Principalmente, e este o segundo motivo, se tivermos em conta que
Santiago de Compostela s comea a adquirir um estatuto internacional no sculo X.
Afinal, se a suposta descoberta do tmulo do apstolo passa despercebida para as
crnicas asturianas, terminadas, convm lembrar, entre 881 e 910, difcil imaginar
que pudesse ter chamado a ateno de piratas nrdicos na Aquitnia em 844. Por
ltimo, mesmo que quisessemos acreditar na teoria de Santiago de Compostela como
o alvo dos vikingues, justo perguntar porqu, ento, os ataques mais a sul. Se a fama
do santurio do apstolo incendiava a imaginao de piratas ao ponto de os atrair at
90
ao extremo ocidental da Europa no sculo IX, seria de esperar uma concentrao das
investidas em torno de Santiago. Em vez disso, temos notcias de ataques a Lisboa,
Algarve, Sevilha, norte de frica e at de uma expedio ao Mediterrneo. Perante
tamanha disperso de esforos quando dizem alguns o alvo estava to claramente
identificado com o nome de Jakobsland, talvez fosse melhor admitirmos que a teoria
do santurio compostelano como motivo para as incurses do sculo IX tem pouco de
rigor histrico. , isso sim, um anacronismo, eventualmente produto do nacionalismo
romntico e talvez at de gosto pelo martrio: afinal, quem melhor do que os piratas
nrdicos, os que tantos mosteiros pilharam pela Europa, para acompanhar Almanor
no papel de inimigos de Santiago?
Outra teoria que procurou justificar a vinda de vikingues refere a produo de
sal na costa galega e os dividendos elevados que essa actividade gerava. Foi o que
props Izquierdo Daz, chamando a ateno para a vinda dos piratas nrdicos no
Vero, que a estao de grande actividade nas salinas, e embora depois admita que a
quantidade extrada seria escassa (2009, 82). Se certo que, conforme veremos, uma
poro de sal constava de um resgate pago a um grupo de vikingues no sculo XI,
tambm verdade que o pagamento inclua outros bens. E, convm t-lo bem
presente, havia um motivo bem mais prtico e muito menos imaginativo para a
frequncia de ataques no Vero: era a estao durante a qual a navegao era mais
segura. Por esse motivo, as primeiras investidas da Idade Vikingue foram sazonais e,
tambm por isso, surgiram bases onde os piratas nrdicos passavam o Inverno e a
partir das quais lanavam aces de saque durante o ano inteiro. Foi assim nos rios
Loire e Sena, assim como em Inglaterra ainda no sculo IX. E, segundo um documento
que a seu tempo veremos com o devido detalhe, ter sido tambm o caso nas margens
do rio Douro, onde um grupo de vikingues entrou em Julho de 1015 e por l andou
nove meses. O que equivale a dizer que os nrdicos invernaram naquilo que hoje o
norte de Portugal.
O que trouxe, ento, os vikingues Pennsula Ibrica? Inicialmente, poder ter
sido apenas curiosidade pela terra mais a sul, uma vez que estamos, afinal, a falar de
costa contnua e no de ilhas. Se chegaram Aquitnia, bastava-lhes seguir viagem por
mar at navegarem para ocidente, sem noo do destino e explorando a linha costeira.
No impossvel que tenham ouvido falar da Pennsula da boca de Francos por entre
91
Captulo 7
As incurses do sculo IX
Passadas duas dcadas sobre o ataque a Lindisfarne, a actividade vikingue
parece diminuir, pelo menos a julgar pelas fontes francas e britnicas. Sob o ano de
793, a Crnica Anglo-Saxnica refere pilhagem e uma derrota nrdica na foz do rio
Wear, no norte de Inglaterra, mas s muito depois voltar a falar de piratas. Na
Irlanda, o primeiro ataque conhecido foi em 795, seguindo-se outros em 798, 807 e
812, todos de pequena dimenso e nem sempre bem sucedidos. Verifica-se depois,
porm, um interregno de vrios anos ( Corrin 2008, 428). E, no norte do Imprio
Franco, a relao conflituosa com os Dinamarqueses alimentava ataques dirigidos pelo
rei Godofredo, como o que em 810 atingiu a Frsia onde, segundo os Anais Reais
Francos, chegou uma frota de duzentos navios vindos da Dinamarca. Dois anos mais
tarde, no entanto, os sucessores do monarca abrem negociaes de paz com os
Francos e, durante algum tempo, os ataques parecem ter parado.
preciso esperar oito anos at surgirem novas notcias. Em 820, segundo os
Anais Reais Francos, um bando de piratas ataca a Flandres com sucesso limitado, dado
que as defesas costeiras conseguiram barrar-lhes o caminho, mas sem impedirem o
roubo de gado e o incndio de algumas habitaes. Segue-se outro ataque falhado,
desta feita na foz do Sena, e depois na Aquitnia onde, a sim, os vikingues levam a
cabo uma investida bem sucedida. No mesmo ano, regressam as incurses na Irlanda
( Corrin 2008, 429) e, em 835, segundo a Crnica Anglo-Saxnica, a ilha de Sheppey,
no esturio do Tamisa, atacada por piratas nrdicos. J um ano antes, segundo os
Anais de So Bertino, os ataques Frsia tinham sido retomados, a que se juntaram
investidas contra Dorestad, importante posto comercial franco prximo da foz do
Reno. O episdio repete-se em 835 e 836, ano em que os mesmos anais contam que o
rei dinamarqus puniu um grupo de piratas que havia atacado a Frsia; indcio de
actividade privada, por outras palavras, ou a desculpa de um monarca. Tambm em
836, segundo a Crnica Anglo-Saxnica, o Rei Ecgberht de Wessex derrotado por
nrdicos em Carhampton, seguindo-se uma vitria vikingue na ilha de Portland em
840, outros ataques na Anglia Oriental e Kent em 841 e nova derrota dos Anglo-Saxes
95
de Oissel, Carlos volta a cobrar um imposto para recolher 5 000 libras de prata a pagar
aos sitiantes e garantir que partiam todos sem novas pilhagens.
A actividade vikingue atinge um novo patamar em 865 quando, segundo a
Crnica Anglo-Saxnica, chega a Inglaterra uma nova fora nrdica a que d
simplesmente o nome de grande exrcito. Provavelmente originrio da Escandinvia,
possvel que entre os guerreiros que o compunham estivessem bandos vikingues que
actuavam na Irlanda e em territrio franco (Keynes 1997, 54), atrados para uma
grande campanha por laos de fidelidade, pelo prestgio dos lderes do exrcito ou pela
promessa de saque. Em qualquer caso, depois de ter desembarcado na Anglia Oriental,
onde os habitantes locais fizeram paz com os nrdicos a troco de lhes fornecerem
cavalos, o grande exrcito seguiu para norte, onde a guerra civil no Reino da
Northumbria permitiu que York, a capital, casse nas mos dos invasores sem
resistncia. Uma tentativa para recuperar a cidade ainda teve lugar em 867, mas
falhou e os dois monarcas ingleses rivais morreram na investida, ditando a queda da
Northumbria. O mesmo sucedeu Anglia Oriental, para onde o grande exrcito
regressa e derrota o Rei Edmundo em 869, e Mercia, em 873, uma vez tomada a
cidade de Repton e expulso o Rei Burgred. Neste cenrio, o grande sobrevivente
Wessex, que foi atacado ainda em 870, ano em que a Crnica Anglo-Saxnica d
notcia de trs vitrias nrdicas. Pela mesma fonte ficamos tambm a saber que o
grande exrcito voltou a entrar em Wessex em 875 e que o rei Alfredo acordou uma
paz que ter durado pouco, uma vez que surge nova notcia de um ataque em 876. No
entanto, dois anos depois, o mesmo monarca sairia vencedor da Batalha de Eddington.
A metade do grande exrcito que invadira Wessex recuou ento para a Anglia Oriental,
onde chega em 879 e, num gesto de colonizao nrdica de Inglaterra, a Crnica
Anglo-Saxnica diz ter sido distribuda terra pelos guerreiros. Talvez desencorajados
pelo insucesso, os vikingues voltam a concentrar-se em territrio franco, para onde
partiu o que restava do grande exrcito derrotado por Alfredo, o Grande.
As investidas nrdicas no ficaram, obviamente, sem resposta. No tanto ao
nvel do destacamento imediato de tropas mais ou menos preparadas que essa seria
apenas uma resposta expectvel mas no que se refere a novas estratgias para
melhor fazer frente aos invasores. Segundo os Anais de So Bertino, os Francos, sob a
liderana de Carlos, o Calvo, tentaram reagir logo em 862 com a construo de pontes
97
fortificadas sobre os rios Sena, Oise e Marne, como forma de tentarem travar o avano
vikingue pelos cursos de gua. A estratgia repetida trs anos depois e parece
impedir ataques a Paris e Chartres, mas, ainda em 865, segundo os mesmos anais, os
vikingues pilharam Orlees, Poitiers e Le Mans sem que lhes tenha sido oferecida
resistncia. A melhor resposta parece ter vindo precisamente de foras locais: ainda
em 865, quando os Aquitanos expulsam os vikingues da sua base em Charente, ou
quando tropas de Poitiers derrotam os nrdicos estabelecidos no Loire em 868. H at
notcia, tambm nos Anais de So Bertino, de que, em 859, a populao de entre os
rios Sena e Loire organizou a sua prpria defesa e foi aparentemente to bem sucedida
(ou estaria de tal forma preparada) que nesse mesmo ano ter sido suprimida pela
prpria aristocracia franca, ciosa do seu papel militar. Do outro lado do Canal da
Mancha, aps a vitria em Eddington e a partida do grande exrcito, Alfredo de
Wessex aproveitou a oportunidade para se prevenir. Dirigindo a sua ateno para as
defesas do seu reino, ordena a construo de um rede de fortificaes que retirasse
aos vikingues espao de manobra, reorganizou o exrcito e mune-se de uma frota.
Quando os nrdicos voltam a atacar Wessex, em 893, o relato da Crnica AngloSaxnica inclui frequentemente notcias de invasores sitiados, derrotados e de rotas
fluviais bloqueadas. De tal forma que, trs anos depois, ficamos a saber que o exrcito
vikingue divide-se e retira: parte vai para a Northumbria, parte para a Anglia Oriental e
ainda outra parte para o rio Sena.
Na Pennsula Ibrica, a situao nativa menos rica em informao para a
primeira metade do sculo IX. Conhece-se a expedio bem sucedida de Alfonso II a
Lisboa em 798, quando o rei asturiano pilhou e ocupou temporariamente a cidade
(Torres 1992, 420), mas sem avanar a linha de fronteira efectiva. Esta estaria, quando
muito, prxima do rio Lerz, pese embora a Crnica de Alfonso III diga que Alfonso I
tomou cidades to a sul como Porto e Viseu (Rotense 13; Ad Sebastianum 13; Gil
Fernandez et al. 1985, 206-7), naquilo que deve ser entendido mais como aces de
pilhagem do que uma conquista definitiva. A mesma fonte diz que o mesmo monarca
povoou a Galiza martima (Rotense 14, Ad Sebastianum 14; Gil Fernandez et al. 1985,
208-9), que Jos Mattoso acredita poder tratar-se das regies de Gijn e Corunha
(1992b, 531). E isto leva-nos questo do povoamento, que no deve, regra geral, ser
entendido como a reocupao de territrio anteriormente abandonado e deserto.
98
Deve antes interpretar-se a ideia como a reintroduo de uma autoridade supra local
em regies onde os conflitos militares afectaram laos polticos e comerciais, ditaram o
abandono de cidades e reverteram a presena humana para uma ruralidade dispersa,
organizada localmente. O povoamento rgio , por isso, mais uma aco de
ordenamento jurdico que submete Coroa os poderes e habitantes locais, h muito
independentes porque abandonados por autoridade nacionais, e menos uma
ocupao de territrio deserto. Na primeira metade do sculo IX, o ocidente da
Pennsula Ibrica teria uma vasta rea assim despovoada, entre os rios Douro e
Minho, seno mesmo mais para norte e sul: em 839, Alfonso II pilha a regio de Viseu
(Mattoso 1992b, 532) e apenas em 854 que se d o repovoamento de Tui, Astorga
e Leo (Rotense 25; Ad Sebastianum 25; Gil Fernandez et al. 1985, 218-9). Em 868, a
linha de fronteira do Reino das Astrias est no Douro com a conquista do Porto e, em
878, no rio Mondego com a de Coimbra, duas cidades que, pela mesma altura, tornamse sedes de dois condados: o Portucalense e o de Coimbra. Por fim, h a referir ainda a
putativa descoberta dos restos mortais de So Tiago em Compostela, episdio
atribudo a Teodemiro, Bispo de Iria (actual Padrn), por volta de 820, mas a Crnica
Albeldense e ambas as verses da Crnica de Alfonso III nada dizem sobre o episdio.
Como referncia religiosa da cristandade, ibrica em particular e da ocidental em
geral, Santiago de Compostela tinha ainda um caminho a percorrer.
No sul muulmano, a situao poltica era pautada por revoltas regionais, por
vezes com o apoio das Astrias que, ainda assim, no deixaram de ser alvo de
investidas militares. Ainda digno de nota so as notcias de expedies navais
andalusas contra o norte cristo, primeiro em 841 e uma segunda vez em 879
(Mattoso 1992b, 479).
neste cenrio que o ocidente ibrico vai, pela primeira vez, confrontar-se com
os vikingues que, tal como no resto da Europa, tanto subiram os rios em aces rpidas
de saque como submeteram cidades ou regies a ataques de durao varivel.
1. Corunha, 844
Em 844, segundo os Anais de So Bertino, um grupo de vikingues sobe o rio
Garonne e pilha a regio de Toulouse sem resistncia. Pouco depois, parte desse
bando ter regressado ao mar e navegado para sul, at chegar Galiza, onde os
99
piratas foram apanhados numa tempestade e derrotados por tropas ibricas munidas
de armas de arremesso. Assim conta a referida fonte a primeira incurso nrdica no
ocidente peninsular de que h registo.
O acontecimento no passou despercebido nos documentos asturianos, que o
referem sem os detalhes dos Anais de So Bertino. A Crnica Albeldense apenas diz
que, no reinado de Ramiro I, vieram s Astrias os primeiros normandos (XV:10; Gil
Fernandez et al. 1985, 249), enquanto que a Crnica de Alfonso III faz um registo da
rota utilizada pelo bando, que ter primeiro aparecido diante de Gijn e depois
seguido para Farum Bringatium. Acabaram derrotados por um exrcito enviado pelo
Rei Ramiro I e seguiram depois para Sevilha, que tomaram (Rotense 23; Ad
Sebastianum 23; Gil Fernandez et al. 1985, 216-7). A Crnica Proftica to sucinta
quanto a Albeldense, mas acrescenta um pormenor novo ao datar a entrada dos
vikingues na Hispnia, a 1 de Agosto da Era 882 (ano 844) (5; Gil Fernandez et al. 1985,
262). A Histria Silense acrescenta que Ramiro I derrotou a maioria dos invasores junto
a Farum Brigantium (iuxta Farum Brecantinam) e incendiou sessenta embarcaes dos
piratas nrdicos (34; Prez de Urbel & Gonzlez Ruiz-Zorrilla 1959, 143).
Alguns autores dataram este ataque de 843, como Romey (1839, 62), Chao
Espina (1965, 29) e Otero Fernndez (2002, 55), ou 846, como Vedia y Goossens (1845,
8), Vicetto (1871, 45) e Gonzlez Garcs (1987, 82). No fcil perceber porqu, dado
que nem sempre indicam as suas fontes, mas, no primeiro caso, a confuso poder
ficar a dever-se ao facto de a Crnica de Alfonso III no indicar a data do ataque e ter
como referncia cronolgica mais prxima a Era 881 (843), ano em que coloca a subida
de Ramiro I ao trono. Quanto ao segundo caso, possvel que tenha tido origem num
lapso de leitura do documento original, posteriormente perpetuado pelo uso do
trabalho do autor do erro: Mayn Fernandez, por exemplo, faz referncia obra de
Huerta y Vega ao indicar 846 como o ano do primeiro ataque (1955, 19) e este ltimo,
de facto, data o desembarque na Corunha desse mesmo ano (1736, 360-2). Outro
aspecto que no passado mereceu alguma ateno foi o nome do lder do grupo de
vikingues. Uma vez mais, voltamo-nos para Huerta y Vega, que diz que a esquadra
nrdica foi liderada por um Horrich (1736, 630), sem que se saiba qual a sua fonte.
Tambm sem referir de onde retirou a informao, Romey diz que foi um chefe
chamado Witingur (1839, 62), enquanto Vicetto acrescenta King s duas hipteses
100
anteriores (1871, 47). J no sculo XX, Chao Espina apresenta os trs nomes
acriticamente (1965, 30-1) e nenhum destes autores indica por uma vez que seja uma
fonte primria que sustente a informao, talvez porque nenhuma o faa. Pelo menos
no que se refere ao ataque de 844 na Galiza, nenhum texto medieval asturiano de que
tenhamos conhecimento indica o nome do ou dos lderes do bando de piratas nrdicos
que chegou costa galega. E Vicetto parece ter sido vtima do seu prprio raciocnio,
uma vez que, na mesma pgina em que fala de um chefe chamado King, explica como
os vikingues denominavam os lderes dos seus bandos por rei (do mar). Ou seja, tomou
como nome prprio aquilo que ele mesmo comeou por apresentar como um ttulo.
Postos de parte estes detalhes, podemos virar-nos para outro elemento, esse
sim presente nas fontes primrias: o topnimo Farum Brigantium. Durante o sculo
XX, chegou a ser identificado com Betanzos, a sudeste da Corunha, mas a tese foi
rejeitada por Xos Barreiro Fernndez (1996, 40-2). A interpretao mais comum a
de que se trata da Corunha, sustentada, em parte, nas referncias de autores clssicos
a uma cidade chamada Brigantia (Uria Riu 1955, 378), localizada no extremo norte da
Galiza, e, de outra parte, em achados arqueolgicos romanos dentro da rea urbana e
arredores da cidade (Barreiro Fernndez 1996, 42 e ss.). Exemplo mximo desses
vestgios a Torre de Hrcules, um farol de origem romana que mantm ainda hoje
essa funo e que frequentemente entendido com o faro do topnimo mencionado
na Albeldense e Crnica de Alfonso III. essa, por exemplo, a opinio de Uria Riu (1955,
364), Chao Espina (1965, 34) e Eduardo Morales Romero (2004, 129). Dir-se-ia, ento,
que a identificao de Farum Brigantium com a Torre de Hrcules na cidade da
Corunha parece ser segura, mas, na verdade, ela pode ser anacrnica por assumir a
correspondncia simples entre as palavras faro e farol, sem que se tenha em conta o
sentido da primeira no sculo IX galego. Excepo a esse cenrio acrtico foi Jos Luis
Lpez Sangil que, recorrendo a documentos coevos, disps-se a precisar a localizao e
limites de Farum Brigantium. Segundo o investigador, nos sculos IX a XII, por Faro
deve entender-se no uma cidade, mas sim um territrio que compreenderia os
actuais concelhos de Corunha, Arteijo e Culleredo. Isto , o comisso de faro (e no
civitas) referido num documento de 830 (2009, 176-7) e o condado de Farum
Pregantium num texto de 991 preservado no Tombo A da Catedral de Santiago (Lucas
Alvarez 1998, 136-9, doc. 56). Isto levanta de imediato a questo do sentido do
101
topnimo nas crnicas Albeldense e de Alfonso III, se uma cidade e o seu farol, como
tantas vezes dito, ou um territrio mais vasto. E se h documentos medievais que
aludem a um castelo de Faro, Lpez Sangil afirmar tratar-se de um castelo de facto,
possivelmente situado no actual concelho de Culleredo, e no a um farol fortificado ou
Torre de Hrcules. A confuso, para citar o investigador, surge de la palabra Faro,
que hoy tiene el significado de torre con luz como gua para los navegantes, y en el
edad media, en nuestro caso, era el nombre de una comarca. (2009, 184). A que
corresponderia, ento, o Farum Brigantium atacado por vikingues em 844? A um
condado ou comarca de Faro, localizada em terra de Bergantios, que seria uma
diviso territorial mais vasta (Lpez Sangil 2009, 187). Nesse sentido iam j os
argumentos de Barreiro Fernndez, que defendeu um despovoamento progressivo da
cidade de Brigantia desde o final do perodo clssico e de como, consequentemente,
Farum Brigantium passou a denominar todo um territrio e no apenas um ncleo
urbano que, no sculo IX, estaria muito reduzido em dimenso e importncia (1996,
80-1). Isto no quer dizer que a rea exacta da actual cidade da Corunha no tenha
sido pilhada por piratas nrdicos, mas, a bem do rigor, devemos evitar uma
identificao simples com o topnimo e, em vez disso, traduzi-lo como regio da
Corunha. Mais vago, certo, mas mais de acordo com o registo histrico.
Se de uma cidade passamos para uma rea mais vasta e se est posta de parte
a identificao com a Torre de Hrcules, qual o local exacto do desembarque vikingue?
O registo cronstico demasiado pobre em detalhes para nos permitir apresentar uma
hiptese concreta e, no que respeita a cartulrios, h notcia do saque de uma igreja a
sul da Corunha, em Santa Eullia de Curtis, mas no s a datao do documento no
tem sido unnime, como, mesmo que seja do sculo IX, no nos diz a data exacta do
ataque. No h, por isso, forma de dizer onde na regio da Corunha desembarcaram
os vikingues em 844 e at onde penetraram em territrio galego. A nica pista
encontra-se na Historia Silense que, ao dizer que o monarca asturiano derrotou a
maioria dos vikingues (maximam eiusdem partem postrauit), deixa implcita a
existncia de outra parte do bando pirata que, no momento da batalha, se encontrava
noutro local ou tinha j sido derrotada. Quanto referncia aos arredores de Farum
Brigantium (iuxta Farum Brecantinam), regressa a dvida do sentido preciso do
topnimo: se se refere cidade, a batalha ter tido lugar prximo da povoao; se, em
102
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hiperbolizada, fosse para que fim fosse, panegrico ou outro. Afinal, quando se trata de
nmeros na ordem das dezenas ou centenas, se se quiser aceitar a sua exactido, h
que imaginar os autores das fontes ou os seus informadores a contarem as
embarcaes uma a uma, no topo de um penhasco ou numa praia. A alternativa, por
ventura mais plausvel, aceitar os nmeros elevados como uma estimativa ou
expresso destinada a indicar grande quantidade, por vezes para agigantar a ameaa
ou aumentar o prestgio de vitrias nativas. No caso do ataque de 844 na regio da
Corunha, ser til cruzar a informao com a descrio do ataque a Lisboa, conforme
ser feito de seguida.
Derrotados, ento, no norte da Galiza, os vikingues seguiram para sul. Vrios
autores modernos falam de um ataque ao Mosteiro de So Cipriano de Clogo, na ria
Arousa e na rota martima para Santiago de Compostela. Mas essa hiptese fica a
dever mais imaginao do que a dados concretos, motivo pelo qual ser
devidamente tratada em local prprio, que o das lendas.
2. Lisboa, 844
No Al-Muqtabis, Ibn Hayyan, citando al-Razi, relata a chegada de vikingues a
Lisboa, no primeiro dia de Dhu al-Hijjah do ano 229 da Hgira, o que equivale,
aproximadamente, a 20 de Agosto de 84420. Afirma que permaneceram treze dias e
enfrentaram os muulmanos locais em trs batalhas, enquanto o Emir Abd al-Raham II
colocava em alerta as zonas costeiras aps ter recebido notcia do governador de
Lisboa, que o avisou da presena de uma frota de cinquenta e quatro embarcaes
nrdicas e cinquenta e quatro crabos, que so barcos de pequena dimenso (AlMuqtabis II-1, 185v; Ali Makki & Corriente 2001, 312). Os dados so repetidos por Ibn
Idhari, que diz ainda que, ao deixar a regio, a frota invasora era composta por oitenta
embarcaes (Fernndez Gonzlez 1999, 120-1). Ibn al-Qutiya acrescenta que os
vikingues desembarcaram na costa mais a ocidente e que ocuparam a rea em redor
de Lisboa na sua primeira invaso (Tarikh 6; James 2009, 100).
20
A converso aproximada. Tomou-se a tabela publicada por Cappelli, que indica o incio do ano 229
da Hgira a 30 de Setembro de 843 e seu final a 17 do mesmo ms de 844 (1930, 170). Dado que Dhu alHijjah o ltimo ms do calendrio islmico, o seu incio ter sido, sensivelmente, vinte e nove dias
antes. Isto , 20 de Agosto de 844.
104
gua de uma fonte (captulo 163; Catalan & Soledad de Andres 1975, 373-4). Mas a
verso da crnica onde pode ler-se este episdio pouco fidedigna, no s por se
tratar de uma redaco mista, na medida em que tentou juntar duas tradues
castelhanas daquilo que era j uma traduo portuguesa de sculo XIII da obra de alRazi, como o seu autor ter sido um falsrio, tanto assim que os editores modernos do
texto chamam-lhe um pseudo-Rasis (Catalan & Soledad de Andres 1975, xix-xxv).
Assim sendo, falta de referncias explcitas em fontes credveis ou de vestgios
arqueolgicos claros, no possvel afirmar com certeza se a cidade foi tomada ou
no. Mais facilmente poder dizer-se se os arredores foram saqueados, mas isso exige
que se considere primeiro os limites do permetro defensivo de Lisboa em 844 e quais
os bairros que se encontrariam imediatamente no seu exterior.
Sobre a cerca moura, conhece-se o traado da que defendeu a cidade dos
cruzados em 1147 e cujos vestgios so ainda hoje visveis nas ruas de bairros
histricos, mas a dvida at que ponto uma muralha que se encontrava de p no
sculo XII corresponde que existiria trezentos anos antes. No seria uma fortificao
inexpugnvel, pelo menos a acreditar na referncia j mencionada pilhagem da
cidade por Alfonso II em 798 e a igual feito por Ordonho III em 953. Julga-se, alis, que
este ltimo ataque motivou, em larga medida, a construo da cerca moura que estava
de p em 1147 (Guardado da Silva 2008, 75). No entanto, impe-se a pergunta de se
ter sido uma construo inteiramente nova ou a reconstruo de um permetro
defensivo previamente existente. Se se optar pela primeira resposta, ter de admitirse a ignorncia quanto muralha do sculo IX, mas h indicaes de que a cerca
moura reaproveitou a tardo-romana do sculo IV, conforme constatvel, por exemplo,
na Casa dos Bicos, onde foram descobertos vestgios sobrepostos aos de um bastio
romano (Guardado da Silva 2008, 46). Claro que, a assumir-se para o permetro
defensivo romano os limites ocidentais da cerca moura, ser-se- obrigado a concluir
que a muralha tardo-romana deixou de fora um conjunto de edifcios monumentais,
como o hipottico templo deusa Cibele e as Termas dos Cssios. Mas o sculo IV foi
um perodo de instabilidade e de alterao do traado urbano da cidade, conforme
indica o encerramento do teatro romano e a ocupao por habitaes de uma rua sob
o actual claustro da S (Lus de Matos 1994, 32-4). No , por isso, impossvel que uma
muralha construda nesse perodo se tenha limitado a defender a rea central de
106
107
Figura 2: Lisboa islmica (Picard 2000, 332). Assinala o castelo (5), as portas das
muralhas (1-4) , Alfama (IV) e a Mouraria (VI).
Mais afastada das muralhas, mas ainda assim um alvo possvel, est a zona de
Santos-o-Velho, cuja ligao antiga com o culto de mrtires cristos ter levado
fixao de uma populao morabe no local (Almeida Fernandes 2007, 75). E, dada a
sua localizao junto ao rio, seria um alvo fcil para um grupo de vikingues.
Para alm da malha urbana de Lisboa, h que considerar igualmente
fortificaes do perodo islmico que, por se encontrarem em redor da cidade ou junto
ao Tejo, podero ter sido atacadas ou mesmo pilhadas por vikingues e ainda que no
se possa dizer ao certo se j existiam em 844. o caso de uma estrutura defensiva que
ter ocupado o topo da actual Penha de Frana e da Rua da Atalaia (do rabe para
torre de vigia), actualmente no Bairro Alto. Ainda de Belm, onde tero existido duas
pequenas fortalezas ou as Alcolenas, da Fortaleza de Catalazete no actual concelho de
108
Oeiras e ainda do Jamor, onde ter existido outra torre defensiva (Rei 2005, 35-6).
preciso ter ainda em conta a margem sul do rio, nomeadamente Almada, poca uma
pequena povoao fortificada e local de extraco de ouro, ou ainda topnimos que
indiciam mais estruturas defensivas, como, por exemplo, a Atalaia, no Seixal (Rei 2005,
30-1 e 36). Assumindo a sua existncia em 844, qualquer um destes pontos poder ter
sido palco de uma ou mais das trs batalhas que, segundo o relato transmitido por Ibn
Hayyan, foram travadas pelas foras locais contra os vikingues nos treze dias em que
estes estiveram presentes na regio de Lisboa.
Falta ainda analisar o detalhe do nmero de embarcaes. J foi referida a
dificuldade em aceitar como exactas cifras na ordem das dezenas ou centenas,
particularmente neste caso em que a frota vikingue parecia ter uma organizao
perfeitamente simtrica, com cinquenta e quatro embarcaes nrdicas e uma
quantidade igual de crabos ou navios mais pequenos. Os nmeros tornam-se ainda
mais difceis de levar a srio se se acreditar nos que so transmitidos pela Histria
Silense, que fala na destruio de sessenta embarcaes na Corunha e obrigaria, dessa
forma, a aceitar uma frota vikingue originalmente de quase cento e setenta navios. As
estimativas, principalmente quando feitas a olho, so isso mesmo: nmeros
aproximados que naturalmente variam conforme quem olha e com que intuitos. Mas,
neste caso, talvez escondam uma possibilidade interessante. certo que no dita
qual a composio da frota que passou ao largo de Gijn e desembarcou na regio da
Corunha, se era composta por embarcaes semelhantes ou no. A descrio
transmitida por Ibn Hayyan parece implicar que, ao chegarem a Lisboa, os vikingues
vinham em dois tipos de navios em nmeros que, a olho insistimos nas expresso
pareciam ser iguais, ainda que pudessem no ser exactamente cinquenta e quatro de
cada. E isto leva a considerar uma hiptese que a falta de informao no permite que
seja mais do que isso: a de que, aps terem perdido embarcaes na regio da
Corunha, mesmo que no exactamente sessenta, os vikingues tero recuperado no
nmero de navios ao roubarem novos e pequenos barcos na viagem para sul, em
pequenas aces de pilhagem ao longo da costa. De tal forma que, ao chegarem a
Lisboa, os habitantes locais podiam claramente distinguir dois tipos de embarcaes,
umas que diziam ser nrdicas e outras que reconheciam como crabos. A fazer f no
relato de Ibn Idhari, ao partirem rumo a Sevilha, os vikingues tinham uma frota de
109
ser diz-lo, o passar dos sculos trouxe a infeliz perda de textos e registos, pelo que a
informao actualmente existente ser ainda mais fragmentria. No possvel, por
isso, afirmar se e onde atacaram os vikingues entre Lisboa e Sevilha: apenas pode
levantar-se a hiptese geral, dado o hiato temporal de um ms.
H ainda referncias viagem de regresso para norte: o j mencionado relato
de Ibn Idhari, segundo o qual os vikingues voltaram a passar por Lisboa, e ainda um
outro de al-Qurasi, preservado no Al-Muqtabis de Ibn Hayyan e que conta como, aps
o saque de Sevilha, os piratas nrdicos ainda entraram no Mediterrneo e, depois de
voltarem ao Atlntico, sofreram uma derrota na costa de Lisboa. Tambm dito que
regressaram Galiza, de onde no saram (Al-Muqtabis II-1, 186v; Ali Makki &
Corriente 2001, 316-7). Este ltimo detalhe problemtico, dado que no h registo
nas fontes ibricas de nova investida nrdica em 844 e a Crnica Albeldense fala de
uma segunda vinda apenas vrios anos depois. Mas a passagem para frica aps o
saque de Sevilha surge noutro excerto preservado por Ibn Hayyan (Al-Muqtabis II-1,
187v; Ali Makki & Corriente 2001, 319) e ainda na obra de al-Qutiya, que fala mesmo
da pilhagem da costa mediterrnica e de uma chegada dos vikingues a Alexandria
numa viagem de catorze anos (captulo 6; James 2009, 101). A narrativa ser
exagerada, mas sobre ela falaremos mais adiante.
3. Galiza, 858
Segundo a Crnica Albeldense, os piratas nrdicos voltaram a atacar o ocidente
peninsular no reinado de Ordonho I, pilhando a costa galega e acabando derrotados
por um conde Pedro, do qual nada mais dito (11; Gil Fernandez et al. 1985, 250). A
Crnica de Alfonso III nada refere sobre uma vitria nativa, mas acrescenta que os
nrdicos chegaram ao norte de frica e entraram no Mediterrneo, onde atacaram as
Baleares (Rotense 27; Ad Sebastianum 27; Gil Fernandez et al. 1985, 220-1). Apenas a
Crnica Proftica fornece a data de Julho da Era 896, que corresponde ao ano 858 (6;
Gil Fernandez et al. 1985, 263) e que coincide com o perodo de governao de
Ordonho I, de 850 a 866 (Ruiz de la Pea 1995, 635). O Cronico Iriense parece fazer
confuso com o ataque de 968, de que falaremos mais frente, uma vez que refere a
vinda de cem embarcaes nrdicas e a permanncia de piratas na Galiza durante trs
anos (5; Garca lvarez 1963, 111).
111
113
Seguindo uma vez mais para sul, os vikingues voltaram a navegar ao longo da
actual costa portuguesa, desconhecendo-se, uma vez mais, se levaram a cabo aces
de saque entre a Galiza e o Tejo.
4. Lisboa, 858
Ao contrrio do que sucede para o ataque a Lisboa em 844, para o de 858 a
informao disponvel muito escassa. Limita-se s breves palavras da Crnica
Proftica, de que os vikingues chegaram Pennsula Ibrica e que houve uma matana
em Lisboa, em Julho da Era 896 (ano 858). Desconhece-se se o autor da crnica se
referia cidade ou regio, onde teve lugar o confronto e quanto tempo durou a
investida.
aproximao. E o que esse autor descreve permite, segundo Christophe Picard, atribuir
a actual costa alentejana ao distrito rabe de Beja, do rio Sado ao Cabo de So Vicente
(2000, 61). nessa faixa martima que se deve colocar a captura de duas embarcaes
vikingues pela armada andaluza, desconhecendo-se se o resto do grupo nrdico tentou
levar a cabo algum ataque contra uma povoao costeira. Mas de notar a referncia
de uma frota muulmana, que parece ausente dos confrontos de 844. O que talvez
indique que, no espao de pouco mais de uma dcada, o Emirado de Crdova
aprendeu com os primeiros ataques nrdicos e comeou a munir-se de meios de
defesa.
A data indicada por Ibn Idhari levanta um problema complexo. Segundo
Cappelli, o ano 245 da Hgira teve incio a 8 de Abril de 859 (1930, 170), o que quer
dizer que, entre o ataque a Lisboa de Julho de 858 de que fala a Crnica Proftica e o
confronto na costa de Beja referido por Ibn Idhari, teriam passado nove meses. O hiato
temporal grande, demasiado grande para acomodar pequenas incurses costeiras
numa viagem para sul, pelo que, a admitir-se a veracidade das datas fornecidas, as
hipteses so de imediato duas: a primeira a possibilidade de os nrdicos terem
estabelecido uma base em 858, talvez em torno de Lisboa, onde permaneceriam at
rumarem para sul pelo menos nove meses depois; a segunda consiste em admitir-se
que o grupo que Idn Idhari coloca na costa de Beja e depois no Mediterrneo outro,
chegado ao ocidente peninsular apenas em 859 e distinto do que foi derrotado pelo
conde Pedro. Al-Qutiya volta a ser til para fazer pender a balana para uma das
hipteses, dado que ele refere uma derrota dos vikingues na foz do Guadalquivir no
ano 244 da Hgira (Tarikh 6; James 2009, 102) que, segundo Cappelli, teve inicio a 19
de Abril de 858 (1930, 170). Ou seja, o grupo que a Crnica Proftica diz ter atacado
Lisboa em 858 ter seguido viagem para sul, at perto de Sevilha, o que elimina a
possibilidade de ter permanecido numa base perto do Tejo at 859. certo que o
relato de al-Qutiya tem elementos imaginativos que no abonam a favor da sua
credibilidade, na medida em que, depois de relatar a expulso dos vikingues de Sevilha
em 844 (ano 230 da Hgira), o autor andalus conta como o grupo entrou no
Mediterrneo e chegou a Alexandria, numa viagem de catorze anos antes de um
regresso ao Guadalquivir (captulo 6; James 2009, 101-2). Mas talvez se deva
considerar isto um equvoco de al-Qutiya que, tendo duas notcias, uma sobre
115
vikingues no norte de frica em 844 e outra sobre a batalha naval de 858, ter
pensado que os dois momentos foram perpetuados pelo mesmo grupo. Tambm
possvel que a referncia a Alexandria e a catorze anos de actividade no Mediterrneo
derive de tradies populares, que geraram uma fbula sobre o paradeiro dos
vikingues entre 844 e 858. Tradies essas a que, de acordo com o que dissemos na
apresentao das fontes, al-Qutiya poder ter recorrido; ele ou um aluno seu
responsvel pela obra. Mas a realidade ter sido menos digna de Ulisses: primeiro o
saque de Sevilha, talvez seguido de uma incurso em Marrocos antes de um regresso
ao norte em 844; depois uma investida contra a costa galega, Lisboa e a foz do
Guadalquivir em 858. A entrada no Mediterrneo veio mais tarde e ter sido
protagonizada pelo grupo que surgiu na costa de Beja.
Se se admitir duas incurses em anos seguidos, uma em 858 e outra logo em
859, caso para perguntar onde est a referncia a ambas nas crnicas asturianas. E
talvez esteja onde sempre esteve, vista de todos, mas confundida por falta de
referncias cronolgicas exactas. A Albeldense apenas diz que os vikingues vieram uma
segunda vez no reinado de Ordonho I e que foram derrotados pelo conde Pedro,
enquanto a Crnica de Alfonso III fala de um novo regresso, sem dizer se foi o segundo
ou outro e sem qualquer referncia ao nobre galego, mas acrescenta uma descida para
sul, entrada no Mediterrneo e chegada s Baleares (Rotense 27; Ad Sebastianum 27;
Gil Fernandez et al. 1985, 220-1). No h aqui nenhuma data precisa, mas apenas a
referncia ao reinado de Ordonho I, de 850 a 866, pelo que, a serem dois ataques
distintos, seria fcil confundi-los dado que teriam ocorrido no mesmo perodo.
apenas cruzando esta informao com a Crnica Proftica e as fontes rabes que se
pode colocar a hiptese de a segunda vinda dos nrdicos de que fala a Albeldense ter
tido lugar em 858, enquanto que o relato da Crnica de Alfonso III refere-se a uma
incurso distinta um ano depois. A mesma que os Anais de So Bertino colocam sob
859, com a entrada de vikingues no rio Rdano (Nelson 1991, 90). O relato de Ibn
Idhari concordante com o dos anais francos, na medida em que fala de uma base de
Inverno no sul francs depois de os piratas nrdicos passarem pela actual regio de
Mrcia e antes de um regresso ao Andalus ainda em 245 da Hgira (8 de Abril de 859 a
27 de Maro de 860; Cappelli 1930, 170). A alternativa a esta teoria e, uma vez mais,
admitindo a veracidade das datas transmitidas pelas fontes, defender uma nica
116
expedio, de 858 a 860, caso em que seria necessrio explicar o paradeiro do grupo
de vikingues em duas ocasies: entre a derrota na foz do Guadalquivir em 858 e a sua
chegada ao sul de Frana em 859; e entre Lisboa e a costa de Beja no mesmo perodo.
Note-se, por ltimo, mais um dado dos Anais de So Bertino: sob o ano de 862,
h notcia da chegada ao norte de Frana Bretanha ou Neustria de vikingues vindos
da Hispnia. Desconhece-se se saram de territrio ibrico nesse mesmo ano e de onde
veio o grupo, que tanto pode ter sido o mesmo que regressou do Mediterrneo em
860 (e, nesse caso, ter demorado dois anos a chegar ao Canal da Mancha), como
pode ter sido um outro cujo percurso desconhecido. E recorde-se, uma vez mais, que
no existe nenhum registo exaustivo de todas as incurses, pelo que afirmar que o
grupo de 862 o mesmo de 859 e 860, com o argumento de que datam desses anos as
nicas referncias que se tem a ataques no ocidente ibrico para o perodo,
esquecer que a informao actualmente existente fragmentria.
passou pela costa ocidental da Pennsula Ibrica em 859; ou, numa alternativa
ligeiramente diferente, rejeit-los como fico de Dudo e Guilherme de Jumiges,
embora aceitando a veracidade da incurso que entrou no Mediterrneo e chegou a
Pisa. Quanto expedio referida nos fragmentos irlandeses, a tomar o seu relato
como verdadeiro, teremos de consider-la como um ataque distinto que talvez tenha
tido lugar algures na dcada de 860. At poder ter sido protagonizado pelo bando
que chegou ao norte francs em 862, vindo da Pennsula Ibrica.
119
Captulo 8
As incurses do sculo X
Passados mais de cem anos de sucessivas vagas de piratas, exrcitos invasores
e de colonos nrdicos, a realidade das incurses vikingues transformou-se: diminuem
os ataques aos territrios francos, mas intensificam-se as lutas entre dinastias nativas
e invasoras nas Ilhas Britnicas. O processo de colonizao nrdica ganha nova frente
com a doao de Rouen a Rollo, naquilo que foi o acto fundador da Normandia, e a
quantidade de prata rabe que sobe os rios russos atinge o seu pico.
As ltimas investidas em Frana no sculo IX datam dos anos de 890 a 892,
quando surgem notcias de um ataque falhado Bretanha, da presena de nrdicos no
Loire (Nelson 1997, 33) e ainda de confrontos a norte do rio Somme (Haywood 1995,
64-5). O perodo de relativa calma que se seguiu, com os vikingues a virarem a sua
ateno para as Ilhas Britnicas, talvez tenha sido interrompido apenas uma dcada
depois, por volta de 900. A incerteza deve-se ao facto de no se saber ao certo a data
da chegada a Frana do vikingue a que as fontes francas chamam Rollo,
nomeadamente a Histria dos Normandos de Dudo de Saint Quentin (II:2-23;
Christiansen 1998, 26-44), mas que surge com o nome de Hrlf no captulo 24 da Saga
de Haraldr hrfagri, no Heimskringla, ou ainda Rodulfus no captulo 5 da Historia
Norwegie. O desfecho destas narrativas o mesmo, com o vikingue a passar de pirata
a nobre franco, mas divergem quanto sua origem: Dudo indica a Dinamarca, mas
Snorri aponta para a Noruega, que est tambm implcita na Historia Norwegie. O
primeiro coloca a chegada do lder nrdico a Frana em 876, enquanto alguns
estudiosos modernos preferem dat-la do ano de 900: van Houts diz, com lgica, que
os acontecimentos que tero tido lugar vrios anos depois deixam supor um grau de
familiaridade entre os Francos e Rollo (2000, 14), mas sem que, com isso, se deva fazer
recuar a sua chegada at dcada de 870.
Em 911, o lder vikingue colocou a cidade de Chartres sob cerco. A ofensiva
falhou quando Carlos, o Simples, interveio em auxlio dos sitiados, mas o fracasso
pirata converteu-se numa oportunidade para ambas as partes. No se sabe ao certo de
quem partiu a ideia, se dos nrdicos que tentavam assegurar algum ganho perante o
120
insucesso militar, se dos Francos que viram nos vikingues derrotados uma fora
passvel de ser recrutada. O que certo que os dois lados chegaram a um acordo
pelo qual Rollo e os seus homens recebiam a regio de Rouen, na condio de se
converterem ao cristianismo e defenderem a foz do Sena de outros piratas. Seria esse
o contedo essencial do chamado Tratado de Saint-Clair-sur-Epte, que no chegou aos
nossos dias (Renaud 2008, 453) e do qual sobra o relato posterior (e algo dbio) de
Dudo de Saint Quentin (II:28-9; Christiansen 1998, 48-9), alm de um documento de
918 que faz uma referncia breve doao do territrio aos nrdicos (Renaud 2008,
454). O acordo tinha vantagens para ambas as partes: para Carlos, o Simples, Rei dos
Francos Ocidentais, reforava a defesa da foz do Sena, que era uma das principais vias
de acesso ao interior do pas; para os vikingues, oferecia a possibilidade de
colonizarem terras frteis, trabalhadas h j vrias geraes e com a autorizao do
monarca nativo. Por outras palavras, era uma oportunidade de prosperidade segura
ou, pelo menos, mais segura do que a pirataria.
A doao de Rouen teve um efeito misto sobre o territrio e a sua populao.
Por um lado, abriu a porta colonizao nrdica, permitindo a distribuio de
propriedades entre os homens de Rollo e expondo a regio a novas vagas de colonos,
que tero vindo da Escandinvia e das Ilhas Britnicas. E esse processo deixou as suas
marcas na toponmia, nomeadamente nas reas costeiras e em redor de Rouen, onde
a fixao de nrdicos foi mais intensa. Por outro lado, verdade que a maioria da
populao nunca deixou de ser franca. No houve nenhuma fuga em massa de nativos
ante a ameaa vikingue e a prpria estrutura administrativa do territrio resistiu ou foi
recuperada por Rollo. Os nrdicos foram uma elite que no tardou a adoptar prticas
francas e a ser culturalmente assimilada, ainda que de forma diversa consoante o
contexto demogrfico. A prpria Igreja parece ter resistido na regio ao ponto de
manter uma produo estvel de manuscritos no sculo X e, tanto Rollo como os seus
descendentes, talvez cientes do prestgio e autoridade assim adquiridos, patrocinaram
a restaurao de comunidades religiosas (van Houts 2000, 22). O mesmo verdade a
respeito da produo de moeda, ao mesmo tempo que os casamentos mistos, entre
colonos nrdicos e nativos francos, contriburam para uma assimilao rpida dos
primeiros, com as novas geraes a aprenderem desde cedo a lngua e costumes dos
segundos (van Houts 2000, 18-9).
121
E, perante isto, o rei ingls thelred reage oferecendo dinheiro e mantimentos aos
invasores, na condio de pararem os ataques. Os vikingues recebem dezasseis mil
libras e lfr Tryggvason objecto de honras adicionais, acabando por regressar
Noruega com prestgio e meios para se fazer rei. thelred conseguia, assim, afastar de
Inglaterra um dos lderes da frota nrdica, a qual talvez tenha estabelecido uma base
em Southampton (Keynes 1997, 74). As pilhagens regressam em 997, quando os
vikingues contornaram a Cornualha e entraram no Mar da Irlanda, atacando o sul
ingls e o Pas de Gales. Voltariam ao Canal da Mancha para novas investidas em 998 e
entraram no Tamisa em 999.
Os acontecimentos em Inglaterra no podem ser desligados da realidade
irlandesa. Expulsa de Dublin em 902, a dinastia nrdica de mar, que, at ento, tinha
governado a povoao, toma refgio na Esccia, onde sucessivas campanhas no sculo
IX tinham-lhe conferido influncia e territrios dependentes. Em 903, est em guerra
contra os Pictos, mas o exilado rei de Dublin morto em batalha em 904 e, durante
alguns anos, a sua famlia desaparece do registo escrito ( Corrin 2008, 431). S
voltar a haver notcia dos descendentes de mar em 914, quando Rgnvaldr derrota
uma fora conjunta de Escoceses e Ingleses em Corbridge, a norte da Northumbria (
Corrin 1997, 97). Nesse mesmo ano, os vikingues esto de regresso Irlanda e em
fora, com a chegada de uma grande frota ao sul da ilha. A dinastia de mar aproveita a
oportunidade para encetar um regresso sua antiga base de poder, juntando-se e
tomando a liderana da nova vaga de ataques em 917, ano em que Dublin retomada
por Sitric, parente de Rgnvaldr. Este invade o norte ingls em 918 e faz-se rei de York
em 919, interrompendo os planos de Eduardo de Wessex para a anexao do
territrio.
Talvez incentivados pelo seu sucesso, os descendentes de mar tentam uma
nova expanso: h notcia de uma pesada derrota irlandesa em 919 ( Corrin 1997,
98), seguida de uma campanha pouco frutfera no Ulster, entre 921 e 927 ( Corrin
2008, 432). Em 937, Amlab, Rei de Dublin, derrota o de Limerick, onde outro grupo de
vikingues tinha desenvolvido uma base independente. Em 939, a morte de Athelstan
de Inglaterra abre uma janela de oportunidade para o Rei de Dublin, que assume o
controlo de York e da Mercia Dinamarquesa. Foi uma reconquista nrdica de parte da
124
Danelaw, mas foi tambm efmera: em 945, os dois territrios estavam de volta a
mos inglesas.
O poder dos descendentes de mar entrava, ento, em curva descendente. Em
944 e 948, Dublin saqueada pelos Irlandeses. Amlab Cuarn, filho de Amlab, ensaia
um regresso a Inglaterra, onde a luta pelo domnio de York passa a ter um terceiro
interveniente, Eirkr bldx (Machado de Sangue), que fora deposto do trono
noruegus em 948. De volta Irlanda em 953, Cuarn retoma a guerra contra os reis
insulares, de incio com sucesso, mas no final derrotado, nomeadamente aps as suas
tropas terem sido esmagadas em 980 e Dublin submetida a um derradeiro cerco. A
rendio da povoao marcou o fim da presena militar nrdica no territrio irlands
( Corrin 2008, 432).
No ocidente da Pennsula Ibrica, a realidade poltica e militar do sculo X foi
tambm ela instvel. No norte cristo, as fronteiras ganhavam um novo aspecto aps a
morte de Alfonso III em 910, dado que o at ento Reino das Astrias foi dividido entre
os filhos do monarca: Garcia torna-se Rei de Leo, Froila assume o poder em Oviedo e
Ordonho recebe a Galiza, apoiado pela nobreza local. Este ltimo no tardou a lanar
as suas tropas contra o sul muulmano, tomando e massacrando a populao de vora
em 913, e, no ano seguinte, a morte sbita de Garcia permite-lhe herdar a coroa de
Leo. Foi sucedido por Froila em 924, que unificava, assim, os territrios em tempos
governados pelo seu pai, mas sem que isso tenha trazido estabilidade duradoira: o
novo monarca morre um ano depois, em 925, e o reino mergulha numa guerra civil. Do
conflito saiu vencedor Alfonso, filho de Ordonho II, que ter a coroa at sua
abdicao em 931. Sucedeu-lhe Ramiro II, em cujo reinado os condes de Portucale e
Coimbra detiveram uma autonomia que roava a independncia de facto (Mattoso
1992b, 489). Ramiro II sucedido por Ordonho III, que assiste a uma incurso
muulmana Galiza por volta de 953, mas qual o monarca responde, saqueando
Lisboa em 955.
A dcada seguinte particularmente instvel e coincide com um perodo de
actividade vikingue. Em 957, Ordonho III sucedido por Sancho I, que afastado do
trono apenas um ano depois, altura em que Ordonho IV assume a coroa do Reino de
Leo. Sancho regressa em 959 para vencer o seu rival e voltar a ser rei em 960. Cerca
de dois anos depois, tem de fazer frente revolta de Gonalo Mendes, Conde de
125
Portucale, e a Gonalo Moniz, Conde de Coimbra, em 966, dois rebeldes que, pelo
meio, seriam tambm inimigos um do outro (Mattoso 1992b, 502-3). Tambm em 966,
Sancho I morre e sucedido por uma criana de cinco anos, Ramiro III, sob a regncia
da sua tia Elvira. nesta fase que se d a incurso de Gunderedo. Em 975, a regncia
vigorava ainda e passa de mos, da tia para Teresa, me do monarca (Ibez Salas
1991, 479). A fragilidade do poder poltico, mais ainda quando se viu perante as
campanhas de Almanor, permite que o trono seja tomado por Bermudo II, que
ascende com o apoio dos condes galegos e ungido em Santiago de Compostela, em
982. Nem por isso a vida do novo monarca ficou facilitada: em 987, tem de enfrentar
uma nova revolta do Conde de Portucale (Mattoso 1992b, 539). E depois os filhos do
Conde de Coimbra juntaram-se a Almanor nas suas campanhas, coroadas pelo saque
de Santiago de Compostela em 997. Bermudo II morreu em 999.
No sul muulmano, o cenrio do sculo X foi de ascenso. Aps o fim, em 929,
de uma revolta andaluza que durava desde 884, Abd al-Rahman III, auto-proclamado
califa, vira a sua ateno para a faixa ocidental da Pennsula. A regio gozava de uma
larga autonomia desde o sculo anterior, mas o saque de vora por Ordonho II, em
913, originou uma resposta muulmana liderada por Abd al-Rahman III trs anos
depois. O califa entra no territrio, tomando Beja em 929, Badajoz em 930 e
submetendo a regio a um novo poder centralizado em Crdova (Torres 1992, 422-3).
O ocidente Peninsular passa depois por um perodo de pouca relevncia poltica,
agitado apenas em 981 com as campanhas de Almanor, que levaram tomada
muulmana de Coimbra 987 e ao saque de Santiago de Compostela em 997, numa
incurso que passou ainda pelo Porto e por Braga.
Para o sculo X, as notcias de ataques vikingues so especialmente
problemticas. certo que as referncias abundam, pelo menos escala do tema e
comparando com a centria anterior, mas so muitas vezes indirectas, difusas e,
excepo de um caso, sem um contexto maior. Ao contrrio do que sucede para o
sculo IX, faltam-nos narrativas que descrevam as viagens dos grupos de nrdicos e,
com alguma frequncia, no temos sequer uma data, mas apenas um terminus ante
quem.
126
(1798, 49-52). Mas Lpez Alsina prope tratar-se do Nausto que surge listado na
Albeldense como Bispo de Coimbra (XII; Gil Fernandez et al. 1985, 229) e data a sua
morte de 22 de Novembro de 912, de acordo com uma inscrio sepulcral conservada
na igreja de Santo Andr de Trobe, na Galiza (2004, 59). A seguirmos a sugesto deste
ltimo estudioso, teramos que colocar os ataques que obrigaram fuga do prelado
na primeira dcada do sculo X. E, como Lpez Alsina, aceitar que Nausto foi tambm
Bispo de Tui, cuja Diocese no surge na mesma lista na Albeldense. A chave para o
problema talvez residisse no rei Alfonso de quem Nausto obtm a villa, mas o
documento no numera o monarca (cum nobili Rege Adephonso concambium fecit).
Alfonso II, o Casto, morreu em 842, o que quer dizer que o bispo em questo teria tido
uma vida invulgarmente longa. As hipteses mais viveis so Alfonso III, falecido em
910, e Alfonso IV, que reinou entre 926 e 931. Uma vez mais, a questo divide-se entre
a teoria de Flrez e a de Lpez Alsina: se o Nausto em questo morreu em 912,
seremos obrigados a aceitar o primeiro monarca; se exerceu o cargo de Bispo de Tui
aproximadamente entre 926 e 934, ento teremos que optar pelo segundo.
O autor da Espaa Sagrada rejeita a hiptese de um prelado tudense chamado
Nausto antes de 926 por considerar que, no mximo, ele teria que ter exercido o cargo
por volta de 916, quando diz haver notcia de um bispo com o mesmo nome de
diocese desconhecida. Mas a hiptese dos bispados de Coimbra e Tui terem sido
acumulados por um mesmo homem est fora de questo para Flrez, assim como o
ter sido bispo por volta de 916, dado que, para esse perodo, ele diz haver notcia de
um Hermigio frente da diocese Tudense (1798, 49). No entanto, h uma lacuna no
nosso conhecimento dos bispos de Tui entre os anos de 900 e 912 (Cecilio Daz &
Vilario Pintos 2002, 544), o que d espao para a tese de Lpez Alsina que, ainda
assim, fragilizada pela referncia de Flrez fundao do Mosteiro de Labruja por
Hermigio (1798, 50), isto , depois de 912. A confirmar-se este ltimo dado, Nausto
no podia ter-se refugiado junto da referida comunidade monstica por ela no existir
ainda e, nesse caso, seramos obrigados a colocar o terminus ante quem para os
ataques vikingues a Tui em 934.
No vamos tomar partido por uma das duas hipteses, deixando um veredicto
para acadmicos melhor informados sobre os melindres da questo. Por esse motivo,
mantemos em aberto ambas as possibilidades para a data da morte de Nausto 912 e
128
tambm mortos. Os vikingues seguiram depois para sul, parando ao largo de Alccer
do Sal por um perodo de tempo indeterminado e sem que se saiba se chegaram ou
no a desembarcar. Antnio Borges Coelho d para o acontecimento a data de 23 de
Julho, como o equivalente do primeiro dia do ms de Rgebe (Rajab?), mas no se
conhece o raciocnio por trs da equivalncia. Se tomarmos a tabela de Cappelli (1930,
171), onde o incio de 355 da Hgira cai a 28 de Dezembro de 965, e fizermos uma
contagem de meses de vinte e nove ou trinta dias, ento o primeiro dia do Rajab
corresponde aproximadamente a 25 de Julho, o que d crdito equivalncia
transmitida por Borges. A notcia seguinte a da sada de uma frota do porto de
Sevilha para atacar o grupo de vikingues, desenrolando-se o confronto naval na
ribeira de Silves. possvel que Ibn Idhari estivesse a referir-se ao rio Arade, que
passa junto a Silves e que seria, poca, inteiramente navegvel at povoao.
Tambm no impossvel que a batalha tenha tido lugar perto da foz do mesmo curso
de gua, junto actual cidade de Portimo. Independentemente da localizao exacta
do stio onde decorreu o confronto naval, o resultado final parece ter sido favorvel
para os muulmanos: diz o texto que vrios navios nrdicos foram postos fora de
combate, que prisioneiros que neles se encontravam foram libertados, que foi morto
um grande nmero de vikingues e que outros foram postos em fuga. A aventura deste
bando de piratas, viesse ele de onde viesse, no ter ido para l do Algarve.
Note-se que a existncia de cativos nas embarcaes nrdicas indicia que o
grupo j tinha levado a cabo ataques noutros locais, embora no se saiba quais.
possvel que tenha sido em Lisboa, mas tambm se pode sugerir os arredores de
Alccer do Sal ou, uma vez mais, a hiptese genrica de outros pontos terem sido
atacados sem que tenha sido feito registo ou sem que ele tenha sobrevivido at aos
nossos dias. Tambm no se conhece a origem deste grupo, se as Ilhas Britnicas ou a
Europa continental, mas, mais frente, na anlise da incurso de 968, falaremos da
possibilidade de ter partido da Normandia.
Por fim, note-se o detalhe de uma resposta naval muulmana ameaa
nrdica. J tnhamos visto uma notcia semelhante no captulo anterior, quando
falmos do ataque de 859, e o padro de resposta militar martima no s vai manterse no sculo X, como assumir dimenses maiores. O Andalus estava, ao que parece, a
colher os frutos de uma maior preparao militar e centralizao poltica.
130
como vimos, e talvez tambm por volta de 966. possvel que no se possa desligar o
acordado em Lugo da referncia que o Cronico Iriense faz fortificao de
Compostela contra os nrdicos, nos dias Sancho I (captulo 9; Garca lvarez 1963, 116)
que, recorde-se, esteve no poder de 957 a 958 e depois entre 960 e 966. O reinado
coincide, em parte, com o perodo em que Hermenegildo foi bispo, de 951 a 985, pelo
que o acordo do prelado pode ser parte de um padro maior de constituio de
defesas contra os vikingues no sculo X.
No extremo oposto do leque de possibilidades encontra-se a hiptese de ter
sido uma reaco a uma ameaa presente nos arredores de Lugo. Mas no sabemos ao
certo quando e, como tal, que grupo pirata a ter protagonizado, se os de Tui, o de
Alccer do Sal ou qualquer outro do qual no ficou registo. Poder ter sido at a
expedio liderada pelo vikingue Gunderedo, de que falaremos neste captulo. O lder
nrdico ter percorrido o territrio galego entre 968 e 969, existindo, por isso,
tambm uma correspondncia cronolgica com os dias de Hermenegildo. Mas, como
os dados disponveis so demasiado escassos, no temos como reduzir a janela
temporal e tomar firmemente partido por qualquer uma das hipteses. Dessa forma,
as vrias possibilidades permanecero isso mesmo: possibilidades e nada mais.
133
5. Guimares, c. 968?
A notcia daquilo que poder ter sido um ataque nrdico surge na primeira
referncia escrita ao Castelo de Guimares, de que falaremos na terceira parte. E no
o afirmamos categoricamente porque falta uma referncia explcita aos vikingues e
no dispomos de cronologia precisa.
O texto tem a data de 968 e consta do testamento de Mumadona Dias
(Herculano 1868, 61, doc. 97). Para alm do ano em que foi outorgado, as linhas
iniciais fornecem uma referncia cronolgica suplementar, ao indicarem que, no
muito tempo depois da confirmao do documento, os gentios atacaram a
comunidade religiosa de Guimares (Post non multo uero temporis quod hunc series
testamenti in conspectu multorum est confirmatum persecutio gentilium irruit in huius
nostre religionis suburbium). E, acrescenta a fonte, pouco antes disso tinha sido
edificado junto ao mosteiro o Castelo de So Mamede, no Monte Latito, por receio de
um ataque dos gentios e para proteco dos frades e freiras (et ante illorum metum
laborauimus castellum quod uocitant sanctum mames in locum predictum alpe latito
quod est super huius monasterio constructum et post defensaculo huius sancto cenobio
concedimus).
O problema com que nos deparamos o da interpretao do termo gentiles,
que tem o mesmo sentido que pago e, dessa forma, tanto podia ser aplicado a
nrdicos como a muulmanos. certo que, poca, a linha de fronteira com o espao
islmico encontrava-se perto ou um pouco a sul do Mondego, com o Condado de
Coimbra a assumir o controlo do territrio limtrofe. Mas isso, por si s, no impedia a
ocorrncia de expedies muulmanas a norte, conforme prova a incurso andaluza
Galiza em 953. Poderamos pensar que a chave para o problema reside na
identificao de um ataque anterior a 968, cujo itinerrio no se conhece, mas que
teria passado suficientemente perto de Guimares (ou causado um grande choque)
para, por medo (metum), levar construo da fortificao. Mas o receio tanto pode
ter-se ficado a dever a um ataque em concreto como percepo de que a villa
Vimaranis encontrava-se numa zona de risco, dadas as notcias de investidas noutros
locais. E, assim sendo, voltamos questo inicial de quem eram os gentios. Dada a
distncia de Guimares da fronteira com o territrio omada, a ameaa mais imediata
talvez viesse do mar, onde, poca, proliferava a actividade de piratas nrdicos.
134
Voltaremos a este ponto mais frente, mas talvez seja significativo que, das dcadas
de 950 e 960, temos notcia da construo de trs fortificaes, duas contra gentiles
(Guimares e a Lanzada) e uma, as muralhas de Compostela, explicitamente referidas
como sendo contra ataques vikingues. E h ainda a possibilidade de se poder incluir o
acordo de Hermenegildo de Lugo. Podemos estar perante a reaco a uma ameaa
comum, do norte galego regio do Minho, e que poder ter protagonizado o ataque
que, segundo o documento, ocorreu por altura da confirmao do testamento de
Mumadona Dias.
Assumindo que se tratou de uma investida nrdica, podemos relacion-la com
alguma das conhecidas por outras fontes? Fernando Jos Teixeira fala de uma incurso
em 964 que ter sido a primeira prova de fogo do Castelo de Guimares (2001, 19),
mas no temos conhecimento de notcias de nrdicos nessa data. Alm de que a
referncia ao ataque como tendo sido pouco depois da confirmao do testamento
(Post non multo uero temporis) obriga a empurr-lo para prximo de 968. Poder at
ter ocorrido s no ano seguinte, dado que o documento contm a data de 4 de
Dezembro: Notum die IIe nonas decembris. Era M VI Mummadomna hunc uotum
meum libentissime et sponte iterum confirmo. E a nica incurso que se conhece para
esse perodo de 968 a 969 a expedio de Gunderedo. Alberto Sampaio mostrou-se
favorvel a essa hiptese (1979, 33), mas o episdio teve lugar mais a norte, pelo que
temos duas possibilidades. A primeira a de que, aps a vitria contra o Bispo de IriaCompostela, os nrdicos tenham chegado a Guimares, antes de serem derrotados em
969 ou depois desse momento, com pequenos grupos de sobreviventes do exrcito de
Gunderedo a dispersarem-se pelo territrio. A segunda estarmos estar perante um
bando vikingue do qual nada mais sabemos, mais um entre vrios que tero percorrido
a costa galego-portuguesa, mas de cujas aces o registo escrito escasso ou nulo, por
nunca ter sido feito ou por se ter perdido.
Em resumo, h referncia a um ataque por volta de 4 de Dezembro de 968 e ao
medo que, numa data anterior, levou construo do castelo. Os responsveis pela
investida e receios da comunidade foram os gentios, que no sabemos ao certo se so
nrdicos ou muulmanos. Talvez os primeiros, dada sua presena na costa galegoportuguesa da poca e a localizao da fronteira com o Andalus no Mondego. Mas sem
podermos arredar por completo a hiptese de terem sido os segundos, uma vez que se
135
conhece uma expedio andaluza Galiza em 953. O uso do termo gentiles pode at
ser propositado, por permitir mencionar com uma palavra duas ameaas distintas.
6. Galiza, 968-9 21
No final da dcada de 960, segundo as fontes existentes, o noroeste ibrico
assistiu maior incurso nrdica de que foi alvo, levando morte em batalha do Bispo
de Iria-Compostela e, ao que parece, pilhagem contnua da Galiza durante um ano. E
tudo num perodo em que, conforme j foi referido, o rei era apenas uma criana sob a
regncia da sua tia.
O registo dos acontecimentos surge em trs fontes medievais. Segundo a
Crnica de Sampiro, de acordo com a verso preservada pelo Silense (captulo 28;
Prez de Urbel 1952, 340-2), os vikingues chegaram numa frota de cem navios, no
segundo ano do reinado de Ramiro III, liderados por um Gunderedo (Anno secundo
regni sui, centum classes normanorum cum rege suo nomine Gunderedo, ingresse sunt
urbes Gallecie). Atacaram os arredores de Santiago de Compostela, mataram o Bispo
Sisnando e saquearam toda a Galiza at aos Montes Cebreiro. A sua expulso s teve
lugar um ano depois, liderada por um Conde Guilherme Sanches, que atacou e
derrotou os vikingues, matou Gunderedo e incendiou a frota invasora. O Cronico
Iriense (captulo 11; Garca lvarez 1963, 119) apenas refere parte da narrativa de
Sampiro, mas acrescenta um conjunto de detalhes: a morte de Sisnando num domingo
de Quaresma, o desembarque nrdico num local chamado Juncaria com o objectivo de
chegarem a Iria (veniens de Iuncariis volentes ire ad Hyriam) e a morte do prelado em
Fornelos. A Historia Compostelana (Livro I, captulo II: 6; Falque Rey 1994, 74) repete o
contedo do Cronico Iriense e refina os pormenores, colocando a morte do bispo a 29
de Maro da Era 1006 (occisus est III Kl. Aprilis Era I, VI; Lazcano 2006b, 43), o que
equivale ao ano de 968. Fora da Pennsula Ibrica, a Histria dos Normandos contm
um episdio sobre o neto de Rollo que, segundo Dudo de Saint-Quentin, recrutou
grupos de nrdicos para as suas campanhas militares e, aps fazer paz com o Rei
Lotrio de Frana, converteu parte deles ao cristianismo. Os que se recusaram a
receber o baptismo foram guiados at Pennsula Ibrica, capturando dezoito cidades
21
136
No nova a opinio de que Sisnando nunca foi deposto por Sancho I. Enrique
Flrez no reconheceu fundamento histrico narrativa do Cronico Iriense e da
Historia Compostela, propondo, em alternativa, que So Rosendo s se tornou Bispo
de Iria-Compostela aps a morte de Sisnando em Fornelos (Lazcano 2006a, 156-62).
Nos ltimos anos, a teoria recebeu o apoio de Segundo Prez Lpez (2006, 305-17) e
de Jos Hernndez Figueiredo (2007, 141-5), este ltimo no sem chamar a ateno
para a escassez de fontes documentais para os anos de 965 a 967. Mas tambm houve
quem defendesse a veracidade da tradio cronstica, nomeadamente Garca lvarez,
a cuja teoria Prez Lpez dedicou seis pginas de contra-argumentao (2006, 311-7).
Tanto este ltimo estudioso como Hernndez Figueiredo desmentem a narrativa das
crnicas, citando um documento datado de 974, onde Rosendo surge como Bispo de
Iria (2007, 145). A ser fidedigno, o texto coloca em causa a ideia de que o santo
regressou a Celanova em 966 e l passou o resto dos seus dias. O relato do Cronico
Iriense e da Historia Compostelana posto em causa tambm por dois documentos do
Tombo do Mosteiro de Sobrado dos Monges (Garca de Valdeavellano 1976, 31-7,
docs. 5 e 6), ambos com a data de 10 de Dezembro de 966 e onde Sisnando surge
como bispo. Quando, segundo a tradio cronstica, ele s teria recuperado o cargo de
prelado no Natal desse ano. J a Vita et miracula Sancti Rudesindi nada diz sobre
Sisnando, embora isso no permita retirar concluses slidas, dada a natureza
hagiogrfica do texto e os erros histricos de Ordonho de Celanova. Dessa forma, o
desmentido parece vir, acima de tudo, de documentos guardados em cartulrios que,
a serem fidedignos, preservaram a realidade coeva, enquanto as crnicas foram alvo
de uma elaborao narrativa posterior. Em qualquer dos casos, independentemente
da teoria que se preferir, certo que, em 968, Sisnando era Bispo de Iria-Compostela.
Alguns estudiosos tm apresentado datas alternativas para a incurso. Benito
Vicetto, por exemplo, coloca-a no ano de 969 (1871, 203), mas a Crnica de Sampiro
clara quando refere a chegada da frota de Gunderedo no segundo ano do reinado de
Ramiro III, que sucedeu a Sancho I no final de 966. A data confirmada, conforme
vimos, pela Historia Compostelana, que coloca a morte de Sisnando em Fornelos na
Era 1006 (ano 968). A durao da expedio tambm tem sido vista de forma
diferente, com alguns estudiosos a afirmarem que se prolongou por trs anos. A
confuso compreensvel dado o relato das fontes, com a Crnica de Sampiro (28;
138
Prez de Urbel 1952, 340) a dizer que os Galegos levantaram-se contra os nrdicos ao
terceiro ano (Tercio vero remeantibus illis ad propria). Cremos, tal como Jaime Ferreiro
Alemparte (1999, 37), que o autor do texto estava a referir-se ao reinado de Ramiro III,
tal como umas linhas antes refere-se ao segundo ano de governo do monarca para
datar o incio da incurso. Mas houve quem lesse na frase uma referncia durao da
investida, que se teria, assim, prolongado por trs anos: Gonzlez Garcs (1987, 87) e
Singul Lourenzo (1999, 52) so disso exemplo. Mais curiosa a interpretao de Jos
Caamao Bournacell, que coloca a chegada de Gunderedo em 968, mas data o ataque
ao interior galego e a morte de Sisnando de 970 (1964, 84). Os equvocos talvez
tenham sido reforados pelas referncias rabes a ataques em 966 e ainda de 970 a
972, das quais falaremos mais frente neste captulo.
Para alm da durao excepcional da incurso de 968, note-se o detalhe de ser
tambm a nica investida cujo lder conhecemos por nome: Gunderedo! uma
pequena informao que no existe para mais nenhum ataque ao ocidente da
Pennsula Ibrica no perodo vikingue, no obstante as j mencionadas hipteses sem
base histrica para o ataque de 844 e a atribuio persistente de um ataque a Tui a
lfr Haraldsson, que analisaremos no captulo seguinte. Gunderedo o nico nome
de um lder vikingue preservado nas fontes do oeste ibrico, mais propriamente na
Crnica de Sampiro (cum rege sue nomine Gunderedo). Ser, possivelmente, uma
latinizao do nrdico Gunnraur (Price 2008b, 467) ou Gunrd (Morales Romero
2004, 185), apesar de haver registo do nome no ocidente peninsular antes de 968.
Mais frente, ao tratarmos dos vestgios das incurses nrdicas, daremos a devida
ateno a este detalhe antroponmico.
No h certezas quanto sua origem. Uma possibilidade ter vindo da
Normandia, hiptese que faria dele um dos vikingues recrutados por Ricardo I que se
recusaram a converter ao cristianismo. Mas tambm pode ter vindo da Irlanda, onde
as disputas entre dinastias nativas e nrdicas talvez tenham levado um bando de
piratas a atravessar o Mar da Cantbria e sem que disso tivesse ficado registo nos
anais irlandeses. A aparente coincidncia entre o relato de Dudo e a expedio de
Gunderedo parece dar maior probabilidade primeira possibilidade, mas convm
evitar concluses precipitadas e ter ateno aos detalhes: h registo seguro de
actividade vikingue no ocidente da Pennsula Ibrica para os anos de 966 a 972, a
139
Histria dos Normandos no diz exactamente quando e onde teve lugar a batalha que
parece ter sido ganha pelos vikingues e, j o dissemos, a expedio de Gunderedo ter
terminado em 969. Foi, por isso, uma entre vrias que ocorreram naquele perodo, o
que obriga a perguntar a qual que Dudo de Saint-Quentin se estava a referir. de
966 que foi avistada de Alccer do Sal e, ao que parece, aps ter passado por Lisboa? A
umas das que figuram nos registos palatinos de Crdova para os anos de 971 e 972?
de Gunderedo? Ou a qualquer outra de que no ficou registo? H detalhes na
passagem da Histria dos Normandos que podem ser identificados com algumas das
hipteses: a batalha contra um exrcito ibrico pode ser a que levou morte de
Sisnando, mas tambm pode estar a referir-se ao confronto que, segundo Ibn Idhari,
teve lugar na regio de Lisboa e cujo desfecho o autor rabe no revela.
Se formos a ter em conta todos os detalhes fornecidos por Dudo e assumindo
que todos eles so verdicos talvez tenhamos que indicar a frota avistada em 966 em
Alccel do Sal como a que partiu da Normandia. Recorde-se que a Histria dos
Normandos diz que os nrdicos voltaram ao campo de batalha trs dias depois e
revistaram os corpos dos homens escuros e etopes, o que faz lembrar mais
combatentes oriundos do norte de frica, talvez at berberes, do que soldados de um
exrcito liderado por Sisnando. Ora, como Gunderedo morreu na Galiza em 969, numa
batalha em que a maior parte do seu exrcito ter cado, dificilmente se pode atribuir
a ele uma incurso mais a sul e, dessa forma, no fcil considerar a expedio por ele
liderada como aquela a que Dudo se refere. Teremos, por ventura, que considerar a
investida de 966 como a mais provvel de entre as notcias que conhecemos, hiptese
a que Almazn (1986, 97-8) parece aludir ao referir a frota avistada junto a Alccer do
Sal em conjunto com o relato da Histria dos Normandos. Frota essa que, conforme
vimos, ter sado derrotada de um confronto nas proximidade de Silves, o que elimina
a possibilidade de ter regressado a norte e levado a cabo a grande expedio de um
ano, entre 968 e 969. Assim sendo, as origens de Gunderedo dificilmente podem ser
encontradas na Normandia, entre os mercenrios de Ricardo I. Restam as Ilhas
Britnicas como a hiptese mais provvel, se bem que por eliminao de alternativas e
no por qualquer prova concreta que aponte para a Irlanda, Danelaw ou Esccia.
Tambm no certo qual seria a dimenso exacta do seu exrcito. As crnicas
falam numa frota de cem navios, mas, semelhana de outras referncias do gnero,
140
a cifra mais facilmente aceite como uma estimativa. Ainda assim, houve quem
sugerisse que Gunderedo liderou uma fora de oito mil homens, como Izquierdo Daz
(2009, 87), que um nmero que no pode ser historicamente sustentado: as crnicas
no o referem e no calculvel pela dimenso da frota. Mesmo que quisssemos
aceitar o nmero de cem navios como sendo exacto, desconhece-se a dimenso de
todas as embarcaes, que, de supor, teriam uma capacidade de transporte varivel.
E isso torna impossvel calcular a quantidade de homens liderados por Gunderedo,
ainda que, a julgar pela estimativa da frota e os feitos levados a cabo, seja possvel
dizer que seria uma fora no mnimo considervel.
No captulo anterior, vimos como alguns estudiosos afirmam que os vikingues
do sculo IX entraram na ria de Arousa rumo a Santiago de Compostela, atrados pela
fama do santurio. E tambm referimos como essa teoria no s no sustentada
pelas fontes escritas, como est ferida de anacronismo. A questo muda de figura
quando se trata do ataque liderado por Gunderedo. Em primeiro lugar, porque o
Cronico Iriense refere que os vikingues dirigiram-se para Iria, que a antiga Iria Flvia
e a actual Padrn, localizada a cerca de vinte quilmetros de Compostela e perto do
ponto onde o rio Ulla desagua na ria de Arousa. O envolvimento directo do bispo
tambm d a entender que Santiago estava ameaada e, por fim, na segunda metade
do sculo X j possvel falar da fama internacional do santurio jacobeu. Ainda assim,
conveniente manter um pouco de perspectiva. As crnicas no dizem que os
nrdicos navegaram at Iria, mas, segundo a Historia Compostelana, que
desembarcaram num local chamado Juncaria. Isto quer dizer que, da costa at actual
Pdron, os vikingues marcharam e, consequentemente, tanto podem ter chegado a
Iria a partir de algum ponto na ria de Arousa, como de qual outro mais a norte ou a sul
onde seja possvel identificar o topnimo do desembarque. E, quanto atractividade
de Compostela, ela ter sido, quando muito, o mbil inicial, mas no exclusivo. Basta
pensar em como de Santiago os vikingues de Gunderedo passaram ao saque em toda
a Galiza. E depois h que ter ainda em conta os ataques realizados a sul e dos quais
surge registo nas fontes rabes. Mesmo quando teria a capacidade de atrair tanto
piratas como peregrinos de alm-Pirinus, o santurio jacobeu no deixou de ser um
alvo entre muitos.
141
se Ramiro III, menor e, por isso, sujeito a uma regncia a que presidiram, vez, duas
mulheres. Nada disto dito na Vita et miracula, que mais no faz do que dar um relato
genrico e contraditrio com os factos histricos. E talvez sem surpresa, dado tratar-se
de uma obra hagiogrfica com uma agenda muito prpria e, dessa forma, de valor
histrico dbio. Devemos aceitar o essencial da narrativa e concluir que So Rosendo
foi, de facto, um dos lderes da resistncia contra os vikingues em geral e o exrcito de
Gunderedo em particular? Ou devemos recusar todo o relato como uma pea de fico
destinada a elevar os mritos do santo que d tema ao texto? Talvez seja possvel
conceber um meio-termo e aceitar como provvel que, na qualidade de Bispo de IriaCompostela, So Rosendo tenha tido um papel na luta contra os invasores nrdicos. E
isto apesar de no ser possvel especificar os contornos precisos desse contributo. Se a
teoria de Prez de Urbel sobre a identidade de Guilherme Sanches estiver correcta,
nomeadamente a ideia de que o conde estaria como peregrino em Santiago,
plausvel que o bispo da cidade interviesse junto dele para lhe pedir auxlio ou motivlo a lutar. Mas isto uma possibilidade assente noutra. Sem dados concretos das
crnicas e apenas com um relato hagiogrfico que deixa muito a desejar, torna-se
quase impossvel dizer ao certo qual foi o papel de So Rosendo, se algum.
No se conhece o local da batalha que ditou a derrota e morte de Gunderedo.
Ao que sabemos, no tem qualquer fundamento histrico a ideia de que o confronto
ocorreu junto povoao galega de Ferrol e ainda que essa teoria parea ter adeptos
recentes, como Snchez Pardo (2010, 70). Da Crnica de Sampiro apenas se pode
retirar que ter sido junto costa ou prximo de um grande rio, dado que o relato fala
do incndio da frota nrdica. Mas mais no dito e no sabemos sequer se foi a nica
batalha ou se houve mais. Desconhecemos se a aco de Guilherme Sanches se ficou
por um nico e decisivo embate militar ou se foi uma sucesso de ataques que
culminou no derradeiro confronto junto s embarcaes. E, assim sendo, escasseiam
tambm os indcios sobre os objectivos de Gunderedo, se mero saque ou se uma
fixao nrdica em territrio galego: o regresso aos navios pode indiciar a primeira,
mas desconhecemos se os vikingues se dirigiram para as embarcaes de livre vontade
ou se foram empurrados pelas aces militares de Guilherme Sanches. O que sabemos
que a incurso ter terminado nesse momento, algures durante o ano de 969, o
terceiro do reinado de Ramiro III. No entanto, no impossvel que pequenos grupos
147
9), Galib parte com o seu exrcito a 13 de Julho, enquanto a esquadra comandada por
Rumahis levanta ncora no fim do Ramado (final de Julho), rumo a Sevilha e de l em
direco ao mar setentrional (Anales palatinos, doc. 13; Garca Gmez 1967, 51).
A notcia seguinte regista o regresso da frota muulmana sem que tenha
chegado a combater os vikingues (Anales palatinos, doc. 29; Garca Gmez 1967, 76).
Diz o texto que os piratas nrdicos foram derrotados e que desistiram de navegar para
sul. Acrescenta que para isso tero tambm contribudo as defesas do Andalus, os
exrcitos recrutados e a esquadra enviada contra eles. O autor da notcia pode estar
apenas a engrandecer a fora militar do seu pas, exagerando a sua capacidade de
mobilizao e descrevendo os piratas como um grupo assustado, mas pode tambm
estar a deixar passar uma realidade distinta da do sculo IX: uma maior preparao do
Andalus contra as investidas nrdicas. A reaco rpida e talvez at desproporcionada
de al-Hakam II disso exemplo, principalmente quando comparada o saque de Sevilha
de 844. Quanto derrota que o texto diz ter sido infligida aos vikingues, desconhecese o local exacto. Se foi em territrio andalus, talvez se possa atribuir a vitria a Galib,
que regressou a Crdova a 24 de Novembro com o seu exrcito depois de, diz o
documento nmero 38, ter andado a perseguir ou a espiar os nrdicos. Ou ter sido
literalmente isso: seguir e espiar conforme era informado da localizao dos vikingues,
mas sem que tenha entrado em confronto com eles. De qualquer modo, chegado o
ms de Novembro, a ameaa deste grupo pirata em particular parece ter passado.
Resta recuperar a questo de se seria um nico bando ou se se dividiu na foz do
rio Douro. J referimos que ambas as hipteses so possveis e nada nos textos nos
permite concluir por uma ou por outra. Mas, para que a anlise no fique incompleta,
consideremos uma rota hipottica. Assumindo que Santaver do documento nmero
8 corresponde a moderna Santander, o ms de Junho de 971 marca a chegada do
grupo vikingue ao norte da Pennsula Ibrica, de onde seguiu para a costa ocidental. A
8 de Julho entram no Douro, numa altura em que j tinham comeado a correr notcias
sobre as suas aces: o califa em Crdova j est informado da presena dos nrdicos
no dia 3, enquanto o embaixador de Gonalo Moniz parte de Astorga no dia 9. A partir
daqui, pelo menos parte do grupo segue para sul, desconhecendo-se que locais
atacou. Apenas se sabe que ter sido derrotado e que recuou para norte, permitindo
frota muulmana um regresso a Sevilha ainda no Vero.
153
156
Flrez menciona o mesmo ataque no volume XIX da sua Espaa Sagrada (Lazcano
2006a, 182), mas por referncia a Yepes.
Chamada de ateno parte, no estamos, ainda assim, impedidos de fazer
uma anlise da informao de que dispomos. A notcia encontra-se no segundo
volume da obra (pargrafo 12; Prez de Urbel 1959a, 66) e conta que, segundo o
relato de uma escritura da Era 1028, o Mosteiro de Santo Estevo de Boiro foi pilhado
pelos nrdicos, acabando por, mais tarde, ser unido com todas as suas propriedades
ao de So Pedro de Antealtares, em Santiago de Compostela. O documento, segundo
Yepes, foi confirmado por um bispo Pedro que, dada a referncia a um mosteiro
compostelano e a data (ano 990), ser Pedro Mezonzo, que esteve frente da Diocese
de Iria-Compostela desde 985 at cerca de 1003 (Portela Silva 2002b, 521).
As dvidas que ensombram esta notcia so as mesmas que caem sobre os
outros relatos semelhantes que vimos j neste captulo: a ausncia de uma data exacta
para o ataque nrdico e a dificuldade em precisar os contornos da incurso. Temos
apenas um terminus ante quem, mas, falta do documento original ou de uma edio
do mesmo, est ausente a possibilidade de ler nas entrelinhas do texto. Tal como
noutros casos, possvel que o ataque se tenha ficado a dever expedio de
Gunderedo, mas tambm poder ter sido levado a cabo por qualquer outro bando
vikingue que estivesse activo na costa galega no sculo X.
Resta-nos referir a localizao do Mosteiro de Santo Estevo de Boiro nas
margens da ria de Arousa. A ser verdadeira a notcia conforme transmitida por Yepes,
um relato explcito de um ataque naquela parte da Galiza, mas com a mesma dvida
que preside ao documento guardado na Catedral de Ourense.
unnime. Paulo Martnez Lema v nela uma referncia possvel actual Cua, uma
aldeia na freguesia de Santo Andr de Boimente, em Viveiro (2010, 167), enquanto
Lpez Alsina indica a zona de Aveancos, prxima do Mosteiro de Sobrado (2004, 60, n.
12). Ambas as hipteses tm interesse: a acreditar na primeira, estaramos perante um
indcio de actividade vikingue numa regio da Galiza para qual no h mais nenhuma
referncia; se se preferir a segunda possibilidade, talvez se possa relacionar o sucedido
com o saque e destruio da igreja Santa Eulalia de Curtis, localizada perto de
Sobrados e da qual falaremos de seguida.
No entanto, no s no fcil perceber o que aconteceu ao certo, como
tambm no indicada nenhuma data em concreto. Estamos, uma vez mais, perante
um documento onde os vikingues so um elemento secundrio, parte de uma
narrativa que pe em contexto o verdadeiro objectivo do texto. Podemos estabelecer
o terminus ante quem de 992, mas pouco mais. Os contornos da actividade vikingue
naquele local seja ele qual for ao certo tambm no so seguros. O texto faz uma
lista das pessoas que tiveram autoridade sobre aquela igreja em concreto, inserindo, a
dada altura, os dias dos Normandos como um marco cronolgico (post mortem
domni Gutier adimplevit inde servitium et obedientiam ad filium suum domnum
Munionem usque ad dies Lormanorum), mas no explicita a que equivaleu esse
perodo. Tero os vikingues atacado a igreja de Santa Maria do Bonimento ou a rea
em redor? Ou ser apenas uma referncia genrica a um momento da Histria da
Galiza, marcado por uma presena intensa dos nrdicos no territrio, mas no
necessariamente na zona exacta daquele templo? O documento indicia alguma forma
de ruptura devido aos dies Lormanorum, dado que a frase seguinte comea por falar
do erigir do edifcio por outros parentes e de contendas entre eles (Et ab ipsis diebus
erexerunt alios parentes et miserunt ipsa kasa in contentione). Talvez tenha havido
uma reconstruo da igreja ou de edifcios prximos ou, em alternativa, apenas um
restauro e expanso motivado por novos tempos. Em qualquer dos casos, trata-se de
uma ruptura introduzida pelos vikingues.
possvel que a actividade nrdica a que o texto se refere seja a da expedio
de Gunderedo, que ter certamente deixado a sua marca no territrio galego, directa
ou indirectamente. Mas a informao demasiado escassa para permitir uma
concluso segura.
158
160
Captulo 9
As incurses do sculo XI
A fase final da Idade Vikingue, pelo menos enquanto fenmeno maior na
Europa e mais alm, marcada pelas lutas pelo trono ingls, pela crescente afirmao
do poder rgio na Escandinvia e pelo avano da cristianizao. H ainda um
decrscimo acentuado do trfego de prata oriental, levando alguns Suecos a virarem a
sua ateno para ocidente, onde os ataques a Inglaterra rendiam avultadas somas de
danegeld. Em meados do sculo XI, ainda se tenta uma reabertura da rota oriental,
mas a expedio fracassa e as viagens de nrdicos para leste passam a resumir-se,
essencialmente, aos mercenrios que integravam a Guarda Varanga do imperador
bizantino.
Quando lfr Tryggvason foi agraciado por thelred de Inglaterra, em 995, e
partiu para a Noruega para se fazer rei, o outro lder da expedio vikingue, Sveinn
tjguskegg (Barba Forcada), acabou por segui-lo. Os dois envolveram-se num conflito
de vrios anos pelo domnio do territrio noruegus, sobre o qual os monarcas
dinamarqueses reclamavam soberania h quase duzentos anos. Conforme vimos, isso
no impediu que as incurses nrdicas contra a costa inglesa continuassem durante o
resto do sculo X, estendendo-se at centria seguinte. No ano 1000, segundo a
Crnica Anglo-Saxnica, um grupo vikingue refugia-se na Normandia, mas parece estar
de volta em 1001, quando h notcia de novos ataques ao sul de Inglaterra. Pilharam a
costa, avanaram at ao interior e acabaram por se fixar na Ilha de Wight, de onde os
Ingleses no parecem ter sido capazes de os expulsar. Em vez disso, thelred oferecelhes dinheiro e mantimentos a troco de paz e acaba a pagar vinte e quatro mil libras
aos nrdicos. No foi o primeiro pagamento do gnero, dado que, conforme referimos,
tambm os houve no sculo anterior, mas a estas somas que se viria a dar o nome de
danegeld ou o dinheiro dos Dinamarqueses: subornos a troco de paz que acabava
sempre por ser temporria.
Em 1002, diz a Crnica Anglo-Saxnica que, por temer uma conspirao e
atentado contra a sua vida, thelred ordena a morte dos habitantes nrdicos de
Inglaterra, naquilo que ficaria conhecido como o Massacre do Dia de So Bricio, a 13
161
regies ocidentais de Inglaterra. De regresso a norte, tem sob o seu domnio quase
todo o territrio com a grande excepo da urbe londrina que, no entanto, no tardar
a render-se, diz a Crnica Anglo-Saxnica que por receio da destruio da cidade. Sem
reino, abandonado pelos seus sbditos, thelred passa o Natal de 1013 na Ilha de
Wight antes de rumar para o exlio na Normandia, onde j se encontrava a sua mulher
e irm do duque Ricardo II.
A fuga do monarca ingls confirmou a conquista de Inglaterra, que passava a
ser governada por um soberano dinamarqus que reclamava tambm autoridade
sobre a Noruega e, pelo menos, parte da Sucia. Mas o sucesso durou pouco mais de
um ms quando, em Fevereiro de 1014, Sveinn tjguskegg morre e o seu filho Kntr,
que podia ter herdado um imprio, v-se sem nada em muito pouco tempo: a
Dinamarca passa para o seu irmo Haraldr e thelred regressa do exlio para voltar a
ser Rei de Inglaterra, expulsando o exrcito nrdico; enquanto isso, o monarca sueco
aproveita a oportunidade para afirmar a sua independncia e, na Noruega, lfr
Haraldsson, a seu tempo So lfr, derrota os antigos vassalos de Sveinn e faz-se
coroar rei (Lund 2008, 665). Kntr v-se forado a comear quase do zero. E quase
porque, no obstante a perda de territrio, sobravam-lhe ainda tropas do seu pai,
assim como fama e fortuna que investe no recrutamento de mais homens. Entre os
novos apoios, a seu tempo, viria a estar orkell, o mesmo que defendeu Londres
contra Sveinn e que, segundo a Crnica Anglo-Saxnica, recebeu mais vinte e uma mil
libras de thelred em 1014.
Em 1015, Kntr regressa a Inglaterra. Tal como o pai, comea por desembarcar
em Sandwich, mas ruma a ocidente para atacar Wessex, penetrar no interior at
Wiltshire e submeter o sudoeste ingls. No ano seguinte, marcha para norte, pilha a
Mercia e submete a Northumbria, antes de voltar a rumar para sul, em direco a
Londres, onde thelred morre em Abril. sucedido pelo seu filho Edmundo, que
organiza uma resistncia inglesa e enfrenta militarmente os nrdicos, at ser
derrotado em Ashington nesse mesmo ano de 1016. Refugiado em Gloucestershire, o
rei ingls forado a ceder a Kntr toda a Inglaterra excepto Wessex, mas, numa
reviravolta irnica, Edmundo morre poucas semanas depois e, desta feita, o filho de
Sveinn quem herda a totalidade do reino. Bastaram dois anos para Kntr passar de
deserdado a detentor do trono ingls, mas iria ainda recuperar outros territrios em
163
tempos controlados pelo seu pai. Em 1019, aps a morte do seu irmo Haraldr,
assume o poder na Dinamarca e, em 1028, invade a Noruega, onde aceite como rei.
O futuro So lfr obrigado a fugir para um exlio que durou at 1030, altura em que
regressa a territrio noruegus e acaba morto na Batalha de Stiklestad. J quanto
Sucia, a autoridade de Kntr resumir-se-ia, provavelmente, influncia sob alguns
magnatas suecos, por ventura combatentes na sua campanha de conquista de
Inglaterra (Lund 2008, 667).
Kntr tentou criar um sistema monetrio dinamarqus imagem do existente
em Inglaterra, recrutou clrigos ingleses para funes na Dinamarca (Lund 2008, 666) e
usou ainda os meios fiscais ao seu dispor para manter uma frota, algo til quando se
tem um imprio rasgado pelo Mar do Norte. Mas, apesar disso, nunca criou
instituies que lhe sobrevivessem: o seu imprio era pessoal e morreu com ele, em
1035. Alis, j estava em desagregao pouco antes da sua morte, dado que a Noruega
tinha recuperado a sua independncia por volta de 1034, quando Magns, o filho mais
novo de lfr Haraldsson, regressou do exlio. Na Dinamarca, Kntr foi sucedido pelo
seu filho Hra-Kntr que, em 1039, passaria a ser tambm rei de Inglaterra. A unio
s terminou em 1042, quando Hra-Kntr faleceu e a coroa inglesa foi entregue
Eduardo, outro filho de thelred.
A presena de Suecos nos exrcitos de Kntr no deduzida da influncia que
ele ter tido sobre a Sucia, mas est registada em inscries rnicas do perodo. o
caso da U 194, erguida por li em memria dele mesmo e que faz referncia a ter
recebido dinheiro de Kntr em Inglaterra. Ou a U 344, que refere que lfr recebeu trs
pagamentos em Inglaterra, primeiro de Tosti, depois de orkell e, por fim, de Kntr.
Outro exemplo a U 241, erguida em memria de Ulfrkr, que recebeu dois
pagamentos em Inglaterra. Estas trs inscries encontram-se em pedras na regio de
Uppland, na Sucia central, pelo que no se tratam de casos de recrutamento por via
da proximidade geogrfica com a Dinamarca. Para os Suecos, dada a sua localizao,
seria de esperar que a sua expanso se fizesse para oriente, atravs do Bltico e pelos
rios russos, principalmente quando as rotas fluviais passaram a trazer para norte
grandes quantidades de prata rabe. O que, de facto, ter sucedido at o trfego desse
metal precioso entrar em queda desde a segunda metade do sculo X e ter chegado
quase a zero por volta de 1015 (Mikkelsen 2008, 546). No de espantar, por isso, que
164
tenha havido Suecos que passaram a olhar para ocidente e para as quantidades de
danegeld que eram entregues a grupos de vikingues. Por volta de 1036, a viagem de
Yngvarr vfrli (O que viajou longe) ainda tentou reabrir as rotas orientais dos
nrdicos que o antecederam, mas sem sucesso. A expedio ter chegado ao Mar
Cspio, apenas para se perder e dela ficaram relatos picos ou referncias em dezenas
de inscries rnicas. o caso da S 9, erguida por um casal em memria de lfr, o seu
filho, que morreu com Yngvarr. Esgotada a prata rabe e terminada a expanso
nrdica, a presena de escandinavos no leste europeu passa a resumir-se
essencialmente s elites como a do Reino de Kiev, entretanto em processo de
assimilao cultural eslava, e aos mercenrios que desciam os rios russos rumo a
Constantinopla, onde podiam integrar a guarda do imperador.
Desde o incio do sculo X que havia guerreiros nrdicos entre as tropas
bizantinas, nomeadamente a Guarda Varanga, e o tratado de 945 entre Kiev e Bizncio
inclua disposies para o envio de mercenrios escandinavos (Noonan 1997, 154-5).
Era uma possibilidade de carreira com vantagens para ambas as partes: para os
nrdicos, porque permitia-lhes lutar por um bom preo e de uma forma instituda
(trabalho seguro, por outras palavras); para Bizncio, dava acesso a homens de valor
militar reconhecido. Um deles foi Haraldr harri, meio-irmo de lfr Haraldsson.
Quando a Noruega foi tomada por Kntr, Haraldr exilou-se na Europa oriental, estando
ao servio de Jaroslav de Kiev durante cinco anos antes de integrar a Guarda Varanga,
em Constantinopla, por volta de 1035 (Noonan 1997, 155). A estadia em Bizncio no
ter durado uma dcada, mas valeu-lhe fama e fortuna que levou consigo para a
Escandinvia, onde, em 1046, est de volta Noruega e a partilhar a coroa do pas com
Magns. No ano seguinte, a morte do co-monarca fez de Haraldr harri o nico
ocupante do trono noruegus.
Em 1066, a morte de Eduardo de Wessex abre uma crise de sucesso em
Inglaterra, na qual se apresentam trs candidatos: o anglo-saxo Harold Godwinsson,
Guilherme da Normandia e o prprio Haraldr harri, que invade o territrio ingls
nesse mesmo ano para fazer valer a sua posio. Depois de tomar York, derrotado e
morto na Batalha de Stamford Bridge pelas tropas de Harold Godwinsson, que logo
marcha para sul e acaba tambm ele morto e vencido na Batalha de Hastings, ainda
em 1066. Em pouco tempo, dos trs candidatos originais ao trono, Guilherme da
165
compensada por novas conquistas a sul e o prprio Bermudo III consegue uma vitria
contra um exrcito muulmano no ano seguinte. Mas no teve a mesma sorte quando
decidiu atacar Castela, morrendo em batalha em 1037. Foi sucedido por Fernando I,
filho de Sancho III.
O novo monarca teve um reinado longo com a sua dose de sucessos militares. A
linha de fronteira no ocidente peninsular voltava a avanar para sul e a atingir o
Mondego com a conquista de Lamego em 1057, Viseu em 1058 e Coimbra em 1064
(Torres 1992, 426). Aps a morte de Fernando I, em 1065, os seus territrios so
divididos entre os seus filhos: Castela para Sancho, Leo para Alfonso e a Galiza para
Garcia. Os domnios deste ltimo incluam o territrio portucalense, num
prolongamento para sul do bloco galego, de tal forma que Garcia teve que fazer frente
a uma revolta do Conde Nuno Mendes. A batalha assim gerada, em Pedroso, em 1071,
acabou com a morte deste ltimo e a vitria do monarca, que extinguiu o Condado de
Portucale (Mattoso 1992b, 560). O sucesso de Garcia, no entanto, no durou muito,
dado que a Galiza -lhe usurpada pelo seu irmo Sancho nesse mesmo ano. E este
ltimo, por sua vez, perde todos os seus domnios para o terceiro dos irmos, Alfonso
VI, que passa a governar toda a herana do seu pai a partir de 1072.
O novo rei levaria a cabo a conquista de Toledo em 1085, fazendo valer o ttulo
de Imperador de toda a Hispnia, mas saiu derrotado da Batalha de Zalaca no ano
seguinte. Confrontado com a possibilidade de novo avano muulmano, recebeu o
auxlio de dois nobres de origem borgonhesa: Raimundo e Henrique. Em 1091, o
primeiro casa-se com Urraca, filha de Alfonso VI, de quem recebe o governo da Galiza,
incluindo o territrio portucalense. Em 1093, a guerra no sul muulmano rende a
Alfonso VI as cidades de Santarm, Lisboa e ainda Sintra, que entrega a Raimundo para
que as defenda. Uma expectativa rgia a que o conde no correspondeu: em 1095,
Lisboa encontra-se novamente em mos muulmanas e Santarm teria, a seu tempo, o
mesmo destino. E nesse contexto que Alfonso VI reinstitui o Condado de Portucale e
entrega-o a Henrique em 1096, ficando Raimundo com os territrios a norte (Mattoso
1992b, 562).
No sul muulmano, contrariamente ao que sucedeu para os dois captulos
anteriores, a realidade poltica interessa apenas na medida em que influencia a do
norte cristo, dada no haver registo de ataques vikingues ao Andalus no sculo XI. De
167
Gonzaga de Azevedo cita vrias passagens em nota de rodap (1939, 117, n.2),
nenhuma das quais atribui a morte de Mendo Gonalves a um ataque nrdico, e
analisa ainda um documento de 1008 (1939, 165), que fala na entrega de bens na
regio da Maia a troco proteco, mas que tambm nada diz sobre vikingues
(Herculano 1868, 121, doc. 197).
No texto medieval, Argevado e a sua mulher Godella assumem o compromisso
de doar a Dillago Donaniz uma propriedade sua em Perafita, na condio de o
destinatrio dos bens conceder proteco a Argevado (pro que me devendates de fisco
et amodoretes me in vita mea sub vestra ala). Gonzaga de Azevedo l nisto uma
referncia aos piratas nrdicos, na medida em que os donatrios estariam a obter um
patrono que os resgatasse no caso de serem capturados. A deduo nasce da sua
leitura da expresso devendates de fisco, que entende como resgate, e do
conhecimento que se tem de que os vikingues tomavam prisioneiros para depois
pedirem dinheiro ou bens a troco da sua libertao (1939, 165). Para isso, refere o
caso, esse sim devidamente documentado, que ocorreu dcadas mais tarde na regio
de Ovar e que analisaremos neste mesmo captulo. Mas, para 1008, parece haver
apenas suposies sem fundamento.
O documento a que Gonzaga de Azevedo recorre no refere os nrdicos uma
nica vez. S isso devia ser suficiente para, pelo menos, duvidar da hiptese
apresentada pelo historiador portugus, dado que um resgate tanto podia ser pago a
vikingues, como a muulmanos do sul da Pennsula. A entrega de bens a troco de
liberdade podia at acontecer entre habitantes e nobres do norte cristo, no caso de
conflitos internos, e convm lembrar o quanto as incurses de Almanor deviam estar
vivas na memria dos habitantes locais. Perante o medo de captura, destino que
certamente ter calhado a muitos nos anos imediatamente anteriores a 1008, no
espanta que algum tenha sentido a necessidade de procurar um patrono que
assegurasse a sua liberdade em caso de necessidade. Mas isto pressupondo que o
documento se refere, de facto, a um resgate: a expresso devendates de fisco pode
referir-se apenas ao infortnio financeiro e, desse modo, ao desejo de ter, chamemoslhe assim, um contrato de auxlio com algum de posses.
Parece-nos que o raciocnio de Gonzaga de Azevedo todo ele enviusado,
destinado a provar uma teoria pr-concebida. No h no documento qualquer
169
22
J antes tivemos oportunidade de nos referirmos a este ataque. Veja-se Pires 2011, 125-30.
170
Douro. E mesmo que isso implique considerar o termo multis como repetitivo ou, nas
palavras de Rui Pinto de Azevedo, pleonstico (1973, 91, n. 7).
Que a regio de entre Douro e Ave tenha sido pilhada por vikingues durante
nove meses obriga-nos a considerar duas coisas: a dimenso do grupo pirata, indo no
sentido da interpretao dos filhos e netos como querendo dizer uma grande
quantidade, e a necessria existncia de pelo menos uma base de Inverno. A primeira
depreende-se pela durao e abrangncia geogrfica do ataque, na medida em que a
distncia entre o Douro e o Ave , na foz, de cerca de vinte e cinco quilmetros,
aumentando medida que nos deslocamos para montante. No sabemos quo para o
interior penetrou a incurso, mas no se ter ficado pela costa, dado que dito que os
nrdicos entraram no Douro (ingressi fuerunt). Um grupo pequeno poderia ter
avanado vrios quilmetros para o interior e regressado ao mar num ataque
relmpago, como talvez tenha sido o que chegou ao Castelo de Vermoim, de que
falaremos mais frente. Mas uma permanncia violenta de nove meses, sujeitando a
saque uma rea de vrias dezenas de quilmetros, exige mais do que um bando de
poucos navios. Era necessrio dominar por completo um ou mais pontos que serviriam
de base(s) e resistir a quaisquer contra-ataques nativos. E isto por muito que as
defesas da regio pudessem estar ainda a recuperar das campanhas de Almanor, at
porque estamos a falar de uma rea central do Condado Portucalense: afinal, entre os
rios Douro e Ave encontra-se o Porto, que presidia ao territrio. Seria, por isso, natural
que os habitantes e autoridades nativas tentassem enfrentar os invasores nrdicos,
que teriam que ter a capacidade de no s resistir, como de levarem a cabo aces de
pilhagem durante nove meses.
Da durao do ataque deduz-se tambm a necessidade de ter existido pelo
menos uma base de Inverno. A qualificao venatria inteiramente merecida, uma
vez que os nrdicos permaneceram activos entre o Douro e o Ave desde meados do
Vero at, no mximo, Abril. Este , por isso, o melhor indcio documental de uma
base vikingue no actual territrio portugus, seguido de perto pelo caso da regio de
Aveiro, de que falaremos adiante. E isto apesar de no se saber onde, quantas e que
aspecto teriam. Podemos supor que pelo menos uma delas estaria localizada nas
margens do Douro, porque era necessrio proteger as embarcaes e, se necessrio,
utiliz-las. Tambm era preciso ter abrigo contra o mau tempo, guardar mantimentos,
172
saque e prisioneiros, algo que tanto podia ser feito nos navios como em estruturas
pr-existentes ou construdas para o efeito. E depois era necessrio assegurar a defesa
do local por via de uma paliada ou muralha, fosse ela de terra, madeira, pedra ou um
misto de materiais.
Talvez seja til fazer uma comparao com o que se conhece de uma base
vikingue em Repton, em Inglaterra (Figura 3), onde os nrdicos passaram o Inverno de
873/874 durante as campanhas do grande exrcito. Os vestgios foram encontrados no
decorrer de trabalhos de pesquisa numa igreja medieval localizada junto ao rio Trent,
onde o edifcio religioso foi tomado por nrdicos e integrado numa linha defensiva
semi-circular, talvez servindo de porto. A muralha era de terra e teria um fosso,
protegendo uma rea de cerca de meio hectare beira-rio (Hall 1990, 15), o que
fornecia um ponto de (des)embarque seguro e onde podia permanecer um pequeno
grupo com as suas embarcaes. possvel que, algures nas margens do Douro, tenha
174
Uma vez mais, somos confrontados com o silncio das fontes a respeito do
Porto e no obstante a sua localizao junto foz do Douro. Necessariamente, ao
terem entrado no rio, os vikingues tero que ter passado pela povoao, tal como em
971. A zona ribeirinha seria a mais exposta passagem de uma frota nrdica, mas no
conhecemos uma nica notcia de um ataque cidade ou sequer um indcio
documental. Sabemos apenas que o Porto est na regio que foi sujeita ao saque de
nove meses, mas isso, por si s, no indica o que sucedeu: ter sido pilhada, apenas
sitiada ou poupada a ataques nrdicos? Se a povoao foi alvo de uma ou mais
investidas, voltamos a estar perante o caso de as fontes da poca no o terem
registado ou, se deixaram memria escrita dos acontecimentos, se terem perdido os
documentos.
Desconhece-se, igualmente, o destino do grupo de vikingues chegado o ms de
Abril. Podem ter navegado para sul antes de fazerem a viagem inversa ou podem ter
ido directamente para norte.
ficando em runas ou reduzida em dimenso por muitos anos (et ipsam civitatem ad
nichilum reduxerunt, que plurimis annis vidua atque lugubris permansit). Segue-se, na
narrativa, a notcia da expulso dos nrdicos, descrita como o partir de pescoos dos
inimigos (ipsorum inimicorum cervices fregimus), mas com o auxlio da Graa Divina
que, aos olhos da poca, permitiu a derrota dos vikingues. O estado de degradao da
cidade, que referida como suja, contaminada e alheia ordem religiosa, ditou a
impossibilidade de a restabelecer. Consequentemente, o rei agregou a Diocese de Tui
de Iria-Compostela, no pressuposto, ao que parece, de que a primeira fazia parte da
provncia presidida pela ltima (necessarium duximus et bene previdimus ut assaet
coniuncta apostolice aule, cuius erat provincia). Includa com a diocese estavam,
naturalmente, as suas propriedades, entre elas a igreja de So Bartolomeu, que
destacada no documento (civitatem Tudensem cum ecclesia ibi fundata in nomine
Sancti Bartolomei apostoli).
este o contedo essencial do texto no que diz respeito aos vikingues. A
informao no menor, pelo menos quando comparada com o grau de detalhe de
outras fontes medievais, mas est longe de ser ideal, deixando-nos com um conjunto
de questes sem resposta. No nos permite, por exemplo, perceber se a destruio de
Tui se ficou a dever a um nico e violento ataque ou a uma sucesso deles, culminando
na captura do bispo e derradeiro saque da povoao. A narrativa tanto pode estar a
referir-se a acontecimentos das primeiras dcadas do sculo XI como a compactar em
poucas palavras pelo menos cem anos de actividade pirata, desde os dias de Nausto
at destruio de Tui. Da mesma forma, tambm no sabemos a data exacta do
episdio. Manuel Cecilio Daz e Dara Vilario Pintos falam de um bispo Alfonso como o
que foi raptado pelos vikingues, embora no indiquem fontes que o sustentem (2002,
545). Flrez, no entanto, concordaria com eles (1798, 61) e, conforme j indicado pelo
mesmo augustiniano setecentista, o documento que refere a fuga de Nausto (Flrez
1798, 250-3, apndice II), j analisado por ns no captulo anterior, refere que a
Diocese de Tui permaneceu sem bispo aps a morte de Alfonso (Mortuo autem
Adefonso Episcopo seditiones & prla multa in terra certa evenerunt, & Sedis Tudensis
longo tempore sine Pastore permansit). Lopez Alsina nota ainda a existncia de um
documento de 19 de Setembro de 1022, onde Suero, o Bispo de Lugo, surge tambm
como o de Mondonhedo, Ourense e Tui (2004, 63). Isto quer dizer que a agregao a
178
depois do documento de agregao da diocese, o que quer dizer que isso, por si s,
no suficiente para demonstrar que So Bartolomeu sobreviveu investida vikingue.
Quando muito, pode afirmar-se que a estrutura ter resistido melhor, dado que o
bispo residiu no mosteiro e no na antiga igreja catedral. Ou ento a primeira era
simplesmente mais fcil de reconstruir do que a segunda. Porqu, ento, a referncia
explcita a So Bartolomeu no documento de 1024? O facto talvez esteja relacionado
com o significado ou, nas palavras de Lpez Alsina, o vnculo especial que aquela igreja
tinha com a Diocese de Tui (2004, 66). A ideia foi concretizada por Suso Vila-Botanes,
que indica a possibilidade de, no sculo VI, So Bartolomeu ter sido residncia
episcopal, quando havia dois bispos tudenses, um ariano e outro catlico (2009, 22).
Por outras palavras, um mosteiro especial no meio das propriedades da Igreja de Tui e,
dessa forma, passvel de ser destacado no documento de agregao.
Pouco mais h a retirar do texto de 1024. No certo qual o destino do prelado
capturado pelos vikingues, embora Manuel Cecilio Daz e Dara Vilario Pintos
suponham a sua libertao (2002, 545), no se sabe em que condies. A tradio
acadmica, no entanto, parece ter poucas dvidas quanto autoria do ataque, que
frequentemente atribudo a lfr Haraldsson23, e quanto data da investida,
geralmente colocada entre os anos de 1012 e 1015, embora haja quem tambm tenha
sugerido 1008. extensa a lista de autores e estudiosos que, de uma forma ou outra,
tm apoiado a teoria, mas refira-se os seguintes exemplos: Saavedra Machado, que
no hesitou em relacionar o documento de 1024 com o ataque ao Castelo de Vermoim
(1931, 13-4); Fernando Fulgosio (1867, 39) e Dozy (1987, 51-3), que indicam o ano de
1012; Isidro Gonzalo Bango Torviso (1979, 15) e Hiplito S Bravo (1983, 290-2), que
atribuem ao episdio o ano de 1014; Francisco Singul Lourenzo (1999, 52) e Eduardo
Morales Romes (2004, 201-4), que sugerem 1014 ou 1015; Vicente Almazn (1986,
112-3; 2002, 110-1; 2004, 48-51), que atribui ao ataque datas que vo de 1008 a 1015;
Alexandro Requejo Buenaga (1933, 108) e Manuel Vilar lvarez (2008, 304), que no
oferecem ano para a destruio de Tui; Lpez Alsina (2004, 61-3), que sugere o
perodo entre 1008 e 1013 ou, em alternativa, 1013 e 1016, e em parte seguido por
Suso Vila-Botanes (2001, 7; 2009, 20), que data a expedio de lfr Haraldsson de
1015. A popularidade da teoria e a facilidade com que mencionada por alguns
23
Veja-se o Anexo 9 para a localizao, hipottica ou no, dos pontos da viagem de lfr Haraldsson.
180
de Sveinn e Kntr nas campanhas em Inglaterra, de onde ele a dada altura parte para a
Bretanha e de l para a Pennsula Ibrica, antes de rumar Dinamarca e regressar a
Inglaterra na companhia de Kntr (Ekrem & Boje Mortensen 2003, 100-3).
As diferenas entre as fontes nrdicas so uma dificuldade mais aparente do
que real, mas o problema ganha contornos mais vincados quando se traduz em datas a
narrativa do Heimskringla. De lfr Haraldsson dito que ele s deixou Inglaterra aps
a morte de thelred, que a Crnica Anglo-Saxnica data de 1016 (Garmonsway 1972,
148) e, mais frente, no captulo referente estadia na Normandia, indicado que,
por aquela altura, tinham passado treze anos sobre a queda de lfr Tryggvason. Ora,
este ltimo monarca noruegus morreu por volta do ano 1000 e lfr Haraldsson foi
Rei da Noruega a partir de 1015 (Krag 2008, 647), o que quer dizer narrativa do
Heimskringla tem um problema cronolgico: se, por um lado, oferece 1016 como
marco (o falecimento do rei ingls), por outro diz que a personagem principal da saga
estava na Normandia naquilo que teria que ser o ano de 1013 (treze anos depois da
morte de lfr Tryggvason). J o Fagrskinna encontra-se livre desta contradio, na
medida em que no faz coincidir a partida de Inglaterra com a morte de thelred e diz
que, aquando da estadia na Normandia, tinham passado catorze anos sobre a morte
de lfr Tryggvason (Finlay 2004, 136), o que coincide com a cronologia geralmente
aceite. Este ltimo compndio permite, por isso, sugerir o ano de 1014 como a data
provvel para uma eventual viagem at ao Estreito de Gibraltar antes de uma chegada
a Rouen. E a Historia Norwegie vai no mesmo sentido, j que coloca uma expedio
Pennsula Ibrica entre a morte de Sveinn, que ocorreu em 1014, e o regresso de Kntr
a Inglaterra em 1015.
Podemos, claro, pr em causa a credibilidade destas fontes nrdicas ou, pelo
menos, do episdio ibrico de lfr Haraldsson. uma hiptese real qual daremos
ateno mais frente, mas, por agora, vamos dar crdito aos textos e analisar as
possibilidades que eles nos oferecem. E comeamos por pr de parte a teoria que
chegou a ser indicada por Lpez Alsina, de que Tui corresponde Gunnvaldsborg do
poema de Sigvatr rarson (2004, 61-2). A hiptese assenta numa relao entre o
topnimo (fortificao ou cidade de Gunnvald) e o conde Mendo Gonalves, levando o
estudioso em causa a sugerir que a povoao referida pelo poeta islands de acordo
com o patronmico do nobre que estava responsvel pela sua defesa
182
Gonalo, mas sem especificar. Ferreiro Alemparte, por sua parte, v em Seljupollr o rio
Minho e em Gunnvaldsborg uma referncia a Tui (1999, 50-6). Mas poucos parecem
ter ido to longe quanto Almazn que, ao traduzir parte do captulo 17 da lfs saga
Helga, no teve problema em substituir os topnimos originais pela equivalncia
proposta no sculo XIX (1986, 113). E isto apesar de afirmar que a identificao no
tarefa fcil nem certa e referir a tese de Unger, editor noruegus do Heimskringla que,
em 1868, sugeriu para todos os topnimos em questo uma localizao francesa
(1986, 114). Ainda assim, o exemplo da traduo de Almazn parece ter frutificado e
acabou por ser seguido por Araceli Otero Fernndez (2002, 84-6). E isto d uma ideia
do quanto aquilo que apenas uma hiptese, ainda por cima de base dbia, pode ser
aceite como certa quando acriticamente repetida, em deterimento do conhecimento
e investigao da Histria. Quanto a Karlsrss/Karls, Morales Romero sugere o
Gualdalquivir, j na Andaluzia (2004, 204), embora Lee Hollander, editor do
Heimskringla, tenha indicado essa possibilidade para Seljupollr (1964, 257, n. 2). O
Fagrskinna d a entender que se trata de um curso de gua ao referir que, em
Karlsrss, lfr Haraldsson levou a cabo pilhagens nos dois lados do rio (Finlay 2004,
135).
O caso de Karlsrss/Karls no o nico exemplo de existncia de teorias
alternativas. J referimos o caso de Unger, em 1868, e tambm j foi recuperada a
proposta de localizao de Viljmsbr na costa sul de Frana por referncia a
Guilherme V da Aquitnia, que ter combatido vikingues durante o perodo. A questo
imediatamente gerada a da localizao de Grslupollr, que teria assim que ser em
territrio francs, mas no parece haver resposta para o problema (Jesch 2001, 84).
Ainda assim, este caso demonstra que nem todos os estudiosos concordam com a
identificao dos topnimos na Pennsula Ibrica e indicativo da fragilidade da teoria
tradicional ou de qualquer outra que lhe suceda. A informao contida no poema e nos
compndios demasiado vaga e a etimologia dos topnimos tambm no
necessariamente reveladora. Ser Grslupollr a Lagoa do Porco (de grss e pollr)?
Fetlafjrr o Fjord ou Enseada das Cintas (de espadas ou escudos; de fetill e fjr)?
Seljupollr a Lagoa do Salgueiro (de selja e pollr)? E, a serem correctas estas
interpretaes, at que ponto elas so teis na identificao dos locais? Estamos a
lidar com tradues de topnimos galego-portugueses ou com nomes gerados por
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J antes tivemos oportunidade de nos referirmos a este ataque. Veja-se Pires 2011, 125-30.
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guncina et sakastis nobis de barcas de laudomanes), tendo, para esse efeito, entregue
aos vikingues um manto de pele de lobo, uma espada, uma camisa, trs lenos, uma
vaca e trs mdios de sal (dedistis pro nobis uno manto lobeno et una spada et I
kamisso et III lenzos et una uaka et III modios de sal finto). Ao todo, o resgate equivalia
a setenta modios (sub uno LXX modios) e foi pago na presena de Tedon Galindici,
Fredenando Gundissalbici e Ero Tellici, que so mencionados na qualidade de
autoridades locais de Santa Maria (ante ipsos domnos que abitantes eram in cassa de
sancta maria de ciuitate tedon galindici et fredenando gundissalbici et ero tellici).
Ao contrrio do que sucede com o caso de 1015-16, na regio de Entre Douro e
Ave, o documento no indica a data em que tiveram lugar os acontecimentos, pelo
que se pode apenas dizer que ter sido por volta de 1026. Tambm no diz onde que
as duas mulheres foram capturadas, embora se possa supor que elas eram oriundas
algures do norte do actual Distrito de Aveiro ou sul do do Porto. Depreende-se isso da
localizao das propriedades que foram vendidas e ainda que a questo no seja
inteiramente clara. Antnio Aguiar Cardoso diz ter identificado Cabanes nas
proximidades de Ovar, mas tem dvidas quanto a Murades e ao Castro Recaredo,
pondo a possibilidade de se tratar da povoao de Sobral e de um castro que existiria
no Monte das Mamoas (1929, 53-4). A indicao da cidade de Santa Maria, actual
Santa Maria da Feira, coloca pelo menos o resgate a norte de Aveiro e, quanto ao rio
Ovar, que usado como referncia para localizar as propriedades, poder ser o curso
de gua que passa actualmente pela povoao com o mesmo nome. Dado que os bens
vendidos j vinham dos avs e pais de Meitilli, podemos estar perante uma famlia h
muito estabelecida no norte do actual Distrito de Aveiro. E, assim sendo, podem ter
sido capturadas algures na regio.
Tambm ao contrrio do resgate das filhas de Amarelo Mestaliz, o de Meitilli e
Guncina foi pago em gneros. A lista de bens entregues aos vikingues bastante clara
excepo da quantidade de sal, que indicada em mdios. O que um problema,
porque no fcil dar um equivalente. Trata-se, obviamente, de uma medida de peso
ou de volume, uma vez que tanto usada para medir um produto em especfico como
para dar um valor equivalente totalidade do resgate. Uma ideia antiga na
historiografia portuguesa defende que um mdio ou mio podia corresponder a uma
quantidade de po que valesse um slido ou soldo, de acordo com documentos dos
188
sculos XI e XII onde as duas medidas so usadas alternativamente (Fiza 1966, 40910). A ser verdade, o total do resgate teria sido o mesmo que setenta soldos de metal
desconhecido.
Apesar da dificuldade em traduzir a medida usada, a lista dos bens entregues a
troco da liberdade das duas mulheres d a ideia de ter havido alguma forma de
regateio. No se trata de uma quantia como quinze slidos de prata, que podia ser
facilmente estabelecida mediante a apresentao do dinheiro, de uma vez ou pea a
pea, e com a utilizao de uma balana. Um resgate to preciso na diversidade e
quantidade de bens abre a possibilidade de uma negociao mais intensa, hiptese
que reforada pela presena das autoridades locais e que d transaco uma
dimenso quase oficial. Gonzaga de Azevedo viu nisso um sinal de que os trs homens
do municpio de Santa Maria estavam em conluio com os vikingues e que teriam
recebido parte do resgate (1939, 165). O que no impossvel, dado que, onde h
dinheiro e poder, h sempre um potencial de corrupo. Mas tambm se pode ver no
texto o indcio de um mtodo de resgate no qual as autoridades locais
desempenhavam o papel de intermedirio entre os habitantes nativos e os nrdicos. O
que permitia a negociao do dinheiro ou bens a serem entregues e, ao mesmo
tempo, explicaria a presena dos trs homens, que no teriam que estar
necessariamente feitos com os vikingues.
Independentemente de se querer acreditar na tese de Gonzaga de Azevedo ou
na nossa, ambas as hipteses obrigam a considerar a possibilidade de ter existido uma
base nrdica algures na regio de Santa Maria da Feira. No sabemos se por um curto
perodo de tempo ou durante vrios meses, dado que o documento no indica a
durao da presena vikingue. Mas, em todo o caso, teria que ser uma estadia
suficientemente longa para permitir a interveno das autoridades locais, corruptas ou
no. No mnimo, um acampamento no local de desembarque, passvel de ser
identificado como o ponto onde os piratas se encontravam e, com eles, as pessoas
cativas. As quais podiam estar presas em estruturas pr-existentes (igreja, celeiro, etc.)
ou at nas prprias embarcaes nrdicas: a expresso sakastes nobis de barcas de
laudomanes pode ter precisamente essa leitura. Mas esta possibilidade no est livre
de contra-argumentos. A mesma expresso tambm pode querer dizer que Meitilli e
Guncina chegaram a ser transportadas de barco at serem resgatadas algures na rea
189
de Santa Maria da Feira, o que volta a colocar a questo da sua origem e exactamente
por onde andaram os vikingues. Ou pode ser simplesmente uma forma de referir o
cativeiro das duas mulheres, sem que se deva fazer uma interpretao literal.
Com segurana, apenas se pode dizer que havia actividade vikingue algures na
regio a que presidia Santa Maria da Feira por volta de 1026, tendo sido pago um
resgate em gneros na presena de autoridades locais. possvel que tenha existido
uma base, ainda que de curta durao, e desconhece-se a rota precisa dos nrdicos.
nos pelo facto de, segundo o documento, as tropas de Rodrigo Romaniz terem includo
nrdicos (Tunc vero coadunavit seipse Comes cum omnes suos Barones, et cum Gens
Leodomanorum, et cerravit ipsa penna).
O episdio pode ser colocado com segurana no reinado de Bermudo III, dado
que a parte da narrativa que se refere luta pelo Castro Lapio antecedida pela
referncia sua subida ao trono (Ego vero Veremundus Rex Prolis Adephonsi ab
omnipotenti Deo erectus in Regno). verdade que o texto no atribui um nmero ao
monarca, mas a sequncia dos acontecimentos refere, num momento anterior, um
prelado chamado Pelagio e conhece-se um bispo de Lugo com esse nome, que esteve
frente da diocese a partir de 985 e at pouco depois do ano 1000 (Portela Silva 2002a,
201). Depois dele, apenas houve um rei chamado Bermudo, precisamente o terceiro. E
a identidade do monarca confirmada pelo nome do prelado a quem o castro foi
doado, Pedro, Bispo de Lugo, que se sabe ter ocupado o cargo entre 1022 e 1058
(Portela Silva 2002a, 201), o que coincide com o governo do referido monarca. Assim
sendo, o ataque aos Bascos fortificados naquele ponto teve lugar algures entre 1028,
ano da ascenso de Bermudo III, e 1032, que de quando o documento est datado.
Mas no conhecemos qualquer notcia de um ataque vikingue nesse espao de quatro
anos. O que no quer dizer que no tenha tido lugar e, uma vez mais, o nosso
desconhecimento pode apenas derivar de no se ter feito ou de no ter sobrevivido
um registo escrito. Mas h outras possibilidades.
Podemos estar perante um caso de um desembarque nrdico que no chegou
a originar aces de saque dignas de nota, porque os vikingues foram recrutados como
mercenrios em pouco tempo e utilizados de imediato no assalto a Castro Lapio. Ou,
numa hiptese mais remota, de um recurso a nrdicos estabelecidos na regio de Lugo
no seguimento de uma incurso passada, mas cujo valor militar era reconhecido e foi
utilizado por Rodrigo Romaniz. Morales Romero alude a essa possibilidade (2004, 209).
Tambm no impossvel que se tratassem de mercenrios oriundos da Normandia e
em viagem at Itlia, onde a presena normanda tinha tido incio no final do sculo X
(van Houts 2000, 223). Mas isso pressupondo que teriam optado pela rota martima
em vez da terrestre e que atrs do termo Leodomanos, que seria de esperar que fosse
aplicado aos piratas nrdicos, esconde-se uma referncia a um grupo oriundo da
Normandia por associao aos seus antepassados vikingues. A hiptese real, mas
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7. Galiza, c. 1055?
Os decretos do Conclio de Coiana, que teve lugar em Leo em 1055, fornecem
mais um indcio de incurses nrdicas durante o sculo XI. No nos do uma data e
local precisos, nem sequer a certeza de ataques em concreto naquela altura, mas as
deliberaes finais so, no mnimo, um sinal bvio do quanto a actividade vikingue
marcou a vida no ocidente peninsular.
A preservao manuscrita do documento complexa. Conhecem-se cpias dos
sculos XVI e XVII, a que se junta uma outra contida num cdice, o Liber
Testamentorum, copiado entre 1126 e 1129 por ordem de Pelgio, Bispo de Oviedo. E
depois h ainda a verso contida no Livro Preto da S de Coimbra (Augusto Rodrigues
1999, 753-60, doc. 567), provavelmente datado do sculo XII ou XIII (Garca Gallo 1950,
278-80 e 303). No h coincidncia plena entre o contedo de cada uma delas, pelo
que nenhuma oferece tambm garantias de fidelidade plena na transcrio. Alis, mais
do que discrepncias, nota-se uma diferena considervel entre a redaco
conservada no cdice de Oviedo e a de Coimbra: a primeira tem elementos de um
decreto real e alguns dos seus captulos foram incorporados na legislao secular,
enquanto a segunda parece ter uma natureza estritamente eclesistica, o que talvez
explique o porqu de a verso de Oviedo ter tido uma disseminao maior do que a de
Coimbra (Garca Gallo 1950, 342-3). E questo das diferenas junta-se ainda a da
credibilidade do copista, nomeadamente a de Pelgio de Oviedo, que ficou conhecido
pela falsificao ou adulterao de documentos, mas tambm a do responsvel pela
verso conimbricense, que tem em falta as clausulas finais. Ainda assim, Alfonso Garca
Gallo considera o manuscrito de Coimbra como o mais fidedigno, baseado no estilo e
terminologia da redaco, que julga serem tpicos dos documentos solenes e legislao
conciliar da poca (1950, 319-20).
Um dos elementos discordantes entre as duas verses a referncia aos
nrdicos, que surge apenas na do Livro Preto (Augusto Rodrigues 1999, 756, doc. 567).
O captulo 6 abre com o dever de todos os cristos observarem o dia de descanso, no
devendo realizar trabalhos servis ou viajar, mas a alnea segunda trata de listar as
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deste. Se, nessa centria, o tmulo do apstolo motivou ataques Galiza, caso para
dizer nossas noes geogrficas no so necessariamente as do passado.
No podemos, no entanto, afirmar que os decretos do Conclio de Coiana so
prova de que houve ataques ao territrio galego por volta do ano 1055. Se o fosse,
poderamos reduzir a janela cronolgica dos ataques que tiveram lugar no perodo em
que a Diocese de Iria-Compostela foi presidida por Cresconio, de que falaremos a
seguir. H apenas o reconhecimento de uma excepo ao descanso dominical no caso
de uma investida nrdica e, dessa forma, de uma realidade especfica do quotidiano
galego. No se trata do registo de um ataque em concreto.
derrotado por Cresconio, mas, uma vez mais, sem suporte documental (2009, 104).
Tanto quanto sabemos, nenhuma fonte, nrdica ou ibrica, indica quais os locais
atacados pelo nobre dinamarqus. No teramos sequer conhecimento da sua
expedio galega se a Kntlinga saga no referisse a origem da alcunha, o que,
conjugado com a escassez de dados descritivos ou cronolgicos, quer dizer que no
temos como provar que lfr participou ou liderou algum dos ataques de que h
notcia. De entre as hipteses conhecidas, a de Cresconio at pode parecer a mais
provvel para uma campanha do pai de orgautr, mas apenas porque o relato da
Historia Compostelana to vago que d para encaixar quase tudo. Uma iluso
cognitiva, por assim dizer. Tal como no caso do Castro Lapio, cujo relato documental
to breve no que diz respeito aos nrdicos que d para qualquer teoria que se queira
apresentar como facto. Fica a suspeita de que alguns estudiosos s no propuseram
lfr como o lder da expedio que chegou a Vermoim ou atacou Tui porque, para
esses episdios, j esto entretidos com o nome sonante de lfr Haraldsson, que
apresentam com a mesma convico e uma falta de suporte documental semelhante.
Sem dados concretos, no h como dizer ao certo quando e quais foram os
ataques levados a cabo pelo Galego, assumindo que deles temos sequer notcia. Uma
vez mais, convm recordar que estamos a trabalhar com base em fontes fragmentrias
e parciais, no com um registo exaustivo e completo dos ataques vikingues no oeste
ibrico. Quanto a Cresconio, temos apenas a indicao de que derrotou os nrdicos
algures durante o perodo em que foi Bispo de Iria-Compostela, mas no sabemos
exactamente quando, onde e na sequncia de que ataque ou ataques vikingues.
Martini, monasterio sancti Iuliani de Mondego in territorio de Nemitos), que parece ter
estado sob a proteco da sua famlia ou, pelo menos, esteve a ele ligado (quos fuit de
proienue nostra et testarunt illa ad ipso monasterio et tenuerunt illa in uoce ipsius loci).
Este estado de coisas foi interrompido pela chegada dos vikingues, que pilharam e,
presume-se que ao regressarem ao mar, deixaram a terra entregue a homens que no
eram da prole de Froila (post hoc uenerunt gentes laudomanes in ipsius prouinciis et
destructa est ueritas et exaltata est mendacitas et tenuerunt illa homines que non
fuerunt ex proienie nostra ad usu fructuario).
Dada a falta de referncias a reis ou bispos contemporneos do ataque, no
possvel extrair dados cronolgicos da narrativa exposta no documento. Temos apenas
a informao de que os vikingues pilharam o Mosteiro de So Julio de Mondego,
localizado no actual concelho de Sada, nas margens da ria de Betanzos. Mas a
pergunta sobre quando fica sem resposta. Certamente que no depois de 1086, que
a data do documento, mas h pouco mais a fazer para alm de estabelecer o terminus
ante quem. Atente-se, no entanto, no detalhe de aquilo que era administrado pela
prole de Froila Peres Bermudes ter passado a ser usufrudo por pessoas alheias, o que
nos deixa com duas hipteses: um ataque vikingue prolongado, talvez com uma
ocupao
temporria
do
territrio,
ou,
em
alternativa,
uma
incurso
198
Captulo 10
As incurses no sculo XII
Passada a Idade Vikingue, a pirataria nrdica que a tinha caracterizado tornouse num fenmeno essencialmente regional, nomeadamente no norte da Esccia e Mar
da Irlanda. Simultaneamente, a converso ao cristianismo, longe de eliminar a
violncia e as pilhagens, redireccionou-as contra os no-crentes e integrou-as na
realidade militar de reinos que faziam agora parte da Europa crist. A carreira de
mercenrio no desapareceu e ao pirata pago sucedeu o pirata cruzado, que tambm
passou pela costa galego-portuguesa.
Conforme mencionado no captulo 5, a converso da Escandinvia ao
cristianismo no se fez de forma rpida nem linear, mas foi antes um processo longo
feito de avanos e recuos por entre interesses e identidades em conflito. O contacto
dos Dinamarqueses com a nova religio antecede a Idade Vikingue, graas
proximidade geogrfica com a Europa continental e, mais tarde, carolngia. O
aparecimento de postos comerciais como Hedeby e Ribe favoreceu o processo, dado
que concentrava num espao densamente povoado pessoas de diferentes origens e
crenas ou prticas religiosas. E o mesmo dinamismo comercial ter permitido o
contacto dos Noruegueses com o cristianismo, ainda que, dada a distncia geogrfica,
talvez mais tarde do que a Dinamarca. Recordemos Kaupang e a descrio que
Ohthere fez a Alfredo, o Grande, no final do sculo IX, da rota martima que ia do norte
rctico at Hedeby. Inevitavelmente, o contacto dos nrdicos com a cristandade foi
aprofundado pelas incurses e movimentos migratrios que, partindo da Escandinvia,
atingiram a Europa ocidental.
Segundo a tradio preservada nos compndios nrdicos, nomeadamente o
Fagrskinna e o Heimskringla, o primeiro monarca noruegus cristo foi Hkon inn gi
(o Bom), que, aproximadamente entre 934 e 961, governou os territrios noruegueses
unificados pelo seu pai, Haraldr hrfagri (Krag 2008, 647). A sua adopo do
cristianismo atribuda ao facto de ter sido criado em Inglaterra, na corte de
Athelstan, onde foi baptizado e devidamente catequizado. Mas Hkon no foi de incio
um rei missionrio, sendo, em vez disso, descrito como um cristo em segredo num
199
duas dcadas antes, lfr Haraldson faz valer a sua fama e fortuna, recolhe apoios e
ascende a rei de territrios noruegueses. A derrota e expulso de Sveinn, o outro filho
de Hkon Sigurarson, significava uma ruptura com a Dinamarca, algo que as
campanhas militares do novo soberano viriam a confirmar. A Noruega expandia-se,
autonomizava-se, mas era tambm cristianizada, por vezes com o uso ou ameaa de
violncia, segundo os episdios preservados na tradio escrita. A nova religio
ganhava fora e adquiria um lugar na estrutura de poder, ligando-se indelevelmente
monarquia norueguesa com a canonizao de lfr Haraldson, pouco depois da sua
morte. E j antes referimos a sucesso de eventos que a ela levou: a ascenso de
Kntr, a sua expedio Noruega, a derrota de lfr em 1028, o seu exlio e a
derradeira queda dois anos depois, quando tentou recuperar o trono. A Noruega
voltava a entrar na esfera dinamarquesa, mas desta feita no por via de um dos
magnatas de Hlair, cuja linhagem masculina tinha-se extinguido em 1029 (Krag 2008,
648). Kntr pe frente do seu novo domnio um filho e concubina seus.
O resto tambm j foi por ns referido no captulo anterior. Em 1035, Magns
inn gi ascende ao trono noruegus, que volta a libertar-se da suserania
dinamarquesa. Como filho de lfr Haraldsson, tinha do seu lado no apenas o
argumento da linhagem, como ainda o prestgio de ser descendente de um santo. Algo
que tambm pde ser reclamado por Haraldr harri, que j mencionmos, e pelos
reis que lhe sucederam. A nova religio entrava na dinmica poltica, tanto ao nvel da
justificao do poder rgio, como da sua organizao. Parafraseando Stefan Brink, a
cristianizao da Escandinvia foi parte de um processo maior de europeizao dos
reinos nrdicos, que adoptaram e adaptaram o modelo continental (2008, 622).
sintomtico dessa nova realidade que o prprio Kntr tenha estado em Roma em
1027, para assistir coroao do Sacro Imperador Romano (Lund 2008, 666). Pouco
espanta, por isso, que quando do centro da cristandade ocidental ecoaram apelos
cruzada, tenha havido Noruegueses que navegaram rumo Terra Santa.
Outro ponto de interesse para o presente captulo so as Ilhas Orkney,
localizadas no extremo norte da Esccia. A sua incluso no mundo nrdico, mais do
que uma questo de geografia, tem razes culturais profundas, dado que foram
colonizadas por escandinavos e converteram-se num centro de poder nrdico,
submetidas a dada altura Noruega e cedidas Esccia apenas em 1468. At ao
202
sculo XVIII, nelas falava-se um dialecto chamado Norn e, ainda hoje, a paisagem
encontra-se marcada por traos do passado escandinavo das ilhas, da toponmia aos
vestgios fsicos. O problema perceber quando que a presena nrdica teve incio e
em que moldes se desenvolveu.
Uma teoria pouco provvel pressupe que houvesse um reino nrdico
plenamente estabelecido no norte da Esccia na dcada de 840. O que dbio,
porque depende de uma interpretao pouco consensual dos anais irlandeses. Existiu,
isso sim, um Condado das Orkney, mas a notcia mais antiga que dele temos refere-se
morte do Conde ou jarl Sigurr na Irlanda, em 1014 (Barret 2008, 420 e 422). O que
quer dizer que conhecemos o resultado final, mas no o processo que a ele levou. A
tradio escrita coloca a fundao do condado no reinado de Haraldr hrfagri, das
ltimas dcadas do sculo IX s primeiras do seguinte: encontra-se na Historia
Norwegie, mas tambm no captulo 26 da Haralds saga Hrfagra, no Heimskringla, e
ainda no captulo 4 da Okrneyinga saga. Ambas referem o uso das ilhas como base de
Inverno por grupos de vikingues e a guerra que lhes foi feita por Haraldr hrfagri, que
depois deu as Orkney a Rgnvaldr. Eis o antepassado remoto dos condes de finais do
sculo XII, devidamente fiel ao monarca noruegus de quem recebe com mrito o
arquiplago. histria simplificada e glorificada, como convm a qualquer agenda
poltica.
Apesar das dvidas sobre o processo de colonizao nrdica das Orkney e da
sua formao enquanto entidade poltica, certo que, em meados do sculo XII,
seriam j um territrio subordinado Noruega, ainda que nominalmente. Segundo a
tradio, estavam cristianizadas desde o final do sculo X, quando lfr Tryggvason
passou pelas ilhas em viagem para a Noruega. A ser verdade, ter sido, quando muito,
uma converso oficial. Mas, passados cerca de cento e cinquenta anos sobre esse
momento, a situao seria j diferente e a cristianizao uma realidade. Pelo menos ao
nvel das elites, que tambm tero participado no movimento de cruzada.
Na Pennsula Ibrica, o sentido de luta contra o infiel tinha j uma longa
histria e continuaria no sculo XII. No captulo anterior, terminmos com a
reinstituio do Condado Portucalense por Alfonso VI de Leo, que o entrega a
Henrique de Borgonha em detrimento de Raimundo. A deciso do monarca ter sido
determinada pela situao militar, com o sul muulmano liderado pelos Almorvidas a
203
ameaar tomar Santarm e marchar para norte. possvel que Henrique j se tivesse
distinguido em combate, o que ter ajudado Alfonso VI a confiar-lhe a defesa da linha
de fronteira e, dessa forma, em 1096, a entregar-lhe os antigos condados de Portucale
e Coimbra, que eram, assim, separados da Galiza, com a qual tinham constitudo um
todo pelo menos desde 1065 (Mattoso 1993b, 32-3). A unio dos dois territrios
condais para a formao de uma nica terra portucalense ter ficado a dever-se a
motivos prticos, na medida em que permitia recrutar recursos do Entre Douro e
Minho para a defesa da fronteira a sul do Mondego (Mattoso 1993b, 34). E Henrique
iria precisar de todo o auxlio possvel.
Santarm resistia ainda s ofensivas Almorvidas, que usavam Lisboa como
base. Em 1109, a Chronica Gothorum d notcia da tomada do castelo de Sintra, mas a
referncia tem sido alvo de dvidas por alguns historiadores portugueses. Jos
Mattoso considera mesmo que a passagem est mal datada ou mal transcrita e sugere
que, em vez de ter sido tomada por Henrique, Sintra tenha-se revoltado contra o
conde e regressado a mos muulmanas nessa altura (1993b, 34-5). E tambm no
certo se o castelo no ter cado em posse Almorvida ainda no sculo XI, quando o
mesmo sucedeu a Lisboa. Mais frente, veremos com maior ateno esta notcia em
relao com a da conquista de Sintra pelo rei noruegus Sigurr jrsalafari Magnsson.
Sem dvidas, no entanto, Henrique perdeu Santarm em Maio de 1111, pouco depois
de se ter ocupado com as lutas da rainha leonesa D. Urraca. No s a presso exercida
pelos Almorvidas era imensa, como o facto de ser chamado para cenrios de guerra
fora do Condado Portucalense obrigava-o a descurar a defesa da sua linha de fronteira.
E o ano de 1112 traria a morte de Henrique, quando este se encontrava em Astorga,
deixando a sua viva encarregue da administrao do territrio dada a menoridade do
seu filho, Afonso Henriques.
A norte, no Reino de Leo, a situao no era menos gravosa. A morte de
Alfonso VI em 1109 agravava uma situao fronteiria delicada acrescentando-lhe um
problema de sucesso. O herdeiro do trono era o ainda menor Alfonso Raimundes,
filho de Urraca e Raimundo. Devido morte deste em 1107, o governo ficou nas mos
da sua me. Mas Urraca era j casada com o seu segundo marido, Alfonso I de Arago,
que viu assim uma oportunidade para reclamar o trono leons. O resultado foi um
perodo de instabilidade, marcado, por um lado, pelas sucessivas revoltas da nobreza
204
e, por outro, pelas investidas aragonesas contra Leo. Foi tambm nesta poca que a
Igreja de Compostela foi presidida por Diego Gelmrez, que viria a ser o seu primeiro
arcebispo. ele quem sagra o jovem Alfonso Raimundes como rei em 1111, numa
jogada contra as pretenses do soberano aragons que, no entanto, no ps fim ao
conflito. O jovem monarca s assumiu plenamente a coroa em 1123, um vez falecida
Urraca, altura em que passou a ser, de facto, Alfonso VII de Leo (Prez de Tudela y
Velasco 1991, 45) e lanou-se numa guerra bem sucedida contra Alfonso I de Arago.
No Condado Portucalense, a viva D. Teresa via-se entre dois partidos opostos:
de um lado, a nobreza galega que, apoiada em Alfonso Raimundes, pretendia ver
reunificada a antiga Galiza; do outro, a aristocracia portucalense, que queria manter a
autonomia recm-adquirida. A situao desequilibrada por uma incurso do sul
muulmano, que avana at ao Mondego e cerca Coimbra em 1117. O que leva D.
Teresa a aproximar-se do partido galego para obter o auxlio militar que lhe permitiria
manter a fronteira. A movimentao poltica ganha contornos precisos em 1121,
quando Ferno Peres de Trava, oriundo da Galiza, comea a exercer funes
governativas no Condado Portucalense, naquilo que era, pelo menos em termos
prticos, uma verdadeiro matrimnio com D. Teresa (Mattoso 1993b, 52). E logo a
nobreza que tinha sido favorecida por Henrique comea a ser afastada da corte condal
para, a seu tempo, apoiar-se em Afonso Henriques, que viria a entrar em conflito com
a me. A revolta torna-se declarada em 1127 e culmina na Batalha de So Mamede no
ano seguinte, onde vence o partido portucalense.
A partir desse momento, Afonso Henriques assume o governo do condado.
Rompidos os laos com os Trava, a poltica era agora de autonomizao, mas exigia
tambm a continuao da guerra contra o sul muulmano. Alis, a dimenso blica
viria a ser essencial para as ambies de Afonso, no s porque permitia aumentar a
sua base territorial, mas porque, na busca de maior autonomia e, a seu tempo,
independncia, a soma de vitrias contra os infiis pesava positivamente nas
negociaes com a Santa S. E vai da que aquele que viria a ser o primeiro rei
portugus se tenha instalado em Coimbra, em 1131, e comeado a avanar para sul ao
mesmo tempo que mantm a presso contra o norte galego. Em 1137, assina um
tratado de paz com Alfonso VII e, por volta de 1139, d-se a Batalha de Ourique, cuja
localizao e verdadeira natureza continua a ser incerta, mas que ter granjeado a
205
Afonso Henriques fama suficiente para passar a usar o titulo de rei (Mattoso 1993b,
62-3). Ttulo esse que lhe reconhecido por Leo no Tratado de Zamora, em 1143.
Mas uma coisa ser monarca e prestar vassalagem a Alfonso VII, que se fez coroar
imperador em 1135, e outra prest-la directamente Santa S. o que distingue um
reino integrado num imprio de um reino plenamente independente. Este ltimo o
objectivo de Afonso Henriques, que agracia a Igreja com doaes e lana-se em
campanhas militares contra o sul muulmano. J tinha tentado tomar Lisboa em 1142,
mas s viria a ter sucesso em 1147, depois de tomar Santarm e uma vez assegurado o
auxlio de cruzados que se dirigiam para a Palestina.
Entre eles encontrava-se um grupo de Normandos. No vikingues, como o
nome poderia levar a pensar, mas antes homens oriundos da Normandia.
Cristianizados, culturalmente assimilados e at j associados aos Ingleses, conforme
indicmos numa comunicao por ocasio das celebraes do nascimento do primeiro
rei portugus28. Indistintos, em muitos aspectos, dos restantes europeus que os
acompanhavam. O que, no presente trabalho, o ponto simblico que encerra o nosso
mbito cronolgico.
1. Galiza, c. 1108
No incio do sculo XII, a morte do rei noruegus Magns berfttr (Ps
Descalos) durante uma campanha militar na Irlanda leva os seus trs filhos a
sucederem-lhe. Em simultneo, porque em regime de co-governao. Um deles,
Sigurr, partiria em cruzada rumo Palestina poucos anos depois, passando pela faixa
ocidental da Pennsula Ibrica.
A situao poltica originada pela morte de Magns no era nova. J antes
referimos um caso de partilha da coroa quando Haraldr harri regressou de Bizncio
e, durante um ano, de 1046 a 1047, governou a Noruega em conjunto com o seu
sobrinho. Era uma forma de evitar disputas violentas pelo trono e ter servido esse
propsito aps a morte de Magns berfttr, que foi, ento, sucedido pelos filhos
Eysteinn, Sigurr e lfr. Este ltimo seria ainda menor, motivo pelo qual ficou sob a
regncia dos seus irmos, mas acabaria por morrer poucos anos depois. A Noruega
28
Referimo-nos ao Congresso Internacional 900 anos do nascimento de Afonso Henriques, que decorreu
em Viseu em 2009 e cujas actas aguardam por publicao.
206
ficaria, assim, com dois reis: Eysteinn, o mais velho e a quem as fontes nrdicas
atribuem virtudes de bom administrador, e Sigurr, cujo desejo de rumar Terra Santa
valeu-lhe a fama de cruzado e a alcunha de jrsalafari (O que foi a Jerusalm). A data
exacta da morte de Magns no se encontra preservada nas principais fontes nrdicas,
mas consta nos Anais de Ulster29, onde surge sob o ano de 1103. O que nos d um
terminus post quem a partir do qual podemos comear a analisar a questo da data da
expedio de Sigurr, que no de resoluo fcil.
Segundo o captulo 52 do grip af Nregskonungasgum, o co-monarca
noruegus partiu para Jerusalm quatro anos aps a morte do seu pai (Driscoll 1995,
70-1), enquanto o captulo 61 do Morkinskinna oferece um perodo mais curto e diz
que diz Sigurr estava pronto para partir trs anos aps o falecimento de Magns
(Andersson & Ellen Gade 2000, 313). No mesmo sentido vai o captulo 86 do
Fagrskinna (Finlay 2004, 253), mas a Magnssona saga, contida no Heimskringla,
recupera a referncia cronolgica oferecida pelo grip e o captulo 3 fala na partida de
Sigurr quatros anos aps a morte do pai. Um quarto texto, a Historia de Theodoricus
Monachus, que referimos brevemente quando apresentmos as fontes nrdicas, d
como referncia no o falecimento de Magns berfttr, mas sim a conquista de
Jerusalm, em 1099: diz o captulo 33 que Sigurr deixou a Noruega sete anos aps a
cidade ter sido tomada aos Persas (sic) (Foote & MacDougall 1998, 52). Assim sendo,
segundo as fontes nrdicas, temos duas datas possveis para a partida da expedio,
1106 ou 1107. Mas surge ainda uma terceira hiptese quando recorremos a uma outra
fonte. De acordo com David e Ian MacDougall, editores da Historia de Theodoricus
Monachus, os ingleses Annales Radingenses colocam em 1108 a chegada de Sigurr a
Inglaterra, pouco depois de zarpar da Noruega (Foote & MacDougall 1998, 113, n.
318), o que converte esse ano noutra possibilidade para a data da partida da
expedio norueguesa. E, a ser verdade, a passagem pela Pennsula Ibrica teria
ocorrido entre 1109 e 1110. Um ltimo elemento de complexidade acrescentado
pela Historia Compostelana, cujo captulo 76 do Livro I contm notcia da presena, na
Galiza, de cruzados vindos de Inglaterra em 1111 ou 1112 (Falque Rey 1994, 186).
Dada a diversidade de informao e a ausncia de uma fonte ibrica que nos d
uma data exacta para os ataques de Sigurr no ocidente peninsular, -nos impossvel
29
207
indicar anos concretos para esses acontecimentos. Uma possvel excepo refere-se ao
Castelo de Sintra, mas no est livre de problemas e ter, por isso, de ser devidamente
analisada num ponto prprio. As fontes permitem-nos apenas concluir que as
investidas ibricas do co-monarca noruegus tero tido lugar entre 1107 e 1110, que
so as hipteses mnima e mxima, uma vez tidas em conta as informaes fornecidas
pelos textos nrdicos e pelos Annales Radingenses. Optmos, por isso, por indicar no
ttulo dos subcaptulos um meio-termo que serve de aproximao. Quanto ao
contedo da Historia Compostelana, no estamos seguros quanto sua relao com a
expedio de Sigurr. A proximidade cronolgica elevada, mas no exacta e no
queremos cometer com o co-monarca noruegus a mesma falcia que outros
cometeram com lfr Haraldsson e lfr, o Galego, ao assumirem terem sido eles os
responsveis pelo ataque a Tui e as incurses dos dias de Cresconio, respectivamente.
Voltamos a insistir que no existe nenhum registo exaustivo de todas as investidas
nrdicas, motivo pelo qual no podemos, pura e simplesmente, assumir que a uma
notcia corresponde outra por mera proximidade cronolgica. Ou, o que pior,
assumi-lo por estarem em causa nomes sonantes. Mais ainda quando o contedo da
Historia Compostelana diverge do das fontes nrdicas.
Sigurr partiu, ento, da Noruega entre 1106 e 1108. O Morkinskinna refere
que a viagem teve incio no Outono e que a frota era composta por sessenta navios
(Anderson & Ellen Gade 2000, 313-4). A informao repetida no Fagrskinna (Finlay
2004, 253), mas apenas parcialmente no Heimskringla, onde o captulo 3 da
Magnssona saga s refere o nmero de embarcaes (Hollander 1964, 689), tal como
o grip. A fonte original parece ter sido o islands rarinn stuttfeldr, que viveu no
sculo XII e que nos deixou uma descrio potica do exrcito de Sigurr30. A
composio surge citada apenas no Morkinskinna e Heimskringla, mas a segunda
estrofe de entre as conhecidas menciona o nmero de embarcaes (sex tigir), pelo
que poder ter sido a fonte dos restantes textos. A primeira paragem foi em Inglaterra,
onde a frota ter passado o Inverno com a autorizao de Henrique I, seguindo depois
para Frana na Primavera. E nesta fase que a Pennsula Ibrica entra no relato
nrdico.
30
208
A chegada Galiza teve lugar no Outono ou, pelo menos, isso o que dizem o
Morkinskinna (captulo 61; Andersson & Ellen Gade 2000, 314) e a Magnssona saga
(captulo 4; Hollander 1964, 689). O Fagrskinna refere o mesmo, embora no contexto
dos confrontos com um nobre galego (captulo 86; Finlay 2004, 253). De entre estas
trs fontes, a segunda a nica que cita uma referncia potica, desta feita por Einarr
Sklason, tambm ele um islands do sculo XII com um trabalho sobre Sigurr31. na
segunda estrofe da composio em questo que encontramos, enfim, o topnimo que
tanto anima alguns estudiosos quando se referem s investidas vikingues na Pennsula
Ibrica: Jkbs-land ou a terra de Santiago. A prosa do Morkinskinna faz mesmo
referncia explcita a Compostela, onde diz que Sigurr chegou e passou o Inverno.
Para tal, o texto conta que o co-monarca noruegus enviou os seus chefes para falar
com o nobre que governava a Galiza, assegurando-o de que vinha em paz e que
necessitava de mantimentos, prometendo ser o mais amigvel possvel com a
populao local. As duas partes chegaram a um acordo que requeria do jarl galego o
estabelecimento de um mercado onde os nrdicos podiam abastecer-se de comida
durante o Inverno com o compromisso de, conforme prometido, serem ordeiros. Um
acordo que parece ter vigorado at ao Natal, altura em que os alimentos comearam a
escassear, diz o texto que assim que o jarl retirou o seu apoio devido pobreza
agrcola da Galiza. E Sigurr decide reagir assaltando o castelo do nobre galego, que
fugiu por ter poucos homens, deixando para trs uma grande quantidade de comida e
saque que os nrdicos tomaram para si. De volta aos navios, preparam-se para partir e
retomam a viagem para sul j na Primavera.
Esta narrativa, contida no captulo 61 do Morkinskinna (Andersson & Ellen Gade
2000, 314-5), surge de forma mais ou menos resumida noutras fontes nrdicas. A
Magnssona saga, no Heimskringla, mantm os elementos essenciais: o acordo, a
ruptura por altura do Natal, a tomada do castelo, a fuga do nobre galego e o regresso
dos nrdicos aos navios com o saque, antes de seguirem viagem para sul (Hollander
1964, 690). O Fagrskinna oferece uma verso mais resumida e diferente em alguns
aspectos, colocando o fim do acordo no Outono e acrescentando o pagamento de
resgates pela libertao de soldados galegos. E o prprio Einarr Sklason parece aludir
ao episdio quando fala da punio da quebra de palavra do eminente nobre
31
209
(lausmli gjalda frmum jarli). Ou, pelo menos, parece ter sido essa a interpretao
que lhe foi dada pelos autores dos compndios do sculo XIII.
O problema imediato deste relato a falta de uma narrativa coincidente em
fontes ibricas. Se quisssemos indicar uma figura que pudesse ser uma espcie de
magnata mximo da Galiza, por volta de 1108, poderamos referir algum da famlia
dos Trava ou Diego Gelmrez. Este ltimo talvez a hiptese mais provvel dada a
referncia a Compostela no Morkinskinna, j que bispo da cidade seria o seu jarl ou
conde evidente e uma das figuras galegas mais influentes. Mas a Historia
Compostelana parece ignorar por completo a viagem de um rei noruegus a caminho
da Terra Santa. certo que h um episdio que envolve piratas vindos de Inglaterra
rumo a Jerusalm e que analisaremos mais frente, mas, enquanto as fontes nrdicas
falam de uma vitria de Sigurr, a Historia Compostelana descreve uma vitria de
Gelmrez. So relatos contraditrios em que nem as datas parecem coincidir: a histria
contida no Morkinskinna refere-se a cerca do ano de 1108, enquanto o episdio da
crnica galega ter tido lugar por volta de 1112. Poderamos pensar que estamos
perante mais um caso de falta de registo ibrico do ataque, que uma hiptese que
est sempre presente. Mas estamos a falar de acontecimentos nos dias de Gelmrez,
que era Bispo de Iria-Compostela desde 1100 (Portela Silva 2002b, 521) e que foi o
grande instigador da composio da Historia Compostelana, que , na essncia, uma
glorificao da aco do prelado. Por esse motivo, estranho que o mesmo texto no
d notcia da presena de um monarca estrangeiro na Galiza por volta de 1108. Ou
talvez seja por isso mesmo que a Historia Compostelana no refere o episdio. Isto , o
objectivo de engrandecer a memria de Gelmrez tambm um motivo perfeito para a
ocultao daquilo que poder ter sido uma derrota humilhante do prelado de IriaCompostela. Motivo pelo qual encontraramos notcia dos acontecimentos nas fontes
nrdicas, mas completo silncio da parte da principal crnica galega para o perodo. E
isto no impossvel numa fonte onde, como vimos no episdio de Gunderedo, o
registo histrico de Sisnando e Rosendo foi alterado e subordinado a uma agenda
ideolgica.
Claro que tambm podemos considerar a hiptese contrria, ou seja, a de o
relato da vitria de Sigurr ser um engrandecimento de um episdio menor e, por isso,
passvel de escapar ateno dos autores da Historia Compostelana. Mas para isso
210
teramos de olhar para a referncia a Compostela de outra forma, ora como meno a
parte do territrio galego por associao povoao, ora como mero enfabulamento
do contedo original do poema de Einarr Sklason. Uma vez mais, voltamos questo
dos prosimetra ou da preservao oral de estrofes skldicas juntamente com pores
de prosa. E a possibilidade de estas ltimas poderem ter enriquecido o contedo das
primeiras, de tal forma que, quando as sagas e compndios comearam a ser redigidos
com recurso a fontes poticas, aquilo que originalmente no fazia parte do poema a
referncia a Compostela passou a integrar uma verso cristalizada da histria da
viagem de Sigurr. E no difcil imaginar o acrescento da cidade narrativa potica
de Einarr Sklason, na medida em que, a querer-se adicionar um elemento urbano
histria, a escolha mais bvia seria Compostela, a mais conhecida das povoaes
galegas por acolher o tmulo de So Tiago.
Um outro elemento a considerar nesta questo surge nos captulos 86 e 87 da
Orkneyinga saga (Plsson & Edwards 1981, 164-71). Neles, Rgnvaldr Kali Kolsson, jarl
ou Conde das Orkney, tambm conhecido como So Ronaldo, empreende uma
expedio martima at Terra Santa, por volta de 1155, com passagem natural pelo
ocidente ibrico (Jesch 2005, 133). Ter chegado ao territrio galego j no Inverno,
dado que o texto refere a proximidade do Natal, motivo pelo qual interrompe a
viagem. Negocia com a populao local o estabelecimento de um mercado onde os
nrdicos possam comprar comida, mas a ideia teve pouco sucesso devido escassez
de alimentos. Para mais, Rgnvaldr descobre que um castelo prximo foi ocupado por
um chefe estrangeiro, que rouba e oprime os habitantes da regio. E eis que os
Galegos dirigiram-se ao Conde das Orkney, propondo-lhe que ele tomasse a fortaleza,
cujo saque seria para ele e para os seus homens, e que em troca seria estabelecido um
mercado at Quaresma. Aceite a proposta, Rgnvaldr e os seus homens atacam o
castelo por altura do Natal, pilhando-o e pondo em fuga o chefe que o ocupava. No
volta a haver referncia a um mercado e dito que os nrdicos deixaram a Galiza
pouco depois.
H um conjunto de pontos em comum entre esta narrativa e a de Sigurr
conforme surge na prosa dos compndios: a estadia na Galiza durante o Inverno, o
estabelecimento de um mercado para alimentar o exrcito, a escassez de alimentos e
o ataque a uma fortificao local, cujo lder posto em fuga e o saque levado pelos
211
2. Sintra, c. 1109
Na viagem para sul ao longo da costa galego-portuguesa, algures entre a Galiza
e Sintra, a expedio de Sigurr enfrenta um grupo de piratas. O episdio descrito
ainda no captulo 61 do Morkinskinna e no 4 da Magnssona saga, que citam o
trabalho de Halldrr skvaldri. Trata-se de outro poeta islands de sculo XII, a quem
atribuda a autoria do tfarardrpa32 ou Poema da Viagem ao Exterior, que relata a
expedio do rei cruzado e a nossa terceira e ltima fonte potica. Os versos nada
dizem sobre o local exacto onde o confronto naval teve lugar, mas referem que o
exrcito de Sigurr tomou e saqueou oito gals (tta galeir), que seria pelo menos
parte da frota pirata, naquela que, nas palavras do Morkinskinna, foi a primeira vitria
do rei cruzado contra os pagos. Em contradio com as restantes fontes, o
Fagrskinna coloca o episdio depois do ataque a Lisboa.
Aps o confronto naval, a prxima batalha do co-monarca noruegus teve lugar
em Sintra, que surge no poema de Halldrr skvaldri como Sintr. Os dados poticos so
escassos, limitando-se a identificar o alvo militar e a engrandecer os feitos de Sigurr,
mas h informao adicional na prosa dos compndios. O Morkinskinna (Andersson &
Ellen Gade 2000, 316) refere que Sintra estava ocupada por pagos (leia-se,
muulmanos) e que era usada como base para atacar os cristos, inserindo depois um
discurso em que o co-monarca defende perante os seus homens a tomada do castelo,
para o avano e fortalecimento da cristandade. O confronto que se seguiu descrito
como duro e violento, com os muulmanos a resistirem ao cerco nrdico at acabarem
por capitular. Sigurr oferece aos prisioneiros a possibilidade de se converterem ao
cristianismo, mas, recusada a proposta, ordena a sua execuo. A narrativa
apresentada no Heimskringla, captulo 4 da Magnssona saga (Hollander 1964, 690),
resume o contedo do Morkinskinna, com referncias localizao de Sintra na
32
213
Hispnia, a sua utilizao como base para ataques a territrios cristos e o massacre
dos ocupantes. O Fagrskinna ignora este episdio.
nesta fase que passamos a contar com aquela que poder ser a nica
referncia ibrica expedio de Sigurr. Segundo a Chronica Gothorum (Herculano
1856, 11), no ms de Julho da Era de 1147 (ano 1109), Sintra foi capturada por
Henrique do Condado Portucalense (Era MCXLVII. Mense Julio iterum capta fuit Sintria
a Comite D. Henrico genero D. Alfonsi Regis maritio filie sue Regine D. Tarasie) e a
notcia termina com uma referncia a uma revolta muulmana por alturas da morte de
Alfonso VI (Audientes enim Sarraceni mortem Regis D. Alfonsi, ceperunt rebellare). Mas
a Brevis Historia Gothorum, na prtica uma fonte gmea da Chronica (Herculano 1856,
11), apresenta uma verso ligeiramente diferente destes acontecimentos, colocando a
morte de Alfonso VI a 29 de Junho de 1109 (Era MCVLVII III Kal Julii obit Rex Adefonsus
Fernandi Regis filius) e acrescentando que, pouco depois, no ano seguinte, com Sintra
perdida e conhecida a morte do rei (paulo post primo sequente circiter anno, cum
Sintra defecisset, audita morte Regis Alfonsi), o local foi reconquistado por Henrique
(recuperata est a Comite Henriquio).
Parece haver uma discrepncia cronolgica entre as duas fontes, com a
Chronica Gothorum a colocar a conquista de Sintra pelo conde portucalense em 1109 e
a Brevis Historia Gothorum a dar a ideia de que o feito teve lugar no ano seguinte,
depois da morte de Alfonso VI. Mas a contradio pode ser apenas aparente se
levarmos letra as fontes: a primeira diz que Sintra foi capturada (capta fuit),
enquanto a segunda diz que foi recuperada (recuperata) e ambas tm em comum a
referncia a uma revolta muulmana. Barrilaro Ruas aceitou que Sintra foi conquistada
por Henrique em 1109 (1992a, 194) mas, conforme referimos anteriormente, Jos
Mattoso tem dvidas quanto a todo o episdio, colocando em causa a capacidade
militar do conde para sitiar e tomar o Castelo de Sintra (Mattoso 1993b, 35). Para este
ltimo historiador, a fonte incorre num erro de data ou de transcrio, propondo que,
na realidade, o que sucedeu em 1109 foi a revolta dos muulmanos locais que
devolveu Sintra ao domnio islmico. O que no impossvel, mas a teoria de Mattoso
assenta na suposio de que Henrique no tinha meios para fazer face aos
Almorvidas e tomar a fortificao, obrigando busca de interpretaes alternativas
da notcia medieval. Ora, a questo ganha outros contornos se lhe juntarmos a
214
presena na regio de Lisboa das tropas de Sigurr, o que poder ter facilitado a
ocupao de Sintra pelo conde portucalense.
certo que a Chronica Gothorum e a Brevis Historia Gothorum no fazem
qualquer referncia ao co-monarca noruegus ou sequer a um exrcito de cruzados.
Tal como, alis, as fontes nrdicas nada dizem sobre Henrique ou um suposto acordo
entre ele e Sigurr. Estamos, por isso, impossibilitados de apresentar mais do que
meras hipteses, as quais, no entanto, tm sido consideradas pelo menos desde
meados do sculo XX. J em 1951, o islands Bjarni Aalbjarnarson referiu na sua
edio do Heimskringla que Sintra tinha cado em mos muulmanas em 1109, mas
que Henrique reconquistou-a no ano seguinte, feito para o qual julgou ser possvel
assumir o auxlio de Sigurr (1951, 242, nota estrofe 189). Esta teoria teve um dos
seus ecos mais recentes na edio de Theodore Andersson e Kari Ellen Gade do
Morkinskinna, onde, no entanto, a tomada de Sintra por Henrique datada de 1109
(2000, 452, n. 9). E um acordo entre Henrique e o co-monarca noruegus no
impossvel, embora, conforme dissemos, no se possa ir alm do hipottico. de notar
que as fontes nrdicas parecem estar informadas sobre a situao militar do ocidente
peninsular, dado que identificam o Castelo de Sintra como uma base para operaes
militares contra o norte. E o mesmo pode ser dito a respeito de Lisboa, de que
falaremos a seguir, que descrita como estando na fronteira entre os territrios
cristo e pago. O que deixa a impresso de que os nrdicos tiveram mais do que um
contacto ocasional com os habitantes e, por ventura, elites do ocidente peninsular.
Mas, dado que tanto o Morkinskinna como o Heimskringla so fontes de sculo XIII,
tambm verdade que essa informao pode ter sido recolhida posteriormente,
enquanto o poema de Halldrr skvaldri nada diz sobre a realidade militar da regio.
Resta-nos, por isso, interpretar a Chronica Gothorum com o conhecimento de
que, por volta de 1109, houve um rei noruegus que tomou o Castelo de Sintra. Assim,
sabemos que a fortificao foi entregue a Alfonso VI pelo Rei da Taifa de Badajoz em
1093, juntamente com Santarm e Lisboa, sendo que esta ltima voltou a cair em
mos muulmanas em 1095. No se conhece o que aconteceu a Sintra nessa altura, se
resistiu ou se sofreu o mesmo destino que Lisboa, mas a proximidade geogrfica entre
as duas leva a supor a ltima possibilidade. O certo que, a julgar pelas fontes
nrdicas, a fortificao estaria em mos muulmanas quando Sigurr a tomou, por
215
volta de 1109. Ano no qual, diz a Chronica Gothorum, Sintra foi capturada por
Henrique. Se o co-monarca noruegus no tinha um acordo com o conde
portucalense, semelhana do de Afonso Henriques com os cruzados de 1147, pelo
menos possvel que o assalto levado a cabo por Sigurr tenha deixado a fortificao
exposta ou as suas defesas enfraquecidas o suficiente para Henrique poder tom-la.
Por outras palavras, poder ter sido apenas uma agradvel coincidncia com bvias
vantagens militares para os Portucalenses. O que permite pr de parte as dvidas de
Jos Mattoso sobre os recursos militares do marido de D. Teresa e concluir que a
Chronica Gothorum pode, afinal, estar correcta. Quanto revolta muulmana, talvez
possamos dar um valor cronolgico ao facto de a referncia vir depois e no antes da
notcia da tomada de Sintra por Henrique. Isto , que a sublevao teve lugar aps a
captura (capta fuit) pelos Portucalenses e que, em 1110, segundo a Brevis Historia
Gothorum, o conde portucalense reconquistou novamente o castelo depois desse
levantamento. Da que, para citar o texto uma vez mais, cum Sintra defecisset, audita
morte Regis Alfonsi, recuperata est a Comite Henriquio. Um esforo valoroso, mas que
no ter feito mais do que adiar a queda da fortificao em mos muulmanas, talvez
logo em 1111, aquando da tomada almorvida de Santarm.
justo perguntar se o que expusemos no permite concretizar as datas da
expedio de Sigurr, dado que, diro alguns, a notcia da conquista de Sintra por
Henrique em 1109 fornece uma referncia cronolgica concreta para a expedio do
co-monarca noruegus. O que seria verdade se a Chronica Gothorum ou a Brevis
Historia Gothorum mencionassem o filho de Magns berfttr ou um exrcito de
cruzados, mas no esse o caso. H apenas uma coincidncia aproximada de datas e
exacta quanto ao local, permitindo levantar a possibilidade de os sucessos de Henrique
e Sigurr estarem relacionados, acidentalmente ou no. Principalmente se se quiser
assumir que o primeiro no dispunha de meios militares para fazer frente aos
Almorvidas e reconquistar os territrios doados a Alfonso VI em 1093.
3. Lisboa, c. 1109
Depois de Sintra, o alvo militar seguinte de Sigurr foi Lisboa, que surge
claramente identificada no poema de Halldrr skvaldri com o nome de Lizibn.
216
217
certezas para 1109 do que para o sculo IX, porque dispomos de uma fonte
cronologicamente prxima: o relato da conquista da cidade em 1147.
Graas ao De Expugnatione Lyxbonensi, conjugado com os vestgios ainda hoje
visveis, conhecemos o traado que a muralha de Lisboa teria quando Sigurr entrou
no Tejo. Seria a chamada Cerca Moura, que descia ao longo da colina do castelo at ao
rio e seguindo depois ao longo das suas margens, ao ponto de separar o espao
urbano do curso de gua (captulo 5; Nascimento 2007, 77). A cidade teria ainda
bairros extramuros, os arrabaldes de que fala o relato do cruzado, que faz notar as
suas ruas estreitas, transformando essas zonas habitacionais em pequenas fortalezas
(captulo 5; Nascimento 2007, 79). Tanto assim que foram palco de confrontos durante
vrios dias. E esses bairros, cuja existncia supusemos para 844, existiam por certo em
1147 e podem, por isso, ser facilmente assumidos como parte da cidade em 1109 ou
1110. So eles Alfama e a Mouraria, que se prolongava pela actual Rua da Madalena.
Zonas cuja ocupao humana seria antiga, mas que se encontravam fora das muralhas,
entre elas e o rio ou, no caso do ltimo dos dois bairros, entre a colina do castelo e o
esteiro do Tejo (Figura 4). E aqui que os relatos nrdicos ganham sentido sem que se
tenha que assumir a queda de Lisboa. Isto , que Sigurr atacou e pilhou os espaos
urbanos junto cidade (vi borg, nas palavras de Halldrr skvaldri), na prtica pondolhe cerco e retirando da aco um saque considervel. O que pode dar algum fundo de
verdade descrio do Morkinskinna, com o co-monarca a seguir frente das suas
tropas pelas ruas, embora possam ter sido apenas as dos bairros fora das muralhas e
Figura 4: Representao artstica da Lisboa medieval (C. Amaro, ap. Picard 2000, 334).
Com a cerca moura destacada, v-se Alfama direita e a Madalena/Mouraria esquerda.
218
Almorvidas no ocidente ibrico. No ter sido profundo, uma vez que se tratam de
operaes de saque e no de ocupao do territrio atacado. E, pelo mesmo motivo,
quaisquer consequncias tero tambm sido limitadas no tempo. Basta pensar que os
Almorvidas conseguiram conquistar Santarm em 1111, entre um a trs anos depois
da passagem do rei cruzado pela costa ocidental da Pennsula Ibrica. Mas tambm
verdade que Sigurr pode ter aberto caminho conquista de Sintra por Henrique de
Portucale e ainda que no se queira aceitar a possibilidade de ter havido contactos ou
um acordo entre os dois. O mesmo Henrique que, suspeita Jos Mattoso, no tinha
meios militares suficientes para fazer recuar os Almorvidas e, de facto, no consta
que tenha conseguido conquistar Lisboa. Mas h notcia de que teve sucesso em
Sintra, se no duas, pelo menos uma vez. Sucesso em submeter a mesma fortificao
que Sigurr tomou e fracasso em conquistar a cidade onde no certo que o comonarca noruegus tenha entrado: a sobreposio dos feitos dos dois homens
sustenta a possibilidade de, no mnimo, a expedio do rei cruzado ter cerceado o
mpeto almorvida. Pelo menos o suficiente para Henrique tomar e manter Sintra por
algum tempo e, dessa forma, manter a linha de fronteira perto do Tejo perante a
ameaa de ela recuar at ao Mondego. E depois h ainda o saque e despovoamento de
Alccer do Sal, a fazer f nas fontes nrdicas, que no deixar de ter afectado a
estrutura territorial do oeste ibrico muulmano. Porque, como notou Christophe
Picard, era uma cidade sada da rede viria que atravessava o interior do territrio,
um centro de comrcio martimo e ainda um posto militar, terrestre e naval,
principalmente depois de Almanor ter usado Alccer como base a partir da qual
lanou o seu ataque a Compostela em 997 (2000, 195-6).
Mas a natureza passageira da expedio Sigurr, sem ser imediatamente
seguida de um avano portucalense, implica que os seus efeitos foram igualmente
passageiros. O que tanto pode servir para argumentar que Henrique no tinha um
acordo com o co-monarca noruegus, como para sustentar a tese da escassez de
meios do conde portugus. Alccer do Sal pode ter sido pilhada e despovoada, mas
nada impedia que fosse repovoada logo aps a partida dos Noruegueses. Da mesma
forma, Lisboa ter recuperado rapidamente da aco de saque, mais ainda se nunca
passou dos bairros extramuros. A nica excepo neste cenrio Sintra que, isolada
no extremo sudoeste da fronteira portucalense e sem apoio lisboeta, estava
221
5. Galiza, c. 1112
Conforme referimos anteriormente, a Historia Compostelana contm notcia de
cruzados oriundos de Inglaterra e recrutados como mercenrios por dois nobres
galegos (Livro I, captulo LXXVI; Falque Rey 1994, 186-7). Mas a fonte no data os
acontecimentos, motivo pelo qual necessrio procurar uma referncia cronolgica
noutra parte do texto.
Dado que o episdio surge no contexto dos conflitos que se seguiram morte
de Alfonso VI, certo que no teve lugar antes de 1109. O captulo 73 indica ainda a
Era de 1149 para acontecimentos que, na narrativa da Historia Compostelana,
antecedem a chegada dos cruzados em causa (Falque Rey 1994, 181), o que nos
permite avanar o terminus post quem para 1111. No entanto, a data no aceite de
forma consensual e j houve quem argumentasse que o texto est errado por um ano
(Falque Rey 1994, 181, n. 471), o que quer dizer que teramos que avanar o nosso
limite cronolgico para 1112. Em qualquer caso, a referncia, no captulo 74,
sagrao de Alfonso VI por Gelmrez (Falque Rey 1994, 183) permite confirmar que no
ter sido antes de 1111. A partir daqui, deixamos de dispor de elementos que nos
permitam precisar no tempo o episdio que queremos analisar, restando-nos um
terminus post quem e a data aproximada de 1112, se tivermos em conta a reserva de
alguns estudiosos indicao da Era 1149.
Voltando ao texto, a Historia Compostelana fala de dois nobres galegos, Pelgio
Gudesteiz e Rabinado Nunes, que recrutaram cruzados oriundos de Inglaterra e a
caminho de Jerusalm (Eodem tempore P. Godesteides et R. Nunides piratas pretio
conductos sibi in auxilium assumpserant, qui ab Angli partibus venientes causa
aduendi Hierosolymam, Hesperiam attigerant; Lazcano 2006b, 227). Os dois homens
eram apoiantes de Alfonso I de Arago e, por isso, adversrios tanto de Diego
Gelmrez, Bispo de Iria-Compostela, como de Urraca e do seu filho Alfonso Raimundes,
que, por aquela altura, seria j rei na Galiza. Confrontados com as foras do prelado, os
dois nobres tero aproveitado a presena dos cruzados na costa galega para lan-los
222
6. Lisboa, 1147
O episdio final na nossa anlise das incurses nrdicas no ocidente da
Pennsula Ibrica no , por esta altura, um desconhecido. J nos referimos ao relato
da conquista de Lisboa por vrias vezes e chegmos a mencionar algumas passagens
neste mesmo captulo. Mas o derradeiro olhar sobre a narrativa centra-se naquele
aspecto que marca o fim do mbito cronolgico do presente trabalho: a
transformao, no registo escrito, do termo normando.
A expedio de cruzados que sitiou Lisboa era composta por homens de
diferentes origens, algumas das quais surgem referidas logo no primeiro captulo do
texto. Vinham do Sacro Imprio Romano, da Flandres, de Bolonha e ainda das regies
inglesas de Norfolk, Suffolk, Dover e Kent (Nascimento 2007, 54-5). Diramos, destes
ltimos, que eram Ingleses, mas o captulo 8 menciona oito navios dos Normandos de
Southampton e Bristol (nauibus octo Normannorum, Hamtonensium et Bristowensium;
Nascimento 2007, 84). O que pode parecer curioso, dado que ambas so povoaes
localizadas em Inglaterra. No mesmo sentido vai a expresso Normanni et Angli que,
numa variante ou outra, surge nos captulos 13, 14, 16, 17 e 22 (Nascimento 2007,
102, 106, 112, 114, 116, 138). E a uma outra ocorrncia das mesmas palavras, no
captulo 21, acresce ainda o facto de se inserir numa frase em que Normandos e
Ingleses recusam saque a troco da rendio da cidade (Nascimento 2007, 134-5).
225
228
III.
VESTGIOS
229
230
Captulo 11
Lendas e festas
Sem surpresa, trezentos anos de actividade nrdica deixaram marcas, tanto na
memria como na paisagem. Por serem uma herana dos trs sculos de incurses, a
terceira e ltima parte do presente trabalho tem como objectivo registar e analisar os
vestgios que conseguimos encontrar. Esta ltima seco lista lendas, festas,
fortificaes e aborda ainda as questes de possvel colonizao nrdica e influncia
sobre a construo naval ibrica. Por esta ordem e num total de dezasseis pontos.
justo perguntar por que que comeamos pelas lendas e no pelas
fortificaes. Afinal, feita a anlise do registo histrico, o bvio seria passar para a dos
castelos e fortalezas que foram erguidas contra os vikingues e que, nalguns casos,
figuram nos textos que nos trazem notcias dos ataques. Pensemos nas Torres do
Oeste ou na Lanzada, referidas nos captulos 9 e 10, respectivamente. Mas o facto de
alguns estudiosos confundirem o registo histrico com o lendrio confere sentido a
que, uma vez separados os dois, anlise de um se siga a do outro. Porque, por
ingenuidade ou fraca pesquisa, h trabalhos recentes onde figuram como factuais
episdios que no passam de lendas; com base em obras diversas, dos nossos dias ou
outras mais antigas, mas todas com um elemento em comum: o recurso limitado ou
mesmo nulo a fontes primrias. O que, inevitavelmente, se traduz numa falta de base
documental que sustente como facto aquilo que se quer apresentar como tal. certo
e no o negamos! - que uma lenda pode ocultar a memria de um ataque do qual no
ficou registo escrito. Mas uma coisa uma hiptese vaga e outra bem diferente um
acontecimento que pode qualificar-se de histrico porque h dados que o comprovam.
, se quisermos, a diferena entre um boato, que pode at gerar realidades bastante
concretas, e um facto devidamente fundamentado. A distino entre os dois nem
sempre bvia, mas h casos em que a mera ausncia de base documental devia, no
mnimo, servir de aviso.
Assim, entre as lendas que listamos neste captulo e so todas as que
conseguimos encontrar h casos em que possvel um contedo histrico, outros
em que ele apenas provvel e, por ltimo, h exemplos de narrativas que devem
231
1. Batalha em Chantada
No corao da Galiza, perto do rio Minho, h uma povoao chamada
Chantada, localizada a cerca de noventa quilmetros a norte de Portugal e mesma
distncia de Santiago de Compostela. Diz a lenda que, durante o perodo vikingue, um
grupo de piratas nrdicos atacou aquela localidade antes de ser derrotado por um
exrcito nativo liderado por um rei Ramiro. Do incio do sculo XX at aos nossos dias,
foram vrios os autores que incluram o conto no registo das incurses.
Conforme veremos, possvel que a lenda tenha uma origem local j com
vrios sculos, mas o seu grande criador moderno e divulgador foi Manuel Formoso
Lamas. Segundo ele, um grupo de piratas nrdicos ficou preso em terra depois de os
seus navios terem sido queimados na Corunha, levando-os a fugirem para o interior,
at Chantada, onde a nobreza local foi incapaz de lhes fazer frente, procurando refgio
numa antiga fortificao chamada Castro Candad. De l, observaram a pilhagem e a
chegada do rei Ramiro frente de um exrcito com o qual empurrou os vikingues at
s margens do rio Minho. E foi a que eles foram derrotados, num stio desde ento
chamado Camporramiro. No local, ergue-se uma igreja comemorativa e a vitria valeu
a alguns nobres uma recompensa rgia (1905, 59-69).
No seguimento do trabalho de Formoso Lamas, no faltou quem tomasse a
lenda como plausvel ou mesmo histrica e a inclusse entre as incurses nrdicas no
ocidente da Pennsula Ibrica. Foi o caso de Antonio Seijas Vzquez (1979, 108 e 120),
Eduardo Morales Romero (1997, 100; 2004, 192), Francisco Singul Lorenzo (1999, 49) e
Jorge Izquierdo Daz (2009, 78). O primeiro colocou o episdio no contexto da
expedio de Gunderedo, dado o alcance geogrfico da mesma, mas a lenda incluiu
um exrcito liderado pelo monarca, o que era difcil em 968-9, dado que Ramiro III era
ainda uma criana. Talvez por isso, outros autores preferiram colocar o episdio no
reinado de Ramiro I, at porque a referncia destruio de navios nrdicos na
232
Corunha faz lembrar os relatos do ataque de 844. Nesse sentido, mais recentemente,
no nmero 101 da revista Clio, Janire Ramila tentou dar fundamento histrico lenda
atravs da Crnica de Alfonso III. Para isso, citou o texto medieval sobre a vitria de
Ramiro I, mas dividindo-o a meio para, entre as linhas citadas, incluir uma referncia a
Chantada (2010, 23). O que d ideia que episdio lendrio surge na referida crnica,
quando, na realidade, o que Janire Ramila faz uma jogada criativa que roa a
desonestidade. Porque nenhuma fonte medieval a Crnica de Alfonso III ou outra
fala de incurses nrdicas em Chantada. A povoao ainda surge na Historia
Compostelana, mas no contexto de uma doao a um mosteiro e no de um ataque
vikingue (Livro I, XXVI; Falque Rey 1994, 121).
possvel argumentar que as crnicas registam apenas os principais
acontecimentos e que dariam pouca ou nenhuma ateno ao sucedido numa pequena
povoao do interior galego. Mas a generalidade dos autores do sculo XX em diante
no apresentam uma nica fonte medieval que sustente a lenda. A nica excepo
parece ser Antonio Seijas Vzquez, que ainda refere um testamento supostamente
redigido no sculo X, mas do qual o prprio estudioso tem dvidas quanto sua
autenticidade (1979, 120). E embora seja verdade que Formoso Lamas lista uma
bibliografia de onde ter retirado a informao, as obras apresentadas so do sculo
XVI em diante, o que no abona a favor do seu valor histrico. Ora, se as fontes
documentais mais antigas nada dizem sobre o episdio, haver, ao menos, valor em
elementos como a toponmia?
Formoso Lamas afirmou que Chantada deriva do latim plantata, que explicou
como uma referncia a uma paliada que defendia a povoao ou reconstruo da
localidade aps o saque levado a cabo pelos nrdicos (1905, 50). A etimologia parece
estar correcta, dado que a forma latina aparece em documentos datados de 1073
(Mndz Prez 2007, 167-72), mas o mesmo no pode dizer-se da interpretao que
lhe foi dada. A origem do topnimo pode ser antes a expresso petra plantata, em
referncia a uma rocha firmemente assente no cho ou um milenrio romano,
conforme j foi proposto (Ares Vzquez 2001, 77). E, mesmo que quisssemos aceitar
a hiptese da paliada, isso, por si s, no prova de um ataque vikingue: uma
muralha de madeira diz apenas que se pretende proteger o que est no seu interior e
no contra quem. H ainda Camporramiro, o topnimo que, supostamente, marca o
233
local da derradeira batalha nas margens do rio Minho e cujo significado de campo de
algum chamado Ramiro bvio. Mas a sua origem pode ser muito menos herica e
derivar apenas de um proprietrio do terreno, por ventura um suevo (Vzquez
Rodrguez 1996, 284). E, em consequncia disso, a igreja de Santa Maria de
Camporramiro pode dever o seu nome ao simples facto de estar localizada naquele
local e no comemorao de uma hipottica batalha.
Assim, chegamos ao ponto em que um episdio que alguns quiseram ver como
histrico est, afinal, desprovido de base que o sustente como tal. As fontes medievais
nada dizem sobre nrdicos em Chantada e a toponmia , no mximo, duvidosa. Tanto
quanto podemos avaliar, estamos perante uma lenda que poder ter tido a sua origem
em tradies populares ou em trabalhos eruditos ligados a projectos nobilirquicos.
Uma pista que vai no sentido desta ltima possibilidade encontra-se na chamada
Histria de D. Servando, uma obra apcrifa criada para parecer que foi feita no sculo
XVI, mas que, na realidade, poder ter sido escrita ente 1625 e 1635 (Souto Cabo 2007,
28). Ao conter uma pequena frase em que fala da chegada de nrdicos a Chantada,
algures no final do sculo IX ou incio do X (Souto Cabo 2007, 59), e dado que foi uma
obra muito copiada na dcada de 1640, a Histria de D. Servando poder ter
disseminado a lenda. E no o ter feito de forma inocente, dado que se trata de um
trabalho forjado com o objectivo de engrandecer famlias desprovidas de linhagem
aristocrtica (Souto Cano 2007, 26-7). O que nos leva de volta lenda, parte em que
o rei Ramiro recompensou os nobres que se tinham distinguido na batalha contra os
nrdicos.
A concluso inevitvel que, dadas as fontes existentes (ou a falta delas), o
ataque nrdico a Chantada no passa de uma lenda. De origem popular, erudita ou um
misto das duas, por ventura elaborada e disseminada por uma obra apcrifa. E, no
sculo XX, popularizada por trabalhos que se basearam uns nos outros ou em Formoso
Lamas, mas com um recurso mnimo ou mesmo nulo a fontes primrias.
2. Ataque ao Clogo
No corao da ria de Arousa, numa ilha frente povoao de Vila Nova de
Arousa, erguem-se as runas do Mosteiro de So Cipriano de Clogo. Pouco resta dele:
parte de uma torre e uma lenda de um ataque vikingue.
234
4. A Torre de So Saturnino
Ainda na ria de Arousa, as runas da Torre de So Saturnino, na povoao de
Cambados, so tambm objecto de lendas de piratas nrdicos.
Para sermos precisos, os vestgios da fortificao encontram-se num ilhu que
recebe o nome de Santom e que ter sido o ncleo urbano primitivo que mais tarde
deu origem a Cambados. Em 1607, o Cardeal Jernimo de Hoyo referia-se a uma
pequena ilha chamada So Tom do Mar, acedida apenas por uma calada de pedra
236
grossa e onde se encontrava uma ermida e uma casa-forte que, segundo o prelado,
fora fundada por Pedro Pardo (Rodrguez Gonzlez & Varela Jcome 1950, 517). Numa
recolha de tradies orais da regio, feita por alunos do oitavo ano do Colgio Pblico
de Castrelo, consta a breve histria de como os habitantes de Santom vigiavam a
costa contra os vikingues. No apenas as guas diante da Torre de So Saturnino, mas
tambm a costa martima, onde os sinais de fogo da Lanzada eram imitados pelos
habitantes de Santom que, dessa forma, avisavam as Torres do Oeste da entrada de
piratas nrdicos na ria de Arousa. At ao dia em que, vitima da violncia dos ataques, a
fortificao de So Saturnino foi destruda pelos vikingues, que a deixaram no estado
arruinado em que actualmente se encontra (Leiro Lois 1986, 7).
H lenda a mais e Histria a menos neste caso. No encontrmos qualquer
fonte medieval que mencionasse a construo ou sequer a existncia da torre em
questo. Se se tratar da casa-forte de que fala Jernimo de Hoyo e a fazer f neste
autor, ento nem certo que ela tenha sido fundada na Idade Mdia, dado que Pedro
Pardo, tambm conhecido como o Mariscal, foi um nobre galego do sculo XV. O
que quer dizer que a construo poder ter sido destruda aquando da revolta deste
contra os Reis Catlicos ou nos levantamentos populares da poca. Muito para l da
Idade Vikingue e, nesse caso, muito longe do papel histrico que a lenda projecta
sobre as runas.
No seria surpreendente que os vestgios da Torre de So Saturnino tivessem
sido vtimas da sua prpria localizao. Afinal, encontram-se entre a Lanzada, que se
sabe ter sido construda contra os ataques dos pagos, e as Torres do Oeste, h
muito popularizadas como fortificao que fazia frente aos vikingues. Com uma
vizinhana destas, no difcil que a tradio popular atribua s runas de uma torre
costeira o mesmo papel defensivo e at que a coloque como intermediria num
sistema de sinais de fogo.
5. A Pastorinha
H um conto oriundo do norte da Galiza que demonstrativo de como, mesmo
no registo lendrio, existe, por vezes, uma dificuldade em distinguir atacantes
muulmanos dos piratas nrdicos.
237
Segundo a lenda, nas proximidades da Corunha existia uma ermida que tinha
sido construda por um rei suevo e que foi destruda no sculo X ou XI, pelas tropas de
Almanor ou pelos vikingues de Gunderedo. Mas, antes que o local fosse tomado pelas
chamas, a imagem da Virgem que adornava o altar foi levada e escondida num nicho
de pedra. A pessoa que o fizera acabou por morrer sem revelar o paradeiro da esttua
e a imagem foi dada como perdida at ser descoberta por uma pastora (Pardo Bazn
1887, 24-7). A mesma que deu nome lenda.
Este pequeno conto demonstrativo de como a memria dos ataques nrdicos
foi trabalhada pela tradio popular. Poder ter alguma verdade histrica por trs, mas
tambm poder ser apenas a forma como uma imagem, ermida ou igreja adquiriu um
estatuto de antiguidade ao protagonizar uma aventura longa feita de Suevos,
pagos, fugas e encontros.
6. A casa do normando
Tambm da costa norte da Galiza chega-nos uma lenda breve, mas curiosa, que
fala de fuga e refgio ante a chegada dos vikingues.
Segundo Chao Espina, quando os piratas nrdicos se aproximaram de Viveiro,
um nobre local fugiu para Sober e de l para Vilaescusa, onde se conserva uma
habitao conhecida como Casa do Normando (1983, 13). No Concelho de Sober
preserva-se uma tradio semelhante, mas aqui toda uma famlia e no apenas um
nobre quem foge e o percurso marcado por pedidos de abrigo a diferentes
aristocratas: primeiro aos Condes de Lemos e depois aos Lopes de Lemos e Sober, at
chegarem a Vilaescusa e terminarem os seus dias no Alto do Rodicio, Ourense
(Fernndez Llano 1977, 121)
Se aceitssemos esta lenda como histrica, teramos que concluir que o nobre
(ou a famlia) percorreram cerca de cento e oitenta quilmetros, de Viveiro a Ourense.
O que quereria dizer que os vikingues pregaram-lhes um susto digno de um recorde
mundial. Haver qualquer coisa de histrico neste conto na medida em que,
confrontadas com os ataques nrdicos, algumas populaes tero procurado refgio
longe da costa, onde estavam mais expostas. Mas pouco mais do que isso. Uma fuga
aventurosa que quase atravessa a Galiza de norte a sul por causa de um ataque em
Viveiro pura fantasia, mesmo que com um fundo de verdade.
238
7. O milagre de So Gonalo
Juntamente com os casos de Chantada e de So Cipriano de Clogo, o milagre
de So Gonalo uma das lendas cujo estatuto de historicidade persiste e no
obstante os problemas que marcam o episdio.
O essencial da narrativa diz que, quando os vikingues atingiram a costa da
regio de Lugo, no norte da Galiza, a populao local procurou refgio ou auxlio junto
de Gonalo, Bispo de Mondonhedo. O prelado, j de idade e cego, dirigiu-se ento at
junto do mar em procisso religiosa com os seus fiis e clero, at um monte de onde
puderam avistar a frota nrdica. Confirmada a ameaa, Gonalo entrega-se a oraes,
pedindo a Deus que livrasse a populao dos piratas e, por cada Av Maria ou por cada
estdio da procisso, com o prelado a carregar uma cruz, um ou mais navios dos
vikingues afundavam-se, vtimas de uma tormenta que se levantara. Chegados ao topo
de um monte junto povoao de Foz, onde hoje se ergue uma ermida dedicada ao
prelado, foi dito a Gonalo que j s restavam trs embarcaes nrdicas (ou uma, de
acordo com outras verses), as quais escaparam por pedido do bispo a Deus. Ou,
segundo outros, por vontade divina para que os vikingues soubessem do sucedido e
no se atrevessem a atacar novamente.
Com uma ou outra variao, esta lenda tem sido contada por sucessivos
autores h j vrios sculos. Huerta y Vega mencionou-a (1736, 360) e, antes dele,
Bartolomeu Villapol y Vega, em 1665, e ainda Gonzlez Samaniego, em 1611, que
referiu o conto e o culto de So Gonalo a Filipe III de Espanha (Cal Pardo 2003, 62 e
65). Mas no h consenso quanto data do episdio: Huerta y Vega coloca-o no
contexto do primeiro ataque vikingue ao ocidente ibrico, em 844, e o mesmo fez
Gandara (1678, 400-1), Vicetto (1871, 47-8), Francisco Mayn Fernndez (1955, 25) e
Chao Espina (1965, 31-4). Por seu turno, Almazn (1986, 103-6), Dozy (1987, 44),
Miguel Gonzlez Garcs (1987, 87), Francisco Singul Lorenzo (1999, 52), Xos
Fernndez Romero (2000, 465-6), Araceli Otero Fernndez (2002, 72) e Morales
Romero (2004, 180) preferem os meados do sculo X. J Jaime Ferreiro Alemparte
apresentou a opo tradicional do sculo IX e a alternativa de final do sculo XI ou
inicio do seguinte (1999, 40-1), enquanto Flrez dividiu-se entre esta ltima e os anos
de 942 a 969 (Lazcano 2005, 278). Alis, o autor da Espaa Sagrada chamou a ateno
239
para o facto de o episdio ter chegado aos seus dias (e tambm aos nossos) mais por
via da tradio popular do que por registo escrito medieval (Lazcano 2005, 277).
A falta de consenso quanto a uma data no , portanto, o nico problema
enfrentado por quem quer atribuir lenda um valor histrico, tendo ainda que lidar
com o facto de no existir nenhum relato coevo ou cronologicamente prximo que fale
claramente do episdio. A transmisso ter sido oral durante sculos, sujeita
mutabilidade prpria dessa forma de preservao da memria, e preciso esperar at
ao sculo XVII at se comear a cristalizar a narrativa. E depois impe-se a derradeira
dificuldade de no se encontrar registo de um Gonalo na sucesso de bispos de
Mondonhedo. Pelo menos no antes de 1070, altura em que surge um prelado com
esse nome, mas cujo comportamento parece ter sido pouco prprio da aura de
santidade do Gonalo da lenda (Cal Pardo 2003, 62). O que, falta de novas fontes,
empurra o episdio para o domnio do lendrio.
Esta concluso no nova. J tinha sido proposta no sculo XIX por Jos
Villaamil y Castro (1866, 24), mas houve tambm quem tentasse perscrutar algum
valor histrico por via de uma explicao racional dos acontecimentos. Foi o caso de
Benito Vicetto, que props o desaire de uma frota nrdica na regio, mas vtima das
correntes ou turbilhes da costa local (1871, 48). Neste sentido, vale a pena recordar o
relato dos Anais de So Bertino, onde os piratas que chegaram Galiza em 844 foram
vtimas de projcteis arremessados pelos habitantes nativos e de uma tempestade no
mar (Nelson 1991, 60). H aqui, portanto, um potencial para Histria escondida atrs
da lenda, mas este o nico ponto em que, neste caso, as narrativas histrica e
lendria podem coincidir. Naquilo que essencial, um bispo de nome Gonalo com
fama de santo, no h fontes documentais coevas que o sustentem.
Assim sendo, teremos que concluir pelo carcter mitolgico deste episdio.
Poder ter algo de verdade na sua origem, seja uma tormenta ou as correntes locais
que afundaram parte de uma frota vikingue, antes do episdio ser elaborado pela
transmisso oral ao longo de vrios sculos. O suficiente para dar origem ao culto de
um santo, a seu tempo provido de um tmulo e mural na igreja de So Martinho de
Mondonhedo, e a uma ermida na colina onde, supostamente, concluiu o seu milagre,
junto povoao de Foz. Ermida essa, alis, de que ficou notcia da sua construo em
240
241
Captulo 12
Fortificaes
Classificar um edifcio como fortificao ligada aos vikingues no tarefa fcil e
preciso explicar o que se entende por estruturas defensivas (re)erguidas contra os
piratas nrdicos.
Em 844, o ocidente da Pennsula Ibrica j era um cenrio de guerra h mais de
cem anos e continuou a s-lo para l do sculo XI. Isto quer dizer que a paisagem
estava j marcada por fortificaes cuja necessidade no foi criada pelos piratas
nrdicos, mas apenas reforada por eles. Trs anos antes da chegada dos vikingues ao
norte da Galiza, j a regio teria sido alvo de expedies navais muulmanas e, nos
trezentos anos seguintes, o esforo de guerra das comunidades radicadas no oeste
ibrico vai desenrolar-se em trs cenrios essenciais: os conflitos norte-sul; as lutas
dos reinos cristos, internas ou entre si; e os ataques dos piratas nrdicos. Por este
motivo, uma estrutura defensiva podia ser usada contra mltiplos inimigos e,
precisamente por isso, difcil falar em fortificaes contra vikingues no ocidente da
Pennsula Ibrica. Mas difcil no significa que seja impossvel e, mesmo diante de um
cenrio blico multifacetado, -nos dada a hiptese de discernirmos algumas
construes ou re-edificaes que ficaram, em parte, a dever-se aos piratas nrdicos.
H trs critrios que presidem sua identificao: a data, a localizao e as
fontes documentais. Isto , o conhecimento de que um dado castelo, torre ou
muralhas foram construdas ou alvo de obras num local passvel de ser atacado por
vikingues, num perodo em que eles estavam activos e em que haja referncia
documental ao objectivo da estrutura como sendo contra normandos, pagos ou
gentios. A mera utilizao contra piratas nrdicos no deve bastar para a classificao
de vestgio da Idade Vikingue. Por exemplo, a Torre de Hrcules, na Corunha, ter sido
usada como ponto de vigia contra ataque martimos, mas a sua fundao romana e
no temos conhecimento de obras de relevo entre os sculos IX e XII. Desse modo,
embora a estrutura possa ter sido usada contra piratas nrdicos, no se pode
considerar o edifcio actual como uma marca da sua passagem pelo ocidente ibrico.
Caso mais ambguo podero ser as muralhas de Lisboa, dada a sua possvel
243
Provincial de Pontevedra, com a inscrio Hoc signo vincitur inimicus hoc signo tuetur
pius, que Manuel Daz y Daz diz ser comum a vrias peas do reinado do referido
monarca (2002, 29). Mais certa parece ser a existncia de uma fortificao na primeira
metade do sculo XI, precisamente da poca de Cresconio e embora, uma vez mais,
dela pouco reste (Naveiro Lpez 2002, 24). nestas duas fases que podemos associar
as Torres do Oeste aos vikingues, presentes na costa galega h j algumas dcadas
quando Alfonso III subiu ao trono em 866. possvel que a ameaa de ataques
muulmanos tambm estivesse presente, mas seguro dizer que os piratas nrdicos
tero contribudo para a necessidade de defesas costeiras. De tal forma que, segundo
a Histria Silense (captulo 40; Prez de Urbel & Gonzlez Ruiz-Zorrilla 1959, 151), o
mesmo monarca ordenou a construo de uma fortaleza costeira nas Astrias para
proteger a igreja de So Salvador de Oviedo de ataques martimos, embora no seja
claro de quem: ad defensionem sancti Saluatoris Ouetensis, opidum Gauzon miro et
forti opere, in maritimis partibus Asturie, fabricauit. No entanto, no s no estranho,
como at expectvel que o perodo vikingue tenha acrescentado (ou agravado) uma
ameaa naval a uma Pennsula Ibrica onde a guerra terrestre era uma realidade h j
mais de um sculo. E os reis do norte reagiram em conformidade, munindo os seus
territrios de defesas costeiras, nas Astrias, provavelmente tambm em Catoira e por
muito rudimentares que pudessem ser. O mesmo poder ter sucedido no sculo XI,
nos dias de Cresconio ou do seu antecessor, sem que se saiba at que ponto houve
uma reutilizao de estruturas anteriores. Mas o perodo era j de crepsculo para a
actividade vikingue, que no parece ser uma preocupao na centria seguinte.
Segundo a Historia Compostelana, quando Gelmrez ordenou os trabalhos de
reconstruo das Torres do Oeste, f-lo tendo em mente a possibilidades de ataques
muulmanos, referidos no texto como islamistas, moabitas e at Almorvidas. No h
qualquer uso de termos que possam ser associados aos piratas nrdicos, mas tambm
pouco subsiste das supostas estruturas dessa poca. Algo que poder ficar a dever-se a
obras posteriores e a consequente destruio de edifcios mais antigos ou
parcialidade da prpria Historia Compostelana, interessada em glorificar a memria de
Gelmrez e, dessa forma, distorcer a verdadeira dimenso de quaisquer trabalhos de
construo do perodo.
247
2. A Lanzada, Sanxenxo
A sul da entrada da ria de Arousa, num promontrio virado para ocidente,
erguem-se actualmente as runas de uma fortificao e uma ermida dedicada a Nossa
Senhora da Areia. De acordo com um documento do incio do sculo XI, existiu ali um
ponto de defesa contra os ataques de gentios.
Escavaes arqueolgicas levadas a cabo na rea revelaram vestgios de
ocupao pr-romana do local, seguida de duas fases de estruturas habitacionais
romanas. Nas proximidades, existiu ainda uma necrpole de onde, no sculo XVI,
foram retiradas peas para a construo da ponte que, actualmente, liga a costa ao
promontrio, que na realidade uma pequena ilha. O ltimo vestgio romano, pelo
menos nas runas da habitao descoberta, data, no mximo, da primeira metade do
sculo IV (Filgueira Valverde 1974, 83-4).
Na Idade Mdia, a Lanzada surge num documento de 886 (Lucas Alvarez 1998,
65-6, doc. 13) em que Alfonso III e a sua famlia doam igreja de Santiago umas salinas
locais (ipsas iam dictas salinas, que sunt in littore maris in supradicto loco de termino
de Plataneto et usque in Lanzada). Mas a notcia de uma fortificao medieval surge
apenas no sculo XI, embora, a julgar pela fonte escrita, possvel que tenha sido
248
construda cem anos antes. Assim se depreende de um texto datado de 1019 (Lucas
Alvarez 1998, 146-9, doc. 61), onde Alfonso V menciona direitos e propriedades da
Diocese de Iria-Compostela e oferece uma lista de disposies testamentrias de reis
que o antecederam. Nela surge Adefonsi catholici principis (Alfonso II?), Hordonii regis
(Ordonho I?), domni Adefonsi principis et Scemene regine (Alfonso III e a rainha Jimena)
e Hordonii regis filii domni Adefonsi (Ordonho II?). O que se segue parece ser uma
referncia construo da fortaleza da Lanzada por um bispo Sisnando, cinquenta
anos depois da redaco do testamento:
Dado que Ordonho II morreu em 924, cinco dcadas sobre o registo escrito da
sua ltima vontade leva-nos para cerca do ano de 970 e conhecemos um prelado cujo
nome corresponde ao do documento e que presidiu Diocese de Iria-Compostela por
essa altura: Sisnando II, o mesmo que caiu em batalha contra o exrcito de Gunderedo
em 968. Ter sido ele, portanto, quem ordenou a fortificao da Lanzada contra os
gentios, termo que, j o dissemos, tanto pode ser aplicado a muulmanos como aos
piratas nrdicos. Algo que no nos deve impedir de considerar o local como um
vestgio de estruturas defensivas contra os vikingues: o que servia contra um inimigo,
servia tambm contra outros e no se pode negar que, em meados do sculo X, a
pirataria nrdica era uma realidade bem presente no oeste ibrico. E, dessa forma, era
um factor a ter em conta na organizao de defesas costeiras.
No encontrmos informao arqueolgica que nos permita precisar ou
reforar a informao escrita. As escavaes realizadas em 1973 encontraram
abundantes vestgios de ocupao humana, tais como as fundaes de estruturas,
pavimentos, restos de cermica, comida e at sinais de um incndio (Filgueira Valverde
1974, 84-5). Mas no nos deparmos com informao sobre a datao dos vestgios.
semelhana do que se diz sobre a Torre de So Saturnino, em Cambados, tambm da
Lanzada se conta que fazia parte de uma rede de faris que avisavam as Torres do
249
Oeste da presena de frotas inimigas. A ideia surge, por exemplo, numa recolha de
lendas e contos locais (Paz Framil 2006, 35-6) e multiplica-se por outras publicaes. E
no impossvel que assim tenha sido, mas faltam fontes documentais que o
sustentem e, acima de tudo, digam ao certo onde eram acesas as fogueiras de aviso.
Algo sobre o qual no h unanimidade, por ventura porque tambm no h suporte
escrito e, dessa forma, a lista de fortificaes iluminadas vai ganhando esta ou
aquela forma ao sabor da imaginao dos diferentes estudiosos. O Castro de Lobeira,
de que falaremos mais frente, nem sempre includo e j houve at quem falasse do
campanrio do Mosteiro de So Cipriano do Clogo como mais um ponto onde era
acesa uma fogueira de aviso (Izquierdo Daz 2009, 90).
A Lanzada continuou a ter utilidade militar depois da Idade Vikingue, quando o
perigo de ataques costeiros vinha quase exclusivamente de frotas muulmanas.
Recorde-se o episdio dos cruzados ingleses recrutados pelos condes rebeldes e de
como parte do exrcito reunido por Gelmrez provinha precisamente da Lanzada. E
no ter sido assim por acaso: de acordo com a prpria Historia Compostelana (Livro I,
captulo 75; Falque Rey 1994, 185), os homens daquele local estavam preparados para
o combate naval. O que deixa adivinhar que, dada a sua localizao martima, a
Lanzada ter servido de base para a frota do prelado, num esforo suplementar de
guarnecer a costa contra ataques piratas.
do seu falecido marido. Ter sido por volta dessa altura que teve lugar a fundao de
um mosteiro na villa Vimaranis, uma pequena propriedade rural que viria a
transformar-se no ncleo urbano de Guimares. Mais tarde, no se sabe ao certo
quando nem exactamente em que contexto, o medo de um ataque de gentios levou
construo de uma fortificao numa colina prxima do edifcio religioso (ante illorum
metum laborauimus castellum quod uocitant sanctum mames in locum predictum alpe
latito quo est super huius sancto cenobio constructum). J referimos isto na anlise das
incurses do sculo X, mas falta-nos considerar a questo da fortificao.
Para alguns, o primeiro elemento de curiosidade advm da meno da
fortificao como Castelo de So Mamede, localizado no Monte Latito. Para a
generalidade dos Portugueses, a estrutura simplesmente o Castelo de Guimares,
cuja malha urbana oculta as denominaes mais antigas. Mas, no sculo X, a paisagem
seria marcada ainda pelo relevo natural e por propriedades rurais, uma das quais, a
villa Vimaranis, viria a tornar-se num pequeno burgo graas presena de uma
comunidade religiosa que atraa peregrinos, artesos e a sua dose de residentes
temporrios de estatuto social mais elevado. E esse fenmeno adquiriu uma dimenso
maior quando Henrique de Borgonha escolheu Guimares para local de residncia e
dotou a colina fortificada de uma habitao condal. O que nos leva questo de qual
seria o aspecto do castellum erguido por ordem de Mumadona Dias. O termo invoca a
imagem de grandes estruturas com muralhas de pedra e ameias, mas essa muitas
vezes uma viso romntica e, no sculo X, um castellum podia ser apenas uma torre,
talvez provida de um fosso ou paliada em redor. Isso mesmo j tinha sido notado por
Antnio da Sousa Machado, que analisou o significado da terminologia da poca
(1981, 113-8). Por isso, o Castelo de Guimares comeou por ser uma torre e pouco
mais, erguida para proteco da comunidade residente num mosteiro que se
encontraria onde hoje est a igreja de Nossa Senhora da Oliveira (Teixeira 2001, 14). E
no restam vestgios dessa fortificao original, pelo menos de que tenhamos
conhecimento, dado que foram destrudos ou ocultados pelas sucessivas obras que
foram feitas desde os dias de Henrique de Borgonha.
Sobra a questo de quando foi construdo o castelo que, de acordo com o
documento, ter sido antes de 968, sem que tenhamos dados que nos permitam dizer
ao certo quo antes. Fernando Jos Teixeira coloca a hiptese de ter sido entre 961 e
252
253
256
Captulo 13
Colonos?
A Idade Vikinge tambm gerou fenmenos de colonizao nrdica: em Frana,
em Inglaterra, na Esccia e na Irlanda, conforme referimos em captulos anteriores,
mas tambm no leste europeu, onde a expanso escandinava se fez em paralelo com a
explorao das rotas comercias e o estabelecimento de elites nrdicas. Ora, tal
conduz-nos a uma questo imediata sobre a existncia ou no de fenmenos do
mesmo gnero no actual territrio galego-portugus. Ou, posto de outra forma, ser
que houve grupos de vikingues que passaram de piratas a colonos no ocidente ibrico?
Afirmar que a informao disponvel reduzida ser, talvez, dizer pouco. As
fontes no falam de doaes como a de Carlos, o Simples, a Rollo ou da distribuio de
terras entre os invasores, como a Crnica Anglo-Saxnica sobre os guerreiros do
grande exrcito. No se conhecem vestgios arqueolgicos como sepulturas, uma
concentrao considervel de artefactos ou restos de estruturas de um posto nrdico
como Dublin. E tambm no h toponmia ou prticas legais cuja origem possa,
razoavelmente, ser traada at Escandinvia. Dito assim, seramos levados a concluir
que no houve qualquer tipo de assentamento nrdico no ocidente ibrico, mas, como
em tantos outros casos na Histria, ausncia de indcios no implica, necessariamente,
falta de ocorrncia ou existncia. Pode apenas querer dizer que o fenmeno foi
demasiado reduzido para dele subsistirem provas fsicas, que dele no se fez registo
escrito explcito ou que quaisquer vestgios que possam ter existido no chegaram aos
nossos dias. Possibilidades que abrem as portas a hipteses que, devido mesma falta
de provas, nunca podero passar a certezas.
Sabemos que houve ataques vikingues na costa galego-portuguesa durante
mais de duzentos anos, em alguns casos de forma prolongada. Pensemos na expedio
de Gunderedo ou nos nove meses de saque entre os rios Douro e Ave. Referimos,
anteriormente, que o contacto prolongado, mesmo que violento, permite a formao
de laos entre as partes em conflito, principalmente quando h interesses em comum.
Falmos disso a respeito do resgate das trs filhas de Amarelo Mestaliz e o mesmo
pode ser dito sobre o caso de Santa Maria da Feira, onde a presena de trs figuras do
257
poder local transmite a ideia de contactos feitos de uma forma mais ou menos
institucionalizada. E tambm temos notcias de derrotas nrdicas nos actuais
territrios galego e portugus, onde grupos de vikingues podem ter sido feitos
prisioneiros. Estes trs cenrios colocam a possibilidade da entrada de nrdicos na
populao peninsular: como cativos e depois servos, mas tambm como piratas que,
por motivos individuais e graas ao contacto prolongado com os habitantes locais,
podem ter largado as armas para agarrarem uma oportunidade de vida mais
sedentria. Se na Normandia houve nrdicos que o fizeram ao perceberem as
vantagens a mdio ou longo prazo de se estabelecerem em propriedades agrcolas na
Neustria, por que no o mesmo fenmeno no ocidente ibrico? Numa escala muito
menor, certo, e, por isso, um fenmeno passvel de ser ignorado pelas principais
fontes escritas ou de deixar poucos ou mesmo nenhum vestgio material. Mas nem por
isso impossvel a partir do momento em que existe contacto prolongado.
Os trs pontos que analisamos neste captulo partem dos pressupostos que
acabmos de enunciar. No os queremos apresentar como facto porque julgamos
haver falta de provas suficientes para tal e, para mais, temos dvidas sobre a
historicidade de alguns elementos. Mas no podamos deixar de nos debruar sobre a
questo e quisemos apresentar os dados que recolhemos para, bem ou mal, abrir
caminho a estudos mais aprofundados ou, se necessrio, permitir a correco do que
expomos neste captulo.
1. Os Gunderedos
Uma conversa com Galegos ou Portugueses de hoje e, ao referir-se ataques
vikingues, alguns falaro dos cabelos loiros e olhos claros dos habitantes de algumas
zonas costeiras a norte. Querem com isso apontar um indcio da passagem dos piratas
nrdicos pela regio, mas do perodo das incurses at aos nossos dias vo mil anos. O
que tempo mais do que suficiente para sucessivas vagas de imigrao responsveis
por determinados traos fsicos. As investidas nrdicas ocorreram na Idade Mdia e
no h umas dcadas, pelo que, se queremos indcios histricos, teremos que recorrer
a fontes medievais.
Em 1706, o clrigo Antnio Carvalho da Costa, ao referir-se povoao de So
Pedro de Gundarem, perto de Vila Nova de Cerveira, mencionou a possibilidade de o
258
topnimo ter origem no nome Gunderedo, Rey dos Normandos, quando veyo
conquistar Galliza & parte desta Provncia (1706, 218). Tefilo Braga fez referncia a
essa ideia, assim como possibilidade de uma relao idntica para a famlia
Gundares ou Candarey (1868, 75). Alis, so vrios os exemplos medievais do uso
deste ltimo nome, como o trovador Nuno Rodrigues de Candarei ou a referncia a um
Dom Mendo de Candarei numa cantiga de Alfonso X33. A hiptese assenta no
pressuspoto de que tanto o topnimo como o antropnimo tm origem no chefe
vikingue de 968, dada a semelhana entre os nomes, o que constituiria um indcio de
colonizao nrdica no ocidente ibrico. Mas a teoria sofre de dois problemas: a
natureza do nome e a sua ocorrncia considervel na documentao medieval.
Os vikingues no foram os primeiros falantes de uma lngua germnica a
passarem pela Pennsula Ibrica. bem sabido que, no sculo V, o territrio foi
invadido e ocupado por povos germnicos, nomeadamente Suevos e Visigodos, que
fundaram reinos prprios. E a sua chegada e fixao na Hispnia permitiu a incluso na
vida peninsular de novos antropnimos, mesmo que latinizados: nomes como Ramiro,
Gonalo, Rodrigo e Ildefonso tm razes germnicas. Sabe-se que Gunderedo partilha a
mesma matriz lingustica, derivando do godo guni (luta) e reos (conselho) (Boulln
Agrelo 1993, 325). Mas a sua ocorrncia ou a de formas semelhantes no oeste ibrico
no , por si s, prova de alguma forma de colonizao nrdica, dada a possibilidade
de ter origem no substrato germnico que antecedeu em vrios sculos a Idade
Vikingue. Podemos constat-lo no facto de, em 835, nove anos antes do primeiro
ataque vikingue de que h notcia na Pennsula Ibrica, j existir uma villa Gonderedi
num documento preservado no tombo do Mosteiro de Sobrado dos Monges (Garca de
Valdeavellano 1976, 51, doc. 18).
O mesmo topnimo ou a forma semelhante Gunderedi surge tambm nos
documentos 1, 3, 10, 73 e 91 a 103 do mesmo cartulrio (Garca de Valdeavellano
1976, 21-8, 43, 104, 116-24), todos datados dos anos 883 a 971. E uma consulta de
outros cartulrios medievais permite tambm constatar a existncia do antropnimo
antes e depois de 968: h um Gunderedo entre as testemunhas num documento de
966 e um Gunderedo Fredenandiz noutro de 985 (Sez & Gonzlez de la Pea 2004,
152-3, 174-6, docs. 73 e 95). certo que h muitos mais exemplos para o sculo X do
33
http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=477&tr=4&pv=sim
259
que para o IX, o que poder levar alguns a concluir que isso um indcio da entrada de
vikingues na demografia peninsular. Mas a variao do nmero de casos enganadora,
dado que pode ser simplesmente o resultado da maior ou menor disponibilidade de
fontes medievais que sobreviveram at aos nossos dias.
O que estes dados documentais demonstram aquilo que j se sabia: que
Gunderedo um nome de origem germnica e que esse substrato lingustico est
presente da Pennsula Ibrica desde o sculo V. Pelo que a ocorrncia do topnimo ou
antropnimo no , por si s, um indcio de colonizao nrdica. Para isso seriam
necessrios mais dados como a localizao das propriedades e origem das pessoas
para se tentar perceber se imaginemos existem mais casos de Gunderedos no
interior at ao sculo VIII e um aumento no litoral a partir dessa poca. Algo difcil de
se fazer dada a escassez de informao ou de dados suplementares em documentos
onde surge o antropnimo.
2. A aldeia de Lordemo
Junto a Coimbra, existe uma pequena povoao chamada Lordemo. Almazn
(1986, 120) e, atravs dele, Price (2008b, 465) referem-se a ela como um caso possvel
de fixao de nrdicos em territrio peninsular.
A ideia radica, essencialmente, na semelhana entre o topnimo e termos
como lordemanos ou leordemanos, que, j sabemos, eram usados para identificar os
vikingues. A derivao possvel e o local pode ser antigo, uma vez que surge num
documento ter sido redigido na dcada de 1120 (Pinto de Azevedo 1958, 73-4, doc.
59) e onde Teresa, me de Afonso Henriques (Ego regine Tharasia), doa a um Gonalo
Aluane e sua mulher a propriedade de Lordomam (mea hereditate quam habai in
termino Colimbrie in loco qui dicitur Lordomam). No entanto, o texto contm a
referncia cronolgica de Era de 1116, a que corresponde o ano de 1078 (Facta carta
mense Iunij apud Colimbriam. Era M C X VI). A data demasiado anterior para se
tratar de um documento outorgado por D. Teresa, que no teria ainda nascido, pelo
que estamos perante um erro de transcrio ou um caso de autenticidade dbia. Rui
Pinto de Azevedo d o documento como credvel e refere que foi transcrito e
confirmado no reinado de Afonso II de Portugal, em 1221. Data o original dos anos de
1122 a 1125, com base na identidade dos confirmantes (1962, 587-8).
260
3. Influncia naval
Os vikingues esto, obviamente, associados a embarcaes, tanto na
iconografia popular como na prpria cultura nrdica medieval. Falmos disso no
captulo 5 e evidente que piratas martimos precisam de navios. No surpreende, por
isso, que a questo de vestgios da passagem dos vikingues pelo ocidente peninsular
origine ideias de influncias nrdicas sobre a construo naval ibrica.
Jaime Ferreiro Alemparte disse que a expanso martima portuguesa e
espanhola no pode ser completamente explicada sem a presena dos homens do
norte sculos antes (1999, 14). O que uma afirmao arrojada e, na nossa opinio,
com pouco fundamento, dado que entre o final da Idade Vikingue e o incio das
grandes viagens martimas no sculo XV passaram cerca de quatrocentos anos. Tempo
261
264
Concluso
Chegados ao final, importa recordar os pontos essenciais do tema e regressar a
algumas das coisas que diferentes autores tm dito sobre a natureza, motivaes e
efeitos dos ataques nrdicos no ocidente ibrico. Para que as possamos analisar e, se
necessrio, propor interpretaes alternativas.
A Idade Vikingue no teve um nico motivo, mas ter nascido de uma
conjugao de elementos de relevncia varivel em diferentes partes da Escandinvia.
A escassez de terra arvel poder ter sido uma condicionante no que hoje a Noruega,
mas os traos orogrficos eram outros nos actuais territrios dinamarqus e sueco. O
que no quer dizer que deles no tenham tambm partido colonos que, podendo ter
terra disponvel, viam em locais como Inglaterra a possibilidade de tomarem para si
propriedades trabalhadas h geraes e maiores do que aquelas que podiam alguma
vez ter nos pases de origem. Por outras palavras, houve sentido de oportunidade, o
mesmo que poder ter engrossado o nmero e dimenso das expedies vikingues
aps os primeiros sucessos ainda no sculo VIII. Em simultneo, os conflitos polticos
na Escandinvia tero tambm alimentado as vagas de nrdicos que se fizeram ao mar
e, a ser verdade que a actividade pirata j se desenrolava no Bltico, ela ter, a dada
altura, resvalado para o Mar do Norte, cujas rotas e postos comerciais no eram
inteiramente desconhecidos dos nrdicos.
Dada a distncia entre a Pennsula Ibrica e a Escandinvia, seria de esperar
que a primeira fosse um cenrio secundrio da pirataria nrdica. Mais ainda se
tivermos em conta que, entre os dois territrios, encontram-se as Ilhas Britnicas e a
Frana, ambos pontos de grande actividade vikingue. E, de facto, durante o sculo IX,
esses foram os cenrios centrais para os nrdicos que viajaram para ocidente. disso
prova a dimenso do saque nas margens do Sena, Loire e Garonne, assim como o
nmero de ataques costa inglesa, irlandesa, s ilhas escocesas e depois a conquista
do que viria a ser a Danelaw. Nessa poca, podemos dizer que a Pennsula Ibrica foi
um alvo secundrio, na periferia do mundo vikingue, o que no significa que tenha
ficado imune ao fenmeno. Sofreu ataques nrdicos, conforme vimos, e foi vtima de
algumas expedies extraordinrias, como a que entrou no Mediterrneo e chegou ao
norte de Itlia. Mas, no obstante o ter sido incrvel, esse episdio foi uma excepo
265
268
que tero apenas acrescentado ou agravado uma situao que lhes antecedeu e
sucedeu, sem que tenham sido um elemento determinante.
Ainda assim, j foram propostos alguns exemplos de consequncias da aco
dos piratas nrdicos. Uma delas a transferncia da sede episcopal de Iria para
Compostela, que alguns estudiosos atribuem a um movimento de fuga das zonas
costeiras, por causa da ameaa vikingue, e o consequente refgio no interior. Foram
proponentes desta teoria Chao Espina (1965, 41), Singul Lorenzo (1999, 49) e Almazn
(1986, 94), mas enquanto este ltimo parece colocar o momento determinante nos
ataques do reinado de Ordonho I, os outros dois autores responsabilizam a incurso de
Gunderedo pela transferncia da residncia oficial do bispo. Na verdade, nenhuma das
hipteses tem grande substncia, porque a ascenso de Compostela em detrimento de
Iria foi um processo longo que culminou numa bula papal em 1095. Como notou
Manuel Ceclio Daz, a transferncia acabou por ser uma consequncia natural da
descoberta do tmulo de So Tiago, que se converteu no ponto central da diocese e,
a seu tempo, passou a deter a sede episcopal (2002, 21-3). de notar, por exemplo,
que Teodemiro, o prelado que ter encontrado os restos mortais do apstolo e que
morreu em 847, tenha sido sepultado em Compostela e no em Iria, onde era bispo. E
a este dado junta-se ainda o estatuto de residncia episcopal do local, atribudo por
Alfonso II (Lpez Alsina 1999, 123-4), cujo reinado antecede o ataque vikingue de 844.
Tratam-se de elementos sintomticos de um processo que se comeou a desenhar
antes desse ano e que originou, primeiro, uma denominao partilhada na forma de
Bispo de Iria-Compostela, at sua extino em 1095, com a bula de Urbano II, que
legitimou o ttulo de Bispo de Compostela. Se se tratasse apenas de um caso de fuga
da zona costeira, seria de esperar que a diocese fosse apenas administrada a partir de
outro local e sem que se alterasse a denominao. Como, de resto, sucedeu com a de
Tui no sculo X, quando Nausto foi obrigado a refugiar-se no actual concelho de Ponte
de Lima. Se os vikingues deram algum contributo para a ascenso de Compostela, ter
sido, quando muito, o de reforarem um processo que no originaram.
Outra ideia que tambm no est isenta de dvidas a da interiorizao da
populao e o consequente despovoamento das zonas costeiras. O exemplo por vezes
dado o do Burgo, poca uma povoao prxima da Corunha e hoje um bairro
sada da mesma cidade, em Culleredo. Vedia y Goossens (1845, 9-10), Chao Espina
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(1965, 44) e Izquierdo Daz (2009, 78) foram proponentes da teoria de que aquele
espao urbano surgiu quando os habitantes de Brigantia fugiram da costa por medo
dos ataques dos piratas nrdicos. Mas, tal como no caso da transferncia da sede
episcopal de Iria para Compostela, podemos estar perante um processo que
antecedeu os vikingues e para o qual eles, quando muito, contriburam, mas no
criaram. Quando nos referimos investida de 844, falmos de como Farum Brigantium
se referia, poca, mais a uma regio e menos a uma povoao, facto que no era
estranho ao despovoamento que teve incio no perodo final do Imprio Romano e que
os conflitos que se seguiram no ajudaram a inverter. Assim sendo, possvel que
parte da populao de Brigantia, nomeadamente a comunidade piscatria, tenha
recuado para uma posio menos exposta a ataques navais, mas perto o suficiente
para manter alguma actividade martima, fazendo uso do rio de Burgo. E esses ataques
no tm que ser necessaria ou exclusivamente nrdicos: basta recordarmos que a
costa galega foi alvo de investidas martimas muulmanas ainda em 841 (Mattoso
1992b, 479).
A contribuir para as dvidas sobre a Histria do Burgo est tambm o facto de
o registo textual da sua fundao datar apenas de meados do sculo XII, segundo um
documento outorgado por em 1161 por Fernando II e que faz referncia ao momento
fundacional no reinado do seu pai, Alfonso VII (Lucas Alvarez 1998, 236, doc. 113).
Carlos Pereira Martnez nota, no entanto, que o texto fala de um Burgo novo, o que,
segundo o estudioso, d a entender que j existia um ncleo urbano anterior cuja
antiguidade no pode ser estabelecida (2000, 30), mas cuja origem pode estar, pelo
menos em parte, relacionada com os ataques nrdicos e muulmanos (2000, 9). O
problema, uma vez mais, delimitar com preciso o papel dos vikingues num processo
de alteraes demogrficas que j vinha detrs e num cenrio de guerra
multifacetado.
No sul muulmano, a situao parece ter seguido o caminho inverso, com a
litoralizao dos espaos urbanos e estruturas militares. Foi essa a opinio de
Christophe Picard, que notou a (re)construo de estruturas defensivas costeiras a
partir do sculo IX, coincidindo com os primeiros ataques nrdicos. O acadmico
francs refere o aparecimento de ribbats ou fortificaes na actual costa portuguesa a
partir desse perodo e indica ainda Sintra, Almada, Palmela, Sesimbra ou Alccer do Sal
270
poder ser j um sinal desse processo, denunciando a presena dos primrdios de uma
base naval no local e que permitiu a captura de embarcaes nrdicas.
O desenvolvimento de uma frota no norte cristo parece ter vindo muito mais
tarde, nos dias de Diego Gelmrez, que, conforme vimos, enviou uma fora naval
contra os cruzados que pilhavam a Galiza por volta de 1112. A resposta aos ataques
vikingues entre Galegos e Portugueses ter sido essencialmente terrestre, com a
(re)construo de estruturas defensivas como o Castelo de Guimares ( poca de So
Mamede), a Lanzada e as Torres do Oeste. E, mesmo assim, seriam estruturas bsicas,
sem grande aparato construtivo e, possivelmente, com recurso mais madeira do que
pedra. O que talvez possa ficar a dever-se escassez de meios, em contraste com o
sul muulmano, e que ter tambm contribudo para a construo comparativamente
tardia de uma fora naval.
A falta de recursos, a que se juntava a fragmentao poltica e os conflitos
entre reis e nobres cristos, poder ter deixado o norte ibrico mais exposto aos
ataques nrdicos, na medida em que as autoridades encarregues da defesa militar no
focavam os meios disponveis na luta contra bandos de vikingues. O que levou Joaquim
Verssimo Serro a propor que as investidas piratas reforaram o sentido de
autonomia das comunidades portucalenses, que estavam entregues a si mesmas por
incapacidade do poder rgio (1977, 65-6). Algo que no impossvel, mas convm
olhar com ateno para os detalhes da questo. Os dados histricos so ambguos
quanto resposta da aristocracia portucalense, pois se, por um lado, temos a notcia
de que, durante nove meses, o corao do Condado Portucalense esteve sujeito a
aces de saque de um grupo de nrdicos, um caso destacado por Verssimo Serro,
por outro dispomos do exemplo de Mumadona Dias, que dotou a pequena
comunidade de Vimaranis de uma torre de defesa e local de refgio. E desconhecemos
o sucedido em Vermoim, quando o castelo foi atacado por vikingues, assim como os
contornos exactos do episdio de Santa Maria da Feira, se parte de um padro maior
de participao das autoridades na libertao de cativos ou se um caso nico. Estes
dados tornam difcil perceber quais seriam os sentimentos polticos dos Portucalenses
face s investidas nrdicas, se mais prximos ou mais distantes do poder central, se
mais focados na realidade regional ou apenas local. E a questo adensa-se quando
regressamos ao facto de que no se pode olhar para a situao poltico-militar do
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296
Anexos
297
Trndelag
Vestfold
Uppland
Lago Mlar
Gotland
Smland
Jutelndia
land
Escnia
0
298
200 km
2
1
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12 13
14
21
19
15
16
20
18
17
45
23
44
24
43
26 25
28
22
29 30
31
42
41 40
27
34
36 38 39
33 35
32
37
0
1. Bjarky
2. se
3. Borg
4. Steigen
5. Tjtta
6. Namdalen
7. Steinker
8. Levanger
9. Lade
10. Mre Norte
11. Mre Sul
12/13: Nyset
14. Hordaland
15. Avaldsnes
16. Agder Ocidental
17. Agder Oriental
18. Borre (Vestfold)
19. Msvatn
20. Ringerike
21. Dokkfly
22. Aker
23. Romerike
24. Ostfold
25. Vendel
26. Thy
27. Limfjord Oriental
28. Limfjord Ocidental
29. Viborg
30. Djursland
31. Jutelndia Sul e Funen
32. Zelndia Ocidental
33. Lejre
34. Slinge
35. Uppakra
36. Ravlunda
37. Bornholm (?)
200 km
38. Bleking
39. land Sul
40. land Norte
41. Tjust
42. stgtland
43.Vstergtland
44. Vadsbo
45. Svialand (chefes
em redor do Mlar
com reis em Uppsala e
Fornsigtuna)
299
Hlair
Kaupang
Uppsala
Staraja
Ladoga
Birka
Jelling
Ribe
Hedeby
300
Tiss
0
200 km
Islndia
Orkney
Viken
Limerick
Lindisfarne
York
Dublin
Wight
3
1
4
Hedeby
Rouen
Kiev
Chartres
Gijn
Compostela
Bordus
Camargue
Pisa
Lisboa
Constantinopla
Sevilha
500 km
Anglia Oriental
Northumbria
Mercia
Wessex
301
Corunha
Salns
Lisboa
Costa
de Beja
Beja
302
100 km
Aveancos?
Curtis
Lugo
Compostela
Iria
(Padrn)
S. Estevo
de Boiro?
S. Joo de Coba?
Tui
Ponte de Lima
Guimares
Douro
Mondego
Coimbra
Lisboa
Alccer do Sal
Portimo
100 km
Silves
303
Boimente?
Curtis
Fornelos?
Lugo?
Aveancos?
Compostela
Fornelos?
Cebreiro
Iria
Juncaria?
(Bacariza)
S. Estevo
de Boiro?
S. Joo de
Coba?
Juncaria?
Guimares?
0
304
30 km
Sada
Compostela
Lugo
Catoira?
Tui
Vermoim
Ave
Douro
Porto
Sta. Maria da
Feira
Coimbra
100 km
305
Londres
Rouen
Dl
Loire
Betanzos
Castropol
Aquitnia
Tui
A Guarda
Guadalquivir
0
306
300 km
Compostela
Pontevedra
Sintra
Lisboa
Alccer do Sal
100 km
307
Foz
Compostela
1
4
2
3 Citofacta?
Chantada
Guimares
Lordemo?
Sintra?
308
100 km
(c. 718-737)
Fvila
(737-739)
Alfonso I
(739-757)
Froila I
(757-768)
Aurlio
(768-774)
Silo
(774-783)
Mauregato
(783-788)
Bermudo I
(788-791)
Alfonso II
(791-842)
Ramiro I
(842-850)
Ordonho I
(850-866)
Alfonso III
(866-910)
Diviso do Reino das Astrias pelos filhos de Alfonso III: Garcia em Leo,
Ordonho na Galiza e Froila em Oviedo. Posterior reunificao por este ltimo aps as
mortes de Garcia e Ordonho, mas com nova centralidade em Leo.
Reis de Leo
Garcia I
(910-914)
Ordonho II
(914-924)
Froila II
(924-925)
Alfonso IV
(925-931)
Ramiro II
(931-951)
Ordonho III
(951-956)
Sancho I
(956-958)
Ordonho IV
(958-960)
Sancho I
(960-966)
Ramiro III
(966-984)
Bermudo II
(984-999)
Primeira vez
309
Alfonso V
(999-1028)
Bermudo III
(1028-1037)
Fernando I
(1037-1065)
Alfonso VI
(1065-1072)
Sancho II
(1072)
Alfonso VI
(1072-1109)
Urraca
(1109-1126)
Alfonso VII
(1126-1157)
Reis da Noruega
Haraldr hrfagri
(c. 872-930)
Eirkr bldx
Hkon inn gi
(c. 934-961)
Haraldr grfeldr
(961-c. 970)
Hkon Sigurarson
(c. 970-995)
lfr Tryggavason
(995-1000)
Eirkr Hkonason
Sveinn Hakonason
(1000-1015)
Hkon Eirksson
lfr Haraldsson
(1015-1028)
Hkon Eirkson
(1028-c. 1030)
Sveinn Knutsson
(c. 1030-1035)
Em representao de Kntr
Magns inn gi
(1035-1047)
Haraldr harri
(1047-1066)
Magns Haraldsson
(1066-1069)
(1067-1093)
Hkon Magnsson
(1093-1094)
Magns berfttr
(1093-1103)
lfr Magnsson
(1103-1115)
Eysteinn Magnsson
(1103-1123)
Sigurr jrsalafari
(1103-1130)
310