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O poder polarizado: o mestre da f apostlica na ekklesia ortodoxa a

partir do Contra as Heresias de Ireneu de Lio
Ludimila Caliman Campos
Universidade Federal do Esprito Santo

Resumo: O presente artigo tem como objetivo abordar a dinmica de poder estabelecida
na ekklesia do sculo II, mais especificamente as congregaes ocidentais. Para isso,
utilizamos os livros que compem a obra Contra as Heresias escrita por Ireneu de Lio os
quais revelam os combates entre as heresias e a dita ortodoxia, sendo que esta,
representada pelos bispos, buscava se legitimar como uma instituio catlica e apostlica,
com um poder centralizado em Roma.
Palavras-chave: Imprio Romano; Igreja; Ireneu de Lio.

The power polarized: the master of the apostolic faith in the

"orthodox" ekklesia from the Against Heresies of Irenaeus of Lyon
Abstract: This article intents to talk about the power dynamics established in the ekklesia
of the second century, more specifically the Western congregations. For this, we use the
books that compound the work Against Heresies wrote by Irenaeus of Lyons, which reveal
the fighting between the "heresies" and the so-called "orthodoxy", represented by the
bishops, the latter sought to legitimize itself as an institution catholic and apostolic, with a
centralized power in Rome.
Keywords: Roman Empire, Church, Irenaeus of Lyons.

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Ireneu de Lio foi uma figura de destaque na segunda metade do sculo II.
Influenciado por tradies advindas dos cristianismos da sia Menor, da Sria-Palestina, de
Roma e das Glias, manifestou muito de suas aspiraes e ideais na obra Contra as heresias,
ao refutar as heresias pela legitimao da doutrina crist ortodoxa (GRANT, 1997).
Esse tratado escrito por Ireneu composto de cinco livros tambm comumente
intitulado como Refutao da falsa gnose, pois se ocupa em atacar o movimento gnstico
cristo do segundo sculo.
A palavra gnose (gnsis) um vocbulo grego que designa conhecimento, mais
especificamente um conhecimento metafsico ou espiritual. O cognome gnstico
um tanto genrico quando se trata dos integrantes das seitas crists, porque o
gnosticismo abarca diversas tendncias, mas foi utilizado pelos lderes eclesisticos, como
Ireneu, para categorizar diversos herticos. O gnosticismo cristo seria um sistema
filosfico-religioso, originrio da sia Menor entre os anos 80 e 150, o qual reporta a
diversas tradies religiosas e filosficas antigas, em especial cincia sagrada do Egito
(hermetismo), ao dualismo persa, filosofia grega (em especial neoplatnica), assim como
ao cristianismo e ao judasmo.119
Sendo a gnose crist um conhecimento espiritual de um ser humano divinamente
inspirado, em geral os gnsticos apregoavam possuir uma gnose que transcendia da
ekklesia, por responder a inquietantes perguntas, tais como: de onde o mal surgiu?, qual
a origem do cosmos? e como o homem se libertaria do diabo? (CHADWICK, 1967).
A base do sistema gnstico era dualista: o bem e o mal se digladiavam constantemente.
Segundo o gnesis gnstico, um Deus supremo havia dado origem ao cosmos e aos
espritos (es) por meio de emanao. No entanto, os es, ao quebrarem o Pleroma (a
comunho entre Deus e os es), afastaram-se de sua origem divina ao se unirem matria,
prpria do reino do mal. Assim, o mundo visvel teria surgido por meio da obra do
Demiurgo (o Criador), identificado como Jeov, o Deus do Antigo Testamento, ou mesmo
como um on decado. Na histria da salvao, Jesus Cristo teria sido um ser espiritual
(on) que assumiu um corpo aparente em Jesus de Nazar. Ele havia sido encarregado de
transmitir a verdadeira gnosis aos homens, ensinando-lhes o modo de se separar da matria e
de retornar ao mundo luminoso de Deus.

Quase todos os temas mitolgicos e escatolgicos abordados nos escritos gnsticos cristos remontam a
antigas tradies no-crists como da Antiga Persia, da ndia, da Grcia, do Egito e at da China.
119

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Desde a descoberta dos 52 tratados gnsticos de Nag Hammadi no Alto Egito

entre os anos de 1945 e 1946, uma profcua pesquisa tem se desenvolvido sobre o
proeminente movimento gnstico.120 Entretanto, ainda h algumas incgnitas com relao
aos gnsticos, em especial no que diz respeito s suas prticas cultuais.
Segundo Elaine Pagels (2006), todas as seitas gnsticas eram dotadas de uma
cerimnia de iniciao. Tal rito possibilitava uma transposio da pistis (f) para a gnosis
(conhecimento), visto que, se a verdadeira natureza do homem era divina, o ser humano
deveria voltar essncia da divindade libertando-se da materialidade. No incio da reunio
gnstica entre os iniciados, os membros tiravam a sorte para descobrir sua funo dentro
da cerimnia, pois criam que, se Deus governava todo o universo, tirar a sorte deveria
exprimir a sua vontade. Quem fosse sorteado no dia poderia ser o bispo; outro, o profeta;
outro, o mestre; e assim sucessivamente. Ento, em vez de classificarem os membros em
ordens hierrquicas, superiores e inferiores, eles seguiam o princpio de igualdade
absoluta na comunidade, inclusive igualdade de gnero em alguns crculos gnsticos.
Ao falar sobre o objeto de sua obra, Ireneu coloca-o nos seguintes termos a seu
amigo:
E, assim, ao responder ao teu desejo, j antigo, de conhecer as
doutrinas deles [dos gnsticos], no somente nos esforamos
para to manifestar, mas tambm para demonstrar sua falsidade.
Assim tu, tambm, esforar-te-s por ajudar os outros, conforme a graa que te foi concedida pelo Senhor, de forma que
os homens j no se deixem induzir ao erro pela doutrina capciosa deles (Cont. Her. Pref. 3).

Os textos de Nag Hammadi esto divididos em cdices escritos em copta, na sua maioria, embora todos
os trabalhos sejam tradues do grego. Tais cdices esto organizados em 13 sees. Codex I: A orao do
apstolo Paulo; Apcrifo de Tiago; O Evangelho da Verdade; Tratado sobre a ressurreio; e Tratado tripartite. Codex II:
Apcrifo de Joo; Evangelho de Tom; Evangelho de Filipe; Hipstase dos Arcontes; Sobre a origem do mundo; Exegese da
alma; e Livro de Tom, o adversrio. Codex III: Apcrifo de Joo; Livro Sagrado do Grande Esprito Invisvel; Eugnostos, o
abenoado; Sophia de Jesus Cristo; e Dilogo do Salvador. Codex IV: Apcrifo de Joo; e Livro Sagrado do Grande Esprito
Invisvel. Codex V: Eugnostos, o abenoado; Apocalipse copta de Paulo; Primeiro Apocalipse de Tiago; Segundo Apocalipse de
Tiago; e Apocalipse de Ado. Codex VI: Atos de Pedro e os 12 apstolos; O Trovo, Mente Perfeita; Ensinamentos
autorizados; O conceito de nosso grande poder; A Repblica de Plato (verso alterada com conceitos gnsticos);
Discurso sobre a Ogdade e a Enade; Prece de ao de graas; e Asclpio 21-29. Codex VII: Parfrase de Sem; Segundo
tratado do grande Sete; Apocalipse gnstico de Pedro; Ensinamentos de Silvano; e As trs estelas de Sete. Codex VIII:
Zostrianos; e Carta de Pedro a Felipe. Codex IX: Melquisedeque; O pensamento de Norea; e Testemunho da verdade. Codex
X: Marsanes. Codex XI: Interpretao do conhecimento; Exposio Valentiana; Algenes; e Hypsiphrone. Codex XII:
Sentenas de Sexto; O Evangelho da Verdade; e Fragmentos. Codex XIII: Protenia trimrfica; e Sobre a origem do mundo
(MEYER, 1984).
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a partir desse trecho que Ireneu inicia sua explanao da doutrina gnstica. Sabese que Ireneu teve contato direto no somente com alguns gnsticos, mas tambm com
algumas de suas obras que se encontram nos Cdices de Nag Hammadi. Ireneu afirma:121
Os valentinianos, indo alm de todo pudor e publicando seus
prprios escritos, gloriam-se de ter mais evangelhos do que ns
e tiveram a grande ousadia de intitular Evangelho da verdade
a um seu escrito recente que completamente diferente dos
evangelhos dos apstolos, de tal forma que entre eles, sequer o
Evangelho est isento de ser blasfemado (Cont. Her. III, 11:9).

A preocupao de Ireneu com os cristos gnsticos est, entre outros motivos, no

fato de que eles, ao rejeitarem a matria, desprezavam qualquer tipo de autoridade,
instituio e tradio terrena, pois criam que o autoconhecimento era suficiente. Foi
nesse debate que Ireneu empreendeu uma exaltao da figura do bispo e do presbtero com
veemncia mpar. Nesse sentido, observa-se o seguinte argumento: preciso, portanto,
afastar-se de todos os homens desta espcie e aderir aos que, como dissemos, guardam a
doutrina dos apstolos e, com a ordem sacerdotal, oferecem palavra s e conduta
irrepreensvel [...] (Cont. Her. IV, 26:4, grifo nosso).
Um dos maiores esforos do bispo Ireneu est em qualificar essa ordem sacerdotal,
qual remete a hierarquia eclesistica. Entretanto, apesar de Incio de Antioquia, no incio
do sculo II, ter estabelecido uma clara diferenciao entre os ofcios de bispo e de
presbtero, Ireneu de Lio no apresenta, pelo menos aparentemente, a identidade dos
presbteros e dos bispos como figuras singulares.
De modo a sanar as dificuldades referentes identificao do ofcio episcopal nos
escritos de Ireneu, foi realizado um levantamento sistemtico de todas as ocorrncias dos
termos bispo e presbtero nos cinco livros da obra Contra as heresias e foi criado um
esquema analtico-quantitativo, expresso em dois quadros comparativos, compostos por
seis itens cada, trazendo a incidncia das duas palavras na documentao, como se v a
seguir:

O bispo de Lio cita diversas seitas gnsticas e alguns de seus lderes fundadores, a saber: valentinianismo
(Valentim); basilidianismo (Baslides); marcionismo (Marcio); saturnionismo (Saturnino); carpocracianismo
(Carpcrates); cerintianismo (Cerinto); simoniasmo (Simo, o Mago); melquisedequismo (Tedoto);
bardesianismo (Bardsanes); nicolasmo (Nicolau); elcasasmo (Elkasai); e ainda ebionismo; Cerdo, Tolomeu,
Herclio, Menandro.
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Presbtero

presbyteros
Oposito

Transmisso

Sucessor r

r
Livro

dos

da

apstolo
s

tradio

Companheir
o

aos

Encarg

dos

herege
s

Administrad

apstolos

Titulao

or

de

da

algum

Ekklesia

II

III

IV

Bispo

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tradio

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Ekklesia
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II

III

IV

Ao todo, o levantamento apresentou um total de 20 referncias ao termo bispo

(epscopos) e de 23 menes do vocbulo presbtero (presbyteros), descontadas as
ocorrncias em que a palavra presbtero se referia ao sacerdote judeu na figura do ancio
mais relacionado ao termo ancio (seniores), mas tambm identificado por presbtero
(presbyteros).122
No que concerne primeira relao, observa-se que o presbtero era encarregado,
acima de tudo, de transmitir a tradio na figura de um mestre e/ou de um ancio aos
moldes judaicos. Os presbteros tiveram uma grande atribuio na fala de Ireneu, pois,
como mestres/ancios, eles simbolizavam a ancestralidade, a legitimidade e a antiguidade
das comunidades ortodoxas, como garantia de fidedignidade doutrinria. Associado
qualidade de reprodutor da memria eclesistica, o presbtero era tido como sucessor dos
apstolos. O presbtero era a prova cabal de que a ekklesia estava alicerada na doutrina
verdadeira, assim como era a garantia contra qualquer heresia, j que seus lderes eram
herdeiros diretos da fonte da verdade, sendo, portanto, dignos de confiana.
O Livro IV, curiosamente, traz oito vezes o termo presbtero e, em todas as
incidncias, ele est relacionado a uma titulao. Neste Livro, de modo mais especfico,
Ireneu se prope a contar alguns ensinamentos de certo presbtero, sucessor direto dos
apstolos, que havia testemunhado em pessoa, mas sem identific-lo. No entanto, sabe-se
que tal presbtero era o bispo Policarpo, lder da congregao de Esmirna, com quem
Ireneu teve contato durante sua juventude. Possivelmente, foi ele o seu incentivador para as

Segundo Pagels (2006), no discurso da fonte, os presbteros so mais citados do que os bispos, haja vista
que o objetivo do autor era combater as heresias que, por muitas vezes, incitavam o furor dos ortodoxos
ao se auto-intitularem originrias dos apstolos e detentoras dos evangelhos inspirados. Ao citar a autoridade
dos presbteros, estar-se-ia remetendo a uma autoridade alicerada na tradio, na verdadeira origem.
122

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misses nas Glias.123 Ao intitular Policarpo como presbtero, Ireneu aplica o termo a um
lder da ekklesia, delegando a ele um determinado atributo e uma autoridade. Como para
Ireneu o que assegurava a doutrina verdadeira era a sucesso do ensino empreendida pelos
presbteros, guardies dos ensinos dos apstolos, o bispo de Lio resgata a figura de
Policarpo, titulando-o como tal, a fim de estabelecer um elo entre Cristo e si mesmo,
validando, assim, seu prprio discurso (GRANT, 1986).
Entretanto, Ireneu tambm se refere a Policarpo afirmando que este foi
estabelecido bispo na sia, na ekklesia de Esmirna (Cont. Her. III, 3:4). Diferentemente do
presbiterado, o episcopado era um cargo, uma ocupao, uma funo a ser desempenhada.
Ireneu designou o bispo como herdeiro da tradio dos apstolos (traditio ab apostolis), mas
tambm o incumbiu de governar a comunidade local e de preservar o ensino. Quando o
bispo designado um sucessor, o episcopado torna-se mais do que um ofcio simblico,
torna-se um cargo ocupado por uma determinada autoridade.
O bispo aparece como um oficial administrativo, um ministro responsvel pelas
questes da prxis comunitria. Ireneu traz uma linha sucessria episcopal de trs
comunidades com as quais o bispo manteve um relativo contato: Esmirna, criada pelo
apstolo Joo, que foi sucedido por Policarpo; feso, estabelecida por Paulo; e Roma,
fundada por Pedro e Paulo, qual Ireneu dedica ateno especial.
Em Ireneu, o bispo valida, a todo o momento, o decreto de nomeao, pelo qual seus
atos so considerados legtimos, dado ao fato de ele pertencer a uma linha de sucesso
apostlica (banco de capital simblico, conforme Bourdieu). Contudo, para Ireneu, o bispo
no era autorizado a contradizer nem a acrescentar nada que pudesse ser danoso aos
ditames da tradio da ekklesia, conforme se pode verificar a seguir:
Poderamos enumerar aqui os bispos que foram estabelecidos
nas ekklesiae pelos apstolos e os seus sucessores at ns; e eles
nunca ensinaram e conheceram nada que se parecesse com o
que essa gente vai delirando. [Os apstolos] queriam que os
seus sucessores, aos quais transmitiam a misso de ensinar,
fossem absolutamente perfeitos e irrepreensveis em tudo,
porque, agindo bem, seriam de grande utilidade, ao passo que

Vale lembrar que Incio de Antioquia tambm se relacionou com Policarpo de Esmirna, escrevendo-lhe
uma carta.
123

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se falhassem seria a maior calamidade (Cont. Her. III, 3:1). 124

A utilizao dos termos aparece de forma associada no acoplamento bispopresbtero, algo muito semelhante ao pensamento paulino que estabeleceu uma relao
entre o cargo e a dignidade. Entretanto, diferentemente de Paulo, Ireneu no associa o
ofcio presbiteral a um conselho eclesistico, mas o une de forma substancial funo de
epscopo, muito mais prxima da dinmica do episcopado monrquico.
Se o episcopado um cargo e o presbiterado um ttulo, os ofcios coligados
(bispo-presbtero) tm uma funo bsica: transmitir a doutrina verdadeira (tradio)
advinda dos apstolos pela dominao do monoplio da verdade (cnone).

125

Sob a

perspectiva terica de Douglas (1998), Ireneu recorre a um modelo ancestral: a memria

eclesistica, preservada pelo bispo-presbtero (sucesso), a fim de legitimar a doutrina
dentro de uma instituio denominada ekklesia. Portanto, os trs pilares da ekklesia em
Ireneu seriam: a tradio, a sucesso e o cnone.
De forma distinta da tradio gnstica, dita como secreta, a tradio ortodoxa era
um depsito do ensino sagrado dos apstolos, dos profetas e de Moiss. Sagrada e
inviolvel, essa tradio do grego diadoche era transmissvel por meio da sucesso
apostlica como garantia da no distoro da doutrina e da veracidade das ekklesiae
ortodoxa. 126 A tradio era um importante arcabouo para a manuteno de um ideal de
sucesso apostlica, entendendo que, mesmo os hierarcas, partcipes dessa linhagem, no
tinham a liberdade de ir alm daquilo que essa tradio indicasse (CASEY, 2003). A
manipulao da memria se estabeleceu por meio da transmisso do ensino
operacionalizada pela sucesso dos bispos. A sucesso do grego paradosis , em si,
importante porque demonstra um ligao ininterrupta dos bispos do tempo de Ireneu com
a doutrina e com a autoridade dos apstolos, prova da integridade e da veracidade da
ekklesia. 127 Assim, Ireneu declara que, enquanto a ekklesia podia demonstrar isso por meio
de seus bispos, os gnsticos no podiam.

Aqui fica implcito que seria possvel uma pessoa atuar como bispo da ekklesia ortodoxa e, ainda assim,
falhar como tal.
125 O ensino da doutrina dos apstolos pelos epscopos se operacionalizava por meio de trs fatores: a
herana, o estudo e a reproduo.
126 As listas de sucesso apostlica apresentadas por Ireneu foram, provavelmente, extradas dos escritos de
Hegsipo.
127 A importncia da tradio e da sucesso no cristianismo um reflexo do judasmo e da educao filosfica
e helenstica da Antiguidade, que buscavam preservar ambos.
124

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Em segundo lugar, os gnsticos afirmavam ser aquilo que estavam ensinando a

nica verdade. No entanto, Ireneu rebate dizendo que, se realmente fosse a verdade, ento
os apstolos teriam ensinado o mesmo, o que no ocorreu. Portanto, podem-se traar dois
paralelos em relao ao pensamento de Ireneu a esse respeito: a sucesso da identidade e a
sucesso da diferena. A primeira delas se iniciaria com o primognito de Deus: Jesus
Cristo, a ser sucedido pelos apstolos que, por sua vez, deixariam sua herana aos bispospresbteros. A segunda aberta com o primognito de Satans e se perpetuaria com os seus
discpulos, os bispos e presbteros das comunidades herticas, em especial as gnsticas.
Logo, Ireneu apela para a sucesso como um argumento pragmtico na polmica contra os
gnsticos, de modo a situar os bispos ortodoxos mais prximos aos apstolos como seus
sucessores diretos; e os lderes herticos, ao participarem de uma sucesso apostlica
intermitente, estariam fazendo uma oposio no somente aos tais bispos, mas tambm ao
prprio Deus, o primeiro componente da sucesso. Por essa razo, os bispos ortodoxos
so considerados dententores de uma autoridade especial.
A tradio transmitida por meio da sucesso e materializada no cnone. Para Ireneu,
as Escrituras eram a base da autoridade da ekklesia e no a exegese gnstica, como mostra o
trecho a seguir:128
No

foi,

portanto,

por

ningum

mais

que

tivemos

conhecimento da economia da nossa salvao, mas somente

por aqueles pelos quais chegou o Evangelho, que eles primeiro
pregaram e, depois, pela vontade de Deus, transmitiram nas
Escrituras, para que fosse para ns fundamento e coluna da
nossa f (Cont. Her. III, 1:1).

Ireneu foi o primeiro escritor cristo a ter uma Bblia, no sentido lato, diante dele
(OSBORN, 2001). Ele partiu da ideia de que as Escrituras eram uma revelao progressiva
e, por sua vez, de que o cnone era dividido em duas partes: Antigo Testamento (a
Septuaginta), no qual Moiss e os profetas mencionaram e predisseram o Filho de Deus; e
o Novo Testamento, em uma combinao entre os quatro evangelhos e as cartas, trazendo
uma revelao completa do plano de Deus estabelecido pela Nova Aliana. em uma viso
cristocntrica do cnone que Ireneu estabelece sua compreenso da tradio crist escrita.
H uma passagem relevante que resume essas trs ideias adotadas por Ireneu:
Segundo Ireneu, a exegese gnstica negligenciava a ordem das palavras do texto, igualmente o contexto, e
interpretavam de maneira isolada as passagens.
128

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A verdadeira gnose a doutrina dos apstolos, a antiga
difuso da ekklesia em todo o mundo, o carter distintivo do
Corpo de Cristo que consiste na sucesso dos bispos, aos quais
foi confiada a ekklesia em qualquer lugar que ela esteja; a
conservao fiel das Escrituras que chegou at ns, a
explicao integral dela, sem acrscimos ou subtraes, a leitura
isenta de fraude e em plena conformidade com as Escrituras,
explicao correta, harmoniosa, isenta de perigos ou de
blasfmias e, mais importante, o dom da caridade, mais
precioso do que a gnose, mais glorioso do que a profecia,
superior a todos os outros carismas (Cont. Her. IV, 33:8, grifo
nosso).

Os trs pilares tradio, sucesso e cnone foram alicerados no que Ireneu

chamou de carisma, como mostra o seguinte trecho: Eis por que se devem escutar os
presbteros que esto na ekklesia, que so os sucessores dos apstolos, como o demonstramos, e
que com a sucesso do episcopado receberam o carisma seguro da verdade segundo o
beneplcito do Pai (Cont. Her. IV, 26:2, grifo nosso). Segundo Ireneu, depois da ressurreio
de Cristo, a autoridade apostlica foi evidenciada pela vinda do Esprito Santo, seguida pela
manifestao dos dons espirituais, ou seja, o carisma. Isso teria garantido aos apstolos o
conhecimento perfeito de Deus e o cumprimento da promessa descrita em Jo 14:26. 129
Assim, o ensino teria sido mantido, transmitido pelos apstolos e se prolongado mediante
o episcopado, eleito pelo carisma divino, qualificado para aprego-lo aos seus sucessores e
responsvel pela preservao da tradio. O vnculo espiritual entre os apstolos e os
seus sucessores, segundo Ireneu, era o carisma da verdade (charisma veritatis) (Cont. Her. IV
26:2), transferido a cada gerao como a marca da uno episcopal operacionalizada atravs
da consagrao pela imposio de mos. Assim, a apostolicidade da ekklesia suportada
pela sucesso episcopal dos bispos e pelo carisma da verdade (OSBORN, 2001).
O carisma na ekklesia, figurado muitas vezes pelo seu lder no caso do
pensamento de Ireneu, um lder inovador e de rotina, pensando-se as categorias de Bobbio
(2004) foi um aspecto fundamental no combate heterodoxia no final do sculo II. Em
um embate com o ensino de alguma seita que no aceitava o carisma na ekklesia, Ireneu diz:

Mas o Parclito, o Esprito Santo que o Pai enviar em meu nome, vos ensinar tudo e vos recordar tudo
o que nos disse (Jo 14:26).
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Outros, para negar o dom do Esprito difundido nos ltimos

tempos sobre o gnero humano, pelo beneplcito do Pai, no
admitem a forma do Evangelho segundo Joo, no qual o
Senhor promete enviar o Parclito: rejeitam ao mesmo tempo
o Evangelho e o Esprito Proftico. Verdadeiramente infelizes,
porque, para evitar o perigo dos falsos profetas, no
reconhecem a ekklesia a graa da profecia, da mesma forma dos
que, por medo de se contaminar com pecadores ocultos, no
conservam sequer relaes com os irmos. fcil entender por
que eles tambm no admitem o apstolo Paulo, o qual, na
carta aos Corntios, fala claramente dos carismas profticos
mencionando homens e mulheres que profetizam na ekklesia
(Cont. Her. III, 11:9).

No Livro II, captulo 32, Ireneu trata de legitimar a ekklesia a partir das
performances carismticas que eram empreendidas. O excerto seguinte traz:
Eis por que em seu nome [nome de Jesus] os seus verdadeiros
discpulos, depois de ter recebido dele a graa, agem para o bem
dos demais homens, segundo o dom que cada um tem recebido
dele. Uns, efetivamente, expulsam firme e verdadeiramente os
demnios, de modo que muitas vezes os que foram purificados
dos maus espritos crem e entraram na ekklesia; outros tm
conhecimento do futuro, vises e orculos profticos; outros,
ainda, curam os enfermos mediante a imposio das mos e lhes
restituem a sade; e, como dissemos, inclusive alguns mortos
ressucitaram e permaneceram conosco muitos anos. E para
que mais? No possvel dizer o nmero de carismas que por
todo o mundo a ekklesia recebeu de Deus, em nome de Jesus
Cristo, crucificado sob Pncio Pilatos e que distribui todos os
dias em prol dos homens, a ningum enganando e no exigindo
dinheiro de ningum: porque como de graa recebeu de Deus e
de graa distribui (Cont. Her. II, 32:4).

Debatendo acerca do que seria o corpo, a alma e o esprito, tendo por base os

O bispo em Ireneu tanto um lder inovador, pela legitimao do poder episcopal a partir de uma tradio
ancestral, quanto um lder de rotina, pois, por conta da preservao desta tradio, o bispo dever
salvaguardar sua condio de liderana nas assembleias crists.
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escritos de Paulo, Ireneu afirma em outro trecho:

O apstolo declara: Falamos de sabedoria entre os perfeitos,
chamando perfeitos os que receberam o Esprito de Deus e
que falam todas as lnguas graas a este Esprito, como ele
fazia. E como ainda temos ouvido (audivimus) muitos irmos na
ekklesia, que possuem os carismas profticos e que, pelo
Esprito, falam em todas as lnguas, revelam as coisas
escondidas dos homens para sua utilidade e expem os
mistrios de Deus. So estes que o apstolo chama de
espirituais, porque so espirituais pela participao do
Esprito (Cont. Her. V, 6:1, grifo nosso).

Apesar de, no decorrer do sculo II, os dons terem se restringido quase que
unicamente s figuras de destaque dentro da ekklesia, ou seja, s lideranas ministeriais, eles
ainda estavam dissolvidos na ekklesia como fica evidente nos fragmentos anteriores. Nos
trs trechos citados, possvel perceber que o carisma era um aspecto integrante no
contexto eclesistico. Os fragmentos relatam que pessoas comuns, discpulos, irmos,
no particularmente nomeados para exercer algum cargo, recebiam carismas (dons)
diversos. O segundo fragmento, em especial, trata da prpria experincia de Ireneu que
deve ter conhecido esses cristos ressuscitados, por exemplo. Contudo, tem-se a impresso
de que houve uma perda gradativa desse carisma, apesar do excerto grifado. Talvez no
fosse a perda absoluta, mas a maior concentrao desses dons nas mos dos lderes, os
bispos. Associada centralizao do poder, houve, ainda, uma gnese da separao entre
clero, ocupante de categoria espiritual superior; e leigos, considerados simples fieis
(RIDDLE, 1856). Entretanto, embora o bispo ocupasse posio peculiar, um tanto quanto
clerical nesse momento, ele, de maneira alguma, no pode ser considerado clrigo no
sentido amplo do termo (CAMPENHAUSEN, 1969).
Detentor de um equilbrio primoroso, Ireneu conseguiu ser igualmente conservador
em sua preocupao com a integridade da tradio. Sob tal aspecto, fundamental frisar
que as autoridades eclesiais do sculo II, inclusive o prprio Ireneu, estavam divididas entre
a defesa da f e da ordem. A dificuldade em se saber a diferena entre a ordem e a
diversidade de prtica tornou-se um obstculo na busca pela unidade e pela manuteno da
instituio. Por esse motivo, houve diversas cises na ekklesia, pois a estrutura nascente
combateu o carisma (EVANS, 2004). No se deve pressupor, no entanto, que o carisma no
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discurso de Ireneu no apresentasse qualquer tipo de ordem, visto que estava atrelado a um
determinado tipo de ordem, o carisma episcopal, sendo que outra espcie de graa divina
no era to bem aceita. Assim, o carisma estava confluindo cada vez mais para a sucesso
da autoridade central do bispo a fim de preservar a ordem, os dogmas e a prpria
comunidade crist. 131
Se o carisma estava dedicado aos espirituais, a eucaristia era o sacrifcio da ekklesia
espiritual. Assim como Incio mas tratando o assunto de maneira distinta , Ireneu
tambm traz para seu discurso a importncia da eucaristia como elemento agregador da
comunidade e da hierarquia. No penltimo livro, Ireneu afirma: Nossa maneira de pensar
est de acordo com a eucaristia e a eucaristia confirma nossa doutrina (Cont. Her. IV, 18:5).
O entendimento da eucaristia em Ireneu est no sacrifcio, mais especificamente no dito
expiatrio que foi feito por Jesus. Jesus teria cumprido Deuteronmio 26 ao ter se
entregado pela ekklesia como os primeiros frutos eram dados em oferta no Templo. Para
o bispo, a eucaristia era um sacrifcio espiritualizado no qual se davam aes de graas a
Deus (BRADSHAW, 2004). Pelo fato de a eucaristia no ser um sacrifcio, no sentido amplo
do termo, os cristos deveriam se sujeitar a Deus se separando do profano e cultivando
templos limpos seus prprios corpos. 132 Assim, para Ireneu o po e o vinho eram
ofertados com aes de graas e de corao puro. Por meio da invocao do nome de
Cristo, tais elementos se tornariam o corpo e o sangue de Jesus (CASEY, 2003). A eucaristia
era, de fato, um dos elementos constitutivos da ekklesia.
E o que era essa ekklesia ortodoxa para Ireneu? A ekklesia foi planejada para ser o
paraso na Terra, o den restaurado. Ela pode ser definida como a instituio, lcus de
salvao, onde Cristo invocado e onde o Esprito Santo se faz presente com seus dons,
pois ela era o depsito do carisma do Senhor. 133 Por meio da ao do Esprito Santo, a
ekklesia ortodoxa podia ser universal, todavia se manifestava de forma local.134 Nela, os
crentes possuiriam uma mesma alma, um mesmo corao, e proclamariam e ensinariam em
perfeita harmonia (OSBORN, 2001). Observa-se tal viso no trecho adiante:
As ideias de ordem e de subordinao tornaram-se uma mxima no seio da ekklesia, principalmente em um
contexto de combate s heresias.
132 A eucaristia por si s no purificava o cristo, contudo, ser puro e santo (separado) era pressuposto para
participar dela.
133 Isso fica ainda mais claro neste excerto: Onde est a ekklesia, a est o Esprito de Deus, e onde est o
Esprito de Deus ali est a ekklesia e toda a graa (Cont. Her. III, 24:1).
134 A esse respeito, v-se o seguinte: Onde foram postos os dons [na ekklesia] do Senhor, ali se deve aprender
a verdade [...] (Cont. Her. IV, 26:5).
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Com efeito, a ekklesia dispersa por todo o mundo at os
confins da terra recebeu dos apstolos e de seus discpulos esta
f em um s Deus, Pai onipotente, que fez o cu e a terra, o
mar e tudo quanto nele existe; em um Jesus Cristo, Filho de
Deus, encarnado para nossa salvao; e no Esprito Santo, que
proclamou pelos profetas a economia de Deus; e a vinda, o
nascimento por uma virgem, a paixo e a ressurreio dentre
os mortos, e a ascenso ao cu, em corpo, de Jesus Cristo,
nosso Senhor; e a sua vinda dos cus na glria do Pai, para
reunir tudo em um e ressuscistar toda carne da raa humana, a
fim de que [...] todo joelho se dobre nos cus, na terra e
debaixo da terra e que toda lngua confesse; e exercite o justo
juzo de todos: enviando para o fogo eterno os espritos do
mal, os anjos prevaricadores e apstatas, assim como os
homens mpios, injustos, inquos e blasfemadores; e para dar
em prmio a vida incorruptvel e a glria eterna aos justos, aos
santos e aos que guardaram os seus mandamentos e
perseveraram no seu amor, alguns desde o incio, outros,
depois de sua converso (Cont. Her. I, 6:1, grifo nosso).

O excerto acima rene os principais aspectos do credo cristo em uma busca pela
unidade. A unidade de crena era o que determinava a catolicidade da f, e no o contrrio
(CASEY, 2003). A catolicidade de Ireneu foi baseada na harmonia entre a hierarquia dentro
da instituio ekklesia e a tradio proclamada por ela, perpetuada pelo ensino e pela
transmisso de uma f nica.135 Para Ireneu, a catolicidade era a consequncia do universal
manifesto no particular, como se pode ver no fragmento abaixo:
Tendo, portanto, recebido esta pregao e esta f [...] a ekklesia,
mesmo espalhada por todo o mundo, as guarda com cuidado,
como se morasse numa s casa, e cr do mesmo modo, como se
possusse uma s alma e um s corao; unanimente as prega,
ensina e entrega, como se possusse uma s boca. Assim,
embora pelo mundo sejam diferentes as lnguas, o contedo da
tradio um s e idntico. As ekklesiae fundadas na Germnia
no crem e no ensinam de modo diferente, nem as da Ibria,
nem as dos celtas, nem as do Oriente, nem as do Egito, nem as
da Lbia, nem as estabelecidas nas regies centrais do mundo [...]

O maior problema do ensino gnstico para Ireneu era o de ser uma novidade, no se baseando em uma
tradio, alm de no possuir uma continuidade de poderes.
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(Cont. Her. I, 10:2).136

Assim, a catolicidade era, ao mesmo tempo, particular e universal. Particular, porque

s poderia ser expressa em um determinado tempo e lugar, ou seja, na ekklesia local, cujas
tradies deveriam ser respeitadas e de maneira alguma poderiam ser negadas por qualquer
comunidade. Universal, pois no se restringia ou se esgotava em qualquer ekklesia particular.
A catolicidade s poderia ser assegurada desde que a ekklesia fosse receptiva a todo aquele
que partilhasse da tradio dos apstolos.137
Longe de se manterem em unidade, como idealizava Ireneu, as comunidades crists
ditas ortodoxas passavam por srios problemas doutrinais e conflitos disciplinares (LA
PIANA, 1925). No que a ekklesia estivesse, stricto sensu, disforme em seus dogmas, ritos e
forma, mas ela tendia a uma centralizao ao final do sculo II pelo fato de haver graves
divergncias entre as comunidades. Discorda-se de Pagels (2006) por afirmar que, para
Ireneu, a diversidade era a evidncia da catolicidade, no entanto, pelo contrrio, a
universalizao pressupunha uma igualdade, mesmo que ilusria. Mais especificamente, a
catolicidade construda por Ireneu inclui marcas de universalidade, unidade e exclusividade,
atributos prprios da ekklesia autodenominada corpo de Cristo (SCHAFF, 1890).
O smbolo de ekklesia em Ireneu nitidamente a comunidade de Roma. Na fonte
analisada, Roma sempre alvo de exemplificaes, como se percebe no trecho a seguir:
Como, no entanto, seria muito tedioso, em um volume como
este, levar em conta as sucesses de todas as ekklesiae, limitarnos-emos

maior,

mais

antiga

universalmente

conhecida ekklesia fundada e organizada em Roma pelos dois

gloriosos apstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradio
recebida dos apstolos e a f anunciada aos homens, que
chegou at ns pelas sucessoes dos bispos, refutaremos todos
os que de alguma forma, quer por enfatuao ou vanglria,
Para Harvey (1867), tais regies centrais do mundo seriam na Palestina.
Ora, pelo fato de que, nos escritos de Ireneu, podem-se reconhecer as estruturas emergentes do que se
tornou a Igreja Catlica, o pensamento do bispo passou a ser associado, por muitos, ideia de "catolicismo
primitivo". Entretanto, Eric Osborn (2001) tem mostrado ser tal associao duvidosa. O problema no com
a catolicidade de Ireneu, mas com o que o termo "catolicismo primitivo" representa. a discrepncia entre os
dois que ressoa em debates contemporneos sobre a natureza da catolicidade. De acordo com Osborn, a
principal caracterstica do catolicismo primitivo a transposio do lcus da salvao de Cristo para a
ekklesia como instituio. Contudo, tal mudana inapropriada quando aplicada a Ireneu para quem a ekklesia
o corpo de Cristo, aprovada por meio do Verbo como filhos e filhas de Deus. Embora Ireneu reconhea, ao
menos indiretamente, a importncia das estruturas institucionais, ele nunca as identifica com a ekklesia. Pelo
contrrio, a ekklesia constituda, essencialmente, pela presena do Esprito Santo.
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quer por cegueira ou por doutrina errada, se renem
prescindindo de qualquer legitimidade. Pois uma questo de
necessidade que cada ekklesia deva concordar com esta ekklesia,
em virtude da sua preeminente autoridade (principalitatem
potiorem), isto , os fieis de toda parte, na medida em que a
tradio apostlica foi preservada de forma contnua
pelos homens fieis que existem em toda parte (Cont. Her. III,
3:2, grifo nosso).138

A primazia dada a Roma por Ireneu se deve a diversos fatores. Osborn (2001)
aponta, alm de Roma ser a Capital do Imprio, aspecto decisivo em sua legitimao, o fato
de a cidade ter uma relativa proximidade territorial com Lio (se comparada maior parte
das outras cidades do Imprio). Alm disso, as Glias haviam passado por um exitoso
processo de romanizao. lie Griffe, em seu trabalho denominado La Gaule Chrtienne a
lpoque romaine (1947), no que concerne ekklesia de Lio, ainda indica que, apesar da
significativa presena de evangelistas asiticos e gregos na comunidade local de Lio, como
foi o caso de Ireneu, tudo leva a crer que tais missionrios estabeleciam vnculos com a
comunidade de Roma antes de irem a Lio, sendo, talvez, at mesmo financiados pelos
romanos. provvel que houvesse em ambas as comunidades, romana e lionesa, um
nmero deveras significativo de cristos provenientes da sia Menor, o que os impulsionou
a criar maiores vnculos por partilharem de uma mesma identidade, tradio e origem.
No tempo de Ireneu, Roma no detinha autoridade sob as demais comunidades.
Entretanto, era uma ekklesia emblemtica, pois muitos criam, assim como Ireneu, que havia
sido fundada pelos apstolos. Nesse contexto, a glorificao da comunidade de Roma,
como padro de apostolicidade, teve uma funo fundamental no discurso do bispo de
Lio em favor de uma ekklesia ortodoxa. Quando se fala na exaltao da comunidade
crist de Roma, necessrio observar sua posio no contexto daquela poca. Para trazer
legitimidade a Roma, Ireneu apresenta a seguinte sucesso de bispos em Roma: 139

O texto em latim que traz a expresso principalitatem potiorem tem provocado muita discusso quanto sua
interpretao. De acordo com Harvey (1867), impossvel dizer com certeza o sentido dessas palavras no
original grego. Apesar de a traduo literal do trecho ser principado poderoso, podendo remeter ao poder
da cidade de Roma, o contexto do texto de Ireneu sugere uma associao autoridade superior da ekklesia de
Roma.
139 Os contnuos elos inquebrveis estabelecidos desde os apstolos at os bispos eram a garantia da no
distoro da doutrina nas comunidades ortodoxas. Cabe destacar que as listas de sucesso apostlica feitas
por Ireneu no so necessariamente falsas. Os nomes que ele compilou foram pesquisados por ele, e no se
cr que ele simplesmente os inventou de forma deliberada para os seus propsitos.
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Os bem-aventurados apstolos que fundaram e edificaram a
ekklesia transmitiram o governo episcopal a Lino, o Lino que
Paulo lembra na carta a Timteo. Lino teve como sucessor
Anacleto. Depois dele, em terceiro lugar, depois dos apstolos,
coube o episcopado a Clemente, que vira os prprios apstolos
e o qual manteve relao com eles, que ainda guardava viva em
seus ouvidos a pregao deles e diante dos olhos a tradio
(Cont. Her. III, 3:3).

No final do segundo sculo, as comunidades crists passaram por um acentuado

processo de latinizao e, em contrapartida, por um abandono das tradies judaicas (LA
PIANA, 1925). Assim, no discurso de Ireneu, a ekklesia de Roma colocada como a
grande me, propositalmente, por dois motivos. Primeiramente, das mais de quinze
heresias citadas pelo bispo Ireneu de Lio na obra Contra as heresias, a maior parte delas
nasceu no Oriente do Imprio, sendo que, no mnimo, cinco se organizaram em Roma, e
seus chefes ali se estabeleceram, como, por exemplo, Valentino, Marcio, Cerdo,
Carpcrates e Simo. Vale destacar que a insistncia de Ireneu por mencionar Roma est
atrelada tambm ao fato de que era comum entre os lderes cristos assistir outras
congregaes, a fim de ajudar a resolver problemas de mbito regional. Ireneu, desse modo,
posiciona-se como coparticipante da comunidade de Roma para auxili-la, por meio de um
discurso antignstico e em prol da ekklesia ortodoxa, na luta contra os herticos,
combatendo, discursivamente, as heresias que a assolavam. Alm disso, o bispo buscou
legitimar as demais congregaes crists por meio do argumento de que o cristianismo
ortodoxo j tinha uma estrutura eclesistica com uma liderana, a ekklesia de Roma, pela
qual os cristos poderiam justificar sua f perante o inimigo. Por esse motivo, Ireneu
enfatiza o papel da comunidade de Roma no contexto eclesistico, a fim de fortalecer o
poder centralizador dos bispos locais e das congregaes, por meio da ancestralidade
apostlica supostamente advinda de Roma. No entanto, durante o sculo II, a autoridade
da comunidade romana sobre as outras, na figura do seu bispo, era mais ilusrio do que
real.
Discpulo de Policarpo, que havia sido discpulo direto de Joo, Ireneu via a si
mesmo como successor dos apstolos (alter apostolus) um verdadeiro mestre da f
apostlica. Como tal, ele se revestia, junto aos outros bispos, da responsabilidade de
preservar a continuidade doutrinal por meio do ensino para que a f universal (katholikos)
no fosse maculada pelas tendncias herticas. Contra aqueles que promoviam a diviso
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na ekklesia e corrompiam a tradio, Ireneu destacou a importncia da unidade. Por isso, o

bispo se ops a qualquer um que dividisse a ekklesia ortodoxa, fossem eles gnsticos,
milenaristas ou mesmo autoritrios bispos de Roma.

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