Uma Familia de Cristaos-Novos

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA

Uma Famlia de Cristos-Novos do Entre Douro e


Minho: Os Paz
Reproduo Familiar, Formas de Mobilidade Social,
Mercancia e Poder

(1495-1598)

Carlos Manuel Valentim


DISSERTAO DE MESTRADO EM HISTRIA MODERNA
ORIENTADA PELO
PROFESSOR DOUTOR A. A. MARQUES DE ALMEIDA
2007

Para as estrelas do cu, que


ao longo da minha existncia me tm
acompanhado nas meditaes
sobre a minha condio de ser mortal,
e nas minhas simples reflexes sobre
o mistrio do Cosmos , e que dia aps dia
continuam brilhantes a muitos milhes
de anos luz , intocveis,
repletas de uma beleza eterna,
muito embora, porventura, j se
tenham extinguido.

NDICE

Pg.

INTRODUO

I- COMPOSIO E REPRODUO
9

FAMILIAR
1- As questes antropolgicas: estrutura familiar,
11

parentesco e consanguinidade
2- Mestre Joo: controvrsia e enigma

13

3- A Formao da Famlia em territrio portugus a


43

reproduo familiar
II- FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO

53

1- A Produo de um Espao Familiar

55

2- O Espao Vital: um Entre Douro e Minho Alargado

57

3- Uma Rede Familiar e Mercantil

69

3.1- Um Novo Ciclo de Negcios

69

3.2- As Boas Oportunidades de Negcio

78

3.3- Famlia e Negcios no Norte Atlntico

85

4- Apropriao e representao do espao: O desgnio de uma


94

rede familiar
III- MOBILIDADE SOCIAL E PODER

113

1- A Mobilidade Social Ascendente numa Sociedade de Ordens

115

2- Expanso Patrimonial e Poder Social

118

3- Ascenso Social e Poder Simblico: uma Elite numa


127

Sociedade Corporativa
4- As Armas o nome e o sangue gravados a ouro
IV- INQUISIO E INTEGRAO
1- Entre a integrao e a assimilao forada

139
143
145

2- A luta contra o estabelecimento da Inquisio Duarte


152

de Paz um lder dos cristos-novos em Roma (1532-1538)


3- Os Vizinhos que nos acusam. A sobrevivncia social

165

4- Do Porto a Istambul. O Mare Nostrum, a Europa um s


178

Espao
CONCLUSO

191

FONTES E BIBLIOGRAFIA

197

AGRADECIMENTOS

En outre, sil est impossible de


trouver en chaque homme une
essence universelle qui serait
la nature humaine, il existe
pourtant une universalit humaine
de condition. [] Ce qui ne varie
pas, cest la ncessit pour lui dtre
dans le monde, dy tre au travail,
dy tre au milieu dautres et dy
tre mortel.
Jean-Paul Sartre, Lexistentialisme
Est un humanisme, Paris, ditons
Gallimard, 1996, pp. 59-60

Uma investigao, que tem como objectivo final uma dissertao


acadmica, sempre devedora de apoios e da gratido a muitas pessoas e
entidades, que directa e indirectamente deram o seu contributo.
No posso deixar de expressar, em primeiro lugar, os meus mais sinceros
agradecimentos ao meu orientador, o Sr. Professor Doutor A. A. Marques de
Almeida, por toda a compreenso e pacincia. de toda a justia referir o apoio
que recebi do Senhor Professor A. A. Marques de Almeida, em termos cientficos e
pessoais. Desde os tempos em frequentei as suas aulas na Licenciatura, sublinhese, que sempre escutei com a ateno e entusiasmo as suas lies. E, refira-se em
abono da verdade, que muitas das leituras que me influenciaram, fortemente,
durante a frequncia da Licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa, vieram por via das aulas e das sugestes do Sr. Professor Antnio Marques
de Almeida. Portanto, o que este trabalho, que agora se apresenta, tiver de bom, ao
Sr. Professor Dr. A. A. Marques de Almeida se deve.
Esta tese foi concluda durante um perodo muito particular da minha vida.
O Sol nem sempre brilhou da mesma forma todos os dias, e muitas foram as
ocasies que procurei a luz dos seus raios, e um novo amanhecer, que por vezes
teimava em no aparecer, por entre uma bruma que ofuscava o meu caminho.
Quero destacar o apoio do meu amigo Alexandre Cartaxo, que reviu o texto
e deu achegas preciosas, numa atitude fraterna e solidria pouco habitual nos dias
que correm, entre seres humanos. Um agradecimento tambm devo ao meu amigo
Antnio Costa Canas, que esteve sempre disposto a ajudar-me e a sugerir a
melhor forma de eu levar por diante este projecto.
Aos meus queridos amigos Vitor Pires Silveiro, Ana Bastio, Ana
Henriques, Reis Videira, Castro Veloso, ilustres Professores da Escola Naval, de
Contabilidade, Matemtica e Programao Informtica, quero aqui publicamente
lembrar que, para alm da ajuda, me proporcionaram inesquecveis momentos de
amizade, de camaradagem e de conversas frutuosas nos ltimos dois anos.
O Vitor Silveiro, bom lembr-lo, teve uma pacincia sem limites, em
relao aos problemas relacionados com a impresso deste trabalho. Por isso,
devo-lhe um agradecimento, que se traduz num profundo respeito, admirao e
numa amizade sincera.
H cerca de oito anos parti numa viagem, em busca das razes de uma
famlia de cristos-novos. Algumas pessoas acompanharam-me em certos
momentos dessa viagem, chamando-me a ateno para pontos importantes, ou
sugerindo as melhores formas para abordar o problema. Cumpre aqui realar o
apoio que desfrutei do corpo de investigao da Ctedra de Estudos Sefarditas,
que nunca me regateou ajudas quando foi necessrio. O Dr. Paulo Mendes Pinto
mostrou-se sempre interessado no andamento da investigao, e em muitos

momentos questionava-me sobre a possibilidade de eu publicar as investigaes,


que ia levando a cabo, nos prestigiados Cadernos de Estudos Sefarditas; Dr. Susana
Bastos Mateus devo uma palavra de agradecimento sincero, pois inclusive alertoume para fontes que era necessrio consultar, e deu-me informaes extremamente
teis para este trabalho de investigao; com a Maria Fernanda Guimares discuti
longamente assuntos de interesse comum, relativos aos cristos-novos de Trs-osMontes e do Norte, e ao seu honroso convite devo a publicao de alguns artigos
no jornal Terra Quente, da cidade de Mirandela, entre 2003 e 2004; ao Professor
Dr. James Nelson quero expressar o meu agradecimento pelo acesso aos seus
trabalhos que ainda se encontravam no prelo, e pelas interessantes discusses que
mantivemos, pessoalmente e por correio electrnico, sobre Duarte de Paz e as
comunidades judaicas/sefarditas do sul de Itlia.
A Professora Dr. Florbela Veiga Frade e o Dr. Joo Carlos de Jesus, de
quem me honro de ser amigo, foram um apoio e uma ajuda constante. Em muitas
ocasies ajudaram-me, mostraram-se solidrios, deram-me conselhos sobre qual
era o melhor caminho a seguir, ouviram-me sempre que eu necessitava de ajuda.
Por isso lhes quero expressar a minha mais profunda amizade e gratido.
Ao Professor Doutor Jos da Silva Horta devo a amizade e sugestes,
sempre muito teis; ao Sr. Professor Doutor Francisco Contente Domingues pela
amizade de anos e pelo saudvel convvio acadmico; ao Sr. Professor Doutor
Srgio Campos Matos um agradecimento pelo incentivo e pela ateno com
sempre me escutou e seguiu o meu trabalho; s senhoras Professoras Doutoras
Maria Leonor Cruz, Maria de Ftima Reis e Maria Paula Maral Loureno,
tambm quero deixar aqui uma palavra de agradecimento pela forma com sempre
se mostraram interessadas no meu trabalho de investigao, incentivando-me em
diversos momentos a prosseguir na senda da investigao.
Por fim, cumpre destacar algumas ajudas que usufrui na Escola Naval,
nomeadamente do Tenente Barroso Braga e do Sargento Castro Monteiro, meu

adjunto no Servio de Museu/Arquivo/Biblioteca da Escola Naval que foi


incansvel na encadernao dos tomos da tese e na juno das muitas centenas de
documentos e papeis que espalhei pela biblioteca.

Os homens fazem a sua prpria histria,


mas no a fazem segundo a sua prpria
vontade, em circunstncias escolhidas
por eles prprios, mas nas circunstncias
imediatamente encontradas, dadas
e transmitidas. A tradio de todas
geraes mortas pesa sobre o crebro
dos vivos como um pesadelo. E mesmo
quando estes parecem ocupados a
revolucionar-se, a si e s coisas, mesmo
a criar algo de ainda no existente,
precisamente nestas pocas de crise
revolucionria que esconjuram
temerosamente em seu auxlio os espritos
do passado, tomam emprestados os seus
nomes, as suas palavras de ordem de combate,
a sua roupagem, para com este disfarce
de velhice venervel e esta linguagem
emprestada, representar a nova cena
da histria universal.

Karl Marx, O 18 de Brumrio de Louis Bonaparte,


traduo de Jos Barata-Moura e Eduardo Chitas,
Lisboa, Edies de Avante, 1984, p.121

RESUMO

O assunto principal da presente dissertao uma famlia de cristos-novos, de


origem espanhola os Paz. Estabeleceram-se em Portugal, no Entre Douro e Minho, em
finais do sculo XV. Num primeiro momento analisamos a identidade de mestre Joo, o
patriarca da famlia, assim como a reproduo familiar e social de todo o grupo familiar, em
territrio portugus.
Seguidamente abordada a produo espao, no qual esta famlia de cristos-novos,
teceu as suas redes de poder; fez os seus negcios e se reforou do ponto de vista
financeiro. Esta actividade mercantil levou, por sua vez, a uma apropriao do espao do
Norte de Portugal. O que materializado nas duas primeiras descries geogrficas, que
apareceram no sculo XVI, redigidas por dois autores que estavam associados famlia.
Um dos pontos que nos mereceu maior ateno, foram as formas de mobilidade
social e os relacionamentos que a famlia estreitou com importantes linhagens do Porto e
Entre Douro e Minho, que se inseriam em poderosas redes cleintelares tuteladas por
elementos da Nobreza e do Clero. Neste caso, concluiu-se que esta famlia de cristosnovos alcanou a mais alta dignidade social, atravs dos ttulos nobilirquicos adquiridos.
A partir de 1530, os Paz comeam a enfrentar dificuldades. Duarte de Paz, filho de
mestre Joo, vai para Roma, como procurador dos cristos-novos portugueses, para
impedir que se estabelea em Portugal a Inquisio. Procedemos anlise da sua actuao
durante os oito anos em que se desdobra em contactos, vive na Santa S, e se relaciona
com o Papa e com os mais altos representantes da Igreja, no logrando contudo impedir a
vinda do Santo Ofcio para terras portuguesas. ento acusado de desbaratar o dinheiro
que lhe tinha sido entrega pelos cristos -novos e desapossado das suas funes.
Entretanto, em Portugal, so movidos processos pela Inquisio a alguns
elementos da famlia que viviam na cidade do Porto. Com base no estudo desses processos,
analisou-se a questo da integrao na sociedade e da progressiva perda de influncia da
famlia Paz no tecido econmico e social.
Finalmente, a partir de um outro processo da Inquisio de Lisboa, estudou-se o
percurso de Tom Pegado de Paz, filho de Duarte de Paz. Partindo da informao que os
testemunhos insertos no documento nos fornecem, procurou-se inferir o tipo de
relacionamento entre a famlia de Tom Pegado, os Paz, mercadores e oficiais da Fazenda,
residentes na cidade do Porto, e a outra famlia de cristos-novos - os Nasci, refugiados no
imprio Otomano.

Nomeado para efectuar certas misses de interesse para Grcia e Joseph Nasci,
Tom de Paz andou de cidade em cidade, de lugar em lugar, convivendo e recolhendo
informaes junto das comunidades judaicas sefarditas, que viviam em cidades como
Ragusa, Salnica, Andreanapolis, Constantinopla. At que um dia foi preso em Florena, e
enviado numa gal, como escravo, a Lisboa. Decorria o ano de 1578.
Os Paz, que foram uma das mais importantes famlias de mercadores cristos-novos
a viver em Portugal, no sculo XVI, sobreviveram socialmente, aps o estabelecimento da
Inquisio, mas com pesados custos, pois foram perdendo progressivamente a sua
influncia social, econmica, poltica e cultural. Porm, o nome Paz haveria de atravessar
os sculos, sempre associado ao Santo Ofcio, e perseguio religiosa dos cristos-novos,
que ocorreram em Portugal, entre os sculos XVI e XVIII.

PALAVRAS-CHAVE

Cristos -Novos
Reproduo Social
Mobilidade Social
Poder
Homens de Negcios

ABSTRACT

The main subject of this dissertation is related to a spanish origin family of new
christians, who named themselves Paz, a christian name. First, we will analize the identity
of Master Joo, the patriarc of the family. We will also devote some attention to the
reproduction in this family and in society, in Portugal, between Entre Douro e Minho, in
late 15th century. Then, we will approach the production of spatial property, in which this
family of new christian, grew their power, ran their businesses and intervened socially.
The aspects that arose our attention to a higher extension were, defintely, the ways
of social mobility and the relationships developed by this family with important royal
families in Porto and in Entre Douro e Minho. In this case, we concluded that these new
chirstians achieved the highest social dignity through noble titles. Starting in 1530, this
fanily faced a period of difficulies. Duarte da Paz, Master Joos son, went to Rome as a
counsellor for the Portuguese new-christians, aiming to prevent that the Inquisition get
settled in Portugal. We proceeded with the study of his life for the following eight years,
when he kept an important number of contacts, lived in Santa S, and maintained a close
relationship with the Pope and high representatives of the the Holly Church. However, he
was unable to imped the Inquisition to reach Portugal.
Meantime, in Portugal, some members of this family living in Porto are caught in
the middle of inquiries and lawsuits filed by the Inquisition. With the study of these
lawsuits, we analized the aspect related to the imposed integration and assimilation of the
new christians, in mid 16th century. Finaly, and starting from another written record of the
Inquisition in Portugal, we studied the life of Tom Pegado de Paz, Duarte de Pazs son.
Through the information from uncertain witnesses, we tried to infer the kind of
relationship between the Paz, merchants and State Officials, living in Porto and another
family of new christians the Nasci who were very powerful financially and were
refugees in the Ottoman Empire. We concluded that several members of the Paz family
remained associated to the dispora connections. The Paz, one of the most important
families of new christan merchants living in Portugal in the 16th century, managed to
survive socially after the establishment of the Inquisition (1536), but the price they paid
was amanzingly high. In fact, they lost their social and financial influence in a progressive.

However, the name of Paz would prevailed through centuries to come, always connected
with the Inquisition and the religious persecution towards the new christians that occurred
in Portugal, between 16th and 18th.

KEY WORDS

New Christians
Social Reproduction
Social Mobility
Power
Businessmen

A famlia Paz era um especimen da nao hebraica em todo


o ponto da terra onde chegou a disperso desses milhes de
homens acossados por um despreso de que elles tiravam
farta desforra com a sua astucia, com o seu trabalho e com as
onzeneiras emprezas do seu dinheiro.
Camilo Castelo Branco, Narcticos. I
Traos de D. Joo 3 (Historia)
Porto, Companhia Portugueza
Editora, 1920, p.79

SIGLAS E ABREVIATURAS

A.D.B. Arquivo Distrital de Braga


A.D. P. Arquivo Distrital do Porto
A.G.C. Agncia Geral do Ultramar
A.H.A.P. Arquivo Histrico Alfredo Pimenta (Cmara Municipal de
Guimares)
A.H.C.M.P. Arquivo Histrico da Cmara Municipal do Porto
ANTT - Instituto dos Arquivo Nacionais/ Torre do Tombo
A. P. H. Academia Portuguesa de Histria
B.A. Biblioteca da Ajuda
B.N. Biblioteca Nacional
C.C.P. - Centre Culturel Portugais
CNPCDP Comisso Nacional Para as Comemoraes dos
Descobrimentos Portugueses
F.C.G - Fundao Calouste Gulbenkian
F.L.U.C.- I.E.H.A.V Faculdade de Letras da Universidade de CoimbraInstituto Estudos Histricos lvaro de Vasconcelos.
I.I.C.T Instituto de Investigao Cientifica Tropical
I.N.-C.M Imprensa Nacional Casa da Moeda
I N I C Instituto Nacional de Investigao Cientfica
J.I.C.U. Junta de Investigaes Cientificas do Ultramar
Ms. - Manuscrito

INTRODUO

INTRODUO

INTRODUO

INTRODUO

A problemtica: uma famlia de cristos-novos na sociedade Portuguesa


formas de mobilidade social ascendente e poder econmico de um grupo
social dinmico no sculo XVI

Os judeus desempenharam na Pennsula Ibrica um importante papel social


durante sculos, quer sob domnio muulmano, quer durante a formao e
consolidao das sociedades da Reconquista crist. Em Portugal h notcia,
desde muito cedo, da sua presena. Acantonados nos seus bairros e dispondo de
um modo de vida muito prprio, aqui j se encontravam quando D. Afonso
Henriques proclamou a independncia do Condado Portucalense no sculo XII
(1143). Na sua grande maioria eram artesos, pequenos e grandes comerciantes,
financeiros, mdicos, homens de leis, funcionrios de corte. Sentiam-se
particularmente atrados pelo comrcio e pela finana. Considerados pela
generalidade da sociedade cristianizada como ameaadores para a ordem
estabelecida, que os tomava como um inimigo temeroso1, eram alvo de
discriminao e de excluso social.
Situava-se a minoria judaica entre a plebe camponesa e a aristocracia
guerreira2. Numa sociedade pouco letrada, brilharam no mundo acadmico e
cientfico como os grandes herdeiros de uma cultura oriunda da fecunda tradio
mediterrnica, pedra basilar dos paradigmas do saber que circularam at ao
advento da Cincia Moderna no sculo XVII.
Em finais da Idade Mdia o povo sefardita3 havia adquirido um prestgio e
poder muito dificilmente igualado por qualquer outra comunidade congnere na

Vide. Antnio Jos Saraiva, Inquisio e Cristos-Novos, 5 ed., Lisboa, Editorial Estampa, 5 ed., 1985,
p.25.
2
Seguimos de perto as propostas de Antnio Jos Saraiva, Ibidem, p. 21.
3
O termo sefardita deriva da palavra de Sefarad, nome que com os judeus designavam a Pennsula
Ibrica. Voltaremos a este assunto no captulo que se segue.
3

INTRODUO
Europa4. Particularmente relevante, foi o seu contributo para a nova economia
monetria que despontava nas cidades nos alvores da Idade Moderna. A lio de
Sombart clarifica, precisamente, o papel de primeira linha que os judeus tiveram
nas profundas transformaes econmicas e sociais que se do na Europa entre a
segunda metade do sculo XV e meados do Sculo XVII5. E no nos pode sequer
parecer estranho o facto do desenvolvimento material poder ser dominado por
uma minoria activa6. Mas ser inevitvel questionar: como se organizavam estes
grupos? Como se compunham? Que comportamentos tinham?
Com objectivos visivelmente polticos e uma ambio mal dissimulada, de
querer unificar a Pennsula sob um nico ceptro, D. Manuel I, pressionado pelos
futuros sogros (Reis Catlicos), promulga em 1496 o dito que lana a minoria
judaica num dilema difcil de enfrentar: o baptismo ou a fuga, a converso
compulsiva ou o xodo desesperado. Muitos optaram por ficar, convertendo-se,
outros, por imposio, fizeram do cristianismo a sua religio. Ao Rei no
interessava a partida destas gentes. Em causa estava a sangria de bens, de
dinheiro, e o vazio que se abriria em algumas funes sociais, apangio da minoria
hebraica durante sculos.
Baptizados, os cristos-novos passam a ter o monoplio das operaes
financeiras: comrcio a dinheiro, a cobrana de impostos, a cobrana de rendas do
Estado e das grandes casas senhoriais, a administrao das alfndegas. Muitos
disseminam-se por vrios locais do Imprio: traficando escravos na costa ocidental
africana, espreitando a ocasio mais propcia para se inserir no comrcio da
pimenta no ndico, negociando o acar da Madeira, amealhando a prata sulamericana, colhendo o pau-brasil das terras de Vera Cruz. D. Manuel, e depois
D.Joo III, tiveram como preocupao salvaguardar certos direitos dos novoscristos. De que maneira? Promulgando medidas de excepo, renovadas
4

Uma boa sntese sobre esta poca encontra-se d-nos Hermann Kellenbenz, A Importncia Econmica e a
Posio dos Judeus Sefardins na Espanha dos Fins Da Idade Mdia, Do tempo e da Histria, IV, 1971,
pp.35-46.
5
Werner Sombart, Les Juifs et la Vie Economique, Paris, Payot, 1923, pp. 9-18 e passim.
6
Pierre Villar extrapola para os dias de hoje essa realidade, Veja-se Problemas da Formao do
Capitalismo, Desenvolvimento Econmico e Anlise Histrica, Lisboa, Editorial Presena, 1982, p. 75.
4

INTRODUO
ciclicamente, que impunham o respeito pelos recentemente baptizados7. Mas ser
que aqueles que se haviam convertido no fim do sculo XV iam a caminho da
assimilao plena quando em 1536 o estabelecimento da Inquisio se torna
definitivo? Esse , sem dvida, um grande debate que tem emergido na
historiografia8. Ento qual ser a melhor via para se entender o percurso, a
socializao e as formas de reproduo desta comunidade? No ser atravs da
anlise das redes familiares?
Este estudo tem, justamente, como objecto de anlise uma famlia de
cristos-novos de Entre Douro e Minho9: a sua estrutura familiar; a forma como os
seus membros interveio na sociedade; a apropriao do espao no qual tecem as
suas redes de poder; os negcios, de mbito local, nacional e internacional; o poder
financeiro, especialmente o relacionamento com outras famlias, tambm elas
poderosas financeiramente; a luta contra o estabelecimento da Inquisio. Para
isso, julga-se da maior convenincia o uso de conceitos operatrios10, onde se ir
alicerar o estudo: elite, poder, mobilidade social, dinmica social, redes de poder,
produo do espao, inovao, regio, reproduo.
Um dos pontos que nos merecer maior ateno a forma como esta rede
familiar produziu o espao11, isto , as suas prticas sociais observadas num espao

Logo em 1497 publica-se uma lei de proteco aos judeus convertidos; depois seguem-se renovaes em
1506 e 1512. Veja-se Meyer Kayserling, Histria dos Judeus em Portugal, S. Paulo, Livraria Pioneira
Editora, 1971. pp.122-127.
8
Antnio Jos Saraiva, contrariamente a outros autores, defende que havia j uma integrao plena. Op.
cit. p. 38.
9
Entre Douro e Minho a designao atribuda a uma regio que, grosso modo, se estende entre o rio
Douro e o rio Minho. Quando o territrio portugus foi dividido em cinco comarcas, esta era a comarca de
Entre-Douro-e-Minho. No texto que se segue, optamos por dispensar o uso dos hfenes. verdade que se
generalizou o uso desta forma e, quanto a ns, serve para designar uma regio que vai para alm daqueles
rios, e que tem fronteiras pouco claras. Cfr. Jos Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, Vol. III,
Lisboa, I.N.- C.M., 1980, p. 25. Muito embora a famlia venha a ficar a associada, tambm, cidade do
Porto, o estudo das fontes indicou-nos que a sua rea de influncia sempre se exerceu por todo o espao de
Entre Douro e Minho.J numa fase final do seu perodo ureo h uma retraco das suas actividades e uma
fixao na cidade do Porto, que no o suficiente para retirar o enquadramento ao espao de Entre Douro e
Minho.
10
Mesmo sabendo que a definio conceptual no domnio das cincias sociais sempre provisria, tal como
nos explica o Professor A. A. Marques de Almeida, Aritmtica Como Descrio Do Real (1519-1679.
Contributos Para a Formao da Mentalidade Moderna em Portugal. Vol. I, Lisboa, I.N.-C.M., 1994 p. 19.
11
Seguimos de perto as propostas de Henri Lefbvre sobre a produo do espao. Cfr. La production de
lespace, 4 ed. Paris, Antropos, 2000, p. 43 e passim.
5

INTRODUO
concreto, formado por uma teia de laos sociais que unem vrios pontos
complementares entre si. rede familiar associa-se uma rede de poder. Poder no
sentido em que Max Weber prope: todos os meios, todos os tipos de aco podem
colocar algum em posio, privilegiada, de impor a sua vontade a uma dada
situao12. Acresce que as relaes de poder so ambivalentes. So, em simultneo,
relaes de autonomia e dependncia. E mesmo o mais autnomo dos agentes
encontra-se dependente, e o mais dependente encontra sempre alguma
autonomia13. Quer isto dizer, que as elites financeiras sefarditas, nos alvores do
capitalismo moderno, enleavam-se em relacionamentos de poder que lhes
ofereciam certo grau de autonomia frente a outros concorrentes e competidores
directos e, paradoxalmente, mergulhavam em dependncias difceis de afastar.
Por outro lado, no ser mais correcto falar em poderes, em vez de poder?
Nas palavras de Foucault A sociedade um arquiplago de poderes14, que se
justapem e influenciam mutuamente. Estudar uma rede familiar impe, por
conseguinte, uma anlise cuidada complexidade de poderes em jogo; s
estratgias que se tecem; aos recursos existentes; s formas de organizao,
mobilidade social e subsistncia; inovaes sociais; processos econmico-sociais,
actividades econmicas. Mas do que que falamos, quando falamos de
Economia? Abordamos, neste trabalho, a Economia, no nos aspectos que
envolvem a tcnica da produo, mas sim no sentido das condies sociais em que
essa actividade se constri, desenvolve, expande e se transforma15.
Na primeira parte desta dissertao discutiremos a identidade de mestre Joo
de Paz, o patriarca, aquele o primeiro da famlia a integrar-se em crculos de
clientelas juntos dos grandes do Reino. De onde ter vindo? Que funes
exerceu? Que papel social desempenhou? Seguidamente abordaremos a

12

Max Weber, Economia y Sociedade (Wirtschaft und Gesellchaft, Grumdriss der Verstehender Soziologie,
Tubingen, 1922), Buenos Aires-Mexico, Fondo de Cultura Economica, 1944, p. 43.
13
Cfr. Anthony Giddens, Dualidade da Estrutura. Agncia e Estrutura, Oeiras, Celta Editora, 2000, p.91.
14
Michel Foucault, Dits et crits(1954-1988), Vol. II (1980-1988), Paris, Editions Gallimard, 1988, p.1.
15
Vide as propostas de Armando de Castro quanto a esta abordagem: As ideias econmicas no Portugal
medievo (sculos XIII-XV), Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1978, pp. 23-24.
6

INTRODUO
reproduo da famlia em territrio portugus. Os filhos, os casamentos da
primeira gerao, o local da residncia.
Tendo em vista a produo do espao, colocar-se-o algumas questes
especficas quanto forma como esta famlia constituiu uma rede de negcios, e
como se apropriou do espao de onde retirava a sua riqueza. Como se estruturava
a rede familiar? De que meios dispunha? Quais os recursos? E os contactos, como
se estabeleciam?
A nova sociedade que nasce de uma ampliao dos mercados, e da construo
de uma economia-mundo europeia, vai possibilitar, por sua vez, novas formas de
asceno social. Os Paz no ficam indiferentes ao mundo novo de oportunidades
que se abre. Estaremos perante uma elite? Quais a sua formas de mobilidade
social? Que lugares de relevo ocuparam?
Procurando entender que impacto a Inquisio teve na famlia, estudamos
alguns processos; analisamos a actuao de um dos seus elementos na Santa S, e
inseriremos a actividade econmica e comercial dos Paz nas redes internacionais.
Finalmente, importa dar explicao para o perodo cronolgico: 1495-1598. A
primeira data deve-se chegada de D. Manuel I ao poder. sob um novo cunho
religioso, aps a converso, que os Paz exercem as mais diversas funes sociais e
que se vo reproduzindo. De 1587 em diante surge na documentao um membro
da famlia, representando em Madrid a misericrdia do Porto. Cidade capital,
eleita por Filipe II centro da monarquia dual, at 1598.

INTRODUO

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR

I
COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR

10

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR

1. As questes antropolgicas: estrutura familiar, parentesco e


consanguinidade
Sobreviveu entre os antiqurios e os genealogistas da cidade do Porto uma
memria que se foi reproduzindo de escrito para escrito, em manuscritos e cdices,
do sculo XVII em diante, sobre uma famlia de cristos-novos: os Paz. Os mais
conhecidos nobilirios, de Felgueiras Gayo16 a Cristvo Alo de Morais17, passando
pelos genealogistas dos sculos XVII e XVIII, que no viram as suas obras
impressas18, revelam dados sobre esta famlia sefardita19, incorporando-a entre as

16

Felgueiras Gayo, Nobilirio de Famlias de Portugal, Braga, Oficinas Grficas de Pax, Carvalhos de Basto,
XII tomos, 1938-1990, Tomo VII, pp. 70-71.
17
Cristovo Alo de Morais, Pedatura Lusitana. Nobilirio das Famlias de Portugal, Tomo I, Vol. II, Porto,
Livraria Fernando Machado, 1944, pp. 656-657.
18
Biblioteca da Ajuda, Linhagens, Cdice 50-IV-8, fl.799; Idem, Frei Manuel de Santo Antnio, Thesouro da
Nobreza das Famlias Gentlicas do Reyno de Portugal, Lisboa, 1799, Cdice 50-V-18, pp. 224-25; Francisco
Antnio Martins Bastos, Nobiliarquia Medica- Notcia dos Medicos e Cirugies da Real Camara, Lisboa, 1858,
p.28. Chama-se a ateno para o facto de os elementos da famlia aparecerem designados, na maioria dos casos,
por da Paz. Confrontando-se os documentos oficiais existentes, sobretudo nas chancelarias, repara-se que a
designao correcta no da mas sim de Paz.
19
Utilizaremos a designao de sefardita, judeu da Pennsula Ibrica convertido fora, ou no, ao
cristianismo, como sinnimo de cristo-novo, na identificao de um grupo social com valores, identidade e
cultura prprios. Mas utilizaremos esse termo com algum cuidado, pois nem todos os cristos-novos que se
encontravam na dispora voltavam ao judasmo ou se consideravam sefarditas. Muitos cristos-novos foram
cristos obstinados, outros nem tanto, e muitos continuaram a professar a f judaica na clandestinidade. Cristonovo passoua designar os judeus que se converteram ao cristianismo, tambm, por vezes, apelidados de
conversos. O que parece no ser muito adequado, o facto de se utilizar este vocbulo como sinnimo de
judeu. Vide Antnio Borges Coelho, "Cristos Novos e Judeus portugueses no advento do Mundo Moderno",
Cristos Novos Judeus e os Novos Argonautas. Questionar a Histria IV, Lisboa, Caminho, 1998, pp.99 100.
Mas precisemos mais um pouco a questo.
O termo sefardita deriva de Sefarad, nome pelo qual era conhecida a Pennsula Ibrica entre os judeus. O
assunto tem motivado acesa discusso, por o termo ser, igualmente, aplicado a outras regies. No entanto,
Sefarad, no seu uso mais corrente, um topnimo bblico que designa indefinidamente a Ibria/Hispnia e
mesmo a costa do Norte de frica. Vide Jos Augusto Ramos, Judasmo e Mediterrneo. Espao, Identidade e
Fronteiras, O Mediterrneo Ocidental. Identidades e Fronteira. Coord. de Maria Graa Mateus Ventura,
Lisboa, Edies Colibri, 2000, p. 75 nota 33; e Cfr. Florbela Veiga Frade, Uma famlia Sefardita do Sculo
XVI: os Mendes Benveniste, Cadernos de Estudos Sefarditas, n. 3, 2003, pp. 127-128.
Por ouro lado, vrios autores tm vindo a utilizar as designaes de: cripto-judeu, marrano e converso,
como sinnimo de cristos-novo. Antnio Jos Saraiva foi um dos fortes opositores ao seu uso generalizado,
que outros, como I.S. Rvah e Julio Caro Baroja, empregaram para designar os cristos-novos e as sua prticas
de judasmo, especialmente aps a introduo da Inquisio, primeiro em Espanha no sculo XV e depois em
Portugal no sculo seguinte. Aquele historiador defendeu, que judeus e cristos-novos so entidades
inteiramente distintas, embora haja entra elas uma ligao histrica. Para Antnio Jos Saraiva, no se pode, nem
deve, confundi-las, sob pena de no compreendermos o problema que nos posto pela existncia dum grupo
social exclusivamente ibrico. Vide Antnio Jos Saraiva, Op. cit., p. 25; Cfr. I.S. Revah, Les Marranes
Portugais et LInquisition Au XVIe Sicle , tudes Portugaises, Publie par les soins de Charles Amiel, Paris,
F.C.G./ C.C.P. 1975, pp. 185-229.
11

mais distintas do

Porto20.

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Nem sempre os factos relatados nestas obras so precisos, e

nem sempre mencionada a ascendncia hebraica da famlia, mas importante


salientar que a grande maioria dos relatos coloca em relevo o papel proeminente que
os seus membros tiveram no tecido econmico e social do burgo, para onde foram
residir em meados do sculo XVI. Os Paz, atravs da sua linha masculina, vieram a
alar-se a importantes cargos e funes na Fazenda e na Universidade; no meio
nutico e no aparelho judicirio. Acrescente-se, em abono da verdade, que em
algumas ocasies diante dos rgos de governo da cidade do Porto, foi o sector
feminino da famlia que fez ouvir a sua voz, defendendo os interesses do grupo
familiar.
Para esta abordagem, importante clarificar os graus de parentesco e a
consanguinidade entre cada um dos membros; inferir a estrutura da famlia, e
discutir a identidade do primeiro e mais influente membro dos Paz: mestre Joo.
Quem eram, na verdade, estes cristos novos? Qual a sua origem? O que os
afamou? Que papel tiveram na sociedade do seu tempo? Como era constituda a
famlia?
Aps discutir a entidade de um dos elementos principais da famlia, a anlise
vai centrar-se na forma como estes cristos-novos se constituiram e reproduziram em
territrio portugus.
So muitas as questes e os problemas que se levantam quando o objecto de
estudo uma famlia, neste caso um grupo familiar muito particular, que detm uma
cultura muito prpria, que se reflete na sua actuao e nas suas prticas sociais.
Tenha-se em conta a questo antropolgica do parentesco e da agnao, neste
primeiro momento do estudo de uma famlia judaica vinda de Castela em finais do
sculo XV, e que se converte ao cristianismo. A famlia permanecia fechada ao
exterior, preferindo inicialmente a endogamia como forma de sobrevivncia num
mundo que lhe era hostil. A transmisso do parentesco vai fazer-se entre vares que
estavam sob o mesmo poder paterno. Estabelecia-se em seguida uma linhagem, de

20

Pedro de Brito, Patriciado Urbano Quinhentista: As Famlias Dominantes do Porto (1500-1580), Porto,
Arquivo Histrico, Cmara Municipal do Porto, 1997, p.138.
12

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


grupos alargados de diferentes ramos de descendentes, organizados numa base
unilinear em funo da ascendncia paterna. A Casa comercial, os negcios, a
actividade scio-econmica tinham como base a famlia, em que filhos e pais
trabalhavam para o mesmo fim: a produo de riqueza, a acumulao de patrimnio
e a promoo social.

2. Mestre Joo: controvrsia e enigma

Na Biblioteca da Ajuda encontra-se um cdice com a cota 50-V-19, contendo


dois manuscritos21: uma cpia do sculo XVI da Tragdia de la Insigne Reina
D.Isabel; e uma traduo do latim para castelhano, permeado de vocbulos e
expresses aportuguesadas, do De Situ Orbis da autoria de Pompnio Mela22. O autor
desta traduo est claramente identificado no frontispcio do manuscrito: Maestre
Joan Faras, bachiler em artes e medeina, fisico sororgiano dell muj alto Rey de Purtugall
Dom Manuell23. A data exacta em que foi efectuada a traduo no se encontra
definida. Tudo indica, porm, tendo em conta a referncia a D. Manuel I e o tipo de
letra do manuscrito, que o texto foi traduzido em finais do sculo XV24. Joaquim
Barradas de Carvalho identificou, nas margens do cdice, para cima de cento e
cinquenta notas, elaboradas pelo punho de Duarte Pacheco Pereira, que da traduo
da obra de Pompnio Mela se serviu amide, utilizando-a como uma das principais
fontes para escrever o Esmeraldo de Situ Orbis25.

21

Este cdice foi noticiado em primeira-mo por Sousa Viterbo, Trabalhos Nuticos dos Portugueses, sculos
XV e XVI, reproduo fac-similada de 1898, com apresentao de Jos Manuel Garcia, Lisboa, I.N. C.M.,
1988, pp. 673-674; e, anos mais tarde, por Carolina Michaelis de Vasconcelos, Tragdia de la insigne Reina
Doa Isabel, 2 Ed., Coimbra, Impressa da Universidade, 1922, p. 14.
22
A traduo da obra de Pompnio Mela encontra-se entre os fls. 2 e 41. Biblioteca da Ajuda, Cdice50-V-19.
23
Biblioteca da Ajuda, Ibidem, fl. 2.
24
A traduo pode ser uma cpia do original, no entanto, at ao momento, no existem nenhumas certezas que
assim seja.
25
Texto redigido entre 1505 e 1508.Veja-se Joaquim Barradas de Carvalho, La Traduction Espagnole Du De
Sitv Orbis de Pompunivs Mela par Matre Joan Faras et les notes marginales de Duarte Pacheco Pereira,
Lisboa, J.I.U.-C.E.C.A., 1974, pp.31-58.
13

Autores como Sousa

Viterbo26,

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Joaquim Bensade27, Carlos Malheiros Dias28,

Frazo de Vasconcelos29, Fontoura da Costa30 e Joaquim Barradas de Carvalho31,


dedicaram parte do seu labor a inquirir a verdadeira identidade deste mestre Joo.
As dedues destes investigadores convergiram para um consenso que se tornou
reinante na historiografia portuguesa32: o autor da traduo do latim para um
castelhano repleto de portuguesismos do De Situ Orbis o mesmo autor que expediu,
em 1 de Maio 1500, uma carta para D.Manuel I33, quando se encontrava a bordo de
um dos navios da armada comandada por Pedro lvares Cabral.
Redigida numa linguagem onde se mistura o castelhano e o portugus, a clebre
carta um testemunho, bastante esclarecedor, dos problemas e das expectativas
tcnicas e mentais com que o meio nutico portugus se debatia na viragem do
sculo XV para o XVI34. Pelo contedo da missiva depreende-se que mestre Joo ia
encarregado de fazer observaes astronmicas, mas teria outras incumbncias, em

26

Veja-se Sousa Viterbo, Trabalhos Nuticos dos Portugueses, sculos XV e XVI, reproduo fac-similada de
1898, com apresentao de Jos Manuel Garcia, Lisboa, I.N.- C.M., 1988, p. 204.
27
Joaquim Bensade, Les lgendes allemandes sur lhistoire des dcouvertes maritimes portugaises, Genve,
1917-1922, p. 71.
28
Carlos Malheiros Dias, A Semana de Vera Cruz, Histria da Colonizao Portuguesa do Brasil, Porto,
Litografia Nacional, 1923, p. 100.
29
Frazo de Vasconcelos, Um documento indito que importa Histria dos Descobrimentos, Petrus Nonius,
Vol. I, n. 1-2, Lisboa, 1937, pp. 105-106.
30
A. Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos, 4 Ed., Lisboa, Edies Culturais da Marinha, 1983,
p. 121.
31
Joaquim Barradas de Carvalho, Op. cit., pp. 25-29.
32
Abordamos este assunto pela primeira vez nas segundas Jornadas do Mar, em Novembro de 2000. Vide
Carlos Manuel Valentim, Mestre Joo Faras: um sefardita ao servio de D. Manuel I, Dos Mares de Cabral ao
Oceano da Lngua Portuguesa, Actas do Colquio, Lisboa, Escola Naval, s/dt. [2001], pp.68-83. Viemos a
publicar o estudo noutro local, com alteraes mnimas: Carlos Manuel Valentim, Mestre Joo Faras um
sefardita ao servio de D. Manuel I, Cadernos de Estudos Sefarditas N. 1, 2001, pp. 167-220.
33
ANTT, Corpo Cronolgico, Parte II, mao 2, n.2. Este documento foi pela primeira vez publicado em 1843
por F. A. Varnhagen, Carta de Mestre Joo Physico del Rei, para o mesmo Senhor. De Vera Cruz ao 1 de
Maio de 1500., Remetida de Lisboa pelo Socio Correspondente []. Revista Trimestral de Historia e
Geografia do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Tomo Quinto, n. 19, Outubro de 1843, pp. 342-344.
A pequena carta gozou de diversas edies, a ltima das quais apareceu em 1999: Os Primeiros 14 Documentos
Relativos Armada de Pedro lvares Cabral, Edio de Joaquim Romero Magalhes e Susana Miranda, Lisboa,
Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999, Documento 13, pp. 91-93.
34
A carta um documento bastante importante, diramos nico, para o estudo da nutica astronmica portuguesa
no incio do sculo XVI, pelas questes de cariz tcnico que so expostas ao longo do texto. Tm sido vrios os
investigadores que se debruaram sobre o seu contedo. A carta tem despertado, tambm, bastante curiosidade e
interesse entre os autores brasileiros, pois mestre Joo fez o primeiro esboo, que se conhece, da constelao do
Cruzeiro do Sul. Veja-se o ltimo estudo, do ponto vista astronmico: Ronaldo Rogrio de Freitas Mouro, O
Cu dos Navegantes. Astronomia na poca das Descobertas, Lisboa, Pergaminho, 2000, p. 145 e ss. Nesta obra,
mestre Joo denominado em algumas passagens por piloto (p. 145, por exemplo), o que no nos parece ser o
termo mais correcto aplicado ao astrolgo.
14

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


nosso entender, provavelmente relacionadas com o negcio das especiarias, j que no
fim do verso do documento se pode ler: de mestre Joham que vai ha Calecut.35
Os dois nicos testemunhos que apontam para a ligao de mestre Joo Faras ao
meio nutico portugus, a traduo do De Situ Orbis e a carta enviada a D. Manuel I,
foram associados pela forma como o seu autor se identifica: pelo mesmo nome
prprio, mestre Joo; pelo mesmo grau acadmico, bacharel em Artes e
Medicina; pela dificuldade com que escreve e se expressa em portugus; pelo cargo
que ocupa, fsico e cirurgio de D. Manuel. Nada de mais significativo se
encontrou. No seria provvel, na opinio dos primeiros estudiosos que se
abalanaram no estudo desta figura, que coexistissem no mesmo reinado dois
bacharis em artes e medicina e dedicados cosmografia36. Posio que veio a ser
reforada pelo comandante Fontoura da Costa. Acentua o autor da Marinharia dos
Descobrimentos: haveria muita coincidncia, se existissem em Portugal, por volta
de 1500, dois bacharis em artes e medicina, exercendo a mesma actividade, fsicos e
cirurgies de D. Manuel I, exibindo o mesmo nome e ambos astrlogos e escrevendo em
espanhol37.
pela forma como est escrita a carta, e pelo vocabulrio utilizado na traduo
do De Situ Orbis de Pompnio Mela muito embora as diferenas dos dois
documentos, na grafia, na fontica e na morfologia sejam significativas38 que a
origem espanhola de mestre Joo apontada sem discusso39. Estaremos em
presena de um nico e mesmo autor? O enigma tem prevalecido. No nos poder
35

Esta frase aparece-nos no fim do diploma.


Carlos Malheiros Dias, A Semana de Vera Cruz, Op. cit., p. 100. Este autor reforava os seus argumentos,
de que seria uma s pessoa, com o facto de os dois bacharis serem oriundos da Galiza. A sua assero,
quanto provenincia regional de mestre Joo, derivava certamente da forma como a traduo do De Situ Orbis
e a linguagem inscrita na carta se apresentavam. Vide Op. cit. loc. cit.
37
Concluso retirada por A. Fontoura da Costa, Op. cit., p. 121.
38
O professor Juan Gil sugere que a traduo da obra de Pompnio Mela uma cpia do original, que foi sujeita
a um barniz lusista. Vide Juan Gil, El maestre Juan Faraz: la Clave de un Enigma, As Novidades do Mundo.
Conhecimento e representao na poca Moderna. Actas das VIII Jornadas de Histria Ibero-Americana/ e XI
Reunio Internacional de Histria da Nutica e da Hidrografia., coord. Maria da Graa A. Mateus Ventura e
Lus Jorge R. Semedo Matos, Lisboa, Edies Colibri, 2003, pp.287-312, p.290. Este artigo, que aqui iremos
fazer referncia, aparece como resposta ao estudo que publicamos nos Cadernos de Estudos Sefarditas, sobre
mestre Joo Faras, e vem no seguimento da publicao da ampla documentao da Inquisio de Sevilha que o
autor tem levado a cabo.
39
O Professor Joaquim Barradas de Carvalho sups, de forma hipottica, que o astrlogo fosse espanhol
aragons, mas reconheceu o sbio professor serem necessrios estudos profundos sobre o tipo de linguagem
empregue nos textos. Vide Joaquim Barradas Carvalho, La Traduction Espagnole ..., p. 20.
15
36

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


surpreender que assim seja. Ao longo da Histria um grande nmero de influentes
autores e cientistas deixaram para a posteridade, nada mais que os seus nomes e a
sua obra40.
Na ltima dcada do sculo XIX um notvel grupo de frequentadores da Torre do
Tombo41, imbudos de um esprito positivista, vasculhou chancelarias, investigou os
arquivos da Inquisio, viu com acuidade o Corpo Cronolgico e as Gavetas da Torre
do Tombo, e outros infindos acervos de documentao, de que foi dando notcia em
revistas especializadas, colectneas documentais ou simplesmente em peridicos
dirios. Entre esses homens de estudo dois sobressaem, pela forma como
transcreveram, e depois disponibilizaram, um vasto corpo documental: Anselmo
Braamcamp Freire e Francisco da Sousa Viterbo. Por motivos diferentes42,
procuraram identificar, numa baliza cronolgica que, grosso modo, vai de D.Afonso
V a D. Joo III, todos os mestres com o denominativo de Joo. Os resultados foram
parcos43 e nada de muito elucidativo ou espectacular revelaram ou acrescentaram ao
que j era conhecido. De facto, no livro da matrcula dos moradores da casa del-Rei
D.Manuel do primeiro quartel do anno de 1518 no consta nenhum mestre Joo

40

As fontes contemporneas so completamente omissas, por exemplo, em relao a autores que marcaram de
forma indelvel o pensamento cientfico, como Euclides ou Ptolomeu. Na Idade Mdia salienta-se o caso
paradigmtico de Johannes de Sacrobosco, autor de uma das obras que mais difuso teve at ao sculo XVII o
Tractatus da Sphera. Sobre a dificuldade que se enfrenta na investigao de uma figura com estas
caractersticas, Vide Olaf Pederson, In Quest of Sacrobosco, Journal of the History of Astronomy, XVI
(1985), p. 175 e ss. Aqui fica o nosso agradecimento ao Sr. Professor Doutor Henrique Leito, por nos ter
facultado a fotocpia deste estudo.
41
Vale bem a pena mencionar alguns nomes: Pinto de Carvalho, Costa Lobo, Gama Barros, Ramos Coelho,
Aires de S, Sousa Monteiro, Antnio Jos Teixeira, Braamcamp Freire, Guilherme Henriques, Teixeira de
Arago, Tefilo Braga, Sanches de Baena, Cristovo Aires, Brito Rebelo, Francisco M. de Sousa Viterbo,
Luciano Cordeiro. Muitos destes investigadores vieram a publicar importantes colectneas documentais ou
estudos de referncia.
42
Anselmo Braamcamp Freire tentava encontrar um mestre Joo da Paz acusado e suspeito, por alguns
autores, de ter envenenado D. Joo II; Sousa Viterbo procurava o elo que fizesse a correspondncia entre o
mestre Joo, autor da carta a D. Manuel e o mestre Joo Faras da traduo espanhola do Situ Orbis.
43
Francisco de Sousa Viterbo encontrou nos livros da Chancelaria de D. Manuel I um documento, referente ao
ano de 1513, que indicava o pagamento de uma tena a um mestre Joo estrolico. Veja-se: Trabalhos Nuticos
Portugueses, Ed. cit. p. 204; J. Frazo de Vasconcelos tentava abrir novas frentes e descobrir algo de novo;
localizara um mestre Joo Alemo, que trabalhava na tentativa de encontrar um mtodo para medir as
longitudes. Ora, como A. Fontoura da Costa concluiria, este mestre Joo nada tinha a haver com o nosso
mestre Joo. Vide J. Frazo de Vasconcelos, Um Documento Indito que Importa Histria da Marinharia dos
Descobrimentos Op. cit., pp. 107-112, e Cfr. A. Fontoura da Costa, Op. cit., p.121.
16

Faras44,

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


nem sequer qualquer mestre Joo. Os nomes dos mdicos e cirurgies a

expostos no deixam dvidas.


NOMES
Mestre Nicolau Fsico

RENDIMENTO/ MS
Leitura impossvel

Doutor Mestre Afonso Fsico-Mor

2.500 Reis

Doutor Joo de Faria Cirurgio-Mor

2.300 Reis

Doutor Diogo Lopes Fsico

2.000 Reis

Mestre Diogo Fsico e Cirurgio

1.600 Reis

Mestre Gil da Costa Fsico

1.500 Reis

Fonte: Antnio Caetano de Sousa, Histria Genealgica da Casa Real Portuguesa,


T. II, I parte, Coimbra, 1947.

Encontrar-se-ia o astrlogo j falecido, ou estaria ao servio de outro grande


senhor, sendo usualmente requisitado quando a coroa entendesse ou necessitasse?
Outra das vertentes a explorar, no sentido de um melhor esclarecimento da
questo, seria certamente a observao das cartas de fsica e cirurgia, pois s o fsicomor e o cirurgio mor a par dos lentes que regiam uma cadeira de fsica no estudo
de Lisboa estavam dispensados da prestao de provas45, gozando, dessa forma, de
amplo poder a fim de examinarem todos os futuros fsicos e cirurgies46, incluindo os

44

Jos Manuel Garcia defende o nome de Farras e no Faras. Vide As Viagens dos Descobrimentos,
prefcio, organizao e notas de [...], Lisboa, Editorial Presena, [s/dt.], pp. 231 e 277.
45
Havendo casos de charlatanismo e muitos curiosos a praticar medicina, na segunda metade do sculo XV,
houve necessidade por parte da Coroa de impor regras e estabelecer mais rigor no acesso profisso. D. Afonso
V promulgou uma norma, na qual se consignava que todos os futuros fsicos e cirurgies fossem reexaminados, a
fim de serem sujeitos renovao peridica das respectivas cartas de exame. As provas seriam prestadas na
Corte perante o Fsico-mor e Cirurgio-mor, que tinham amplos poderes de deliberao sobre a apreciao
tcnica do avaliado. Quem exercesse o ofcio sem estes pressupostos incorria em priso, coimas de vria ordem e
impedimento de o exercer. Vide: Iria Gonalves, Fsicos e Cirurgies Quatrocentistas. As cartas de exame. Do
Tempo e da Histria, I, 1965, pp. 73-74.
46
Os fsicos distinguiam-se dos cirurgies. Estes eram menos considerados socialmente, visto que a sua
profisso tinha um carcter eminentemente manual arte de curar feridas e bobas; enquanto os fsicos faziam
sobretudo o diagnstico da doena com base na consulta dos astros e da leitura de obras de autores da tradio:
Avicena, Galeno, Hipcrates. Idem, ibidem, pp.79-80 e 83. Aos rabes, por via das pujantes comunidades
urbanas na Pennsula Ibrica, durante o seu domnio: Crdova, Sevilha, Toledo, se deve a influncia da medicina
galnica e da cincia aristotlica. Era nestes espaos urbanos que os seguidores da lei mosaica se integravam
com as elites locais. Sero eles os portadores da medicina arbico-galnica - que influencia as prticas mdicas,
as terapias e o diagnstico de doenas - at muito tarde(sc. XVIII). Os mdicos hebreus tm uma grande
influncia nas sociedades ibricas, precisamente at ao sculo XVIII. Em Portugal, entre os sculos XVI e
XVIII, distinguem-se, entre outros, Garcia de Orta, Amato Lusitano, Antnio Ribeiro Sanches.
17

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


que estavam ao servio do Rei. A carta concedida aps a aprovao era o nus,
comprovativo e legal, do exerccio da profisso.
Partimos da seguinte matriz: quem quer que fosse, passou pelos exames de fsica
e cirurgia47, elegemos como ponto de partida, para a nossa investigao, as cartas de
exame, depois de apurados os nomes dos fsicos e cirurgies-mor, e o nome dos
docentes no Estudo Geral de Lisboa. As balizas cronolgicas situaram-se entre o ano
de 1473 e o de 1530; a matriz utilizada tomou em linha de conta o nome de mestre
Joo, o cargo de fsico e cirurgio do Rei, o grau acadmico de bacharel em artes
e medicina, tal como o ano charneira de 1500. Quanto mais prximo desta data,
munido

parcial

ou

inteiramente

das

particularidades

mencionadas,

mais

probabilidades haveria de estarmos perante o famoso astrlogo da armada cabralina.


Para enquadrarmos melhor o estudo, elabormos uma tabela baseada nos dados
das chancelarias com sessenta entradas48. O resultado no poderia ser mais
surpreendente. De todos os mestres Joo encontrados, um destacava-se. Em 26 de
Outubro de 1497 fora confirmada a carta de fsico a Mestre Joo de Paz, fsico e
nosso cirurgio, morador em Guimares49. E logo em 6 de Agosto de 1499 era
confirmada a carta de cirurgia a Mestre Joo de Paz, nosso fsico e cirurgio, morador
em Guimares50. Estvamos diante do nico caso, entre as sessenta entradas, para um
perodo bem definido (1473-1530), contendo o termo mestre Joo, com datas
roando o ano de 1500, aparecendo fsico e nosso cirurgio no primeiro caso e, de
forma ainda mais explcita, no segundo caso, tratando-se do mesmo indivduo,
nosso fsico e cirurgio. Os registos tinham a particularidade de no derivarem da
pena do astrlogo.
Por outro lado, entre as dezenas de cartas consultadas, dentro da fatia temporal
proposta, s se encontrou, singularmente, um Mestre Joo de Buetes, bacharel,

47

Excluindo as duas situaes citadas (fsicos-mor e cirurgies-mor), que eram em nfimo nmero e
relativamente fceis de detectar e identificar. Lembre-se que os cirurgies e fsicos judeus, que se converteram
ao cristianismo e permaneceram em Portugal tiveram de confirmar as suas cartas de exame. Muitos dos que
exerciam Medicina em Portugal eram de origem judaica.
48
Vide quadro com nomes de mestres Joo encontrados nas Chancelarias.
49
ANTT Chancelaria de D. Manuel, liv 30, fl. 22v.
50
Idem, ibidem, liv 14, fl. 55.
18

morador na

Pederneira51(1513),

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


fazendo-nos pensar que a citao do grau

acadmico, por parte das autoridades administrativas, no era acto normativo, mas
sim pontual. Em contrapartida, quem se dirigia ao poder central, ou integrava o seu
nome numa determinada obra, manuscrita ou impressa, tirava partido da situao,
ao chancelar de forma proeminente o(s)seu(s) grau(s) acadmico(s).
Muitos problemas continuavam por esclarecer, tornando-se necessrio seguir a
pista, to longe quanto possvel, proporcionada pela descoberta de mestre Joo de
Paz .
A historiadora Maria Jos Pimenta Ferro Tavares incorpora, num dos seus
estudos, mestre Joo de Paz entre os fsicos e cirurgies que se baptizaram e
mudaram de nome52, com o intuito de permanecerem em Portugal aps a ordem de
converso compulsiva, ou expulso, dos judeus promulgada por D. Manuel em 1497.
Estaramos, neste caso, em presena de um cristo-novo. Martins Bastos, no sculo
XIX, a ele se refere, de facto, na Nobiliarquia Mdica, socorrendo-se de fontes pouco
seguras, maioritariamente nobilirios, dando-o como natural de Mazago, mdico da
cmara de D. JooII e, por baptismo cristo, seu afilhado53.
Em meados do sculo XIX, comeou a formar-se a ideia, com grande tenacidade,
de que o Prncipe Perfeito teria sido vtima de assassinato, por ingesto de veneno. At
porque era sabido, advindo da, por certo, as razes mais profundas desta lenda,
que quando D. Joo II faleceu correra o boato no Porto de que os judeus o haviam
envenenado. Diante dessas notcias, o novo monarca, D.Manuel I, envia uma carta
com data de 27 de Outubro de 1495, assinada em Alccer do Sal, ao procurador e
oficiais da cmara portuense, para prevenirem atitudes mais radicais da populao
contra os judeus, e possveis distrbios que pudessem ter lugar na cidade54.
51

Idem, ibidem, liv 42, fl. 104.


Maria Jos P. F. Tavares, Integrao ou Expulso, Judasmo e Inquisio, Estudos, Lisboa, Editorial
Presena, 1987, p. 46 nota 206. Pela mesma altura havia outro mestre Joo, mas da Paz, castelhano, morador
em Elvas, que beneficiou da cedncia de uma carta de medicina em 23 de Dezembro de 1497. fcil de o
diferenciar do outro mestre Joo de Paz ao servio do Rei. Este aparece, antes daquela data, j com o ttulo de
fsico e cirurgio del rei. Veja-se a Carta de fsica, ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, liv 28, fl. 81v.
53
Francisco A. Martins Bastos, Nobiliarquia Mdica, Notcia dos Mdicos e Cirurgies da Real Cmara, Lisboa,
Imprensa Unio Typogrphica, 1858, pg. 28.
54
Artur Carlos de Barros Basto, Os Judeus no Velho Porto, Separata da Revista de Estudos Hebraicos, Vol. I,
Tomo II, 1929, p.104.
19
52

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Camilo Castelo-Branco retoma o tema do envenenamento de D. Joo II, num
conjunto de textos em forma de ensaio que publicou em 1882 (Os Narcticos),
levantando o dedo acusador contra Joo de Paz, no se resguardando de esgrimir
argumentos denunciadores: Os chronistas de D.Joo 2 nunca nomeiam este medico da
camara real, quando relatam as doenas do rei. (...); mas o judeu converso de Masago ou era
fallecido ou no era chamado nos lances de maior perigo. Fallecido no era, porque tenho prova
de elle sobreviver quarenta annos a D.Joo2. (...) Mas curioso reparo! mestre Joo da Paz
no apparece na lista de physicos de D.Manuel! Ele deu-lhe brazo afidalgou-o com cota
darmas, permittiu-lhe que vinculasse os seus bens na provincia dEntre-Douro-Minho, mas
no lhe quiz dar receitas. (...) porm mestre Paz, que lhe sobreviveu muitos annos, nunca poz
mo nas complicadas mixordias da sua botica. de suppr que o medico opulentado pelos
trinta dinheiros judaicos da perfdia, se retirasse socegadamente s suas quintas do Minho,
onde plantava figueiras em vez de enforcar-se nellas como seu av Judas Kerioth. Ainda
assim, mestre Joo da Paz conservou muitos annos uma correspondencia de certo melindre
com D.Jaime, Duque de Bragana (...)55.
O mdico Manuel Bento de Sousa, em correspondncia trocada com o historiador
Oliveira Martins56 na ltima dcada do sculo XIX, defende similarmente, como
causa da morte de D. Joo II, o homicdio. O clnico, bebendo a informao inserta na
obra de Camilo, faz um diagnstico anlogo ao escritor. Ao acusar a recepo das
cartas, Oliveira Martins encontra algumas incongruncias na argumentao
camiliana. Numa das ltimas missivas expedidas para Bento de Sousa, o seu sentido
arguto de historiador no deixava de questionar toda a trama tecida, trazendo a
terreiro as novas investigaes de Sousa Viterbo, divulgadas em 1894, quando se
comemorava o quinto centenrio do nascimento do Infante D.Henrique. J muito
debilitado pela doena que o consumia, o antigo ministro da Fazenda erguia foras
nos ares frescos da Arrbida para ditar os seus pensamentos: Outro reparo:
ultimamente Sousa Viterbo descobriu um mestre Joo, mdico de D. Manuel, que andou em

55

Camilo Castelo, Narcticos, Companhia Portugueza Editora, Porto, 1920, pp. 24-25 e p.44.
Cfr. Correspondncia entre Manuel Bento de Sousa e Oliveira Martins in O Prncipe Perfeito, Lisboa,
Guimares & C Editores, 1984, pp. CLX-CLXV.
20
56

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


viagens por conta do rei. Se fosse o mesmo, teramos que no figura entre os assistentes do rei,
por andar em viagem (...)57.
Pela primeira vez aparecia uma ligao entre mestre Joo de Paz e a carta escrita
de Porto Seguro em 1500.
Talvez as origens pouco claras de mestre Joo tivessem sido determinantes para o
acusarem de ter envenenado D. Joo II a mando da sua mulher, a rainha D.Leonor,
numa conspirao urdida em conjunto com o Duque de Beja, o futuro rei D. Manuel,
inimigo poltico do Prncipe Perfeito e irmo da fundadora das misericrdias. O clima
de tenso que se vive nos ltimos dias de vida do Rei, motivado pela incerteza da
sua sucesso no , de todo, favorvel a alguns elementos da comunidade sefardita.
E aqui distinguiremos os que se encontravam cativos e os que se ligavam, de forma
clientelar, nobreza que tomava voz nos acontecimentos, ela prpria dividida em
faces, entre os que apoiavam o filho bastardo de D. Joo II, D. Jorge, e os aliados de
D. Manuel58.
Sabemos, actualmente, que a acusao de Camilo Castelo Branco, que desde logo
ganhou adeptos59, foi elaborada sem seguros fundamentos de prova60. Em primeiro
lugar, porque se veio a provar que D. Joo II no morreu envenenado61; e depois
57

Oliveira Martins in Op. cit., p. CLXV.


Alguns nobres estiveram ao lado de D. Joo II no Algarve, nos seus ltimos dias de vida, enquanto agonizava.
Alm do seu filho D. Jorge, os Almeidas, os condes de Abrantes, D. Diogo Lobo, D. lvaro de Castro, o bispo
D. Diogo Ortiz de Villegas. Estes ltimos, daro apoio, mais tarde, a D. Manuel, mas estaro em muitos
momentos, nos anos seguintes, em desacordo com a sua poltica.
Em que moldes se posicionava mestre Joo de Paz? Temos uma certeza: quando se der o regresso do duque de
Bragana, como veremos a seguir, pr-se- ao seu servio, em acumulao com o cargo de fsico e cirurgio
do Rei. Sobre o clima de tenso poltica que rodeia os ltimos tempos de vida de D. Joo II, Vide Jean Aubin,
D. Joo II Devant sa Succession, [], Le Latin et LAstrolabe. Recherches sur le Portugal de la Renaissance,
son expansion en Asie et les relations internationales, II, Lisbonne-Paris, Fundao Caloust Gulbenkian/Centre
Culturel Caloust Gulbenkian, 2000, pp. 49-82, sobretudo p.85 e ss., onde so feitas aluses a algumas clientelas
nobres, que se encontravam divididas
59
Cfr. Anselmo Braacamp Freire, Envenenado, Crtica e Histria. Estudos. Reedio Fac-similada do I
Volume e primeira edio do II Volume, com estudo introdutrio de Jos V. Pina Martins, Lisboa, F.C.G., 1996,
pp. 221-250.
60
Vide Ivo Carneiro de Sousa, A Rainha D. Leonor. Poder, Misericrdia, Religiosidade e Espiritualidade no
Portugal do Renascimento, Lisboa, F.C.G./Fundao para a Cincia e Tecnologia Ministrio da Cincia e do
Ensino Superior, 2002, pp. 61-70. O autor debruasse sobre polmica acusao camiliana, quando lana
suspeitas sobre D. Leonor, e aos autores que a seguiram.
61
No alimentando qualquer pretenso em tratar aqui o tema de forma profunda, podemos referir que quanto
morte de D. Joo II, Ricardo Jorge, professor de Medicina, e o mdico Antnio de Lencastre puseram a nu, no
incio do sculo XX, o mito. No s afastaram a hiptese do envenenamento, como esclareceram a causa da
morte do Prncipe Perfeito. O monarca faleceu por motivo da urmia, provocada por uma nefrite crnica
hereditria. Veja-se J.V. Pina Martins, Anselmo Braamcamp Freire (1849-1921), Investigador e Historiador in
21
58

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


porque os dados disponveis no permitem saber se o astrlogo prestou,
efectivamente, servio para a rainha D. Leonor. Pelo menos no consta na lista de
servidores do seu Pao62. Perante uma anlise mais cuidada da documentao, a
pretensiosa tragdia sustentada por Camilo - que no era um investigador, no
estando em causa a sua ampla erudio literria - cai por terra. As suas concluses
estabelecem a diferena entre a fico e a Histria, mostrando porque que a
Histria no perde o estatuto de narrativa verdadeira, se comparada com as
narrativas mticas ou com as narrativas fictcias que so epopeias, dramas, tragdias,
romances ou novelas63.
Camilo Castelo Branco servia-se dos nobilirios como fonte de primeira linha. E
foi entre os nobilirios portuenses Camilo estudara e vivera no Porto que se
difundiu a notcia de um certo mestre Joo, que fora fsico e cirurgio do Rei, ter
morado na cidade.
Regressemos questo da identificao de mestre Joo Faras e da autoria dos dois
documentos que lhe so atribudos. Juan Gil tentou resolver, de uma vez por todas, o
mistrio que sempre rodeou a identidade do autor da traduo do De Situ Orbis e
da carta escrita em 1500 do Brasil. Segundo aquele Professor houve, na verdade, um
maestre Juan Faraz64 (e no Faras ou Farras). Era de origem judaica65, originrio de
Sevilha, e convertera-se ao cristianismo66. Mas ser que esta revelao vem resolver
Anselmo Braamcamp Freire, Crtica e Histria, Estudos, Lisboa, F.C.G., 1996.
62
Ivo Carneiro de Sousa, Op. cit., pp. 179-182 e pp. 841-888. Anselmo Braamcamp Freire tambm j revelara
no se puder afirmar que a Rainha tivesse tido um mdico que fosse mestre Joo. Vide Op. cit. p. 227.
63
Cfr. Paul Ricouer, Do Texto Aco, Lisboa, Rs, s/dt. p. 177.
64
Passaremos a utilizar agora esta denominao castelhana, Juan Faraz, para a distinguir de mestre Joo. E
aqui pode situar-se outra diferena, ao primeiro olhar pouco visvel. Ou seja, na traduo da obra de Pompnio
Mela o nome que l consta maestre Joan Faras, enquanto na carta mestre Joham.
65
Tal como conclumos em estudo anterior sobre da identidade de mestre Joo Faras. Vide Carlos Manuel
Valentim, Mestre Joo Faras um sefardita ao servio de D. Manuel I, Cadernos de Estudos Sefarditas N. 1,
2001, pp. 167-220.
Lus de Albuquerque e Guy Beaujouan tinham avanado, tambm, com essa hiptese, embora de forma pouco
conclusiva. Lus de Albuquerque, num dos seus primeiros trabalhos historiogrficos: As navegaes e a origem
da mentalidade cientfica em Portugal in Antnio Jos Saraiva, Histria da Cultura em Portugal, Lisboa,
Jornal do Foro, 1953, Vol. III, p. 451, escreve: [...] a avaliar pela linguagem que emprega [mestre Joo]
mesclada de espanhol e portugus, muito provvel que fosse, como outros, de origem judaica, e que tivesse
vindo para Portugal fugido s perseguies que se haviam desencadeado em Espanha contra a sua raa.
Guy Beaujouan, estudioso da cultura medieval ibrica, incluiu mestre Joo na profcua tradio hebraica,
existente na Pennsula, de mdicos e astrlogos . Vide, deste autor, LAstronomie dans la pninsule Iberique a
la fin du Moyen ge, Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXIV, 1971, p.15.
66
Vide Juan Gil, Op. cit., pp. 287-288 e passim.
22

todos os problemas de

autoria67

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


postos por aqueles escritos? a chave do mistrio

que persistiu na historiografia portuguesa durante mais de um sculo? O quebracabeas foi definitivamente resolvido68? A evidncia documental poder apontar
para outra interpretao.
Defendeu Karl Popper que nunca se pode provar que uma teoria cientfica
verdadeira69. Uma teoria cientfica pode, quando muito, descrever e explicar um
mundo que nos acessvel, e fazer previses sobre novas realidades, atravs de
experincias e ensaios que confirmem essas previses. Popper, ainda assim, alerta: tal
assero no nos permite pensar que estamos perante algo de inabalvel e
verdadeiro. O problema no est solucionado definitivamente. O mximo que se
pode afirmar que essa teoria, diante de certos parmetros em que foi testada e
analisada, posta prova e ensaiada, se vai adequar a uma determinada circunstncia.
As verdades no so definitivas, so sempre transitrias. Eis a grande lio
popperiana.
No se podendo afirmar que uma teoria verdadeira, poder-se-, porm, provar
que ela falsa. Como? Com a realizao de testes; pondo prova a sua capacidade
explicativa e verificando se os seus resultados so contrrios s previses.
Quanto s denominadas Cincias Humanas, tudo se passa de maneira
diferente. A comear pela simples circunstncia de no se poderem reproduzir
factos sociais, situaes e mundos passados (isto em relao Histria); no
possvel, portanto, fazer previses nem reprodues exactas do que quer que seja.
Mas as ideias de Karl Popper no deixam de ser teis, na medida em que nos ajudam
a empregar um determinado aparelho terico; ensinam-nos a testar resultados, a
desconfiar de uma realidade aparente, que parece inabalvel; ensinam-nos a
67

O nome de autor, no um nome qualquer, vulgar, esconde no seu interior outras funes, para alm do
prprio nome. Nas palavras de Michel Foucault o equivalente a uma descrio, exercendo em relao aos
discursos um papel classificador, delimitando e seleccionando, individualizando e agrupando. Por isso,
pensamos, o tema da autoria um assunto central em qualquer investigao. Vide Michel Foucault, O que
um autor? 3 Ed., [s/loc.], Vega, 1997, pp. 43-47 e ss.
68
O almirante Max Justo Guedes em trabalho recente, tomou como definitivo a resoluo do problema,
abonando-se no estudo do professor Juan Gil. Veja-se Max Justo Guedes, A Viagem de Pedro lvares Cabral,
A Viagem de Pedro lvares Cabral e o Descobrimento do Brasil (1500 -1501), coordenador [], Lisboa,
Academia de Marinha, 2003, pp. 95-96.
69
Seguimos as ideias deste epistemlogo, contidas em The Logic of Scientific Discovery, 13 Ed., London,
Melbourne, Sydney, Auckland, Johannesburg, Hutchinson, 1980, pp. 27-34.
23

desconstruir um

texto70;

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ensinam-nos, finalmente, que nenhuma teoria concebida em

bases cientficas, e reconhecida pela comunidade cientfica, viver para sempre, nem
est suficientemente completa de modo a impedir a reviso dos seus fundamentos.
Na escrita da histria no h solues definitivas. O que aconteceu est retido
num mundo impossvel de tocar e de alcanar. Isso mesmo salienta o Professor
Marques de Almeida: O historiador no conhece o que realmente aconteceu, e o que chega
ao seu conhecimento uma certa forma de ver, e isso faz com que toda a construo seja
ideacional.71 A discursividade em Histria assenta, assim, na hiptese, na
probabilidade, no que poder ter acontecido. Em suma, numa aproximao
verdade72.
Concretizando, pensamos que os problemas que so levantados pela traduo
do De Situ Orbis e pela carta enviada a D. Manuel, no esto ainda totalmente
esclarecidos, querendo-nos parecer que os dados postos em relevo pelo professor
Juan Gil no so, porventura, suficientes para explicar todas as situaes menos
claras e at, em alguns casos, contraditrias, que esto relacionados com o (s) seu
(s) autor (es).
Nunca se pensou, ou por outra, nunca se explorou suficientemente a
eventualidade de podermos estar perante dois autores distintos73. Houve desde
sempre uma preocupao constante em encontrar dados que pusessem em relevo a
mesma autoria, funcionando este desiderato como obstculo epistemolgico74 a
outras vias de investigao, por parte dos que se debruaram sobre a traduo do
texto de Pompnio Mela e da pequena carta escrita da Terra de Vera Cruz em 1500.
70

Jacques Derrida teorizou sobre a possibilidade de se abordar um texto em diferentes formas.


A.A. Marques de Almeida, Sinais gravados noutros sinais ou histria e legibilidade do mundo, Uma Vida
em Histria. Estudos em Homenagem a Antnio Borges Coelho, coordenao de Antnio Dias Farinha, Jos
Nunes Carreira, Vtor Serro, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, p. 34.
72
E se o conceito actual de Cincia no passa pela verdade demonstrada, mais protagonismo adquirem os
modeles interpretativos. Vide Karl Popper, O Realismo e o Objectivo da Cincia, Lisboa, Publicaes D.
Quixote, 1997, p. 234.
73
Ns tambm camos nesse equvoco quando, em trabalho anterior, esgrimimos argumentos de forma a associar
o autor da carta traduo da obra de Pompnio Mela. Vide Carlos Manuel Valentim, Mestre Joo Faras.,
pp. 183-196.
74
no prprio processo de conhecimento que aparece a perturbao; as incoerncias no detectadas, a
estagnao, os factos que deturpam a realidade e impedem o andamento e progresso do conhecimento. Veja-se,
sobre a noo de obstculo epistemolgico, Gaston Bachelard, La Formation de LEsprit Scientifique, Paris,
Vrin, 1972, p.14.
24
71

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Repare-se, se maestre Juan Faraz e mestre Joo de Paz so personalidades distintas75,
sefarditas, vindos do outro lado da fronteira, tambm haver a probabilidade do
tradutor do De Situ Orbis no ser o autor da carta enviada em 1500 do Atlntico
Sul. Joo era um nome muito comum na poca, havia muitos mestres com a
denominao de Joo, mas a circunstncia, que no deixa de ser sugestiva, que
no se encontrou mais nenhum mestre Joo, a no ser mestre Joo de Paz,
simultaneamente fsico e cirurgio de D. Manuel I, tal como aparece na traduo
e na carta. Para mais, nos dois documentos em confronto, a assinatura do autor
no exposta da mesma forma. No cdice apresenta-se como: Maestre Joan Faras76,
e aqui no acreditamos que haja qualquer erro do copista na transcrio - mesmo que
traduo do De Situ Orbis seja uma cpia do original -, enquanto na carta aparece
mestre Joham77. Se quisermos ir mais longe na anlise crtica da informao que
neste momento dispomos, constatamos que na documentao sevilhana aparece
Johan Faraz (e no Joan Faras), no sendo referido o cargo de fsico e
cirurgio, mas sim criado que fue del serensimo seor Don Manuel, rey de Portugal78.
As dedues do Professor Juan Gil quando analisa, sumariamente, a
morfologia, a sintaxe, a grafia e a fontica dos dois documentos em causa, levam-nos
a pensar que poderemos estar diante de autores diferentes. Enfrentamos, no h
dvida, um problema de difcil resoluo, cuja prova documental precria, mas que
no nos deve intimidar, nem sequer impedir, de tecer consideraes, e efectuar um
raciocnio dedutivo, com o objectivo de alcanar um modelo explicativo satisfatrio e
coerente.
O historiador fica-se em muitos casos pelos indcios, no conseguindo indexar
documentos de prova aos argumentos, por dificuldades de vria ordem, entre outras,
cite-se, a prpria organizao dos arquivos, a falta de edies crticas de fontes e a
complexidade dos cruzamentos metodolgicos e dedutivos que a prpria
75

Durante a investigao deparamos com dois nicos casos: maestre Joan Faras (tal como aparece na traduo
do De Situ Orbis) e mestre Joo de Paz.
76
La geografia y cosmografia de Ponponio Mela, cosmgrafo, pasada de latin em romance por Maestre Joan
Faras, bachiler em artes y em medeina, fsico y sororgiano dell muj alto Rey de Purtugall Dom Manuel. B.A,
Cdice50-V-19, fl. 2.
77
O bacherel mestre Joham fisjco e irurgyano de Vosa Alteza.
78
Documento III in Juan Gil, El Maestre, p.308.
25

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


investigao atingiu, j a operar num novo paradigma o da incerteza e da
probabilidade, que desde da dcada de vinte do sculo XX vem tomando corpo e
forma79.
Para fundamentarmos a posio, que sustenta uma possvel autoria diferente
para a traduo e carta, procuramos obter informao indita sobre mestre Joo
de Paz.
E Diogo Rangel de Macedo fornece-nos, precisamente, alguns dados novos
que vale a pena arrolar, ainda que com certa precauo. Escreve o genealogista:
[...] passou a este Reyno expulsado de Castella o Mestre Joam que fazia publica
profiam da ley Hebrayca, e era muito doutto em Medecina, por cuja cauza o dicto Rey D.
Manoel dezejava muito a sua conversam e como ele era no s doutto, mas de clarissimo
entendimento, com lhe explicarem algus textos que elle intrepretava, mal abraou logo a
verdade da doutrina Christa e abjurou os seus erros, recebendo o baptismo em 24 de Janeiro
de 1496. Em que tomou o nome de Joam em obzequio do Primcepe e aapellido da Paz por
devoam de N. S. que com esta invocassam se festejava naquelle dia.
El Rey D. Manoel o ennobreceu e deu armas novas que so em campo azul hua patra
de pratta entre quatro rosas vermelhas.
Foy muito rico e se estabeleceu na cidade do Porto onde fez huas cazas no stio onde
chamo o Padram de Belmonte e nellas pos as sobreditas armas. Estas cazas vieram a ser de
Manuel Pacheco, primeiro juiz da Alfandega da dicta cidade [...].80
Deste texto, facilmente se deduz: a) mestre Joo de Paz era muito douto; o
autor menciona em Medicina, mas sabemos que os mdicos sefarditas eram em
simultneo, astrlogos, comentadores de textos, matemticos, cosmgrafos e
exerciam ofcios no campo econmico e financeiro; b) mestre Joo era de origem
castelhana, baptizou-se, por vontade do Rei que o desejava ter a seu servio. Fica,
ainda assim, a dvida em se saber qual o prncipe que o honrava com o nome de
Joo. Os nobilirios so unnimes quanto ao enobrecimento atribudo por
D. Manuel I. No que diz respeito ao baptismo existe discordncia, havendo quem
79

Vide A.A. Marques de Almeida, Sinais gravados noutros sinais ou histria e legibilidade do mundo... pp.
42-44.
80
B.N. Reservados, Diogo Rangel de Macedo, PBA 394, fl. 69.
26

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defenda que mestre Joo de Paz foi baptizado por D. Joo II81. Essa poder ser uma
forte hiptese a considerar.
Mais informaes sobre mestre Joo de Paz, sustentadas em documentao
manuscrita, foram colocadas em relevo por Montarroio Mascarenhas82. Escreveu o
editorialista:
Vrias pessoas ouve neste reino com o nome de mestre Joo. [...]
Outro mestre Joo ouve em Barcelos e foi casado com Mecia da Paz filha de Diogo Rodriguiz,
e de Dona Velhinha judia de nascimento que faleceu professando a ley em que se criou como
consta de hua escriptura de contrato celebrada com Genebra da Paz e seus maridos no anno de
1501, a qual se guarda no Archivo Ducal da Cazas de Bragana, onde h muitas memorias
deste homem: em que foi fisico de El Rey e teve algumas mercs na Vila de Barcelos e na de
Guimares por cartas passadas em 21 de Maro de 1497 como consta do livro dos registos da
sua Chancelaria a pagina 46.
Este se appellidava tambem de Joam da Paz, e com este mesmo pronome de mestre Joo se
faz seu procurador bastante Mestre Thomas seu cunhado medico e fisico em Santarem no
anno de 1503 por instrumento publico do Archivo da Serenissima Caza de Bargana no
mesmo libro, mas para cobrar hua divida que lhe pertencia do Duque [].83
Ficava patente a razo de mestre Joo aparecer na documentao como morador
em Guimares84. Alm de prestar servios a D. Manuel, o mdico orbitava na

81

Veja-se, por exemplo, B.A. Linhagens, cdice 50-IV-8, fl. 799, texto de meados do sculo XVII, que refere o
seguinte: Joo de Pax medico da camara del Rei D. Joo que veyo de Mazago e se converteo bautizando-se e
foi el Rei seu padrinho; lhe fez honras, h seus irmaos que viero depois que foro o dito Diogo de Paz e Izidoro
de Pax[...]. De facto, D. Joo II foi padrinho de alguns fsicos bem conhecidos, como Antnio de Lucena, cujo
baptismo relatado por Garcia de Resende. Pensamos ter sido este cdice a fonte de onde partiram os que
defenderam, como Camilo Castelo Branco, ter mestre Joo estado prximo da Corte do Prncipe Perfeito. Mas
repare-se nas incongruncias a referncia a Mazago, e ao irmo Isidro, sendo este afinal seu filho, como
veremos adiante.
82
Jos Montarroio Mascarenhas (Lisboa 1670- 1760), director da Gazeta de Lisboa 1715-1718, introdutor do
jornalismo em Portugal, capito de cavalaria, participou na Guerra de Sucesso de Espanha. O trabalho que a
seguir citamos conta-se entre os seus inditos. As genealogias feitas por este autor tm a particularidade de se
apoiarem em vasta documentao manuscrita, existente nos vrios arquivos nacionais.
83
J.F. Montarroio Mascarenhas, Theatro Geneologico, Biblioteca da Ajuda, Cdice 47-XIII-18, fl. 40V. de
notar que o objectivo deste autor no o estudo de mestre Joo de Paz, mas sim o de um outro mestre Joo que
vivera em Barcelos, pela mesma altura, pai de Pedro Esteves. Sublinhe-se que Mascarenhas transcreve da Paz,
em vez de Paz, semelhana dos autores que a seguir se entregam explorao do tema, muita embora na
documentao rgia aparea de Paz. Facto que aparente ser secundrio, mas que tem importncia no desvendar
dos passos do astrlogo e da sua famlia. Vide Anselmo Braamcamp Freire, Envenenado, Op. cit., p.233.
84
Nas cartas de fsica e cirurgia.
27

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


dependncia da Casa ducal de Bragana; situara a sua residncia no Entre Douro e
Minho e no se negava a receber mercs do Duque, que controlava essas terras85.
Afigura-se, no essencial, estarmos diante, tanto no caso de Juan Faraz, como
de Joo de Paz, de indivduos com uma formao acadmica muito idntica,
imbudos de uma cultura que era comum a toda a comunidade sefardita. No foram
poucos, aqueles que desempenharam um importante papel cientfico e tcnico nas
navegaes ibricas86, favorecidos que eram pelos conhecimentos de lnguas e por
um saber prtico que os distinguiu da escolstica universitria87. Por isso mesmo,
quando se comparam duas personagens desta estirpe torna-se quase impossvel
diferenciar gestos, atitudes, prticas scio-culturais. Alm de que, neste caso em
concreto, semelhana da famlia de mestre Joo de Paz, como se ver, a famlia de
Juan Faraz tinha importantes negcios se bem que no fossem mercadores de

85

Quando nos apercebemos desta ligao, dirigimo-nos ao Arquivo Histrico da Casa de Bragana, a Vila
Viosa, na tentativa de encontrar uma pista que nos conduzisse a mestre Joo de Paz e sua famlia, mas
nenhuns registos encontramos. Ter-se- perdido essa documentao? De facto, os registos da Casa de Bragana
foram varridos por dois grandes incndios: o que foi provocado pelo terramoto de 1755; e um outro que
desbastou uma boa parte da documentao a 10 de Junho de 1821. Vide Manuel Incio Pestana, O Arquivo da
Casa de Bragana. Histria sumria de um notvel acervo documental. Lisboa, Academia Portuguesa de
Histria, 1996, pp.33-47.
86
Colaboravam frequentemente em trabalhos para o aperfeioamento da nutica. Vide Lus de
Albuquerque,Sobre um manuscrito quatrocentista do Tratado da Esfera, Revista da Faculdade de Cincias
da Universidade de Coimbra, Vol. XXXVIII, 1959. p. 154.
A historiografia portuguesa ainda carece de uma obra, de um estudo de fundo, de uma investigao sistemtica,
que problematize, que aborde e estude de forma crtica o papel tcnico e cientfico da comunidade sefardita nos
Descobrimentos e na Expanso portuguesa. Quais foram os seus contributos? Como se organizavam
cientificamente? Que papel tiveram as judiarias na organizao e exportao, para o resto da sociedade, de um
saber tcnico que lhes era familiar? E em seguida, os cristos-novos, que papel tiveram? Como era produzido
esse saber? De que forma aproveitou o poder institudo, essa sabedoria tcnica e letrada? Que alteraes se
deram, aquando das converses em massa? Quando se tratam estas questes h a tendncia para se ficar pelos
casos mais conhecidos (Abraham Zacuto, Jos Vizinho, Pedro Nunes, Garcia de Orta, e pouco mais),
reportando-se o que j fora escrito vezes sem conta. Veja-se, por exemplo, o ltimo grande trabalho, que tenta
problematizar, de forma extensa, at aos dias de hoje, a presena dos judeus em Portugal: Jorge Martins,
Portugal e os Judeus, Volume 1, [s.loc.], Nova Vega, 2006, p.135. O autor nada nos diz de novo, nada
acrescenta ao que foi j escrito: Alis, igualmente o que acontecera com os seus predecessores nutria (D. Joo
II) um grande respeito pela sabedoria judaica []. Ou, conhecida a colaborao judaica, a vrios nveis
(cientfico, humano, comercial, empreendedor), na empresa martima portuguesa []. A anlise no vai mais
longe, no especifica, no detalha, no aprofunda. Joaquim Mendes dos Remdios, Os Judeus em Portugal, I,
Coimbra, F. Frana Amado Editor, 1895, pp. 243-321, de quem Jorge Martins se diz devedor, querendo concluir
a sua obra inacabada, mas que nesta matria no lhe acrescenta nada, foi o autor que at ao momento mais
aprofundou a anlise do papel cientifico e tcnico dos judeus nos Descobrimentos. Maria Jos Pimenta Ferro
Tavares tambm tratou o tema de uma forma geral, e no especificamente virado para os aspectos tcnicos,
analisando sobretudo o papel dos sefarditas no comrcio, na finana e nas relaes politicas internacionais. Vide
da autora, Judeus, Cristos Novos e os Descobrimentos Portugueses, Sefarad, Vol. XLVIII 2 (1988), pp. 293308.
87
Vide Guy Beaujouan, Op. cit, pp. 13-16.
28

projeco

internacional88

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-associados ao arrendamento da recolha de impostos sobre

determinados produtos (madeira, carne, panos) ou rendas de lugares, vilas e cidades


em Castela e eram gestores de capital, profisso corrente entre os cristos-novos89.
Poder mestre Joo de Paz ser o autor da carta enviada a D. Manuel? Se foi
realmente o redactor dessa missiva, que interesses moveram o astrlogo a viajar na
armada comandada por Pedro lvares Cabral?
O bacharel em Artes e Medicina que em 1500 escreve do Atlntico sul, viajava
num navio pequeno, como ele prprio refere ao Rei, sem complexos de
subalternidade90, queixando-se das fracas condies que tinha para trabalhar na
observao do cu: [] por causa deste navio ser muito pequeno e estar muito carregado,
que no h lugar para coisa nenhuma.91 Seria esta a embarcao que fazia parte do
consrcio entre D. lvaro de Bragana, tio do duque D. Jaime, e alguns mercadores
florentinos e genoveses92 detentores de capitais e casas comerciais em Portugal? A
confirmar-se esta assero93, tratava-se da caravela redonda, mercante, Nossa
Senhora da Anunciada (porte: c.100 tonis; tripulao: c.30 homens94), comandada
por Nuno Leito da Cunha.
De salientar que a participao estrangeira nesta expedio se estendia ao
investimento em mais dois navios95, um dos quais, uma nau mercante que se havia
de afundar no Cabo da Boa Esperana, que pertencia a D. Diogo, Conde de

88

Tal como os Paz de Entre Douro e Minho, como mais frente se ver.
Vide Juan Gil, El Maestre.., p. 292.
90
E talvez se queixe desta forma nua e crua, sem ajustes, pensamos, por o navio no ser propriedade do Rei.
91
Forma original: " [...] este navio ser mucho pequeno e mui cargado que non ay lugar pera cosa ninguna
[].A Carta de mestre Joo, In A. Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos, Ed. cit.
92
Sobre os associados comerciais na expedio Veja-se Jaime Corteso, A expedio de Pedro lvares Cabral e
o descobrimento do Brasil, Lisboa, I.N.-C.M., 1994, pp.69-79.
93
Moacir Soares Pereira aventou como hiptese ter mestre Joo viajado na caravela-redonda de bombarda grossa
que deu combate nau dos elefantes em Calicut. Esta caravela, denominada S. Pedro, que era comandada
por Pero de Atade, supe-se que tinha cerca de 70 tonis com uma lotao de cerca de 50 homens na tripulao.
Veja-se do autor, Capites, Naus e caravelas da Armada de Cabral, Lisboa, J.I.C.U., 1979, p. 41. Cfr. Max
Justo Guedes, O Descobrimento do Brasil, Lisboa, Vega, s/dt., p. 159.
94
Vide o quadro esclarecedor que nos d Max Justo Guedes, ibidem, pp. 154-155 e p. 159.
95
Como aponta o Professor A.A. Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas no Comrcio da Especiaria. O
Eixo Lisboa -Anturpia (1501-1549). Aproximao a um estudo de Geofinana, Lisboa, Edies Cosmos, 1993,
apndice, pp.99-100. Este dado vem acrescentar mais um navio aos particulares, e contrariar do que at se
veiculara como certo: o de que investimento particular nesta expedio se reduzia a 2 navios.
29
89

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Portalegre, e associados. A Coroa era, e continuaria a ser nos anos seguintes96, o
grande impulsionador da importao de especiarias97. O assalto aos emprios
comerciais da sia impeliu o poder central portugus a providenciar mais meios,
humanos e materiais, a reestruturar sectores chave das finanas e da administrao
ultramarina98, e a reforar-se burocraticamente, numa clara tentativa de monopolizar
as redes comerciais, que a partir da sia conduziam Europa as to apetecidas
especiarias.
No rescaldo da ligao, pioneira (1497-99), feita atravs do Atlntico, entre
Lisboa e o mundo asitico, de imediato se constatara a necessidade de apostar na
tonelagem e poder de fogo dos navios99, e na explorao diplomtica, atravs do
fomento de alianas e amizades, no interior do complexo mapa poltico do subcontinente indiano100, sendo os judeus e cristos-novos utilizados como lnguas e
agentes diplomticos nos contactos com as entidades polticas locais101.
96

Sobre o papel e o peso da Coroa na importao das especiarias, Veja-se o nosso estudo, O Investimento
Financeiro na Esquadra do 1 Vice-Rei da ndia (1505), Actas do IX Colquio de Histria Martima, Lisboa,
Academia de Marinha, 2007, pp.357-282. Registe-se a escassez de estudos que se tm elaborado nesta rea
financeira. Aps o grande impulso historiogrfico de Vitorino Magalhes Godinho, Manuel Nunes Dias,
Virgnia Rau, Gentil da Silva, A.A.Marques de Almeida, muito pouco se tem produzido.
97
Vitorino Magalhes Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Lisboa, Editorial Presena, 2 Ed.
1982, Vol. II, p. 165.
98
A criao da Casa da ndia no incio do sculo XVI, vem no seguimento dessas medidas. A Coroa, tentando
regulamentar a actividade comercial a seu modo, integrava o comrcio do Oriente num conjunto mais vasto que
englobava os tratos da Guin, da Mina e de Sofala. Vide Joaquim Verssimo Serro, Histria de Portugal.
Volume III O Sculo de Ouro (1495-1580), 3 Ed., revista e aumentada, [s/loc.], Editorial Verbo, imp. 2001,
p.168.
99
Joo de Barros escreve que a segunda armada a partir para o Oriente conuinha mostrar-se muy poderosa em
armas [...]. sia de Joo de Barros, Lisboa, Lisboa, I.N-C.M, 1988, Ed. fac-smile de 1932, Primeira Dcada,
Livro Quinto, p. 170.
100
Vide Filipe Nunes de Carvalho, Do Descobrimento Unio Ibrica, Nova Historia da Expanso
Portuguesa, direco de Joel Serro e A.H. de Oliveira Marques, Volume VI: O Imprio Luso-Brasileiro 15001620 coordenao de Harold Johnson e Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa, Editorial Estampa, 1992, pp. 2324.
101
Por exemplo, Gaspar da Gama, de origem judaica, cativado em Angediva durante a viagem de Vasco da
Gama, e que se veio a converter ao cristianismo, tornando-se conselheiro de D. Manuel I, ter participado nos
preparativos da armada, como perito nos assuntos que diziam respeito ao comrcio. Apresentou folhas de
preos e direitos relativos s mercadorias a serem transaccionadas. Ficou incumbido da redaco de todas as
cartas-credenciais e propostas de tratados de paz e de comrcio a apresentar por Pedro lvares Cabral aos reis
muulmanos, em lngua rabe, porque sabia falar muitas lnguas. Acompanhava Aires Correa. Vide Elias
Lipiner, Gaspar da Gama, um converso na frota de Cabral, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, pp. 105-106.
Recentemente, Lus Filipe Thomaz revelou duas cartas inditas, escritas a D. Manuel por este cristo-novo em
1499, logo aps o regresso de Vasco da Gama, quando ainda no dominava bem o portugus. Aparentemente,
como nos revela aquele historiador, as concepes estratgicas de Gaspar da Gama foram adoptadas por uma
faco da Corte manuelina, que defendia uma expanso comercial no ndico, afastando os planos ousados de um
imperialismo de cariz messinico. Nesta perspectiva, atente-se no peso que os cristo-novos dispunham,
directamente e indirectamente, em matrias de ndole econmico e poltico/estratgico, alm das de cariz
30

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


D. lvaro de Bragana, tio de D. Manuel I, iria investir avultados fundos
financeiros nas duas expedies seguintes que demandariam a Costa do Malabar102,
numa altura em que se efectuava a recomposio patrimonial do ducado de
Bragana, o que denota uma nova forma de conscincia, entre a nobreza,
relativamente ao trato e mercancia103.
Outro facto muito significativo o reparo, quase imediato, por parte dos
particulares e da Coroa, da riqueza da nova descoberta, apesar da expedio ter
como destino prioritrio o Oriente. Quando ficou concludo o reconhecimento do
litoral brasileiro pela armada de 1501, D. Manuel firmou contrato, para explorao da
mata brasileira, com mercadores cristos-novos, encabeados por Fernando de
Noronha, ou Loronha, que se vm consorciar, por sua vez, aos italianos104, entre eles
Marchione105.
Descoberto o caminho martimo para a ndia, que segundo o Professor A.A.
Marques de Almeida contribuiu poderosamente para o alargamento do espao ocenico, a
caminho de uma economia pela primeira vez planetria106, o espao meridional do
Atlntico redobrava de interesse, por ser essencial Rota do Cabo. A sul do equador
jogava-se agora a sorte das armadas que dobravam o continente africano;
procuravam-se novos pontos de apoio logstico que satisfizessem as necessidades do
abastecimento naval, dando-se conta, a pouco e pouco, da importncia econmica da
nova terra.
cientfico que eram bem visveis, no interior da Coroa. Cfr. Lus Filipe Thomaz, Gaspar da ndia e a gnese da
estratgia manuelina no ndico, Actas do IX Colquio de Histria Martima, Lisboa, Academia de Marinha,
2005, no prelo.
102
Nas armadas capitaneadas por Joo da Nova (1501) e Vasco da Gama (1502).
103
A.A. Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas no Comrcio da Especiaria [], p. 69 e apndice, pp.99100.
104
Vide Elias Lipiner, Op. cit., pp. 125-127 e pp. 132 e 142.
105
Que investira, anteriormente, num dos navios da viagem que descobriu o Brasil. Este mercador, no reinado de
D. Joo II, aambarcou grande parte dos resgates africanos: marfim, escravos, malagueta, chegando a pagar
Coroa anualmente pelos contratos mais de 40.000 cruzados. Veio a ter o trato dos escravos at 1487 por
6.300.000 reais; o dos rios da Guin em 1490-1492 por 1.100.000 por ano e depois em 1493-1495 pelo dobro,
pagando muitas vezes de antemo. No reinado de D. Manuel aparece a comprar quatro naus ao rei por 7.037.578
reais; negoceia em acar em barris de atuns; arma para a ndia em parceria com a Coroa para os tratos do
Oriente; preside companhia de mercadores (de que o Rei parceiro), passa letras de cmbio para a Flandres e
Roma, efectua pagamentos armaria Real de Santarm e ao almoxarife dos paos reais de Muge. Veja-se
Vitorino Magalhes Godinho, Op. cit., Vol.III, p.196.
106
A. A Marques de Almeida, A viagem de Vasco da Gama e a sua repercusso econmica na Europa,
Portugal no Mundo, Direco de Lus de Albuquerque, Alfa, Lisboa, 1988, Vol. III, p 20.
31

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Sem dvida que a Anunciada era um dos navios mais pequenos da armada
que larga de Lisboa em Maro de 1500. o prprio Giovanni de Affaitadi ao escrever
a Domenico Pisani, residente em Espanha, que d testemunho dessas dimenses
diminutas, a 26 de Junho de 1501, quando dava conta da chegada desta caravela:
Questo navilio, che venuto, lo piu pcolo de tuti, et del signor Alvaro e tre altri
merchadanti nominati di sopra. Lui lo piu povero de tutti li altri, lo quale porta 300 cantera
de pevere et 200 de canella, nose muscade, lacha, benzui; et porta la novella de esse cosse; de
modo che de tuto vien cargate. 107
No nos poder parecer despropositado supor que mestre Joo de Paz teria ido
nessa viagem. Na obteno das suas cartas, tanto na de fsica como na de cirurgia, em
finais do sculo XV, aparece a residir em Guimares, anos mais tarde vem
estabelecer-se no Porto com a famlia mais prxima108. A ter viajado na armada de
1500, temos assim que, tal como Pro Vaz de Caminha autor da outra importante
carta escrita a D. Manuel, que constitui com a missiva do astrlogo, os nicos
documentos que se conhecem enviados da nova terra descoberta , mestre Joo era
originrio das terras de Entre Douro e Minho, no qual o Porto constitua o seu centro
poltico, econmico e administrativo; e tal como Pro Vaz de Caminha, poderia
tambm mestre Joo no ocupar um cargo em exclusivo ao servio de D. Manuel I109.
Outra evidente coincidncia centrava-se na particularidade dos dois homens, e
respectivas famlias, exercerem cargos similares na Recebedoria de Entre Douro e
Minho, articulados Fazenda110.

107

Carta de la Faitada, in Jaime Corteso, A expedio de Pedro lvares Cabral e o descobrimento do Brasil,
Lisboa, I.N.-C.M., 1994, p.175.
108
Em 1511, ano em que ordenado um dos seus filhos mais novos, ainda se encontra a residir em Guimares Arquivo Distrital de Braga, Cadernos de Matrcula de Ordens da Diocese de Braga, Livro VI-1505/1513,
caderno 14, fl. 3V.. Sabemos, contudo, como veremos, que a sua mobilidade espacial era notvel.
109
Pero Vaz de Caminha ia como futuro escrivo da despesa da feitoria a estabelecer em Calecut, enquanto
mestre Joo poderia ir em servio de D. lvaro de Bragana, no sendo estranho o facto, pois a Coroa
autorizava, como era o caso de D. lvaro, os credores a nomear agentes e capites dos navios que eram
financiados por particulares. Cfr. Manuel Nunes Dias, O Capitalismo Monrquico Portugus (1415-1549.
Contribuio para o estudo das origens do capitalismo moderno, vol. II, Coimbra, F.L.U.C.-I.E.H.A.V., 1964,
pp. 208-209.
110
Sobre Pro Vaz de Caminha e a Recebedoria de Entre Douro e Minho, Veja-se Jaime Corteso, A Carta de
Pro Vaz de Caminha, Lisboa, I.N.-C.M., 1994, p. 34.
32

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As duas epstolas, em nosso entender, concorrem para objectivos muito idnticos.
Aps se terem mantido na sombra, onde tero passado por algumas dificuldades111
no perodo que se segue execuo de D. Fernando de Bragana, e enquanto est
no poder D. Joo II pela simples razo de terem prestado servios ao Duque, mestre
Joo e Pro Vaz de Caminha tentavam conquistar, agora, as simpatias e favores do
novo Rei112. No partilhamos da ideia de que as cartas do escrivo e do astrlogo
foram considerados pela Corte documentos sem valor estratgico113. Esses
argumentos podem revelar a outra face da moeda, isto , se as duas cartas so os
nicos testemunhos expedidos do Atlntico Sul que sobreviveram corroso do
tempo, isso no quer dizer que eram os menos importantes, bem pelo contrrio. Por
terem sido preservados, e nem sequer citados por cronistas/historiadores como Joo
de Barros, mostram o quanto era importante as informaes que continham. Porque
que ter ficado no esquecimento at 1773, um texto como a carta de Pro Vaz de
Caminha, brilhante na descrio antropolgica, cheio de vivacidade nos relatos que
faz, em nada inferior em qualidade literria ao Mvndvs Novus de Amrico
Vespcio114, um dos textos de maior divulgao do Renascimento?
Estamos longe de defender a polmica teoria do sigilo, porque no existiu como
teoria definida, mas a ter existido revelou-se em circunstncias especiais e em casos
limitados no tempo115. No tocante carta de mestre Joo, em particular, h que tomar
na devida conta os dados astronmicos, nuticos, geogrficos e tcnicos de alto valor
informativo. Saber navegar longe das costas, atravs dos regimentos de navegao,
utilizando os astros de forma conveniente, explorando o uso dos instrumentos
111

O desmembramento da Casa de Bragana trouxe dificuldades acrescidas para quem servira nos seus
domnios. Muitos foram perseguidos, outros emigraram, outros ainda tentaram passar desapercebidos diante de
D. Joo II. Sobre este perodo Vide Manuela Mendona, Pro Vaz de Caminha o Homem e a sua
circunstncia histrica, A Carta de Pro Vaz de Caminha, Auto do Nascimento do Brasil, Ericeira, Mar de
Letras, 2000, p. 31.
112
(...) qeria(m) agradar ao monarca para lhe ganhar merc. Defende Joo Rocha Pinto, A Viagem- Memria
e Espao, Lisboa, Livraria S da Costa, 1989, pg. 236, opinio que se entrelaa com a nossa: estas seriam
simples cartas, fugindo oficialidade de outra correspondncia. Mas no quer isso dizer que os documentos
no viessem a ser considerados importantes pela Coroa.
113
Jorge Couto, A Construo do Brasil, Lisboa, edies Cosmos, 2 ed. 1997, pg. 178; Jos A. Vaz Valente,
Duas pginas para El-Rei, Revista Portuguesa de Histria, Tomo XVII, Vol.II, 1977, p. 71.
114
Lus de Matos, LExpansion portugaise dans la Litterature latine da La Renaissance, Lisboa, F.C.G., 1991, p.
288.
115
Carmen Radulet, As Viagens de Diogo Co: um problema ainda em aberto, I.I.C.T., 1988, p. 107.
33

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


nuticos de observao, era tudo quanto se pedia, para aterrar em segurana nos
portos desejados, alcanar com facilidade os locais de comrcio mais apetecidos,
possuir vantagem tecnolgica, decisiva, numa poca onde a via martima era o meio
mais econmico e rpido de estabelecer comunicao. As informaes que mestre
Joo d sobre novos instrumentos de navegao na viagem testavam-se as Tvoas
da ndia(Kamal) -, o grau de latitude da terra austral (com um erro mnimo no
seu valor), as estrelas do cruzeiro do sul, a forma como se observava o Sol, o valor do
astrolbio e do quadrante, no seriam informaes importantes consideradas
estratgicas?
Atente-se no que Foucault nos diz sobre a ordem do discurso: No nos
iludamos; mesmo na ordem do discurso tornado verdadeiro, mesmo na ordem do discurso
tornado pblico e liberto de qualquer ritual exercem-se ainda formas de apropriao de segredo
e de no permutabilidade.

116

Quer isto dizer que o discurso como prtica social

regulada, como sublinha Foucault, til ao poder/ poderes. Em resumo, a produo


de um certo discurso sujeita-se a estar controlada e a ser seleccionada, organizada e
orientada segundo um cdigo de actuao. Na sociedade portuguesa de quinhentos
os processos de produo e circulao do (s) discurso (s) no deviam diferir muito
do que se foi processando, posteriormente, noutros tempos, noutras sociedades e
noutras circunstncias sociais.
Em 1500 procuravam-se novas solues, novas respostas no campo da
marinharia, para os problemas colocados navegao no Atlntico sul. Desde
meados da dcada de setenta do sculo XV que se procurava explorar com eficcia o
oceano situado para l do Golfo da Guin. A linha equinocial, onde se faziam sentir
as calmarias equatoriais, os temidos doldrums, e grande nebulosidade com
precipitao devido convergncia inter-tropical do Alsio sul (sueste) e do Alsio
norte (nordeste), e as fortes correntes equatoriais, fora ultrapassada nessa dcada
pelos navegadores ao servio do mercador-cavaleiro de Lisboa Ferno Gomes. O
descobrimento do oceano Atlntico, das suas terras e povos, s se tornou possvel
atravs do conhecimento emprico das correntes martimas, dos regimes de vento e
116

34

Michel Foucaullt, A Ordem do Discurso, Lisboa, Relgio D gua, 1997, p. 31.

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


dos seus condicionalismos, com os quais se traaram as rotas mais apropriadas,
condio essencial a uma navegao feita com base na vela117.
Seria necessrio compor novos regimentos, tal como os que haviam sido
concebidos anteriormente para as observaes da Estrela Polar e do Sol. Para redigir
novos documentos nuticos era foroso que se observassem os astros a sul do
equador, como se tornou manifesto a partir do ltimo quartel do sculo XV. E quem
melhor para fazer esse trabalho que um astrlogo, que gozasse de prestgio nos
crculos da Corte? Num tempo em que quem lia o Zodaco e consultava
regularmente os astros para prever acontecimentos e curar doenas118, era quem
estava melhor preparado para fazer observaes astronmicas, teis nutica.
Os interesses comerciais misturavam-se com as estratgias polticas, por parte
daqueles que perseguiam a acumulao de fortuna e uma rpida ascenso social. A
necessidade de se encontrar uma estrela no Atlntico sul, que prestasse o mesmo
servio da Polar no hemisfrio norte, a todos interessava, incluindo o Rei e
particulares. Mestre Joo de Paz e a sua famlia, que viam no comrcio uma fonte de
prosperidade, encontravam-se, certamente, entre os que se dispunham a auxiliar a
Coroa, concorrendo com os seus prstimos. Coexistindo em torno do monarca
grupos com diferentes vises da expanso portuguesa um mais afecto a uma ideia
imperial/territorial, outro mais virado para uma expanso mercantil e atlntica -,
bem possvel que as observaes astronmicas do astrlogo servissem muito mais
esta ltima faco do que aquela. At porque o partido liberal mercantil tentava
limitar a expanso no ndico actividade comercial e martima119. A armada de 1500
teria, assim, um duplo encargo: o reconhecimento do Atlntico sul e concluir no
Oriente a misso diplomtica e militar encetada por Vasco Gama120.
117

Vide A. Teixeira da Mota, As rotas martimas portuguesas no Atlntico de meados do sculo XV ao


penltimo quartel do sculo XVI, Do Tempo e da Histria, Vol.III, 1970, p. 16
118
Numa sociedade onde imperava o medo, a insegurana, a angstia do quotidiano, o astrlogo era,
especialmente para as camadas mais elevadas, um conselheiro valoroso detendo um importante papel nas
decises e nas estratgias em jogo. Vide Francisco Bethencourt, Astrologia e Sociedade no Sculo XVI: uma
primeira abordagem, Revista Histria Econmica e Social, Julho-Dezembro, 1981, n. 8, p. 54
119
Vide Joo Paulo Oliveira e Costa, Victor Lus Gaspar Rodrigues, Portugal y Oriente: El Projecto Indiano del
Rey Juan, Madrid, Editorial Mapfre, 1992, pp. 47-51.
120
Cfr. Manuel Nunes Dias, Descobrimento do Brasil. Tratados bilaterais e partilha do Mar Oceano. , Stvdia,
n. 25, Dezembro de 1968, pp. 7-29, p. 25. Este autor vai mais longe na anlise da misso desta expedio,
35

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Como foi referido em passo anterior, pensamos que as tarefas do mestre
Joo que viajava na esquadra comandada por Pedro lvares Cabral, no se
resumiriam, to-somente, arte de navegar, muito menos aos cuidados de sade a
bordo, que costumavam ser resolvidos por indivduos menos qualificados, como
defende Joo Paulo Oliveira e Costa121, em regra barbeiros que dominavam os
simples processos de amputao e sangria dos doentes. Este autor, no deixa de
questionar as funes do fsico e cirurgio, observando que a sua presena nesta
expedio estranha122. Tais dvidas, entroncam no nosso modelo explicativo, que
sugere terem sido as funes do mdico hbridas, isto , de carcter tcnico e
comercial; prestando em simultneo servio para a sua famlia, para o Duque de
Bragana e para a Coroa.
As directivas elaboradas para a armada, acentuando o carcter poltico-militar
da misso, no deixavam de dar especial ateno ao incio das relaes comerciais
com Calecut, o porto do Malabar visitado cerca de dois anos antes pela pequena frota
que abriu o caminho martimo para o ndico. A acalorada discusso que se deve ter
seguido, aps a chegada de Vasco da Gama da ndia, quanto ao rumo poltico a
tomar em relao ao Oriente, est expressa nos dois fragmentos do Regimento que
foram elaborados para a expedio, e que permaneceram inditos at aos nossos
dias123. A leitura do fragmento 19 conclusiva: a viagem ndia (em 1500)
frontalmente um negcio124, no excluindo, liminarmente, o factor religioso e a razo
de Estado.
Estariam mestre Joo e a sua famlia atrados pelo novo comrcio de
especiarias, e ao lado dos que propugnavam uma expanso, mais comercial do que
territorial? Basta pensar, caso estejamos diante de mestre Joo de Paz, que a sua
defendendo que teria um duplo encargo: reconhecimento do Atlntico brasileiro, para que viesse a servir como
base de operaes para a rota do Cabo e ultimao dos contactos no Oriente, iniciados por Gama.
121
Joo Paulo Oliveira e Costa, A Armada de Pedro lvares Cabral. Significado e Protagonistas,
Descobridores do Brasil. Exploradores do Atlntico e Construtores do Estado da ndia, Coord. de [], Lisboa,
Sociedade Histrica da Independncia, 2000, pp. 33-34.
122
Idem, Ibidem, p. 33.
123
Foi Alexandre Lobato que em comunicao Classe de Letras da Academia das Cincias de Lisboa, a 24 de
Outubro de 1968, aquando das comemoraes do V Centenrio do nascimento de Pedro lvares Cabral. Vide
Alexandre Lobato, Dois Novos Fragmentos do Regimento de Cabral para a Viagem da ndia em 1500, Stvdia,
n. 25, Dezembro, 1968, pp. 31-50.
124
Idem, ibidem, p. 37.
36

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


famlia se dedicava ao comrcio, vivia do comrcio, e tudo fez para controlar a maior
parte, seno a totalidade, das alfndegas a norte de Lisboa, durante o primeiro
quartel do sculo XVI, como se dar conta mais frente.
Ir a Calecut assistir fundao de uma feitoria, poder querer dizer que
mestre Joo tambm iria em busca de negcios, na perspectiva de dinamizar os
projectos familiares. Alis, das duas nicas pessoas que mestre Joo nomeia na carta,
uma o castelhano Sancho de Tovar, cujo piloto do navio que comandava desce em
terra na sua companhia e do piloto do capito-mor, para medir a latitude da nova
terra encontrada; o outro individuo que referido Aires Correia, nomeado feitor da
futura feitoria, que deveria permanecer em Calecut, com a misso de assegurar o
abastecimento dos navios que aportassem naquele porto do ndico. O feitor at o
primeiro a ser nomeado, para lembrar ao Rei que muitos j haviam escrito sobre a
forma como estava a decorrer a viagem, inclusive Aires Correa125.
A ter efectuado a viagem, mestre Joo de Paz chega a Lisboa em Junho de
1501. Com efeito, s em 1501, em ms no especificado, que assina publicamente
um contrato com sua irm, Genebra126; e s em 1501 que fica resolvido um
diferendo que mantinha com um mercador de Vila Flor, por causa de umas dvidas.
O devedor, alegando nada dever, declara a 18 de Outubro de 1501: [...] porque dispois
ho dito Joham de Paaz tomara a demanda a ele sopricamte dahy a dous annos peramte os
juizes da ditta villa os ditos duzemtos reaes.127 Aludia o mercador contenda que era
retomada. Por onde ter andado mestre Joo, para no cobrar as dvidas num espao
de dois anos, quando tinha de prestar contas Coroa, como almoxarife, pelos
arrendamentos que estavam a seu cargo?
Se admitirmos que mestre Joo de Paz partiu da regio em fins de 1499 para
aprontamento

da

sua

misso

bordo

da

armada

cabralina,

somam-se

aproximadamente dois anos. A fatia de tempo em que no se encontrou qualquer


prova, at ao momento, de que estivesse no reino.

125

Neste caso o seu escrivo: Pero Vaz de Caminha.


Montarroio Mascarenhas, Theatro Geneologico, B.A. Cdice 47-XIII-18, fl. 40 v..
127
ANTT, Chancelaria de D. ManuelI, Liv. Liv. 37 fl.49 v.
126

37

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


O professor Juan Gil reparou que a carta128 de mestre Joo tem muitos termos
exclusivos de Portugal, muitos ttulos e frmulas derivadas do portugus, visvel no
uso de vocbulos tcnicos de marinharia ou em frases feitas129, que explicvel pela
permanncia do autor em Portugal, durante muitos anos. Algumas edies deste
documento levaram um verniz luso na transcrio dos vocbulos, conclui aquele
investigador130. Mas se houve um verniz luso em algumas das expresses, no
menos verdade que encontramos inconsistncias nas transcries131, e deparamo-nos
com critrios de edio e publicao que no so uniformes. Alguns vocbulos no
foram transcritos da forma mais acertada, tal como certas abreviaturas no foram
desdobradas correctamente, nas edies que foram sendo publicadas, contribuindo
desta feita para um verniz castelhano. Por exemplo, quando transcrito, em
desdobramento da abreviatura, Johan em vez de Joham 132. Ou ainda quando se
transcreve medio em lugar de medjo, e magnifiesto por magnyfiesto. Nas
edies em confronto, o i foi sempre utilizado em detrimento do j, que aparece
no original, e em muitos casos no se transcreveu o y133. Em nossa opinio, os erros
nas transcries do documento tm-se acumulado, sem uma edio crtica do mesmo.
Ainda segundo o Professor Gil, maestre Juan Faraz era um jovem em 1496.
Quando teria vindo para Portugal, supondo que frequentou, obrigatoriamente,
estudos em Salamanca, onde obteve o grau de bacharel? Desde j esclareamos que
Joo de Paz deveria ter uma idade que mediava entre os Faraz , pai e filho. O pai de

128

Redigida em letra cortes que predominava em Castela, segundo Fernando Loureno Fernandes, O PauBrasil e o Descobrimento, A Viagem de Pedro lvares Cabral e o Descobrimento do Brasil (1500 -1501),
coordenador Max Justo Guedes, Podendo este facto reforar a mais do que provvel origem espanhola do autor,
facto que carece no entanto de ser, em nosso entender, mais aprofundado.
129
Juan Gil, El Maestre... p. 290.
130
Idem, Ibidem, loc. cit.
131
Confrontamos a transcrio feita por Antnio Baio, inserta na Marinharia dos Descobrimentos de A.
Fontoura da Costa e a que foi editada em Os primeiros 14 documentos. Em ambos os casos encontramos
incongruncias.
132
Nada nos impede de considerar o desdobramento da abreviatura em Joham e no Johan. Cfr. E. Borges
Nunes, Abreviaturas Paleogrficas Portuguesas, 3 ed., Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
1981, pp. 102-104.
133
Vide a transcrio em anexo da carta, que elaboramos, tendo em conta estas inconsistncias. No fundo,
respeitamos rigorosamente o texto, sem nada lhe acrescentar, alterar ou suprimir, tal como indicam as normas em
vigor para a transcrio e publicao de documentos. Vide Pe Avelino de Jesus da Costa, Normas Gerais de
Transcrio e Publicao de Documentos e Textos Medievais e Modernos, 3 Edio, Coimbra, Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 1993, p. 12 e ss.
38

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Juan faleceu com idade avanada, por volta de 1522134. No que tange a mestre Joo,
segundo o seu testamento, pereceu entre 1535 e 1540135.
Quem por c vivia em 1500 h um bom punhado de anos era, na realidade,
mestre Joo de Paz. Outro facto que salta vista, denunciando um contacto muito
estreito e familiar, de anos, do autor da carta a D. Manuel, com o meio nutico
portugus, , a nosso ver, a revelao de um mapa-mndi antigo para situar a
descoberta da nova terra: Quanto, senhor, ao stio desta terra, mande Vossa Alteza trazer
um mapa-mundo que tem Pro Vaz Bisagudo e por a poder ver Vossa Alteza o stio desta
terra; mas aquele mapa-mundo no certifica se esta terra habitada ou no; mapa antigo e
ali achar Vossa Alteza tambm a Mina.136 Uma revelao desta natureza seria s
possvel, cremos, vinda de algum que conhecia de perto os meandros das
navegaes portuguesas, por um convvio de anos a fio.
No texto da carta infere-se que o seu autor trabalhara amide na feitura de
regimentos de navegao, nomeadamente no chamado regimento do astrolbio137,
mais tarde publicado no Regimento de Munique (c.1508): [] pelo que, segundo as
regras do astrolbio, julgamos estar afastados da equinocial por 17 graus [].138
Repare-se, h precisamente notcia de, em 1513, um astrlogo se deslocar a
Lisboa para trabalhar nos Armazns da ndia. O Rei manda publicar: emquanto nosa
merce for e nos dele (nos) seruirmos nesta cidade, ele tenha e aja de nos tena [...].139 Este
indivduo no poderia ser Juan Faraz, que se sabe ter falecido antes de 1508 ao
servio do Rei de Portugal140. O astrlogo em causa seria, tudo indica, mestre Joo de
Paz, que descia do Norte para trabalhar em Lisboa.
134

Juan Gil, El Maestre... p. 295.


Tal como se percebe atravs de um breve que concede proteco famlia de possveis acusaes da
Inquisio. Em 1542 j era falecido. Veja-se Corpo Diplomtico Portugus, Tomo V, 1868, p.123. Cfr.Anselmo
Braamcamp Freire, Envenenado, Op. cit. p. 235.
136
Na verso original: [] quanto Seor al sytyo desta terra mande vossa alteza traer un napamunji que tyene
pro vaaz bisagudo e por ay podrra ver vosa alteza el sytyo desta terra, en pero aquelel mapamunji non
certyfica esta terra ser habytada, o no: es napamundj antiguo e ally fallara vosa alteza escrita tan byen la mina
[].
137
Facto j ressaltado por Jos Manuel Garcia, Pedro lvares Cabral e a primeira viagem, pp. 186-190.
138
Na linguagem original: [] por lo qual segund las reglas del astrolbjo jusgamos ser afastados de la
equinocial por 17 grrados [].
139
ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 15, fl. 172. Documento publicado por Sousa Viterbo, Op. cit.,
p.204.
140
Cfr. Juan Gil, El Maestre..., documentos I e III em apndice, pp. 307-308.
39
135

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Teria Faraz viajado na esquadra comandada por Pedro lvares Cabral, e
naufragado num dos navios que desapareceram no cabo da Boa Esperana141?
Poderia at o converso sevilhano ter embarcado numa das armadas, posteriores a
1500, que comearam a demandar os mares orientais; ou ento ter falecido de outra
forma que no num naufrgio. Parece mais bvio que o cristo-novo espanhol tenha
morrido prximo de 1508, devido s aluses que so feitas nos documentos sua
morte, ao servio do rei de Portugal, quando uma das suas filhas se casa.
Uma outra conjectura a considerar, ter maestre Juan Faraz e mestre Joo de
Paz viajado juntos na armada comandada por Pedro lvares Cabral, at porque D.
Manuel quando escreve ao rei Catlico

142,

fala no plural, em observaes

astronmicas feitas pelos marinheiros, no Atlntico Sul. Esta terra aonde elles
fundearam situada alm do trpico de cancro em XIIII gros; pois os marinheiros com seus
quadrantes e astrolbios tomaram a altura, porque sempre navegam para aqueles mares com
instrumentos astrolgicos. [] Toda a costa mui bem povoada de gente no muito preta;
frtil, e abunda em fructos de toda a qualidade e em aguas. Pelas observaes feitas pelos
marinheiros, conheceu-se o Plo Antrctico, o Conopo e muitas figuras de estrellas:
observaes que elles me trouxeram: ahi por dez noites continuas viram em direco a frica
um grandssimo cometa, e alm disso viram meia noite o arco ris, o que para ns coisa
inaudita.143
Seguindo a descrio de D. Manuel, natural pensar-se que na armada seguia
mais do que um astrlogo144. Amrico Vespcio quis fazer passar ideia diferente em
carta datada de 4 de Junho de 1501, escrita de Angra de Bezeguiche a Pier Francisco
de Medicis: [] prech non fu essa frotta Cosmgrafo, n Mattemtico nessuno, che fu

141

Henrique Lopes de Mendona defende esta hiptese: Ia embarcado [mestre Joo] num dos navios pequenos,
talvez algum dos que sossobraram mais tarde nas paragens do Cabo. Veja-se Henrique Lopes de Mendona,
Do Restelo a Vera CruzHistria da Colonizao Portuguesa do Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1923, Vol.
II, p.45.
142
Numa carta cuja autenticidade tem sido discutida. Cfr. Consideraes de Jos Manuel Garcia, Jos Manuel
Garcia, Pedro lvares Cabral e a primeira viagem, p. 328, e carta em portugus modernizado p. 330
143
Prospero Peragallo, Carta de El-Rei D. Manuel ao Rei Catholico, Lisboa, Typographia da Academia Real das
Sciencias, 1892, pp. 9 e 11. Carta em portugus modernizado in Jos Manuel Garcia, Ibidem, p.330.
144
Opinio igualmente avanada por Henrique Lopes de Mendona Op. cit., p. 155; e Jos A. Valente, Duas
Pginas Para El-Rei A Carta de Mestre Joo, Revista Portuguesa de Histria, Tomo XVII, Vol. II, 1977, pp.
5-77, p. 56.
40

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


grande errore. Mas vi si diranno cosi discontortamente, como me la contarono, salavo
quello io alcun tanto corretto colla cosmografia di Tolomeo.145
A informao de Vespcio foi rebatida por vrios autores, que provaram a sua
deturpao no relato dos factos. O navegador italiano insere outros dados errados na
correspondncia para Itlia, como seja a partida da frota, segundo ele no ms de
Abril de 1499, o que no certo, pois foi a 9 de Maro de 1500146.
Na chancelaria de D. Manuel I no se encontrou, curiosamente, nenhum
registo ou referncia a Juan Faraz, nem sequer penso que a famlia passou a
auferir depois da sua morte. A situao de Faraz como emigrante, servidor de D.
Manuel I, estranha e pouco clara. O problema da emigrao dos conversos
castelhanos est na ordem do dia nas relaes polticas peninsulares na ltima
dcada do sculo XV, e D. Manuel minimiza constantemente as reclamaes
espanholas. S em aparncia o monarca portugus cede, recusando-se a entrega-los
Inquisio castelhana, particularmente os fugitivos147, que encontravam refgio em
Portugal; no ser este o caso de Juan Faraz, porque continua a pagar Inquisio
sevilhana um foro, em dinheiro, para poder continuar reintegrado na sociedade
castelhana. Assim o faz em 1496, pagando 500 maravedis, apresentando-se em seu
nome, como pagador, Pedro de Palma148, o que indicia estar ausente da Andaluzia.
Estaria em Portugal? Pense-se na sua situao como sbdito de um ou do outro lado
da fronteira. Tinha o pai e o resto da famlia em Sevilha, qual seria a sua mobilidade?
Como se deslocava? Onde permanecia? No nos parece muito lgico que tenha
vindo para Portugal a tempo inteiro, deixando parte da famlia em Sevilha, situao
que no era muito comum entre as famlias conversas que aqui procuravam refgio.

145

Carta de Amrico Vespcio, escrita de Cabo Verde, a 4 de Junho de 1501, a Loureno de Pier Francisco de
Mdicis, in Jaime Corteso, A expedio de Pedro lvares Cabaral, p. 167. Traduo: Viagens portuguesas
ndia (1497-1513). Fontes italianas para a sua histria. Edio de Carmen M. Radulet e Lus Filipe F. R.
Thomaz, Lisboa, CNCDP, 2002. Transcrio e apresentao de Carmen Radulet, Prefcio, traduo e notas de
Lus Filipe F. R. Thomaz, pp. 237-346. [] Pois no foi em essa frota cosmgrafo nem matemtico algum, o
que foi grande erro; mas dir-vos-ei assim descosidamente como ma contaram, salvo que a corrigi eu um tanto
com a cosmografia de Tolemeu.
146
Vide Lus Filipe Thomaz, nota 10 in Viagens portuguesas ndia (1497-1513). Fontes italianas p.329.
147
I.S. Rvah desenvolve este tema. Vide Les Marranes Portugais et lInquisition au XVIe sicle , tudes
Portugaises, publies par les Soins De Charles Amiel, Paris, F.C.G., C.C.P., 1977, p. 192.
148
Vide Juan Gil, El Maestre..., pp. 292-293.
41

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Voltemos ento questo inicial. Quem o autor de uma pequena carta sobre
assuntos de navegao, endereada em 1500 do Atlntico sul a D. Manuel I? Foi
maestre Juan Faraz? Ou mestre Joo de Paz? Quem era maestre Joan Faras? Seria
maestre Juan Faraz? Os novos dados postos em evidncia por Juan Gil permitem-nos
fazer uma leitura a trs nveis. De um lado, supor que Juan Faraz o autor da
traduo do Situ Orbis de Pompnio Mela, ter viajado na armada que partiu do
Restelo em Maro de 1500 e ter sido o autor duma carta para o Rei sobre assuntos
cosmogrficos, viajando em companhia de outros astrlogos, entre os quais mestre
Joo de Paz; do outro, presumir que a autoria da carta seja de mestre Joo, astrlogo,
mercador de Entre Douro e Minho, tambm ele cristo-novo de origem castelhana,
tambm ele fsico e cirurgio de D. Manuel, que escolhera Portugal para residir; no
se rejeitando por inteiro a possibilidade de Juan Faraz viajar na esquadra que
descobriu o Brasil; por ltimo, supor que maestre Joan Faras nada tem a ver com
maestre Juan Faraz, podendo tratar-se do antigo nome de mestre Joo de Paz. Mas
tambm aqui no h prova concludente e irrefutvel, sendo incontestvel, isso sim,
que mestre Joo de Paz, tal como maestre Juan Faraz, eram sefarditas de origem
espanhola, e que estiveram ao servio de D. Manuel I e das navegaes portuguesas
na viragem do sculo XV para o sculo XVI.
O que a documentao regista, como algo incontestvel, mestre Joo de Paz
ter andado prximo dos crculos da Corte, de D. Joo II, D. Manuel I e D. Joo III. As
Relaes privilegiadas que ligaram este cristo-novo Coroa estenderam-se, em
simultneo, alta nobreza cortes, formando uma teia clientelar na qual se inseria a
sua famlia.

3. A Formao da Famlia em Territrio Portugus a reproduo


familiar

At h bem pouco tempo, era muito diminuta a informao que circulava sobre a
famlia Paz. Para alm dos dados contraditrios, e em muitos casos errneos,
42

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


difundidos pelos escritos dos nobilirios, a historiografia portuguesa nada produziu
de relevante acerca da famlia, ainda que permanecesse viva uma memria, quase
sempre tnue, que evidenciava o seu papel econmico e social. Alexandre Herculano,
em meados do sculo XIX, quando estudava a aco de um elemento da famlia em
Roma, Duarte de Paz, entre 1532 e 1540, j aludia escassez de informao que
estava disponvel sobre a composio familiar do representante dos cristos-novos na
Cria romana.
Para responder questo fundamental que se relaciona com a construo das
estruturas econmicas e o papel social desta famlia sefardita, situemo-nos, antes de
mais, na vinda de alguns dos seus membros para terras portuguesas e no posterior
aumento da sua prole, numa poca de profundas transformaes sociais e polticas
que anunciavam a emergncia de uma nova sociedade.
Tanto quanto a documentao e os dados disponveis permitem compreender,
mestre Joo de Paz rumou a Portugal expulsado de Castella149 durante o reinado de
D. Joo II, porque fazia publica profiam da ley hebrayca. Veio, muito possivelmente,
na vaga de milhares de judeus que, acusados de heresia e fugindo ao fogo da
Inquisio, cruzam a raia portuguesa entre 1480 e 1492, em busca de acolhimento e
exlio. A situao dos judeus nos reinos, unidos, de Castela e Arago complicou-se a
partir das Cortes de Toledo, que tiveram lugar em 1480, ao ser decretada uma maior
separao das comunidades, crist e judaica, proibindo-se aos judeus o uso de vestes
de seda e de adornos de ouro e prata, tal como as regras da sua actividade
financeira150.
O astrlogo abandonou Castela acompanhado, decerto, pelos seus irmos Diogo,
Genebra, Henrique e Maria151. Quando alcanam Portugal estabelecem-se no Norte,
onde j se encontrava Rui Mendes, um dos cunhados de mestre Joo. Consta na
Chancelaria de D. Afonso V uma carta de doao da dzima do pescado dos canais
149

Segundo Diogo Rangel de Macedo, Op. cit., fl. 69.


Vide Joaquim Choro Lavajo, A Expulso dos Judeus portugueses. Erro ou equvoco?, Os Judeus
Sefarditas Entre Portugal, Espanha e Marrocos, Colquio Internacional, Coordenao de Crmen de Ballesteros
e Mary Ruah, Lisboa, Edies Colibri, Associao Portuguesa de Estudos Judaicos, CIDEUS.UE (Centro
Interdisplinar de Histria, Cultura e Sociedades da Universidade de vora,), pp. 19-48, p. 21.
151
Estes so os nomes de baptismo cristo que nos aparecem na documentao. Vide corpo documental em
anexo.
43
150

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


do Douro a Rui Mendes, que exercia o cargo de vedor do bispo de Lamego152. Mais
tarde, aquando dos tempos conturbados da converso geral de 1496-97, Rui
Mendes, sendo um dos judeus que permanece em Portugal, recorre para a
Chancelaria rgia153, rogando por confirmao da doao dos canais, pescarias e
vargas do Douro em Lamego. Tinha entretanto cessado as funes de vedor do
bispado da cidade, e ido incorporar a Fazenda rgia no honroso cargo de Contador
do Entre Douro e Minho.
O cunhado de mestre Joo casara em primeiras npcias com Justa de Paz,
certamente irm do fsico, resultando desse casamento trs vares: Heitor Mendes,
Francisco Mendes e Gonalo Mendes. Todos eles vieram a residir em Lamego, mas
detm funes e cargos no Entre Douro e Minho. Heitor Mendes desposa Isabel, e
tem duas filhas, Filipa Mendes e Justa de Paz. Esta que ostentar o nome da av,
veiculando a memria familiar, casa com Jernimo Fernandes, mercador e rendeiro
de Lamego, da famlia dos Fernandes. Jernimo era neto de mestre Rodrigo, e filho
de mestre Fernando, afilhado de D. Manuel I, e tinha trs irmos Rui Fernandes,
Jcomo da Fonseca e Antnio da Fonseca154. O primeiro ser sempre celebrizado
como o autor da descrio dos terrenos volta de Lamego (1531-1532). Repare-se,
que o av da sua cunhada, Rui Mendes, j tinha esse saber geogrfico, pois consta
na carta de doao da dzima do pescado dos canais do Douro informao sobre as
riquezas do pescado que proliferavam no Douro, e acerca das potencialidades do
imposto a cobrar, que o prprio enviou ao Rei, por isso reservou para si esse
monoplio.
O Contador de Entre Douro e Minho casa uma segunda vez, escapando-nos a
razo por que o fez, possivelmente por viuvez. A nova boda efectua-se com Ana
Rodrigues de Carvalho, de quem ter oito filhos, todos com o apelido da me155. Os
trs rapazes: Joo Mendes de Carvalho; Henrique da Cunha, o segundo filho mais
152

Histria Florestal, Aqucola e Cinegtica. Colectnea de Documentos existentes no Arquivo Nacional da


Torre do Tombo. Chancelarias Reais Vol. II (1439-1481), Lisboa, Ministrio da Agricultura, Comrcio e
Pescas, Direco-Geral das Florestas, 1982, Doc. 557
153
Ibidem, Vol. IV (1495-1521), Lisboa, 1983, Doc. 98.
154
Uma descrio parcial da rvore genealgica, encontra-se na ANTT, Inquisio de Lisboa, Processos 3225 de
Justa de Paz e 12994 de Jernimo Fernandes.
155
Sobre este casamento Vide Pedro de Brito, O Patriciado Urbano [], pp. 110-111.
44

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


velho a quem passar o ofcio de Contador de Entre Douro e Minho; Cristvo
Mendes de Carvalho, outro dos seus filhos; tal como D. Branca da Silva, fereira em
St Clara; Ceclia Mendes de Carvalho; Brites Mendes de Carvalho; e Violante
Mendes de Carvalho.
Constatamos que no seguida a ordem da sucesso, definida por critrios de
idade, na atribuio do ofcio de Contador, o que tambm se aplica outra parte da
famlia, residente em Lamego, pois se assim fosse esta teria preponderncia156.
A entrada da famlia em Portugal pelo Norte e o local da sua primeira residncia,
uma escolha que no difere muito dos locais que haviam sido eleitos pelas
comunidades judaicas quando vieram instalar-se em territrio portugus nos sculos
precedentes. De facto, a penetrao dos sefarditas, vindos da Meseta, no espao mais
ocidental da Pennsula Ibrica, fazia-se por via terrestre numa direco orienteocidente. Por isso mesmo, muitas das judiarias germinavam em concelhos
relativamente prximos da linha fronteiria, denunciando a existncia de um
rendoso comrcio, oficial ou clandestino, feito por estes grupos sociais com o
objectivo de participar num mercado de produtos e bens que no reconhecia
fronteiras polticas157.
Ajudando-nos na compreenso dessa realidade, a Professora Suzanne Daveau
ilustrou de forma irrefutvel como recente o actual esvaziamento humano e
econmico da faixa raiana. A repartio da populao nos sculos XV e XVI indica
como ao longo da fronteira se multiplicavam vilas e centros urbanos de certa
importncia, sugerindo activas trocas com a vizinha Castela158.

156

Pedro de Brito, ibidem, questiona-se sobre esta ordem de sucesso. Uma possvel explicao advir do facto
de Rui Mendes querer esconder a identidade destes filhos, no seguindo qualquer ordem lgica na sucesso do
seu cargo, muito menos associando-lhes o nome. E aparentemente o futuro veio a dar-lhe razo, pois sabemos
hoje que os seus netos, descendentes do primeiro casamento, que viviam em Lamego, foram apanhados na malha
da Inquisio.
157
Cfr. Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no Sculo XV, Vol. I, Lisboa, Universidade
Nova de Lisboa Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, 1982, p. 43.
158
Suzanne Daveau, Comentrios e Actualizao a Orlando Ribeiro, A Tradio Cultural e a Formao do
Estado, [], Hermann Lautensach, Geografia de Portugal. III. O Povo Portugus, Lisboa, Edies Joo S da
Costa, 1989, p.676.
45

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Refira-se que a palavra fronteira tinha uma conotao bem diferente daquela que
veio a adquirir. Significava, nas suas acepes, movimento, marcha, embate, choque,
encontro159.
Em 1537, D. Joo III, visando uma melhor delimitao do territrio nacional,
enumera os portos secos pelos quais devia decorrer o comrcio com a vizinha
Castela. Mendo Afonso encarregado de inspeccionar esses locais, iniciando a 31 de
Julho desse ano um percurso que completa no ano seguinte, pela raia entre Castro
Marim e Caminha; visita setenta lugares auscultando os oficiais da Coroa sobre a
demarcao fronteiria, e compe marcos160. D conta que h aldeias msticas que
dividem pastos e levam uma vida comunitria, no reconhecendo fronteiras, de um e
do outro lado.
So casos de indefinio fronteiria, de espaos abertos, que permitiam uma
maior fluidez da vida social e comunitria. Nesses locais fronteirios, os Paz iriam
fazer circular mercadorias, canalizando por a grande parte da sua fortuna.
Douto e sbio, de clarssimo entendimento161, depreende-se pelas fontes que at
ns chegaram que mestre Joo era muito solicitado pela elite nobilirquica para
prestar servios de astrologia e medicina. Acabar por abraar o cristianismo e
mudar de nome. As fontes nobilirias do-no como natural da praa marroquina de
Mazago, tal como os seus irmos162. Porm, verifica-se que aqueles que so
imputados como seus irmos so afinal seus filhos e sobrinhos, nada se encontrando,
em concreto, relativo vinda de Mazago do mdico de D. Manuel e da sua famlia.
Mas esta cidade marroquina ficou, na verdade, associada famlia. Duarte de Paz, o
filho mais velho do astrlogo, a perdeu uma vista em combate163, e Antnio Leite,
oriundo de uma importante famlia do Porto que firmar um acordo nupcial com os
Paz, governador de Mazago na segunda dcada do sculo XVI164.
159

Lucien Febvre, Frontire: le mot el la notion, pp. 11-24, p. 13


Vide Isabel M.R. Mendes Drumont Braga, A Fronteira Difusa entre Trs-os-Montes e a Galiza ou as
Povoaes Msticas de Santiago, Rubies e Meos., Separata da Revista Brigantia, ns 3-4, Julho/Dezembro,
1997, pp. 5-11.
161
Diogo Rangel, Op. cit., fl. 69.
162
B.A., Linhagens, Cdice 50-IV-8, fl. 799 e Francisco Antnio Martins Bastos, Op. cit., p. 28.
163
Como adiante veremos, Duarte de Paz, acompanhou o Duque de Bragana na tomada da praa de Azamor.
164
Sobre Mazago e a administrao de Antnio Leite, Vide. Jos A. R. da Silva Tavim, Os Judeus na Expanso
46
160

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Mestre Joo e os seus irmos vm para Portugal numa fase de afirmao poltica
das monarquias ibricas. A unificao de Castela e de Arago, fortalecida com a
derrota das pretenses portuguesas a ocupar o trono de Castela (1474-1480), no
decorreu pacificamente no que tange ao campo social. As tenses sociais
irromperam,

extrapolando

as

fronteiras

castelhanas.

Os

grupos

religiosos

minoritrios, judeus e mouros, tornaram-se os bodes expiatrios das exaltaes


nacionalistas e dos estratos sociais em processo de ascendncia social, enquanto se
erguiam as estruturas da unificao castelhana e aragonesa165. A evoluo paralela
dos acontecimentos, de um e de outro lado da fronteira, obrigou os reinos ibricos a
procederem a ajustes internos. Sucederam-se as movimentaes diplomticas, na
busca dos alinhamentos polticos, culminando em 1496-97 com um acordo entre as
duas partes, de Castela-Arago e Portugal, selado pela boda entre D. Manuel e a filha
mais velha dos reis Catlicos.
Ao cruzar a fronteira, mestre Joo ter-se- posto ao servio dos duques de
Bragana. Em 1479 j h notcia de um mestre Joseph, fsico da duquesa de Bragana,
a vender umas casas no Porto, junto judiaria166. Os senhores que vigiavam a
fronteira norte de Portugal, a Casa senhorial mais poderosa do reino, arregimentava
os filhos de Abrao para a sua Corte com relativa facilidade.
Como vimos anteriormente, mestre Joo acumulou as funes de fsico e cirurgio
do Rei. Obteve esse cargo de prestgio, por certo, quando D. Manuel confirmou as
cartas de tenas, os privilgios e antigos cargos detidos por judeus no ms de Maio
de 1496167, numa clara tentativa de repor a antiga ordem social de que os judeus
radicados no reino haviam gozado durante sculos. Se foi D. Manuel, efectivamente,
a baptizar mestre Joo, no ter sido de todo inocente o apelido que escolheu para o
seu fsico. O nome esconderia certamente a vontade do monarca em apaziguar os

Portuguesa Em Marrocos Durante o sculo XVI. Origens e actividades duma comunidade, Braga, APACDM
distrital de Braga, 1997, apndice 2, Quadro 2, pp. 249 e 484.
165
Bons indicadores para esta atribulada poca foram analisados por Juan Gil, Os judeus castelhanos e as
conspiraes contra D. Joo II, numa conferncia que teve lugar na sala do Senado da Reitoria da Universidade
de Lisboa, com o patrocnio e organizao da Ctedra de Estudos Sefarditas, em Maio de 2000, de que no
tivemos notcia da sua publicao.
166
Referncia em Artur C. de Barros Basto, Os Judeus no Velho Porto, p.9.
167
Vide Maria Jos Pimenta Ferro Tavares Expulso ou integrao? Op.. cit. p. 29.
47

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


tumultos religiosos e sociais, motivados pela hostilidade aos cristos-novos, que tm
lugar naqueles anos finais do Sculo XV.
A questo sefardita ser tratada com alguma precauo pelo Venturoso, que
promulga, a 5 de Dezembro de 1496, o dito que oficializava a expulso de todos os
hebreus no convertidos ao Cristianismo168. A Coroa e certos sectores da nobreza
discordavam de uma sada macia do povo eleito. Alm do vazio que se abriria em
algumas funes sociais, caso se concretizasse o xodo, estava em causa uma
quantidade aprecivel de fundos financeiros canalizados atravs do pagamento dos
direitos reais, pagos pela comunidade judaica, que era uma quota-parte importante
das receitas dos cofres da Coroa e das rendas arrecadadas pelos grandes senhores169.
Para impedir a sada de muitos milhares de pessoas so tomadas medidas
contundentes. A comear pelo fecho dos portos - o de Lisboa o nico onde
permitido embarcar passando-se em seguida, numa segunda fase, aos baptismos
em massa.
Em que data se baptizaram os vrios membros dos Paz? No possumos uma
resposta concreta. Possivelmente, ter-se-o baptizado entre Maio de 1496 e meados
de 1497170.
Corria o dia 6 do ms de Maio de 1496, quando D. lvaro de Bragana entra em
Portugal com os sobrinhos e o seu squito, pela fronteira de Elvas171. A partir desta
data, com a gradual recomposio patrimonial do ducado brigantino, voltaria
novamente mestre Joo e a sua famlia a servir o Duque, agora em acumulao com
os servios prestados a el-rei D. Manuel. Tem-se conhecimento que, no arquivo ducal
da Casa de Bragana, havia muitas memrias deste mdico e da sua famlia. Essa
168

O dito, que estabelecia um prazo de dez meses para o baptismo ou a expulso, era extensivo a outra minoria:
a moura, bem menos importante social e economicamente que a sefardita.
169
Desde logo o Conselho rgio, quando aprova a expulso, d conta dos prejuzos que da adviriam. Cf.Maria
Jos Pimenta Ferro Tavares, Expulso ou Integrao?, Judaismo E Inquisio. Estudos., Lisboa, Editorial
Presena, 1987, p. 39.
170
Maria Jos P.F. Tavares salienta que a discusso sobre a partida dos judeus, do reino, ocorrera entre Maio e
Novembro de 1496. Pela Pscoa de 1497, D. Manuel ordenou que fossem retirados os filhos menores aos
sefarditas, para serem educados por famlias crists, e pouco depois que ocorrem os baptismos em massa.
Ainda assim, a converso no atingiu todos os que ficaram. Da que se possa pensar que a converso se foi
fazendo aos poucos. Vide: Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Expulso ou Integrao? Op.cit., pp.32/37
171
D. Antnio Caetano de Sousa, Histria Genealgica da Casa Real Portuguesa, Coimbra, 1943, TomoX,
p.17.
48

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


documentao, revelada por uma fonte secundria172, perdeu-se na voragem do
tempo, mas h registos que confirmam que estes cristos-novos de origem castelhana
residiram inicialmente em Guimares173 - centro administrativo do ducado de
Bragana. A famlia ir permanecer na cidade-bero pelo menos at 1511, data do
ltimo assento que possumos, da ordenao menor de um dos seus descendentes, nos
Cadernos de Matrcula de Ordens da Diocese de Braga.
O primeiro jovem a ser ordenado Duarte, no dia 19 de Dezembro de 1500174;
Isidro, um dos seus irmos mais novos, o ltimo, a 15 de Maro de 1511175. Depois de
se estabelecer no Entre Douro e Minho, a famlia vai engrossando medida que os
anos vo passando. A prole de mestre Joo e de Mcia de Paz numerosa. Ao filho
Duarte, o mais velho, vm juntar-se Fernando, ordenado minorista a 13 de Maro de
1505176; Diogo, apelidado de o moo, que faz juramento de ordens a 1 de Setembro
de 1505177, e Isidro que, como vimos, faz os votos em 1511; Beatriz que casar
primeiro com Melchior Salazar, e depois com Vasco Afonso, Brites com Vasco Leite e
Maria, com Manuel Figueiredo, so as mulheres da famlia. Toms o mais novo dos
irmos, no adoptando o apelido familiar178.
Diogo de Paz tem menos um filho que seu irmo: sete. As raparigas so em
nmero de trs: Leonor, Joana e Violante; Francisco179 o mais velho dos rapazes,
seguindo-se Ferno Lopes180, Joo181 e Antnio. Os outros dois irmos de mestre

172

Tal como se fez referncia no ponto anterior, Montarroio Mascarenhas que alude a essa documentao, por
alegadamente a ter manuseado.
173
As cartas citadas na nota 10 no deixam dvidas: mestre Joo de Paz referido como morador em a vila de
Guimares..
174
Arquivo Distrital de Braga, Cadernos de Matrcula de Ordens da Diocese de Braga, Liv. V 1500-1505, fl.
128.
175
Ibidem, Liv. VI- 1505-1513, Caderno 14, fl. 3 v..
176
Ibidem, Caderno 2, fl. 11.
177
Ibidem, Liv. V. fl. 307.
178
Veja-se Sousa Viterbo, Notcia sobre alguns Mdicos Portuguezes, Lisboa, Impressa Nacional, 1898, p. 42.
179
Que aparece a ser ordenado in menoribus a 25 de Maro de 1500. Ibidem, Liv. V, fl. 198 v.
180
Ordenado no mesmo dia de seu irmo. Idem, Ibidem, fl. 199.
181
A informao sobre os elementos que compem a famlia, e que no constam nos Livros de Matrculas de
Ordens da Diocese de Braga, colhemos num cdice da Inquisio, onde um a um so referenciados a quase
totalidade dos seus membros, com os respectivos graus de parentesco. Veja-se ANTT, Inquisio, Cdice 90 fls.
44 e 44 v.. Servimo-nos ainda de um Breve Pontifcio, promulgado por Paulo III a 28 de Outubro de 1542,
depois das diligncias de Duarte de Paz, e que impede que a famlia venha a ser denunciada, acusada ou
pronunciada pela Inquisio. Veja-se Corpo Diplomtico Portuguez, Tomo V, Lisboa, Typographia da
Academia Real das Sciencias, 1874, pp. 123-125.
49

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Joo, Genebra e Henrique, tm, cada um, trs filhos. Genebra me de Francisco
Rodrigues, Violante e Leonor; enquanto Henrique pai de Leo182, Jorge e Francisco.
Na famlia dos Paz, damos conta que na primeira gerao estabelecida em
Portugal antes da converso geral de 1496-1497, predomina a endogamia. Os
casamentos tm lugar no interior da estrutura familiar e tnica, funcionando como
uma tentativa para no dispersar bens, ao mesmo tempo que se preservam os valores
religiosos e culturais183. Os nubentes so escolhidos na base de um estatuto similar e
na condio de professar o mesmo credo e de descender do mesmo povo: judaico.
Mestre Joo casado com Mcia, filha de Diogo Rodrigues e D. Velhinha, que
professava o judasmo publicamente; o filho mais velho desta judia, Rui Mendes,
casa em primeiras npcias com Justa de Paz, certamente uma das irms do fsico;
enquanto Henrique de Paz, irmo de Justa e de mestre Joo, escolhe Filipa Mendes
para sua mulher, muito possivelmente tambm sua cunhada, irm de Rui de
Mendes; Diogo de Paz casa com Genebra, de ascendncia judaica.
Em Guimares os Paz habitam em Santa Maria da Oliveira, na companhia de
outros cristos-novos portugueses e castelhanos184. o caso de mestre Antnio, o
primeiro gegrafo de Entre Douro e Minho185; de mestre Fernando e sua mulher Ines
Fernandez186; de mestre Isaque e Luvylida187.
182

Arquivo Distrital de Braga, Cadernos de Matrcula de Ordens da Diocese de Braga, Liv. V- 1500-1505, fl.
313.
183
de referir que a religio um dos factores que mais concorre para endogamia no seio dos grupos familiares.
Vide Franoise Hritier, Endogamia/exogamia, Enciclopdia Eunadi. Volume 20. Parentesco, Lisboa, I.N.C.M., 1989, pp.125-139, p. 128.
184
No sabemos se o bairro de judeus e a sinagoga se situavam nesta freguesia. Ficou registo de a vila de
Guimares ter uma importante colnia judaica, que possua um bairro e a sua sinagoga. Por volta de 1500 uma e
outra tinham sido votadas ao abandono. Veja-se Lus de Pina, Vimaranes Materiais para a Histria da
Medicina, Porto, Arajo e Sobrinho, 1929, p.153.
185
Num dos primeiros estudos que fizemos sobre a famlia Paz conclumos precipitadamente que mestre Antnio
de Guimares seria um dos sobrinhos de mestre Joo. Com o decorrer da investigao demos conta de se tratar,
claramente, de um sefardita, que vivia na mesma rea de residncia dos Paz, mas que no era sobrinho de mestre
Joo. Seria familiar noutro grau? No nos foi possvel por enquanto apurar a validade dessa hiptese, no entanto
refira-se desde j, como veremos na parte seguinte deste trabalho, que a obra manuscrita de mestre Antnio era
bem conhecida da famlia, o que revela alguma proximidade e at intimidade no relacionamento! Vide Carlos
Manuel Valentim, Mestre Joo Faras, Cadernos de Estudos Sefarditas, n. 1, 2001, pp. 167-220, as pginas
referentes a mestre Antnio so pp. 179-181; e Cfr. Carlos Manuel Valentim, Um Gegrafo Contemporneo
de Pedro Nunes Mestre Antnio de Guimares, Anais do Clube Militar Naval, n. temtico dedicado a Pedro
Nunes, Vol. CXXXII, Outubro -Dezembro 2002, pp. 721-750.
186
Arquivo Distrital de Braga, Cadernos de Matrcula de Ordens da Diocese de Braga, Liv. VI- 1505-1513,
caderno 14, fl. 6 v..
187
Idem, ibidem, fl. 8.
50

COMPOSIO E REPRODUO FAMILIAR


Todos estes cristos-novos residiam numa rea urbana que incorporava a rua
de elite do burgo: a rua de Santa Maria, habitada por grande nmero de
comerciantes, mercadores, oficiais da administrao concelhia e pelos cnegos da
poderosa colegiada situada ali prximo188. entre esta elite social que iremos
encontrar os Paz. A produo de um espao familiar e a construo de uma rede
social, onde se misturam interesses comerciais e avultados fundos financeiros,
comrcio e especulao econmica e financeira, durante o sculo XVI, ir garantir a
esta famlia uma posio de destaque na sociedade do seu tempo.

188

Veja-se Maria da Conceio Falco Ferreira, Uma Rua de Elite Na Guimares Medieval (1376/1520),
Guimares, Cmara Municipal de Guimares, 1989, pp. 17- 29 e passim.
51

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FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO

II
FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO
ESPAO

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FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO

1. A Produo de um Espao Familiar

Os Paz vo construir um poder assinalvel ao longo do sculo XVI. Um poder


econmico e estatutrio, um poder capaz de interferir e modificar acontecimentos na
vida econmica, social e poltica189. Nesta perspectiva, a famlia Paz, enquanto
estrutura de poder, construiu uma rede de negcios e de comrcio, formada a partir
dos laos de parentesco e dos contactos com outros grupos sociais que lhe eram
prximos. Cada elemento da famlia detm uma funo especfica, na forma como o
grupo familiar se organiza, estrutura, percepciona e produz o espao190 que quer
dominar e apropriar sob a forma econmica, financeira e fsica. As prticas sociais
destes cristos-novos de origem castelhana visam o reforo do poder de influncia
familiar atravs de uma estratgia que partilhada por todos os seus membros. O
espao , desta forma, um factor de primeira importncia no estudo da organizao
da famlia. A anlise e observao do espao enquanto categoria, permite-nos
compreender como os Paz actuaram e se estruturaram, em funo das suas
actividades produtivas e do seu papel social.
Analisar o espao, neste caso, significa observar as prticas sociais e
econmicas. Essa observao vai situar-nos diante de uma relao prtica e numa
interaco dos sujeitos com o seu espao, atravs de uma envolvente social e
econmica. Produzir e gerar um espao um processo que visa represent-lo a partir
de determinados sistemas de signos. Afasta-se a mxima correspondncia entre os
actos e os lugares sociais, entre as funes e as formas sociais. Produzir um espao,
conceb-lo, ger-lo, muito mais do que isso. tomar conscincia da sua forma,
189

Do que que falamos quando falamos de poder? A palavra e o conceito so sugestivos, sendo muitas as vezes
que usado sem definio. Poucas palavras tm um tal uso. Segundo Max Weber, na sua obra clssica
Economia Y Sociedad, ed. cit., o poder a possibilidade de se impor a vontade prpria ao comportamento das
outras pessoas, podendo tratar-se de uma pessoa ou um de grupo. Quanto maior for a capacidade para influenciar
acontecimentos e impor uma vontade, para alcanar um determinado objectivo ou desgnio, mais o poder.
Outras questes fundamentais se relacionam com esta vontade imposta. Por exemplo, como se obtm esse
domnio, quais as fontes, as normas, a conduta? Que papel tm os factores psicolgicos, financeiros, de fora
fsica? Quais so as fontes desse poder? O que caracteriza os que tm essa capacidade de impor a sua vontade
dos outros que submetem? O exerccio do poder inscreve-se, desta forma, numa complexidade de questes que
se prendem com as relaes sociais e com a evoluo da prpria sociedade e das mentalidades. Como referido,
muito se tem escrito e teorizado sobre o poder. Vide o que a esse respeito escreve John Kenneth Galbraith, A
Anatomia do Poder (escrito em 1983 com o titulo original de Anatomy of Power), Lisboa, Edies 70, 2007, pp.
17-32
190
Seguimos de perto as propostas de Henri Lefebvre, Op. cit., pp. 43-44.
55

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


apresentando-se e representando-se numa intensa e permanente interaco
dialctica, na qual a prtica social produz e reproduz os lugares e os conjuntos
prprios a cada formao espacial.
Cada membro dos Paz dotado de competncias, de uma funo e de uma
determinada prtica especfica. As representaes do espao surgem associadas s
relaes de produo e a uma determinada ordem que vo impor. Os espaos de
representao esto assim interligados ao quotidiano e s vivncias do lado menos
visvel do social. O espao vivido, tocado, praticado, antes de ser
percepcionado.
A cincia geogrfica parte do estudo do solo. Mas quem estude o impacto do
ambiente fsico e ecolgico sobre os grupos sociais corre o risco de explicar tudo em
funo dessas condies. O problema, na sua forma concreta, dever ser lido de outra
forma. A Geografia a cincia dos lugares, e quando se pretende uma Geografia que
tenha presente no seu estudo o Homem, o ponto central da sua abordagem o meio
em que se desenrola a vida humana, descrevendo-a, analisando-a e explicando-a em
funo das actividades e prticas sociais, das suas repercusses e interferncias191.
Nesse sentido, o trabalho do gegrafo aparece estreitamente ligado ao do
cartgrafo192, no sentido em que h uma preocupao em localizar e representar no
espao o que estudado. Para o gegrafo a apreenso de uma pluralidade de lugares
e espaos s se torna efectiva quando passam a figurar num documento que
possibilite a sua compreenso em conjunto.
A Histria da Geografia, em Portugal, uma rea epistmica pouco estudada
e explorada, e ainda mais no que diz respeito ao conhecimento do prprio territrio,
e forma como o espao se foi transformando pela actividade humana193.
Neste estudo, essencial a abordagem do espao. Esta catogoria um
elemento central nas estratgias familiares dos Paz, s o seu conhecimento

191

Veja-se Lucien Febvre, A Terra e a Evoluo Humana. Introduo Geogrfica Histria, com a colaborao
de Lionel Batailon, traduo de Jorge de Macedo, in Panorama da Geografia, Volume II, Lisboa, Edies
Cosmos, 1954, pp. 411-733, pp. 464-465.
192
Sobre estes temos metolgicos referentes ao papel do gegrafo/cartgrafo Veja-se Paul Claval, Histoire de la
Geographie, 2e ed. Paris, Presses Universitaire de la France, 1996 (trad. Port. Histria da Geografia, Lisboa, Ed.
70, 2006).
193
Vide o que a este respeito dizem Suzanne Daveau e Orlando Ribeiro, Conhecimento actual da Histria da
Geografia em Portugal, Histria e Desenvolvimento da Cincia em Portugal, Lisboa, Academia das Cincias de
Lisboa, 1986, Vol. II, p. 1042.
56

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


possibilitar um maior xito das actividades econmicas, do insvestimento financeiro
e da organizao de uma rede de negcios. A apropriao do espao torna-se ento
um factor de importncia fundamental para o desenvolvimento das actividades
sociais e econmicas da famlia Paz.

2. O Espao Vital 194: um Entre Douro e Minho Alargado

Hermann Lautensach195 salientou o facto de que s a partir da sua organizao


como Estado independente que Portugal se desenvolveu gradualmente, no sentido
da formao de uma unidade antropo-geogrfica. Essa uniformidade territorial, que
se distanciava da restante Ibria, estendeu-se ao campo da geografia da circulao. A
rede de comunicaes terrestres da nova organizao poltica irrompeu volta dos
dois portos principais: Lisboa e Porto196. Foi atravs destes centros urbanos que se
fomentaram as ligaes com o exterior e que Portugal dominou o Atlntico que lhe
estava prximo.
Outro ponto que convm dar o devido relevo, prende-se com a juno do
Sudoeste da Galiza ao territrio portugus que, em conjunto, formam a fachada
atlntica da periferia noroeste da Pennsula, umas das unidades geogrficas do
quadro peninsular197. Estamos, neste caso, perante uma caracterstica fundamental da
posio geogrfica da plataforma territorial portuguesa: a sua feio atlntica, do
qual brotam muitas particularidades fsicas e humanas, a partir de uma simbiose
permanente com o oceano contguo.
A originalidade geofsica de Portugal no quadro geogrfico mais vasto da
Pennsula Ibrica, assim como as suas dimenses modestas, no impedem que o
194

Espaos Vital (Lebensraum) Urge fazer aqui uma separao do sentido que o alemo Friederich Ratzel lhe
atribuiu: espao necessrio para a expanso territorial de um povo. O significado de espao vital, a que se quer
dar operatividade, o de espao central, no desenvolvimento da actividade econmica e comercial; na
produo de riqueza, e nas estratgias de mobilidade social da famlia Paz.
195
Vide Hermann Lautensach, Portugal no Contexto Ibrico, Orlando Ribeiro, [], Geografia de Portugal.
I.A Posio Geogrfica do Territrio, Comentrios e actualizao de Suzanne Daveau, 2. ed. Lisboa, Edies
Joo S da Costa, 1991, p.21; comentrio de Suzanne Daveau, pp. 30-35.
196
Hermann Lautensach, ibidem, p.22.
197
Idem, ibidem, p.23. Pelo seu clima, esta regio, bem individualizada na Pennsula Ibrica, faz parte do
domnio ocenico europeu; fraca amplitude anual de temperaturas e repartio das chuvas por todas as estaes.
Cfr. Michel Drain, Geografia da Pennsula Ibrica, 2 ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1975, pp. 86-97.
57

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


territrio portugus seja constitudo por um mosaico complexo de paisagens e de
modos de vida, fraccionado sobre as diversidades naturais, que uma longa e rica
histria materializou e aprofundou198.
Existem, na verdade, no territrio portugus, regies que se foram afirmando ao
longo dos sculos pela construo de uma identidade muito prpria. O Entre Douro
e Minho encontra-se desde sempre, no h dvida, na linha da frente dessa
individualidade regional199. No incio do sculo XVI era uma das cinco comarcas do
Reino de Portugal e dos Algarves, abarcando um espao que ia para alm do que
hoje se considera os seus limites. Balizada, grosso modo, pelos dois rios que lhe
atribuem o nome, afirmara-se desde o ano mil200 como um regio geogrfica201, e
simultaneamente administrativa. As suas delimitaes territoriais permaneceram
durante sculos, difusas. Tradicionalmente, apontava-se o seu limite a sul entre Vila
Nova de Gaia e Santa Maria da Feira, e para leste at ao rio Tmega202. No princpio
do sculo XVI, mestre Antnio demarca esse espao da seguinte forma: Antre Douro
e Mjnho porque esta a setuada hamtre dous rios cabedees hos quees sam ho Douro e o
Mjnho. A quall hortaa tem de comprido dees - [fl. 136 v] de ho Douro ate o Minho que he

198

Franois Guichard, Geographie du Portugal, Paris, Milan, Barcelone, Mxico, Masson, 1990, p.89.
No mesmo plano de autonomia e individualizao encontrou-se, tambm, desde o incio da formao do
territrio nacional, o Algarve. A atestar esta assero esto a profuso de corografias e descries sobre esta
regio, especialmente a partir do sculo XVI. Vide Joo Carlos Garcia, A percepo do espao numa corografia
seiscentista do reino do Algarve, Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 5 srie, 1986, p. 101 e ss.
200
Este espao estava integrado no territrio de Portucale, que tradicionalmente era entregue para administrao
a um conde no tempo de Afonso III de Leo e Castela, no sculo IX. Esse territrio administrativo coincidia com
alguns importantes centros religiosos que transitavam do tempo da dominao sueva. Depois do Ano Mil, o
Entre Douro e Minho vai transformar-se num espao favorvel reproduo e expanso do regime senhorial,
quer sob domnio leons quer mesmo depois de Portugal ter alcanado a independncia. Foi a que um aprecivel
nmero de poderosos senhores, nobres e eclesisticos, sujeitaram pelas armas uma massa de camponeses que se
dedicava a uma agricultura intensiva, apropriando-se da sua capacidade produtiva. O peso senhorial e religioso
ser sempre um factor identificador da regio nos sculos seguintes. Veja-se Jos Mattoso, Ricos-Homens,
Infanes e Cavaleiros, Obras Completas, Vol. 5, Lisboa, Circulo de Leitores, 2001, pp. 17 21 e ss. E do
mesmo autor, Identificao de um Pas. Oposio, Obras Completas, Vol. 2, Lisboa, Circulo de Leitores, 2001,
pp. 75-82.
201
Seguimos de perto o conceito de regio geogrfica explorado por Orlando Ribeiro. Este gegrafo defendeu
que uma regio geogrfica caracterizada por uma certa identidade de aspectos comuns a toda ela, que vo
do clima ao relevo, estendendo-se ao manto vegetal e s marcas da presena humana. Vide Orlando Ribeiro,
Portugal, o Mediterrneo e o Atlntico, 7 edio revista e ampliada, Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1998,
p. 140; e do mesmo autor Divises Geogrficas: reas, Zonas, Domnios, Regies, Andares, in Opsculos
Geogrficos, VI Volume Estudos Regionais, nota introdutria de Suzanne Daveau, Lisboa, F.C.G., 1995, pp.
33-49. As regies geogrficas, segundo este gegrafo, podem, por sua vez, agrupar-se em unidades mais vastas,
tendo em conta, no caso portugus, o contraste entre as influncias mediterrnicas e atlnticas. Vide Orlando
Ribeiro, Op. cit., pp. 144-145.
202
Cfr. Joaquim Verssimo Serro, "Dois Antiqurio de Entre Douro e Minho no sculo XVI: Mestre Antnio e
o Doutor Joo de Barros, Figuras Ilustres do Norte de Portugal, Porto, Fundao Eng. Antnio de Almeida,
Academia Portuguesa de Histria, 1983, pp. 9-20, p. 10.
199

58

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


desde o Porto aa Vallema que e ho mais lomguo que sam dezoyto leguoas he de hamcho do
mar pera ho sartam que e do mar ate Pomte de Canas que he o mais hamcho deez leguoas.203
O arado quadrangular utilizado na cultura do milho, trazido pelos Suevos, que
transpuseram o Reno em 406, e j repartiam terras no Noroeste da Pennsula Ibrica
em 411, denota que encontraram nesse local condies similares s do Norte de
Frana e vale do Reno, exportando de um para o outro lado as suas tcnicas agrcolas
e tradies. Tal como defendeu Jorge Dias204, o suposto ermamento de Entre Douro e
Minho, fronteira seca e despovoada, que alguns historiadores defenderam com
entusiasmo ter existido durante o perodo da Reconquista, no confirmado pela
Etnografia, que tem revelado uma riqueza de tradies culturais regionais e locais
herdadas das populaes primitivas da regio.
Em meados do Sculo XVI, o Entre Douro e Minho era um territrio densamente
povoado: cerca de 253.074 mil habitantes, que correspondia maior densidade
populacional (34,9%) entre as seis comarcas do reino205, possuindo um quinto da
populao portuguesa206. Duarte Nunes de Leo deixou-nos notcia deste
sobrepovoamento, escrevendo: Enfim como a gente plebea tanta, que cada dia sae como
e[n]xames de abelhas para todas partes do reino, no h lugar onde seno achem muitos
homens de Entre Douro e Minho para louvor e cultura da terra, em ceifas em marinhas, em
adubiu de vinhas e outros servios, no mar e na terra[].207
A populao estava concentrada nos centros urbanos, senhorios eclesisticos,
comunidades religiosas, domnios da alta nobreza. Os grandes senhores208 locais,
203

Mestre Antnio Provincia Dantre Douro he Minho copillada por mestre Hantonio fisiquo he solorgiam
morador na na Villa de de Guymaraees he naturall dela, in Miscellanea Histrica de Portugal Sc. XVI, B.A,
Cod. Ms 51-X-22. Transcrevemos em anexo este texto que encontramos na Biblioteca da Ajuda, entre algumas
crnicas de Rui de Pina.
204
Jorge Dias, Os Arados Portugueses e as suas Provveis Origens, prefcio de Ernesto Veiga de Oliveira, I.N.
C.M., 1982, p.211. Veja-se mapa com distribuio dos tipos de arados na p.129.
205
Segundo o numeramento de 1527-1532. Veja-se Joo Jos Alves Dias, A Populao, Nova Histria De
Portugal, Direco de Joel Serro e A. H. de Oliveira Marques, Portugal Do Renascimento Crise Dinstica,
Coordenao de Joo Jos Alves Dias, Lisboa, Editorial Presena, 1998, pp. 16-17. Cfr. quadros e grficos em
anexo neste trabalho.
206
Essa tendncia permanece at aos dias de hoje. Repara-se que igualmente nessa regio que se situa a maior
percentagem de populao jovem. Cfr. Orlando Ribeiro, Evoluo e Distribuio da Populao,
207
Duarte Nunes de Leo, Descrio do Reino de Portugal, fl. 65 V. Transcrio do texto, notas, aparato crtico
e biografia do autor por Orlando Gama, Lisboa, Centro de Histria da Universidade Portuguesa, 202, p. 206.
208
Nesta Comarca o poder senhorial era forte. Grandes senhores eclesisticos como o bispo do Porto ou o
arcebispo de Braga; alta nobreza como o duque de Bragana ou o marqus de Vila Real; o conde de Vimioso, o
visconde de Lima. Depois ainda havia poderosas famlias, que se diziam descendentes da primeira nobreza,
fundadora do reino: Os Azevedos, Os Vasconcelos, os Silvas, os Tvoras, os Castros, os Magalhes, os Limas,
etc. Vide Jos Marques Le Nord du Portugal au XVe Sicle : Socit et Instituitions , Le Portugal Du XVe
Sicle. Actes du Colloque, Paris, F.C.G., 1989, pp. 14-31 ; Cfr.: Antnio Borges Coelho, Quadros Para Uma
59

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


que muitas vezes desafiavam a autoridade do poder central, controlavam a maior
parte dos meios de produo existentes na regio, exercendo o seu poder e influncia
atravs de complexas redes clientares209.
Frei Nicolau de Oliveira, no Livro das Grandezas de Lisboa, impresso em Lisboa
por Jorge Rodrigues, em 1620, compara o Entre Douro e Minho a um Reino: A quarta
prouincia se chama, entre Douro & Minho, Rios muy grandes, & conhecidos, & se estende da
cidade do Porto at Valena do Minho, & seu destricto, & occupa dezoito legoas de comprido,
& doze de largo. E porque se me no h de offerecer occazio de tratar em outra parte desta
prouincia, que sendo tam pequena, se pode comparar com hum bom Reino [].210
pertinente referir que a forte influncia senhorial e eclesistica do territrio
nunca teve eco em ideias ou posies de secesso territorial, que colocassem em
causa a coeso do Reino. Como se sabe, o poder senhorial no Entre Douro e Minho
assentava em bases slidas e estava bem implantado211. As famlias tradicionais
arrogavam-se da sua ancestralidade e de terem lutado ao lado do rei pela
independncia do reino, alcanada na segunda metade do sculo XII212. Muitos dos
grandes senhores, a exemplo do Marqus de Vila Real, do infante D. Lus (filho de D.
Manuel I), do Conde de Vimioso, do Visconde de Lima, a possuem terras, exercendo
domnio e influncia sobre a populao local. Mas as circunstncias favorveis vida
de Corte ditavam novas modas e novas prticas sociais. A fidalguia nortenha
ambicionava alcanar o pao real em meados do sculo XVI.213
Convm destacar a importncia que o ducado de Bragana detinha em todo esse
espao, arregimentando clientelas e dominando vastas propriedades fundirias. Por
sua vez, o Arcebispo de Braga, o Bispo do Porto e o cabido da Colegiada de
Guimares, fortes polos do poder religioso nessa complexa geografia senhorial, no
ficavam de fora das renhidas disputas pela posse das rendas, das benesses e da
Viagem A Portugal no Sc. XVI, Lisboa, Caminho, 1986, pp. 146-156.
209
Veja-se Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragana 1560-1640. Prticas senhoriais e redes clientelares,
Lisboa, Editorial Estampa, 2000, pp.408 e ss.
210
Vide Frei Nicolau de Oliveira, Livro das Grandezas de Lisboa, Fac-simile da edio original de 1620 e texto
actualizado por Maria Helena basto, Prefcio de Francisco Santana, Lisboa, Veja, 1991, Capitulo Primeiro.
211
Cfr. Antnio Borges Coelho, Quadros para uma Viagem a Portugal no Sculo XVI, Lisboa, Caminho, 1986,
p.148.
212
Mestre Antnio sublinha: No tempo que Espanha foy de mouros se ganhou esta comarqua e a mor parte de
Portugal plos cristos e o nome de Portugal se tomou desta comarqua []. V. Uma descrio de Entre
Douro e Minho, p. 458.
213
Cfr. Joaquim Romero de Magalhes, As Descries Geogrficas de Portugal: 1500-1650. Esboo e
Problemas. Revista Econmica e Social, n 5, 1980, p.34
60

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


acumulao de poder e riqueza. As relaes com o poder central foram sempre, de
uma maneira geral, amistosas, contrariando a tendncia que se verificava noutros
locais da Europa214.
Uma das razes para que o Entre Douro e Minho no se tenha dissociado
politicamente da monarquia portuguesa, pode ter a ver, em parte, com o
cumprimento rigoroso das determinaes superiores pelos escrupulosos oficiais
rgios dos almoxarifados, das alfndegas, das Contadorias e da Correio215, que
impunham a autoridade da Coroa; mas tambm h que assinalar as dificuldades com
que se demarcavam as fronteiras entre senhorios, os conflitos entre os poderes locais,
religioso e laico, e as frequentes quezlias da decorrentes, em torno de competncias
e jurisdies. Dissidncias que implicavam um desgasto mtuo, levando quase
sempre interveno do Rei216.
Levantando-se como um anfiteatro, desde o litoral at s montanhas do Gers217,
o Entre Douro e Minho tem uma configurao fsica toldada pelo mar e pela
montanha, pela profuso de gua dos seus rios e pelas chuvas abundantes. O
gegrafo cristo-novo mestre Antnio, em determinado passo do seu texto refere-se
muita gua que prolifera na Comarca. Atente-se na descrio.
Na dita Comarqua ha mais de vynte cinquo mill fomtes perenaees he nunca canso em
nenhu tempo do anno afora outras que camsam parte do anno que sam sem numero porque
onde haa pasamte de cimquohemta mjll lauradores que tem casaaes ha fomte deytamdo a
cada dous caasees sam has vymte e cimquo mjll fomtees quanto mais que muitos caasees da
dita Comarqua tem seys, sete, oyto, dez fomtes afora nas cidades e villas e luguares haa muitos
chafarizes e fomtees e poos hexelemtes domde se procedem a mor parte dos ryos da dita
Comarqua hem os quees rios h preto de duzemtas pomtes darquaos de pedra lavradas has
mjlhores que ha em Espanha []. 218
A plancie que se situa prximo do litoral varrida pelas baixas presses que,
vindas do mar, carregadas de humidade, irrompem pelos prados e terras adentro
214

Mafalda Soares da Cunha refere-se a essa coexistncia pacfica entre, por exemplo, a Casa senhorial
(Bragana) mais poderosa do Reino e a Coroa. Vide A Casa de Bragana [], ed. cit., p. 20.
215
Antnio dos Santos Pereira, Portugal O Imprio Urgente (1475-1525), p. 36.
216
Entre o Duque de Bragana e o Marqus de Vila Real, entre a Arquidiocese de Braga e a Colegiada de
Guimares. Jos Marques fala-nos numa complexidade de relaes individuais e colectivas, marcadas por uma
atitude conflitual acentuada, a diversos nveis. Jos Marques, Le Nord du Portugal, pp. 25-30.
217
A metfora sugerida por J. Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, p. 26.
218
Mestre Antnio, Op. cit., fl. 139 v..
61

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


embatendo violentamente de encontro s cadeias montanhosas que se situam a
Nordeste e a Leste. Um pouco por toda a parte, sobretudo nos vales e planuras, as
chuvas fecundam a terra fazendo despontar uma verdura luxuriante que, prenhe de
fertilidade, d luz a abundncia de rvores de fruto e cereais. As guas jorram pelos
vales e irrigam os solos, mais tarde estrumados, facilitando a progresso de uma
agricultura intensiva. As necessidades da colmeia humana transformaram a terra
dos vales e baixas, que exgua, num domnio de policultura219. Em 1537, o
humanista Clenardo, que via com os seus prprios olhos esta paisagem, descrevia ao
arcediago da S de vora que No se pode negar seguramente que em toda esta regio
desde Braga at ao rio Minho os montes e os campos so de uma admirvel beleza deleitosa, e
que a gua jorra por toda a parte de fontes, que s por si eram bastantes para encantar
[].220
Todos os terrenos livres so susceptveis de se converterem em arveis e
cultivveis. As terras incultas so aproveitadas, boa maneira trienal, para a
apascentao do gado mido e grosso. Os cursos superiores dos rios, apertados pelas
montanhas, soltam-se na parte inferior dos vales, alargando o seu caudal de forma
que os depsitos aluviais alteram os leitos. Carreiras de rvores obstruem o
corrimento das guas para os campos, defendendo as margens de uma eroso certa.
Canes, que se introduziram na cultura, na memria e tradies populares, referemse a esta natureza viva, reprodutiva e refrescante: A Senhora da Cabea
[Santurio] tem a porta pequenina: por mor do ar da neve, que vem do mar de Caminha.221
A aco dominante dos ventos de Oeste, carregados de humidade, coarcta o calor
e a secura estivais promovendo chuvas frequentes. A precipitao anual atinge
valores na ordem de 2000-2500 mm222. Muitas espcies vegetais da Europa mdia
radicam-se aqui, atingido o limite mximo da sua expanso para sul. Um bom
exemplo -nos dado pelas rvores de folha caduca (aveleira, carvalho alvarinho,

219

Orlando Ribeiro, Portugal, o mediterrneo e o Atlntico, ed. cit., p. 145.


Carta de Nicolau Clenardo e Joo Petit, Braga, 8-IX-1537, in Gonalves Cerejeira, O Renascimento em
Portugal. I. Clenado e a Sociedade Portuguesa, 4. ed. revista, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, p. 307.
221
Citao de J. Leite de Vasconcelos, ibidem, p.27.
222
Maria Manuela Lopes da Veiga Ferro, A Agricultura do Noroeste de Portugal. Uma perspectiva histrica; a
revoluo do milho, Caminiana. Revista de Cultura Histrica, Literria, Artstica, Etnogrfica e Numismtica,
Caminha, Ano IX, Dezembro 1987, n. 14, pp. 157-191, p. 157.
220

62

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


urze, castanheiro) que, no Norte de Portugal, formam os ltimos povoamentos
importantes223.
O aumento da populao deu-se de forma acentuada durante o sculo XVI,
contribuindo para uma acelerao vigorosa do urbanismo. Segundo mestre Antnio
de Guimares: he tam pouorada [a Comarca] que hem poquas partes della se pode dar hu
brado que se nom houa hem pouoado.224
Na centria de quinhentos Braga viu a sua populao crescer a uma mdia
percentual de 2,24%, enquanto Viana do Castelo, certamente por presso do seu
porto, crescia a um ritmo admirvel de 3,63%225. Os principais aglomerados
populacionais situavam-se prximos da foz dos rios que atravessavam a Comarca, de
nascente para poente, ao longo de uma antiga estrada que, a partir de Amarante,
passando por Guimares e Braga, a cruzava na diagonal. Por a se encontravam
povoados repletos de populao e campos frteis, que de longe faziam reluzir a
verdura dos seus pastos e culturas. O espao entre o rio Minho e o Douro tinha,
assim, as condies ideais para a fixao de uma densa populao. Solos frteis,
humidade, pluviosidade necessria ao florescimento das culturas e proliferao de
prados que serviam de pastagem para o gado grosso, bons portos para escoamento e
descarga de produtos, possibilidades de uma intensa actividade pesqueira.
Potencialidades que dotavam este espao de importantes recursos econmicos,
propiciando o desenvolvimento da agricultura, da pecuria, da construo naval e do
comrcio. O primeiro gegrafo da regio defendeu que a Comarca podia autosustentar-se, e que o factor menos abonatrio era a sua longa distncia da Corte e dos
organismos centrais de deciso administrativa.
E semdo caso que fora ylha cercada de mar nom houuera mjsmo nenha parte do mundo
pera seu soprimmento que de sua propya naturall tem todallas cousas que lhe sam necesarias
pera hos naturees dela hem abastama se lho nom tirarem pera fora pera outras partes []e
todas as cousas tem hem abastana, como dito he pera os moradores da ditaa Comarqua, que

223

Orlando Ribeiro, Manto Vegetal, [], Hermann Lautensach, Geografia de Portugal. II. O Ritmo Climtico
e a Paisagem, Comentrios e actualizao de Suzanne Daveau, Lisboa, Edies Joo S da Costa, 1988, pp. 577578.
224
Mestre Antnio, fl. 136 v..
225
Antnio dos Santos Pereira, Portugal O Imprio Urgente (1475-1525). Os Espaos, os Homens e os
Produtos, Vol. I, Lisboa, I.N. C.M., 2003, p.28.
63

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


lhe no falece nenha cousa somente estar apartada da Corte e da sua comuersao per as
demandas e outras cousas.226
Cultura tpica da regio, o milho grosso, que necessita de grande quantidade
de gua para crescer, teve um enorme impacto na forma como se estruturaram os
campos e se combinaram outras culturas. Para Maria Manuela Lopes da Veiga
Ferro227 foi Rui Fernandes quem pela primeira se referiu a este cereal, introduzido na
regio no incio do sculo XVI, juntamente com o feijo e com outras variedades de
abboras. No entanto, quem pela primeira vez ter descrito o milho grosso foi mestre
Antnio, uma das fontes de Rui Fernandes. Noticia o fsico de Guimares: he esta
Comarqua posto que falea ho triguo nom fallece ho cemteo nem ho milho, nem ho payno nem
ho el orjo nem os legumes scilicet fauas, feyjes, heruanos, lemtylhas [].228
O cultivo do milho vai acentuar uma agricultura intensiva de carcter
policultural, tpica do Noroeste. Surge o campo-prado de que nos fala Orlando
Ribeiro, tendo na sua base uma policultura regada, com duas ou trs culturas na
mesma parcela, dispondo-se da seguinte forma: renques de rvores (de fruto,
madeira, lenha) dispostas no limite das parcelas, policultura no interior destas,
alternncia do campo (no Vero) com o prado (no Inverno), ambos regados, o ltimo
com maior incidncia229. As rvores de fruto ou as parreiras (uveiras) onde crescia a
vinha de enforcado, delimitam os campos. O cultivo do milho grosso d-se nos
meses de Junho a Setembro/Outubro.
A organizao fundiria desenha-se em formas de solidariedade comunal. A
populao rural associa-se em aldeias, na base de uma vida comunitria. O
afolhamento e a criao de gado ao ar livre, o pastoreio, as terras de caa e as de
pastagem abundavam, com uma percentagem alta da populao a dedicar-se
agricultura mestre Antnio, mais uma vez a fonte primria para o sculo XVI,
contabiliza 50.000 lavradores para 60. 000 Vizinhos: posto que nella ha pasantee de LX

226

Mestre Antnio, Provincia Dantre Douro he Minhofl. 136 v.


Maria Manuela Lopes da Veiga Ferro, A Agricultura do Noroeste de Portugal. Uma perspectiva histrica; a
revoluo do milho p. 179 e ss.
228
Mestre Antnio, Op. cit. fl. 137 v..
229
Orlando Ribeiro, Relance da Evoluo da Agricultura, in Opsculos Geogrficos, IV Volume: O Mundo
Rural, Lisboa, F.C.G., 1991, pp. 33-47, p. 35.
227

64

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


sesemta mjl vezinho[s] []haa pasante de cinquoenta mil lavradores que tem casaes, deitando
a cada dous casaes.230
Na paisagem aparecem os casais, as quintans, os vilares que se instituam em
glebas que o agricultor cultivava, e da retirava o seu sustento231. Cultivava-se de
Inverno o trigo, o centeio e a cevada; de Vero o milho-mido e o milho paino, que
cresciam em terrenos secos e de superfcie pouco enrugada, onde os arados
penetravam bem a terra. Era nas agras, terras que reuniam estas condies, divididas
em pequenas parcelas, as leiras, que rodeavam as populaes, que cresciam os
cereais. Nas terras hmidas, alagadias, que se espraiavam nos fundos vales,
atapetadas de relva prados ou lameiros apascentava-se o gado em terras
comunitrias: bois que viviam sempre ao ar livre, as ovelhas de onde era retirada a
l, o porco de onde provinha a carne para todo o ano. A cultura da vinha difundiu-se
muito ao longo do sculo XV. Plantam-se videiras de p alto, para uma melhor
defesa da humidade do solo e captao da luz do Sol232. Nos pontos altos, no cimo
dos outeiros, onde outrora figuraram os castros e citnias, locais de defesa
amuralhados, cobriam-se de mato (bouas) para recolhimento dos animais. Nas
encostas das montanhas proliferavam o carvalho negral e os castanheiros (soutos), de
onde se fazia a recolha da castanha, um dos produtos-base da alimentao local, que
s ir perder importncia com a introduo da cultura da batata. Nos terrenos
incultos, recolhia-se a lenha para o lume e para aquecimento das casas no Inverno.
Os sistemas de explorao da terra, iam desde o aforamento, enfiteuse ou
emprazamento, cedendo o senhor as courelas a troco de um foro, em dinheiro e
gneros, direitos que para cada um dos lados eram transmitidos de gerao em
gerao, de natureza perptua233.
Das visitas regio efectuadas por estrangeiros, ficaram registadas algumas
notcias nos sculos XV e XVI. Jernimo Mnzer, quando vem a Portugal em 1494,
passa pela Comarca. Seguindo um percurso que comum a muitos circuitos
econmicos e aos caminhos que eram traados entre o Norte de Portugal e Santiago
de Compostela, o viajante alemo desloca-se do Porto para Barcelos e, em seguida,
230

Idem, ibidem, fl.136 v.


Maria Manuela Lopes da Veiga Ferro, ibidem, p.175-76.
232
Foi em conversa com um agricultor local, em Randufe, perto de Guimares, j em Fevereiro de 2008, que
ficamos a saber a razo das cepas no Entre Douro e Minho serem de p alto.
233
Maria Manuela Lopes da Veiga Ferro, ibidem, p. 178.
231

65

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


dirige-se a Ponte de Lima. A sua ltima paragem, no territrio Portugus, Valena
do Minho234.
O humanista Clenardo far um percurso muito similar nos anos trinta do
sculo XVI.
O Entre Douro e Minho tambm era um espao simblico, enquanto espao
inicial onde nascera a vontade de independncia do Reino, considerado pela sua
prosperidade no sculo XVI e pela muita gente que o habitava. A presso
demogrfica, o poder religioso e senhorial, tiveram um peso considervel na
expanso do Entre Douro e Minho para Leste e para Sul. Damos conta, de facto, que
a regio no se limitava meramente aos dois rios que lhe do o nome. Os caracteres
geogrficos que a enformam ultrapassam o sul do Douro235, e para leste das terras do
Barroso, as fronteiras da Comarca so flexveis e porosas. Por seu lado, a abrangncia
da actividade econmica, religiosa e administrativa dos agentes da regio leva-nos a
definir um Entre Douro e Minho alargado, incluindo a maior parte de Trs-osMontes, todo o vale do Douro, e a Sul grande parte das Beiras. Antnio Srgio,
cingindo-se ao acidentes naturais divide o territrio a norte do Douro em duas zonas
distintas: a cismontana e a transmontana, separadas pelas cadeias montanhosas
dominantes do Maro e do Gers236. Ao tentar definir as regies geogrficosociais237 de Portugal, o pensador ficou-se pelos agentes fsicos, esquecendo-se dos
factores humanos, ou seja, para o Homem os acidentes orogrficos no so obstculo
sua actividade produtiva e muito menos sua adaptao ao meio.
Fixemo-nos no espao de Entre Douro e Minho. Podemos traar trs eixos
espaciais com a mesma origem e project-los a partir de um qualquer ponto do
espao que limitado pelo rio Douro, a sul, e pelo rio Minho a norte. Com essa base
poderemos constituir um sistema de eixos que nos ilustre a rea para a qual a Regio
234

Jernimo Munzer, Viaje por Espaa y Portugal (1494-1495), Nota introductoria de Ramn Alba, 2 ed.,
Madrid, Ediciones Polifemo, 2002, p. 191.
235
Pierre Birot, Portugal - Estudo de Geografia Regional, 2. ed., Lisboa, Livros Horizonte, 2004, p. 47 e ss. O
gegrafo Piere Birrot, fala-nos do Norte como um todo, semelhana do que faz Jos Mattoso, Obras Completas
Identificao de Um Pas, Lisboa, Circulo dos Leitores, 2001, pp. 32-33, e de outros autores. Por exemplo Jos
Marques, a quem nos referiremos adiante.
236
Antnio Srgio, Obras Completas Introduo Geogrfico-Sociolgica Histria de Portugal, 5 ed.,
Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1982, pp. 59-63.
237
Orlando Ribeiro, Introdues Geogrficas Histria de Portugal. Estudo Crtico, Lisboa, I.N.-C.M, 1977,
pp. 119-181, muito crtico em relao obra de Antnio Srgio, da opinio que o captulo sobre as regies
geogrfico-sociais o mais bem conseguido do livro citado. No discutimos a informao que o ensasta
disponibiliza, mas sim as suas propostas de diviso regional do territrio.
66

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


criou espaos de influncia e se expandiu. Por exemplo, com base na cidade do Porto,
o plo urbano que ao longo do sculo XVI tende a tornar-se hegemnico no Norte
Atlntico, se traarmos trs eixos a partir da sua cintura urbana temos um que
segue em direco ao vale do Douro; o outro, que segue para norte, em direco
Galiza e ao Mar Cantbrico/Finisterra; e outro que se projecta para sul em direco a
Aveiro e Coimbra.
No plano eclesistico esta vasta regio238 estava repartida entre as dioceses de
Braga, que se estende do Atlntico at fronteira com Castela, o que constitui um
poderoso factor de unio entre o litoral e o interior239; o Porto que compreende o
Douro e o rio Ave, prolongando-se depois a Santo Tirso at embocadura do Corgo;
e por fim a administrao eclesistica de Valena, que abraa o territrio de EntreMinho-e-Lima, que resultara do desmembramento da diocese de Tuy.
neste espao, que inclui vias fluviais abundantes, macios montanhosos, terras
frteis, bons portos, centros urbanos com dimenso aprecivel, e grande parte da
populao do Reino, que os Paz exercem a sua actividade produtiva e comercial. O
espao central da famlia, o Entre Douro e Minho alargado, situava-se numa regio
com ligaes estreitas ao rio Douro e a todo o seu prspero vale, que por sua vez
conduziam ao interior transmontano. No eram as serras da Peneda, do Gers, do
Barroso, da Cabreira, do Alvo, de Bornes, da Pedrela, da Nogueira, um obstculo
circulao de produtos e pessoas. Os eixos virios encontravam-se a norte do vale do
Douro e cortavam a meio formaes rugosas numa direco poente nascente,
traando longitudinalmente todo esse espao: de Braga em direco a Chaves,
Vinhais e Astorga; de Guimares a Cabeceiras de Basto, Vila Pouca de Aguiar, em
direco a Bragana; partindo de Amarante para Vila Real, encontrando um
cruzamento de direces para Mirandela, Bragana, e depois para Torre de
Moncorvo e Freixo de Espada Cinta240. Muitos destes caminhos eram percorridos
pelos Paz, que bem conheciam toda este amplo espao. Bragana, centro
238

D. Dinis refere no seu testamento os concelhos de Antre Tejo e Odiana, e de Moura e Serpa; da
Estremadura; de Antre Douro e Mondego, onde citada Coimbra; da Beira, e de Antre Douro e Minho.
Repare-se que se omite, propositadamente, Trs-os-Montes e o Algarve, por estarem incorporados,
respectivamente, no Entre Douro e Minho e no Antre Tejo e Odiana. Vide J. Leite de Vasconcelos, Etnografia
Portuguesa, Lisboa, I.N. -C.M., 1980, Vol. III, p. 15.
239
As concluses de Jos Marques acerca do quadro fsico e administrativo do Norte de Portugal, ajudam-nos na
definio deste Entre Douro e Minho alargado , Vide Le Nord du Portugal au XVe Siecle: Societe et
Instituitions, Arquivos do Centro Cultural Portugus, Vol. XXVI, Lisboa/Paris, 1989, pp. 12-13.
240
Antnio dos Santos Pereira, Portugal O Imprio Urgente (1475-1525), Vol. I, p. 40.
67

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


transformador de metalurgia e da tecelagem, cidade sede de almoxarifado. Lamego
tecia laos estreitos com Entre Douro e Minho e o Porto funcionrios rgios241,
como Rui Mendes, o contador de entre Douro e Minho, compravam terrenos e
dispunham de interesses na cidade; de Vila Real, seguia-se para a Rgua e
transportavam-se vinhos e outras mercadorias pelo rio.
A nvel porturio sublinhe-se, ainda, o estatuto dos portos deste amplo espao
nortenho, todos muito activos: Caminha, Viana do Castelo, Vila do Conde, Porto.
Vila do Conde, servia de via de ligao martima com um espao interior disperso:
Braga, Guimares, Barcelos, Guarda, Trancoso, Vila Real, Viseu, Lamego242. So
Centros urbanos insertos num Entre Douro e Minho alargado, que detinha no
Sculo XVI um crescimento econmico e demogrfico inerente s riquezas naturais e
ao florescimento do comrcio e da actividade mercantil. Os Paz encontravam-se entre
as famlias que dinamizavam economicamente todo esse espao.
No ter sido por acaso que apareceu precocemente no Entre Douro e Minho a
primeira descrio geogrfica em moldes modernos. possvel detectar toda uma
tradio, inovadora, na percepo daquele espao. A geografia de mestre Antnio
de Guimares escrita em 1512, como veremos adiante, um ponto de chegada, e
vem, de certo modo, no seguimento da Descrio de Portugal de 1416 includa no
Livro dos Arautos243. Os dados disponveis indicam que o redactor desta obra
habitava nesse espao e pertencia Casa de D. Afonso, Conde de Barcelos, futuro
Duque de Bragana, filho do Rei. No incio do sculo XVI, a dianteira no campo do
saber geogrfico continuou a pertencer a um autor que vivia no Entre Douro e
Minho, inserindo num grupo social que na realidade tinha necessidade de apreender
o espao onde circulavam os produtos, os capitais e as pessoas essenciais s suas
prticas no trato e na mercancia.

241

Idem, ibidem, p. 47.


Amlia Polnia, A Expanso Ultramarina numa Perspectiva Local. O Porto de Vila do Conde no sculo XVI.
Vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2007, p. 137.
243
Sobre esta descrio Veja-se Suzanne Daveau, Orlando Ribeiro, Conhecimento Actual da Histria da
Geografia em Portugal, Histria e Desenvolvimento da Cincia em Portugal, Lisboa, Academia de Cincias de
Lisboa, 1986, Vol. II, p. 1048.
242

68

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO

3. Uma Rede Familiar e Mercantil244

3.1. Um Novo Ciclo de Negcios

O comrcio inter-regional e internacional foi, de longe, o maior motor do


desenvolvimento do capitalismo primitivo245. No foram poucas as vezes que se
aliou ao negcio de prover as necessidades financeiras dos prncipes e senhores
religiosos, e aos monoplios das concesses de explorao de minas, arrendamentos
da cobrana de impostos e da produo manufactureira. Acrescente-se que, nos
ritmos da expanso econmica, como lembrou Pierre Vilar, no se pode menosprezar
o papel activo desempenhado pelo capital comercial aventureiro, nas fases iniciais
dos primeiros investimentos produtivos246. O que numa conjuntura247 de crescimento
e consolidao do modo de produo capitalista no deixa de ter significado.
Immanuel Wallerstein, que estudou os primrdios desta nova economia, de
base comercial e monetria, afirma ter sido criada uma economia-mundo capitalista
europeia entre 1450-1640248, e defende que a expanso do sculo XVI no foi somente
geogrfica, mas tambm econmica, porque tem de se considerar, obrigatoriamente,
um perodo de crescimento demogrfico, de produtividade agrcola crescente e a
primeira revoluo industrial249.
Ora, esta nova etapa da evoluo da Economia real250, na Europa e no Mundo,
que s tem sentido analisar no interior da(s) sociedade(s), da vida social dos

244

Optou-se por dividir este ponto em trs partes, para uma melhor clareza da exposio.
Quem nos diz Joseph A. Schumpeter, Capitalismo in [.] Ensaios. Empresrios, inovao, ciclos de
negcio e evoluo do capitalismo, Lisboa, Celta Editora, 1996, pp.170-190, p. 171.
246
Pierre Vilar, Problemas da Formao do Capitalismo, [] pp. 104-105.
247
Referimo-nos, a todas as condies: psicolgicas, polticas e sociais, econmicas, culturais, articuladas
entre si. Sobre a noo de conjuntura, veja-se Pierre Vilar, Iniciao ao vocabulrio da anlise histrica,
Lisboa, Edies Joo S da Costa, 1985, p. 77 e ss.
248
Immanuel Wallerstein, O Sistema Mundial Moderno. Vol. I A agricultura capitalista e as origens da
economia- mundo europeia no sculo XVI, Porto, Edies Afrontamento, S/dt.(1990?), pp. 73-74.
249
Idem, ibidem, p. 106.
250
Estamo-nos a cingir definio de economia real proposta por Aristteles. Defendeu o estagirita que havia
quatro formas de economia: a real, a dos strapas, a de uma polis e a individual. Essas quatro formas de
economia, tinham alguns pontos em comum. A economia real, segundo esta definio, tem aplicao
universal, possuindo quatro reas essenciais, a saber: a cunhagem da moeda, as exportaes, as importaes e as
despesas. Vide Aristteles, Obras Completas Os Econmicos, Introduo, notas e traduo do original
grego e latino de Delfim Ferreira Leo, Lisboa, I. N. C. M., 2004, pp. 49-50.
245

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FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Homens251, assenta numa revoluo financeira anterior, desencadeada entre os
sculos XIII e XIV pelas comunas italianas de Gnova e Veneza252. Cidades que
disponibilizaram novos instrumentos financeiros, essenciais ao desenvolvimento das
estruturas de produo capitalista no perodo seguinte, ao mesmo tempo que
propiciaram o aparecimento de uma utensilagem conceptual, muito prpria, que
passou a ter o seu uso no mundo dos negcios.
A tradio historiogrfica tem veiculado nos seus discursos que durante cem
anos, entre 1450 e 1550, aproximadamente, tudo est em transformao na vida
econmica: as rotas, os circuitos comerciais, os investimentos, a procura e a oferta, a
moeda, os produtos e a sua transformao, inclusive as condies da prpria
economia253.
O comrcio internacional converte-se num complexo de rotas e de circuitos
comerciais, dependente duma nova economia mundo que tem o seu centro no
norte da Europa, na cidade de Anturpia. Nesta praa financeira caber toda a
economia do mundo, para a convergindo os produtos mais procurados no mercado
europeu, as Casas comerciais mais importantes da Europa, os homens de negcios
mais activos, o crdito mais apetecido. Lisboa e Sevilha vo afirmar-se como os
pontos de ligao, muito importantes refira-se, desta nova economia, que j no
assenta nos bens fundirios, mas no poder do dinheiro e nas suas funes de meio de
pagamento e de gerador de riqueza. O dinamismo dos espaos econmicos e o duplo
jogo da distribuio e do consumo, por um lado, e da procura e da oferta, por outro,
tinham por base a circulao, em quantidades crescentes, dos metais preciosos sob
forma amoedada. As novas espcies monetrias, medida que se vo consolidando
no mercado das trocas, atiram para fora de circulao, segundo a lei de Gresham, o
antigo numerrio local254.

251

Como nos aponta o caminho Joseph Schumpeter, Thrie de lvolution conomique.Recherches sur le profit,
le credit, lintrt et le cycle de la conjoncture, Paris, ditions Dalloz, 1999, p. 90.
252
Veja-se Michele Frantiani and Franco Spinelli, Did Genoa and Venice kick a Financial Revolution in the
Quatrocento?, www. Oenb.atdeigwg 112_tem 14_38081 (consulta a 20 de Novembro de 2007).
253
A. A. Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas no Comrcio da Especiaria. [] p. 18.
254
Com um evidente empobrecimento do espao monetrio, como lembra o professor A. A. Marques de
Almeida, Estrutura financeira do Estado Portugus no dealbar da poca Moderna, Histria de Portugal. Dos
Tempos Pr-Histricos aos nossos dias, Dir. de Joo Medina, Vol. IV Portugal Medieval e os
Descobrimentos, Amadora, Ediclube, s/dt., p. 498.
70

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Primeiro o ouro africano, depois a prata sul-americana255. O capitalismo256
encontra-se na sua infncia, e Portugal d um contributo aprecivel para o seu
desenvolvimento, ao abrir o caminho para novos mercados e ao transportar
mercadorias essenciais vitalidade e sustentabilidade da nova economia. Funo
assegurada pelos navios e armadores portugueses, com a Coroa a liderar a
distribuio dos produtos, processo que Antnio Srgio apelidou de economia de
transporte, por, segundo a sua ptica, toda a riqueza transportada passar apenas
por Portugal, e ir fomentar o trabalho estrangeiro que nos fornecia os produtos
transformados que necessitvamos257. Dois sculos antes de Srgio, Adam Smith
conclua que o comrcio externo de Espanha e Portugal com outras partes da Europa
e com as suas prprias colnias, era muito considervel, mas que nunca tinham sido
instalados em nenhum desses pases quaisquer manufacturas importantes para
venda em mercados distantes, e a maior parte das suas terras continuavam por
cultivar258.
As Coroas ibricas dominam no sculo XVI, efectivamente, cada uma a seu modo,
um emaranhado de rotas, de circuitos e de produtos que enfileiram um comrcio
escala planetria.
Em Portugal, o aparelho produtivo da Monarquia Agrria, na expresso de Lcio
de Azevedo, a que Jaime Corteso dar outro nome: comrcio martimo distncia com
base na agricultura - dava mostras de se alterar em fins do sculo XV, com o
nascimento de um novo Complexo Histrico-geogrfico259 centrado na Rota do Cabo e

255

Vide Alberto Veiga Simes, Portugal, o ouro, as Descobertas e a criao do Estado capitalista, Estudos de
Histria, Apresentao de A. A. Marques de Almeida, Lisboa, Centro de Histria da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 2004, pp. 67-106, especialmente, pp. 104-106.
256
Tm sido inmeros os autores a debruar-se sobre o conceito de capitalismo e de outro que com ele anda
associado: capital. Palavras que s tardiamente, entraram no vocabulrio. Veja-se por todos Fernand
Braudel, Civilizao material, economia e capitalismo, sculos XV-XVIII. Tomo II- Os Jogos Das Tocas, Lisboa
-Rio de Janeiro, Edies Cosmos, 1985, pp. 209-225.
257
Antnio Srgio, Breve Interpretao da Histria de Portugal, 13 ed., Edio Crtica por Castelo Branco
Chaves, Vitorino Magalhes Godinho, Rui Grcio e Joel Serro, e organizada por Idalina S da Costa e Augusto
Abelaira, Lisboa, Livraria S da Costa, 1989, pp. 95-97.
258
Adam Smith, Riqueza das Naes, 5 ed., Prefcio de Hermes dos Santos, Traduo de Teodora Cardoso e
Lus Cristvo Aguiar, Lisboa, F.C.G., 2006, p. 712.
259
Vitorino Magalhes Godinho considerou que a economia tem de ser entendida na sua configurao espacial e
sujeita a determinados factores, que esto imbudos das suas especificidades. A noo de Complexo HistricoGeogrfico apresentada por este historiador, pretende ser um conceito global, de uma histria estrutural,
englobando a totalidade da vida econmica, social, poltica, cultural e mental num determinado espao
geogrfico durante um longo perodo de tempo. Sobre o conceito de Complexo Histrico-Geogrfico e a sua
aplicao Histria de Portugal, Vide Vitorino Magalhes Godinho, Complexo Histrico-Geogrfico,
Dicionrio de Histria de Portugal, Dir. de Joel Serro, Vol. I Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963, pp. 644-649.
71

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


no trato das especiarias. Uma das caractersticas deste Complexo, apelidado de ciclo
da pimenta260, ser a sua disperso. Ir de Anturpia China, do Mediterrneo ao
Brasil, das Amricas ao Atlntico Norte. No seu interior circula o ouro da Mina, o
acar da Madeira e de So Tom, o pau-brasil de Vera Cruz, o bacalhau da Terra
Nova, os escravos da Guin, o po e o pastel dos Aores, a courama e o sal das ilhas
de Cabo Verde, o ouro do Monopotama e de Samatra, a pimenta e o gengibre do
Malabar, a canela do Ceilo, a noz e a maa de Banda, o cravo das Molucas, a seda e
porcelanas chinesas, a prata e cobre da Europa Central e Oriental, os gros do Bltico.
Estamos perante um Complexo Histrico-Geogrfico que coloca em contacto economias
monetrias - dos Pases-Baixos, Portugal, Prsia e ndia - com economias pr monetrias de frica e da sia.
Mas como constatou argutamente Virgnia Rau, o capitalismo portugus no
podia dispensar a colaborao de capitais nacionais e estrangeiros. A historiadora
enumera cinco grupos de capitalistas que operavam em Portugal: portugueses,
italianos, alemes, espanhis e cristos-novos261. E so precisamente homens de
negcios com estas nacionalidades que investem nos 22 navios que partem de Lisboa
na Primavera de 1505, comandados por D. Francisco de Almeida, nomeado primeiro
Vice-Rei da ndia262. Estava aberta a via para o estabelecimento do primeiro poder
europeu fora da Europa que, na feliz expresso de Jorge Borges de Macedo,
exportava pela primeira vez, desde o Imprio Romano, poder organizado263.
260

A ideia de ciclos para dividir a histria econmica de Portugal (1 perodo: Monarquia Agrria; 2: Ciclo
da Pimenta; 3: 1 Ciclo do Ouro; 4: Ciclo do Acar; 5: Ciclo do Ouro e dos Diamantes) foi sugerida e
aplicada por J. Lcio de Azevedo. O pioneirismo de Lcio de Azevedo nos estudos de histria econmica e
social, no disfarou, contudo, as fragilidades da periodizao que ensaiou para a anlise econmica da Histria
de Portugal. Vitorino Magalhes Godinho veio a colocar em relevo as contradies dessa periodizao, por se
centrar num s produto dominante na economia, volta do qual se situaria toda uma srie de outras actividades.
Afinal, numa poca podia coexistir um ou mais produtos dominantes. Joo Lcio de Azevedo ainda ajustou a sua
anlise, situando no sculo XVIII o Ciclo do Ouro e dos Diamantes, o que no foi suficiente para aplacar o
carcter impreciso da sua concepo de ciclo. V. J. Lcio de Azevedo, pocas de Portugal Econmico.
Esboos de Histria. 3. Ed. Lisboa, Livraria Clssica Editora, imp. 1973, passim; Cfr. V. Magalhes Godinho,
Ciclo, Dicionrio de Histria de Portugal [] Vol I, pp. 572-574.
261
Virgnia Rau, Privilgios e Legislao Portuguesa Referentes A mercadores Estrangeiros (Sculos XV e
XVI), Estudos De Histria. 1 Volume: Mercadores, Mercadorias, Pensamento Econmico, Lisboa, Editorial
Verbo, 1968, pp. 144-155 e passim.
262
Baseamo-nos na informao de Joo de Barros, Op. cit., p. 296, que nos diz que no ano seguinte regressariam
12 navios. Segundo Figueiredo Falco, D. Francisco de Almeida ter levado 28 naus e caravelas, partiro sete
naus e cinco caravelas a 25 de Maro e dezasseis a 18 de Maio. Vide Figueiredo Falco, Livro em que se contem
toda a fazenda e real patrimnio dos Reinos de Portugal, Lisboa, 1607, pp. 140-141.
263
Jorge Borges de Macedo, A sociedade portuguesa no tempo de Cames, Dirio de Notcias, Caderno -2,
Domingo, 22 de Dezembro de 1991, p.3, apud Catarina Madeira Santos, Goa a chave de toda a ndia. Perfil
poltico da capital do Estado da ndia (1505-1570), Lisboa, Comisso Nacional para as Comemoraes dos
Descobrimentos Portugueses, 1999, p.38.
72

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


A nova rota atlntica no deixava indiferentes as principais casas financeiras
europeias, que nos primeiros anos do sculo XVI investem os seus capitais nas
expedies que partem do porto de Lisboa rumo ao ndico. Em Portugal,
estabelecem-se mercadores, banqueiros, homens de negcios, ou os seus
representantes, de diferentes nacionalidades. A transferncia da finana europeia de
Veneza para Lisboa encontra-se em marcha, entrada na centria de quinhentos.
Com o mercado mediterrneo em retraco, a sorte decide-se a favor de Portugal e
do Atlntico264.
O apuramento da importncia que tiveram os mais proeminentes grupos
financeiros europeus do sculo XVI, como os Welser, os Fugers ou os Hochstetter,
alems, ou os Sernigi, Marchioni e Affaitadi italianos, na participao da expedio
naval de 1505265, que transporta o 1 Vice-Rei da ndia, mas que tinha como objectivo
principal o retorno dos navios com carregamentos pimenta, pode elucidar-nos sobre
a nova realidade econmica e financeira que est a despontar nesses anos. Uma breve
anlise desse investimento permite-nos um outro olhar sobre o novo ciclo de negcios
que irrompe no incio do sculo XVI.
Negociantes italianos liderados por Bartolomeo Marchione, e dois grupos de
alemes, os Welser e Voehlin, representados por Lucas Rem; os Fugger, os
Hoechstetter, os Imhof e outros, investiram 29.400, 20.000 e 16.000 cruzados,
respectivamente, na armao de trs navios da armada capitaneada por D.Francisco
de Almeida266. Os Welser, com 20.000 cruzados, eram a maior participao na
empresa; os Fugger deram, semelhana dos Hoechstetter, 4.000 cruzados; os Imhof
e os Gossembrot 3.000, cada um; os Hirschvogel 2.000; os restantes 31.400 cruzados
saram dos bolsos e florentinos267.

264

Manuel Nunes Dias, O Capitalismo Monrquico Portugus [], Vol. II, p. 171 e ss. Este historiador
descreve toda esta migrao capitalista para o Atlntico.
265
Abordamos este assunto de uma forma mais detalhada, no IX Simpsio de Histria Martima, O
Investimento Financeiro na Esquadra do I Vice-Rei da ndia, Actas do IX Simpsio de Histria Martima,
Lisboa, Academia de Marinha, Lisboa, Academia de Marinha, 2007, pp. 357-382.
266
Sobre estes valores Veja-se Vitorino Magalhes Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, ed. cit.,
vol. III, imp. 1987, p.58; e Antnio Alberto Banha de Andrade, Mundos Novos ao Mundo. Panorama da difuso,
pela Europa, de notcias dos Descobrimentos Geogrficos Portugueses, Lisboa, Junta de Investigaes do
Ultramar, 1972, p.350. Vide o grfico, infra, com base nos valores apontados.
267
Hermann Kellenbenz, Los Fugger en Espaa y Portugal hasta 1560,[], p.61.
73

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO

40.000

Investimento Estrangeiro na Esquadra de 1505


Comerciantes de
Augsburgo/Nuremberga

35.000
Genoveses/Florentinos

30.000
25.000
20.000

Welser/Vochlin

15.000
10.000

Hirshvogel, Imhof, e outros


Fuggers Hochsteter

5.000

Gossembrot

0
Valores em cruzados

Entre

os

Casas Comerciais

mercadores

florentinos,

Marchione268

destacava-se

como

empreendedor. Importante mercador florentino, que viveu em Lisboa entre o ltimo


quartel do sculo XV e o primeiro do sculo XVI, chegando a casar com uma mulher
portuguesa, aparece ligado desde muito cedo, ainda no reinado de D. Joo II, aos
negcios ultramarinos e a financiar expedies. de realar o papel dos italianos no
comrcio portugus do sculo XV. Constituam, como lembrou Virgnia Rau269, o
mais importante grupo estrangeiro em Portugal, no que respeitava aos capitais e
tcnica bancria.
Do lado alemo, os Welser270 haviam-se constitudo como uma das empresas
familiares mais importantes da Alemanha do Sul, situando a sua sede na cidade de
Ausburgo. Depois da morte de Bartolomeu, os irmos Lucas e Ulrich Welser
continuaram a fazer negcios. Conservaram as sucursais em vrios pontos da
Europa, e perseguiram o estreitamente de relaes comerciais com Veneza, Milo e
Florena, Colnia, Francoforte e Lipsia. Dedicavam-se explorao de minas,
comrcio de txteis e especiarias, estando entre os mercadores germnicos que mais
cedo despertaram para o comrcio com o ndico. Anton Welser forma uma
companhia com Konrad Vhlin, aps a morte de Lucas Welser (1495). Simon Seitz,
268

Vamos seguir a informao de A. A. Marques de Almeida, Marchione, Bartolomeo, Dicionrio de Histria


dos Descobrimentos Portugueses, Direco de Lus de Albuquerque, Coordenao de Francisco Contente
Domingues, Lisboa, Circulo dos Leitores, 1994, Vol. II, p.685.
269
Virgnia Rau, Op. cit., p.206.
270
Sobre os Welser, veja-se Hermann, Kellenbenz, Welser, Dicionrio de Histria de Portugal, Dir. de Joel
Serro, Vol. IV, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1965, pp. 348-349.
74

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


representante da firma, estabelece com D.Manuel um contrato em que os Welser
compram mercadorias taxa de 5%. A 1 de Agosto de 1504, Lucas Rem, outro dos
feitores da famlia em Portugal, conclui com sucesso novo contrato com o
Venturoso, tendo em perspectiva a expedio que se avizinhava. Lucas Rem ficar
em Portugal de 8 de Maio de 1503 a 27 de Setembro de 1508, vendendo cobre,
chumbo, cinbrio, mercrio, panos da Flandres e cereais; comprando, em paralelo,
especiarias, marfim, azeite, vinho, figos, frutos frescos. Lucas Rem enviava
frequentemente navios Madeira, Aores, Cabo Verde, Barbaria para entabularem
comrcio.
A outra grande empresa alem a participar na viagem ndia, em 1505,
foram os Fugger sociedade familiar que se tinha imposto como um poderoso grupo
comercial e financeiro em meados do sculo XV. Atravs de uma hbil poltica de
investimentos, entregavam-se aos negcios da nova economia com tenacidade, ao
mesmo tempo que encetavam uma srie de matrimnios vantajosos, procurando
alargar a sua base de apoio, e a fortuna, entre outras empresas mercantis. Em 1494, a
riqueza dos irmos Ulrich, Georg e Jakob ascende a 54.000 florins271. Ser o mais
novo dos irmos, Jakob, a alcanar um lugar chave na empresa, convertendo-se em
seu dono absoluto no ano de 1510. Ao entesouramento inicial seguiram-se os
investimentos, nas minas de metais preciosos da Europa Central e nos negcios
ultramarinos, no escapando a especulao financeira e os emprstimos a poderosos
senhores. No final do sculo XV, esta empresa familiar alem dispunha de duas
sadas para o comrcio exterior: Veneza e Anturpia. no porto do Escalda que se
vo estabelecer os primeiros contactos com a Coroa portuguesa272. E foi por a que
Jakob Fugger preferiu fazer os seus negcios. Em 1505 no deixava escapar a
oportunidade que se lhe oferecia de investir directamente numa poderosa armada,
que iria impor a sua fora no ndico, para possibilitar uma maior segurana ao
comrcio entre a Europa e a sia. O que se tornava uma mais-valia, numa poca
dominada pela insegurana, pelas dificuldades e riscos com que frequentemente os
mercadores se debatiam quanto segurana dos seus bens .

271
272

Hermann Kellenbenz, , Los Fugger en Espaa y Portugal hasta 1560,[], p. 19.


Idem, ibidem, p.60.
75

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


O financiamento privado tambm foi permitido a capitalistas portugueses.
Fernando de Noronha, um cristo-novo, detinha direitos na nau S. Cristovo, em
sociedade com Duarte Correia, Afonso Caldeira, Afonso Jorge, Lus da Maya;
Gonalo Rodrigues Correia investia na S. Rafael; Rui de Brito e Ferno Chamorro
na nau Madalena273. Os negociantes particulares deviam entregar Coroa cerca de
um quarto das especiarias carregadas, e mais cinco por cento para as obras do
mosteiro que estava sendo construdo em Belm, como forma de imposto. Os trs
navios, na posse dos estrangeiros, trouxeram 13.800 quintais de especiarias274. O xito
capitalista da expedio era evidente. Mas o contrato acabou por ser violado pelo rei
portugus275, temendo que os comerciantes pudessem, ao disporem de to grande
quantidade de especiarias, provocar uma baixa acentuada de preos. A primeira
aco foi expropriar os bens dos mercadores-banqueiros depositando-os na Casa da
ndia. Outras das razes apontadas para a quebra do vnculo contratual parece ter
ficado a dever-se proliferao das quintaladas por outros particulares276.
Em face do rompimento do acordo inicial, os Welser, um dos grupos visados,
receberam uma indemnizao, paga em acar277. Esta ter sido uma das causas que
levou os alemes e outros investidores estrangeiros a no repetirem a aventura que
levaram a cabo em 1505. Um feitor representando a Coroa era a nica pessoa
autorizada a executar as compras e vendas das especiarias. Em Lisboa, o Vedor da
Fazenda negociava a mercadoria por todos, quer fosse o prprio Estado, particulares
e donos das quintaladas278. A pratica mais comum era os feitores do Rei pagarem aos
importadores o preo que se fixava, dispondo em seguida da totalidade do produto,
quando e como lhe convinha279. E compreende-se bem porqu. Se verdade que esta
a forma encontrada para os preos no sofrerem uma baixa catastrfica,
prejudicial aos interesses do Estado, repare-se que, mesmo com todos os entraves

273

Joaquim Candeias da Silva, O Fundador do Estado Portugus da ndia D. Francisco de Almeida 1547 ( ?)
-1510, Lisboa, IN - CM, Imp. 1996, p.104.
274
J. Lcio de Azevedo, Op. cit., p. 105.
275
Os armadores estrangeiros tero um longo pleito com o Venturoso.
276
Lus Filipe F. R. Thomaz, A Questo da Pimenta em Meados do Sculo XVI. Um debate Poltico do Governo
de D. Joo de Castro, Lisboa, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expresso Portuguesa/Universidade
Catlica Portuguesa 1998, 68.
277
A. A. Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas no Comrcio da Especiaria. O Eixo Lisboa-Anturpia
(1501-1549) [], p.57.
278
J. Lcio de Azevedo, Op. cit., p.99 e 111.
279
Idem, ibidem, p.111.
76

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


impostos aos particulares em 1505, o investimento rendeu 175% de lucro280. Esta
percentagem d-nos uma ideia do ritmo e do valor do trfego de mercadorias que
chegavam pela Rota do Cabo. O lucro da empresa liderada pelos Welser vai elevar-se
a 142% em 16 anos, isto , 9% por ano. Rendimento elevado, mas ainda assim inferior
aos Fugger, que iro atingir os 54% por ano281. Sem preocupaes na arrecadao,
obteno e transporte de especiarias, limitando-se a distribua-las no mercado
europeu, os mercadores alemes usufruam de lucros fabulosos. Estes mercadores
iriam acumular fortunas extraordinrias durante todo o perodo que Portugal
controla o comrcio com o Oriente. Uma poca que dominada por um novo ciclo da
vida econmica.
Segundo Vignia Rau, Com os privilgios concedidos [a estrangeiros], D. Manuel e
D.Joo III procuravam escorar [..]a organizao de recursos financeiros dos principais ncleos
de mercadores europeus, acautelando porm convenientemente os interesses da coroa
portuguesa e promovendo, sempre que possvel, a comparticipao dos mercadores
nacionais282.
A Coroa, dispondo de capacidade militar e naval tinha acesso directo aos
mercados do Oriente, mas faltava mercadorias para a troca e sobretudo capital. Os
mercadores estrangeiros colmatavam essa lacuna, mas no vinham a Portugal
unicamente em busca de mercadorias, e descarregar e carregar produtos.
Mergulhavam igualmente no comrcio de dinheiro e nas operaes de
emprstimo283, concorrendo com os cristos-novos, fortes credores do Rei e da sua
Corte.
Os cristos-novos, aps a converso geral de 1496-97, tinham-se disseminado
por Portugal e pelos territrios, fortalezas e feitorias, que os portugueses
controlavam no Atlntico, no ndico e no Pacfico. Apareciam a cobrar taxas e a
tributar impostos, de Norte a Sul; a importar mercadorias; envolviam-se no comrcio
ultramarino, seguindo o trilho aberto pelos navios lusos.

280

O historiador alemo Sofhus Ruge, Histria da poca dos Descobrimentos, prefcio e notas em apndice de
Manuel Oliveira Ramos, Lisboa, Livraria Aillau & Bertrand Livraria Francisco Alves [s.dt.], p.148, situa esse
lucro nos 150%, como j tinha notado Manuel Nunes Dias, Op. cit. 212.
281
R. Ehrenberg, Le Sicle des Fugger, Avant-propos de Lucien Febvre, Paris, SEVPEN, 1955, p. 91.
282
Virgnia Rau Privilgios e Legislao Portuguesa Referentes a Mercadores Estrangeiros (Sculo XV e XVI),
p.214.
283
Idem, ibidem, p. 205.
77

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Mercadores e homens de negcio aproveitando as novas oportunidades que o
comrcio martimo proporcionava, partiam em busca do lucro e da fortuna.
A famlia Paz, que se radicara no Entre Douro e Minho, tudo far para tirar o
melhor proveito da nova realidade comercial e financeira que estava a emergir nos
primeiros anos da centria de quinhentos.

3.2. As Boas Oportunidades de Negcio

Qual a evoluo da economia portuguesa nesta nova conjuntura econmica e


social, que se ergue a meio do sculo XV?
A populao aumenta284 apesar da imigrao e de um crescente recrutamento de
soldados e marinheiros para as campanhas militares no Norte de frica e no Oriente.
Nos campos cultivam-se vinhas e olivais para satisfazer uma nova procura de vinho
e azeite, tanto no comrcio interno como nos mercados internacionais; desenvolvemse as indstrias do biscoito, da loua, dos tecidos, do fabrico da plvora e da
construo naval. Estamos diante de um crescimento da actividade econmica, que
se baseia fundamentalmente no comrcio martimo e nos produtos que so
movimentados por esse trfego, que arrastam decisivamente o conjunto das
actividades internas, das agrcolas s manufacturas285.
Com a dinamizao do mercado e a abertura de novas rotas comerciais, o que era
motivado pelo crescimento da procura interna, apareciam boas oportunidades de
negcio para os Paz, que viviam e comerciavam num espao bastante prometedor do
ponto de vista do aumento do consumo de bens e mercadorias 286. Com efeito, sabese que nos perodos de prosperidade, que constituem simultaneamente fases de
reorganizao do processo produtivo, originando inovaes que delas decorrem, so
na mesma medida perodos da criao do novo poder de compra287.

284

Ao longo de todo o sculo XV. Mas este aumento foi lento. Veja-se A. de Sousa Silva Costa Lobo, Histria
da Sociedade em Portugal no sculo XV, Prefcio de Jos Matoso, Lisboa, Edies Rolim, 1984, p.21.
285
Vide Aurlio de Oliveira, O Tempo Econmico no Tempo de Gil Vicente, Revista de Guimares, n. 112,
Jan.-Dez. 2002, pp. 229-231.
286
O espao mais densamente povoado do Reino, que aumentava em termos demogrfico como o resto da
Europa.
287
Joseph A. Schumpeter, A Explicao do Ciclo de Negcios, Op. cit., p. 35.
78

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Ao mais que previsvel crescimento da procura interna, aliavam-se as
potencialidades porturias da regio que servia todo Norte de Portugal, e a
circulao fiduciria, favorecida pela rede viria que acompanhava a rica e
diversificada bacia hidrogrfica de Entre Douro e Minho288.
Os portos do continente abasteciam-se de muitos mercados do interior de Castela
e da Galiza. Um mundo de trocas, de circuitos, de paragens e passagens, cruzando-se
com as rotas vindas do Atlntico que passavam pelas ilhas. Centros como Vila do
Conde, Caminha, Viana do Castelo, Ponte de Lima, Barcelos, Guimares, Chaves,
Bragana, participavam neste comrcio, enviando txteis, farinhas, sal, artesanato e
artigos agrcolas. Este circuito atlntico cresceu sem parar ao longo da primeira
metade do sculo XVI, arrastando cabedais de mercadores, consolidando as trocas,
sendo que muitos destes mercadores, cristos-novos e cristos-velhos, grandes,
pequenos e mdios no tratado, encarregavam-se da distribuio dos produtos.
A diversidade dos produtos transaccionados era assinalvel: do acar
madeirense ao pastel dos Aores, dos panos de Londres fruta do Algarve, passando
pelo forte investimento no sector agrcola289. Por isso damos conta de muitos homens
de negcio, como os de Negro, Lus lvares e Pedro lvares, a arrendarem o
comrcio da Madeira, e aparecem em Lisboa, Medina do Rio Seco, Valladolid,
Sevilha, Gnova, Florena, Anturpia e Lio, distribuindo acar e outros produtos
do Atlntico.
Aquela importante famlia de mercadores tem relaes estreitas com os Paz, Joo
e Diogo, e interesses comerciais no Entre Douro e Minho. A 21 de Fevereiro de 1511,
por exemplo, Lus Vaz de Negro constitui como seu procurador Diogo de Paz, para
que receba em seu nome 200.000 reis do almoxarifado de Ponte de Lima290.
Os navios de armadores do Norte Atlntico, abastassem a ilha da Madeira de gro e
carne, trazem cereais e acar na torna-viagem291. Muito ouro e prata detm estas
288

Sobre a circulao e distribuio de produtos e mercadorias Veja-se Isabel M. R. Mendes Drumond, A


Circulao e a Distribuio dos Produtos, Nova Histria de Portugal, Dir. de Joel Serro e A. H. de Oliveira
Marques, Portugal do Renascimento Crise Dinstica, Coordenao de Joo Jos Alves Dias, Lisboa, Editorial
Presena, 1999, 195-197 e ss.
289
Veja-se o que sobre este ponto escreve Aurlio de Oliveira, A Madeira nas Linhas de Comrcio do
Atlntico, Sculos XV-XVII Actas do II Colquio Internacional de Histria da Madeira, Funchal, Secretaria
Regional do Turismo e Cultura/Centro de Estudos do Atlntico, 1993, pp. 917-931, p. 927, Cfr. Antnio dos
Santos Pereira, Op. cit., Vol. I, p. 37.
290
ANTT, Corpo Cronolgico, Parte II, mao 81, n. 157.
291
Vitorino Magalhes Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, ed. cit., Vol. III, p. 235 e 243.
79

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


gentes de Entre Douro e Minho, que adquirem no Peru e noutras partes, por troca
dos produtos que transportam e inserem nesses mercados, e que depois entesouram
em taas e objectos de adorno, tal como nos descreve mestre Antnio: Em esta
Comarqua ha mais taas que em todo Portuguall ainda que hem Lxsboa bem podera aver mais
prata que hem todo Hamtree(sic) Douro e Minho e que hem todo Portuguual porque deytando
a todos os moradores a cada hum sua taa so sesemta mil taas, posto que muitos homens,
cidades e villas e lavradores tem dez, vynte, trinta, corenta taas e cinquoenta e a cauza
porque metem mais suas fazendas em taas que nas outras couzas he porque a terra he muito
apertada, e no terem onde manter mais gados dos que tem nem aver erdades na terra em que
empreg[u]em seus dinheiros, porque hos tres coartos da terra so eclesyasticos e do Rey, e dos
fidalgos que se no podem vender.292
As alfndegas da comarca de Entre Douro e Minho andaram arrendadas no
trinio de 1502-150 a Payo Rodrigues, Gonalo Rocha, Diogo de Paz, mestre Joo,
Ferno Gonalves e Pro Anes293. Todos estes homens tinham negcios e interesses
nos portos do Noroeste e detinham cargos de importncia na gesto da vida local.
muito possvel, neste caso, que Pero Anes seja vereador em Vila do Conde,
aparecendo nas actas das vereaes, em situao de ausente, em 1509294. Em 1505
Payo Rodrigues pagou ao Almoxarife, em seu nome, de Diogo de Paz e de Mestre
Joo, a sisa dos panos e mercadorias que se venderam nos anos de 1504-1505, como
rendeiros que foram da Alfndega de Vila do Conde295.
Mais uma vez, mestre Antnio, que andava muito bem informado, quem nos d
uma ideia dos lucros deste comrcio alfandegrio: Esta Comarqua rende a El Rey noso
Senhor de sizas e dizimas doze milhoens, e os reg[u]engos que a dito Senhor tem na dita
Comarqua e o Duque, e o Marquez, e o Visconde, e todas os outros fidalgos da dita Comarqua,
que tem reg[u]engo, e jurdioens rendem mais de vinte milhoens afora chancelarias, residos,
teras(sic) de concelhos, e direitos reaes, rendioens de cativos, e petitrias; e rendem aos
Marquez os dez reis de ceita da dita Comarqua quatrocentos e cincoenta reis, e que rendem os
merquadores da dita Comarqua aa rendeiros dos portos de Trs os Montes bem hum conto,

292

Provincia Dantre Douro he Minho copillada por mestre Hantonio fisiquo he solorgiam morador na na Villa
de de Guymaraees he naturall dela, Miscellanea histrica de Portugal Sc. XVI, B.A, Cod. Ms 51-X-22, fl. 143.
293
Informao dada por Joo Cordeiro Pereira, Para a Histria Das Alfndegas... , pp. 88-89.
294
Amlia Polnia, Vol. II, Apndices, Tese de Doutoramento em Histria Moderna, Porto, Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, Porto, 1999, p. 86.
295
A.NTT., Ncleo Antigo, Liv. 11, fl. 83 v., Vide tambm Joo Cordeiro Pereira, ibidem, p. 189.
80

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


porque se acha plos livros dos ditos portos meterem tres mil panos de Castella, que so
novecentos mil reis; afora mercadorias, e a alfandega de Villa de Conde rende [a] Abadessa
dozentos e cinquoenta mil reis, afora outras (sic) muitos direitos, e portagens que pertencem a
El Rey noso Senhor, que poderaa todo esto render copia ao dito Senhor Rey, e aos fidalgos, [fl.
18] bem trinta milhes.296
O gegrafo de Guimares estava por dentro das transaces e, paulatinamente,
apontava, registava, assentava os nmeros do comrcio de que tinha conhecimento.
A 15 de Fevereiro de 1513, no Porto, lvaro Pereira, recebedor dos Portos de
Trs-os-Montes, recebe de Diogo de Paz seis mil reis de panos do ano de 1513297. No
ano de 1519 a recolha da dzima e da sisa dos panos da alfndega de Caminha ficou a
cargo de Diogo de Paz o-velho, que arrematara a sua renda298. As cartas de quitao
do reinado de D. Manuel I revelam as actividades dos Paz em muitos dos portos
martimos e portos secos de Entre Douro e Minho e Trs-os-Montes, testemunhando,
igualmente, um aumento de ritmo do comrcio em meados do sculo XVI

299.

Importncia acrescida para a famlia Paz tinha precisamente o comrcio de panos,


aquele a que mestre Antnio se referia, e que est particularmente activo na primeira
metade do sculo XVI300. s feiras de Braga, mas sobretudo de Guimares e Lamego
acorriam mercadores estrangeiros, em maior nmero castelhanos, procurando o
linho, trocando panos e outros produtos301.
Ser mercador no sculo XVI envolvia riscos previsveis302. As dificuldades
sentiam-se na insegurana das rotas, no fluxo de transportes e mercadoria; na

296

Mestre Antnio, Op. cit., fl. 141.


Ibidem, Ncleo Antigo, n. 519, fl. 57.
298
Ibidem, Ncleo Antigo n. 525.
299
Veja-se a documentao em anexo, em que se faz referncia a essas cartas de quitao, com a publicao de
alguns exemplares.
300
Veja-se as consideraes sobre este comrcio, em Manuel Antnio Fernandes Moreira, Alfndega de Viana e
o Comrcio de Importao de Panos no sculo XVI, Viana do Castelo, Cmara Municipal de Viana do Castelo,
1992, p. 55. Este autor regista nas suas listagens de mercadores, unicamente dois Paz(Diogo e Francisco) o que
manifestamente pouco, pois durante este perodo que a famlia est mais activa. Esta escassez de dados na
obra, poder ter ficado a dever-se restrita massa documental que o investigador consultou o Ncleo Antigo, e
documentao da cmara de Viana do Castelo fugiu-lhe consulta, acervos to importantes como o Corpo
Cronolgico, Chancelarias, Arquivo Distrital do Porto. O autor tambm refere, de forma discutvel, que o
nmero de cristos-novos que viviam nos portos do Noroeste era reduzido, actuando em nmero baixo nas
alfndegas. O autor no se baseia em nenhum estudo, nem em dados estatsticos, para escorar tais linhas de
anlise. Sobre os cristos-novos, Veja-se na obra citada pp. 132-146.
301
Joo Carlos Garcia, Os Txteis em Portugal dos sculos XV e XVI, Finisterra, Lisboa, XXI, 42, 1986, pp.
327-344.
302
Lucien Febvre elucida-nos, de forma brilhante, sobre os riscos desta profisso no sculo XVI. Vide Lucien
Febvre Le Marchand Du XVIe Sicle, Pour une Histoire part entire, Paris, SEVPEN, 1962, pp. 428-453.
297

81

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


contingncia, prpria, da navegao. Importa referir, tambm, que os meios
disponveis na poca para preservar alimentos e outras matrias, eram bastante
dbeis. Quem se dedicava especulao financeira, e se tornava prestamista, tambm
corria riscos bvios, caso no lhe solvessem atempadamente as dvidas. Entre muitos
cristos-novos, o risco no comrcio era aceite como um desafio, e caso perdessem os
seus cabedais e poupanas, rapidamente refaziam os investimentos.
A famlia Paz surge-nos como um bom exemplo desta persistncia nos
negcios, mesmo correndo risco de perdas de capitais os investimentos surgem,
avanam, em muitos dos sectores da actividade produtiva. Diogo de Paz o velho
tido como um mercador prspero que intervm activamente na economia urbana, e
um dos homens ricos da cidade do Porto que dispe exploraes no espao rural303.
Duarte de Paz, negociador de panos e tecidos, investe parte do seu dinheiro no
equipamento de naus que amide demandam a Flandres, carregando as apetecidas
especiarias e produtos da costa ocidental africana. Afonso Francs, conhecido
corsrio, que se ps ao servio de Francisco I de Frana, um especialista da carreira
da Flandres, que faz resgates na Costa do Ouro e da Malagueta, prestava-lhe servio
como mestre de uma nau sua304.
Francisco de Paz305, semelhana do seu primo Duarte, tambm se faz
armador e importador de panos. A dez de Maio de 1532306, consta um registo do seu
navio e da sua mercadoria e o respectivo pagamento do imposto de importao na
Alfndega de Caminha. Nesse dia dizimou Francisco de Paz dez mantas lisas de
Valena aforadas cada uma em mil reis, nove cargas de pedra, erva-doce.
Na Alfndega de Vila do Conde, nos livros da receita de 1504 e 1505, registamse vrios indivduos com o nome de Paz: Gomes Paz, cidado do Porto, um dos
grandes importadores da regio; Joo Paz que bem pode ser mestre Joo que
importou 400 reis em mercadorias; e Joo Afonso Paz307.

303

Antnio dos Santos Pereira, Op. cit., refere Diogo de Paz como um desses homens, mas ficamos sem saber
em que informao se abona.
304
Perdoou D. Joo III uma demanda que Duarte de Paz pusera a correr contra o corsrio antes de ir para Roma.
ANTT, Cartas Missivas, mao 3, doc. 10; e Ana Maria Pereira Ferreira, Problemas martimos entre Portugal e a
Frana na primeira metade do sculo XVI, Cascais, Redondo, 1995, pp. 212-213.
305
No sabemos se o Francisco de Paz morador no Porto, filho de Diogo de Paz, ou se o seu primo de Braga.
306
ANTT, Ncleo Antigo n. 534, Livro da Sisa da Alfndega de Caminha e Viana do ano de 1532, fl. 19 v..
307
Joo Cordeiro Pereira, Para a Histria das Alfndegas, pp. 185, 186,189.
82

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


A 19 de Julho de 1519, Diogo de Paz, recebedor dos portos e alfndegas da
Comarca do Porto, aufere de sua irm, Maria de Paz, viva de Pero Anes, umas
peas dOllamdaa de preo de vinte dinheiros cento e trs cemtos, corenta e oyto. E outra
pea de doze dinheiros de corenta e sete centos e meio. E mais sejs vestimentos de pano pintado
de lla de Frama de pano e mais setecentos ferradujos com trs mill e quatrocentos cravos de
fernjo de Rua.308
O comrcio com os vrios portos do norte da Europa era intenso, como se pode
deduzir pelas referncias aos locais. Mestre Antnio, referia que carreguam cada anno
naaos e nauios para Framdes e pera a Hynglaterra []309
Antnio de Paz, rendeiro de rendas de instituies religiosas, como a da Igreja de
Vila Martim310, recebe o ofcio de recebedor das sisas da cidade do Porto311.
igualmente negociante dos vinhos que entram na cidade e se vendem nos arrabaldes,
que um comrcio em expanso medida que nos vamos aproximando do sculo
XVII312.
Jernimo Fernandes, marido de Justa de Paz, costumava ir duas a trs vezes a
Castela, por ano, com um almocreve. No auto que lhe abriram na Inquisio,
confessa que alguas vezes tratava tambm em officio de marcador de comprar he vender e
custumava hir no ano duas, tres vezes a Castela os quais camjnhos de Castela elle ru fazia asi
do sbado como em os outros dias e no dito dia do sbado camjnhava he se alevamtava cedo e
chamava seu almocreve pera caminharem como em outro qualquer dia da somana no qual dia
do sbado elle ru comprava he vendia e fazia suas caregas asi em Castela como em outras
partes he em sua casa como em outro qualquer dia de trabalho da somana sem hua
defferena.313
Ceder emprstimos de dinheiro era uma forma de aumentar o rendimento
familiar para muitos sefarditas, quer se tratasse do pequeno mercador ou de famlias
de grandes banqueiros314. H registos que evidenciam, numa poca em que circulava
maior quantidade de numerrio, terem os Paz concedido crdito alta nobreza
308

ANTT, Corpo Cronolgico, Parte II, mao 102, n. 94.


Descrio de Entre Douro e Minho, fl. 137 v., Transcrito em anexo.
310
ANTT, Inquisio de Coimbra n. 9169, processo de sua sogra, Branca Dias, fls 20-25.
311
AHDP, Contadoria da Comarca do Porto, Livro 21, fls. 149-149 v..
312
Vide Antnio Cruz, Algumas observaes sobre a vida Econmica e social da cidade do Porto nas vsperas
de Alccer Quibir, Porto, Cmara Municipal do Porto, 1967, pp. 12-13.
313
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo de Jernimo Fernandes, fl. 59.
314
Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, op. cit, p. 274.
309

83

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


cortes e a diversas instituies sociais. Mestre Joo nomeia mestre Toms, seu
cunhado, procurador em Santarm no ano de 1503, para cobrana de uma dvida do
duque de Bragana315. O infante D.Duarte, duque de Guimares, entrava no role de
devedores, aps ter recebido caros tecidos, e protelado indevidamente o seu
pagamento316. Na cidade de Lamego, instituies religiosas e particulares vo
contrair dividas a Jernimo Fernandes. Menciona o marido de Justa de Paz no seu
auto que Emtende provar que elle per outrosi lhe deverem alguas diujdas no convento de
So Martinho de Mouros e no convento de Magneja e no convento de Gosendo, elle hia aos
ditos conventos a demandar e demandava muitas pessoas que lhe deviam suas dividas. E isto
nos dias dos sbados nos quais dias nos ditos conventos se fazem as demandas ordinrias
podendo elle reu demanda-los diante os conventos desta cidade por serem de sua correio nos
dias das segundas.317
Numa poca em que aparecem novos gostos e novas sensibilidades, que tm
implicaes directas nos mercados e na economia, a famlia Paz mostra-se activa, ao
investir em negcios lucrativos (tecidos, produtos da costa africana) ou
disponibilizando crditos para emprstimo, que iam engrossar o movimento de
capitais que se circulavam em torno dos novos produtos e das novas modas.

3.3. Famlia e Negcios no Norte Atlntico: uma rede de cristos-novos em


aco na primeira metade do sculo XVI
Sintoma evidente de que a cidade do Porto e o seu porto martimo e
Alfndega estavam ganhando ascendncia sobre todo o espao de Entre Douro e
Minho, e de uma forma geral, sobre todo o Norte, a medida aprovada por
D.Manuel I de que s na cidade do Porto se pudessem carregar os panos que, da
Comarca de Entre Douro e Minho, se remetessem para a ilha da Madeira.
Promulgao logo contestada pelos moradores da vila de Caminha, que obtm do
soberano uma medida de excepo a 19 de Fevereiro de 1498318.

315

B.A. Montarroio Mascarenhas Theatro Genealogico 1741, cdice 47-XIII-18.


Andr de Resende, op. cit., p. 110
317
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo de Jernimo Fernandes, fl. 58 V.
318
Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua Histria publicados e prefaciados por Joo Martins da
Silva Marques, Vol. III (1461-1500), Reproduo Fac-similada, Lisboa, INIC, 1988, Documento 318, 19 de
316

84

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Nos anos seguintes o Porto continuar a afirmar-se como o grande plo de
atraco de uma vasta regio, no escapando ao seu poder de influncia todo o Entre
Douro e Minho e Trs-os-Montes.
A Alfndega um dos organismos de regulao da actividade econmicocomercial e financeira do Porto, erguendo-se como uma das instituies mais
simblicas e emblemticas da cidade, de uma cidade virada para o comrcio e para o
Atlntico319. Um dos espaos dos mercadores estava localizado na Alfndega
porturia, para onde convergiam rendeiros, comerciantes e pessoal que com eles se
ligavam. Na Alfndega descarregavam-se produtos da Flandres, da Biscaia, do
Brasil, das ndias de Castela. sem duvida um dos locais eleitos pelos homens do
trato para se encontrarem e cuidarem dos seus negcios; um espao de troca e de
negociao, de transaces e acertos comerciais320.
O intenso movimento de mercadorias na cidade estava a gerar fundos
avultados no despacho de produtos. A grande actividade da Alfndega traduz, por
conseguinte, o volume de comrcio crescente e a ampliao das relaes
internacionais que passam pela principal cidade nortenha. Miguel Gomes Bravo,
Duarte Manrique, Diogo de Paz, Dinis Eanes, Miguel Fernandes Pina, todos cristosnovos, tm um vastssimo campo de actuao no comrcio e no trato, que explica o
seu poder e as suas relaes sociais. Os que arrendam as alfndegas desta regio,
como o caso de famlia Paz, investem fundos nas Ilhas, implementam o cultivo da
cana aucareira, do pastel, da produo de vinho, e mais tarde aparecem no Brasil a
investir nos engenhos, em frica a traficar escravos, na Frana, Inglaterra e Flandres
a negociar panos e a transportar produtos, como armadores. A sua ascenso social, e
o aumento do seu poder econmico, caminham a par do surto urbano e da
importncia crescente da praa do Porto321.

Fevereiro de 1498, pp. 482-483.


319
Na primeira metade do sculo XVII Pedro Teixeira escrever que El puerto desta iudad es toda la
anchadura del rio. Bien seguro para quaisquer nauos, que ancoran en l en doze y treze braas frontero de la
iudad. Pedro Teixeira, La Descripcin de Espaa y de las costas y puertos de sus reinos(1634), fl. 47 v., in
El Atlas del Rey Planeta, edio de Felipe Pereda y Fernando Maras, San Sebastin, Editorial Nerea, 2003, p.
336
320
Amndio Morais Barros, Porto: a Construo de um Espao Martimo nos Alvores dos Tempos Modernos,
Tese de Doutoramento em Histria Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pp. 110-111.
O cais, primeiro ponto de chegada das mercadorias e o arco de S. Domingos, eram outros pontos de encontro
destes homens de negcio. Vide loc. cit.
321
Vide Amndio Jorge Morais Barros, Op. cit , Vol. I, pp. 104-107.
85

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Nas alfndegas322 predominava a burocracia . Compunham a sua estrutura
administrativa vrios funcionrios: o juiz da alfndega, o almoxarife, o feitor, o
escrivo.
Portugal, dispondo de uma ampla costa e de vrios portos de mar com boas
condies para o comrcio, tornara-se largamente tributrio das relaes econmicas
com o exterior, mas no possua uma estrutura alfandegria uniformizada. Todavia,
apesar de escorada numa pesada mquina burocrtica, a Coroa no descurava os
mecanismos necessrios para estancar a fuga dos seus direitos, das taxas e dos
impostos sobre os produtos (sisa e dzima) que retirava das transaces no acto do
despacho323. Em causa estava a boa gesto da Fazenda rgia324, no sendo de admirar
essa vigilncia mais cuidada, pois as despesas tendiam a aumentar de forma
exorbitante com o crescimento do Estado e da sua mquina burocrtica. Em
resultado deste aumento das funes do Estado, o monarca deveria suportar os
encargos financeiros exigidos pela sua poltica, figurando em lugar de destaque as
despesas com um exrcito e a uma marinha325.
D. Manuel I (1495-1521) implementa uma srie de reformas administrativas,
procurando uniformizar os pesos e as medidas; D.Joo III (1521-1557) vai apertar a
fiscalizao nas alfndegas.
Mas as medidas mais relevantes foram as reformas manuelinas no incio da
segunda dcada do sculo XVI. Em 1516 D. Manuel promulga um novo Regimento
da Fazenda. As reformas que o documento impunha representam a primeira
tentativa sria para prover a administrao da Fazenda Real com uma contabilidade

322

Sobre as alfndegas v. F. Salles Lencastre, Estudo sobre as Portagens e as Alfandegas de Portugal (sculos
XII a XVI), Lisboa, Imprensa Nacional, 1891, pp. 177- 214; e Joo Cordeiro Ferreira, Organizao e
Administrao Alfandegrias de Portugal no sculo XVI (1521-1557), Portugal na Era de Quinhentos, Cascais,
Patrimnia Historica, 2003, pp. 1-117.
323
Os produtos do Oriente pagam direitos na Casa da ndia. As mercadorias da Europa, segundo J. Lcio de
Azevedo, pagavam os direitos nas alfndegas da raia e martimas ou nas reparties denominadas almoxarifados.
A taxa era de 20%, somando a dzima e a sisa, havendo abatimento em certos artigos (madeiras, tinturaria etc.).
Veja-se J. Lcio de Azevedo, Organizao Econmica Cap. I : Portugal potncia mercantil, Histria de
Portugal, direco de Damio Peres, Vol. III Segunda poca (1411-1557), Barcelos, Portugalense Editora Lt,
1931, pp. 625-664, p.640.
324
O vedor da Fazenda estava intimamente ligado a todo a gesto e nomeao dos agentes. Vide Maria Leonor
Garcia Cruz, A Governao de D. Joo III: A Fazenda Real e os Seus Vedores, Lisboa, Centro de Histria da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2003, p. 117.
325
O elucidativo texto de Joseph Schumpeter La crise de ltat fiscal, in Imprialisme et Classes Sociales,
prsentation de Jean-Claude Passeron, Paris, Les dtions de Minuit, 1972, pp. 239-282, d-nos vias e meios para
pensarmos a questo do aparecimento e generalizao da fiscalidade do Estado.
86

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


uniforme e organizada ao servio de um Estado Moderno326. O processo de formao
das finanas do Estado tem aqui um dos seus pilares. O Regimento de 1516, no
escondendo a vontade centralizadora da Coroa, iria orientar a contabilidade pblica
por mais de um sculo327.
Nome

Cargo

Local

Mestre Joo de Paz

Almoxarife /rendeiro

Rui Mendes

Contador

Diogo de Paz o velho

Recebedor /Feitor/Rendeiro

Francisco de Paz

Escrivo da Fazenda do
Porto

Duarte de Paz

Requeredor/Feitor

Diogo de Paz o moo

Recebedor/Feitor

Heitor Mendes

Meirinho

Francisco Mendes

Juiz de Fora

Cristvo Mendes de
Carvalho
Henrique Mendes da
Cunha

Corregedor/Desembargador
do Pao

Beiras

Contador

Entre Douro e Minho

Pero Anes

Recebedor

Alfndega de Vila do Conde

Entre Douro e Minho


Guimares, Vila Real,
Moncorvo, Bragana
Portos da Comarca do
Porto/Alfndega do Porto
Portos da Beira/Alndega
do Porto
Comarca da
Beira/Alfndega do Porto
Portos da Comarca do
Porto/Alfndega do Porto
Lamego/Entre Douro e
Minho
Viana do
Castelo/Lamego/Viseu

A famlia forma uma rede de ofcios e cargos dentro da Fazenda, dominando


por inteiro todo o Norte de Portugal. Repare-se nos seus cargos, no quadro, e que
justificam esta assero. Os Paz misturam-se na rede de funcionrios que assegurava
o controlo das alfndegas, e que zelava para que o monarca no fosse lesado nos
recebimentos dos seus direitos328. De facto, as Alfndegas controlam o comrcio com
o exterior, e por isso so colocadas prximo das fronteiras para recolher direitos de
toda ordem, que por vezes vo obstruir a circulao comercial329. Actuando na
gesto alfandegria, os Paz agiam umas vezes ao servio da Coroa, outras vezes por

326

Armindo Monteiro, Do Oramento Portugus. Tomo Primeiro Teoria Geral-Histria-Preparao, Lisboa,


edio do Autor, 1921, p. 246.
327
Veja-se o que a este respeito escreve A.A. Marques de Almeida, A estrutura financeira do Estado
Portugus, pp. 496-502. Cfr. Virgnia Rau, A Casa dos Contos, Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra/Instituto de Estudos Histricos Dr. Antnio de Vasconcelos, 1951, pp. 61-63.
328
Isabel M. R. Mendes Drumont Braga, Um Espao, Duas Monarquias (Interrelaes na Pennsula Ibrica no
Tempo de Carlos V), p.283
329
H. Lapeyre, Une Famille de Marchands: les Ruiz, Paris, SEVPEN, 1955, p. 374.
87

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


conta prpria. Almoxarifados, Alfndegas, recebedorias, Contos, eram locais com
importncia para a cobrana de impostos; locais de forte actividade mercantil, de
contabilidade, numa poca propcia ao comrcio.
Instituies alfandegrias bem estruturadas, e tarifas aduaneiras adequadas,
necessrias cobrana do imposto de rendimento e afirmao do Estado, em
territrios grandes ou pequenos, que no seriam grandemente afectadas pelo
contrabando, uma ideia que sempre contou com adeptos330.
Contabilizando os valores arrecadados nas trs comarcas onde intervinham
elementos da famlia de mestre Joo, Entre Douro e Minho, Trs-os-Montes e Beira,
que por sinal tinham os seus almoxarifados e portos secos arrendados331,
rapidamente se infere que esta famlia de cristos-novos se movimentava num amplo
espao que produzia cerca de 40% das receitas332 obtidas entre a totalidade dos
almoxarifados nacionais. Um verba que rondava os 4.952.022 reais333.
No total das receitas das alfndegas, essas trs comarcas ocupavam,
respectivamente, os lugares imediatos a Lisboa, o maior centro porturio do Reino.
Cerca de 72% do comrcio fazia-se por via martima, fundamentalmente atravs dos
portos de Lisboa, Porto e de Entre Douro e Minho. Por seu lado, os portos secos
movimentavam 28% do total do comrcio, sobressaindo desde logo os portos da
Beira e de Trs-os-Montes334. Controlaria esta famlia de cristos-novos todas essas
verbas e a totalidade dos entrepostos citados? No temos dados que nos permitam
defender tal assero, porm, atravs de uma anlise da posio que os seus
membros detinham, no ser descabido pensar que estavam bem posicionados para
o fazer. Se tivssemos que ligar geometricamente os lugares tomados pelos Paz no
Norte do pas uniramos muitos dos almoxarifados e portos secos das comarcas de
Beira, Entre Douro e Minho e Trs-os-Montes335.

330

Vide o que este respeito escreve o economista Friedrich List, Sistema Nacional da Economia Poltica,
traduo de Eduardo de Sousa Ferreira e Karin Paul Ferreira, Prefcio de Eduardo Sousa Ferreira, Lisboa,
F.C.G., 2006, p.517-529.
331
Joo Cordeiro Pereira, A Receita Do Estado Portugus No Ano De 1526. Um Oramento Desconhecido,
Estudos De Histria de Portugal. Vol. II Sculos XVI XX. Homenagem a A. H. Oliveira Marques, Lisboa,
Editorial Estampa, 1983, p. 25.
332
Vide Grfico VI.
333
Vide Quadro X.
334
Todos estes dados esto contidos no estudo de Joo Cordeiro Pereira, A Receita... pp. 30-31.
335
Vide mapa que traamos com base nos postos que ocupavam.
88

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Realidade transcendente aos seus elementos, a famlia surge como uma
organizao de confiana por oposio ao mercado e troca, onde no h lugar para
a ddiva. As relaes familiares tendem, desta forma, a funcionar como construo e
avaliao de toda e qualquer relao social, capaz de sofrer os impactos do exterior e
amortec-los, proporcionando assim as condies ideais para a acumulao de
riqueza e para a reproduo de privilgios econmicos, culturais e simblicos336.
Os Paz no diferiram de outras famlias do seu tempo, e ainda mais daquelas
que se haviam convertido ao cristianismo, no tocante aos factores econmicos e
sociais. A famlia agia como sujeito colectivo, e no como um simples agregado de
indivduos337. Tenhamos presente, ainda, que o conceito de famlia que ento
vigorava substancialmente diferente daquele que hoje impera, fazendo parte da
famlia indivduos sem quaisquer laos de sangue ou parentesco com o ncleo
familiar, mas que com ele viviam e conviviam, partilhando recursos e identidade .
Muito embora residissem no Entre Douro e Minho, estes cristos-novos
expandiram a sua aco para o interior de Trs-os-Montes, associando duas
importantes regies administrativas que no tinham delimitaes precisas. No
interior deste espao, que abarcava por inteiro toda a parte superior de Portugal
mestre Joo e a sua famlia desempenhavam vrias funes ligadas gesto,
arrecadao de dinheiro, e especulao econmica e financeira. Eram Oficiais da
Fazenda: Recebedores, Almoxarifes, Requeredores, Feitores, no descurando,
quando havia possibilidade para o efeito, o arrendamento desses postos comerciais.
Esse foi, sem qualquer margem para dvida, o grande negcio familiar. O poder de
influncia, o prestgio, a capacidade financeira da famlia veio por esta via. Faziam os
preges das rendas dos direitos da Coroa, e simultaneamente arrematavam-nas.
Mestre Joo despachava, como almoxarife, com o seu cunhado Rui Mendes,
Contador de Entre Douro e Minho; Francisco de Paz, filho de Diogo de Paz,
escriturava os Contos no Porto, onde o pai era recebedor das rendas; outro cunhado
de mestre Joo, mestre Toms, encontrava-se no nmero do Porto; o cunhado de
ambos, Diogo e Joo, Pero Anes, encontrava-se como recebedor numa das
Alfndegas com maior movimento e transaces comerciais, Vila do Conde. Ao mais
336
337

Cfr. Pierre Bourdieu, Razes Prticas. Sobre a Teoria da Aco. Lisboa, Celta Editora, 1997, pp. 94-97.
Idem, ibidem, p. 98.
89

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


alto nvel do Estado encontravam-se os sobrinhos do astrlogo, no Desembargo e na
Justia rgia, Cristvo Mendes de Carvalho, Francisco Mendes, Heitor Mendes.
A Famlia era o ncleo essencial da Casa de negcios: a famlia extensa,
integrada por vrios ncleos familiares, unidos por vnculos de parentesco,
consanguneos ou fictcios, que actuavam de forma conjunta seguindo uma estratgia
definida por interesses comuns, compartilhados, sob a direco de um chefe
familiar338. Com a disperso geogrfica dos negcios a rede de agentes dispersava-se
pelos principais centros econmicos, actuando sob uma direco, que actuava como
centro coordenador da rede de agentes. A versatilidade e a distribuio de tarefas
permitiam o xito no mundo duro, exigente e competitivo dos negcios.
Diogo de Paz destaca-se como Recebedor do almoxarifado do Porto, entre
finais do sculo XV e as duas primeiras dcadas da centria seguinte339. A sua aco
s encontra correspondncia no entrepeneur de Joseph Schumpeter: esprito audaz,
indivduo inventivo, criador de inovao, que quebra as fronteiras da rotina e
dinamiza com sucesso os seus empreendimentos financeiros340. Caminha, Aveiro,
Vila do Conde, e sobretudo o Porto, perfilam-se nos negcios deste sefardita. Chega a
entregar Fazenda, no acto de prestao de contas, seis, sete, dez milhes de reais341.
A 6 de Agosto de 1521, firma um contrato com a Fazenda, cujo Vedor era o Baro de
Alvito, para arrecadar a sisa dos panos da Comarca de Entre Douro e Minho, Aveiro,
Coimbra, juntamente com os direitos, que devia embolsar, das alfndegas de
Buarcos, Vila do Conde, Viana do Castelo e Caminha342. Era muito o dinheiro a
passar pelas mos deste Paz. E o poder confiava-lhe essa tarefa, sem contestar a sua
competncia.

338

Veja-se uma descrio, muito explcita, de como actuavam estas redes, por Bernardo Lpez Belinchn,
Famlia, Negcios y Sefardismo, Familia, Religin y Negcio. El safardismo en las relaciones entre el mundo
ibrico y los Paises Bajos en la Edad Moderna, Ed. Jaime Contreras, Garca Garca, J. Bernardo, Ignacio Pulido,
[s.l], Fundacin Carlos de Amberes/Ministerio de Asuntos Exteriores, [2002] , pp. 343-363, sobretudo pp. 351 a
355.
339
Anselmo Braacamp Freire (ed.), Cartas de Quitao Del Rei D. Mauel, Archivo Historico Portuguez, Vol.
I, N. 11, Novembro de 1903, pp. 406-407 carta 153, 154; Vol. II, 1904, pp. 158-159 carta 199, p. 407 carta
658; vol. IX, 1911, p. 434 carta 68, p. 448 carta 708, p. 463 carta 742.
340
Veja-se Joseph A. Schumpeter, Thorie de lvolution conomique, ed. cit., pp. 112. E do mesmo autor , A
Explicao do Ciclo de Negcios, Ensaios. Empresrios, inovao, ciclos de negcio e evoluo do
capitalismo, Lisboa, Celta Editora, 1996, pp. 16-66
341
Vide Grfico I e III.
342
ANTT, Corpo Cronolgico, Parte II, mao 97, n. 81.
90

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


A actividade do seu irmo Joo estendia-se mais para ao interior. O astrlogo
, no princpio do sculo XVI, almoxarife343 de Guimares, de Torre de Moncorvo e
de Vila Real344, entrepostos de avultadas trocas comerciais com Castela, por via
terrestre. Os almoxarifados eram centros de recebimento de rendas e taxas. A sua
fundao remontava ao domnio rabe345. Para a se canalizavam os direitos de
portagem da circulao de mercadorias, do dzimo e os direitos do rei.
Daqui se importavam tecidos, panos e finas sedas mestre Antnio refere que
os ditos portos metiam tres mil panos de castela que so noue cemtos mil reais [...].346 , e
exportavam-se metais, dinheiro e gado347.
No eram incompatveis as funes que mestre Joo exercia como cosmgrafo,
fsico e cirurgio, com as de administrador e arrendador das alfndegas. De uma
maneira geral, os judeus peninsulares, e depois os cristos-novos, no se ocupavam
duma s actividade econmica, sendo muito natural, e frequente, combinarem, por
exemplo, o exerccio da medicina com o comrcio348.
Os filhos e os sobrinhos dos irmos Paz seguem os seus ofcios, trabalhando,
logo que atingem a idade adulta, em prol da rede de negcios familiar. Antnio de
Paz, filho de Diogo de Paz, nomeado Recebedor das sisas dos panos de Entre
Douro e Minho a 27 de Fevereiro de 1526349; Francisco, o irmo mais velho de
Antnio, escrivo da Fazenda do Porto350. Duarte de Paz351 estende a influncia da
famlia mais para sul - D. Joo III concede-lhe, a 8 de Junho de 1525, carta de
Requeredor352 dos portos secos da comarca da Beira, centro de um rendoso comrcio
com a Castela.

343

Oficial responsvel pela gerncia financeira da alfndega.


Vide Anselmo Braacamp Freire, Cartas de Quitao, Archivo Historico Portuguez, Vol. I , n. 11, p. 159
carta 199,; vol. III, 1905, pp. 238-269, cartas 329-3330.
345
Vide Ramn Carand, Carlos V y sus Banqueros, Barcelona, Editorial Crtica, 2000, p. 261.
346
Luciano Ribeiro (ed.), Uma Descrio De Entre Douro E Minho..., p.452.
347
Vide Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Os Judeus Em Portugal no Sculo XV, Vol. I, Lisboa, Universidade
Nova de Lisboa Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, 1982, pp. 290-291.
348
Idem, Ibidem, p. 274.
349
A.NTT., Chancelaria de D. Joo III, Liv. 36 fl. 53.
350
ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, Liv. 36 fl. 78.
351
Sobre Duarte de Paz veja-se o nosso estudo Duarte de Paz, um lder da Comunidade Sefardita em meados
do sculo XVI. Novos dados biogrficos.
352
Idem, Ibidem, Liv. 8 fl. 63 v.. Competia aos Requeredores, atravs de uma vigilncia apertada das
mercadorias despachadas, zelarem pelos interessas da Coroa nas alfndegas. Sobre os ofcios existentes nas
alfndegas v. Systema ou Colleco dos Regimentos Reaes, dado a Luz por Joze Roberto Monteiro de Campos
Coelho e Soisa,, Lisboa, Officina de Francisco Borges de Soisa, 1783, captulo CL.
344

91

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Duarte de Paz ser ainda nomeado, quatro anos mais tarde, feitor da sisa dos
panos da alfndega do Porto353; cargo que passar a seu irmo Diogo em vsperas de
ir para Roma. Nas contas que so prestadas Fazenda em 1534, Duarte de Paz
referido como recebedor que foy da mea dizima e sysa dos direitos das sedas que vieram de
Castella [...].354.
A famlia vai rapidamente disseminar-se por todo o pas. Para Lisboa viera Joo
de Paz, um dos filhos de Diogo de Paz. Joo era feitor da nau Esprito Santo, e a
Casa da Moeda de Lisboa confiou-lhe, em 1521, 184 marcos, 6 onas, 3 oitavas e 26
gros de ouro fino355. Um dos seus irmos, Ferno Lopes, vivia, igualmente, na
capital. Integrava o Conselho acadmico do Estudo Geral de Lisboa no ano de 1532, e
regia a cadeira de Cnones356. Em Tavira residia Francisco Rodrigues, filho de
Genebra de Paz. Um seu primo homnimo, Francisco, filho de Henrique de Paz,
morava em Braga com o seu filho Jorge, escudeiro Real357, enquanto Ferno de Paz,
um dos filhos mais novos de mestre Joo, moo da cmara da rainha D. Catarina,
mulher de D.Joo III, e um dos servidores do prncipe D. Duarte358.
Lamego, Vila Flor, Elvas, Barcelos, Vila Viosa, so outros tantos destinos da
famlia. A rede de contactos e influncias no se ficava pela Arcebispado de Braga.
Estendia-se ao nmero do Porto, atravs de mestre Toms, fsico, cunhado de
mestre Joo359; Corte, com mestre Joo, Ferno de Paz, Duarte de Paz, mestre Filipe
e mestre Toms; Cmara do Porto (Diogo de Paz O Moo); Misericrdia (o
mesmo Diogo de Paz); Fazenda360; Contadoria de Entre Douro e Minho - vrias
mulheres da famlia casam-se com filhos de contadores dessa Comarca; Corte do

353

Duarte nomeado feitor da alfndega do Porto em 1529, pouco antes de ir para Roma. Diogo recebe essa
mesma Carta (de feitor) em 1532. Idem, Chancelaria de D. Joo III, Liv. 16 fl. 97 e Liv. 48 fl. 47.
354
Idem, Ibidem, Liv..52, fl. 130.
355
Vitorino Magalhes Godinho, Os Descobrimentos E A Economia Mundial, Reimpresso, Vol. I, Lisboa,
Editorial Presena, 1991, p. 243.
356
Actarium Chartularii Universitatis Portugalensis, organizao de A. Moreira de S, Vol. III, Lisboa, Instituto
de Alta Cultura, doc. MCXIX, 10 de Junho de 1532; MCXX, 19 de Junho de 1532; MCDLX, 27-28 de Maro de
1537.
357
ANTT, Chancelaria de D. Joo III, Liv. 18 fl. 2 v.
358
Filho de D. Manuel e futuro duque de Guimares, casado com uma filha do duque D. Jaime de Bragana.
Duarte de Resende conta as peripcias de Ferno de Paz na Corte de D. Duarte. V. Andr de Resende, Vida Do
Infante Dom Duarte Pelo Mestre Andr de Resende, com prlogo do Abade Jos Correia da Serra, Lisboa,
Academia Real das Cincias, 1789, Andr de Resende- Obras Completa, prefcio do Professor Jos Pereira
Tavares, Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1963, capitulo 8.
359
ANTT., Chancelaria de D. Manuel I, Liv. 30, fl. 44 , Carta de procurador do nmero do Porto, atribuda a
mestre Toms a 6 de Maio de 1497.
360
Idem, Chancelaria de D. Manuel I Liv. 36 fl. 78.
92

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


duque de Bragana, primeiro com mestre Joo e depois com seu filho Toms;
Universidade, onde leccionam Ferno Lopes de Paz, mestre Filipe e mestre Toms; s
vrias alfndegas, que uniam vrios pontos do pas. Como funcionava esta ampla
rede? Qual o seu verdadeiro poder?
Temos prova que, pelo menos, funcionava de forma expedita. Mestre Filipe, um
dos astrlogos que D. Manuel nomeia para reformar os estudos de Matemtica na
Universidade de Lisboa, e leccionar uma cadeira de Astronomia em 1513, juntamente
com mestre Toms Torres361, que muito possivelmente o cunhado de mestre Joo
na coincidncia, e no facto de Joo de Paz, anteriormente, ter estado ligado aos meios
nuticos, estudando regimentos e estrelas -, recebedor da sisa do Pao da Madeira
em Lisboa, trabalhava nas alfndegas e era mestre em Medicina. A 14 de Julho de
1523, j na posse da sua ctedra, mestre Filipe passa uma procurao, na vila de
Tomar, a Diogo e Francisco de Paz, pai e filho, para receberem na alfndega de Vila
do Conde a quantia de 100 mil reais despachados a favor de lvaro de Castro, pai e
herdeiro de Nuno de Castroto, falecido na ndia362.
O mesmo tipo de ligao e associao se suceder com Lus e Gabriel de Negro,
rendeiros das ilhas, que celebram frequentemente contratos com a Coroa para
arrendar a cobrana de impostos ou monopolizar a venda de produtos,
especialmente o acar. Um contrato chegou at ns, em que referido a venda de
1000 arrobas de acar da ilha da Madeira363.
Mas a rede montada pelos Paz chegava aos mais altos escales da Fazenda.
Repara-se que Diogo de Paz o-moo o representante e procurador, na cidade do
Porto, do Conde Vimioso, Vedor da Fazenda. A 26 de Outubro de 1538 encarregue
de arrecadar as rendas e dvidas que o Conde e seus filhos, D. Joo e D. Manuel,
tinham a haver364. Os primos de Diogo de Paz o-moo, todos com ofcios e funes na
Justia rgia (Heitor Mendes, Cristovo Mendes de Carvalho, Francisco Mendes),
deram, muito possivelmente, um precioso contributo rede familiar, tendo em conta

361

Vide Lus de Albuquerque, O Primeiro Livro de Aritmtica Impresso Em Portugal, Para a Histria da
Cincia Em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1973, pp. 98-.120.
362
ChartelariumVol. XII (1521-1537), Lisboa, ed. cit., 1995, doc. 5224, de 14 de Julho, 1523, p.313.
363
ANTTT, Corpo Cronolgico, Parte II, mao 117, n. 16.
364
Arquivo Distrital do Porto, Convento de S. Bento da Vitria, Doc. 12.
93

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


que eram frequentes as demandas entre os oficiais da Fazenda e o povo, e entre os
prprios Almoxarifes, Recebedores, rendeiros e outros oficiais365.
extraordinrio a forma como esta rede de negcios e ofcios se estrutura no
espao. De Caminha a Viana, de Guimares a Bragana, de Moncorvo a Lamego, da
Guarda a Coimbra, da Covilh a Elvas; cruzam-se rotas, caminhos, produtos,
mercadorias, homens, servidores, mulas e almocreves, navios ligando portos,
importando e exportando produtos. Um dos importantes indicadores da riqueza
desta famlia de cristos-novos, a prpria forma como se associam e partilham
projectos financeiros, criando riqueza que os conduzir ao sucesso. Faziam
coisas diferentes, estavam dispostos a assumir riscos, a investir capitais, a apostar
na novidade.

4. Apropriao e representao do espao: o desgnio de uma rede


familiar
Duas das corografias mais citadas, conhecidas e inovadoras do sculo XVI, a
Descrio de Entre Douro e Minho, de mestre Antnio de Guimares, escrita em
1512 e a Descrio do terreno ao redor de Lamego duas lguas (1531-1532), da
autoria de Rui Fernandes, esto associadas famlia Paz. Perante os dados que
dispomos, podemos asseverar que os dois textos nascem relacionados com a
actividade econmica, social, poltica e cultural destes cristos-novos. Um dos
autores, Rui Fernandes foi mesmo identificado como membro da famlia, cunhado de
Justa de Paz, neta de Rui Mendes e sobrinha-neta de mestre Joo de Paz366. Mestre
Antnio, respeitado fsico vimaranense residiu inicialmente no mesmo espao dos
Paz, na Vila de Guimares, em Santa Maria da Oliveira.
A vida social assenta em tcnicas, prticas e conhecimentos geogrficos. A famlia
Paz compreendeu isso desde logo. Para explorar o meio, para tirar rendimentos e
proventos do comrcio, das rendas, da venda de produtos, era necessrio um
conhecimento efectivo dos lugares e do espao, de Entre Douro e Minho e de todo o

365
366

94

Maria Leonor Garcia da Cruz, Op. cit., p. 64.


ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo n. 3225 de Justa de Paz.

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Norte. Os textos de mestre Antnio e de Rui Fernandes preenchiam essas
necessidades
O Tratado sobre a provncia d'antre douro y minho y suas avondanas, copilado
por mestre Antnio Fisico e elorgiam morador na vila de Guimares e natural
della, foi um dos textos de geografia manuscritos com maior aceitao entre os
sculos XVI e XVIII. surpreendente para poca a forma como mestre Antnio
quantifica dados de natureza demogrfica, econmica e financeira, ou descreve
minuciosamente a geografia religiosa e militar de Entre Douro e Minho no princpio
do sculo XVI. Que o pequeno texto brotasse directamente do conhecimento que um
dos grupos familiares mais prsperos da Regio (os Paz) tinha da realidade
econmica, social e financeira desse espao, um facto, pertinente, que deve ser
tomado em considerao
Actualmente, conhecem-se cinco cpias do manuscrito367, permanecendo quatro
inditas. Luciano Ribeiro publicou uma das cpias em 1959. Escrita em letra do
sculo XVI, faz parte do cdice MVII3 (fols. 282 a 289) do Arquivo da Casa da
Fronteira, inserido actualmente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em Lisboa,
Coimbra e Porto permanecem os outros quatro textos aparentando serem cpias do
sculo XVIII.
Na Biblioteca Nacional existe um cdice com a cota Ms 245. Tem por ttulo
na lombada: Sumario dos Reys. encadernado em pergaminho, contendo 86 fols.
Nele esto contidas duas obras. A primeira da autoria de Ferreira de Vera lvaro,
Chronica e Geneologia dos Reis de Portugal (Desde o Conde D. Henrique at
D.Pedro I) vai do fl. 1 ao 79 v.. No fim (fls. 80 a 86 v.) encontra-se includa a cpia
do sculo XVIII da Provincia dantre Douro e Minho copilada por mestre Antonio
fisico e sorgiam morador na villa de Guimares e natural della.
O texto de Coimbra, desde muito cedo noticiado por A. Rocha Brito, faz parte
de um manuscrito, de que ocupa as pginas 9 a 44, escrito em letra do sculo XVIII.368

367

Joaquim Verssimo Serro cita mais uma na Biblioteca Pblica de vora, a qual no localizamos. Joaquim
Verssimo Serro " Dois Antiqurios de Entre Douro e Minho..." p. 11.
368
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Obras Vrias, cota 52. Vide tambm : A. Rocha Brito O
Tratado sobre a provincia d'antre douro e Minho e suas Avondanas, copilado por mestre Antonio Fisiquo e
olorgiam morador na vila de Guimares e natural della, Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade,
Vol. XII, Coimbra 1935.
95

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


No Porto encontra-se o manuscrito mais completo369. Aparentando ter o tipo
de caracteres em uso entre os fins do sculo XVII e princpios do sculo XVIII370,
compe-se de um conjunto de quatro tratados com o ttulo de "Histria Geografica".
O manuscrito pertence ao Fundo Azevedo, dos Reservados da Biblioteca Pblica
Municipal e tem a cota F.A 16. J dentro do cdice aparece-nos um subttulo: Historia
Geografica de varias partes do mundo e huma breve noticia de algumas couzas mais raras
delles tudo por Mestre Antonyo Fisyquo, e Colorgio natural e morador de Guimaraens em
1512.
Pensamos tratar-se de uma compilao de textos, todos do mesmo autor. O
mais conhecido o primeiro, o "Tratado de Entre Douro e Minho", seguindo-se
pequenos "tratados", na sua maior parte prximos das temticas dos herbrios,
fabulrios, bestirios.371 Escritos muito difundidos durante a Idade Mdia e no
princpio da Idade Moderna, transportavam ideias acerca da imagem do Mundo, que
se esgotaram quando as navegaes portuguesas e espanholas dos sculos XV e XVI
trouxeram notcias, descries e relatos de novos continentes e civilizaes. Segundo
o Professor Lus Filipe Barreto, o peso do imaginrio e do fabuloso, no campo da
descrio antropolgica e zoolgica, no deixa de se fazer sentir mesmo em muitos
dos casos que seguem de perto os factos empricos - embora estejam em processo de
retraco372.
Uma possvel explicao para o manuscrito do Porto ser o mais completo373, e o
nico em tal condio deve-se, eventualmente, importncia acrescida que teve o
"Tratado d' Antre Douro e Minho", pela sua originalidade. Muitos dos que se
interessaram pela descrio geogrfica a contida preocuparam-se, sobretudo, com
aquele "Tratado", bastante inovador para a poca, ignorando os pequenos textos, que
no eram muito mais do que glosas de frases de Santo Isidoro, Plnio, e outros
autores da tradio escolstica e medieval.374

369

Estamos neste momento a preparar a edio do exemplar existente na Biblioteca Pblica Municipal do Porto.
O professor Lus Filipe Barreto cita esta cpia num dos seus trabalhos.
371
Temos em curso a sua edio crtica.
372
Lus Filipe Barreto, "A Ordem do Saber na Antropologia dos Descobrimentos" Op. cit. p. 35
373
Transcrevemos em anexo o texto por inteiro.
374
Biblioteca Pblica Municipal do Porto, FA16, Historia Geografica de varias partes do mundo e huma breve
noticia de algumas couzas mais raras delles tudo por Mestre Antonyo Fisyquo, e Colorgio natural e morador
de Guimaraens em 1512, fl. 35-51.
370

96

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Entretanto, foi possvel encontrar uma cpia do texto de mestre Antnio, que
havia sido sofregamente procurada por investigadores como Lus de Pina, ou
Luciano Ribeiro, entre as crnicas de Rui de Pina, que se ter interessado tambm
pelo texto375. No foi o nico. Na Biblioteca da Ajuda, Cdice 50-V-31 Memorias de
Cousas Varias Antigas, em que se reproduz parte da descrio, est escrito: Tem este
cartapacio semto e outenta e sinquo folhas o qual he de uarias cousas mui antigas tiradas de
diferentes liuros e escretura e mandoo trasladar o Conde da Castanheira Dom Joo por outro
que tinha seu tio senhor Dom Antnio de Atayde e no h outro treslado deste cartarpao.
Ou seja, as elites, os homens de governo, a prpria Coroa apropriou-se da obra
geogrfica e largo conhecimento tinha dela.
Mas quem foi na realidade mestre Antnio? Em que circunstncias, e com que
objectivo (s) redigiu a sua geografia?
O nome de um autor no uma mera referncia. Ele exerce dentro dos discursos
um determinado papel classificando, agrupando, desvelando propsitos e funes.
O nome de autor e o seu estatuto delimita, caracteriza um discurso, as suas formas de
recepo e circulao376.
O que se sabia de mestre Antnio377, at muito recentemente, veiculado pelo
discurso historiogrfico, eram factos dispersos e pouco coerentes sobre a sua
identidade. Joaquim Romero de Magalhes e Joaquim Verssimo Serro, ao referiremse a mestre Antnio nos seus trabalhos, apontaram-no como "um desconhecido"378 de
que "pouco se conhece da sua vida"379. Parece-nos assim razovel concluir que, para a
historiografia portuguesa, a identidade do mdico minhoto continua por apurar.
De uma maneira geral os autores que se dedicaram ao estudo do "Tratado de
Entre Douro e Minho", refugiaram-se nas nicas referncias a contidas: "Tratado sobre a

375

Provincia Dantre Douro he Minho copillada por mestre Hantonio fisiquo he solorgiam morador na na Villa de
de Guymaraees he naturall dela, Miscellanea histrica de Portugal Sc. XVI, B.A, Cod. Ms 51-X-22. Fazemos a
transcrio do manuscrito em anexo.
376
Vide o incontornvel texto Michel Foucault, O que um autor? 3 ed.,. Lisboa, Vega, s/dt. (1997?), pp.44-45.
377
Para uma discusso mais detalhada sobre a identidade de mestre Antnio, Veja-se Carlos Manuel Valentim,
Um Humanista Contemporneo de Pedro Nunes Mestre Antnio de Guimares, Actas do Colquio Pedro
Nunes, Novos Saberes na Rota do Futuro, Lisboa, Escola Naval, s/dt., pp. 355-366, e em seguida publicado,
com alteraes mnimas, noutro local: Um Gegrafo Contemporneo de Pedro Nunes Mestre Antnio de
Guimares", Anais do Clube Militar Naval, Vol. CXXXII, Outubro Dezembro 2002, pp.721-750.
378
Joaquim Romero de Magalhes, "O Enquadramento do espao nacional", Histria de Portugal, (Dir. de Jos
Mattoso), Lisboa, Crculo de Leitores, 1993, Terceiro Volume No Alvorecer da Modernidade, coor. de []
p.18.
379
Joaquim Verssimo Serro, "Dois Antiqurio de Entre Douro e Minho no sculo XVI, p. 10.
97

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


prouincia damtre douro e minho y suas auondanas copilado por mestre Amtnyo fisyquo e
olorgio, morador na villa de guimaraes e natural della"380.
No seguimento de Barbosa Machado381, Inocncio da Silva admitiu como muito
provvel ter sido mestre Antnio fsico e cirurgio-mor d'el Rei D. Joo II, natural de
Torres Novas, filho de Mestre Toms e pai de Nicolau Lopes, que fora igualmente
mdico do rei382. Estes dois eruditos autores cairam em contradio. Se inicialmente
Mestre Antnio aparecia com naturalidade de Guimares, porque que lhe era
atribudo o nascimento em Torres Novas? Como fora feito mdico da Cmara de D.
Joo II, quando na documentao no havia qualquer registo nesse sentido? Tratar-seia do mesmo autor? A confuso de nomes e cargos poder ter ficado a dever-se
aluso feita por Garcia de Resende na Crnica de D. Joo II a um mestre Antnio,
fsico e cirurgio-mor, converso, autor de um escrito clebre contra a f judaica383.
Atravs dos estudos de Lus de Pina (1901-1972), um cuidadoso investigador da
histria e da geografia de Entre Douro e Minho, sabemos que mestre Antnio viveu
em Guimares e que possua um forte vnculo Confraria do Servio de Santa Maria,
sendo seu mordomo384. Como corolrio destas funes, havia estabelecido estreitas
relaes com Colegiada de Santa Maria da Oliveira, atestadas pela sua interveno
nalguns actos pblicos em que era parte interessada a Colegiada e a prpria Confraria
do Servio de Santa Maria385.
Com efeito, no ano de 1504 o nome do "fsico" constava como testemunha de uma
clusula testamentria, na qual D. Loureno de Andrade deixava ao cabido de
Guimares "o Casal do Outeiro" na freguesia de S. Cristvo em Riba de Selho 386. A 6
de Maro de 1508 estava novamente presente, como "mordomo mestre Antnio", numa
380

Apesar de estarem inditas trs cpias deste "Tratado" temos em preparao a publicao de uma das
cpias, existente na Biblioteca Pblica Municipal do Porto vamos seguir a publicao feita por Luciano
Ribeiro, citada na nota 10.
381
Que defende ser Mestre Antnio natural de Guimares e mdico de D. Joo II; posteriormente, rectifica a sua
posio: o autor das "auondanas damtre douro e minho" seria filho de Mestre Toms, natural de Torres Novas e
no de Guimares. Vide Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, Coimbra, Atlntida Editora, 1955, Tomo I pg.
194 e Tomo IV pg. 21.
382
Innocencio Francisco da Silva da Dicionrio Bibliogrphico Portuguez, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858,
Tomo I pp. 77-78.
383
Garcia de Resende, Crnica de D. Joo II e Miscelnea, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1973,
Prefcio de Joaquim Verssimo Serro, V. Captulo XCI "Da honra que el Rey fez a Mestre Antonio", p. 132.
384
Lus de Pina, O Cronista Rui de Pina e Mestre Antnio Fsico da Renascena, Separata do "Instituto", vol.
86, n3, Coimbra, 1933.
385
Idem, ibidem, p. 8.
386
Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (AMAP) Guimares, Fundo da Colegiada de Nossa Senhora da
Oliveira Testamentos e Doaes do Cabido, Tomo II Cota C 1386, fs. 147 a 149 v.. Cpia de 1717.
98

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


doao feita por Maria Nunes, viva, Confraria do Servio de Santa Maria, de um
prazo e doao do Casal da Cova387. Finalmente, a 30 de Junho de 1531 "pareceo mestre
Antonio fisico morador na dita villa (...)"388, diante dos vereadores da Cmara de
Guimares com o intuito de comprar umas casas a Miguel Bem-Telhado.
Ficava provado, desta maneira, e de forma cabal, a ligao do autor da
geografia de Entre Douro e Minho a Guimares e, facto no menos importante, os
registos encontrados de 1504 a 1531 comprovam os cargos e funes que
desempenhava. Permanecia por esclarecer o local do seu nascimento, que muito
provavelmente seria Guimares!? Em relao ao seu falecimento, Gaspar Estao d
conta que Mestre Antnio viveu at "cerca dos annos do senhor de 1533"389.
Uma outra importante indicao adicional assinalava: "Mestre Antnio, X.N., [...],
morador em Guimares e falecido em 1533, o conhecido autor do Tratado sobre a provncia de
Entre Douro e Minho e suas avondanas, que comps em 1512." Esta informao, que fora
colhida no Arquivo Distrital de Braga, nos Cadernos de Matricula de Ordens de
Menores, pelo investigador Eugnio de Cunha Freitas390, permite-nos saber que no
"Anno do nascimento de nosso Senor Jhesus Christo de Mil e Quinhentos e 4 annos, seis dias
do ms dabril (...) " era ordenado in minoribus "Ffrancisco filho de mestre Antnio e de sua
molher Francisca Rodriguiz nouos christos moradores em Guimares na freguesia de Samcta
Maria d'Oliueira." 391
Nessa documentao h duas notcias importantes sobre a vida do mdico que
vale a pena reter. Por um lado, o nome e nmero de filhos ordenados392: Henrique,
Francisco, Aires e Duarte; por outro, o lugar da sua residncia: Santa Maria da Oliveira.
Neste local moravam muitos cristos-novos e grande parte da elite de Guimares,
principalmente religiosos e gente abastada. em St. Maria, como vimos, que residiam
os Paz.

387

Abade de Tagilde, "Catlogo dos Pergaminhos existentes no Archivo da Real Collegiada de Guimares",
Archeologo Portugus volume XIII, Janeiro Junho, 1908, doc. CCCLXXII, p. 288.
388
AMAP Vereaes e Acrdos da Vila de Guimares, Livro n. 1 Cota M 1797, Fol. 152 V. 153 v..
389
Gaspar Estao, Vrias Antiguidades de Portugal, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1625, p. 202.
390
Eugnio de Andra da Cunha Freitas, "Nomes e datas", O Porto e os Descobrimentos, Porto, Biblioteca
Pblica Municipal, 1972, p. 217.
391
Arquivo Distrital de Braga, Cadernos de Matrcula de Ordens da Diocese de Braga, Livro V 1500-1505, fl.
258.
392
Arquivo Distrital de Braga, Cadernos de Matrcula de Ordens da Diocese de Braga, Livro V 1500-1505, fl.
164 V., fl. 258, fl. 309 v., e Livro VII 1514-1522, Caderno 11 fl. 14.
99

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Fomos encontrar mais dois dados importantes, registados nas chancelarias reais. O
primeiro d-nos conta que a 1 de Outubro de 1498 "Mestre Antonyo morador em a vila
de Guimares" requereu a carta de medicina. Anos mais tarde, em 1521, a 18 de
Fevereiro, D. Manuel concedia "licema a Mestre Amtonio fisyco e celorgiam morador em
Guimaraes para que ele possa [andar] em mula"393.
No primeiro caso, o pedido de confirmao da Carta de Medicina explicado
pelas novas regras exigidas integrao da comunidade judaica, para os que optaram
por permanecer em Portugal, promulgado que estava o dito de expulso em 14961497. A documentao no nos revela se o cirurgio ter mudado o seu nome. Ficar
conhecido por mestre Antnio de Guimares ou simplesmente mestre Antnio.
Mas o seu nome completo, citado por frei Rafael de Jesus, ele prprio um vimaranense,
cronista-mor do reino em 1683, era Antnio da Costa de Miranda [] Licenciado e natural
de Guimares394. No h dvida que mestre Antnio fazia jus sua naturalidade,
dizendo-se nascido e criado no Entre Douro e Minho "amor e afeio que tenho aa
natureza e aa comarqua onde nay e me criey (...) ".
Em resumo, interessa sublinhar dois factos que alteram substancialmente o
conhecimento que tnhamos, at ao momento, do autor que concebeu no princpio do
sculo XVI, o Tratado da Provncia de Entre Douro e Minho. Em primeiro lugar, a
sua condio de cristo-novo ; em segundo lugar, a circunstncia de ser membro da
Confraria do Servio de Santa Maria, importante irmandade religiosa, bem
implantada na cidade bero, estendendo a sua influncia para alm do estrito limite
urbano vimaranense. A estes importantes dados, vm juntar-se dois outros: o nome
completo do afamado mdico (Antnio da Costa de Miranda) e o seu grau de estudos
(Licenciado).

Estas

novidades

possibilitam,

estamos

em

crer,

um

melhor

esclarecimento de como foi possvel a um autor do incio do sculo XVI recolher tanta
e to variada informao sobre um espao, um espao fsico, social e econmico.
Informao que s era acessvel a um restrito grupo de pessoas e entidades.
Mestre Antnio, bom lembr-lo, teve como objectivo a descrio de uma
regio o Entre Douro e Minho , os aspectos relacionados com o seu meio fsico e as
diversas actividades humanas, no perdendo de vista o seu enaltecimento e sua
393

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, Livro 31, fl. 139 e Livro 44 fol. 40.
Frey Raphael de Iesus, Monarquia Lusitana, Parte Stima, Lisboa, Antnio Craesbeeck de Mello, 1683, livro
10, capitulo 3, p. 497.
394

100

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


apologia, referindo que No reino de Portugal haa hua minima parte que casy no reino no
hee conheida sendo a mais excelente orta que no mumdo se posa achar de sua cantidade
[].395
Por essa poca estava em discusso o conceito de Geografia o seu campo de
estudo e a(s) sua(s) rea(s) de interesse. A palavra Geografia, utilizada nos vrios
textos eruditos, tem uma conotao difusa e pouco clara. Assim o demonstram as
primeiras edies impressas no Ocidente da Geografia de Cludio Ptolomeu, em
traduo do grego para o latim, que saem do prelo com o ttulo de Cosmographia.
Quando se tratava da descrio de lugares e de regies, era mais usual o termo
Corografia. Todavia, a "discusso" sobre o objecto de estudo da Geografia
continuar ao longo de todo o sculo XVI. Em Portugal, Pedro Nunes interessa-se
pelo assunto396, tal como D. Joo de Castro que coteja, com animado interesse, as
ideias deixadas em aberto por Ptolomeu397. Para alm das diferenas de opinio e do
confronto de ideias, a maioria, de entre a elite humanista no Renascimento, continua
apostada em separar as matrias de interesse geogrfico. Enquanto uns vem na
Geografia uma disciplina muito prximo da Astronomia e da Matemtica, outros,
mais entusiasmados com as suas terras, como Mestre Antnio, "vo descreuedo todas e
as muy pequenas partes que em ellas se acham: como Portos. Quints. Pouos. Rodeos de rios:
e cousas desta qualidade."398
A palavra Corografia, que passa a ser usada com frequncia no
Renascimento (sc. XV-XVII), distinguindo-se da Geografia, implica uma maneira
de pensar o espao que tem a sua classificao na herana clssica399, inserindo-se
numa longa tradio devotada descrio de lugares e povos, culturas e tradies.
Os seus expoentes mximos so Herdoto (C.484-424 a. c.) e Estrabo (c.58 a. C. 25
d. C.).

395

Luciano Ribeiro, "Uma Descrio, p. 445.


Traduzindo, por exemplo, o Livro Primeiro da Geografia de Ptolomeu; nica traduo que se conhece vertida
para portugus, da obra do alexandrino. Vide Pedro Nunes, Obras I, Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1940,
pp. 92-93.
397
D. Joo de Castro, "Da Geografia por Modo de Dialogo", Obras Completas de D. Joo de Castro, Ed. crtica
por Armando Corteso e Lus de Albuquerque, Coimbra, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1968,
Vol. I pp. 109-111.
398
Livro Primeiro da Geografia de Ptolomeu in Pedro Nunes, Obras I, Ed. cit., p. 92
399
Vide Lus Filipe Barreto, A Chorografia de Gaspar Barreiros, Portugal Mensageiro do Mundo
Renascimento, Lisboa, Quetzal Editores, 1989. pp. 93-116, pp. 111-112.
396

101

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


fomentada uma separao clara entre o desenhar a carta e a descrio de
zonas e locais. A Corografia, virada para a exposio escrita, uma geografia
secundria400 se comparada Geografia matemtica, que balizava as coordenadas
terrestres e representa a terra graficamente. Para alm disso, a Corografia descrevia
lugares, pessoas, modos concretos de vida. Muito embora entrelaada com a
literatura, desperta a curiosidade de alguns estudiosos, at que os Estados se dem
conta da sua importncia; porque os Estados tm uma necessidade crescente destas
descries;

porque

administrao

pblica,

aumentando

em

tamanho

complexidade, tem urgncia no conhecimento dos territrios que administra, na


populao que a vive, dos acidentes orogrficos, da rede hidrogrfica, estradas e
pontes, das finanas, e dos moldes em que se processa a defesa do territrio. Os
Estados modernos que esto a reforar-se, a afirmar-se na poltica internacional,
querem dominar o seu territrio e s o faro devidamente se tiverem o conhecimento
suficiente sobre os seus recursos, humanos e materiais401.
Ainda no se dominam todos os utenslios para um inventrio perfeito e
completo de um territrio, bem verdade. Tem de se apontar, reconhecer, narrar,
contar. Tudo isso exige uma nova mentalidade que est a nascer. Durante os sculos
XV e XVI, a concepo dualista da Geografia vai influenciar prticas, atitudes e a
forma de "ler" o mundo. O gnero descritivo moderno foi iniciado pelo humanista
Flavio Bioando, com a sua Italia Illustrata de 1453402, surgindo, nessa esteira, obras
onde se cantam as belezas dos mais variados lugares e regies, exaltando-se o poder
e a riqueza dos senhorios locais. Os seus autores so, na sua grande maioria,
secretrios de grandes senhores laicos e eclesisticos, poetas e historiadores oficiais"
ao servio dos Estados ou de poderes regionais403.
No chegam as simples descries de stios e lugares, o Estado quer mais
objectividade, mais certeza no que descrito. Surgem os primeiros relatrios, de
fogos, ruas, igrejas, conventos, rendimentos. H uma recreao, uma inveno da
400

Idem, ibidem.
Veja-se Duas Descries do Reino do Algarve do Sculo XVI. Frei Joo de S. Jos, Corografia do Reino do
Algarve (1577). Henrique Fernandes Serro, Histria do Reino do Algarve (circa 1600) . Apresentao, leitura,
notas e glossrio de Manuel Viegas Guerreira e Joaquim Romero Magalhes, Cadernos da Revista de Histria
Econmica e Social, Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1983, p. 4.
402
Lus Filipe Barreto, Op. cit, local. citado.
403
Cfr. Broc, Numa, La Gographie de la Renaissance, Paris, Les ditions du Comit des Travaux Historiques et
Scientifique, 1986, pp. 99-103.
401

102

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


escrita e da Geografia. Agora, as novas observaes tendem a substituir as antigas.
As primeiras descries tm por objecto a Hispania como uma s unidade404. Em
seguida aparecem as descries regionais, que ficam, em muitos casos, manuscritas.
Um bom exemplo -nos dado atravs dos textos redigidos para as provncias de
Entre Douro e Minho, Trs-os-Montes e Algarve. Para Lisboa imprimem-se relatos,
sendo dos mais conhecidos o de Damio de Gis.
O Estado Portugus organiza-se para partir em busca de novos espaos. Tal
como nos sugere o Professor Romero de Magalhes, numa poca de organizao e
reorganizao dos espaos polticos e administrativos, As corografias procuram
responder s necessidades de informao, ou de propaganda. Parece-nos que para ela se
encontrou bastante cedo uma como que chapa: nome da terra; nmero de vizinhos ou fogos,
defesas do casco urbano, produes mais importantes, sem esquecer igrejas e conventos, e os
senhores da terra; curiosidades se houver, so gostoso tempero: a rvore gigante, a furna
misteriosa..., o cipo romano, de preferncia a qualquer coisa.405
No que diz respeito ao Entre Douro e Minho, mestre Antnio pinta os vrios
lugares da comarca, advogando que tem todalas as cousas que lhe necessrios so pra os
naturais della em abatana [].406 Encontramos no centro do discurso do cirurgio
uma nova informao, esmiuada, minuciosa, das localidades e pessoas, das
actividades econmicas e das tradies. Um trabalho que utiliza novas formas de
abordagem, que recorre experincia emprica e utiliza abundantemente a
observao: nom pus seno aquelas cousas que podero acorrer a minha noticia asy do que
eu sabya na dita comarqua como do que me emformey []407 rompendo com o discurso
geogrfico tradicional institucionalizado, que se baseava nos antigos autores. O
cristo-novo d-nos em perspectiva uma regio prspera, economicamente pujante,
com um comrcio assinalvel, por mar e por terra, com o exterior: carrego cada hum
ano nos e nauios pa framdes e pra Imgraterra e pra outras partes, limes, limas, cidras
azamboos.408.

404

Duas Descries do Reino do Algarve do Sculo XVI [ ], loc. cit.


Duas Descries do Reino do Algarve do Sculo XVI p. 5.
406
Provincia Dantre Douro he Minho copillada por mestre Hantonio fisiquo he solorgiam morador na na Villa de
de Guymaraees he naturall dela, Miscellanea histrica de Portugal Sc. XVI, B.A, Cod. Ms 51-X-22.
407
Ibidem.
408
Ibidem.
405

103

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Os aspectos da cultura material so a representados: os modos de vida, as
habitaes, os estratos sociais, a vida agrcola e piscatria, as tradies folclricas:
[] haa muitos edefiios de paos e quintaes antigos daomde procedem a moor parte dos
solares e apelidos dos fidalgos he homes honrados de Potugal e pate dos de Castela [].409
Homem do Renascimento, que aprecia o novo, que regurgita de alegria ao cantar as
belezas do stio onde vive, no situa no todo do orbe, matematicamente, a sua terra
mas pinta com cores garridas as paisagens e lugares natais. Estas pginas podem
constituir, semelhana de outras corografias410, uma pequena Etnografia do Entre
Douro e Minho.
Escrito por volta de 1512411, o texto de mestre Antnio de Guimares depressa
ganhou adeptos e leitores atentos. Esta geografia descritiva insere-se no conjunto das
corografias que a partir do sculo XV comeam a pensar Portugal ou as suas
provncias como se de conjuntos coerentes e hierarquizados se tratassem412.
Mestre Antnio viveu num perodo em que o Estado comeava a ter uma
dependncia crescente de informaes, de registos, de variveis estatsticas que ainda
no domina correctamente. Por motivos da colecta de impostos, da defesa territorial
e recrutamento militar, os governantes preocuparam-se em conhecer o seu povo e o
seu territrio413. As formas de obteno desse conhecimento centravam-se nas
inquiries, nos arrolamentos de moradores, nos censos da populao, nas visitas
regulares do rei e dos seus representantes s parcelas territoriais governadas e
administradas, e nas descries corograficas.
Em Portugal, as reformas de D. Manuel I reforaram a autoridade do poder
central, criando estruturas centralizadas. A poltica centralista do monarca inseria-se
num conjunto de medidas reformistas que no escondiam o desejo de modernizar, de
uniformizar e de inovar no campo da administrao414. Pretendia-se maior eficcia
409

Ibidem.
Vide Manuel Viegas Guerreiro, Frei de S. Jos e a Sua Corografia do Reino do Algarve. Apresentao
Crtica, s/loc, Universidade do Algarve, S/dt. pp. 21-22.
411
H uma passagem em que o autor se refere ao ano de 1512: "(...) que somente deste ano de quinhentos e dose
sairam desta vila de Guimares mais de cem mil varas de pano de linho(...)". O escrito pode, eventualmente, ter
sido iniciado nesse ano e ter-se prolongado por mais tempo; pode inclusive ter sido iniciado anos antes. Cf: "Um
descrio de Entre Douro e Minho" in Op. cit. p. 447
412
Na tipologia elaborada pela Professora Suzanne Daveau estes discursos integram-se num grupo especfico
constitudo por " corografias ordenadas administrativamente ou tematicamente". Idem, ibidem, 448-451.
413
Cf. Peter Burke, A Social History of Knowledge, London, Polity, 2000, pp. 129-136.
414
Veja-se Joo Paulo Oliveira e Costa, D. Manuel I (1469-1521). Um Prncipe do Renascimento, Lisboa,
Circulo de Leitores, 2005, pp. 133-139.
410

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FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


governativa, maior interveno e arbitragem do Estado nos diferentes sectores da
sociedade. Tanto a reforma dos forais, que se faz entre 1500 e 1520, com um fase de
maior incremento que vai de 1512 a 1516415; como o Regimento dos Oficiais das
cidades e lugares datado de 1503-04; o Regimento da Casa da Mina e da ndia de
1509; o novo Regimento das Sisas de 1511-1512, com o objectivo de reorganizar a
mquina fiscal do Estado; ou ainda o Regimento dos contadores das Comarcas
(1514) e da Fazenda (1516); as reformas dos pesos e medidas, posterior a 1514 e as
Ordenaes da ndia, tentaram impor uma nova ordem administrativa e burocrtica.
O rei fonte de toda a justia. A aplicao da justia caracteriza por isso um bom e
justo soberano. Na transio do sculo XV para o sculo XVI o reino experimentava
uma primeira reforma administrativa aplicada416. Administrao, justia, reforo da
componente militar e de defesa, carecem de um exrcito de funcionrios
recrutados pelo poder central, da remodelao e criao de novos ofcios, em
consonncia com a montagem de um sistema financeiro pblico.
Todas estas reformas assentam no renascimento jurdico do Estado Moderno.
Preocupaes que passavam pela divulgao da lei417 e que tinham que ver
directamente com a aco do rei, isto , a prestao da justia. A divulgao de leis
impressas inicia-se em 1503 com a publicao do Regimento dos ofiiaaes das
idades villas e lugares, que at 1512 ter conhecido trs edies. No entanto, o
grande corpus doutrinal s foi publicado em 1512-1513, com a edio das
Ordenaes manuelinas que conhecem uma segunda edio em 1514. Sabe-se que foi
nomeada uma Comisso para proceder reforma das chamadas Ordenaes
Afonsinas, resultando desse trabalho uma maior sistematizao de leis. Vo reduzirse os diferentes diplomas legislativos a textos uniformes e harmnicos sem referncia
ao rei que os promulgou, nem data da sua promulgao original; trabalho que
comea em 1505 e termina cerca de 1513418. Esta primeira compilao esteve em vigor
415

Vide Joaquim Verssimo Serro, Histria de Portugal, Volume III O Sculo de Ouro [1495-1580], S/loc,
Editorial Verbo, imp. 1978, pp. 213-215.
416
Vide Joo Jos Alves Dias, Isabel M.R. Mendes Drumont Braga e Paulo Drumont Braga, A Conjuntura,
Nova Histria de Portugal, Dir. de Joel Serro e A.H. Oliveira Marques, Volume V Portugal do
Renascimento Crise Dinstica, Coordenao de Joo Jos Alves Dias, Lisboa, Editorial Presena, 1998, p.
715.
417
Este renascimento jurdico coevo da inveno e divulgao da imprensa.
418
Vide Joo Jos Alves Dias, A Primeira Impresso das Ordenaes manuelinas, por Valentim Fernandes,
Separata do IV Encontro Luso-Alemo, Portugal, Alemanha, frica. Do Colonialismo Imperial ao Colonialismo
Poltico, Lisboa, Edies Colibri, 1996, p. 31.
105

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


at 1521, altura em que se publica um novo corpo de leis que revogava e modificava
a anterior, no s na redaco como na doutrina.
ainda em 1509 que D. Manuel, perante a instabilidade poltica em Castela, e
revelando uma certa preocupao em relao ao estado das posies que serviam de
primeira linha de defesa em caso de ataque vindo do outro lado da fronteira419,
incumbe o seu escudeiro, Duarte DArmas de situar os castelos do estremo. Trabalho
essencial, tambm, para edificao de uma estrutura fiscal na raia fronteiria, sob o
controlo dos oficiais da Coroa; observar a sada ou entrada de mercadorias; cuidar da
defesa de povoaes e prover o auxlio militar, claro est, perante o desencadear de
uma guerra com o vizinho. O Estado vai preparando metodicamente beneficiaes
nas vrias estruturas: Trs-os-Montes; Beira; ao longo da fronteira alentejana, como
se constata nas cartas enviadas aos funcionrios e nos registos das contas do que se
despendia nas obras, em Miranda, Sabugal, Alfaiates, Moura, Olivena, Mrtola. As
demarcaes fronteirias movimentam toda a mquina administrativa do Estado,
incluindo as autoridades concelhias, os funcionrios da Justia, a Chancelaria, e o
prprio monarca420. Os primeiros esboos cartogrficos aparecem no seguimento
destas inquiries. So ainda mapas rudimentares, que davam uma ideia da
configurao territorial. H conhecimento de um desses esboos, de 1515, aquando
das demarcaes entre Ouguela e Albuquerque421.
No seguimento da sua poltica de reforo do aparelho estatal, o Venturoso
mandou efectuar um arrolamento de moradores dos concelhos de Valena e
Caminha, por alvar de 30 de Dezembro de 1512. Tratava-se de um conjunto de
medidas, talvez mais vasto, uma vez que ordenado um inqurito ao nmero de
moradores dos lugares dependentes da administrao de Valena, localidade
pertena do Bispado de Ceuta422. Repare-se que as reformas administrativas vo-se
sucedendo por volta do ano em que o mdico de Guimares est concebendo o seu
trabalho (1512). Ser uma feliz coincidncia, nesse mesmo ano mestre Antnio ter
escrito o seu texto?
419

Joo Paulo Oliveira e Costa, Op. cit. 181.


Cfr. Rita Costa Gomes, A construo das fronteiras, A Memria da Nao, organizao de Francisco
Bethencourt e Diogo Ramada Curto, Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1991, pp. 357-382, p.377.
421
Idem, ibidem, pp. 377-379.
422
Sobre este assunto Veja-se Joo Jos Alves Dias, A Populao, Nova Histria de Portugal (Dir. de Joel
Serro e A.H. Oliveira Marques) Portugal do Renascimento Crise Dinstica (Coor. De Joo Jos Alves Dias),
Lisboa, Editorial Presena, 1998, p. 12.
420

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FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


O Tratado de Entre Douro e Minho revela, sem dvida, informaes que
dificilmente passariam discretamente ao lado de um novo Estado burocrtico. Um
Estado moderno, em processo de construo, que se projecta no interior do territrio
que quer dominar e conhecer. De facto, no incio da segunda dcada do sculo XVI, o
texto de mestre Antnio comeava a circular, manuscrito, de mo-em-mo,
acompanhando as reformas em curso, podendo nesse momento ter sido um
auxiliar poderoso para o poder estatal, pelo saber geogrfico, relativo populao, ao
territrio e economia de uma regio.
Disponibilizando uma informao minuciosa sobre uma parte do territrio,
no ser de todo despropositado pensar que ter servido os interesses da Coroa.
Sabendo-se que desde muito cedo o Estado sentiu a necessidade de uma imagem
clara e completa423 dos seus domnios, de aqum e alm-mar, procurando inventariar
bens, riqueza e necessidades, para um correcto e directo controlo do territrio424,
muito provvel que os seus agentes tivessem conhecimento da informao veiculada
por mestre Antnio de Guimares. Neste caso h uma associao entre poder e saber,
entre poder poltico e saber geogrfico. Atente-se nos elementos que a descrio
contm: populao aproximada de Entre Douro e Minho: nela haa pasamte de sesemta
mil vezinhos e ser to pouoada [].425; descrio dos produtos hortcolas, sendo que
nesta comarqua posto que falea ho triguo no falee o cemteo nem ho milho, nem ho paino
nem o orjo, nem hos legumes [...],426; produtos exportados; comrcio com outros
espaos polticos e econmicos que leuo sobre mar pa outras partes muytas [...].427;
geografia das fortalezas militares e arranjos a fazer nas suas estruturas: ho porto,
guimares, braga, barcelos, ponte de lima, Viana, caminha, valema, momo, Melgao, vila
nova de Cerveira, nbrega, Lanhoso, lapelagiela, castelo leboreiro, ceroligo de basto, limdoso,
afora outras muitas fortalezas antigas derrybadas que haa na dita comarqua de que aymda haa
muitos alicerces sobre a terra aleuamtados.428; geografia das casas religiosas; rendas
423

Suzanne Daveau e Orlando Daveau, Conhecimento Actual da Histria da Geografia em Portugal, Histria
e Desenvolvimento da Cincia em Portugal, Lisboa, Academia de Cincias de Lisboa, 1986, Vol. II p.1045
424
Joo Carlos Garcia As Descries do Reino de Portugal in Duarte Nunes de Leo, Descrio do Reino de
Portugal, Lisboa, Centro de Histria da Universidade de Lisboa, 2002, pg. 56.
425
Provincia Dantre Douro he Minho copillada por mestre Hantonio fisiquo he solorgiam morador na na Villa de
de Guymaraees he naturall dela, Miscellanea histrica de Portugal Sc. XVI, B.A, Cod. Ms 51-X-22,transcrio
em anexo
426
ibidem.
427
ibidem.
428
Ibidem.
107

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


eclesisticas: capelas que nelas esto e os outros emto e vinte hu tem rendas boas que amtre
elles haa mosteiro que tem de remda p[er]to de hu milho, e outros de dous mil cruzados e
outros de mil e outros de quinhentos e asy soesiuamente que hus por outros no deem de
cem myl reais[]429; formas de assistncia mdica e social: tem remdas boas e
comfrarias ha vimte duas de que se governo imquo espritaes e duas guafarias e coatro
meeeias hua de homes e outra de molheres []430; foros arrecadados pelos vrios
senhorios; avaliao de quanto remde a el-rey nosso sor de sysas e dizimas (...) 431 todo
o espao descrito entre o rio Minho e o rio Douro.
Andou, inclusive, como se referiu anteriormente, apenso s crnicas de Rui de
Pina extractos desta composio geogrfica, o que motivou fortes crticas por parte
de Alexandre Herculano s hipotticas pretenses do cronista querer apoderar-se de
trabalho alheio432, o que no nos parece que ter acontecido. Viemos a encontrar na
Biblioteca da Ajuda a descrio de Mestre Antnio, que transcrevemos em anexo. O
cronista serviu-se do texto para as suas obras, o que no de admirar. Espao e
tempo andam juntos e ainda mais as funes de Rui de Pina, como interveniente nas
reformas dos forais, tirava partido da informao que o Mester de Guimares dava.
Os grandes senhores da regio, eclesisticos e laicos, ter-se-o apropriado da
valiosa geografia. No prefcio da obra, mestre Antnio no esconde que Alguns
senhores me rogaram (...) e me fizero ousar seguir a empresa daquelas cousas q[ue] a minha
notcia podero ouvir.433 No de admirar, pois, a existncia desta apropriao. Afinal
As modalidades do agir e do pensar, devem ser sempre remetidas para os laos de
interdependncia que regulam as relaes entre os indivduos e que so moldados, por
diferentes maneiras em diferentes situaes, pelas estruturas do poder.434
interessante notar que, para l das estratgias de poder que se tecem entre
os senhores laicos, eclesisticos e o prprio Estado, um espectacular florescimento
cultural ocorre neste Entre Douro e Minho alargado, pela mesma altura em que
mestre Antnio e Rui Fernandes redigem os seus tratados geogrficos. Os estudos
de histria da Arte so, porventura, um bom barmetro. As ltimas investigaes
429

Ibidem.
Ibidem.
431
Ibidem.
432
Alexandre Herculano, Historiadores Portugueses, Opsculos, Lisboa, Presena, 1985, Organizao,
Introduo e Notas de Jorge Custdio e Jos Manuel Garcia, Vol. IV pg.182.
433
Uma Descrio de Entre Douro e Minho , Op. cit. p. 445.
434
Roger Chartier, A Histria Cultural Entre Prticas e Representaes, Lisboa, Difel, 2 ed., 2002, p.25.
430

108

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


do conta que na regio, particularmente no Noroeste Minhoto e no Vale do Douro,
surge uma srie de oficinas de pintura a par de mestres consagrados435. Braga,
Guimares, Viana do Castelo, Caminha, Porto, Vila do Conde, Lamego, Viseu,
encontram um mercado que tem as suas fronteiras muito para alm da raia
portuguesa, englobando todo o Norte Atlntico. As cortes senhoriais renascentistas
florescem em locais como o Pao dos Duques em Guimares ou o Pao do marqus
de Vila Real e o mecenato das corporaes religiosas contribui para o incremento da
produo cultural. O Colgio da Costa, fundado ainda no sculo XVI (1537-39),
acolhia um assinalvel punhado de humanistas, testemunhando a riqueza do
animado espao cultural do Entre Douro e Minho. Os professores eram mestres
universitrios com graus obtidos em universidades estrangeiras de gabarito. Frei
Diogo de Mura, Pedro Margalho, Antnio Caiado, Frei Eusbio de vora,
contavam-se entre os professores desta escola. Artur Moreira de S apurou que no
Colgio da Costa havia seis lentes formados em Paris e Lovaina, em Artes e
Teologia436. Ensinavam-se as disciplinas do trivium e do quadrivium a alunos que se
vieram a notabilizar na cultura renascentista, como Frei Heitor Pinto, ou elementos
da Casa Real: o infante D. Duarte e D. Antnio Prior do Crato.
Para alm da fundao de instituies de ensino, e da residncia de
humanistas consagrados que estanciam na regio, Clenardo ou Vaseu so os casos
mais conhecidos, no se pode ocultar o movimento cultural no vale do Douro que se
liga e complementa com os centros mais activos, do Porto, Braga e Guimares. Vasco
Fernandes (Gro Vasco) cria na dcada de trinta do sculo XVI algumas das suas
obras mais emblemticas para instituies religiosas, que lhe so encomendadas por
religiosos e senhores nobres. O movimento renascentista, que importava
sensibilidades e gostos vindos das comunas italianas e das cidades comerciais da
Flandres, chegara a este Entre Douro e Minho alargado, com o mecenato da Igreja,
grupos sociais ligados ao comrcio e a alta nobreza a participarem activamente na
recepo das novas correntes, ora dando o seu apoio e contributo, ora veiculando
novas propostas culturais.
435

Cfr. Vtor Serro, Andr de Padilha e a Pintura Quinhentista entre o Minho e a Galiza, Lisboa, Editorial
Estampa, 1998, p.22.
436
A. Moreira de S, A Universidade de Guimares no sculo XVI (1557-1550), Paris, Fundao Caloust
Gulbenkian, Centro Cultural Portugus, 1982, p. 43.
109

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Nesta circunstncia, as formas de sociabilidade tm, nos casos em que h um
florescimento cultural, importncia na distribuio do saber e na criao cultural437.
O espao apreendido por mestre Antnio, por Rui Fernandes, e explorado pelos Paz,
era no sculo XVI, um animado centro cultural.
O caso de mestre Antnio e do seu texto, que temos vindo a analisar, bem
sintomtico deste incremento cultural. A maioria dos autores no se refere ao fsico, e
quando o faz de forma espordica e fugaz. Gaspar Estao, cnego da Colegiada de
Guimares438, tenta repor justia na situao, escrevendo: "Esta Terra chamada entre
Douro, e minho muito conhecida por alguas cousas notaueis, que tem, de que Vaseo d
testemunho en sua historia, as quaes tomou de hum trattado de letra de mam feito por mestre
Antonio fisico de Guimares, que elle nam nomea, como ns hora fazemos, pera que a f do
que delle tomarmos, fique sobre seu autor e por nam imitarmos a macrobio, que tomando
muitas cousas de Aulo Gelio, foi tam ingrato, que en tam grande monte de diuidas sepre calou
o nome do credor, de que o reprende Crinito na honesta disciplina. Auareza ingrata, e nescia,
que faz o alheio seu, e quer mais ser tomada no futuro, que pagar emprestado, como disse
Plinio por aluns engenhos viciosos, e mal affortunados." 439
O Dr. Joo de Barros440, escrivo da cmara de D. Joo III,

Joo Vaseu,

humanista flamengo, Duarte Nunes de Leo conhecido autor de uma Descripam do


Reyno de Portugal, estiveram em contacto com o escrito de mestre Antnio, retirandolhe largos extractos para os seus trabalhos441. Todos estes autores tm caractersticas
em comum com o mestre de Guimares. Ou exercem cargos ligados ao comrcio, s
alfndegas, gesto de patrimnio e esto prximo das estruturas do Estado,
encontrando-se nesta situao o Dr. Joo de Barros e Rui Fernandes; ou estiveram
largo tempo na regio de Entre Douro e Minho, nomeadamente em Braga, centro
religioso rival de Guimares, caso do Dr. Joo de Barros, Joo Vaseu, Duarte Nunes de
437

Cfr. Peter Burke, Op. cit., p.56.


Veja-se Joaquim Verssimo Serro, A Historiografia Portuguesa, Lisboa, Editorial Verbo, 1973, Vol. II,
1973, p. 79.
439
, Gaspar Estao, Vrias Antiguidades de Portugal, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1625, pg. 201. As pginas
201-202 so um desfilar de informaes j contidas na obra de mestre Antnio, o que o prprio autor no
esconde: Isto substancia o que contem aquelle trattado de mestre Antonio, deixando miudezas, que espantam
(...) p. 202; Tudo isto de mestre Antonio, posto que elle o diz mais diffusamente. p. 203.
440
No se confunda este autor com o outro, mais famoso, Joo de Barros, historiador e tesoureiro da Casa da
Mina e ndia.
441
Sobre a influncia da obra de mestre Antnio noutros autores dos sculos XVI-XVII Veja-se Carlos Manuel
Valentim, "Um Gegrafo Contemporneo de Pedro Nunes Mestre Antnio de Guimares", Anais do Clube
Militar Naval, Vol. CXXXII, Outubro - Dezembro 2002, pp. 721-750, pp.733-735.
438

110

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


Leo e Gaspar Estao; ou ento eram cristos-novos como Duarte Nunes de Leo, e
mais duvidosamente o Dr. Joo de Barros de origem obscura nascido em Trs-osMontes442, e Rui Fernandes. Exemplificativo da imensa divulgao do texto de mestre
Antnio, passagem de Andr de Resende, quando a ele se refere: existe um opsculo,
cuja leitura no de desprezar, sobre as qualidades desta regio [Entre Douro e Minho], sua
fertilidade, amenidade, salubridade.443
Em 1634, quando descreve os portos e as costas de Portugal, Pedro Teixeira,
Comenando por su parte septentrional [que]es la primera la que llaman Antre Douro y
Mio, tan celebrada de los esturiadores por frtil y deleitosa[].444, estava a referir-se,
possivelmente, entre outros, ao mestre vimaranense. O que no para admirar, se for
considerada a divulgao e a ampla recepo do texto.
Sendo a Descrio de Entre Douro e Minho a primeira corografia, de que se
tem conhecimento, de uma parte do territrio de Portugal, tambm uma obra que
prima pela atitude humanista, confiando o autor nos virtuosos e na abundncia445.
A descrio desta parte do reino, em 1512, expressa o desejo, como era comum em
alguns autores coevos, de salientar a autonomia e a originalidade do Entre Douro e
Minho.
Rui Fernandes que se celebrizou com uma descrio dos terrenos volta de
Lamego, redigida em 1531-32, como se fez referncia em anterior passagem, com
dedicatria ao bispo da cidade, D. Fernando, cita logo nas suas primeiras linhas o
escrito de mestre Antnio E porque mestre Antonio de Guimaraes fez hum tratado das
couszas dAntre Douro e Minho, que assaz he bom, e tido em muito446, o que prova
bastante que conhecia muito bem o tratado. O cunhado de Justa de Paz ocupava o
ofcio de feitor das lonas e bordates do Rei, em parceria com outros mercadores, e era
rendeiro das sisas de Lamego e notrio de Resende. A par do ttulo de cidado tinha
o grau de escudeiro da casa del Rei. A sua actividade profissional, e o conhecimento
442

Segundo Eugnio de Andra da Cunha Freitas, "Nomes e datas" , Op. cit, pg. 217, pode ter nascido na
freguesia de "Sam Dinjs de Villa Reall", ao contrrio do que at agora se pensava - na cidade do Porto.
443
Andr de Resende, Antiguidades da Lusitnia, Introduo, traduo e comentrio de R.M. Rosado Fernandes,
Lisboa, Fundao Caloust Gulbenkian, 1996, p.107.
444
Pedro Teixeira, La Descripcin de Espaa y de las costas y puertos de sus reinos(1634), fl. 43, Op. cit., p.
334.
445
Maria Clara Pereira da Costa, A Comarca de Guimares sculos XVI a XVIII Memria e Mapas
Cartogrficos, Actas do Congresso Histrico de Guimares e sua Colegiada, Vol. III, Guimares, 1981, p. 396.
446
Rui Fernandes, Descrio do terreno ao redor de Lamego duas lguas [1531-1532], Porto, Edies
Afrontamento, Beira Douro. Associao de Desenvolvimento do Vale do Douro, 2001, fls 1-1 v..
111

FORMAO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAO DO ESPAO


do terreno e do espao onde se movimentava, vo permitir-lhe recolher muitos
elementos para a sua obra, que uma das melhores fontes geogrficas para o
conhecimento do Vale do Douro no sculo XVI. O texto prdigo em referncias aos
aspectos econmico-sociais que descrevem os locais e os trnsitos comerciais
efectuados pela famlia dos Paz447. As sisas que cobravam, os arrendamentos que
eram arrematados, as vinhas que plantavam, o vinho que exportavam, as
mercadorias que percorriam o espao nortenho pelas mos dos almocreves, tudo
descrito com minuciosidade pelo cunhado da sobrinha-neta de mestre Joo.
Estes textos, quer o de Rui Fernandes, quer o de mestre Antnio, eram,
seguramente, a base para muitas decises dos Paz. H, parece-nos consensual, uma
apropriao do espao percorrido, explorado, desejado e vivido.
As duas obras gozaram de enorme popularidade e divulgao. Curiosamente,
foram apoiadas, com grande grau de incentivo, pelas elites, aristocrtica e religiosa,
do Norte. As duas mais importantes corografias do sculo XVI, as duas mais vivas
descries regionais do territrio portugus quinhentista, que se evidenciam pela
inovao, encontram-se estreitamente associadas aos Paz.

Os dois textos

materializam por escrito o conhecimento que os Paz possuam do espao de Entre


Douro e Minho e do vale do Douro. Estas duas descries geogrficas, regionais,
representam o espao tal como os Paz o viam, depois de se terem apropriado das
suas potencialidades, dos seus recursos e da sua riqueza; formam em conjunto a
descrio dos dois eixos principais da actividade econmica e social da familia: o vale
do Douro e o Entre Douro e Minho um Entre Douro e Minho Alargado.

447

No nos vamos debruar sobre este tema a fundo, porque j foi tratado noutra obra por Amndio Barros,
Prefcio in Rui Fernandes, Descrio do terreno ao redor de Lamego duas lguas [1531-1532], Porto, Edies
Afrontamento, Beira Douro. Associao de Desenvolvimento do Vale do Douro, 2001, pp. 12-22.
112

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER

III

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER

113

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER

114

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER

1. A Mobilidade Social Ascendente numa Sociedade de Ordens

A existncia de muitos seres humanos vivendo lado a lado, cada qual lutando
pela sua existncia, pelas suas ambies, pelo seu bem-estar, pelos seus recursos,
desempenhando simultaneamente actividades comuns e diferenciadas, tecendo
relaes de vria ordem entre si, torna-os interdependentes. Com base nessa
interdependncia, surge uma estrutura que nenhum dos membros teve por fim criar:
a sociedade448. Um homem, uma famlia, um grupo social no existe per se, mas
integrando num todo, numa estrutura, na qual tece relaes de diferentes formas e
intensidade. Individuo e sociedade, uma parte no existe sem a outra449. As
concluses de Norberto Elias, leva-nos a inferir que o papel social450 produto de
uma interaco, onde o indivduo estabelece a sua identidade atravs da socializao
com os outros, enquanto interioriza as regras do jogo social. Trata-se de um
processo de construo social da realidade, pela apropriao progressiva das regras,
das normas e da ordem vigente.
Mas a vida em comum, a luta constante, inadivel e persistente dos homens nessa
estrutura criada artificialmente, a sociedade dos indivduos, est repleta de contradies,
de tenses e problemas. Cada ser humano tem um lugar especfico, uma funo, um
papel a desempenhar, estando condenado a viver entre as outras pessoas. Quando
nasce, um indivduo inserido num grupo de seres humanos que j existia antes
dele. E o facto de os seres humanos se transformarem com e atravs das relaes
sociais que estabelecem uns com os outros, e de se modelarem e remodelarem de
maneira

constante

em

interdependncia,

que

caracteriza

fenmeno

do

entrelaamento451. Fenmeno que podemos apreender atravs da anlise e do estudo


da histria social, que no mais do que a histria dos grupos sociais e das suas
complexas relaes452.
448

Concluso a que chega Norberto Elias, A Sociedade dos Indivduos, 2 edio, editado por Michael Schrter,
Lisboa, Edies Dom Quixote, 2004, p. 29.
449
Idem, ibidem, p. 28.
450
Conceito fundamental para a Sociologia, definido como modelo ou norma de comportamento ligado a
determinado status ou posio na estrutura social.
451
Tal como definiu Norberto Elias, Op. cit., p. 43.
452
Ernest Labrousse, Introduo, in Historia Social. Teoria e Mtodos, Lisboa, Edies Cosmos, 1966.
115

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Cada sociedade tem a sua especificidade, as suas relaes intrnsecas, o seu modo
de produo, a sua estrutura social.
O problema da mobilidade social, tema que nos propomos abordar aqui, deve ter
em linha de conta que a mobilidade de determinado grupo implica, em certo sentido,
a alterao de uma estruturao social. Numa sociedade, como a que existiu nos
sculos XV e XVI, modelada por uma rgida hierarquia social que se baseava no
nascimento e na pureza do sangue, dava-se grande importncia honra e
tradio do ideal de cavalaria. A mobilidade social, nestes parmetros, tinha o seu
escopo reduzido. Mas s aparentemente. O acesso a uma ordem superior como
consequncia da acumulao de riqueza nestas sociedades de ordens possvel,
sobretudo numa conjuntura ascendente453
As transformaes que atingem a economia europeia de 1450 em diante levam a
uma metamorfose das cidades, dos gostos, das sensibilidades e da prpria
mentalidade, que acompanham as inovaes tecnolgicas, a transformao do
aparelho produtivo e as relaes de produo454. Esse mundo em transformao abre
perspectivas inusitadas para aqueles que, amealhando bens e riqueza, e percebendo
que dispunham de uma posio reforada na sociedade, procuravam libertar-se da
sua condio subalterna e pouco significante na pirmide social. A estrutura social
oferecia-lhes resistncia, bem certo, mas tentavam vence-la, ultrapassando-a,
forando a entrada num mundo onde abundavam as benesses, os privilgios e o
reconhecimento pelo estatuto social.
Coabitando com uma nobreza de sangue, detentora de ttulos, honras, de riqueza
imobiliria, que exercia altos cargos militares e administrativos, vai emergindo um
novo grupo social, enriquecido pelo comrcio e pela finana, buscando a cada
instante uma oportunidade para ascender na sociedade. Insertos num estrato social a
que se denominou mais tarde burguesia455, estamo-nos a referir a indivduos que
contratavam com o Estado a cobrana dos impostos, a execuo de obras pblicas, ou
453

Cfr. Ivo Schffer, A estratificao social na Repblica das Provncias Unidas no sculo XVII, Problemas
de Estratificao Social, Actas do Colquio Internacional (1966) publicadas por Roland Mousnier, traduo de
Joaquim Romero de Magalhes, Lisboa, Edies Cosmos, imp. 1988, p.147.
454
O Professor Marques de Almeida, coloca em evidncia estas profundas alteraes, no seu estudo O Zango e
o Mel, p. 27.
455
Jorge Borges de Macedo chamou a ateno de estarmos perante um grupo no homogneo, nem to-pouco
padronizado, se tivermos presente os diferentes sectores da vida econmica onde intervinham, e a suas diversas
funes sociais. Vide o artigo, daquele autor Burguesia (Idade Moderna) Histria de Portugal, Dir. Joel Serro,
ed. cit., Vol. I, pp. 397-407.
116

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


extraam lucros fabulosos atravs do comrcio ultramarino e das transaces
comerciais. Muito embora a sua categoria na pirmide social estivesse muito prximo
da base, a sua condio econmica e financeira era invejada pelos aristocratas que
no participavam nos contratos e licitaes com a Coroa, nem detinham meios
financeiros para investir nos negcios que entretanto apareceram com a abertura de
novos mercados.
Nas comarcas e nos espaos ultramarinos, dominados por Portugal, quem
decidia os litgios e as quezlias entre arrendatrios de impostos, servidores da Coroa
e outros funcionrios da administrao eram, em muitas ocasies, os grandes da
nobreza, detentores dos altos cargos militares, de chefia e de liderana, e que eram
possuidores de abundantes rendas e de vastos senhorios, onde decorriam as
actividades econmicas e financeiras. Muitas vezes temiam os negociantes e
mercadores, quando testemunhavam pelo indevido uso do seu poder ou apelavam
para o Desembargo. Esta alta nobreza preocupou-se em arregimentar clientelas, de
indivduos de uma menor condio social, captando para seu prprio benefcio a
dinmica dos grupos sociais mais activos. Numa sociedade de ordens, de corpos, de
dignidades, as teias das clientelas e das fidelidades eram realidades polticas e sociais
incontornveis456. E ainda que os padres de conduta continuassem assentes no
legado das relaes feudo-vasslicas e nos cdigos de cavalaria457, O desempenho
dos servios criava expectativas de benesses, que em certas ocasies o prprio senhor
concretizava, e noutras frustrava.
O que mais importante de frisar, no que tocante mobilidade, ao longo dos
sculos XV e XVI, que estava a nascer um mundo novo, que se pintava em tons
coloridos para muitos daqueles que desejavam alcanar os lugares de prestgio na
pirmide social. Era uma nova realidade social que despontava, caracterizada pela
mobilidade social ascendente, que resultava da recuperao demogrfica e
econmica, e que em Portugal se escorava na incisiva poltica de expanso territorial
no Norte de frica, e no controlo naval de determinadas reas martima nos oceanos

456

Joo Cordeiro Pereira, A Estrutura Social e o seu Devir, Nova Histria de Portugal. Dir. de Joel Serro e
A. H. Oliveira Marques, Vol. V: Portugal Do Renascimento Crise Dinstica, Coordenao de Joo Jos
Alves Dias, p. 290.
457
Cfr. Fernanda Olival, As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, Merc e Vanalidade em Portugal
(1641-1789), Lisboa, Estar Editora, 2001, p. 19.
117

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Atlntico, ndico e Pacfico458. A mobilidade social de nvel ascendente vai ganhar,
nestes espaos territoriais e martimos, e no interior do prprio espao social459,
dinmica e fluidez em todas as ordens. O que causa embarao e descontentamento
nos sectores aristocrticos, mas no impedia o rei de prosseguir a sua poltica de
atribuio de ttulos e distines aos seus mais directos colaboradores, que eram
peas fundamentais no aparelho de Estado que se estava a erguer: funcionrios da
Fazenda, da Casa da Suplicao, do Desembargo do Pao, mercadores, feitores,
rendeiros460.
Entre muitos destes funcionrios figuravam cristos-novos. Refira-se, desde j,
que a ascenso/mobilidade social dos sefarditas e cristos-novos seguiu o padro
comum a outros indivduos das sociedades modernas. O prestgio social passava
pela formao, capacidade de patrocinar, usufruir de uma vida de abastana, situarse prximo dos crculos aristocrticos para influenciar os acontecimentos e obter
prestgio461.

2. Expanso Patrimonial e Poder Social.


A Aliana com os Pegados, Mesquitas, Brandes e Leites

A documentao encontrada, que regista a vida social dos Paz, permite-nos


inferir que, no princpio do sculo XVI, a famlia estava plenamente integrada na
sociedade do seu tempo. Vrios so os indcios que apontam nessa direco. Os seus
membros desempenham cargos de relevo na administrao do Estado, outros
investem os seus cabedais em negcios lucrativos, outros ainda arrematam Fazenda
458

Joo Cordeiro Pereira, A Estrutura Social e o seu devir [.] , pp. 286-287 e ss.
Quando falamos de espao social estamo-nos referir posio que um determinado agente social ocupa
nos diferentes campos da sociedade e na distribuio dos poderes. Como definiu Pierre Bourdieu, podemos
representar o mundo social em forma de espao, constitudo por vrias dimenses, e construdo na base de
princpios de diferenciao ou de distribuio das propriedades que actuam no universo social. Ou seja, o que h
um espao de relaes que pode ser to real como um espao geogrfico. Vide sobre esta problemtica Pierre
Bourdieu, O Poder Simblico, 4 ed. Lisboa, Difel, 2001, pp. 132-136.
460
Vejam-se os exemplos de promoo social contidos no trabalho da Professora Elvira Azevedo Me, A
sociedade no tempo de Gil Vicente, Revista de Guimares, n. 112, 2002, pp. 111-123, pp. 119-120.
461
Veja-se a respeito da mobilidade dos sefarditas e cristos-novos Florbela Veiga Frade, As Relaes
Econmicas e Sociais das Comunidades Sefarditas Portuguesas. O Trato e a Famlia 1532-1632, Lisboa,
Dissertao de Doutoramento em Histria Moderna, realizada sob orientao cientfica do professor doutor A.A.
Marques de Almeida, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de Histria, 2006, pp. 43-46.
459

118

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Real a cobrana de impostos e as taxas aduaneiras. A aproximao Coroa faz-se por
via dos servios que so directamente prestados ao Rei e sua mquina burocrtica,
e pelas nobilitaes que so obtidas em troca desses prstimos.
Estes sinais de integrao e de ascenso, que vm no seguimento de uma
adaptao progressiva a uma nova realidade social abriu perspectivas de promoo
e prestgio social antes vedadas pela legislao cannica e civil 462, so indissociveis,
no caso dos Paz, de uma estratgia familiar que procura insistentemente a expanso
patrimonial e o reforo simblico do nome e da famlia. Tais estratgias, planeadas
no interior da casa e do grupo, visam o estabelecimento de alianas com
poderosas famlias do Porto e da regio de Entre Douro e Minho, cujos membros
detm posies-chave nos rgos polticos de deciso concelhia, no comrcio e na
Fazenda, ou encontram-se inseridos em poderosas redes clientelares, associadas aos
grandes que dominam poltica e economicamente o Norte do Reino.
O estudo destas relaes e fuses familiares, que levam ao cruzamento de
sangue entre diferentes famlias, permite-nos ficar na posse de uma imagem mais
abrangente da identidade familiar, e depreender o poder simblico que se projecta
no espao social e que, com a identidade do grupo, se funde. Sublinhe-se que o
casamento vai funcionar justamente como uma forma de aliana e de compromisso
entre grupos com interesses sociais comuns, reforando o patrimnio e o poder de
cada uma das partes. As alianas conjugais, negociadas e concertadas entre os mais
poderosos de cada um dos lados, vo garantir regalias adquiridas, e em muitos casos
alarg-las; contribuindo para proporcionar aos mais jovens a estabilidade sempre
desejada, e a certeza da transmisso dos privilgios e das fortunas acumuladas, que
haviam sido alcanados, muitas vezes arduamente por entre um votado ostracismo e
discriminao social. O casamento, tal como apontmos anteriormente seguindo as
propostas de Pierre Bourdieu, vai desempenhar, assim, uma dupla funo de
reproduo biolgica e de reproduo social.
No se pode perder de vista que, nesta sociedade onde se estabelecem
estratgias de grupo num espao regional dominado por poderosos senhores laicos e
eclesisticos, as relaes sociais se tornam extremamente importantes entre os vrios
462

Sobre a integrao dos cristos-novos na sociedade crist, vide Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Los
Judos em Portugal, Madrid, Editorial MAPFRE, 1992, p. 288 e ss., ilustra vrios exemplos de famlias
plenamente integradas na sociedade.
119

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


grupos em competio e, no poucas vezes, em confronto por lugares de prestgio,
mercados, ttulos e favores sociais.
Fugindo aos padres de conduta social adoptados pela maioria do sector
nobilirquico, os relacionamentos fecundos entre os mercadores cristos-novos e os
mercadores cristos-velhos pressupem um encontro de interesses, entre as duas
partes, remetendo-nos para as relaes estreitas no plano econmico e social, indo do
comrcio e finana at miscigenao e cruzamento de sangue. Os mercadores
cristos-velhos, ao contrrio do que primeira vista se possa pensar, no viraram
costas a essas parcerias (quando lhes era propcio e socialmente relevante), quase
sempre frutferas para as aspiraes sociais e econmicas das duas partes463. O
Duque de Bragana, em carta a D.JooIII, comentava em 1530: que os casamentos que
agora sam grdes sam de villos ou christos novos, que por redimir sua villania ou judaria,
qudo querem aver pessoas de differente estado, que sam tam baixos que se querem vender por
dinheiro, estes taaes os compr; [].464
Ao condenar junto do seu primo os casamentos entre vilos e os estados mais
altos da sociedade, D. Jaime de Bragana ilustra de forma exemplificativa qual era a
opinio dos mais poderosos da sociedade portuguesa no sculo XVI - aqueles que
tinham nas suas mos o comando da mquina militar e burocrtica do Reino e do
Imprio -, que ofereciam abertamente resistncia s mudanas sociais que estavam
em curso.
Os valores sociais, as normas, as prprias relaes entre cada indivduo, tendiam
efectivamente a alterar-se muito rapidamente, reflexo de uma sociedade em mutao
na primeira metade do sculo XVI. A opinio do duque de Bragana, aparentemente
em contradio com as medidas que impulsionara aquando da sua vinda para
Portugal, quando reforou a posio social de algumas famlias de cristos-novos que
estavam ao seu servio, colocava a descoberto o empenho dessas mesmas famlias na
valorizao social feita por via dos casamentos. O mais poderoso elemento da
nobreza do Reino parecia no querer entender, porque lhe repugnava a ideia, que
muitos nobres e gente fidalga, padecendo de uma crnica falta de liquidez financeira,
se unissem a outros actores sociais mais dinmicos, de condio estatutria inferior,
463

Veja-se A. A. Marques de Almeida, O Zango e o Mel, p. 28.


Letters of the court of John III King of Portugal, The Portuguese Text, Edited with an Introduction by J.D. M.
Ford, D. Litt. And L. G. Moffatt, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1933, p.79.
464

120

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


mas que haviam acumulado grandes fortunas e fartos bens, aproveitando as novas
oportunidades que a nova economia oferecia e os mercados financeiros
escancaravam. O estrato mais elevado da sociedade, num perodo de mudanas
sociais, dava assim mostras de eroso dos seus prprios valores e de permeabilidade
a outros corpos sociais. Poderemos deduzir que a blindagem inicial, que se estendera
ao longo de sculos, bloqueando no poucas vezes a entrada para o estrato
aristocrtico, cedia agora perante a fora do dinheiro e a ambio capitalista de
muitos daqueles que gozavam do estatuto de nobre.
Muitas das famlias de cristos-novos, em Portugal, uniam-se entre si465, mas o
impetuoso progresso econmico e social que experimentavam no primeiro quartel do
sculo XVI, levou-as em muitos casos a efectuar vantajosos acordos nupciais com
mercadores cristos-velhos e com sectores da nobreza. Como resultado, os seus
membros acabaram por penetrar todos os campos, mdios e superiores, da vida
social e econmica da comunidade portuguesa, semelhana do que aconteceu na
vizinha Castela466.
Pelo menos dois dos homens da gerao seguinte optam por casar com mulheres
que partilham a sua condio. Francisco, filho de Diogo de Paz, casa com Isabel
Rodrigues; Diogo de Paz o-moo, filho de mestre Joo, tem como cnjuge Ana
Manrique, que suspeitamos ser filha de um cristo-novo associado Alfndega do
Porto, Duarte Manrique. J Duarte de Paz, contrariando esta tendncia, vai estender
a influncia da famlia para Sul467, casando com Catarina Pegada, de Elvas, de quem
ter dois filhos: Joo e Tom. Este ltimo, apelidado nos autos da Inquisio de
meio cristo-novo468, o que significa que Catarina era de uma famlia de cristosvelhos do Alto Alentejo, residentes em Elvas, cidade por onde se fazia o controlo do
movimento comercial por via terrestre com Castela. Exercendo o cargo de oficial da
Coroa como Requeredor dos Portos secos das Beiras, por um lado, e de importador
de tecidos castelhanos, por outro, ao longo de uma ampla linha de fronteira, no nos
pode surpreender que o futuro embaixador dos marranos em Roma tenha
465

Vide Maria Jos Pimenta ferro Tavares, Los Judios en Portugal, ed. cit., p. 290.
Vide Cecil Roth, Histria dos Marranos, ed. cit., pp. 32-35.
467
Abordamos este casamento de Duarte de Paz no estudo Duarte de Paz: um lder da comunidade sefardita
portuguesa em meados do sculo XVI, Rumos e Escrita da Histria. Estudos de Homenagem a A. A. Marques
de Almeida, Coordenao de Ftima Reis, Lisboa, Edies Colibri, 2007, pp. 175-190
468
Carlos Manuel Valentim, Tom Pegado de Paz espio e servidor do Duque de Naxos, Op. cit., p.300 e
documento publicado em anexo.
466

121

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


estabelecido contactos frequentes, intensos e prximos com os grupos sociais que
dominavam comercial e politicamente esse espao. H registo na vila de Elvas de
alguns indivduos com o nome Pegado, em posies de relevo na administrao do
municpio em finais do sculo XV. Nas Cortes de Lisboa de 1498, nos captulos
especiais de Elvas, um dos procuradores do Concelho alentejano lvaro Pegado,
cavaleiro do Rei. E entre os que assinam a petio apresentada s Cortes surge, em
segundo lugar, o nome de Joo Pegado469, muito provavelmente o pai de Catarina,
que denominado nos autos da Inquisio de seu neto por Joo de Gronga.
Quando, mais tarde, a Inquisio de vora estender o seu brao tentacular sobre todo
o Alentejo, comparecero para interrogatrio junto dos juzes vrias pessoas com o
apelido Pegado, de influentes famlias da regio de vora.
Nas famlias extensas, devemos englobar o matrimnio no mbito dos interesses
do grupo. Os indivduos servem os interesses da famlia, que nunca perde de vista
nem cede totalmente os seus direitos sobre as funes produtivas, reprodutivas e
sexuais dos cnjuges e filhos dos elementos que casam. Nestas circunstncias, o
matrimnio funciona como um contrato ou uma aliana entre grupos, influindo
nas unies presentes e futuras em que intervenham membros de ambos os lados470.
Em relao aos Paz, a sua parte feminina que vai desempenhar um papel fulcral
na ascenso social da famlia, constituindo-se como factor determinante nas alianas
com os grupos familiares que se posicionavam no topo da estrutura social portuense
e do Entre Douro e Minho. O casamento destas mulheres conversas funcionou como
uma etapa essencial da promoo social da sua linhagem, estabelecendo-se
proveitosos contratos nupciais com os Brandes, os Mesquitas e os Leites, que de
uma forma ou de outra se encontravam relacionados com o comrcio, com a
Fazenda, em particular com a Contadoria do Porto e de Entre Douro e Minho, e com
os grandes senhores que dominavam o Norte. Nos trs casos referidos, foi sempre o
fabuloso dote feminino que os Paz ofereceram a moeda de troca para alcanarem
posies de relevo na sociedade. Esta poltica familiar que favorecia a exogamia,
pelo incentivo que era atribudo s alianas matrimoniais, diferia da atitude mais
469

Cortes de 1498, Elvas, Janeiro, 29, ANTT, Cortes, Mao 4, doc. 1., Cortes Portuguesas. Reinado de D.
Manuel I, Lisboa, Centro de Estudos Histricos da Universidade Nova de Lisboa, 2002, Lisboa, p.381.
470
Seguimos neste ponto as consideraes de Marvin Harris, Antropologia Cultural, Madrid, 6 ed., Alianza
Editorial, 1998, p. 203.
122

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


fechada sobre si mesma que a famlia adoptara sua chegada a Portugal. Esta
postura inicial s se explica pela vontade da no disperso dos bens que naquele
momento dispunham, e ainda mais pela segurana conferida pelo casamento com
algum que professasse a mesma religio, quando a sociedade se erguia hostil para
os que se afastavam do credo dominante. Mantinha-se desta forma a identidade
cultural, racial e religiosa de uma minoria471.
Alcanada a fortuna, verificamos que a partir do primeiro quartel do sculo XVI
os Paz praticam deliberadamente uma estratgia de alianas com outras famlias, que
tem por objectivo uma exogamia local concebida em termos de patrimnio, aliandose aos influentes e ricos grupos familiares da sua regio472. Uma filha de mestre Joo
casa inicialmente com Melchior Rodrigues Salazar, natural de Valladolid, que juiz
ordinrio em Bragana473. No Porto, Beatriz aparece casada com o Dr. Vasco Afonso,
cidado ilustre da cidade, a quem mestre Joo de Paz se dirige com grande afeio no
seu testamento474.
Maria de Paz, filha de Diogo de Paz o-velho475, une-se famlia dos Mesquitas. A
famlia Mesquita aparece associada Casa do Marquez de Vila Real - so servidores
e ouvidores em suas terras, havendo um tronco da famlia que vive na cidade de
Guimares476. a que Diogo Pero Lopes de Mesquita presta servio ao Duque de
Bragana, possuindo prximo da cidade a Quinta da Corugeira, adquirida como dote
do casamento com Isabel Correia, filha de Pero Lopes Correia, criado do mesmo
Senhor. O filho mais velho que resultou deste casamento, Pero Lopes de Mesquita,
veio a ser criado de D. Antnio de Noronha (1465-1551), 1 Conde de Linhares,
desposando Maria de Paz477. A 6 de Maio de 1519, faz-se procurador bastante do seu
471

Veja-se sobre a endogamia entre os cristos-novos Huerga Criado, Pilar, En la raya de Portugal: solideriedad
y tensiones en la comunidad judeoconversa, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1993, 67-77.
472
semelhana do que acontece noutras sociedades, ditas de tradicionais. Cfr. Franoise Hritier,
Endogamia/exogamia, Enciclopdia Eunaudi, p. 137.
473
Esta informao foi-nos dada pelo Dr. Salazar de Campos, genealogista, que est a reconstituir a rvore da
famlia dos seus antepassados Salazar.
474
Veja-se o documento publicado no corpo documental. Voltaremos a esta pea documental fundamental
quando abordarmos a questo da ascenso social dos Paz.
475
Passando sempre, entre os nobilirios, por seu filho. Pedro de Brito segue esta informao errada. Vide Pedro
de Brito, Op. cit. p. 152. H uma fonte, que nos mostra muita claramente que Maria de Paz filha do irmo de
mestre Joo, Diogo. Num documento da Inquisio, Antnio de Paz, filho de Diogo de Paz, sobrinho do
astrlogo, citado como tendo acompanhado o seu cunhado, Pero Lopes de Mesquita, S do Porto, em vrias
ocasies.
476
Veja-se Cristvo Alo de Morais, Op. cit., pp. 594-599.
477
De quem no vem a ter filhos. Teve vrios bastardos, que tero morrido ao servio da Coroa no Oriente.
Veja-se Pedro de Brito, Op. cit. p. 153.
123

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


sogro, para receber das mos do almoxarife da Alfndega de Vila do Conde 157.747
reis478, o que atesta o seu envolvimento nos negcios da famlia da sua mulher. A
ligao a D. Antnio de Noronha, por intermdio de Pero Lopes de Mesquita,
traduzia-se no ganho de uma posio de estratgica para os Paz, se atentarmos no
peso que o 1 Conde de Linhares vai adquirindo na Corte e no Governo de D. Joo
III, que o nobilita em 1532.
Pero Lopes de Mesquita vem viver para o Porto, e adquire rapidamente a
dignidade de cidado. Em 1534 detm o cargo de almotac do Concelho479. Um dos
seus dois tios, Ferno de Mesquita, estava casado com Brites Mendes de Carvalho,
filha do Contador de Entre Douro e Minho, Rui Mendes480, cunhado de mestre Joo
de Paz481. O outro tio, Diogo de Mesquita, era pajem do Marqus de Vila Real.
Mcia, filha de Francisco de Paz, neta de Diogo de Paz, o irmo de mestre Joo,
casou com Braz Pereira Brando, pajem do infante D. Fernando, filho de D. Manuel I,
e amigo chegado de Francisco de Holanda, que ficava em sua casa quando se
deslocava ao Porto. Na obra Pintura Antiga, o pintor e arquitecto de D. Joo III e do
infante D. Lus alude relao de amizade que mantm com Braz Pereira Brando482.
A famlia dos Brandes, que funda uma capela no convento de S. Francisco do
Porto, semelhana dos Paz, acumula uma extraordinria fortuna ao longo do sculo
XV483, com base numa vigorosa actividade financeira na Contadoria da Fazenda
daquela cidade nortenha. Braz Pereira Brando, que casou em primeiras npcias com
Mcia de Paz484, era filho de Ferno Brando e de uma filha do cronista Rui de Pina,
Isabel de Pina. Um dos seus tios, Diogo Brando, Contador no Porto, d ordem em
1510 para que o almoxarife ou recebedor de Ponte de Lima pague 72.000 reis, por
mandado do Rei, a Diogo de Paz485, av de Mcia. Tanto o pai, como este tio de Braz
Pereira Brando, foram ambos poetas do Cancioneiro. Esta vertente cultural dos
478

ANTT, CC, Parte II, Mao 81 n. 140.


Pedro de Brito, Op. cit. p. 152.
480
Idem, ibidem, p. 153.
481
Cuja ligao Pedro de Brito no efectua, por se ter guiado pelos nobilirios.
482
Como alude, realando essa amizade, Camilo Castelo Branco, Narcticos, ed. cit., p. 46. Cfr. Ferreira Gordo,
Memrias de Litteratura Portuguesa, Tomo 3, p. 43.
483
Vrginia Rau, Os Brandes do Porto, uma fortuna do sculo XV, Separata do Boletim da Cmara Municipal
do Porto, 1959. Neste estudo, Virgnia Rau, analise detalhadamente o poder financeiro desta famlia e a sua
actividade socio-econmica em meados do sculo.
484
Casara em segundas npcias com D. Maria, da famlia dos Leites, por coincidncia tambm unida aos Paz.
Vide Pedro de Brito, Op. cit. quadro genealgico entre pp. 136 e 137.
485
ANTT, CC, Parte II, Mao 22, n. 136.
479

124

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Brandes do Porto no indissocivel da sua capacidade financeira e da sua
projeco social. Se as correntes culturais do Humanismo no lhes foram estranhas,
como testemunhado pelas amizades que mantm com pintores, cronistas e poetas,
isso diz bem at que ponto se integravam no seio de uma elite financeira e social do
Porto.
A 12 de Agosto de 1569, Braz Pereira Brando, fidalgo da Casa do del Rei,
Cavaleiro da Ordem de Cristo e pajem que havia sido do infante D. Fernando,
juntamente com a sua mulher, Mcia de Paz, faz doao da quinta de Val de Amores,
que ficava no outro lado do rio Douro, frente a Miragaia486, Provncia da Piedade
da Ordem de S.Francisco. A doao tinha o propsito de permitir aos monges
menores da regra de S. Francisco edificarem um mosteiro sob a invocao de Santo
Antnio, ficando ambos os doadores por padroeiros487. Era ao tempo, bispo do Porto,
D. Rodrigo. O convento que veio a ser construdo, tinha dimenses modestas, mas a
sua cerca bordejava as guas do rio Douro. Revela a tradio que o claustro da igreja
era de boa construo488.
Mcia, mais uma Paz com o nome da av, nascida do casamento de Diogo de
Paz-o-Moo e de Ana Manrique, casou com Antnio Leite, senhor do morgado de
Ramalde, filho de Joo Dias Leite e de Catarina Carneira. Mcia era a segunda
mulher da famlia a associar-se a um dos descendentes dos Leites. Vasco Leite, citado
por Doutor. Vasco Leite, vereador da cidade em 1559, referido como cunhado de
Duarte de Paz, num documento da Inquisio489.
Do casamento de Mcia de Paz com Antnio Leite nascem quatro filhos, dois
rapazes e duas raparigas490. Um deles, Jorge Leite, ir dedicar-se vida religiosa;
outro, Diogo lvares Leite, passar a viver nas casas do Padro de Belmonte,
pertena anterior de seu av, Diogo de Paz o moo, sucedendo-lhe da mesma forma
nos cargos da Alfndega do Porto e nos pagamentos ao Convento de S. Francisco.

486

Em Miragaia, do lado do Porto, centrava-se uma populao que se dedicava pesca e navegaro comercial
a longa distncia. Vide, Amndio Barros, Porto: a Construo de uma Espao Martimo p.33.
487
Catlogo dos Bispos do Porto composto por D. Rodrigo da Cunha, Porto, Officina Prototypa, Episcopal,
1742, p. 300.
488
O pequeno convento de Santo Antnio foi incendiado pelas tropas miguelistas, em 1832, durante a guerra
civil entre liberais e absolutistas.
489
ANTT, Inquisio, Conselho Geral, cdice 90.
490
Veja-se quadro genealgico em anexo.
125

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Mais uma vez, a escolha matrimonial dos Paz, fora ditada pelas posies que os
Leites ocupavam no tecido social portuense e do Entre Douro e Minho. Os nobilirios
conferem uma origem mais aristocrtica do que, na realidade, esta famlia teve491.
igualmente mais uma famlia que ganha ascendncia ao lado de Afonso V, tal como
acontecera com os Brandes. Os descendentes dos Leites fizeram carreira na
administrao fiduciria, como capites e alcaides da moeda do Porto, ocupando
cargos de direco na vereao do Concelho.492 Muitos deles dedicaram-se vida
religiosa e ao servio militar em frica, em lugares de administrao e liderana
militar. no Norte de frica que se encontra um Antnio Leite493. Conhece-se uma
carta sua para o rei, expedida de Azamor, datada de 1514494. Este facto denota a sua
participao na expedio liderada por D. Jaime, Duque de Bragana, na conquista
daquela praa marroquina. Nos anos de 1529 e 1530, torna-se mesmo capito de
Azamor 495.
Rui Mendes, irmo de Mcia de Paz, a mulher de mestre Joo, encaminhar os
filhos do seu segundo casamento, para acordos matrimonais proveitosos. Passada
uma poca em que predominou a endogamia na famlia, o prprio Rui Mendes que
procurou fora do restrito circulo familiar um segundo cnjuge. O seu filho mais
velho, deste segundo casamento, Joo Mendes de Carvalho ligou-se a duas
importantes famlias do Porto. Casando primeiro com Ceclia Figueiroa, filha de Joo
Figueiroa, e mais tarde com Catarina Anes de Madureira496.
Como se pode deduzir pelo contactos, cruzamentos e acordos que os Paz
estabelecem com todas estas famlias, a sua ascenso explica-se por um programa
resoluto de alianas matrimoniais, que tem por princpio fundamental melhorar as
posies adquiridas no espao social, que assegurava o sucesso, promovia a
491

Opinio de Pedro de Brito, Op. cit., p. 134, que comungamos inteiramente, e por isso somos levados a pensar
que, muito possivelmente, entre as famlias que so estudadas e citado, haver mais do que uma famlia de
origem judaica; lembre-se que o autor identifica somente os Paz, no espao social portuense! Idem, ibidem, p.
138.
492
Idem, ibidem, p. 134.
493
Filho de Joo Leite. Vide quadro em Pedro de Brito, Op. cit., entre as pginas 134 e 135.
494
Documentos do Corpo Chronologico Relativos a Marrocos (1488 a 1514), org, de Antnio Baio, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1925, pp. 108-115.
495
Jos A. R. da Silva Tavim Os Judeus na Expanso Portuguesa Em Marrocos Durante o Sculo XVI. Origens
e actividades duma comunidade, Braga, Edies APACDM distrital de Braga, 1997, Apndice 2, Quadro 2, p.
484 As ligaes dos Leites aos judeus eram ntidas. Repara-se, Antnio Leite, sem proviso rgia, d aval ao
feitor de Abrao Benzamerro, tambm judeu, lngua, para que exercesse esse mesmo cargo (lngua), Idem,
Ibidem, p. 249
496
Pedro de Brito, Op, cit. p. 110.
126

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


projeco da famlia na sociedade do seu tempo

497,

e possibilitava uma integrao

mais profunda dos seus membros na sociedade.


Parece legtimo concluir, que com estes casamentos exogmicos, h a tendncia
para a formao de linhagens498 no interior da famlia, isto , grupos alargados de
diferentes ramos de descendentes, organizados numa base unilinear de ascendncia
paterna, que entretanto se vo distanciando uns dos outros499. Este foi um preo a
pagar pelo fim da endogamia, em benefcio de uma maior projeco e integrao na
sociedade.
Segundo o testemunho de uma das suas sobrinhas-netas, Maria de Paz, mestre
Joo de Paz, o grande obreiro inicial desta poltica de casamentos, era acusado de
traidor e censurado entre os cristos-novos por casar as suas filhas e filhos com
cristos-velhos500.

3. Ascenso Social e Poder Simblico: uma Elite numa


Sociedade Corporativa
As sociedades no so homogneas na sua constituio. Os homens que as
integram no vivem de maneira idntica, nem dispem de recursos similares e dos
mesmos graus de formao, o que sempre contribuiu para diferentes nveis de
riqueza, diferentes formas de poder, diferentes funes sociais, diferentes formas de
interveno pblica501. A riqueza, o parentesco, as relaes sociais, definem por si
uma elite, provendo-a com um determinado status.
497

Os casamentos como forma de mobilidade e critrio de definio das classes sociais, eis um fenmeno que
descrito brilhantemente por Joseph Schumpeter, Imperialisme et Classes Sociales, Prsentation de Jean-Claude
Passeron, Paris, Les ditions de Minuit, 1972, p. 171.
498
Sobre o conceito de linhagem e a sua discusso, Veja-se Nuno Gonalo Monteiro, O Crepsculo dos
Grandes. A Casa e o Patrimnio da Aristocracia em Portugal (1750-1832), 2 ed. Revista, Lisboa, I:N.-C.M.,
2003, p. 83. Cfr. Martin Segalen, Historical Antropology of the Family, ed. cit. Pp. 43-72.
499
Como nos exemplifica o caso de Rui Mendes e dos filhos do seu segundo casamento. de supor, que as
distncias entre os Mendes Carvalho e os Paz tenham aumentado com o decorrer do tempo. Essa distncia,
comeou a ser construda quando mestre Joo e o seu irmo Diogo abandonam Guimares, onde permanecer
Rui Mendes, e vm residir para o Porto.
500
Por exemplo, Maria Teixeira, crist-nova, moradora no Porto, na rua das Taipas, alegadamente um desses
testemunhos. No sabemos se esta assero verdadeira, porque poderia querer servir os intentos de Maria de
Paz, denunciante daquela conversa em 1542. Mais disse Maria de Paz, que mestre Joo estaria no inferno,
dissera Maria Teixeira, porque pressionara D. Manuel a fazer dos judeus cristos. ANTT, Inquisio de
Coimbra, processo n. 9821, fl. 18.
501
Vide, a respeito do conceito de elite: Vilfredo Pareto, Trattato di Sociologia Generale, Firenze, Barbra,
1916, 2025 e 2036.
127

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Entre as caractersticas que concorrem para a definio de elite est a eficcia com
que um certo grupo, ou indivduo, actua nas suas funes sociais, diferenciando-se
do restante corpo social onde se insere. Competncia e protagonismo que lhe so
reconhecidos pela sociedade502.
Os Paz inserem-se num grupo de elite, onde se misturam homens de trato,
letrados, altos funcionrios da Fazenda e do aparelho judicirio. uma elite, letrada
e abastada numa sociedade de corpos e comunidades503, que ao longo do sculo XVI
se vai guindado aos mais altos escales da sociedade. Acumularam avultados bens
com os diversos negcios que fizeram, com os cargos que dispuseram. Foram
enriquecendo de ano para ano, numa conjuntura econmica e social propcia
cumulao de riqueza. A par dos bens que compunham o seu patrimnio, esta
famlia de cristos-novos de Entre Douro e Minho forou a entrada na alta sociedade,
com o intuito de se aproximar das oligarquias aristocrticas mais influentes no tecido
social em que se movia.
Uma parte da nova nobreza que aparece no princpio do sculo XVI devia as suas
honras e foros ao servio que prestava ao Rei. Era uma nobreza novia, recente, algo
debutante, descendente de gente pouco importante, que entretanto vingara numa
rgida sociedade de ordens. Os seus membros tinham acumulado bens e fartos
rendimentos atravs dos investimentos nos negcios que possua. O seu reforo
financeiro levara-a s comendas, aos ttulos, ao topo da escala social. Referimo-nos a
um grupo de indivduos, que entre si repartia privilgios e honras, mas longe, muito
longe de ser de uma forma uniforme. Eram pessoas ricas, bem abonadas, mercadores
de grosso trato, que pelos seus lucros se vestiam com opulncia e apresentavam sem
pudor sinais exteriores da riqueza que entesouravam. Muitos acabavam por ser
nomeados para um cargo honorfico: almotac, tesoureiro, contador, meirinho, e
alcanavam a dignidade de cidado504.

502

Veja-se J. Borges de Macedo, Elite, Polis, Vol. 2, 2 Ed., Lisboa/S. Paulo, 1998, col. 836-837.
Estamos em presena de uma sociedade em que os homens s existem no seio de comunidades, isto ,
colectividades orgnicas, que regulam a vida social e do sentido busca do harmonioso, reproduzindo um
mundo hierarquizado, compartimentado, hierarquizado em funes e papis sociais. Vide sobre o conceito de
corpos sociais, Jacques Revel, A Inveno da Sociedade, Lisboa, Difel, 1989, pp. 185-186.
504
Ter a dignidade de cidado do Porto, por exemplo, era possuir uma qualidade social que ultrapassava a cidade
em que vivia, e gozar de uma srie de prerrogativas e privilgios que se cruzavam com os de fidalgo/nobre. Vide
Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituies e o Poder. I.
Volume, Porto, Arquivo Histrico da Cmara Municipal do Porto, 1988, pp. 290-298.
503

128

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Entre a famlia Paz, as nobilitaes surgem uma a uma, de forma natural, como
fruto da promoo social. Estamos em presena, no h dvida, de uma elite social
que em muitos casos tem regalias e estatuto similar nobreza, levando uma vida
aristocrtica, rodeada de servidores e criados, desfrutando de finos produtos e
servios, que s uma nfima minoria tinha acesso.
So muito significativos os privilgios - revelando um ganho de prestgio e
distino social - concedidos pelo Rei aos membros desta famlia de conversos.
Regalias, imunidades, foros, ttulos, que so registados na Chancelaria rgia, ano
aps ano, e que nos permite entender o muito poder acumulado ao longo de dcadas
pelos Paz.
Comecemos pelas Ordenaes de Menores. Os mais jovens da famlia viram os
seus nomes inscritos nos livros das Matrculas de Ordens da mais poderosa Diocese
do Reino (Braga), e foram ordenados in Monoribus, concluindo os estudos que os
podiam levar a uma vida religiosa. Mas o objectivo era bem outro. Os pais, que
haviam sido marginalizados socialmente e chegado em dificuldades do outro lado da
fronteira, optaram pela converso ao catolicismo, e tinham presente a necessidade de
uma formao acadmica de qualidade para os seus filhos, que mais tarde, adquirida
a formao em gramtica, retrica e aritmtica, e ficando a saber ler, escrever, contar
e fazer clculos aritmticos, podiam auxiliar na gesto dos negcios da famlia,
sucedendo com sucesso na administrao dos activos familiares, ou concorrer para os
lugares mais apetecidos na mquina fiscal do Estado. A educao funcionava, pois,
como um instrumento de reproduo da ordem social, e os Paz tinham bem presente
essa assero. Afinal, os que nascem em famlias de poderosos comerciantes no tm
necessidade de sair do seu meio, pois a encontram todas as oportunidades de
aprendizagem e promoo505.
Seguir uma vida religiosa, habilitava um jovem a concorrer obteno dum
benefcio eclesistico, excelente condio para incio de uma carreira clerical. Os pais
apresentavam ao Bispo os filhos ainda muito jovens, que ficavam ao abrigo do foro
especial de clrigos, alm de outras regalias sugestivas506. Havia quem solicitasse
505

Vide os casos aludidos por Pilar Huerga Criado, En la Raya de Portugalpp. 53-55.
Sobre as Ordens de Menores seguimos de perto as consideraes e informaes que so dadas por Isaas da
Rosa Pereira, Matrcula de Ordens da Diocese de vora (1480-1483). Qual dos dois Vascos da Gama foi ndia
em 1497, Lisboa, APH, 1990, pp. 16-20.
506

129

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Tonsura e Ordens Menores para os seus dois, trs, quatro, cinco e mais filhos.
Ficando sempre salvaguardada a opo dos clrigos de primeira Tonsura e os
Minoristas poderem abandonar por sua livre e espontnea vontade o estatuto de
clrigos e casar. compreensvel a razo dos progenitores apresentarem mais do que
um filho para receber a clericatura: a esperana era a de que os seus filhos obtivessem
um benefcio eclesistico. E mesmo que depois no viessem a incorporar o Clero
secular ou regular, como de facto sucedeu inmeras vezes, abandonavam a carreira
eclesistica e seguiam outras profisses. Este foi o caminho escolhido e trilhado pela
segunda gerao dos Paz, desde que a famlia se estabelecera em Portugal. Com
excepo de Jorge de Paz507, todos os seus primos preferiam seguir os passos dos
seus pais e mergulhar numa vida ligada ao comrcio e cobrana de impostos.
O problema com esta sociedade, que desponta no perodo que se convencionou
denominar Idade Moderna, estava em que os seus membros, mesmo quando
conseguiam livrar-se das necessidades da vida, no conseguiam libertar-se das
preocupaes que lhes estavam estreitamente associadas como era o caso da
posio social e do modo como esta se reflectia nos seus eus individuais508.
Preocupaes relacionadas com a promoo social, que esto bem patentes nos
esforos direccionados por esta famlia de cristos-novos, para aquisio de um
estatuto social mais elevado, aproveitando a alvorada de um mundo novo que trazia
boas oportunidades para a mobilidade social ascendente509.
O valor do dinheiro numa sociedade de ordens, no se traduzia de forma
imediata em mais estatuto social. Lucros fabulosos permitiam, quando muito,
esboar estratgias, concertadas com outras famlias que j ocupavam posies de
relevo, que como vimos no ponto anterior, projectavam socialmente os membros da
famlia e solidificavam os ganhos obtidos.
Mestre Joo tem um cargo de relevo social, como fsico e cirurgio do Rei, mas
os seus filhos e sobrinhos vo seguir, igualmente, os degraus da promoo social.
Duarte de Paz acompanha o Duque de Bragana, D. Jaime, em 1513, na expedio a
507

Estudante em Salamanca. A 4 de Novembro de 1512 ouvido sobre Pedro Santispiritus, que se tinha
apoderado da Ctedra de Medicina. Ficamos a saber que tinha ouvido mais de quatro anos de Medicina. Vide
Armando Jesus Marques, Portugal e a Universidade de Salamanca. Participao de escolares lusos no governo
do Estudo, 1503-1512, Salamanca, Edciones Universidad de Salamanca, 1980, p. 302 fl. 403.
508
Uma arguta concluso de Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro. Oito Exerccios sobre o Pensamento
Poltico, St. Maria da Feira, Relgio Dgua Editores, p. 220.
509
Remetemos para Joo Cordeiro Pereira A Estrutura Social e o seu Devir, Nova Histria de Portugal p.86.
130

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Azamor510. O Duque armara s suas prprias custas cinco mil infantes e quinhentas
lanas, que recrutara nas suas terras511. Era neste exrcito que seguia o futuro
procurador dos cristos-novos. O pai investira na sua formao, e agora chegara a
altura de, nos campos do Norte de frica, fazer o seu baptismo de guerra, para
adquirir as insgnias de cavaleiro. Duarte envergava o hbito de cavaleiro da Ordem
de Cristo, ganho pelo servio militar nas campanhas africanas, com perda de uma
vista512. Anos mais tarde, a 14 de Junho de 1530, com o ttulo de caualeiro de minha
casa D. Joo III deixar bem expresso que tem a sua inteira permisso para que goze
de todos os privilgios de cavaleiro, ainda que no tenha cavalo513.
Diogo de Paz, irmo de mestre Joo, mencionado na documentao como
cavalleiro da nossa casa514; o astrlogo dado como possuidor de cota de armas e
cidado515; o seu filho Diogo, alm de ver o seu ordenado aumentado, pelos bons
desempenhos, denominado, por Carta de 15 de Fevereiro de 1534, cavaleiro de
minha casa516. Rui Mendes, o irmo de Genebra de Paz, cunhado de mestre Joo,
cavaleiro assim como todos os filhos do seu segundo casamento517.
Contrapondo-se esfera privada, domnio da famlia e das necessidades, a esfera
da polis518 oferecia-se como uma meta a alcanar por muitos sefarditas. A
participao na vida da cidade e nas decises polticas de domnio pblico, nos
negcios da res-pblica, foi uma ambio perseguida por um dos Paz: Diogo, o filho
de mestre Joo. O colgio camarrio no permite inicialmente a satisfao das suas
ambies, e ignora os provimentos da Coroa a seu favor. Mas Diogo no desiste, e
move uma segunda vez influncias junto do Rei. A 27 de Junho de 1528, D. Joo III
510

ANTT, Corpo Cronolgico, Parte II, mao 41, n. 37. Este documento uma ordem de D. Martinho, para que
Filipe Costa ou Duarte de Paz, que vo numa chiola (embarcao de tamanho modesto), fiquem responsveis
pela distribuio de carne de vaca para 13 pessoas.
511
Fernando Palha, O casamento do Infante D. Duarte com D. Izabel de Bragana, Lisboa, Impresso Nacional,
1881.
512
D. Martinho de Portugal em carta a D. Joo III, datada de14 de Maro de 1535, assim o refere. [] com
hum avito de christo no peito; e me dizem que mostra estromentos e outros papeis de como mereceo em africa
[]. Corpo Diplomtico Portugus, publicado por Luiz Augusto Rebello da Silva, Tomo III, Lisboa, Tygraphia
Real das Sciencias, 1868, pp. 181-189, p. 185. No obtivemos prova de que em 1513 Duarte de Paz tenha
permanecido em Azamor ou Mazago. Lembra-se no entanto que fora o mesmo D. Martinho que enviara uma
ordem a Duarte de Paz, a que tivemos acesso, durante o trnsito daquele para a batalha de Azamor, em 1513.
513
ANTT., Chancelaria de D. Joo III, Liv. 52 fl. 130.
514
Cartas de Quitao del Rei D. Manuel, Archivo Histrico Portugus, Vol. I, n. 11, 1903, p. 406, carta n.
153.
515
Analisaremos parte esta distino, no captulo seguinte.
516
Idem, Ibidem, Liv. 7 fl. 25.
517
ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 9 fl. 238 v.
518
Vide Hannah Arendt, A Condio Humana, Lisboa, Relgio Dgua Editores, 2001 pp. 43-45.
131

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


solicita aos oficiais da cmara do Porto que nomeassem Diogo de Paz o-moo,
almotac. Na nova proviso pode ler-se: E nam fazendo o dito Dioguo de Paaz almotacee
o dito ms [Agosto] mando-uos que mandes voso bastante procurador a esta Corte com
quesquer embarguos que tyverdes ao nom fazerdes como em mynhas prouyses pasadas vos
hora mandados ho quall vira requerer ho dito casy diamte ho juiz de meus feytos [] 519.
Exercer as funes de almotac era de capital importncia para os cidados que
tinham a pretenso de alcanar os mais altos cargos do municpio o cursus
honorum concelhio520. E encontrar-se plenamente integrado na cidade dos homens,
significava uma integrao mais efectiva na sociedade e possuir direitos inalienveis.
Aos poucos, Diogo de Paz vai intervindo nas decises camarrias e ganhando o
respeito da assembleia de eleitos do burgo521.
Alguns dos membros da famlia tinham morada no pao, constando na lista de
recebedores de tenas. Mestre Joo usufruiu no tempo de D. Manuel uma tena nos
Armazm da ndia522, e passou a receber oitocentos ris com D.Joo III, entre os
fsicos do pao; Ferno de Paz encontra-se entre os moos da cmara de D. Joo III,
com direito a trs quartos de cevada por dia e quatrocentos e seis ris, transitando
desse cargo da corte da rainha D. Catarina; Francisco de Paz integrava-se entre os
xaramelleiros que estavam na Corte; Jorge de Paz, irmo de Francisco, ambos
filhos de Henrique de Paz, irmo de mestre Joo, est incluindo nos homens do
thesouro, como homem da armaria523. Por sua vez, Francisco de Paz, que fora em
tempos escrivo dos Contos do Porto, queixava-se que com a venda do ofcio ficava
sem nada, e solicita em 1520 uma merc de trs mil reais, que prontamente
concedida por D. Manuel524.
Todos os filhos, homens, de Rui Mendes ocupam altos cargos no aparelho Judicial
da Coroa, elevando-se, dessa forma, ao cimo da pirmide social. Heitor Mendes,
meirinho e cidado de Lamego; o seu irmo Francisco, cidado lamecense, Juiz de
Fora em Viana do Castelo. Os outros filhos do segundo casamento, saliente-se
519

Arquivo Histrico Municipal do Porto, Provises, Liv. 1 fl. 198.


Veja-se Maria de Ftima Machado, O Central e o Local. A Vereao do Porto de D. Manuel a D. Joo III,
Porto, Edies Afrontamento, 2003, p. 47 e p. 100.
521
Est presente na reunio da Cmara a 12 de Maro de 1539. Arquivo Histrico Municipal do Porto,
Provises, Liv. 17 fls 46, 46 v. e 47.
522
ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, livro 15, fl. 172.
523
D. Antnio Caetano de Sousa, Provas da Histria Genealgica da Casa Real Portuguesa, tomo VI, II parte,
Coimbra, Atlntida Editora, 1944, p. 304 e 332.
524
ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 36, fl. 78.
520

132

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Henrique da Cunha, Contador de Entre Douro e Minho, cavaleiro da casa do Rei;
o seu irmo Cristvo alou-se, primeiro, ao cargo de Corregedor da Beira e Riba
Ca, Chanceler da Casa do Cvel e por fim Juiz desembargador. Letrados, com
formao acadmica, estes homens alcanam uma posio notvel na burocracia do
Estado.
Jernimo Fernandes, genro de Heitor Mendes, marido de Justa de Paz, que tem a
dignidade de ciado, detm por vrias vezes o cargo de almotac de Lamego. O
seu irmo Rui escudeiro da casa do Rei. No h dvida que estamos em presena
de um elite local, nortenha, composta por cavaleiros e distintos cidados.
Em 1536, mestre Joo institui uma capela em S. Francisco do Porto. No seu leito
de morte, o mdico e mercador, ilustre cidado do Porto, dita o seu testamento. A
sua ltima vontade, ser enterrado numa capela do mosteiro, que tinha mandado
erguer, deixando por perptuo administrador o seu filho Diogo, e como obrigao de
renda em cada um ano trs mil reis para os frades de S. Francisco, em troca da
celebrao de missas por sua alma e de sua mulher525. Ficaria ali, num tmulo de um
convento - que servia de panteo para muitas das famlias ricas da cidade, como os
Carneiros ou os Brandes - de fronte para o rio, prximo do porto e da Alfndega
onde a sua famlia fizera tantos e to diversos negcios. Um local em que os Paz
desenvolveram uma relao muito particular com o tecido urbano.
Que diferena encontramos nesta celebrao de contrato, entre mestre Joo de
Paz e os frades do mosteiro de S. Francisco do Porto, e aqueles actos notariais que
muitos nobres faziam para instituio de capelas em mosteiros e igrejas?
Tomamos como certo, que a fundao de uma capela por mestre Joo, o patriarca de
uma famlia de cristos-novos, teve um propsito muito bem definido na hora em
que se despedia deste mundo: a afirmao social dos Paz. No documento lavrado
ficou assente: E loguo per elle foy dito que elle temendo-se da morte que he cousa pera que
todos naemos, ordenava ora de fazer sua manda e testamento da maneyra seguinte. Pera que
despois da sua morte se cumpra todo o em ella contehudo, por sua demanda e ulltima
vontade.526

525
526

ADP, Convento de S. Francisco, Tomo 2 dos Ttulos e das Capelas e Legados.


Ibidem, fl. 1.
133

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Rui Mendes, cunhado do fsico, institui na freguesia da Cunha, termo de
Barcelos527, um morgado em que sucede Henrique da Cunha, o filho que ir ocupar o
seu lugar na Contadoria de Entre Douro e Minho. Cristvo Mendes de Carvalho, o
segundo filho mais velho de Rui Mendes, funda em Trancoso, no ano de 1539, um
convento de freiras franciscanas, de que ele e os seus descendentes ficaram por
padroeiros, obtendo do Papa os rendimentos da comenda de Nossa Senhora da
Fresta, que tinha o Convento528.
Apostar nas obras pias, na solidariedade para com os mais desfavorecidos, numa
aproximao s instituies de caridade, apresentava-se como outra das vias de
promoo e ascenso social. Os cristos-novos escolheram as misericrdias como
espao privilegiado para adquirirem prestgio e se relacionarem de perto com o
grupo de notveis do Concelho e com os religiosos, que exerciam influncia no tecido
social local. Assim ter sido na Misericrdia do Porto. Diogo o-moo, deixa a seu
neto, Diogo lvares Leite, como compromisso oferendar Misericrdia do Porto, por
dia de Fiis de Deus, em cada ano, quatro alqueires de trigo para os pobres como le
Diogo de Paz, o costumara fazer em vida.529
Alm dos Paz, os Nasci, no sabemos se parentes prximos da conhecida famlia
com o mesmo nome, relacionaram-se com a instituio. Izabel Nasci e Maria Rebella,
filhas de Antnia Nasci e Antnio Rebelo Duarte, que viviam em 1608 no Oriente,
passam uma procurao em Goa Misericrdia, como herdeiros de um morgado,
para reaverem a cobrana da fazenda que lhes pertencia530.
Os Paz que residem no Porto tm todos a dignidade de cidado. Na
documentao aparecem com essa designao531. O cidado do Porto pertencia a um
grupo de privilegiados: no seria submetido a tormentos, a no ser nos mesmos
modos em que os fidalgos o fossem; se fosse preso, s-lo-ia no seu prprio domiclio,
e na cadeia pblica; poderia fazer uso e porte de armas, de noite e dia, em caso de
defesa ou ataque, por todo o reino; usufruiria de todas as liberdades e privilgios
atribudas cidade pelo rei, os seus caseiros e amos, lavradores no seriam obrigados
527

Onde mestre Joo tambm tivera bens, por doao do Duque de Bragana.
Pedro de Brito, Op. cit. P. 368.
529
A. Magalhes de Basto, Histria da Santa Casa da Misericrdia do Porto, 2. Ed., com prefcio de Francisco
Ribeiro da Silva, Vol. I, Porto, Santa Casa da Misericrdia do Porto, 1997, p. 462.
530
Misericrdia do Porto, ed. cit.Vol. I, p. 454.
531
Veja-se por exemplo o documenta em que mestre Joo procurador de Lus Vaz de Negro a 9 de Dezembro
de 1527. ANTT, Corpo Cronolgico, mao 145, n. 23.
528

134

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


a serem recrutados para a guerra; ficariam livres de dar pousada, ou a ver tomadas
as suas cavalarias ou adegas contra a sua vontade532.
O tipo de residncia era outro smbolo de distino social. Segundo a informao
veiculada pelos genealogistas, parte da famlia que residia no Porto, habitava na Rua
de Belmonte, rua de grande dinamismo comercial durante toda a Idade Moderna,
escolhida pela gente mais rica ligada ao comrcio. A se situava o melhor de todas as
casas urbanas, a de trs sobrados533. Mestre Joo referido no seu testamento como
morador nesse lugar, e a tradio nobiliria, cita-o como possuidor de umas casas no
Padro de Belmonte534. Mas nem todos os Paz moravam na rua de Belmonte. Uma
outra parte residia na Porta do Olival535, onde se situara em tempos a sinagoga do
Porto. Antnio de Paz um dos que possui moradia nessa rea urbana, mas parte
dos seus bens patrimoniais tambm se encontram localizados na Rua de S. Miguel.
H por isso quem possua casas simultaneamente em dois lugares. Beatriz de Paz,
uma das filhas de Diogo o-velho, solicita consentimento ao senado da Cmara, a 10
de Fevereiro de 1560, para vender a Francisco Gonalves, sapateiro, uns pardieiros na
rua de S. Miguel536.
Na vereao de 22 de Junho de 1549, Isabel Rodrigues, filha de Francisco de Paz,
sobrinha de Beatriz, solicita autorizao para vender umas casas na Vila das
Barreiras537. Deduzimos, que os bens imveis da famlia se encontravam
disseminados pela cidade do Porto, nos locais mais emblemticos de residncia dos
que se dedicavam ao trato e mercancia, num espao urbano que I.S. Rvah integra
no gueto do Porto, compreendendo o noroeste da cidade: ruas de Belmonte, das
Taipas e de So Miguel538.
So significativos os privilgios de distino social concedidos pelo Rei.
Privilgios que permitem a quase todos os membros masculinos da famlia andarem
em besta muar de sela e freio. Duarte autorizado, inicialmente, a andar de mula a
532

Francisco Ribeiro da Silva, Op. cit. Vol. I. pp. 296-297.


Em fins do sculo XVI, havia ainda uma casa pertena da famlia, na posse de um Joo de Paz, mercador.
Veja-se Francisco Ribeiro da Silva, Tempos Modernos, Histria do Porto, dir. de Lus Oliveira Ramos, Porto,
Porto Editora, 1994, pp. 270-274.
534
Como referido na primeira parte do trabalho. Vide a transcrio do seu testamento no anexo documental.
535
ANT.T., Inquisio de Coimbra, Mao 13, processo 140, fls103 v.-104.
536
AHCMP, Vereaes, A PUB 23, fl. 273.
537
Ibidem, Vereaes A PUB 18, fl. 165 v..
538
se I.S. Rvah, Uriel da Costa e les Marranes de Porto. Cours au Collge de France 1966-1972, ed. de
Carsten Z. Wilke, Paris, E.C.G., Centre Culturel Gulbenkian, 2004, pp. 149-150.
533

135

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


16 de Novembro de 1525; Isidro tem a autorizao concedida a 16 de Abril de 1528;
mestre Joo obtm esse privilgio a 16 de Junho de 1528; Francisco de Paz, o filho de
Henrique, morador em Braga, tem permisso para andar em mula ou faca a 10 de
Fevereiro de 1532; e Antnio de Paz a 22 do mesmo ms539.
Quando o arcebispo de Braga, D. Manuel de Sousa, se desloca ao Porto em 1549,
fica em casa de Diogo de Paz. O religioso acabar por falecer em as casas de diogo de
paaz aos xbiiJ/Dias de Julho [...] 540 desse ano. A estadia do prelado na residncia do
cristo-novo, no alheia ao facto dos Paz sempre terem mantido relaes de
proximidade com a Igreja. Jorge de Paz, um dos primos de Diogo, encontra-se na
jurisdio religiosa de Braga. Clrigo desta poderosa diocese, o religioso estive a
braos com a justia, chegando mesmo a pedir absolvio de perjrio, por ter
recebido indevidamente o grau de Bacharel de duas universidades, Salamanca e
Roma. Desejava em 1513 ser amnistiado de outras penas eclesisticas, que julgamos
estarem relacionadas com a sua condio de cristo-novo541.
A parte feminina da famlia Paz no exerceu um papel menor. Pelo contrrio.
Quando a Inquisio se instalou e a famlia se dividiu, a ala feminina teve um papel
importante na salvaguarda da riqueza, da mobilidade social familiar, e na
reabilitao do seu prestgio social: primeiro, diante da Inquisio do Porto em
1542542, em seguida nas reunies da Cmara para cuidar dos interesses da famlia.
imperioso indagar que lugar ocupava o elemento feminino no seio do grupo
familiar? Determinantes nas estratgias de aliana com outras famlias, geralmente
seladas atravs do matrimnio, as mulheres eram peas importantes de um jogo
calculista. A propriedade, o poder, eram assuntos que interessavam ao colectivo
familiar, e que guiavam as negociaes com outros ncleos familiares com vista a
unies de esforos543, tendo a um papel determinante o elemento feminino. Tal como

539

ANT.T., Chancelaria de D. Joo III, Liv. 11, fl. 43 v., e 82, Liv.13 fl. 38, Liv. 18 fl. 2v. e 11 v. Liv. 52
fl. 130., respectivamente. Todas estas cartas se encontram transcritas em anexo.
540
Memrias Quinhentistas Dum Procurador Del-Rei no Prto pelo Licenciado Francisco Dias, Indito da
Biblioteca Municipal do Porto, Ms n. 553, prefacio e notas finais de A. Magalhes Basto, Porto, Publicaes da
Cmara Municipal do Porto/Gabinete de Histria da Cidade, 1937, p. 26.
541
Chartularium Universitatis Portugalensis 1288-1537), Vol. XI (1511-1520), Lisboa, Junta Nacional de
Investigao Cientfica e Tecnolgica, 1993, doc. 4454 de 11 de Janeiro de 1513, pp. 191-192 e doc. 4502 de 1
de Maro de 1514, pp. 241-242.
542
ANTT., Inquisio, Cdice 90 fls. 44 e 44 v..
543
Cfr. Lawrence Stone, The Family, Sex And Marriage In England 1500-1800, London, Penguin Books, 1990.
pp. 70-71.
136

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


nas lides do lar, administrando a casa e educando os filhos, o papel da mulher
fulcral em caso de cabea de famlia. Na situao de viva, assumia a
responsabilidade e gerncia dos bens familiares544.
Outra das vias que os Paz escolheram para a sua promoo social, foi o ingresso
nas ordens religiosas. Alm de Duarte de Paz, comendador da Ordem de Cristo,
Antnio e Isidro de Paz, primos, filhos de Diogo o-velho e mestre Joo,
respectivamente, compram o hbito para ingressarem nas ordens de Avis e Santiago.
Quem quisesse ingressar na Ordem de Avis e Santiago, no caso dos freires
cavaleiros, teria que preencher trs regras bsicas: a honestidade da pessoa, a
importncia da sua fazenda e a iseno de qualquer pena disciplinar545. Os dois Paz
preenchiam essas prerrogativas. A 31 de Janeiro de 1538 Isidro investido do hbito
de Santiago546. Cerca de dois anos depois, a 11 de Dezembro de 1540, o seu primo
Antnio, entra para a Ordem de Avis547.
A Universidade acolheu igualmente alguns elementos desta famlia. Jorge de Paz,
estudara em Salamanca e Roma, e interveio na vida acadmica, no corpo de alunos
daquela primeira escola. Um dos seus primos, Ferno Lopes de Paz, viera para
Lisboa, tornando-se um professor conceituado, e j integrava em 1542 o Conselho
acadmico do Estudo Geral de Lisboa, tendo a seu cargo a regncia da cadeira de
Cnones548.
Com tanto prestgio, e tantas e variadas pessoas de inteira confiana prximas do
poder, o que era um sinal evidente da capacidade de influenciar acontecimentos e
altas figuras ligadas Coroa e ao poder poltico, alguns dos membros desta famlia
de cristos-novos vo perpetuar a memria dos seus feitos e da glria alcanada.
Esta questo remete-nos para o domnio do simblico e do que isso representa para a
identidade e reproduo familiar, e tambm para reforo da coeso interna do grupo.
A estratgia, que passava pelo estreitamente de laos com instituies de cariz

544

Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no sculo XV, ed. cit., p. 227.
Veja-se Maria Cristina Gomes Pimenta, As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Mdia. O Governo
de D. Jorge, Palmela, Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago, Cmara Municipal de Palmela, 2002, p.
230.
546
ANTT, Coleco Especial, caixa 75, Mao 1.
547
Ibidem, Convento de Palmela, 3 suplemento, Livro 20, fls 72 e 73.
548
Actarium Chartularii Universitatis Portugalensis, organizao de A. Moreira de S, Vol. III, Lisboa, Instituto
de Alta Cultura, doc. MCXIX, 10 de Junho de 1532; MCXX, 19 de Junho de 1532; MCDLX, 27-28 de Maro de
1537.
545

137

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


assistencial, objectivo plenamente satisfeito, ia at aquisio de morgados e de
pedras tumulares.
Antnio de Paz, conhecido mercador de Entre Douro e Minho, detentor de
negcios um pouco por todo o Norte e em Lisboa, faz-se sepultar na S do Porto - um
dos monumentos carregados de grande simbolismo da cidade - com as insgnias de
cavaleiro da Ordem de Avis. Ao seu lado repousar o sogro, Simo Gomes. Ficar
eternamente no pavimento da capela de S. Joo Evangelista, num espao que contm
a inscrio: Aqui jaz Antonio de Paz cavaleiro da Ordem de Avis e administrador que foi
desta capela.549 Era o fim de uma caminhada, de uma vida de contnua persistncia
em prol da limpeza de uma condio de inferioridade550, imposta pela sociedade, que
lembrava a todo o momento que tipo de sangue lhe corria nas veias.
Este epitfio, que reala a dignidade de cavaleiro, transmite uma manifesta busca
de prestgio familiar, procurando Antnio de Paz, e o seu sogro Simo Gomes,
aproximar-se das mais ilustres figuras do meio urbano portuense, reivindicando
dessa forma um lugar na memria da cidade. Em suma, realce-se, as diferentes
classes e fraces de classes esto envolvidas numa luta sem quartel, de cariz
simblico para imporem a definio do mundo social mais conforme aos seus
interesses, e imporem o campo de tomadas de posies simblicas da vida
quotidiana, reproduzindo em forma transfigurada o campo das posies sociais551.
Ao cair do pano de uma poca de prosperidade, os tmulos de Antnio de Paz e
de Simo Gomes, assinalavam, no apenas a presena tumular dos corpos de dois
mercadores, que haviam vivido e feito fortuna no Norte Atlntico, mas a sepultura de
dois cavaleiros, a quem se devia prestar a devida homenagem.

549

Sobre estas sepulturas v. Carlos de Passos, Porto Notcia Histrico-Archeologica e Artistica da Cathedral
e das Egrejas de Cedofeita e S. Francisco, Monumentos de Portugal, n. 3, Porto, Litografia Nacional-Edies,
1929, pp. 44-45.
550
Haver fidalgos na corte de D. Pedro II, descendentes de Antnio de Paz, que negaro a sua ascendncia
crist-nova. Vide D. Antnio Xavier da Gama Coutinho, Atribulaes Causadas A Uma Famlia Pela Sua
Estadia No Porto, Boletim Cultural da Cmara Municipal do Porto, Junho, Fascculo 2, Vol. V, 1912, pp. 189205 e pp. 318-319. O autor confunde Antnio de Paz com os Paz de Tradamora, mas rapidamente percebe que
factos contraditrios nas genealogias que se fizeram no sculo XVIII para as limpezas de sangue.
551
Aplicamos as consideraes de Pierre Bourdieu sobre o poder simblico. Vide O Poder Simblico, ed. cit., p.
11.
138

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER

4. As Armas o nome e o sangue gravados a ouro.


O que distinguia os homens numa sociedade profundamente hierarquizada
era a sua descendncia, o seu sangue, o seu nome. A transmisso do nome de famlia,
de gerao em gerao, identificava uma tradio familiar, a sua memria e o seu
patrimnio simblico.
A tradio documental no nos esclarece de que forma o nome Paz foi
atribudo a uma famlia de judeus que imigrara de Castela para terras portuguesas.
Nos anos conturbados de 1496 e 1497 aparecem, aps a converso geral, vrios
fsicos e cirurgies cristos-novos com apelido de Paz. Um de entre todos vai
emergir, como distinto astrlogo da Corte, fsico e cirurgio do Rei, oficial das
alfndegas do Norte do Reino e cobrador de impostos: mestre Joo, morador,
inicialmente, em Guimares, e depois no Porto. Esfumou-se no fluir do tempo o
registo do braso de armas da famlia. A carta no se encontra registada na
Chancelaria. Lacuna documental que, de forma similar, extensvel a outros casos de
conversos enobrecidos, que viam ser-lhes limpas e supridas as mculas de sangue
israelita552. A memria escrita, preservada pelos nobilirios, revela que em 1496
mestre Joo teria recebido as armas de D.Manuel I. Era comum o monarca
galardoar quem se distinguia ao servio. E no foram poucos os cristos-novos que
ao longo dos sculos XV e XVI alcanaram a dignidade de cavaleiros-fidalgos com
braso de armas553. Um dos netos de mestre Joo, Tom Pegado de Paz, testemunha
Inquisio portuguesa, em 1578, que teria transportado durante algum tempo um
pergaminho constava os privilgios de fidalgo e cidado do av. Segundo as suas
prprias palavras: priuilgios que trazia de seu auou que trazia em pergaminho []. E

552

Veja-se o exemplo de Bernardim Esteves, cristo-novo que se encontrava, igualmente, ligado Fazenda,
enobrecido por D. Joo III. A carta de braso de armas no se encontra registada na Chancelaria,
desconhecendo-se onde foi sepultado. Porm, sabe-se que tinha capela na igreja de Nossa Senhora da Sebonda,
em Alcochete. Repare-se, dois casos em tudo idnticos a mestre Joo, quanto cota de armas e sua sepultura.
Veja-se Joo Cordeiro Pereira, A Estrutura Social e o seu Devir, Op. cit., p. 310.
553
Joo Cordeiro Pereira d-nos quatro casos: Gaspar Pacheco; Bernardim Esteves, Cristvo Esteves; mestre
Nicolau Coronel. Os dois primeiros, funcionrios da Fazenda, Cristvo Esteves da mquina judicial. Estes
receberam distino do rei Piedoso. O ltimo, fsico, enobrecido por D. Manuel. Vide Joo Cordeiro Pereira, A
Estrutura Social e o seu Devir, pp. 304, 307, 310 e 311.
139

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


pregumtado que preuilgios eraom dyse que eraom de como se conuertera de judeu a cristaom
que eraom priuilgios de fydallgo e idadaom 554.
Ser que o pergaminho de que Tom falava fazia referncia ao braso familiar?
O texto do interrogatrio a que o neto do fsico foi sujeito na casa do captulo da
Inquisio de Lisboa, no esclarecedor quanto a esse ponto. A descrio herldica
do braso chegou-nos por outras vias. No Theouro da Nobreza das Famlias Gentlicas do
Reyno de Portugal, editado em 1799, Frei Manuel de Santo Antnio, assinala que a
famlia Paz tinha por armas, em campo azul quatro rosas de sua cor, refendidas e perfiladas
de oiro acantonadas em anis huma patena de prata; em 24 de Janeiro de 1496 em que se
festeja a Virgem Nossa Senhora com o ttulo de Paz, e por esta rosa tomou este apellido;
instituiu morgado e descendem delle alguns fidalgos da provncia do Minho.555
No jogo simblico figurativo do braso, o elemento central so as rosas,
componente da natureza que est associado paz, concrdia, harmonia. Numa
sociedade dominada por convulses sociais e pelo problema da integrao
forada/xodo de uma minoria, de que o prprio contemplado era membro, a
palavra Paz556 e as rosas figuradas no braso, remetiam para um apaziguamento
social, certamente muito desejado pelo detentor do ceptro Real, que poucos meses
antes se sentara no trono557, sendo umas das suas primeiras medidas libertar os
muitos judeus que encontravam cativos desde o tempo de D.Joo II. Damio de Gis
reserva um captulo da Crnica do Rei Emanuel s medidas que o Venturoso tomou
para libertar esses filhos Abrao e Moiss. Numa das passagens, o humanista
escreve: Mas elrei d Emanuel, q em humanidade, liberalidade, clemia e virtude a ninhum
Rei christo foi inferior, tanto que regnou libertou logo estes Iudeus captivos, e lhes deu poder
pra de suas pessoas dispor s suas vtades.558

554

IANTT, Inquisio de Lisboa, Processo n. 10906, fols. 9 v. e 10.(transcrio em anexo Anselmo Braacamp
Freire, Armaria Portuguesa, [s.l,] Cota DArmas - Editores e Livreiros, 1989, p. 380.
555
B.A., Fr. Manuel de Santo Antnio, Thezouro da Nobreza..., Cdice 50-V-18, p. 225. Anselmo Braacamp
Freire, Armaria Portuguesa, loc. cit., descreve do seguinte modo o braso familiar dos Paz: Tinha por armas,
em campo azul quatro rosas de sua cor, refendidas e perfiladas de ouro acantonadas em anis. E, de prata,
aberto, guarnecido de ouro, Paquife e Virol, de azul e prata.
556
Em conversa com a Dr. Florbela Veiga Frade, foi-me dito que palavra Paz em hebraico tem um significado
que no s o da sua etimologia em portugus, significando brilho, prateado.
557
Relembre-se que em finais de 1495 D. Manuel investido como Rei, e a cota de amas de mestre Joo ter
sido atribuda poucos meses depois. Sublinhe-se ainda que o nome Paz, tambm ser atribudo por D. Manuel
ao seu filho: Miguel da Paz, que no sobreviver, fruto do seu casamento com a filha dos Reis Catlicos, Isabel,
que tambm morrer aps o parto da criana.
558
Damio de Gis, Op. cit. p. 24.
140

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


Voltando ao nome da famlia, e ao que poder ter significado com a sua
atribuio, Leite Vasconcelos defende que Paz talvez fosse uma derivao do
hebreu xalm559. Na Holanda aparecer com frequncia o apelido Salom, nos judeus
portugueses, cuja definio em hebraico paz, correspondendo deste modo
significao ao sobrenome e apelido portugus, segundo aquele etngrafo560.
Uma famlia espanhola que se considerava descendente do Infante D.Pedro,
filho de D. Afonso X, o sbio, tinha tambm o nome Paz. D. Sancho de Paz possua o
senhorio de Ladesma. Um dos seus muitos filhos, Lus lvaro de Paz, homiziou-se
em Portugal, por ter sido acusado de um homicdio. Esta famlia era brasonada. O
seu braso era de fundo de azul, com dez besantes (patenas) de ouro. Curioso reparo,
o braso supostamente atribudo a mestre Joo, tambm tinha fundo azul, mas s
figurava, ao centro, um besante (patena), igual aos anteriores citados, s que em
prata561. Podemos ir ainda mais longe nesta analogia. Em Castela, havia um Sancho
de Paz, que se encontrava ao servio da Fazenda562, com um cargo em tudo idntico
aos que muitos elementos da famlia de Entre Douro e Minho dispunham.
Acrescente-se que nos judaizantes de Toledo, habilitados pela Inquisio, figuram,
entre outros, Angelina e Marioa, filhas de Juan de Paz563. O que significaro estes
factos? Simples coincidncias? So questes para as quais, por agora, no
encontramos respostas adequadas, nem dispomos de elementos que nos habilitem a
uma explicao coerente.
O enobrecimento e atribuio de cota de armas aos Paz um dos aspectos
mais controversos e discutidos que se relacionam com esta famlia de conversos. Nos
registos das chancelarias nada consta, nem qualquer outro diploma foi encontrado
que prove tal merc, apesar das genealogias o descreverem minuciosamente. A
comprovar-se a hiptese que estamos diante de uma famlia brasonada, e tudo indica
que sim, as armas correspondentes ao seu enobrecimento e fidalguia serviam bem o
propsito de legitimao e glorificao de uma linhagem de cristos-novos que
559

J. Leite de Vasconcelos, Antroponmia Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1928, p. 401.


Idem, ibidem, p. 407.
561
Vide Armorial Lusitano, de Afonso Martins Zuquete, col. de Antnio Machado Faria, Lisboa, Geneologia e
Herldica, 1961, p. 422, e Antnio Villas Boas e Sampayo, Nobiliarchia Portugueza. Tratado da Nobreza
Hereditria e Poltica, 1708, p. 315.
562
Veja-se, por exemplo, a referncia em Ramn Carand, Carlos V e sus Banquerosp. 201.
563
Francisco Cantera Burgos, Pilar Leon Tello, Judaizantes del Arzobispado de Toledo Habilitados por la
Inquisicin en 1495 y 1497, Madrid, Talleres Grficos, Bermejo, 1969, p. 62.
560

141

MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER


acabara de alcanar o mais alto escalo da sociedade. O novo smbolo herldico iria
ser hasteado sempre que necessrio, permitindo apagar um passado familiar,
maculado pela memria de uma ancestralidade hebraica.

142

INQUISIO E INTEGRAO

IV

INQUISIO E INTEGRAO

143

INQUISIO E INTEGRAO

144

INQUISIO E INTEGRAO

1. Entre a Integrao e a Assimilao Forada


O que teria levado os cristos-novos a temerem, a recusarem logo no primeiro
momento, de forma indefectvel, a entrada da Inquisio em Portugal?
A integrao forada dos judeus nas sociedades crists da Pennsula Ibrica e a
discusso sobre a condio de cristo-novo so dois pontos que tm, neste mbito,
em nosso entender, de ser inevitavelmente problematizados. O que era ser cristonovo? Porque que Portugal solicita o estabelecimento da Inquisio no seu
territrio? Teria o alinhamento externo do Reino implicao directa na definio da
poltica interna? O que que estava verdadeiramente em jogo, quer para a Coroa,
quer para os cristos-novos?
Para se descortinar estas questes necessrio ter presente, em primeiro lugar,
que os judeus que se haviam convertido ao cristianismo em 1496-7, por vontade
prpria ou compulsivamente, foram, na sua grande maioria, incorporar os estratos
mdios e superiores da sociedade, ocupando cargos de relevo na Universidade, na
administrao da Fazenda, na Corte, e at na hierarquia religiosa, continuando uma
grande fatia dessas pessoas a desenvolver actividades relacionadas com o comrcio e
o sector financeiro.
Apesar de providenciar proteco social aos novos cristos, plasmada em
legislao que ia sendo promulgada564, o projecto de integrao scio -religiosa de
D. Manuel I, que procurava manter os antigos judeus em Portugal, mas intentava
integr-los fora erradicando qualquer tipo de comportamento menos ortodoxo,
falhou em muitos dos seus pressupostos565. De resto, o sintoma de mal-estar tornouse evidente desde incio, por via da discriminao que passou a ser alvo a minoria
que se havia convertido ao cristianismo, pela maioria que dominava a sociedade,
atravs de leis de limpeza de sangue; na sobrecarga fiscal; na barragem a
determinados cargos electivos566. Aos antigos judeus que se haviam baptizado eralhes sempre lembrado a sua antiga profisso de f. E os descendentes dos judeus
564

Nas Ordenaes, nos Alvars rgios, nos Perdes e Legitimaes, na confirmao de cargos e ofcios.
Vide Elvira Cunha Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra no Sculo XVI. A Instituio, os Homens e a
Sociedade. Porto, Funo Engenheiro Antnio de Almeida, 1997, p. 43.
566
Sobretudo no poder local. Vide Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Los Judios em Portugal, ed. cit, p. 178.
565

145

INQUISIO E INTEGRAO
convertidos ao cristianismo foram, igualmente, objecto de vrias formas de
descriminao, devido sua impureza de sangue, e olhados com suspeio em
matria de f; mas esta desconfiana no justifica a presuno da parte dos
historiadores que tenha correspondncia na realidade567. O problema muito mais
complexo na sua raiz, e nem sempre abordado com a mesma coerncia. Herman
Prins Salomon tem vindo a terreiro, levantando questes que so difceis de
responder, mas que so fundamentais para se entender melhor uma realidade difcil
de entender. Afinal, conclui este investigador, o modo de proceder da Inquisio
portuguesa que no foi concebido no intuito de distinguir entre culpa e inocncia
considerava qualquer ru, uma vez rotulado de Cristo-Novo ipso facto, um
judaizante potencial568.
Um dos grandes obstculos a uma integrao efectiva da minoria sefardita
centrou-se na hostilidade das massas, que irrompia como uma vulco adormecido ao
menor acontecimento provocador, sobretudo em pocas de dificuldade econmica e
de contestao social569. Os levantamentos populares contra os cristos-novos,
registados na cidade de vora em 1504, e na cidade de Lisboa nos anos de 1504 e
1506570, so a prova cabal do clima de tenso vivido na sociedade portuguesa,
decorrida que estava uma dcada sobre os baptismos em massa, no deixando de
traduzir, por conseguinte, um difcil relacionamento e uma problemtica
aculturao571 entre as duas comunidades. Os decretos aprovados, primeiro por D.

567

Robert Rowland, New Christians, Marrano, Jew, The Jews and the Expansion of Europe to the West, 1450
to 1800, Edited by Paolo Bernardini & Norman Fiering, New York-Oxford, Berghahn Books, 201, p. 26. Este
artigo levanta problemas fundamentais no tocante questo em anlise: integrao dos cristos-novos e a sua
verdadeira confisso.
568
Herman Prins Salomon, Reaberto o debate entre I.S. Rvah e A. J. Saraiva sobre o criptojudaismo
peninsular?, Cadernos de estudos Sefarditas, n. 5, pp. 89-114, p. 90.
569
O que j havia acontecido durante a Idade Mdia, em inmeros locais do Reino, contra os Judeus.
570
Sobre este autntico massacre Veja-se o livrinho publicado por Susana Bastos e Paulo Mendes Pinto,
Lisboa, 19 de Abril de 1506. O Massacre dos Judeus, Lisboa, Aletheia, 2007.
571
Ser que poderemos falar, neste caso, quando analisamos o relacionamento entre cristos-novos e velhos,
de uma questo de aculturao? Este conceito tem sido ultimamente pouco utilizado pelos antroplogos e
historiadores. Contudo, poder ter aqui alguma operatividade. Com os baptismos, forados ou de livre-vontade,
de muitos judeus, vamos situarmo-nos diante de duas culturas diferentes, que no se encontram ao mesmo nvel.
Por um lado, uma minoria letrada, ocupando uma posio intermdia na sociedade, e dispondo de uma
formao cultural onde se incluam tradies e saberes milenares que circulavam no Mediterrneo; no outro
lado, uma maioria diversificada, com os escales mais baixos na sua grande maioria analfabetos, e os estratos
mdios e superiores com uma formao cultural de cariz catlico, mais fechada novidade. Esta ltima, como
cultura dominante, tende a impor as suas regras, logo subordinando a outra cultura para fazer prevalecer as suas
matrizes culturais, no aceitando assim as novas propostas que em muitos casos so veiculadas por uma minoria
mais activa sob o ponto de vista cultural e material. Sobre o conceito de aculturao, Vide Peter Burke, Uma
questo de aculturao?, [], O Mundo como Teatro. Estudos de Antropologia Histria., Lisboa, Difel, 1992,
146

INQUISIO E INTEGRAO
Manuel e em seguida por D. Joo III, que visavam salvaguardar alguns dos direitos
fundamentais dos conversos, no foram suficientes para travar a fractura social entre
cristos-novos e cristos-velhos, formando-se um gueto social, imposto por presso
religiosa, poltica, penal e social572, a que no sero alheios os aspectos que se
prendem com evoluo econmica e social do tempo573.
O professor Antnio Borges Coelho viu bem o problema: poderiam ser s 2000
famlias crists-novas mas incomodavam muitos sectores da sociedade. E
incomodavam, diz-nos o historiador da Inquisio de vora, porque tinham grande
poder econmico, nacional e internacional, e este poder tendia a apropriar-se do
poder poltico e ideolgico que estava, em ltima instncia, nas mos do alto clero574.
Relegados para um lugar secundrio pela maioria da sociedade, os cristosnovos eram vistos como uma espcie de casta inferior. A excluso, ou mesmo a
eliminao fsica de alguns dos seus membros influentes, juntamente com o controlo
social a que ficam sujeitos, da dcada de trinta do sculo XVI em diante, tem como
propsito fundamental decapitar a sua liderana e exercer presso sobre a restante
comunidade conversa, tentando integr-la violentamente, pois muitos dos cristosvelhos invejavam o seu modo de vida, o seu sucesso financeiro, a sua notvel
capacidade empreendedora e ambicionavam ocupar os seus lugares575.
Relacionando-se com a animosidade de que os conversos so alvo, surge o
problema da sua verdadeira confisso, tal como anteriormente apontado. Voltemos
questo. At que ponto eram os cristos-novos judaizantes? Ou teria a Inquisio
forjado o judaizar marrnico? Eis um debate que tem irrompido com grande fulgor
na historiografia. O prprio Samuel Usque, autor israelita do sculo XVI, uma das
fontes principais para este perodo, no nos resolve cabalmente a dvida, e
detectamos at alguma contradio nas suas posies; advogando inicialmente que

pp. 89-97.
572
Nas palavras do Professor Antnio Borges Coelho, Inquisio de vora. Dos Primrdios a 1668, Vol. 2,
Lisboa, Editorial Caminho, 1987, p.81.
573
Como bem lembra I. S. Rvah, Les Marranes Portugais et lInquisition au XVIe sicle, [...] , tudes
Portugaises, Publies par les soins de Charles Amiel, Paris, Fundao Caloust Gulbenkian/Centro Cultural
Portugus, 1975, p. 195.
574
Antnio Borges Coelho, Inquisio de vora. Dos Primrdios a 1668, Vol. 2, Lisboa, Editorial Caminho,
1987, p. 87.
575
Sobre este controlo social, Veja-se Francisco Bethencourt, Inquisio e controle social, Separata da Revista
Histria e Crtica, n.14, Lisboa, 1987, p. 15.
147

INQUISIO E INTEGRAO
os cristos-novos portugueses quase esqueceram a sua antiga lei, refere em passo
seguinte, com alguma incoerncia, que as suas almas nunca mudaram576.
Antnio Jos Saraiva577 defendeu de forma polmica que a Inquisio fabricava
judeus, com o intuito de jogar mo dos bens e cabedais de um estrato social bem
demarcado em ascenso: a burguesia578. Por isso, este historiador criticava os que
defendiam uma associao entre judeus e cristos-novos, considerando as duas
entidades inteiramente distintas. A tese de Antnio Jos Saraiva confronta-nos com
uma realidade complexa579. Na verdade, muitos dos cristos-novos eram cristos
convictos, muitas famlias conversas tiveram os seus membros plenamente
integrados na sociedade crist, professando uma f sincera, associando-se em
negcios e em casamento aos cristos-velhos. Outras famlias seguiram um caminho
diferente. Preferiram continuar a praticar a sua antiga religio, quase sempre em
segredo, convivendo de forma cmplice com aqueles que viviam de maneira
similar580. Os estudos realizados com base nas fontes hebraicas revelaram: 1) que no
momento em que a Inquisio introduzida na Pennsula Ibrica, primeiro em
Castela, dcadas mais tarde em Portugal, a imensa maioria dos denominados
marranos eram cristos; 2) ao identificar todos os conversos com uma secreta
heresia judaizante, as Inquisies ibricas criaram uma falsa realidade; 3) essa
maneira de proceder teve muito mais a ver com o dio racial e factores de ordem
poltica do que propriamente com o zelo religioso de uma comunidade581.
O facto essencial nas sociedades no deixa de ser a estrutura das funes sociais e,
consequentemente, as tenses entre diferentes funes582. medida que a diviso de
funes, numa comunidade, vai aumentando e tomando formas complexas na sua
estruturao, mais os seres humanos dependem uns dos outros, de um dar e receber,
e mais intensamente se ligam, pela simples razo de s poderem assegurar a sua
576

Samuel Usque, Consolao s Tribulaes de Israel, Ed. de Ferrara de 1553, com estudos introdutrios de
Yosef Hayim Yerushalmi e Jos Vitorino Pina Martins, Tomo II, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1989,
fol. ccvi v..
577
Antnio Jos Saraiva, Inquisio e Cristos-Novos, 4 ed., Porto, Editorial Inova Limitada, p.24.
578
Que como vimos, um grupo social heterogneo.
579
Veja-se a anlise crtica s propostas de Antnio Jos Saraiva, que feita por Elias Lpiner, Os Baptizados
de P. Estudos da Origem e da luta dos Cristos-Novos em Portugal, Lisboa, Vega, 1998, pp.405-416.
580
Veja-se Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Los Judios em Portugal, [], p. 308.
581
Benzion Netanyahu, Los Marranos Espaoles segun las Fuentes Hebreas de la poca (siglos XIV-XVI), 2
ed. em lngua castelhana, traduo revista e aumentada com adenda e eplogo da terceira edio em lngua
inglesa, Valladolid, Junta de Castilla y Len, 2002, pp. 20-21.
582
Veja-se o que a este respeito o pensamento de Norberto Elias, A Sociedade dos Indivduos, ed. cit., p.64.
148

INQUISIO E INTEGRAO
vida, e a sua existncia social, numa interligao com muitos outros. No obstante,
quando uns, graas aos instrumentos de poder que tm ao seu dispor, podem afastar,
rejeitar e anular os outros, alimentando-se desta subjugao para assegurar o seu
domnio e realizao da sua existncia social, criam-se, na teia de seres humanos
interdependentes, tenses que impulsionam mudanas estruturais na sociedade583.
De 1530 em diante esto a dar-se na sociedade portuguesa, justamente, essas
mudanas estruturais que conduzem ao bloqueio das foras mais activas. Estamos
perante uma sociedade que quer segurar a todo o custo os privilgios dos estratos
tradicionais que permaneciam secularmente no topo. A nova dinmica empreendida
por famlias conversas como os Paz, representava de certa forma uma ameaa que
era necessrio afastar, para a hierarquia de privilgios poder continuar a reproduzirse. Da a Inquisio representar a chave para defender o ponto de vista do grupo que
funcionava como sujeito histrico584. Nessa instituio cabiam o medo, o dio, a
inveja, as falsidades, a denncia mesquinha. As visitaes que o Santo Ofcio fazia a
uma determinada regio, rodeadas de simbolismo, pompa e circunstncia, serviam
para lembrar aos habitantes desses lugares a sua omnipresena, o seu poder,
provocando dessa forma um maior volume de denncias585.
A Inquisio reprimia de forma violenta um sector da sociedade que se
acantonava nos ofcios mecnicos, na administrao e no comrcio, mantendo acesa
na conscincia dos descendentes dos judeus a sua ascendncia, o que dificultava uma
real e total integrao desses indivduos na vida social. Assim, infere-se que o
judasmo dos cristos-novos portugueses, quando permaneceu activo, no se ficou
unicamente por uma tradio transmitida de gerao em gerao dentro das paredes
das suas casas. Foi tambm uma representao cultural das suas vidas, feita pela
Inquisio e pelo resto da sociedade586, funcionando como um espelho deformador.
Dadas as dificuldades da transmisso cultural clandestina, da sua religio, tornou-se
inevitvel que muitos dos cristos-novos viessem a reconhecer-se na representao
do judasmo que repetidamente lhes era feita a partir do exterior. Completava-se o

583

Idem, ibidem, p. 64-65.


Antnio Jos Saraiva, Inquisio e Cristos-Novos, ed. cit.,
585
Veja-se o que a este respeito escreve a Professora Elvira Cunha de Azevedo Mea, Op. cit., pp. 209-211.
586
Robert Roland, Op. cit, p. 137.
584

149

INQUISIO E INTEGRAO
crculo. A sociedade, a maioria da sociedade, no os integrara, e via-os como um
corpo estranho.
Por uma ironia da Histria o historiador/investigador, no ltimo sculo,
substituiu o inquisidor e o genealogista encarregue de fazer a limpeza de sangue,
ao inquirir e investigar, isolando factos e pessoais, imputando prticas religiosas e
sociais, apontando o dedo quele que tem ascendncia hebraica, ao que pratica o
judasmo, ao cristo-novo que por todos os seus meios quis ocultar o seu sangue e a
sua identidade. No inventrio dos processos da Inquisio, na concepo e
construo das rvores genealgicas, vasculhando infindas massas documentais o
investigador mantm viva, afinal, a origem social e religiosa daqueles em cujas veias
corria sangue hebraico. Espreitando por cima do ombro do inquisidor587, o
investigador vai anotando factos e fazendo rvore da famlia. Quantas no so as
ocasies em que o corao bate mais forte e dado um salto na cadeira por se ter
encontrando o elo de ligao que provava a ascendncia hebraica do mercador que
traficava em locais longnquos, do nobre que ascendera aos mais altos lugares na
Corte, do religioso que se esforara por mostrar o seu zelo religioso? O que o Santo
Oficio, em muitos casos, no conseguiu provar, ou a manha de alguns logrou
ludibriar os acusadores e os inquisidores, coloca o historiador a descoberto com os
modernos meios de investigao. certo, com um sentido completamento oposto ao
do inquisidor, e ainda que, como sublinha Prins Solomon, o historiador marranista
conceda a sua simpatia s vtimas marranas da Inquisio, que proporcional
sua solidariedade para com o povo judeu, incluindo conversos, gente da nao,
cristos-novos, o seu objectivo final compreender de que forma se processou os
fenmenos de excluso e discriminao social, e como actuou a Inquisio.
A actividade da Inquisio portuguesa est documentada por cerca de 40.000
processos, pelas denncias que foram registadas uma aps a outra, de vizinhos e
parentes, pelos cadernos do promotor, por habilitaes que eram feitas para ilustrar a
honra, pela correspondncia trocada entre os vrios tribunais. Inicialmente, em 1536,
coma bula que institui a Inquisio, o tribunal funcionou na diocese de vora, onde
residia a Corte. Em seguida passou a Lisboa. Em 1541, com o intuito de vigiar e punir
587

Neste ponto inspiramo-nos, mas percorrendo um caminho diferente, no artigo de Carlo Ginzburg, O
inquisidor como antroplogo: uma analogia e as suas implicaes, in A Micro-Histria e Outros Ensaios,
Lisboa, Difel, 1991, pp. 203-214.
150

INQUISIO E INTEGRAO
os que eram acusados de heresia, foram criados quatro tribunais, no Norte e Centro
do Pas: Porto, Coimbra, Lamego e Tomar, que se juntam a vora. Mas a estrutura
deste tribunal religioso, no se vai manter uniforme, nem no tempo, nem no espao.
Em 1548 apenas funcionavam dois tribunais: o de Lisboa que cobria o Norte e o
Centro do Reino; e o de vora que tinha a jurisdio do todo o Sul. Em 1560
estabeleceu-se a Inquisio em Goa, em 1565 finalmente constitudo o tribunal de
Coimbra, que passou a cobrir todo o Norte e Centro do espao metropolitano
portugus588.
Construindo uma ampla rede de denunciadores, a Inquisio funcionou como um
autntico aparelho ideolgico repressivo589, instrumento do poder eclesistico e
nobilirquico590, ao servio de um Estado que se reforava e burocratizava, mas que
defendia tenazmente um certa ordem social baseada no estatuto e no sangue. Os
instrumentos de controlo social passavam pela vigilncia da prtica religiosa,
catequese, a confisso, a delao, audio e presena na liturgia. Na interpretao
que faz dos factos, a investigadora Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, defende que o
santo Ofcio iria ser uma espada de Dmocles estendida sobre ambos os grupos em
confronto: sobre o maioritrio, numa tentativa de controlar a sua violncia para com
o minoritrio, sobre este, numa exigncia de vigilncia do seu comportamento
religioso, para uma integrao efectiva na unidade que a maioria defendia591

588

Para recolha destes dados, consultamos, Francisco Bettencourt, Histria das Inquisies. Portugal, Espanha
e Itlia, Lisboa, Circulo dos Leitores, 1994, pp.44-47.
589
No essencial, a teoria marxista defende que o Estado uma mquina de represso ao servio das classes
dominantes, que detm nas suas mos o poder. O Estado e os seus instrumentos repressivos asseguram a
dominao da classe dominante sobre as outras, submetendo-as e sujeitando-as extorso e explorao. O
Estado , neste caso, como Marx e os seus seguidores definiram, um Aparelho (de Estado). Escreveu Karl Marx
numa das suas obras: Todas as revolues aperfeioavam esta mquina, em vez de a destruir. Os partidos que
lutavam alternadamente pela dominao, consideravam a tomada de posse deste imenso edifcio do Estado
como presa principal do Vencedor. Veja-se Karl Marx, O 18 de Brumrio de Louis Bonaparte, traduo de
Jos Barata-Moura e Eduardo Chitas, Lisboa, Edies de Avante, 1984, p.125.
Louis Althusser acrescentou ao corpo das instituies que representam o Aparelho repressivo do Estado, os
Aparelhos ideolgicos do Estado: a escola, a imprensa, o corpo jurdico, por exemplo. Vide Louis Althusser,
Ideologia e Aparelhos Ideolgicos do Estado, 3 ed., Lisboa, Editorial Presena/Martins Fontes, imp. 1980, pp.
41-52. Seguindo de perto esta perspectiva, a Inquisio era em simultneo, um Aparelho repressivo e ideolgico.
590
A Inquisio seria, assim, um aparelho de poder das foras sociais que se defendiam, por sua vez, de outras
sociais; a violncia institucionalizada, tal como referimos na nota anterior, como uma arma de poder do poder
institucionalizado: poltico, econmico, cultural e social. Vide as concluses a que chega Jos Veiga Torres, com
base em dados estatsticos, da actuao da Inquisio, ainda que se tenha que ler com alguma cautela, as
generalizaes de dados. Uma Longa Guerra Social: os Ritmos da Represso Inquisitorial em Portugal,,
Revista de Histria Econmica e Social, n. 1, Janiero-Junho de 1978, pp. 55-63.
591
Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, O Compellere Intrare Inquisitorial, Judasmo e Inquisio, ed. cit., p.
180.
151

INQUISIO E INTEGRAO
Nos corredores da Cria romana tem incio, por volta de 1530, uma renhida luta,
que durar mais de uma dcada. A famlia Paz participa ao mais alto nvel no longo
pleito que se trava entre os cristos-novos portugueses e D. Joo III e os seus
enviados diplomticos a Roma. Em discusso, encontrava-se a introduo em
Portugal dum tribunal que julgasse crimes de cariz religioso. O representante dos
cristos-novos em Roma , nada mais, nada menos, um dos homens-fortes dos Paz:
Duarte, pretenso sucessor de seu pai, mestre Joo, frente da famlia. Mas, na
verdade, o seu destino haveria de ser bem outro

2. A luta contra o estabelecimento da Inquisio Duarte de Paz um


lder dos cristos-novos em Roma (1532-1538)
Quando D. Joo III entabula negociaes com a Santa S, no incio da dcada de
trinta do sculo XVI, com o objectivo de instalar em Portugal a Inquisio, os
cristos-novos portugueses no cruzaram os braos. Ao mesmo tempo que
procuravam reunir meios financeiros e angariar os apoios polticos necessrios para
contrariar a diplomacia do Piedoso na Santa S592, os conversos elegem um
representante para defender a sua causa junto da Cria romana . No se sabendo
pormenores acerca das movimentaes polticas no interior da comunidade marrana
lusitana, constata-se, porm, que Duarte de Paz593 aparece em Roma como um
homem activo e hbil, a quem foram confiadas as armas da gente hebreia, isto , os
avultados cabedais que so imediatamente disponibilizados para a defesa da sua
causa594. O Nncio romano em Portugal tinha noticia que Duarte de Paz estava ao
servio dos cristos-novos. Em carta endereada a Roma escreve Era bem vero che poi
gli era l, li haveano ordinato procurasse per tutti.595
592

A Carta de Marco Vigerio della Rovera, nncio permanente da Santa S, em Portugal, a Jacopo Salviati,
bem um testemunho esclarecedor sobre a forma como os cristos-novos estavam a reunir fundos.
593
A maior parte dos autores denomina este cristo-novo por Duarte da Paz, no entanto, na documentao
manuscrita aparece a designao de Duarte de Paz, tal como outros membros da famlia so citados por de
Paz. Em estudo recente revelmos, com base em documentao indita, novos dados biogrficos sobre Duarte
de Paz. Vide Carlos Manuel Valentim, Duarte de Paz: um lder da comunidade sefardita portuguesa em meados
do sculo XVI, Rumos e Escrita da Histria. Estudos de Homenagem a A. A. Marques de Almeida,
Coordenao de Ftima Reis, Lisboa, Edies Colibri, 2007, pp. 175-190.
594
Vide Alexandre Herculano, Histria da Origem e Estabelecimento da Inquisio em Portugal, introduo de
Jorge Borges de Macedo, Tomo I, Lisboa, Livraria Bertrand, 1979, pp. 243-244.
595
Carta de Marco Vigerio della Rovere Jacopo Salviati, Lisboa, 4-15 de Outubro de 1532, La Correspondance
152

INQUISIO E INTEGRAO
A partir de 1532, e sensivelmente durante os seis anos seguintes, o filho mais
velho de mestre Joo vai desdobrar-se em contactos junto do Papa e dos principais
Prelados da Santa S; luta em prol dos direitos dos cristos-novos, contrariando a
aco dos diplomatas ao servio de D. Joo III; e negoceia e obtm algumas bulas596.
Restam poucas dvidas, que este cristo-novo se encontre no centro da poltica
europeia, encetando contactos ao mais nvel, envolvendo-se com os representantes
dos vrios Estados europeus em Roma, tratando e despachando assuntos
directamente com o Papa e com o governo da Igreja. A sua aco em Roma, diz-nos
muito sobre o imenso poder e protagonismo que a famlia Paz tinha entretanto
amealhando.
Face obstinada poltica galicana levada a cabo pela Coroa portuguesa, Duarte
de Paz vai pugnar pelo perdo absoluto para todos aqueles (cristos-novos) que se
achassem culpados de erros contra a f597. Todavia, o seu exerccio diplomtico nos
corredores da Santa S no ficar isento de controvrsia. Para atingir os objectivos a
que se props, entrou numa perigosa conduta dbia e num incerto jogo duplo. E
ainda que demonstrasse audcia nos crculos diplomticos e polticos de Roma, foi
afastado em 1538 da funo de representante dos cristos-novos. Registe-se, em
abono da justia, as vitrias que alcanou, nomeadamente a publicao de bulas que
consignavam privilgios adquiridos e impediam julgamentos sumrios sem culpa
formada para muitos dos conversos lusitanos.
Enquanto decorrem em Roma as negociaes para o estabelecimento do Tribunal
do Santo Ofcio em Portugal, a Europa encontra-se dilacerada por dissidncias
religiosas e por um conflito blico sem fronteiras entre o Imprio de Carlos V e a
Frana de Francisco I. Cerca de quatro anos antes de Duarte de Paz se entregar
funo de procurador dos cristos-novos, em Maio de 1527, as tropas de Carlos V
haviam saqueado e pilhado a cidade do Tibre, e dois anos depois, a 3 de Agosto de
ds Premiers Nonces Permanents au Portugal 1532-1553, Vol. II- Textos, ed. crtica e notas por Charles-Martial
de Witte, Lisboa, A.PH., 1980, carta 4, p. 17.
596
Est largamente estudado o papel diplomtico que Duarte de Paz desempenhou na Santa S. Entre outros,
Vide Alexandre Herculano, op.cit., pp. 243 e ss., Tomo II, 1981, ed. cit., pp. 9-241; Meyer Kayserling, Histria
dos Judeus em Portugal, Introduo, actualizao e notas de Anita Novinsky, So Paulo, Livraria Pioneira
Editora, 1971, pp. 164-181; Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Inquisio: Antecedentes e Estabelecimento,
Judasmo e Inquisio. Estudos, Lisboa, Editorial Presena, 1987, pp. 128 e ss.; Cecil Roth, Histria dos
Marranos. Os Judeus Secretos da Pennsula Ibrica, traduo de Jos Saraiva, apresentao de Herman P.
Solomon, Porto, Livraria Civilizao, 2001, pp. 63-34.
597
Alexandre Herculano, Histria da Origem e Estabelecimento da Inquisio..., Tomo I, p. 253.
153

INQUISIO E INTEGRAO
1529, era assinado o Tratado de Cambrai, que colocava fim a um primeiro perodo de
disputas pela hegemonia poltica e militar europeia entre aqueles dois soberanos. A
paz, desejada pelas duas partes, esgotadas militar e financeiramente, concedia
Frana o domnio sobre a Borgonha, mas consagrava a supremacia espanhola nos
territrios italianos598. As dissidncias entre os Valois e os Habsburgos prosseguiriam
nos anos seguintes, por entre uma Europa profundamente dividida, dominada pela
Reforma e pelo reposicionamento religioso das vrias monarquias que se
encontravam em processo de reforo das suas estruturas polticas e institucionais , e
assolada pelas guerras no Imprio Alemo, na Itlia e nos Pases Baixos, temendo o
avano otomano a partir do Mediterrneo Oriental e dos Balcs.
A Itlia que Duarte de Paz vai encontrar, dividida numa multiplicidade de
cidados-estado, ducados, territrios do Imperador Sacro Romano Germano e do
Papa, o centro de um movimento cultural europeu sem precedentes, marcado por
grandiosas obras de engenharia, um rentvel mercado de Arte e um florescente
negcio de edies impressas que facilitado pelas inmeras cortes de prncipes,
cardiais e bispos, o interesse de mosteiros, universidades, academias e da corte
papal599.
Este cristo-novo que ganhou a confiana da comunidade crist-nova portuguesa
e do Rei o elemento da famlia Paz mais conhecido. Alexandre Herculano, que
estudou pormenorizadamente todos os acontecimentos que conduziram bula que
instituiu definitivamente a Inquisio em Portugal no ano de 1536, refere-se a Duarte
de Paz do seguinte modo: () Generoso no trato, bizarro no jogo, audaz, astucioso,
eloquente e activo, [] tinha os dotes mais eficazes para sair com seus intentos na cria
romana. [] Sabemos s que exercia um cargo de certa importncia, de justia ou de
administrao, e que foi cavaleiro da Ordem de Cristo [].600
Estas asseres de Herculano foram seguidas pela historiografia, que sempre
sobrelevou a origem obscura do representante dos cristos-novos. Na realidade,
desde os estudos do historiador oitocentista, pouco se progrediu no conhecimento

598

Veja-se Henri Lapeyre, Las Monarquias europeas del siglo XVI. Las relaciones internacionales, Barcelona,
Editorial Labor, 1969, pp. 76-79.
599
Vide Peter Burke, The European Renaissance. Centres e Peripheries, Oxford- Massachussetts, 1998, pp. 1011.
600
Alexandre Herculano, Op. cit. p. 244.
154

INQUISIO E INTEGRAO
desta figura601. Meyer Kayserling (1829-1905), contemporneo do grande historiador
portugus, acrescentou alguns traos definio do perfil fsico de Duarte de Paz,
descrevendo-o: De aparncia imponente, apesar de ter perdido uma vista na guerra, belo,
de maneiras finas e cativantes, era tambm corajoso, activo, impetuoso e loquaz.602
Sabemos agora, aps um estudo mais profundo, que o lder dos conversos
ocupou vrios cargos militares e civis, acompanhou o Duque de Bragana em 1513 na
conquista de Azamor, e evidenciando-se nas campanhas do Norte de frica, onde
perdeu uma vista. Envergava o hbito da Ordem de Cristo, tudo indica, ganho pelo
servio militar na praa de Mazago603. Quando regressou ao reino, foi
recompensado pelos seus desempenhos, com um cargo na Recebedoria da meia
dzima, meia sisa e direitos das sedas de Castela. Passou a dedicar-se, em simultneo,
aos negcios ultramarinos. Faz-se armador, equipando naus que amide demandam
a Flandres, transportando produtos da costa ocidental africana.
Antes de partir para Roma, Duarte de Paz nomeado feitor da Alfndega dos
panos, mararia e herdades da cidade do Porto, por carta de 23 de Julho de 1529604,
cargo herdado, trs anos depois, pelo seu irmo Diogo605, e que pertencera ao tio de
ambos, Diogo de Paz, recebedor do almoxarifado da Comarca e da Alfndega do
Porto606.
D. Joo III, numa magnnima atitude, querendo conceder mais benesses ao filho
mais velho de mestre Joo, permite em 1530 que usufrua de todos os privilgios de
cavaleiro, mesmo que no tivesse cavalo607. Sinal claro que os servios prestados
Coroa pelo futuro representante dos cristos-novos eram tidos em alta conta.
Progrediu-se muito, ultimamente, no conhecimento desta figura, a todos os
ttulos impar. O Dr. James Nelson Novoa, investigando os fundos do Arquivo do
Vaticano, encontrou os breves concedidos pelos Papas a Duarte de Paz e publicou-os

601

Vide, por exemplo, Elis Davis, Paz, Duarte da, Encyclopaedia Judaica, vol. 13, ed. Cecil Roth, Jerusalem,
Keter Publishing House New York : MacMillan, 1971, p.194.
602
Meyer Kayserling, Histria dos Judeus em Portugal ., p.164.
603
D. Martinho de Portugal em carta a D. Joo III, enviada de Roma, com data de 14 de Maro de 1535, Corpo
Diplomtico Portugus, publicado por Luiz Augusto Rebello da Silva, Tomo III, Lisboa Typographia Real das
Sciencias, 1868, p.185.
604
A.NTT, Chancelaria de D. Joo III, liv. 48, fol. 41; A. Braamcamp Freire, Envenenado in Op. cit., I, pp.
234-235
605
A.NTT., Chancelaria de D. Joo III, Liv. 16 fl. 97.
606
Arquivo Histrico Portugus, Cartas de Quitao, Vol. IX, 1914, carta n. 681, p. 434.
607
Idem, Ibidem, Liv. 52, fl. 130.
155

INQUISIO E INTEGRAO
em dois trabalhos608. Alguns destes documentos, salvo-condutos que possibilitavam
a Duarte de Paz viajar de um para o outro lugar nos territrios pontifcios e pela
Europa, informam-nos sobre os seus contactos e deslocaes. Mas ilustram tambm,
que Duarte tinha imensos apoios nos Cria romana. A 16 de Novembro o seu salvoconduto possibilitava-lhe permanecer, livremente, na cidade eterna609.
As actividades deste cristo novo coincidem com os pontificados de Clemente
VII (1523-1534) e de Paulo III (1534-1549). As imunidades que alcana e os
documentos que obtm dos Papas, no deixam de ser surpreendentes. A 15 de
Dezembro de 1536, o papa Paulo III decretou que Duarte de Paz e a sua famlia s
podiam ser julgados unicamente pelo irmo do Rei, Henrique, bispo de Braga (15121580), e pelos seus sucessores. Lembre-se que Braga ficava dentro da rea de
influncia dos Paz. No ano seguinte o mesmo Pontfice confirmou o hbito da Ordem
de Cristo a Duarte de Paz, permitindo-lhe usar as insgnias, ao mesmo tempo que
relembrava os seus servios em frica em luta contra os mouros, num breve
datado de 30 de Novembro de 1537610.
Estes documentos encontrados no arquivo do Vaticano, como referido em passo
anterior, so relevantes para compreendermos a actuao de Duarte de Paz, mas
talvez o facto de suma importncia, que nos ajuda a entender as suas controvrsias e
as suas atitudes, seja a sua insero na famlia Paz. Estar a a chave da sua
actuao. O representante dos cristos-novos podia mover-se muito bem entre o mais
altos prelados, mas o seu destino continuava a depender do que se estava a passar
em Portugal. So os acontecimentos no Norte e em Lisboa, que marcam a cadncia
dos seus contactos, denunciando as divises em que os conversos haviam
mergulhado. Como no passo seguinte se explicita.
Retratado pela historiografia como um traidor da causa dos cristos-novos
portugueses, e um homem de poucos escrpulos, Herculano, J. Lcio de Azevedo,
Cecil Roth, entre outros, no lhe pouparam crticas. Porm, no olharam fundo para
a realidade, e nem sequer compararam a sua actuao com a do representante dos
608

James W. Nelson Novoa, The Departure of Duarte de Paz from Rome according to documents from the
Achivio Segredo del Vaticano , Cadernos de Estudos Sefarditas n. 7, 2008, no prelo; Idem, The Vatican
Secret Archive as a source for the hystory of the activities of the agentes of Portuguese New Christians (15321549), Revista do Archivio do Vaticano, no prelo. Agradeo ao Dr. James Nelson Novoa, ter-me facultado o
acesso aos seus estudos, antes da sua publicao formal.
609
Idem, The Departure of Duarte de Paz...p. 3.
610
idem,ibidem,, p. 4.
156

INQUISIO E INTEGRAO
cristos-novos que se seguiu, Diogo Antnio611, o que no era muito difcil fazer.
que o novo agente diplomtico dos conversos portugueses, que toma conta do cargo
em 1538, tambm se preocupou principalmente com a sua famlia, nomeadamente,
tentando resgatar o seu pai da priso, onde se encontrava guarda da Inquisio de
Coimbra. Novamente as controvrsias emergem, e mais uma vez, desta feita em
1542, afastado um representante diplomtico dos conversos, sem que se tenha
alcanado algo de substancial para a causa dos crsitos-novos. Bem pelo contrrio, a
comunidade est mais dividida que nunca. Em 1539, na cidade de Lisboa, so
encontrados cartazes provocadores colados nas portas das igrejas, colocados por um
cristo-novo612, despolopando em seguida um clima de conflitualidade civil.
De que forma podemos ler estes acontecimentos? Continuamos a pensar que a
soluo se encontra na forma como se posicionaram as famlias de cristos-novos e
dos interesses financeiros, sociais, econmicos que defendiam, juntamente com as
redes clientelares em que se integravam.
Foi o Professor Jorge Borges de Macedo quem chamou a ateno para o papel que
os factores externos tiveram em todo o ambiente que rodeou a complexa questo
religiosa e social dos cristos-novos e o estabelecimento da Inquisio em Portugal,
advertindo que o antagonismo aos cristos-novos se decompe em diversas razes,
conforme os lugares, as pocas e os interessados613. Uma das circunstncias que
aquele Professor reala para a compreenso do problema o desinteresse
manifestado pela realeza por Marrocos, partir de 1530 (que coevo da perseguio
aos marranos), e a subsequente retirada militar e abandono da maior parte das
praas norte -africanas em poder dos portugueses. Dispensados da colaborao
estratgica que at a tinham prestado, nesses locais, eram-lhes agora, em
acrescento, assacados os prejuzos dos desastres militares e econmicos no Oriente
devido aos contactos privilegiados que mantinham com o Imprio Otomano e o
Mediterrneo614.

611

Sobre a actuao de Diogo Antnio, veja-se James W. Nelson Novoa The Vatican Secret Archive as a source
for the hystory of the activities of the agentes of Portuguese New Christians (1532-1549).
612
Cecil Roth, Histria dos Marranos, p. 65.
613
Jorge Borges de Macedo, A Tentativa Histrica Da Origem e Estabelecimento da Inquisio em Portugal
e as Insistncias Polmicas, in Alexandre Herculano, Histria da Origem e Estabelecimento da Inquisio em
Portugal, Ed. cit., Tomo I, p. LII.
614
Idem, Ibidem, p. LIV.
157

INQUISIO E INTEGRAO
Baseando-se nas linhas de fora da poltica externa portuguesa para compreender
os factores internos, o professor Borges de Macedo vai mais longe no seu modelo
explicativo. Se a poltica externa lusitana se alicerava na exclusividade do trfego
martimo, no menos verdade que essa dependncia cindiu o pas que, centrado em
Lisboa e no seu porto martimo, se articulava mal com o interior, particularmente
com uma fileira de cidades junto fronteira terrestre, excludas do comrcio
ocenico, e que construam os seus prprios mercados internos615. A distino entre o
interior, agrcola e regional, de mercados ricos mas especficos, e os interesses
porturios centrados nos circuitos mercantis internacionais, fazia vacilar a unidade
do Reino, criando a necessidade de uma unificao, ainda que artificial, da
comunidade portuguesa. Decorre daqui a introduo do Santo Ofcio em Portugal,
segundo Jorge Borges de Macedo, e nessa conjuntura que se esboa a poltica
externa de D. Joo III junto do Papa616.
Ora, o modelo do Professor Jorge Borges de Macedo poder, de facto, encaixar
no percurso do cristo-novo Duarte de Paz, que tinha os seus interesses divididos
entre Marrocos e o interior do Pas, entre os mercados internos e externos, entre os
circuitos do comrcio local e as redes de comrcio internacional617. No explicar,
esta posio de charneira, a postura tambm ela ambgua, que Duarte de Paz se
esforar por manter diante da Coroa e da comunidade de que era porta-voz? Por
um lado, junto do Rei estavam salvaguardadas as vias comerciais internacionais, mas
por outro, com a aposta da Coroa nos circuitos martimos, desguarnecia-se o interior,
desarticulava-se o comrcio junto fronteira, que famlias como os Paz haviam
apostado durante dcadas.
Quer-nos parecer que alguns ncleos familiares de conversos estavam entre os
que, na sociedade quinhentista portuguesa, melhor podiam fazer a ponte entre o
interior, rural e regional, de circuitos especficos, onde se formavam redes comerciais,
e o litoral, em ligao com os mercados internacionais. Quer-nos tambm parecer que

615

Idem, Histria Diplomtica Portuguesa. Constantes e Linhas de Fora. Estudo de Geopoltica, [s. loc.],
Edio da Revista Nao e Defesa, [s.dt.], p. 91.
616
Idem, Ibidem, p. 92.
617
Sobre as redes internacionais de comrcio sefarditas, Cfr. A. A. Marques de Almeida, O Zango e o Mel.
Uma Metfora sobre a dispora sefardita e a formao das elites financeiras na Europa (sculos XV a XVII),
Oceanos, n. 29, Janeiro/Maro, 1997, p. 26.
158

INQUISIO E INTEGRAO
o que mais se ajustava aos interesses da maior parte618 dos cristos-novos
portugueses era um equilbrio entre os dois vectores, entre estas duas realidades, que
se complementavam. Contudo, ao Rei s lhe interessava um desses plos. Assim, a
partir de 1530, com a Coroa a achar que o mais importante era salvaguardar a rota
das especiarias, como defendido por Jorge Borges de Macedo619, a balana pende
definitivamente para um dos lados, tornando-se difcil sustentar uma posio de
equilbrio, sobretudo quando essa mesma Coroa tudo faz para controlar o comrcio
martimo, impondo regras. A Coroa arma os navios (haver algumas excepes neste
campo) da Rota do Cabo, faz a compra das mercadorias e dos metais preciosos que se
destinam ao Oriente para a troca, e monopoliza o processo de importao, e posterior
venda, das especiarias. A mquina estatal, a partir de ento, tudo faz para controlar o
comrcio externo mas, paradoxalmente, o capital sefardita continuava a ser
necessrio aos exauridos cofres da Coroa portuguesa.
Como se posicionam as vrias famlias de cristos -novos diante do novo
panorama? Em 1532, Diogo Mendes preso em Anturpia, e nesse mesmo ano
Duarte de Paz aparece em Roma. Nos anos seguintes, assiste-se a um progressivo
desalinhamento no seio das elites conversas, cada uma das partes a defender os seus
pontos de vista. Seria til termos a descrio dos negcios do pai de Diogo Antnio
ou de Diogo Fernandes Netto, para entendermos melhor a sua actuao em Roma.
Quanto a Duarte de Paz e sua famlia, que se concentrava no Porto, vo entrar num
perodo de dificuldades, em que se salvar os lugares que dispem na Alfandega do
Porto e pouco mais. H, de facto um processo de retraco de um Entre Douro e
Minho alargado para a cidade do Porto. Outras famlias da regio sentem-se
preocupadas com o novo panorama. Em 1534, o infante D. Lus, que vivia
conjugalmente com uma crist-nova, Violante Gomes, de excepcional beleza,
segundo os cronistas, contactado pelos cristos-novos, que lhe solicitam auxlio620.
Em Trs-os-Montes, e um pouco por todo o vale do Douro, de onde Violante
Gomes era oriunda, radicava-se, como se sabe, um prspero grupo de cristos-novos,

618

Nem todos, j que famlias como os Mendes Benveniste estariam muito mais atentas ao trfico internacional.
Jorges Borges de Macedo, Histria Diplomtica, Constantes e Linhas de Fora. p. 89
620
Para um aprofundamento maior desta questo Veja-se Carlos Manuel Valentim, O Infante D. Lus e a
investigao do mar no Renascimento. Dados para uma biografia completa, Lisboa, Academia de Marinha,
2005.
619

159

INQUISIO E INTEGRAO
que controlava muitos dos negcios que eram feitos no Reino, e do Reino com o
exterior, nomeadamente com a vizinha Espanha.
Os amores de um membro da Realeza por uma crist-nova, escondem,
possivelmente, uma realidade muito mais complexa e profunda do que aquela que
primeira vista se possa pensar, nas relaes que D. Lus manteve com os homens da
nao. Registe-se, em abone da verdade, a sua interveno junto de D. Joo III, para
que o perdo comunidade conversa fosse extensvel at publicao da bula da
Inquisio, a 22 de Outubro de 1536. Referia o infante D.Lus em carta a seu irmo, o
perigo de muitos partirem: E alem de se perderem as almas que he o pryncypal estes
reynos de Vossa Alteza receberyam muito grande falta de dinheyro e gente que delles se a de
tyrar e perque nesta materea se trata dalmas e do servyo de Nosso Senhor e de Vossa Alteza
pareceo-me que lhe nam devya falar nella sem prymeyro acuydar tanto que abastasse para eu
fycar seguro se Nosso Senhor me desse culpa no que dygo fosse antes de inorante que de
neglygente.621
Em Roma, entretanto, decidi-se o futuro de muitos negcios, da liberdade de
actuao, dos futuros alinhamentos polticos e clientelares, entre os anos de15321536. Duarte de Paz no foi o nico membro da famlia Paz a interessar-se pela
questo da vinda da Inquisio para Portugal. Em meados de 1536, Diogo de Paz
contacta o nncio da Santa S, Marco della Ruvere, que se encontrava em Braga, para
se inteirar das negociaes quanto vinda para Portugal da Inquisio. Marco
Vigerio della Rovera em carta a Ambrogio Ricalto, noticia o encontro com Diogo de
Paz.
Depoi chebbi spedito di Braccara, volsi saper da Diego de Paz, fratello del
commendadore, che era uno de quelli che nel Porto mi haveano fatto instantia volessi
intertenermi nel viaggio, se l si era conclusa cosa alcuma.622
Depreendemos que no Porto os cristos-novos estavam ansiosos por saber do
andamento das negociaes, entre a Santa S e Portugal, sobre o estabelecimento da
621

As Gavetas da Torre do Tombo, Lisboa, Centro de Estudos Histricos Ultramarinos, 1960, Vol. I,
p.262.
622
Veja-se La Correspondance des Primiers Nonces Permanents au Portugal, 1532-1553, Ed. crtica de
Charles Martial de Witte, vol. II, Lisboa, Academia Portuguesa de Histria, 1986, Carta n. 49, p.180. Importa
acrescentar, que este nncio estava envolvido em contactos com os lderes dos cristos-novos (entre outros
encontrava-se Diogo de Paz, irmo de Duarte de Paz), em vrias partes do Reino: Braga, Porto, vora, para que
esta cedesse mais fundos para o Papado. Projectava o nncio deslocar-se tambm Flandres para entabular
negociaes com Francisco Mendes e a sua cunhada. V. Alexandre Herculano, Op. cit., tomo II, pp. 140-144.
160

INQUISIO E INTEGRAO
Inquisio em territrio portugus. Este interesse de Diogo de Paz, leva-nos a pensar
que a famlia de mestre Joo - que ainda se encontrava vivo, mas muito doente,
funda nesse ano a capela em S. Francisco - temia a vinda do tribunal religioso.
Porque razo? Teriam abandonando os ritos judaicos? Ou pressentiriam que a partir
do momento em que a Inquisio entrasse em solo portugus jamais teriam
descanso?
Acresce, que esse envolvimento tambm nos elucida, pensamos, quanto
liderana da famlia no seio dos cristos-novos portugueses. O papel que Duarte de
Paz como representante dos conversos, poder querer dizer que a sua famlia se
encontrava, na transio do primeiro para o segundo quartel do sculo XVI, inserida
nas redes de comrcio internacional, dominadas por uma elite financeira sefardita
que se disseminara por vrios pontos da nova economia-mundo e controlava os
mercados internacionais que as navegaes ocenicas haviam propiciado, numa
economia-mundo com sede em Anturpia.
Desta forma, compreender-se- certamente melhor, quando a minoria sefardita
ainda se mantm coesa, porque que Duarte de Paz recebe fundos para defender os
interesses dos cristos-novos junto do Papa, das mos do cristo-novo Diogo
Mendes, da poderosa famlia Mendes Benveniste623, ento um dos mercadores mais
activos na Europa.

623

Poderosa famlia de mercadores-banqueiros, com razes em Arago, cujo patriarca, Abrao Benveniste, fora
tesoureiro nesse reino. Em 1492 vm para Portugal, fugindo Inquisio. Os seus membros tiveram um elevado
protagonismo. Dispuseram de relaes privilegiadas com os mais poderosos soberanos europeus, inclusive com
o senhor da Europa, o todo-poderoso imperador Carlos V. Tais relaes de proximidade deviam-se aos
emprstimos que concediam a estes monarcas. Mas os irmos Francisco e Diogo Mendes, comeam por se
interessar pelo comrcio da especiaria. Tal comrcio est no centro dos seus negcios. Diogo, que era uma
personagem muito bem vista num mundo dos negcios, passa a residir em 1512 na cidade de Anturpia,
contactando e negociando com as principais casas comerciais alems; Francisco, vivendo em Lisboa, est atento
ao comrcio no ndico, servindo de ligao com os navios e os produtos que a so carregados. A influncia
desta famlia na Bolsa de Anturpia tambm se faz sentir;. Diogo Mendes trata de igual para igual com o rei de
Portugal, monopolizando a venda das suas mercadorias. Os dois irmos vieram a casar com duas irms, Brianda
e Beatriz de Luna. Esta ltima, que na dispora, reconvertida ao judasmo, adoptar o nome de Grcia Nasci,
torna-se uma importante mulher de negcios. Com o seu sobrinho, Joo Micas, que adoptou o nome hebraico de
Joseph Nasci - tendo ambos procurado refugio no Imprio Otomano gere as empresas da famlia.
Esta famlia tem motivado diversos e variados estudos. Veja-se a este respeito a recolha de bibliografia feita por
Florbela Veiga Frade e Susana Bastos Mateus, Bibliografia sobre a famlia Mendes Benveniste no sculo XVI,
Cadernos de Estudos Sefarditas n. 3, 2003, pp. 157-183. Sobre a aco comercial e os relacionamentos polticos
e econmicos na Flandres por parte de Diogo e Francisco Mendes, Vide J. A. Goris, tude sur les Colonies
Marchandes Mridionales (Portugais, Espagnols, Italiens) Anvers de 1488 a 1567, Lovain, Librarie
Universitaire, 1925, pp. 562 e ss. Remetemos tambm para dois dos ltimos estudos sobre esta famlia: Hermon
Salomon e Aron Leoni, Mendes, Benveniste, de Luna, Micas, Nasci: the State of the Art (1532-1558), The
Jewish Quartely Review, vol. LXXXVIII, n. 3-4, Pennsylvania, Jan-Abr. 1998, pp. 135-211 (com abundante
documentao em apndice); e Florbela Veiga Frade Uma famlia Sefardita do Sculo XVI..., Cadernos de
161

INQUISIO E INTEGRAO
Constam em Roma dois breves enviados a Maria, rainha da Hungria e
governadora dos Pases Baixos (1531-1555), que permitem a Duarte de Paz viajar
para Anturpia em 1538, com o apoio de cardeal Pierpaolo, conhecido protector dos
cristos-novos624. Ser nesta altura que o filho de mestre Joo se encontra os Mendes
Benveniste, ou teria sido num perodo anterior?
Foi em Anturpia que Duarte de Paz entrou em contacto com Diogo Mendes. Na
cidade do Escalda estava instalada uma colnia de marranos, com cerca de uma
dezena de indivduos servindo de intermedirios; so agentes de imigrao,
informando os da sua nao o que se passa na cristandade, e as suas mercadorias
tm como destino a Itlia625.
na cidade de vora onde se encontra a residir, que Diogo Mendes rene os
fundos necessrios para a defesa dos seus correligionrios, entregando, juntamente
com a sua cunhada Beatriz de Luna, a soma aproximada de 5.000 ducados a Duarte
de Paz626.
O mesmo tipo de raciocnio se aplica partida, mais tarde, de Tom Pegado de
Paz, filho mais velho de Duarte, para a Turquia, quando os Mendes Benveniste
(Nasci) para a se deslocarem na segunda metade do sculo XVI. a partir desse
espao que os Nasci vo dominar uma ampla rede de comrcio e informao que se
liga a vrios pontos da Europa627. Estes dois factos situam-nos diante da
convergncia de interesses, ainda que nem sempre coincidentes628, entre as duas
famlias, como veremos adiante.
J a Inquisio havia entrado em Portugal, Duarte de Paz tenta acautelar a
segurana da sua famlia obtendo, a 15 de Dezembro de 1536, um breve de iseno,
para todos os membros, da pena de excomunho e da jurisdio da Inquisio629.
Estudos Sefarditas n 3, pp. 127-155.
624
James W. Nelson Novoa, The Departure of Duarte de Paz from Rome according to documents from the
Achivio Segredo del Vaticano , Cadernos de Estudos Sefarditas n. 7, 2008, no prelo
625
J. A. Goris, Op. cit., pp. 560-561.
626
Idem, ibidem, p. 654; Lcio de Azevedo, Histria dos Cristos -Novos Portugueses, Lisboa, Livraria
Clssica, 2 ed. 1975, p. 122.
627
Vide Jos Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Judeus e Cristos-Novos de Cochim Histria e Memria (15001662), Braga, Edies APPACDM (Associao Portuguesa de Pais e Amigos do Cidado Deficiente Mental)
Distrital De Braga, 2003, p. 211.
628
Os Mendes Benvenistes com mais interesses na finana internacional, os Paz mais afactos ao mercado
nacional.
629
Veja-se o documento em latim publicado em The Apostolic See and Jews. Documents: 1522-1538, Studies
and Texts, Pontifical Institute of Medieval Studies, Vol. 4, 1990, pp. 2049-2053. Agradeo ao Dr.James Nelson
esta informao e o acesso que a ela tive por fotocpia.
162

INQUISIO E INTEGRAO
Em Roma, Duarte de Paz era muito bem visto pelo Papa e pelos Cardeais630, o que
confirmado por D. Martinho de Portugal: todos quantos h, cardeais e no cardeais, o
fauorecem631. Oferecia festas e ostentava, com documentos comprovativos, a
comenda da Ordem de Cristo, o que enfurecia o monarca que, perante a sua
ausncia, descarregou a ira sobre a famlia Paz632. Em Roma, os enviados da Coroa
recebiam a notcia que haviam sido retirados todos os ttulos e honras ao converso
portugus. Na Torre do Tombo, no acervo documental do corpo cronolgico,
encontra-se uma carta da autoria de Duarte de Paz. Datada de 10 de Junho de 1532633,
a missiva revela uma estratgia deliberada, por parte de Duarte de Paz, de ganhar o
tempo necessrio para que no se publique uma bula papal a autorizar o
estabelecimento da Inquisio em Portugal. Com esse intuito, oferece os seus
prstimos a D. Joo III e nega acusaes de falsidade e conduta perversa, revelando
inclusive aspectos militares e estratgicos relacionados com a construo de um
castelo, por parte do Papa.
Entretanto, entrara em funcionamento o temido Tribunal (1536). Duarte de Paz,
dispensado pela comunidade crist-nova, nunca mais regressar a Portugal. De
seguida agredido violentamente por um grupo de homens mascarados que lhe
infligem quinze punhaladas, em 1538. O cristo-novo defendeu-se bem, salvando-o
uma armadura que trazia por debaixo da roupa. Socorrido de imediato, convalesce
no Castelo de Santo ngelo, sob os cuidados dos enviados do Papa Paulo III.
Recuperado, vai inicialmente para Ferrara, onde ter voltado a casar. No ano
seguinte parte para Veneza.
Votado ao ostracismo pela maioria dos cristos-novos desde meados de 1539,
que o acusavam de utilizar indevidamente os dinheiros que lhe eram entregues,
pressionado a abandonar Roma, desapontado, Duarte de Paz vai para Istambul. No
Imprio Otomano, regressa ao judasmo e adopta o nome de David Bueno. Acalenta
a esperana de um dia voltar para junto da famlia. O que o leva a enviar epstolas
630

O que testemunhado por Immanuel Aboab, Nomologia. Os Discursos Legales Compuestos pelo Virtuozo
H.H. Imanuel Aboab D.G.M., segunda Edicion Coregida e emendada por Raby, Dr. Ischak Lopes en Amsterdam
A 5487, p. 315.
631
D. Martinho de Portugal em carta a D. Joo III, enviada de Roma, com data de 13 de Setembro de 1535,
Corpo Diplomtico Portugus, publicado por Luiz Augusto Rebello da Silva, Tomo III, Lisboa Typographia
Real das Sciencias, 1868, p.250.
Carta de
632
Lcio de Azevedo, Histria dos Cristos Novos Portugueses, [], p. 78
633
ANTT Corpo Cronolgico, 3 parte Mao 49, doc. 20.
163

INQUISIO E INTEGRAO
sucessivas a D. Joo III. Mais uma vez, oferecendo servios diplomticos e de
espionagem e denunciando cristos-novos que, de Portugal, tinham ido viver e
comerciar para o Imprio turco634. Uma das cartas que at ns chegou, escrita de
Alepo, tem a data de 1545, e faz referncia a D. Afonso de Lencastre , que tomou o
lugar de embaixador em Roma no ano de 1551635. Como Jos Alberto Tavim
reparou636, h uma contradio nas datas que, em nosso entender, se ficou a dever,
talvez, ao copista. E se assim foi, a missiva enviada por Duarte de Paz expedida
pouco tempo antes do seu filho chegar ao Imprio Turco (1552). Duarte de Paz nunca
mais regressar a Portugal, acabando nos ltimos anos de vida637 por se converter ao
islamismo638.
Diplomata controverso, que tentou inviabilizar o estabelecimento da Inquisio
em Portugal, este lder639 sefardita teve um percurso de vida peculiar. Alcana
algumas vitrias quando, com pouco tempo decorrido desde que chegara a Roma,
expedido, por Clemento VII, a 17 de Outubro de 1532, o breve Nuper Fidei Catholicae,
que suspendia os efeitos da bula sobre a Inquisio e inibia o inquisidor-geral, Fr.
Diogo da Silva, e outros, de atentarem contra os conversos640; no ano seguinte, a 7 de
Abril de 1533, publicada a bula Sampiterno Regi, com perdo geral dos cristosnovos, recordando-se no texto que muitos de entre eles tinham sido coagidos a
receber o baptismo cerca de quarenta anos antes. Estes documentos contrariavam as
pretenses dos diplomatas de D. Joo III em Roma D. Martinho de Portugal e o
cardeal Santiquatro, mas no impediram a vinda da Inquisio para Portugal, anos
mais tarde (1536). A Coroa portuguesa via satisfeitas, dessa forma, a suas pretenses.

634

Vide J. Lcio de Azevedo, Op. cit., pp. 79-80.


A.N.T.T., Inquisio, Conselho Geral, Cdice 3003, fls. 159-159 v., cpia de Alves Louzada; tambm
publicada em J. Lcio de Azevedo, ibidem, apndice documental, doc. 2, pp. 446-447.
636
Jos Alberto Tavim, Judeus e Cristos-Novos de Cochim..., pp. 213-214, nota 184.
637
Ter morrido por volta de 1553.
638
Isso mesmo confessado pelo seu filho Inquisio. A.NTT., Inquisio de Lisboa, Processo n. 10906 fl.7.
639
Pela sua aco e pela sua postura; pelo facto de ter sido escolhido em primeiro lugar para representante dos
cristos-novos em Roma, Duarte de Paz, aparece-nos com um lder natural dentro da comunidade conversa.
640
Vide Fortunato de Almeida, Histria da Igreja em Portugal, nova edio preparada e dirigida por Damio
Peres, Porto Lisboa, Livraria Civilizao Editora, 1968 vol. II, p.387.
635

164

INQUISIO E INTEGRAO

3. Os Vizinhos que nos acusam. A sobrevivncia social


Poderemos afirmar, com alguma margem de segurana, que os Paz alcanam o
apogeu da sua prosperidade e da sua projeco social em meados do segundo
quartel do sculo XVI. A documentao consultada e triada sugere que o poder
econmico e social desta famlia maior do que nunca nos anos de transio poltica
entre os reinados de D. Manuel I e D. Joo III, ao longo das dcadas de vinte e trinta
do sculo XVI. Por essa altura, aparecem sinais claros que est em marcha uma
transformao progressiva da sociedade e da economia641, cujas consequncias
acarretaro profundas implicaes sociais, no deixando imunes estes cristos-novos.
neste perodo, precisamente, que as relaes de fora na sociedade portuguesa
tendem a alterar-se, acompanhando a contraco da economia mundial, nas
conjunturas de 1528-1530 e de 1534 em diante642.
Uma das novidades desta nova fase a mudana do eixo econmico. A Rota do
Levante reanima-se e leva novamente a melhor sobre a Rota do Cabo - que perde o
seu mpeto inicial face concorrncia dos mercadores venezianos e turcos que
trilham os caminhos e os portos do Mediterrneo Oriental , afluindo para a cidade
de Alexandria, situada no delta do Nilo, como se dum afluente caudaloso se tratasse,
os capitais sefarditas643. A priso em Anturpia de Diogo Mendes, no ano de 1532,
inculpado de prticas judaicas e de auxiliar cristos-novos no xodo para o Imprio
Turco, um sintoma das mutaes que se esto a dar nesses anos, precipitando e
agravando mesmo a conjuntura financeira que a Europa vivia. O encarceramento do
banqueiro, um dos mais influentes da Europa seu tempo - credor de Carlos V,
Henrique VIII ou D. Joo III foi , no h duvida, um rude golpe para os capitais
internacionais que circulavam na cidade do Escalda, pois deviam-se aos Mendes e
aos italianos Affaitadi o monoplio da venda de especiarias naquela praa financeira
641

Sobre os aspectos econmicos desta viragem. Vide Vitorino Magalhes Godinho, A Viragem mundial de
1517-1524 e o imprio portugus, Ensaios II, 1 ed. Lisboa, S da Costa, 1968, pp. 188-189; do mesmo autor
Flutuaes econmicas e devir estrutural do sculo XV ao sculo XVII, ibidem, pp. 245-280. Veja-se tambm
Aurlio de Oliveira, O Tempo Econmico no Tempo de Gil Vicente, Revista de Guimares, n. 112, Jan.-Dez.
2002, pp. 229-304. Cfr. Os quadros em apndice, sobre as flutuaes econmicas, que fizemos com base nos
dados fornecidos pelos estudos do professor Vitorino Magalhes Godinho.
642
A. A. Marques de Almeida, O Zango e o Mel, p. 33.
643
Idem, ibidem, pp. 25-35.
165

INQUISIO E INTEGRAO
do Mar do Norte644 . esta uma das razes que leva de imediato D. Joo III a
interceder pela libertao de Diogo Mendes junto do seu cunhado, o imperador
Carlos V.
O mundo est a mudar, a partir do segundo quartel do sculo XVI, como
demonstrou o Professor Vitorino Magalhes Godinho. s fases depressivas seguemse em alternncia curvas ascendentes, que no seu conjunto compem os ciclos da
vida econmica. Mas o que interessa realar, para compreender como a famlia Paz
foi tocada por estas mudanas, que no espao temporal abrangido pela governao
de Joo III (1521-1557), coincidente com esta fase645 em que uma depresso faz a sua
erupo, que se vo suceder implicaes nefastas para o aparelho de Estado e para a
economia, espao imperial incluso, tornando-se difcil a recuperao. Atente-se na
circulao dos metais preciosos. Em 1525/6 a escassez da prata alem e o
esgotamento do ouro da Costa da Mina, metais utilizados na compra de especiarias e
de outros produtos de que Portugal era deficitrio, condiciona a circulao de
mercadorias. Acresce a concorrncia simultnea de dois novos espaos polticos. Na
Europa Ocidental, Carlos V rene, numa nica entidade poltica, os principados,
cidades e bispados alems, a Flandres, o Franco-Condado, as Duas Siclias, o Ducado
de Milo, a Espanha unificada e todo o seu imprio das ndias do Novo Mundo646; no
Mediterrneo Oriental, o Imprio Otomano conquista a Sria e o Egipto, e abre uma
porta para o ndico atravs do Mar Vermelho, enquanto intervm no Norte de frica.
Eis dois novos actores no palco das relaes internacionais. Dois novos concorrentes
de peso para Portugal, nas esferas poltica e econmica, que colocam novos desafios
s ambies imperiais de Portugal e das suas elites sociais e econmicas.
644

Os Mendes controlam a partir de 1525 o pingue comrcio das especiarias. D. Joo III estava refm, no que
aos aspectos financeiros e comerciais dizia respeito, destas duas Casas de mercadores -banqueiros
(Mendes/Affatadi), dependendo dos seus capitais e dos produtos que forneciam para o comrcio com o Oriente.
Vide J. A. Goris, Op. cit. pp. 562-564. O Professor A. A. Marques de Almeida estudou o papel destas famlias no
comrcio das especiarias, Veja-se Capitais e Capitalistas no Comrcio da Especiaria, ed. cit., pp. 45-47.
645
O Mundo est a mudar, por alturas de 1521. A Frase de Vitorino Magalhes Godinho, A Viragem
mundial de 1517-1524 e o imprio portugus, p. 141. Neste ano, o primeiro do seu governo, D. Joo III deparase no s com a emergncia de uma nova realidade europeia, que j vinha tomando forma nos ltimos anos do
reinando do seu pai, como tambm mudanas que ameaavam abalar as estruturas socio-econmicas vigentes.
As dificuldades espreitavam, na verdade. Fontes da poca deixaram registado que foi o ano de 1521 rico e
prspero de festas [], mas to pobre e estril dos fruitos da terra, no s em Portugal mas por toda a Espanha
e at em frica, que deu manifesto e triste agouro da infelicidade em que havia de acabar [o reinado de D. Joo
III]. Francisco de Andrada, introduo e reviso de Manuel Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmo Editores,
1976, p. 7.
646
A Espanha imperial de Carlos V desequilibra nitidamente a seu favor todo o quadro geo-estratgico
peninsular e at Europeu.
166

INQUISIO E INTEGRAO
A ltima depresso a atingir o reinado do Piedoso, denominada de viragem
estrutural, verifica-se entre 1545/47 e 1551/53. Nada voltar a ser como dantes. So
seis anos de mudanas contundentes647. Desenha-se o fim do domnio luso sobre a
maior parte das cidades do litoral marroquino, como resultado do aparecimento dos
Xarifes do Suz; os ingleses comeam a interferir regularmente nos mercados da frica
Ocidental; mercadores turcos e venezianos instalam-se em Bassor, Ormuz e no
Malabar, ameaando perigosamente o monoplio comercial portugus no ndico; a
Coroa portuguesa encerra a feitoria de Anturpia, sintoma real das dificuldades
financeiras e da diminuio do fluxo de trfico martimo dos produtos ultramarinos.
Os novos tempos obrigavam introduo de reformas profundas, a repensar
seriamente a organizao administrativa do Estado e a controlar os custos com a
manuteno das possesses imperiais que no paravam de aumentar no Atlntico,
no ndico, no Pacfico. A balana comercial, sempre muito deficitria, deparava-se,
pois, com o engrandecimento do oneroso da burocracia e das estruturas
administrativas do Estado. Para suprimir o deficiente cofre das finanas pblicas, a
Coroa vai contrair emprstimos. Alguns credores so cristos-novos. Mestre Joo de
Paz, vai cobrar uma dvida Coroa, fazendo-se procurador de Lus Vaz de Negro, a 9
de Dezembro de 1527, no almoxarifado da cidade de Bragana, que o fsico conhecia
muito bem. Regista o documento: Lujs Vaz de Negro mercador morador na cidade de
Lixboa o fizera seu procurador bastante [mestre Joo de Paz] pera receber os ditos sesenta
mil reis do dito recebedor dos portos por vertude de hu desembargo e carta asjnada per dom
Rodrigo Lobo Veedor da Fazenda do dito Senhor que hj apresentou resistado como ficavam
carregados no liuro da despesa os ques sesenta mil reis sua alteza lhe mandava pagar da
metade de cemto e vjmte mil reis que emprestara a sua alteza no emprstimo dos christos
novos segundo mais compridamente no dito estromento de prova e aluara de desembarguo se
continha.648

647

H vrios factores que caracterizam esta fase depressiva da economia portuguesa, cujos efeitos levam
falncia das finanas rgias, com impacto decisivo, por sua vez, no sector financeiro e econmico interno e de
todo o Imprio. Entre o fecho da feitoria de Anturpia (1549) e a Casa da ndia (1560), d-se toda uma srie de
acontecimentos sociais, que caminham a par com graves dificuldades do aparelho produtivo e das finanas
pblicas. Veja-se Aurlio de Oliveira, O Tempo Econmico de Gil Vicente, pp. 235-238; Vide tambm A. A.
Marques de Almeida, Finanas Pblicas, Histria de Portugal, Dir. de Joo Medina, loc. cit.
648
ANTT, Corpo Cronolgico, parte II, mao 145, n. 143.
167

INQUISIO E INTEGRAO
Sombart j nos alertara para a apetncia dos judeus pelo comrcio do levantino,
ainda que tivessem sido descobertas novas vias comerciais649. Mas, agora, tudo se
tornara diferente. O sul da pennsula italiana enche-se de cristos-novos - muitos,
seno a maior parte, reconvertendo-se ao judasmo - vindos da Pennsula Ibrica e,
um pouco por todo o Mediterrneo, de Veneza a Npoles, da Siclia a Salnica, de
Istambul ao Chipre o povo de Abrao e Moiss mercadeja l, seda, acar,
especiarias, tudo vende e revende, aproveitando um clima poltico que lhe
favorvel. Nas palavras de Fernand Braudel, os judeus so a primeira rede mercantil
do Mundo, porque esto em todo o lado, tanto nas zonas menos desenvolvidas,
como nos locais mais florescentes650.
As tendncias econmicas adversas no segundo quartel do sculo XVI, com
impacto pernicioso no comrcio internacional, reflectem-se nas receitas dos portos e
almoxarifados portugueses. Se Lisboa se hipertrofia, no menos verdade que se faz
sentir a contraco das receitas no Algarve e um crescimento muito lento no Entre
Douro e Minho. A Beira e Trs-os-Montes defendem-se melhor que o Norte Atlntico espao vital para os Paz , que se encontra claramente em recuo651, quanto
produo de riqueza e s transaces comerciais.
Todas estas mudanas de cariz econmico e social so acompanhadas pelo clima
de confronto religioso que se vive um pouco por toda a Europa. O velho
continente cinde-se em partidos religiosos, movimentos, faces, com diferentes
programas e diferentes vises sobre a melhor forma de reformar a Igreja. Atingidos
pelo debate religioso interno, alguns Estados mergulham em longas guerras
fratricidas que ameaam a sua prpria integridade. A Frana encontra-se na primeira
linha destes conflitos religiosos e das dissenes internas mas, ali ao lado, o Imprio
alemo de Carlos V, que conhecera em primeira-mo as ideias de Lutero, ameaa ruir
como um baralho de cartas, dividido entre bispados, cidades, principados, cada um
destes micro poderes a defender posies diferentes sobre a Reforma religiosa.
neste clima de confronto religioso, por um lado, e de mudana estrutural da
economia mundial, por outro, que introduzida a Inquisio em Portugal, em 1536.
649

Werner Sombart, Les Juifs ..., pp. 31-32 ; Cfr. A. A. Marques de Almeida, Ibidem, p. 33.
Vide Fernand, Braudel, O Mediterrneo e o Mundo Mediterrneo, 2 ed., Vol. II, Lisboa, Publicaes
D.Quixote, 1995, pp. 169-179.
651
Dados avanados por Joo Cordeiro Ferreira, A Receita do Estado Portugus..., p. 49.
650

168

INQUISIO E INTEGRAO
Um Estado confessional vai actuar contra as heresias pelo seu brao religioso,
atravs de um esquema rgido de controlo dos comportamentos sociais, inquirindo,
acusando, prendendo sem culpa formada, violentando indiscriminadamente aqueles
que se haviam convertido em 1496-97 ao cristianismo, ou que se suspeitava que
tivessem antepassados judeus.
O documento que fixa a Inquisio no Porto datado de 30 de Junho de
1541652. Trata-se de uma carta de D. Joo III enviada ao Bispo do Porto, D.Baltazar
Limpo, que estabelece os pontos relativos s prerrogativas e jurisdies do Prelado.
O arcebispado de Braga ficaria sob a alada do Bispado do Porto. O que era uma
novidade. O estabelecimento do tribunal religioso efectiva-se a 13 de Outubro
daquele ano653. Alexandre Herculano v, na actuao do D. Baltazar, uma vingana,
em virtude de um litgio que este mantinha com os cristos-novos da cidade, por
estes pretenderem repovoar a rua de S.Miguel, perto da zona ribeirinha, onde
tratavam dos seus negcios de roupa feita.
Escasseia a informao sobre a actuao do tribunal nos seus primeiros
tempos654. Os autos que foram levantados esto balizados pelas datas de 1541 e 1546,
com uma maior aco dos promotores nos anos de 1542-44655. As denncias so de
carcter mesquinho e ridculo. Muitos dos acusados encontravam-se ausentes,
porque tinham demandado outras terras, para se sentirem mais seguros entre
aqueles que partilhavam a sua condio. Lamego e Lisboa so locais escolhidos para
a fuga Inquisio portuense656, mas Trs-os-Montes, pelo seu perfil fsico e
orogrfico, merecia ateno especial.
Para auxiliar o Bispo do Porto, so nomeados Jorge Rodrigues, como assessor,
o provisor de Braga, o Dr. Gaspar de Carvalho e o prior da Colegiada de Guimares,
bacharel Gomes Afonso. O tribunal passa a funcionar nas pousadas do inquisidor
Jorge Rodrigues, na rua Ch, com audincias dirias de manh e tarde. Em 1544, h
652

Veja-se I.S. Rvah, Uriel da Costa et les Marranes de Porto. Cours au Collge de France 1966-1972, ed. de
Carsten Z. Wilke, Paris, E.C.G., Centre Culturel Gulbenkian, 2004, pp. 152-153
653
Sobre a efmera Inquisio do Porto, Vide Elvira da Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio do Porto,
Separata da Revista de Histria, Vol. II, Centro de Histria da Universidade do Porto, 1979, p. 5; e a sntese em
A.C. Barros Basto, A Inquisio do Porto A Inquisio do Porto, Ha-Lapid, rgo da Comunidade Israelita
do Porto, n. 10, Porto Nissan 5688(Abril 1928), pp. 1-2.,
654
Os processos so em nmero reduzido nmero, impossibilitando uma ideia mais abrangente sobre os
interrogatrios e a aco dos inquisidores. Veja-se Elvira da Cunha Azevedo Mea, Op. cit. , p.7.
655
Idem, ibidem, loc. cit.
656
Idem, ibidem, p. 8.
169

INQUISIO E INTEGRAO
notcia de uma priso na rua Escura657. Havia uma certa falta de objectividade na
instaurao dos processos; no se saber o credo era uma agravante658. Dinheiro era o
que no faltava a estes ricos e abastados cristos-novos do Porto. Muitos pagaram as
suas caues, subornaram testemunhas, usaram do seu poder e influncia659. Mas a
violncia com que o tribunal religioso do Porto actuava, no pode ser desvalorizada,
muito menos ocultada. A extorso de dinheiros, em quantidades exorbitantes, pelos
prelados, testemunhada pelos presos vindos de Bragana, Francisco Rodrigues,
tabelio, e Gonalo Lopes, mercador, que encaram a deciso do juiz vender as suas
fazendas como algo injusto, resolvendo apelar para o Cardeal Infante D. Henrique660.

Inquisio do Porto Sentenas 1541-1546


Condenados

12

Justia Secular

11

Vehementi Suspeitos

Penas no Crcere

Absolvies

Penitncias Espirituais

Degredo

Crcere e Hbito penitencial Perptuo

Total de casos

64

Fonte: Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio do Porto, p.16.

Constam da actuao controversa desta Inquisio dois Autos-de-f, nos anos


de 1543 e 1544. Com a bula de Paulo III de 16 de Julho de 1547, finda a Inquisio do
Porto.
Conseguiria um grupo familiar como os Paz continuar a prosperar, perpetuando
a sua influncia social, no interior de um panorama social e poltico que lhe era to
adverso?
657

Tenho vindo a seguir a professora Elvira Mea, e os dados que o seu estudo veicula, ibidem, p. 9.
Idem, ibidem, p. 11.
659
Idem, ibidem, pp. 12-14.
660
Idem, ibidem, pp. 14-16.
658

170

INQUISIO E INTEGRAO
Os inimigos vo parecer, de facto, em grande nmero, e o Estado, indolente
perante a discriminao, o dio, as acusaes, muitas vezes infundadas, era ele
tambm mais um inimigo.
Durante o sculo XVI, foram aparecendo indcios de uma animosidade crescente
para com os Paz. Em 18 de Outubro de 1501, depois de mestre Joo ter regressado, da
viagem, supostamente, a Calecut, Vasco Fernandes, mercador, morador em Vila Flor,
teve perdo do juramento falso que fizera perante os juzes da Vila, dizendo que no
devia 200 reais a Joo de Paz, por soldada de certo tempo661. At o duque de
Bragana, D. Jaime, entrava no rolo dos devedores. Em Santarm, no ano de 1503,
mestre Toms, cunhado de mestre Joo, fazia-se seu procurador para cobrar uma
dvida que lhe pertencia haver, de certo tempo, do Duque662.
O crdito mal parado, as dvidas famlia, sucediam-se, deixando antever tempos
difceis quando a Inquisio procurasse rus entre os conversos, motivando (falsas)
denncias, acusaes e ajustes de contas.
Sucedia, tambm, que os servios de Duarte de Paz a favor dos cristos-novos, em
Roma, durante os anos trinta do sculo XVI, enfureceram o monarca, que nada
podendo contra o ausente descarregou a ira sobre a famlia (...)663: pais, irmos, tios,
cunhados, sobrinhos. A 9 Junho de 1542, passado que estava um ano desde a entrada
da Inquisio no Porto, D. Joo III envia uma carta a D. Baltazar Limpo, com ordens
expressas para que os parentes mais chegados de Duarte de Paz tivessem de
abandonar Portugal num prazo de trinta dias. Caso no cumprissem a determinao
rgia, seriam condenados a dez anos de degredo na ilha de S. Tom, sem remisso e
com perda de toda a sua fazenda664.
Conhecemos a resposta da Inquisio do Porto, que a 12 de Junho (de 1542)
enderea uma carta ao Rei a informar que convocara, um a um, os elementos da
famlia Paz que viviam na cidade, e os notificara, com um escrivo, da deciso rgia
de que teriam de abandonar o Reino665.

661

ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, liv 37, fl. 49 v.


B. A. Cdice 47-XIII-18, Montarroio Mascarenhas, Theatro Genealgico, 1741, fl. 41.
663
Lcio de Azevedo, Histria dos Cristos Novos Portugueses, 2 ed., Lisboa, Livraria Clssica, 1975, p.78.
664
ANTT., Inquisio, Conselho Geral, Cdice 90 flio 44 e 44v , cpia de Gaspar Lousada de 1629.
665
Ibidem, Carta do Corregedor do Porto a D. Joo III.
662

171

INQUISIO E INTEGRAO
Diogo de Paz, que liderava a famlia desde a morte de seu pai666, resolve escrever
directamente a D. Joo III. A sua carta, com a data de 15 de Junho de 1542667, d conta
que fora notificado para sair de todos os reinos e senhorios do rei Piedoso, e
abandonar os cargos que detinha. Queixava-se: Diguo que vossa Alteza ysto mamda por
mynha fortuna e meus pecados ou outros mais antiguos me fezeram irmo de Duarte de Paz
que foy solycitador e negociador contra o seruio de Deus e de vossa Alteza e seu guosto que se
deve to bem lembrar que o pay no deue pagar as maldades de seu filho nem o filho de seu pay
muyto menos o jrmo de seu jrmo porque nemhuas leis divinas nem as de vossa Alteza e de
seus anteesores que das de Deus no so afastadas no permytem tal ponyam nem
acustumo de dar tamanha pena honde no h nemhua culpa [].668 E mais frente
argumentava: E se manda ysto por eu cair na comta e regra jerall de meus parentes e dos
outros de minha nao e calidade de que eu cuidava e tinha grande presumam de estar ysento
asy pello que sey de mym como pellas merees e ysemes que desta jeenralydade receby de
Vossa Alteza devyam de valler ante elle a mym e a meus irmos a maneira de que meu pay e
minha may conhecero o engano que erdero dos seus e mudaro sua vyda com tamto prazer e
gosto dEl Rey de samta memorya Voso pay e tamanha honrra e em ela perserveraro ate []
sua morte e nella fizero per que mostraro muy craramente quo bem se tiraro da obrygao
em que nacero e a seus filhos e filhas amostraro seu camynho e trabalharo que fos[s]e por
ele.669
Diogo de Paz assumia a sua condio de descendente de pai e me, judeus, que se
haviam convertido com muito agrado do Rei, e defendia-se fazendo prova do seu
comportamento exemplar e das mercs que tinha amealhado por servios distintos
Coroa.
D. Joo III recuou na sua deciso e revogou a medida que visava expulsar a
famlia Paz dos seus reinos. Porque o fez? Muitas podem ter sido as razes. Era
reconhecido o ainda muito poder que a famlia tinha na Alfndega do Porto, tal como
no despacho e venda de mercadorias no Norte. Tero sido no entanto, muito

666

Que faleceu depois de 1536 e antes de 1540. Em 1536 temos notcia que ainda estava vivo, pelo documento
do seu testamento, em que fundava uma capela no mosteiro de S. Francisco no Porto, como vimos.
667
ANTT, Corpo Cronolgico III Parte, mao 72, doc. 73. Carta de Diogo de Paz a D. Joo III, Porto, 15 de
Junho de 1542. Disponvel para leitura em http://ttonline.iantt.pt, e transcrito em anexo.
668
Ibidem, Carta de Diogo de Paz a D. Joo III.
669
Ibidem, Carta de Diogo de Paz a D. Joo III.
172

INQUISIO E INTEGRAO
provavelmente, as fortes influncias que os Paz dispunham na Corte que tiveram
uma aco determinante na revogao da pena rgia.
Diogo de Paz augurou fazer o Rei retroceder, mas a Inquisio no iria dar
trguas sua famlia. Escreveu Camilo Castelo Branco: Em 1542 comeou a
perseguio famlia Paz.670
A primeira notcia que nos chegou de um elemento da famlia apanhado nas
malhas da Inquisio relatada por Andr de Resende, o mesmo autor que conhecia
a Descrio de Entre Douro e Minho de mestre Antnio de Guimares, e recebera lies
de hebraico do flamengo Nicolau Clenardo na Universidade de Paris. O humanista
eborense, na sua obra Vida do Infante D. Duarte, escrita em 1567, com dedicao
ao Duque de Guimares, D.Duarte, filho daquele Infante671, reporta-se a um Ferno
de Paz672, moo da Corte, que era presena frequente numa casa que se dizia ser de
um rabi e cujos familiares, mercadores que guardavam o sbado, recusavam levar
roupa ao Pao nesse dia673.
Preso pela Inquisio674, Ferno de Paz no confessou quaisquer erros contra a f,
nem fez denncias. Testemunhos posteriores revelam que se suicidou, mas tambm
houve quem defendesse, ao tempo, que lhe administraram peonha para que no
revelasse o que outros (cristos-novos) receavam ser descoberto e sabido. O
testemunho de Andr de Resende.

670

Camilo Castelo Branco, Op. cit. p. 66.


Vida do Infante D. Duarte, trata-se de uma obra sobre o infante D. Duarte, um dos filhos de D.Manuel,
nascido em 1515 e que veio a falecer em 1540.
672
Andr de Resende relata-nos um episdio que se passou na Corte envolvendo Ferno de Paz, um dos filhos de
mestre Joo, tratando-o somente por Paz. Ferno, moo da cmara da rainha D. Catarina, trouxera de Braga
um velho, que servia de bobo da Corte, a quem chamavam D. Joo, e que divertia as tardes e os seres dos
infantes. Conta-se que um belo dia D. Duarte chamou Ferno de Paz para trazer o bobo, mas no o encontrou.
Ficou o Infante ento a saber que o Paz frequentava com assiduidade a casa de algum, que se presumia ser um
rabi. D.Duarte ter ficado colrico e preparou-lhe uma maldade - enfartou-o com uma grande espetada de
toucinho. Uma ocasio procurando-o novamente e no o encontrando, replicou-lhe: - Paz, avisa-te; no vs a
casa de homem infamado de judeu e rabi. Desta vez, o que D. Duarte preparou para se vingar, adquiriu laivos
de crueldade e desumanidade. Embebeu um barrete novo, com uma borla amarela, em leo de terebintina e
coloco-o bem apertado sobre a cabea do cristo-novo. A terebintina secou e o barrete no podia sair seno
arrancando parte dos cabelos ou rapando-os. Todo este episdio descrito por Andr de Resende, Obras
Portuguesas Vida do Infante D. Duarte, Prefcio e notas de Jos Pereira Tavares, Lisboa, Livraria S da Costa,
1963, pp. 104-110. Cfr.Camilo Castelo Branco, Op. cit. pp. 19-24.
673
Andr de Resende, ibidem, pp. 107-110.
674
No conseguimos encontrar o seu auto; e no nos foi possvel saber em que cidade decorreu o seu processo e
priso (Porto? Lisboa?).
671

173

INQUISIO E INTEGRAO
Mas o desmazelado no se soube guarecer nem remediar que no houvesse mau fim;
porque, sendo preso pela Santa Inquisio, sem querer confessar seu erro, ele mesmo procurou
sua morte ou, segundo alguns dizem, deram-lhe peonha, assi que no revelasse o que outros
receavam ser descoberto e sabido.675
A ter sido interrogado e preso pela Inquisio do Porto, sabendo-se a forma cruel
e brutal como este tribunal religioso actuava, torna-se evidente porque que veio a
falecer nos calabouos do Santo Ofcio.
Outros membros da famlia vo ser interrogados pela Inquisio. o caso do rico
mercador portuense Antnio de Paz, chamado a testemunhar no processo de
Henrique de Tovar e de sua mulher Isabel Lopes, a 9 de Maro de 1541676. Antnio de
Paz confirmou, perante o inquisidor, que Pero Fernandes, genro dos rus, fora criado
de seu pai, e que por volta de 1534 se deslocara com o seu cunhado Pero Lopes de
Mesquita, defunto, S em companhia do genro e dos rus, para assistiram a uma
missa no altar de Nossa Senhora da Silva677.
Henrique Tovar, preso com a sua mulher, Isabel Lopes, em 1541, natural de
Valladolid, era pai de Duarte de Tovar, mercador de seda para a Flandres, queimado
em esttua no Porto. Um outro filho, Jernimo de Tovar, exercia a profisso de
fsico678.
Antnio de Paz tambm ver a sua vida devassada pela Inquisio do Porto679.
Simo Gomes, seu sogro, que mais tarde enterrado a seu lado na S Catedral da
cidade, cidado abastado, acusado por uma criada de praticar a religio judaica.
Condenado a trs anos de priso no dia 27 de Abril de 1544, foi libertado de seguida
no ms de Outubro, por alegar sofrer de uma maleita grave680. Para a sua libertao
contribuiu, seguramente, o muito dinheiro e a influncia do seu genro e da famlia
deste681. A irm de Simo Gomes, Graa Fernandes, estava casada com um mercador
do Porto, lvaro Pires Galego, igualmente sentenciado na dcada de quarenta do
675

Andr de Resende, Op. cit., pp. 108-109.


ANTT, Inquisio de Coimbra, Mao 13, Processo 140, fls. 103-104 v..
677
Ibidem, fl. 104.
678
Vide Hermnia de Vasconcelos Vilar, A Comunidade crist-nova do Porto no sculo XVI: Notas para o seu
estudo, Xudeus e Conversos na Histria, Edio de Carlos Barros, Actas do Congresso Internacional, Tomo II,
Santiago de Compostela, La Editorial de la Histria, 1994, p. 394.
679
Atravs do processos que so movidos sua sogra, Branca Dias, e ao seu sogro Simo Gomes: ANTT,
Inquisio de Coimbra, processos n. 9169 e n 4891, respectivamente
680
ANTT, Inquisio de Coimbra, Processo n. 4891, de Simo Gomes, fl. 10 e ss.
681
Opinio que partilhamos com Hermnia Vilar, A comunidade crist-nova do Porto, p. 394.
676

174

INQUISIO E INTEGRAO
sculo XVI. Como o seu nome indica, estamos perante mais um converso que veio do
outro lado da fronteira; inicialmente marinheiro e pescador, torna-se num bem
sucedido vendedor de panos, proprietrio de uma tenda na ponte de S. Domingos,
no Porto682.
Uma sobrinha de Antnio de Paz, Maria de Paz, filha de Francisco de Paz e de
Isabel Rodrigues, depe em 1542 contra Maria Teixeira, crist-nova, moradora na rua
das Taipas683. Maria teve fama de testemunhar contra cristos-novos. Acusavam-na
de no honrar os seus ascendentes por se afastar dos preceitos da sua religio,
casando-se com um cristo -velho, incriminaes que rejeitava.
Muitos dos Paz, residentes no interior do Reino, no escaparam sindicncia da
Inquisio. Lamego fora, desde o incio da sua vinda para Portugal, um local de
eleio para a famlia. A viviam alguns dos descendentes directos de Rui Mendes, o
cunhado de mestre Joo de Paz, que viro a gozar das imunidades penais,
negociadas em Roma por Duarte de Paz. Segundo os testemunhos de acusao, nos
anos de 1543 e 1544, Isabel Mendes, residente em Lamego, na Rua Nova, casada com
Heitor Mendes, filho de Rui Mendes, possua uma casa que servia de sinagoga das
mulheres; segundo outros depoimentos, praticava a circunciso dos meninos,
momentos depois de os nados terem recebido o baptismo na Igreja da Almacave.
Acusaes que a crist-nova, que acaba por se refugiar na Galiza, negava, admitindo
que guardava os sbados684.
A filha de Isabel Mendes, Justa de Paz e o marido, Jernimo Fernandes685, v o ser
alvo de delaes e de processos que se arrastam pelos anos de 1543 a 1545. Nesses
processos emerge a ferocidade dos seus inimigos, muitos deles concorrentes de
Jernimo Fernandes, mercador, rendeiro das sisas da cidade de Lamego, e de seus
irmos, Rui Fernandes, mercador, tratador das lonas, clebre autor da descrio dos
terrenos volta de Lamego, Jcomo da Fonseca e Antnio da Fonseca.
682

Idem, ibidem, loc. cit..


ANTT, Inquisio de Coimbra, Processo n. 9821, fls.17-18. Vide tambm, Hermnia Vilar A comunidade
crist-nova do Porto, p. 394 e p. 403, nota 40. Esta autora confunde Maria de Paz, irm de Francisco e de
Antnio de Paz, ambos filhos de Diogo de Paz, com a sua sobrinha, homnima.
684
Retiramos esta informao do artigo de Susana Bastos Mateus, A aco do Santo Ofcio sobre a comunidade
crist-nova de Lamego (1541-1548): o caso de Isabel Mendes, Cadernos de Estudos Sefarditas, n 7, no prelo.
Agradecemos Dr. Susana Mateus, que ultimamente tem vindo a estudar a actuao de Inquisio em Lamego,
o acesso ao seu estudo antes da sada do prelo.
685
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processos n. 3225 e n. 12944. Agradecemos Dr. Susana Bastos Mateus, a
notcia que nos deu destes processos relativos a dois elementos da famlia Paz.
683

175

INQUISIO E INTEGRAO
Em Lamego a devassa contra os cristos-novos foi liderada pelo bispo da cidade e
pelo inquisidor Dr. Manuel de Almada. Os perseguidos e interrogados formavam a
primeira gerao de conversos que mantinha um relacionamento estreito com a Casa
Real686. As denncias e as acusaes reflectiam rivalidades e velhos dios, entre
servidores cristos-velhos e os seus senhores, prsperos cristos-novos, ou mesmo
entre a comunidade sefardita.
Os dios esto presentes nas denncias efectuadas contra Justa de Paz e a sua
famlia. O cunhado, Rui Fernandes, era alvo do dio de Afonso Eanes, neto de Anto
Rodrigues, antigo vereador do Concelho e seu inimigo capital. A razo de tamanha
inimizade prendia-se com o facto de Rui Fernandes ter ido Corte e obtido uma
proviso do Rei para que Anto Rodrigues e seus parentes mais prximos no
fossem vereadores687.
Nesta guerra utilizavam-se os criados e os parentes para denunciar quem era
inimigo. O forjo de argumentos para delatar, tornava-se algo frequente para limpar a
honra, funcionando como vingana de uma situao passada. Rui Fernandes, tinha
angariado muitas inimizades nas suas funes de feitor das lonas e rendeiro da sisa,
andara muitos anos em desavena com Pero Vaz Carvalhino, por causa de uma
inquirio fazenda de Aires Pinto. Condenado a priso, este deu como depositrio
Pero Vaz Carvalhino, mas como nenhum dos dois solvesse a cauo, Rui Fernandes
colocou Aires Pinto na priso do castelo. Os dois homens apelaram para a Corte, e
mergulharam numa longa demanda com o cunhado de Justa de Paz. Durante a qual
gastaram parte dos seus bens688.
Jernimo Fernandes, o marido da sobrinha-neta de mestre Joo, fora rendeiro das
sisas de Lamego nos anos de 1536, 1537 e 1538 e 1539. E sendo assim rendeiro entrou
num litgio com Joo Gonalves, alfaiate, marido de uma das testemunhas de
acusao de Justa de Paz689.
As acusaes aos Paz persistiram nos anos seguintes. At o prestigiado mdico e
professor catedrtico da Universidade de Lisboa, Ferno Lopes de Paz, irmo de
686

Sobre os primeiros interrogatrios e processos movidos contra os cristos-novos de Lamego, Vide Maria Jos
Ferro Tavares, Os Cristos Novos em Terras da Comarca da Beira (Subsdios para o Estudo das Primeiras
Geraes), Rumos e Escrita da Histria. Estudos de Homenagem a A.A.Marques de Almeida, Coordenao de
Maria de Ftima Reis, Lisboa, Edies Colibri, 2007, pp. 557 573.
687
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processos n. 3225, fl. 65 v..
688
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processos n. 3225, fls. 66-67 v..
689
Ibidem, fl. 71.
176

INQUISIO E INTEGRAO
Antnio de Paz, um dos muitos sobrinhos de mestre Joo, de cinquenta anos de
idade, casado com uma filha de Tristo Alvares Nanias (que se encontrava fora do
Reino), se v na obrigao de dar contas temvel Inquisio. No dia 29 de Agosto de
1547 compareceu Ferno Lopes de Paz na casa da Inquisio de Lisboa, confessando
ter visitado Nicolau Rodrigues, cristo-novo, morador na rua das Medas. Achando
este enfermo e muito doente escreveu-lhe um testamento, em que era determinado
que o moribundo, por vontade prpria, queria ser sepultado, ou no mosteiro de
Nossa Senhora da Graa, dentro do seu claustro, perto da campa de seu filho, ou
junto da cova de Pedro lvares, em terreno novo. Declarou Ferno Lopes de Paz ter
redigido o testamento sem cuidar da incorreco que estava a cometer. O tabelio
Manuel Afonso conferiu fora de lei ao documento, voltando s mos do professor
da Universidade de Lisboa. Naquele momento, em presena dos inquisidores,
afirmava Ferno Lopes que verificando o erro que cometera, por ter passado a escrito
uma ltima vontade de um cristo-novo, ficou to irado que rasgou o documento690.
O acadmico antecipava-se ao Santo Ofcio, acautelando-se de uma possvel
denncia ou inqurito sua actuao. No se pode esquecer, tambm, que a auto
denncia funcionava para aquela sociedade, profundamente catlica, como o nico
caminho para o indivduo se preservar a si e comunidade da ira de Deus691, logo,
era sempre um factor de desagravo.
Para fugir aos interrogatrios, tortura e s labaredas da Inquisio, a famlia
cinde-se. Uns preferem a dispora, mas a maioria acaba por ficar a tomar conta dos
seus haveres e na posse dos seus ofcios, mergulhando num difcil e complexo
processo de recomposio social a partir de 1542. A sobrevivncia social ser
possvel, mas com um pesado custo para alguns dos seus elementos que, como
constatamos, foram sacrificados aos interrogatrios dos inquisidores, quando no
mesmo morte.

4. Do Porto a Istambul. O Mare Nostrum, a Europa um s


Espao
690

A Inquisio em Portugal e no Brasil, edio de Antnio Baio, Archivo Historico Portuguez, Vol.VII, n.
10-11, Out.- Nov. 1909, n. 82-83, p. 442.
691
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra, ed. cit., pp. 209-210.
177

INQUISIO E INTEGRAO

Em Portugal permanecia a famlia Paz, agora liderada por Diogo de Paz, o


segundo filho, na ordem de sucesso patriarcal, de mestre Joo, que, aos poucos,
recompunha socialmente o grupo familiar do impacto perverso dos processos
movidos pela Inquisio do Porto nos primeiros anos da dcada de quarenta do
sculo XVI. Entre os que ficaram, encontrava-se um dos filhos de Duarte de Paz,
Tom Pegado, fruto do seu casamento com Catarina Pegada692, natural de Elvas.
Em 1552 ou 1553 Tom Pegado de Paz parte do Porto em direco ao Imprio
turco693. Alegar mais tarde que foi em busca de seu pai, que a vive exilado. Porm,
Tom Pegado chega ao Mediterrneo ao mesmo tempo que os Nasci694.
Se no se pode negar que Tom vai procurar o seu pai em terras turcas,
tambm no se pode afastar a hiptese, muito real, de ir propositadamente servir de
elo de ligao entre os Paz e os Nasci, no interior de uma rede controlada por estes
ricos judeus. Registe-se que, segundo Jos Alberto Tavim695, os protagonismos paramessinicos de Grcia e Joseph Nasci, levaram a que muitos judeus e cripto-judeus
pensassem que, por aderirem aos seus iderios, encontravam o caminho para a
salvao. Mais um factor que no pode ser minimizado.
Que papel estaria reservado a Tom Pegado? O mais provvel que fosse
servir no Mediterrneo Oriental os interesses dos Paz, numa altura de recomposio
do estatuto social da famlia. O seu tio Diogo, que o enviara ao Oriente, participava
por essa poca, activamente, na vida social portuense, contribuindo para as obras de
caridade da Misericrdia do Porto696, e casava uma das suas filhas, com pompa e
circunstncia, com um dos homens fortes da administrao da Cmara do Porto Antnio Leite. Em 1549, a sua casa fora escolhida entre as demais da elite social
portuense , para hospedagem do arcebispo de Braga, D. Manuel de Sousa, de
passagem pelo Porto, como se referiu em passagem anterior.

692

Havia mais um filho, de nome Joo, como vimos anteriormente, fruto deste casamento.
Como veremos mais h frente pelo confronto com os dados do interrogatrio a que Tom pegado de Paz
sujeito na Inquisio de Lisboa.
694
Haviam deixado para trs o nome de Mendes Benveniste.
695
Jos Albertos Tavim, Os Judeus e Cristos-Novos de Cochim. Histria e Memria (1500-1662), Braga,
Edies APPACDM (Associao Portuguesa de Pais e Amigos do Cidado Deficiente Mental) Distrital De
Braga, 2003, p. 209.
696
Veja-se A. Magalhes de Basto, Histria da Santa Casa da Misericrdia do Porto, 2 Ed., com prefcio de
Francisco Ribeiro da Silva, Vol. I, Santa Casa da Misericrdia do Porto, 1997, p. 462.
693

178

INQUISIO E INTEGRAO
As redes europeias de mercadores sefarditas tm, sem dvida, uma presena
activa no comrcio internacional697 que coeva das grandes transformaes
econmicas e sociais que se do na Europa entre os sculos XV e XVII. Estas redes
comerciais assentavam numa estrutura muito peculiar. As famlias, que funcionam
como construo e avaliao de toda e qualquer relao social, repartem os seus
membros por vrios lugares, geralmente pontos estratgicos de grande fluxo de
capitais, moeda e matrias-primas diversificadas698. Por seu turno, rede familiar
associava-se, quase sempre, uma rede de poder. Quer isto dizer que, na aurora do
capitalismo moderno, as elites financeiras sefarditas enleavam-se em complexos
relacionamentos de poder699, como forma e estratgia de sobrevivncia, num meio
social que na maior parte dos casos lhes era hostil. As famlias financeiramente
poderosas, no descurando essa realidade, aliceram o seu prestgio nas redes
comerciais que controlam, ombreando com as figuras e os grupos sociais dominantes
da sua poca.
Os Nasci ilustram bem essa realidade. Tal como outras famlias sefarditas
poderosas,

que

controlavam

vastos

imprios

financeiros

comerciais

internacionais, procuraram o apoio dos grupos familiares de cristos-novos, que


aparentavam estar, ou at estavam em certos casos, plenamente integrados social e
economicamente nos espaos polticos onde ganhava fulgor a Contra-Reforma700.
Muitos dos elementos destas famlias, que serviam secretamente os da sua
nao e mantinham estreitos contactos com os sectores mais activos da dispora701,
eram peas imprescindveis de um jogo financeiro e mercantil que se fazia escala
internacional.
Tudo indica que os Paz, conhecidos mercadores cristos-novos do Porto,
foram uma dessas famlias a desempenhar, durante certo tempo, um importante

697

Cfr. A. Marques de Almeida, O Zago e o Mel, p. 26.


Vide A. Marques de Almeida, ibidem, p. 30, e Piter Emmer, The Jewish Moment and the two Expansion
System in the Atlantic, 1580-1650, The Jews and the Expansion of Europe to the West 1450- 1800, Edited by
Paolo Bernardini & Norman Fiering, New York - Oxford, Berghah Books, 2001, p. 510.
699
Poder no sentido em que Max Weber definiu: todos os meios, todos os tipos de aco podem colocar algum
em posio, privilegiada, de impor a sua vontade, diante de outros, a uma dada situao. Cf. Max Weber,
Economia y Sociedade (Wirtschaft und Gesellchaft, Grumdriss der Verstehender Soziologie, Tubingen, 1922),
Buenos Aires-Mexico, Fondo de Cultura Economica, 1944, p. 43.
700
Estamo-nos a referir a um perodo que, em traos gerais, comea ainda antes da primeira fase do Conclio de
Trento (1545-1547), e se estende at perto do final do sculo XVI.
701
Veja-se Jos Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Judeus e Cristos-novos de Cochim, p. 210.
698

179

INQUISIO E INTEGRAO
papel de charneira entre o espao ibrico e as redes internacionais de comrcio que se
encontravam nas mos dos sefarditas. Tom Pegado vai tentar refazer as ligaes
internacionais da sua famlia.
Chegado a Constantinopla, rapidamente passa ao servio do duque de Naxos,
Joseph Nasci702, um judeu que em tempos fora cristo-novo com o nome de Joo
Micas .
Para abordar os contactos e as relaes que se estabeleceram entre os Paz e os
Nasci, nome que os Mendes Benveniste adoptaram na dispora aps retornar ao
judasmo, dispomos de uma fonte muito rica em informao: o processo de Tom
Pegado de Paz, preso pela Inquisio em 1578. com base nos testemunhos a
desvelados que vamos construir o nosso discurso.
Estamos em crer que as razes aduzidas por Tom Pegado de Paz, de que fora ter
com seu pai a Constantinopla a mandado de seu tio703, Diogo de Paz, escondem
outros intentos por parte da sua famlia. Repare-se que os caminhos que levavam
capital do imprio otomano, os contactos a travar nas cidades italianas do sul que
fervilhavam de judeus, e especialmente, ao mais alto nvel, os contactos com o
embaixador de Frana, eram conhecidos bem demais para quem vivia no Porto,
sem sair da Pennsula Ibrica704. Alis, os ltimos estudos sobre a Inquisio de
Lamego705, tm vindo a mostrar que uma srie de cristos-novos que fogem do Santo
Ofcio vo fixar-se na Toscana, e formar a partir da redes comunitrias de contactos
na dispora, entre marranos, as quais se materializam em redes religiosas e sociais
que demonstram uma eficcia na sua actuao muito surpreendente.
Tom Pegado e a famlia Paz contavam, tudo aponta nesse sentido, com apoios e
conhecimentos no interior dessas redes, at porque uma parte da famlia (Justa de
Paz e Jernimo Fernandes, sobrinhos-netos de mestre Joo) que se encontrava em
Lamego vem a ingressar nessa fuga para Itlia706. No nos pode passar sequer
desapercebido o facto, no sentido de abordar a questo em sentido crtico, de que a
702

Este antropnimo aparece muitas vezes sob outra forma: Nasi ou Nassi. Ns optamos por Nasci,
semelhana da maioria dos estudiosos portugueses.
703
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo 10906, fl. 6 v., publicao em anexo.
704
Em nosso entender, era sinal que a famlia se encontrava integrada numa rede internacional.
705
Susana Bastos Mateus, James Nelson Novoa, De Lamego para a Toscana: o priplo do mdico Pedro
Furtado , cristos-novo portugus, Cadernos de Estudos Sefarditas, n. 5, 2005, pp. 313-338.
706
Como referido, a Dr. Susana Bastos Mateus tem vindo a estudar essas redes que se formam a partir de
Lamego. Queremos deixar aqui um agradecimento pelas conversas e informao que tem partilhado connosco.
180

INQUISIO E INTEGRAO
maior parte da informao proveniente dos longos interrogatrios feitos na
Inquisio, carece de problematizao e deve ser olhada, em certos casos, com
alguma desconfiana707.
No que tange ao testemunho de Tom Pegado de Paz, alm de nos parecer que o
cristo-novo carreou a informao para o interrogatrio que, do seu ponto de vista,
importava sua defesa pessoal e, claro est, os factos que os prprios inquisidores
estariam mais interessados em ouvir (relacionada com o Imprio Turco, as suas
armadas e estratgias708, pouco tempo depois do embate dramtico de AlccerQuibir), so detectadas, mesmo assim, primeira vista, contradies no discurso do
ru. O que ter levado os interrogadores a questionarem-no como era possvel,
somente com dezasseis anos, ser chamado por seu pai para espia e informador da
Coroa portuguesa; e se no sabia que o seu pai estava em Constantinopla, como ia
em sua busca.
A idade de Tom de Paz, na verdade, devia ser superior a dezasseis anos em
1552. Se seu pai fora para Roma por volta de 1532, no voltando mais a Portugal,
supe-se que em 1552-53 teria no menos de vinte anos. Para alm disso, tambm
no crvel que, por Joseph Nasci o ter circuncidado fora, como alega nos autos709,
fosse razo suficiente para o impedir de voltar a Portugal, como tentava demonstrar.
Em inmeras ocasies o podia ter feito e no o fez, especialmente quando ao servio
do duque de Naxos se deslocou ao Mediterrneo Ocidental. Se entrou ou no
secretamente em Portugal, no sabemos, pelo menos nenhum dos testemunhos
arrolados pela Inquisio de Lisboa o confessa.
Mas, caso necessitasse de entrar em contacto com os seus parentes, Tom Pegado
tinha uma ampla rede de informaes e contactos aos seu dispor, tutelada pelos
Nasci. Afinal, os textos insertos no seu processo sugerem que recrutava com
insistncia informadores e clientela para a Casa da grande judia e do Duque. Disso
se depreende do testemunho de Francisco Sanches. Chamado a depor disse que elle
[Tom Pegado de Paz] o agasalhou beem por ser portugues dyzendo-lhe que se algua ora
707

Cfr. Robert Rowland, New Christian, Marrano, Jew, The Jews And Expansion, 2001, p. 126.
Questionado sobre a eventualidade de o turco enviar uma armada ndia, Tom de Paz respondeu que a nica
informao que tinha era a de que os turcos se preparavam para cortar erto pas[s]o no ryo Nyllo pera poderem
pas[s]ar muitas gallees. A procura e recolha de informaes sobre o poder naval Otomano, para Portugal, era,
como se pode constatar, prioritria. ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo 10906, fl. 11 v..
709
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo 10906, fl. 7. Na sua maior parte transcrito em anexo
708

181

INQUISIO E INTEGRAO
fos[s]e a Constantinopla pregunta[s]se pela gram judia que em sua casa ho acharya e que elle
ho resgatarya e despois de seruir algum tempo ho mandaria a Portugaall como fazya a
outros[...].710
Esta confisso bastante elucidativa acerca do modo como funcionava a rede
sefardita patrocinada pelo Nasci. Uma rede de contactos, de comrcio, de
informaes, uma rede financeira que se abria entre o ndico, o Prximo Oriente e a
Europa Ocidental. Uma rede que ligava famlias como os Paz do Porto e os Nasci do
Imprio Otomano; que veiculava notcias sofregamente desejadas pelos poderes que
se digladiavam em vrios espaos estratgicos, poltica e comercialmente, como era o
caso de turcos e portugueses. Decerto que Pero Dias, o marinheiro que embarcava
em navios, que faziam o transporte de acar para Veneza, e que acompanhou Tom
Pegado nos ltimos cinco anos711 antes de este ser preso, no era uma companhia
qualquer. Se atentarmos na sua naturalidade, Ponte de Lima - Entre Douro e Minho
(onde se situavam a maior parte dos bens os Paz) - ,logo entenderemos melhor o seu
papel de intermedirio desta rede.
Ou seja, mesmo depois de alguns membros da famlia serem interrogados e
perseguidos pela Inquisio, os Paz continuavam a trilhar os caminhos das redes de
finana e do comrcio internacionais, utilizando os contactos informais e os
agentes dissimulados, de preferncia membros da esfera familiar. Tal assero
parece-nos perfeitamente aceitvel.
A famlia para a qual Tom Pegado de Paz trabalhou cerca de vinte anos, os
Nasci, tinha partido de Lisboa em direco a Londres, no ano de 1537, num navio
ingls fretado em Anturpia por Diogo Mendes, cunhado de Beatriz de Luna, que
liderava os negcios familiares. Seguiam Beatriz de Luna, a sua filha Ana; a sua irm
Brianda, uma cunhada, viva de Agostinho Micas, que, como vimos anteriormente,
fora professor de Medicina na Universidade de Lisboa, e seus filhos: Bernardo Micas
(que mudar de nome em 1554 para Samuel Nasci) e Joo Micas, mais tarde Joseph
Nasci.

710
711

Ibidem, fl. 21 v..


Ibidem, fls. 17-17 v. e 18.

182

INQUISIO E INTEGRAO
Em 1552 Beatriz parte para Istambul, passando a chamar-se Grcia Nasci e
a sua filha Reina. Acompanham-na Joo e Bernardo Micas. A famlia, detentora de
grande fortuna, projecta-se no interior do Imprio Otomano.
Grcia Nasci instala-se na capital do imprio Otomano, acompanhada de um
numeroso squito de servidores712 que, provenientes da Pennsula Ibrica, regressam
ao Judasmo. Num mundo dominado por homens, Grcia impe-se. Comea por
arrendar a cobrana dos impostos no Imprio, no tempo de Suleyman I O
Magnfico. este mesmo sulto que, em 1556, protesta junto de Paulo III, por
influncia da judia, devido represso a cristos-novos que tem lugar em Ancona.
Joseph Nasci torna-se fornecedor de vinhos do Sulto, rendeiro da dzima dos
vinhos das ilhas da Turquia, gestor da cobrana dos impostos arrecadados s
populaes crists e judaicas de todas as provncias do imprio turco, e conselheiro
do sulto para os assuntos externos713; recebe o ttulo de duque de Naxos e das sete
ilhas, casando com a sua prima Reina, numa clara tentativa de no dispersar os bens
na posse da famlia. A sua Corte em nada ficava a dever s mais prsperas e
resplandecentes do Renascimento italiano. Chegou a fundar, em Tiberades, na
Palestina, um colnia judaica.
Era muito o poder acumulado, aquele, que escorria pelas mos desta famlia
sefardita. Os seus interesses econmicos e financeiros repartiam-se um pouco por
toda a Europa: Polnia, Itlia, Ragusa, Frana, Balcs, auferindo, sem dvida, de um
lugar de destaque no seio do imprio da Sublime Porta714, que os acolhera de braos
abertos, mostrando-se bastante tolerante em relao aos judeus715. Inclusive,
Suleyman I O Magnfico tinha por seu mdico Moseh Hamon, um judeu bastante
bem conhecido de alguns cristos-novos que se encontravam na ndia, em cidades
como Cochim716, que lhe escreviam a pedir a interveno militar do imperador turco.

712

Cecil Roth, The House Of Nasi, Philadelphia, The Jewish Publication Society Of America, 1947, p. 9.
Chamamos novamente a ateno que Tom Pegado de Paz chega capital otomana, volta do mesmo ano.
713
Jos Alberto Tavim, Op. cit.
714
Temos vindo a seguir Cecil Roth, ibidem, pp. 3-38 e passim; e Jos Alberto Rodrigues da Silva Tavim,
Judeus e Cristos-novos de Cochim. pp. 203-208.
715
Cfr. Jacob Barni , Los Sefardies en el Imprio Otomano (siglos XV-XVI), Maria Antonia Bel Bravo y
outros, Dispora Sefard, Madrid, Editorial Mapfre, 1992, p. 104. Uma boa sntese sobre o Imprio Otomano,
que aborda o papel dos Nasci d-nos Halil Inalcik, The Otomanan Empire. The Classical Age 1300-1700,
London, Phoenix, 1994.
716
Jos Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Judeus e Cristos-Novos de Cochim.., pp. 211 e 215.
183

INQUISIO E INTEGRAO
Tom Pegado, que se entregara lei mosaica com o nome de Chahaom,
primeiro, e Rabi David, depois, incumbido de se deslocar Corte francesa para
arrecadar 150.000 cruzados a Carlos IX717, no ano em que os turcos cercavam Malta
(1565). As avultadas dvidas da Corte francesa aos Nasci haviam-se tornado um
assunto de Estado, incmodo nas relaes amigveis entre o Imprio Otomano e a
Frana. Joseph Nasci negoceia com o Sulto a melhor forma de cobrar o dinheiro,
prometendo parte da quantia para os cofres do Imprio.
A Casa Mendes, de que os Nasci eram legtimos herdeiros, tivera em tempos
uma sucursal no sul de Frana, em Lyon, praa financeira importante, para onde
confluam muitos capitais718. As dvidas contradas pela Coroa francesa, que se
debatia frequentemente com a falta de fundos para prosseguir as guerras contra o
Imprio Habsburgo, remontavam aos anos trinta do sculo XVI.
Joseph Nasci reclamava 150.000 ducados, os franceses recusavam saldar
tamanha dvida, considerando-se isentos, aps confiscarem os bens de judeus,
estando estes proibidos de comerciar e de viver em terras gaulesas719. A 23 de Maro
de 1565, o Sulto endereou uma carta pessoal ao rei de Frana, no por via
diplomtica, mas sim utilizando um mensageiro especial enviado pelo Almirante
Mustapha Pasha, enquanto decorria uma demonstrao de fora por parte da
armada turca no Mediterrneo Ocidental720.
neste clima diplomtico que, encarregado de se deslocar ao sul de Frana,
Tom Pegado deixa Istambul em direco a Argel, permanecendo a cerca de sete
meses espera que o Pax local lhe cedesse duas galeotas, com as quais rumaria
costa sul da Frana, acompanhado de vinte cativos franceses e de um turco que se
deslocava corte de Carlos IX numa embaixada (seria o enviado de Mustapha
Pasha?).
No regresso, com a dvida cobrada, embarcando a bordo de uma gal que
fazia a ligao entre Argel e Constantinopla, naufragou, contou Joo Fernandes
ouvido pela inquisio. Um dos cativos puxou fogo plvora transportada a bordo,
717

A parte principal do seu testemunho relata esta verdadeira odisseia que passou. Veja-se ANTT, Inquisio de
Lisboa, Processo 10906 fls. 7-8 v.
718
Sobre Lyon , enquanto praa financeira de grande importncia, Veja-se R. Ehrenberg, Le Sicle des Fugger,
prefcio de Lucien Febvre, Paris, SEVPEN, 1955, pp. 261-268.
719
Cecil Roth, ibidem, pp. 27-28.
720
Idem, ibidem, p. 31.
184

INQUISIO E INTEGRAO
fazendo o navio explodir. Tom Pegado de Paz salvou-se, mas perdeu as letras de
cobrana do dinheiro que transportava consigo, e que eram pertena dos Nasci721.
Este ter sido, ainda segundo aquele testemunho, o motivo de ruptura entre o
cristo-novo e o Duque de Naxos, levando-o a converter-se ao Islo.
A verso dos acontecimentos, relatada por Tom Pegado, difere da anterior.
Contou que o embaixador do Achem se deslocara Corte turca em busca de auxlio
naval contra os portugueses, tendo Matias Bicudo722 - um judeu de Alepo, recrutado
por Loureno Pires de Tvora embaixador em Roma no ano de 1559 - vindo do Cairo
para Constantinopla, no intuito de saber notcias sobre as gals que o Sulto
pretendia lanar no ndico. Joseph Nasci, apercebendo-se que Bicudo estava ao
servio dos portugueses, envia Tom no seu encalo. Segundo o testemunho do filho
de Duarte de Paz, ele prprio alertou Matias Bicudo em Alepo, quando este tentava
alcanar Ormuz, aconselhando-o a desviar caminho para no ser detido723.
Na discrepncia entre os dois relatos, o de Tom Pegado de Paz e o de Joo
Fernandes, entroncam as nossas dvidas. Quem ter razo? Seria a confisso de
Tom arquitectada, com o fito de ser libertado, ao demonstrar que sempre estivera
do lado dos portugueses, e explicando porque se tornara turco?
Vivia-se uma poca de acalorada luta entre imprios, pela posse de pontos
estratgicos, pela supremacia naval, pelo controlo do comrcio oriental. Tanto no
Golfo Prsico, como no ndico ou no Mediterrneo, chocavam-se os interesses dos
Otomanos com os de Habsburgos e Portugueses. A questo de Baor estava em
suspenso, ocupando os interesses da diplomacia lusa; muita especiaria aflua ao
Levante; o poder naval turco crescia no mar interior; as hostes de janzaros
avanavam, subiam os Balcs e deslocavam-se em direco ao Ocidente, cercando
Viena de ustria. Todas estas preocupaes levaram Portugal a montar uma rede de
informaes, sobre o turco e a ndia, no tempo de D. Joo III e de D.Sebastio724.

721

Inquisio Processo 10906, fl. 19 v..


Sobrinho de Isaac Bicudo, que passava informaes sobre o turco via Veneza e Roma Corte portuguesa e ao
vice-rei da ndia. Vide Maria do Rosrio de Sampaio Themudo Barata de Azevedo Cruz, Os Diplomatas
Portugueses em Roma No Sculo XVI e as Informaes Acerca do Turco e da ndia, separata de Portugaliae
Historica, 2 Srie, Vol. I, 1991, pp. 105 e ss.; e Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Judeus, Cristos Novos e
os Descobrimentos Portugueses, Sefarad XLVIII 2 (1988), pp. 296-297.
723
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo 10906, fl. 8.
724
Vide Maria do Rosrio de Sampaio Themudo Barata de Azevedo Cruz, Op. cit., p. 103 e passim.
722

185

INQUISIO E INTEGRAO
Como j havia acontecido inmeras vezes, a pedra angular deste servio de
informaes eram os judeus e cristos-novos - que estavam bem posicionados no
terreno, em lugares estratgicos, para obteno de informao725 - muitos deles
anteriormente baptizados, mas que perseguidos pelas Inquisies, espanhola e
portuguesa, tinham regressado ao judasmo e ao Mediterrneo726, atrados pelas
novas oportunidades que se abriam no Levante.
Quer isto dizer que a comunidade sefardita, particularmente aquela que vivia
sob o domnio turco, estava dividida internamente, cindida por diferentes interesses.
Aqui temos uma possvel explicao para os cismas que se sucediam entre as
diversas faces e grupos. Da mesma forma, nesse sentido, poderemos encontrar
uma outra justificao para a converso ao islamismo, e o emprstimo de servios ao
inimigo, por parte de alguns membros das comunidades sefarditas que estavam no
Oriente.
O caso de Duarte de Paz bem exemplificativo, tal como os judeus de Alepo,
que vendiam segredos Coroa portuguesa e constituam o n central das
informaes que seguiam para Ocidente. Todavia, outro factor se antepunha
frequentemente na mudana de campo: as alteraes da conjuntura interna nos
espaos polticos em que esses vultos viviam.
Pouco antes de ser deportado para Portugal, como escravo de uma gal, Tom
Pegado de Paz acabara de fazer um percurso muito prprio dos elementos destes
grupos. Inicialmente aceitara o judasmo; em seguida adoptara o islamismo como sua
f, explicando que tornar-se muulmano lhe trazia vantagens, libertando-o do
cativeiro onde estivera dois anos, segundo a sua confisso, devido a uma dvida que
ficara por solver a Joseph Nasci727. Finalmente, regressou novamente ao judasmo728,
sendo nessa condio preso em Florena.
De tudo se pode retirar o seguinte, como nos sugere Jos Alberto Tavim: os
judeus e cristos-novos eram peas importantes, e at decisivas, no jogo de interesses

725

Os judeus encontravam-se, no sculo XVI, entre os que estavam na posse de informao por via do comrcio.
Cfr. Peter Burke, A social History of Knowledge, Cambridge, Polity Press, 2000, pp. 155-156.
726
Nesta idade de viragem o judasmo, segundo o Professor Jos Augusto Ramos, privilegiou o Mediterrneo.
Vide Jos Augusto Ramos, Judasmo e Mediterrneo., Op. cit. p. 77.
727
ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo 10906, fl. 8.
728
Ibidem, segundo testemunho de Antnio Nunes, fl. 21.
186

INQUISIO E INTEGRAO
entre Estados e imprios, na espionagem, na luta obscura em torno da supremacia no
Mediterrneo, no subcontinente indiano e no ndico729.
Tom Pegado de Paz, inicialmente espio e servidor do duque de Naxos,
ponte entre famlias sefarditas, um bom exemplo que se nos oferece de um cristonovo, (re) convertido ao judasmo, que viveu uma parte importante da sua vida no
interior dessa realidade, complexa e difusa, que eram as redes de informao, de
espionagem e comrcio, em meados do sculo XVI, no mar Mediterrneo, dominadas
por sefarditas.
H, nas andanas do neto de mestre Joo, algo de semelhante aos relatos de
outros portugueses que se haviam espalhado por rotas e caminhos, regies e espaos
longnquos do mundo, aps a abertura planetria propiciada pelas navegaes dos
sculos XV e XVI.
A aventura de Tom Pegado de Paz, homem alto de corpo, barba preta e rosto
cheio730, percorrendo terras recnditas e remotas, casando e vivendo com mulheres
locais, constituindo famlia mestia, falando e aprendendo vrias lnguas,
professando vrias religies, integrando-se na vida, na cultura, nos modos de ser
locais, deixando-se prender pelas vivncias dos indgenas, tal como fizeram Pero da
Covilh no sculo XV e Ferno Mendes Pinto no sculo XVI, dois exemplos maiores
dessa vida diletante e peregrina, configura uma odisseia repleta de aventuras,
contactos culturais e vicissitudes.
Mas o caso de Tom de Paz difere, em parte, dos dois exemplos anteriores.
Desde logo, porque era filho de um cristo-novo. Acontece que os descendentes de
judeus convertidos eram objecto de vrias formas de discriminao por causa da sua
impureza de sangue, e olhados com desconfiana em matria de f731. Como notou
Antnio Jos Saraiva732, os cristos-novos procuravam iludir as normas vigentes,
tentando escapar discriminao. Como? Mudando de nome, utilizando o dinheiro e
o casamento, transferindo os bens e a famlia de lugar e regio, quando necessrio.
As razes de Tom Pegado de Paz encontravam-se numa conhecida famlia de
mercadores cristos-novos residente no Porto, que em meados do sculo XV tinham
729

Jos Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Op. cit. p. 215.


ANTT, Inquisio de Lisboa 10906, testemunho de Antnio Nunes, fl. 26 v..
731
Isto mesmo defende Robert Rowland, o que nos parece bastante consensual. Vide Op. cit., loc. cit.
732
Antnio Jos Saraiva, Inquisio e Cristos-Novos, 5 edio revista e ampliada, Lisboa, Editorial Estampa,
1985, p. 25.
730

187

INQUISIO E INTEGRAO
vindo para Portugal, fugindo Inquisio espanhola. A famlia acabou por se
converter ao cristianismo permanecendo em territrio lusitano. Os negcios
familiares passavam, sobretudo, pelas alfndegas e importao de produtos.
Constam do Livro de Juros da Misericrdia do Porto, registos com data de
1586/87 de tenas a cobrar a particulares por Antnio de Paz, que est em Madrid
como representante da Santa Casa. O antropnimo sugere tratar-se de um parente,
se no mesmo de um neto, de Antnio de Paz, sobrinho de mestre Joo. E, pelas
relaes que a famlia tinha com a instituio, no nos pode admirar este parentesco.
Para situaes que exigiam perseverana, Antnio de Paz actuava em Madrid ao
servio da Misericrdia: cobrando dvidas, recolhendo fundos, tratando do
patrimnio imobilirio da instituio.733
Outros indivduos com o nome Paz so citados por C. Boyjian, como estando
infiltrados nas redes comerciais internacionais na Holanda e noutros locais de grande
actividade comercial, no incio do Sculo XVII. Alguns naturais do Porto734. Por
enquanto ainda no se encontraram quaisquer conexes com a famlia Paz.
Estamos numa conjuntura dominada pelas feiras Castela e de Lisboa, emergindo
o fluxo e os refluxos de metais preciosos, as trocas ordinrias e extraordinrias dos
asientos. A atmosfera de especulao financeira paira sobre Madrid. A partir de 1597,
Bordus fecha as suas portas aos portugueses, so na sua grande maioria cristosnovos, com os espanhis a desempenharem um papel muito activo nas praas
financeiras de Castela735.
Outros Paz, do Porto, distinguiram-se no mundo mercantil, certamente com
ascendncia na famlia de mestre Joo de Paz. lvaro de Azevedo, nascido por volta
de 1582 em Caminha, tinha como seu pai Miguel Rodrigues de Azevedo, sendo a
me Joana de Paz736. Os avs maternos eram Jorge Lus e Violante de Paz737, o que
733

Vide A. Magalhes de Basto, Histria da Santa Casa..., Vol. II, pp. 29-32.
Veja-se James C. Boyjian, New Christians anda Jews in the Sugar Trade, 1550-1750: Two Centuries of
Development of Atlantic Economy, The Jews And The Expansion of Europe to the West 1450-1800... pp. 484.
735
Temos vindo a seguir J. Gentil da Silva, Stratgie des Affaires Lisbonne entre 1595 et 1607. Lettres
Marchandes des Rodrigues dEvora et Veiga, Paris, SEVPEN, 1956, pp. 5-11.
736
Florbela Veiga Frade, As Relaes Econmicas e Sociais das Comunidades Sefarditas Portuguesas. O Trato
e a Famlia 1532-1632, Lisboa, Dissertao de Doutoramento em Histria Moderna, realizada sob orientao
cientfica do professor doutor A.A. Marques de Almeida, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras,
Departamento de Histria, 2006, pp. 303-311.
737
Agradecemos Dr. Florbela o estimulante dilogo sobre as razes das nossas famlias estudadas. Por
enquanto ainda no se encontrou um elo de ligao, que por certo existir. Repara-se que, segundo a Dr.
Florbela, esta Violante de Paz residira na rua de Belmonte. Ora nessa rua moravam muitos elementos da famlia
734

188

INQUISIO E INTEGRAO
nos faz pensar que estamos perante um tronco familiar de Duarte de Paz. Os locais
de nascimento e residncia so os mesmos; e similares so os nomes e a actividade,
mercantil e financeira, o que denota uma longa, muito longa tradio familiar em
funes de trato geradoras de riqueza.

de mestre Joo e Duarte de Paz.


189

INQUISIO E INTEGRAO

190

CONCLUSO

CONCLUSO

191

CONCLUSO

192

CONCLUSO
Na segunda metade do sculo XV cruza a fronteira portuguesa, vinda de Castela,
uma famlia de judeus. Inicialmente estabelecem-se em terras do Duque de Bragana.
em Guimares que residem at cerca de 1515. Entretanto, as condies de
desenvolvimento comercial e financeiro levam o ncleo central da famlia a ir viver
para o Porto em meados da segunda dcada do sculo XVI, onde os seus membros se
vo associar s famlias mais influentes do burgo.
Os genealogistas passaram ao registo escrito, ao longo do Sculo XVII, o que ia
correndo oralmente: houve em tempos uma distinta famlia de cristos novos, de
nome Paz, que viveu no Entre Douro e Minho e se estabeleceu no Porto, muito
dedicada ao comrcio, rica, influente, cujos membros se foram distinguindo do resto
sociedade como elite, alguns cavaleiros, inclusive, dela descenderam. O essencial da
vontade de certos elementos da famlia, preocupados com a memria e identidade do
grupo, estava alcanado. A informao veiculada pelos nobilirios foi passando de
gerao em gerao, e os Paz acabariam por sobreviver ao anonimato.
Parece por demais evidente que a famlia Paz temia a vinda da Inquisio; em
segundo lugar, refira-se o protagonismo que a famlia, e os seus membros,
desfrutavam entre os cristos-novos/sefarditas; em terceiro lugar, o cargo que
Duarte de Paz desempenhar em Roma, como procurador dos cristos-novos,
prova inabalvel que a famlia se encontrava inserida nas redes de comrcio
internacional, dominadas pela elite financeira sefardita, e que assentavam numa
estrutura muito particular, em torno da repartio dos membros das vrias famlias
situados em pontos estratgicos, de forte fluxo de matrias e capitais.
Ser mera casualidade Duarte de Paz receber da mo do banqueiro Diogo
Mendes e da sua cunhada, viva de seu irmo Francisco, fundos para defender a
causa dos conversos em Roma? E que dizer da partida de Tom Pegado de Paz para
a Turquia, precisamente no mesmo ano, 1552, em que Grcia Nasci para a se
desloca? Porventura, as ligaes entre os Paz e os Nasci, so muito mais profundas
do que primeira vista possam parecer. No esqueamos que o centro de gravidade
do comrcio europeu se deslocara para o Mediterrneo Oriental, e os Nasci
dominam, a partir do interior do Imprio Otomano, uma ampla rede que se estendia
ao Oriente . As razes aduzidas por Tom Pegado de Paz, de que fora ter com o pai a
mandado de seu tio , Diogo de Paz, escondem outros intentos, por parte da famlia de
193

CONCLUSO
mestre Joo. Repare-se que os caminhos a seguir, para ir para Constantinopla e os
contactos a travar, eram excepcionalmente bem conhecidos para quem vivia no Porto
e participava em obras de caridade na Misericrdia local. Isto , mesmo depois de
alguns membros da famlia serem interrogados pela Inquisio caso de Antnio de
Paz

e de Ferno Lopes os Paz continuavam a trilhar os caminhos das redes

sefarditas internacionais. Parece-nos bvio. Para Cochim fora, entretanto, Toms


Martins, um Paz, filho de mestre Joo, que em tempos exercera o cargo de cirurgio
do duque de Bragana .
Quem nunca mais voltar Duarte de Paz, que do imprio Turco, lugar que
escolheu para viver aps ser substitudo na Cria Papal por outro cristo-novo,
continua, num perigoso jogo duplo, tal como antes a partir de Roma, enviando cartas
a D. Joo III, denunciando indivduos da sua nao, quem sabe se na esperana de
um dia regressar. O seu filho Tom, ao servio do duque de Naxos, Joseph Nasci,
grande senhor do Imprio Turco, deambula pelo Mediterrneo, inserido nas redes
comerciais sefarditas e nas redes de espionagem . At que um dia ser preso em
Itlia, e enviado numa gal, para em Lisboa, onde cai directamente nas malhas do
Santo Ofcio. Decorria o ano de 1578. O ano da batalha de Alccer-Quibir. O ano em
que cai por terra, no campo de batalha marroquino, um rei portugus (D. Sebastio),
e com ele o sonho de um grandioso Imprio no Norte de frica.
Esta famlia de cristos-novos, que escapou sanha investigadora de I. S. Rvah,
s anlises minuciosas da professora Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, e aos muitos
trabalhos que tm sido publicados sobre judeus, cristos-novos, os homens de trato e
a Inquisio, teve afinal um papel activo, e at decisivo, durante mais de um sculo,
quer na sociedade portuguesa, quer nos acontecimentos que envolveram os cristosnovos. E se quisermos ser justos, na anlise dos acontecimentos que rodearam a
existncia desta famlia, os Paz tm um protagonismo invulgar na sociedade
portuguesa de quinhentos. de referir, que duas das figuras emblemticas do
marranismo do sculo XVII entroncam nas origens familiares dos Paz: Manuel
Fernandes Vila Real e Antnio Henriques Gomes738.
A vinda da Inquisio marcou indelevelmente esta famlia. Desde logo, porque
um dos seus membros, procurador dos cristos-novos, um dos maiores
738

Vide a rvore in Rvah, I.S. Antnio Henriquez Gomez, Paris, Chandeigne, 2003, pp. 207-209.

194

CONCLUSO
protagonistas no duelo que se trava em Roma entre os enviados de D. Joo III e os
cristos-novos; depois porque alguns dos seus membros foram apanhados nas
malhas dos vrios tribunais que se estabeleceram em Portugal.
Em resumo, os Paz, que foram uma das mais importantes famlias de
mercadores cristos-novos a viver em Portugal no sculo XVI, haveriam de
sobreviver socialmente s garras da Inquisio, mas com pesados custos, pois foram
perdendo progressivamente a sua influncia social, econmica, poltica e cultural.
Porm, o nome Paz haveria de atravessar os sculos, sempre associado ao Santo
Ofcio e perseguio religiosa dos cristos-novos, que ocorreu em Portugal entre os
sculos XVI e XVIII.

195

CONCLUSO

196

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES E BIBLIOGRAFIA

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes
1. Documentao Manuscrita

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Chancelaria de D. Afonso V, Livros- 26,33.

Chancelaria de D. Joo II, Livros -2, 3, 6, 8, 10, 13,24, 25.

Chancelaria de D. Manuel I, Livros 1, 11, 12, 13, 14,15, 16, 17, 18, 23, 25,
27,28,30, 31,32, 35, 36, 37, 39, 42, 44, 52.

Chancelaria de D. Joo III Livros- 2, 7, 8,11, 13, 16, 17, 18, 24, 36, 48, 52.

Corpo Cronolgico - Parte II, Mao 109; Parte III, Maos 2, 49, 73.

Inquisio, Conselho Geral - cdice 90 e 303.

Inquisio, Processos, Coimbra Mao 13 Processo n. 140; n. 2327, n. 3934,


n. 4823, n. 4891, n. 5838, n. 6253, n. 9821, n. 9169.

Inquisio, Processos, Lisboa n. 3225, n. 10906. n. 12944.

Ncleo Antigo, Casa da Coroa, Livro do Registo das Sentenas, n. 559.

Ncleo Antigo, Comarca Entre Douro e Minho n. 110, n. 525.


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Arquivo Histrico das Alfndegas Portuguesas

Livro do registo geral da Alfndega de Vila do Conde

Cdice 115 A - Cpia de assentos de livros de registo geral da Alfndega de


Lisboa

Arquivo da Casa de Bragana

Doaes, Tomo 2, Mao 3/ N. Geral 3.

Contratos, Maos 1-28.

Arquivo Municipal Alfredo Pimenta

Fundo da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira Testamentos e Doaes do


Cabido, Tomo II Cota C 1386.

Vereaes e Acrdos da Vila de Guimares, Livro n. 1.


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Arquivo Distrital do Porto

Convento de S. Francisco Documentos: Tomo 2 dos Ttulos e das Capelas e


Legados; Livro dos Legados.

Convento de S. Bento da Vitria, Livro das Compras e vendas de Casas.

Contadoria livros 20, 21 e 22.

Arquivo Histrico Municipal do Porto

Livro das provises n. 17 A


Livro das vereaes A PUB 18
Livro das Vereaes A PUB 23
Livro das Vereaes A PUB 25

Biblioteca da Ajuda

Cdice 47-XIII-18.
201

FONTES E BIBLIOGRAFIA
Cdice 50 IV 8.

Cdice 50 V 18.

Cdice 50 V 19.

Cdice 50 V 9.

Biblioteca Nacional de Lisboa

Provncia dantre Douro e Minho copolida por mestre Antnio, fsico e sorgiam
morador na villa de Guimares e natural della, Cdice 245.

PBA (Pombalina) 393-394.

Maos, Fundo Geral n. 10645.

Maos, Caixa 4, N. 20.

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739

Ou que incluem anlises importantes sobre a famlia.


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