Geometria em Práticas e Artefatos Das Etnias Tupinikim e Guarani Do Espírito Santo
Geometria em Práticas e Artefatos Das Etnias Tupinikim e Guarani Do Espírito Santo
Geometria em Práticas e Artefatos Das Etnias Tupinikim e Guarani Do Espírito Santo
Introduo
A investigao que estamos desenvolvendo em comunidades Tupinikim e Guarani do
Esprito Santo busca identificar em suas prticas culturais conhecimentos que tenham
aproximaes com a geometria. Para tanto, realizamos desde dezembro de 2007, encontros
de formao continuada com educadores indgenas e visitas de estudo a algumas aldeias da
regio com vistas a uma primeira aproximao da realidade local. O texto apresenta os
primeiros passos da pesquisa com registros do trabalho de campo, descrio de referencial
terico e metodolgico, bem como leituras pertinentes ao tema.
Atualmente, vivem no Esprito Santo cerca de 2300 ndios aldeados, todos no municpio de
Aracruz, litoral norte do estado. Nota-se uma forte influncia indgena na culinria
regional, na denominao de localidades, animais e objetos, e no uso de tcnicas como as
do fabrico da panela de barro, cestos e esteiras e de materiais para caa e pesca como pios,
armadilhas e jequis. 3 O prprio nome do municpio tem origens indgenas e significaria
altar da Cruz. 4 Uma outra verso que o nome venha do Tupi Ara aku ete dia est
quente, em aluso s caractersticas do dia em que chegaram os primeiros colonizadores.
Um dos smbolos do folclore capixaba, a casaca instrumento musical semelhante a um
reco-reco com cabea esculpida, usado na dana do Congo tem provavelmente origens
indgenas. Fruto da interculturalidade entre ndios e quilombolas da regio, o Congo tem
como datas importantes do seu calendrio os dias dos santos Benedito e Sebastio. Nessas
Aluna de doutorado do Programa de Ps-Graduao em Educao do Centro de Educao da UFES. Email: [email protected] .
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Professora doutora do Programa de Ps-Graduao em Educao do Centro de Educao da UFES. E-mail:
[email protected] .
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datas, as bandas de Congo prestam suas homenagens aos santos tocando casacas e
tambores.
Nos stios arqueolgicos de Piranema e Vila do Mutiro, em Aracruz, foram encontrados
materiais indgenas como ossos e cachimbos que comprovam a existncia de ndios
anteriormente ao descobrimento do Brasil. No stio arqueolgico Vila do Mutiro, foram
encontradas urnas morturias pertencentes tradio arqueolgica Aratu. As urnas
constituem patrimnio arqueolgico que est sob a guarda da Secretaria de Cultura do
municpio de Aracruz.
Foto 1 Urnas funerrias descobertas no stio arqueolgico Vila do Mutiro. Foto da investigadora.
Perguntas como essas tm conduzido este projeto de pesquisa, cujas razes esto na minha
dissertao mestrado (Araujo, 1999). Investigando definies de ngulo apresentadas em
livros-texto de matemtica, fiz um histrico sobre o uso de idias correlatas ao conceito de
ngulo em algumas culturas. Conversas com membros da banca aqueceram mais o
interesse pelo tema. Assim, passados 8 anos da defesa da dissertao, retomei o assunto,
mais amadurecido pelo tempo, pelas experincias, pelas leituras e pelo trabalho de campo
que iniciei em 2007. A idia inicial de estudar o conceito de ngulo em diferentes culturas
aliou-se a esses fatores de forma que, por um lado, ampliou-se o foco do projeto a outros
conceitos da geometria e, por outro lado, restringiu-se s culturas Tupinikim e Guarani do
Esprito Santo.
Motivaes da Pesquisa
O conceito de ngulo um dos conceitos fundamentais da geometria euclidiana. Nos
Elementos de Euclides (300 a.C.), a definio de ngulo est entre as primeiras da obra.
Das primeiras definies dadas pelos gregos at hoje, encontramos os mais variados
enunciados em funo de retas, semi-retas, raios, semi-raios, grupos, sistemas, plano ou
matriz de transformao (Lorenzoni, 2003).
Embora no haja um consenso sobre a sua definio, o conceito de ngulo aplicado, ao
menos de maneira intuitiva, nas mais variadas situaes como rotao, inclinao,
diferena de direo, entre outras. Em sentido figurado, usam-se expresses como virada
de 180 [graus], para indicar uma mudana de vida e ver por um outro ngulo, indicando
diferena de pontos de vista.
Gerdes (2007a, p. 156) chega a afirmar que o conceito de ngulo reto pertence a uma
matemtica universal, patrimnio de toda a humanidade. Ao perceber a melhor maneira de
dispor as varetas de madeira para se obter o fogo ou a posio ideal da flecha com relao
ao arco para um melhor lanamento, o homem j estaria utilizando uma idia de
perpendicularismo (Gerdes, 1992, p.21).
Na construo das pirmides, os egpcios aplicaram algum conceito de ngulo embora sem
uma definio ou termo especfico para design-lo. O seqt de uma pirmide designava a
razo entre o afastamento vertical e o afastamento horizontal necessrios para se obter
determinada inclinao de suas faces. Os babilnios tambm deixaram em seus trabalhos
sinais do que Boyer (1974, p.25) chamou uma espcie de prototrigonometria. Fragmentos
Algumas
perguntas
devem
nortear
este
projeto:
Que
conhecimentos
os
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Ilustrao 1 Padres de pintura Tupinikim. Da esquerda para a direita: dois desenhos utilizados na pintura
masculina de tronco e membros e dois desenhos utilizados na pintura facial feminina
Uma das lideranas femininas de aldeia Pau-Brasil, referiu-se aos desenhos femininos da
ilustrao, respectivamente, como fundo de peneira e pezinho de saracura. Tais
denominaes sugerem a importncia da peneira e dessa ave, a saracura, para a cultura
local. Em Pau-Brasil, h artesos que confeccionam peneiras.
Para os Guarani, muitos desenhos expressos na pintura corporal vo alm da
ornamentao. A pintura representa smbolos da vida. H desenhos comuns a homens e
mulheres, mas tambm aqueles prprios para mulheres, para mulheres jovens, para pessoas
comprometidas em namoro, para lderes, para o lder religioso, para pais com beb recmnascido (uma cruz na testa para espantar espritos maus) e at para identificar aqueles ou
aquelas que gostam de namorar vrias pessoas. Alguns desenhos esto registrados a seguir.
Os Guarani no se pintam muito e quando se pintam preferem as regies do rosto, brao e
pernas. Segundo os antigos, cada poca da vida ou do ano tem sua pintura prpria.
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Foto 2 Desenhos Guarani para pintura corporal, descritos em Guarani e Portugus, segundo os educadores
Alberto lvares, Aciara Carvalho e Silvio Carvalho Gonalves. Foto da investigadora.
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Cestaria
Para alguns autores como Paulus Gerdes (1992, p. 19), o Homem teria praticado a arte de
entranar fibras j no Paleoltico. Na cultura indgena brasileira, a cestaria um elemento
expressivo.
Artefatos usados pelos Tupinikim, como peneiras, balaios, tipitis, e samburs, so
confeccionados com tcnicas de cestaria. O tipiti serve para espremer a mandioca na
produo de farinha. E o sambur pode ser usado para transportar peixes depois da pesca.
A trama do tipiti curiosa pela angulao entre as fibras (destaque em azul na foto). Sua
confeco, assim como o conhecimento matemtico que pode ser identificado nela, sero
objetos de estudo nesta pesquisa.
Esteiras, vassouras e tangas usadas por Tupinikim tambm so confeccionadas com
entrelaamento de fibras naturais.
O material e a forma de confeco dos objetos variam de acordo com sua finalidade. Um
balaio destinado ao transporte de peixes pode ser confeccionado em cip. Uma peneira
para acondicionamento de alimentos obviamente deve ter trama mais fechada do que uma
usada na seleo de gros.
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Entre os Guarani, a cestaria tem sua importncia por sua utilizao na confeco de
artefatos de uso domstico, ritual ou corporal alm dos que so produzidos para a venda. O
conhecimento envolvido na prtica da cestaria passado de gerao a gerao. Um cesteiro
deve conhecer bem os critrios e tcnicas para escolha e extrao da matria prima,
preparo das fibras, dimensionamento do material, entrelaamento das fibras, elaborao de
padres de entrelaamento, elaborao de desenhos ornamentais, acabamento dos artefatos,
entre outros. Da seleo da matria-prima ao produto final, identificam-se conceitos que
poderamos traduzir como conceitos de contagem e de geometria.
Atualmente, boa parte da cestaria Guarani destina-se ao comrcio. As fibras usadas so
naturais, extradas de espcies de bambu como a taquarinha ou o taquaruu e tingidas com
anilina. Os antigos confeccionavam os artefatos, entre outras finalidades, para uso na
colheita de alimentos o que hoje j no freqente. O tingimento era feito pelos antigos
com a tinta extrada de um tipo de barro. Entre os cestos Guaranis, h aqueles com fim
exclusivamente religioso podendo ter desenhos e at trama especial, diferente dos demais.
Estes no costumam ser colocados venda, embora seu conhecimento no seja proibido
aos no-ndios.
Comparando as bases dos cestos Guarani confecionados por artesos da aldeia Olho
Dgua, identifiquei dois padres de confeco, ilustrados a seguir.
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Com esses dois padres de tramas, desenham-se figuras coloridas e com diferentes tipos de
simetria.
Foto 7 Cesto Guarani [Exposio de artesanato: Aldeia Pau-Brasil em 19 de abril de 2008]. Foto da
investigadora.
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Foto 10 Tampa de um sambur [Exposio de artesanato: Aldeia Pau-Brasil em 19 de abril de 2008]. Foto
da investigadora.
usada
pelos
cesteiros.
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Agachado, com o joelho direito apoiado no cho, Joo-de-barro fixava as fibras com o p
esquerdo, e com as mos tecia.
Foram usadas 30 tiras de fibra na cor natural com largura entre 3 e 5 mm e comprimento
em torno de 45 cm para iniciar o cesto, pela base. As dimenses finais do cesto foram de
8cmx8cm de base, 9cm de altura e 12cm de dimetro. As fibras da base foram tecidas 3 a
3, formando uma trama de padro 1, ilustrada anteriormente. Uma das educadoras
observou que seria mais fcil entrelaar as fibras se fossem coloridas. Dessa fala, ressaltase uma primeira razo para o uso das cores: a necessidade. Para Gerdes (1992, p.99-100), a
atividade laboral fundamental na formao de conceitos. A forma, antes de tudo, atende a
uma necessidade prtica.
Encerrada a tessitura da base do cesto, nos vrtices da base foram amarradas duas varetas
de bambu em sentido diagonal e levantadas as fibras para tecer as paredes do cesto. O
alcance da rigidez muito importante nas tcnicas de cestaria. Os demais educadores que
acompanhavam a oficina usando tiras de cartolina foram, inclusive, um pouco resistentes
no inicio da oficina devido fragilidade das tiras que dispunham. Amarrando varetas nas
diagonais, alguns grupos conseguiram chegar ao fim da confeco.
Para confeccionar as laterais do cesto, Joo-de-barro entrelaava uma fibra de outra cor s
fibras levantadas da base passando a fibra por cima de trs outras fibras e depois por baixo
de trs. Tal tessitura deu um efeito escada fibra colorida.
Para dar acabamento ao cesto, Joo-de-barro cortou as fibras restantes, deixando sobras de
cerca de 5 cm que foram dobradas e alinhavadas por um barbante. Segundo ele, cada um
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tem uma maneira para dar acabamento aos cestos. Identifiquei em outros cestos mais dois
tipos de acabamento que pretendo investigar e descrever.
Alguns educadores seguiram os momentos iniciais do trabalho de Joo-de-barro e logo se
aventuraram a tecer as tiras de cartolina coloridas que levamos. Quem tinha mais
habilidade, auxiliava os colegas. Tranando folhas de coqueiro, os ndios da regio
comeam a aprender cedo tcnicas de cestaria, embora poucos adultos as dominem com
destreza. As folhas de coqueiro so ao mesmo tempo maleveis e resistentes. Por esse
motivo, houve quem preferisse entrelaar as folhas de coqueiro que enfeitavam o local do
encontro em vez das tiras de cartolina. Enquanto falava-se sobre a melhor trama para um
iniciante, o material ideal para certas finalidades e o nmero ideal de fibras para confeco
de tranas, uma das educadoras fez uma trana com folhas verdes de coqueiro usada na
confeco de cocares e outra entrelaou uma a uma as folhas do mesmo tipo formando
uma espcie de esteira.
Com o vento sobre a esteira confeccionada em folhas de coqueiro, as fibras foram
colocadas em posio no perpendicular. Segundo uma das educadoras, este tipo de
disposio das fibras tambm possvel nos cestos. Tal afirmao leva a indagaes a
serem respondidas sobre tipos de trama usadas por artesos e razes para a preferncia por
uma ou outra trama.
Todas as observaes pontuadas neste texto sugerem a riqueza de conhecimentos
envolvidos em prticas indgenas e como essas podem ter aproximaes com a disciplina
geometria, contribuindo para uma prtica escolar que respeite a cultura local.
Referncias Bibliogrficas
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