Livro - Cadê Os Operários - Sérgio Lessa

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 96

Sergio Lessa

CAD OS OPERRIOS ?

do autor
Creative Commons - CC BY-NC-ND 3.0
Diagramao: Luciano Accioly Lemos Moreira e Srgio Lessa
Reviso: Andra Pereira Moraes
Capa: Luciano Accioly Lemos Moreira e Maria Cristina Soares Paniago
Catalogao na fonte
Departamento de Tratamento Tcnico do Instituto Lukcs
Bibliotecria Responsvel: Fernanda Lins

Esta obra foi licenciada com uma licena Creative Commons - Atribuio - NoComercial
- SemDerivados 3.0 Brasil.
Para ver uma cpia desta licena, visite creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/br/ ou
envie um pedido por escrito para Creative Commons, 171 2nd Street, Suite 300, San Francisco,
California, 94105, USA.
Esta licena permite a cpia (parcial ou total), distribuio e transmisso desde que: 1) deem
crdito ao autor; 2) no alterem, transformem ou criem em cima desta obra e 3) no faam uso
comercial dela.
1 edio: Instituto Lukcs, 2014

INSTITUTO LUKCS
www.institutolukacs.com.br
[email protected]

Sergio Lessa

CAD OS OPERRIOS ?

1a edio
Instituto Lukcs
So Paulo, 2014

A julinha, minha sobrinha mais capeta.

SUMRIO
Introduo.........................................................................................09
Captulo I............................................................................................13
Uma classe operria peculiar................................................................13
O capital monopolista e o Imperialismo............................................16

Captulo II..........................................................................................27
De volta ao Brasil...................................................................................27

Captulo III.......................................................................................31
Getlio Vargas: o novo Brasil no to novo......................................31
Crise estrutural e desenvolvimentismo petista..............................37

Captulo IV........................................................................................43
A nossa aristocracia operria e o capital.........................................43
As consequncias para a classe operria.............................................45
Uma democracia moderna................................................................55

Captulo V..........................................................................................71
Cad a classe operria?..........................................................................71
E agora?....................................................................................................77

Bibliografia.......................................................................................85

Sergio Lessa

Introduo

H no muito tempo, um grupo de trs ou quatros jovens militantes de um dos agrupamentos da esquerda nacional mais prximo ao movimento campons e popular tomou a heroica deciso de
se aproximar dos proletrios. Foram visitar, pela mo dos cutistas,
a linha de montagem de uma montadora automobilstica em So
Bernardo.
Os caras trabalham com jalecos, roupas limpas, pouco barulho,
atividades muito especializadas... Os operrios no so mais aquilo
que Marx conheceu, so meio engenheiros.
As consequncias foram imediatas: sem a classe operria do
Marx, a estratgia da revoluo proletria estava ultrapassada.
Restava o caminho petista ao desenvolvimentismo nacional. No
preciso continuar a histria para que se saiba o seu desenlace: entraram para o PT e para a CUT.
Ainda que no do mesmo modo, a questo colocada com frequncia: se a classe operria (na acepo de Marx, aquela classe que,
com seu trabalho manual, produz o capital ao transformar a natureza em meios de produo e de subsistncia1) o sujeito revolucionrio, por que no comparece nas lutas do dia a dia como o inimigo
de classe da burguesia? Por que, ao contrrio, se associou grande
1

Sobre essa caracterizao de proletariado por Marx e como ela se articula com
sua descoberta do trabalho como a categoria fundante do ser social, em Lessa,
2011; 2007a e Lessa e Tonet, 2012.
9

Cad os operrios ?
burguesia financeira (fundos de penso etc.), e suas lideranas podem se vangloriar em pblico dos lucros inditos que os patres
alcanam sob seus governos? Por que os operrios, hoje, so a base
eleitoral e sindical do PT, o partido que representa a convergncia
dos interesses de todas as parcelas do grande capital?
Na aparncia, mas apenas nela, como se houvssemos retornado queles momentos da Revoluo Francesa ou das Revolues
de 1848-52 (lembram-se de que a histria acontece duas vezes, a
primeira como tragdia e a segunda como farsa?), nos quais o que
predominava na poltica nem eram os bravos e autnticos representantes das classes reacionrias, nem os legtimos e heroicos representantes dos trabalhadores, mas sim o pntano. Ou seja, aqueles
reacionrios medocres o suficiente para no terem sido exterminados quando do avano da revoluo e aqueles medocres representantes dos trabalhadores, to inofensivos que a reao nem sequer
se deu ao trabalho de liquid-los. Levando-se em conta uma brutal
diminuio da escala, pois de Revolues involumos para eleies,
os no poder, hoje, nem so autnticos burgueses (pois destes so
servidores) nem so trabalhadores (pois destes so traidores).
O que est ocorrendo? Ser (c entre ns e sem que ningum
nos oua) que a classe operria continua existindo e ainda o sujeito
revolucionrio? Ser que o sujeito revolucionrio de Marx existe?
A revoluo proletria e o comunismo so possveis? Nesse conjunto de questes, h dois aspectos interligados. O primeiro envolve
a classe operria e a histria do movimento dos trabalhadores em
escala planetria. Nessa histria, a social-democracia e o stalinismo
jogam papel de relevncia na atual desmobilizao dos trabalhadores. O segundo aspecto diz respeito mais diretamente s particularidades e peculiaridades da classe operria brasileira. Trataremos
predominantemente do segundo aspecto; o primeiro apenas ser tocado quando imprescindvel para esclarecermos o desenvolvimento
da classe operria no Brasil.
Antes, porm, uma palavra de advertncia. Muitas vezes escrevemos sobre questes que estudamos por muito tempo: escrevemos
porque nosso dever. Outras vezes escrevemos porque no h texto
que trate da questo como nos parece apropriado, ainda que no
tenhamos investigado o tema a fundo. No primeiro caso, escrevemos porque acumulamos algum conhecimento; no segundo caso,
escrevemos porque se faz necessrio, poltica e ideologicamente. H
uma grande diferena entre os dois tipos de escrito. O segundo se
aproxima mais de uma opinio do que de uma posio terica slida
e articulada. A sua forma, o ensaio, tambm mais frouxa e menos
10

Sergio Lessa
rigorosa. O que se segue muito mais o segundo do que o primeiro
caso: o leitor fique desde j advertido!
Alguns agradecimentos devidos. Maria Augusta Tavares, Alfonso
Klein e Haide Rodrigues forneceram informaes e dados sem os
quais este texto no teria sido possvel. Ainda que sem um contato
pessoal, as investigaes de Fernando M. Heck sobre os trabalhadores no oeste do Paran foram de grande valia. Eventuais equvocos
ou dedues indevidas, claro est, so de inteira responsabilidade
minha.

11

Sergio Lessa

Captulo I

Uma classe operria peculiar


O desenvolvimento do capitalismo no Brasil se deu de modo
bastante peculiar. A Acumulao Primitiva do Capital (1500-1780)
que, na Inglaterra e na Europa, pelo desenvolvimento das relaes
mercantis, pela evoluo das manufaturas at as indstrias, conduziu gnese e ao desenvolvimento da burguesia e da classe operria
esse mesmo processo redundou, em pases como o Brasil, em
consequncias muito diversas. Deu origem a uma classe dominante
articulada ao comrcio internacional pela explorao dos latifndios
monocultores (e, mais tarde e por extenso, das riquezas naturais
em geral), com intensa utilizao de fora de trabalho (escravos, no
incio, assalariados miserveis at hoje) uma classe dominante que
sempre foi parceira do grande capital internacional na explorao
dos trabalhadores e na espoliao das riquezas naturais. Uma das
marcas dessa classe ser dura e autocrtica para os de baixo e
subserviente com os poderosos de alm-mar. A subservincia para
com os de cima, quando se trata das classes dominantes de pases
coloniais, complementada pela extrema violncia para com os de
baixo. Nosso pas no foi uma exceo.
At entrarmos no sculo 20, ou seja, por cinco sculos, essa estrutura de classes evoluiu, mas no se alterou fundamentalmente.
Do ciclo da cana-de-acar (1530-1680), passando pelo ciclo do
ouro (1690-1780), at o primeiro meio sculo do ciclo do caf (18301880), a faco da oligarquia que predominava na poltica nacional
13

Cad os operrios ?
(a nordestina, a carioca etc.) se alterou, mas as relaes de produo
permaneceram essencialmente as mesmas: escravos ou trabalhadores assalariados miserveis que produziam para a acumulao no
centro da economia mundial e, tambm, dos scios nacionais do
grande capital internacional, os oligarcas. Para a maior lucratividade do capital, alm da explorar os escravos e demais trabalhadores,
tambm convertiam as riquezas produzidas pela natureza (Marx,
1983:50-51) em mais-valia: a destruio da natureza sinnimo da
produo a baixo custo de matrias-primas e bens primrios desde
a Colnia at hoje. Talvez no tivssemos, ento, a pior distribuio
de renda entre todas as naes do planeta, mas estvamos lanando
as bases para alcanar esse recorde no futuro: a riqueza produzida
se concentrava com a burguesia europeia e, em menor poro, com
a oligarquia nacional.
A classe dominante brasileira surgiu e se desenvolveu articulada ao mercado mundial, mais especificamente, ao desenvolvimento do comrcio internacional de bens primrios e matrias-primas.
Sempre viu com os melhores olhos o desenvolvimento do capitalismo mundial e da correspondente e desigual diviso internacional
do mercado: pases que produzem as matrias-primas baratas, que
so fonte de mais-valia absoluta para os pases que se industrializam.
O permanente dficit dos pases exportadores de matrias-primas
para com os pases exportadores de produtos industrializados ser,
apenas, um efeito colateral certamente desconfortvel, mas no
insuportvel para as oligarquias. Seus lucros quase nunca foram
comprometidos; tero, apenas, de compensar o dficit com uma
cada vez mais intensa explorao dos trabalhadores. Embora articulada ao capitalismo mundial e ao seu desenvolvimento, embora
coincida com os interesses da burguesia europeia no desenvolvimento da indstria nos centros capitalistas, ser uma classe com
insupervel, como diziam, vocao agrcola. A tese dos liberais
de que cada nao, ao se especializar no que produz melhor, faria
com que todos produzissem mais e mais barato, promovendo, deste
modo, a prosperidade universal, ganhou o corao e as mentes dos
nossos oligarcas to logo articulada pelos clssicos dos sculos 17
e 18. Bem mais frente, essa ntima ligao das oligarquias com o
capital internacional ser liminarmente expressa no slogan O que
bom para os EUA, bom para o Brasil.
Ainda que articulada ao capital, ainda que acumulando suas riquezas pela mediao do mercado mundial, ou seja, ainda que seja
uma classe social cuja propriedade privada se vincula ao que de mais
avanado e moderno havia na economia mundial entre 1500 e 1900,
14

Sergio Lessa
uma classe dominante que se opor com todas as suas foras
nossa industrializao. Nisso, tambm, ela coincide com os interesses do capital internacional: no apenas Delmiro Gouveia no
ter futuro entre ns, como ainda jogamos papel decisivo em impedir que uma nao como o Paraguai se industrializasse. Em nossas
fronteiras, apenas podemos aceitar oligarquias que, cada uma ao seu
modo, reproduzam o essencial da relao da nossa oligarquia com o
capital internacional. Os paraguaios at hoje sofrem as consequncias deste fato e Itaipu o maior smbolo (em tamanho fsico e em
significado histrico) dessa obra da classe dominante brasileira.
Os trabalhadores, com o desenvolvimento dessas relaes de
produo, eram escravos, ao lado de trabalhadores rurais, meeiros
e alguns poucos assalariados. Ou, ainda, artesos de todos os tipos
e pequenos proprietrios que produziam para um mercado interno,
o qual, nessas condies, no poderia nem ser grande, nem crescer.
Como ocorre em todas as sociedades de classe, as revoltas foram
muitas. Vrias foram as revoltas de trabalhadores aliados s oligarquias locais; outras vezes, tal como no Quilombo dos Palmares, as
oligarquias participaram apenas de sua represso. Apesar das grandes diferenas entre elas, possuem em comum o fato de no terem a
potncia necessria para quebrar a essncia do desenvolvimento das
relaes capitalistas em nosso pas: uma economia voltada produo de mais-valia para ser apropriada pelo capital internacional e
pelos seus scios internos, a oligarquia brasileira.
Portanto, em pases como o Brasil, na periferia do sistema do
capital, durante a Acumulao Primitiva, o desenvolvimento das
classes sociais no se dirigiu para a gnese e o desenvolvimento de
uma burguesia e de um proletariado, mas para a constituio de uma
oligarquia ligada terra e de escravos, serviais, trabalhadores rurais
e artesos que, mesmo quando assalariados, distantes estavam da
constituio de classe dos trabalhadores dos pases mais desenvolvidos.
A passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista (1870-71) e o incio do Imperialismo a ela associado, impuseram produo de mercadorias no Brasil novas exigncias que se
condensavam na necessidade de ampliao da explorao dos trabalhadores. Foi preciso no apenas modernizar as relaes de produo para possibilitar uma maior extrao da mais-valia, como ainda
foi necessrio multiplicar a escala da produo. A Repblica Velha e
o caf em So Paulo foram os primeiros movimentos de adaptao
do Brasil s novas exigncias do capital monopolista.
15

Cad os operrios ?
Antes, porm, de passarmos ao exame dessa fase do desenvolvimento do Brasil, preciso que discutamos brevemente a mais-valia
relativa e suas consequncias para a evoluo do proletariado2.
O capital monopolista e o Imperialismo
Se a Acumulao Primitiva a razo de existir do Brasil Colnia,
a transformao do capitalismo concorrencial em capitalismo monopolista ser o momento predominante na trajetria do Brasil
Repblica.
Com a Revoluo Industrial, o desenvolvimento das foras produtivas possibilitou humanidade superar a carncia. A produo
tornou-se maior do que a necessria para atender s necessidades de
todas as pessoas do planeta. A ironia da histria que a abundncia,
o sonho bblico do man finalmente tornado real, conduziu a crises
sucessivas que travavam o desenvolvimento das foras produtivas.
A causa bsica de tais crises que, com a abundncia, a oferta de
mercadorias torna-se maior do que a procura, e os preos tendem
a cair, inviabilizando a produo. As crises cclicas nada mais so
do que a manifestao de que a abundncia inviabiliza o mercado.
A burguesia, aps a Revoluo Industrial, tem de conviver com a
inconvenincia de a acumulao de sua riqueza conduzir inevitavelmente a crises sucessivas que prejudicam at mesmo a reproduo
do capital.
Essa a razo bsica para, desde o final da Revoluo Industrial
(1830) at hoje, haver mais anos de crise do que de prosperidade
econmica.
As crises cclicas, por sua vez, tendem a se tornar cada vez mais
avassaladoras. Nos perodos de crise, mais do que nos de expanso,
o grande capital tende a absorver o pequeno. As pequenas e mdias
empresas so as primeiras a quebrar. A tendncia uma concentrao do capital que possibilita investimentos cada vez maiores nos
perodos de retomada da economia o que conduz, por sua vez, a
crises envolvendo um capital social total crescente e mais concentrado, ou seja, a crises de propores cada vez maiores.
Uma das muitas maneiras de postergar o incio das crises e amenizar seus efeitos quando elas se tornam inevitveis tem sido am2 O tema foi mais longamente exposto em Capital e Estado de Bem-Estar (Lessa,
2013), especialmente no Captulo V.
16

Sergio Lessa
pliar artificialmente o consumo, uma tendncia que atinge nveis
paradoxais nos dias em que vivemos. O complexo industrial-militar,
com sua gigantesca capacidade de destruir o fruto do trabalho, a
expresso concentrada dessa tendncia. Outra maneira, importante
para este ensaio, foi ampliar a extrao da mais-valia por uma combinao superior e mais articulada entre a mais-valia absoluta e a
relativa.
Dito assim, parece mais complicado do que de fato .
A apropriao do trabalho excedente pelo capital ocorre pela
mediao da mais-valia. Dada a concorrncia inerente ao modo de
produo capitalista, tambm a ele inerente a necessidade de sempre ampliar o trabalho excedente. H duas formas dessa ampliao:
a forma absoluta e a relativa. A forma absoluta, ou mais-valia absoluta, a ampliao da jornada de trabalho, mantendo-se o mesmo
salrio ou, ento, a reduo do salrio, mantendo-se a mesma jornada. Essa a forma bsica, fundante, sempre presente, de ampliao
do trabalho excedente expropriado pelo capital.
Muito cedo no desenvolvimento do capitalismo surgiu, tambm,
a outra forma, pela reduo do valor da fora de trabalho. Isso possibilita que uma maior proporo da riqueza produzida pelo operrio componha a mais-valia. A reduo do valor da fora de trabalho
pode se dar pelo aumento da capacidade produtiva do trabalhador
(uma tecnologia mais avanada etc.) ou, ento, pela queda no valor
das mercadorias que entram na reproduo da fora de trabalho.
Em ambos os casos (quer pelo aumento da capacidade produtiva
do trabalho, quer pela reduo do seu valor devido queda do valor
das mercadorias que entram em sua reproduo), uma maior parcela da riqueza produzida ser apropriada pelo burgus, a mais-valia
relativa3.
No h um abismo entre as mais-valias relativa e absoluta (Marx,
3 Para que diminua o valor da fora de trabalho, o aumento das foras produtivas tem de atingir ramos industriais cujos produtos determinam o valor da fora
de trabalho, que, portanto, pertenam esfera dos meios de subsistncia costumeiros ou possam substitu-los (Marx, 1983:251). Na sequncia, Marx fornece
o exemplo de uma camisa. Em A misria da filosofia, Marx j escrevia com todas
as letras: Sem dvida, se o preo de todas as mercadorias se reduz e esta baixa
a conseqncia necessria do livre-cmbio , eu posso comprar por um franco
muito mais coisas que antes. E o franco do operrio vale tanto como qualquer
outro. Portanto, o livre-cmbio ser muito vantajoso para o operrio. Aqui, h somente um pequeno inconveniente: que o operrio, antes de trocar o seu franco
por outras mercadorias, tem, primeiro, de trocar o seu trabalho contra o capital
(Marx, 1985b:189).
17

Cad os operrios ?
1985:105-112). Como o que importa para o burgus o seu lucro,
e no a classificao como relativa ou absoluta da mais-valia que
expropria de seus trabalhadores, frequente uma combinao entre
as duas maneiras de ampliao da mais-valia, tanto nas empresas tomadas isoladamente, como em setores econmicos como um todo
(ramos industriais ou agricultura). Ainda que as formas germinais
dessa combinao entre as mais-valias absoluta e relativa possam
ser encontradas antes, foi com a passagem do capital concorrencial
ao capital monopolista, ao redor de 1870, que ela se generalizou e
revelou a sua importncia para a reproduo do capital.
O processo de concentrao do capital fez com que, a partir da
crise de 1870-71, as principais economias capitalistas passassem a
ser dominadas pelos grandes grupos econmicos: adentramos o capitalismo monopolista. So os cartis, monoplios etc. fazendo a
sua entrada em cena de modo triunfal. Enquanto existir capitalismo,
ser em suas mos (e das suas formas contemporneas mais desenvolvidas e poderosas) que repousar o leme da economia mundial.
O capital monopolista possui uma capacidade de investimento, de
manipulao dos mercados, e um poder de presso sobre o Estado
incomparvel com qualquer fortuna burguesa anterior; os cartis e
monoplios passam, virtualmente, a controlar a poltica econmica
e a poltica externa dos Estados nacionais. Agora, os negcios do
conjunto da burguesia tm possibilidade de empregar o comit
encarregado4 de administr-los (o Estado) de modo muito mais
imediato que no capitalismo concorrencial. Crescem tanto a interveno do Estado na economia quanto o emprego do poderio militar nacional para decidir a concorrncia internacional entre os grandes cartis e monoplios a concorrncia entre os grandes capitais
tende a se converter em disputas blicas entre pases. Da Partilha
da frica Negra (a diviso do continente africano subsaariano entre as potncias europeias na virada do sculo 19 para o sculo 20
(Brunschwig, 1974)) s duas Grandes Guerras; da Coreia e Vietn
ao Iraque e Afeganisto, a poltica externa dos Estados sempre
impulsionada pelos monoplios e cartis. o Imperialismo (Lenin).
Esse predomnio dos cartis e monoplios sobre o Estado est
associado a outro fenmeno. Por suas necessidades prprias, a expanso industrial faz surgir produtos mais refinados, com tecnologia
superior, que 1) requerem a produo de matrias-primas, compo4 No Manifesto Comunista, Marx e Engels definem o Estado como o comit encarregado de administrar os negcios do conjunto da burguesia.
18

Sergio Lessa
nentes, energia etc. com uma fora de trabalho rudimentar e menos
especializada. O crescimento dessa parcela mais rude dos operrios
incrementado, ainda, pelo fato de que a tecnologia mais desenvolvida tambm simplifica as operaes no processo produtivo, o
que amplia o emprego de mulheres e crianas; 2) por outro lado,
tcnicas e processos de trabalho mais avanados ampliam a demanda por alguns poucos trabalhadores especializados, imprescindveis
a alguns ndulos do processo de produo (a distino entre os
ferramenteiros e o restante dos pees nas metalrgicas fordistas
etc.). Os salrios desse setor tendem a ser os mais elevados de toda
a cadeia produtiva.
Ao lado dessa distino entre operrios especializados e a massa
proletria, atua um mecanismo ainda mais profundo e com consequncias mais duradouras. A mera expanso industrial, com a concentrao de capitais e o crescimento dos centros urbanos, espontaneamente cria um indito mercado consumidor de produtos de
primeira necessidade (roupas, comidas, remdios, construo civil,
equipamentos domsticos etc.) e gera uma nova demanda por servios (abastecimento de gua, transporte, segurana, lazer, manuteno domstica, sade etc.). Enquanto a concentrao de capital
no atingiu seu patamar monopolista e as tendncias que conduzem
s crises cclicas ainda no se intensificaram o suficiente, os investimentos na produo de bens de primeira necessidade e nos servios
eram de pequena monta. Isso se alterou na passagem para a fase
monopolista, quando a produo de bens de primeira necessidade
e os servios passaram a ser lucrativos e receberam inverses cada
vez maiores. Uma nova fonte de mais-valia absoluta se desenvolveu
em um setor que, anteriormente, tinha o consumo atendido por
artesos ou pequenas empresas, quando no pelo trabalho domstico (roupas, remdios etc.). Ao mesmo tempo, o valor dos bens de
primeira necessidade (agora industrializados) e dos servios (agora
fornecidos em larga escala) tende a diminuir, reduzindo proporcionalmente a poro da jornada destinada reproduo da fora
de trabalho. A industrializao dos bens de primeira necessidade e
os servios fornecidos em larga escala levam queda do valor da
fora de trabalho e ampliam, portanto, a mais-valia relativa (Marx,
1983:249-255). Em poucas palavras, o sistema do capital se revitalizou ao contar, por meio da industrializao da produo dos bens
de primeira necessidade e servios em larga escala5, com uma nova
5 O barateamento dos servios que entram na reproduo da fora de trabalho
ser a funo primordial das polticas pblicas. No por acaso Bismarck um ino19

Cad os operrios ?
fonte de mais-valia absoluta que, de quebra, ainda potencializa a
extrao da mais-valia relativa.
Essa articulao entre a mais-valia absoluta e relativa ser incrementada pela expanso imperialista. O acesso a fontes mais baratas
de matrias-primas e energias j era, por si s, uma importante nova
fonte de mais-valia absoluta. Todavia, ainda possibilita a produo
de bens de primeira necessidade com menor custo, ampliando assim
o poder de compra dos operrios dos pases imperialistas. No apenas a burguesia mas, tambm, parcela dos trabalhadores, tiram vantagens da brutal explorao dos trabalhadores das colnias. Quanto
mais baratos os produtos coloniais, melhor para eles! Um setor dos
operrios e dos trabalhadores, principalmente aquele mais especializado e com melhores salrios, com maior tradio de luta e experincia poltica, passou a participar de um mercado consumidor em
expanso e se aliou burguesia na defesa das polticas imperialistas.
O desenvolvimento dessa aliana aprofundou a ciso no seio do
proletariado: de um lado, aquela parcela que tem acesso ao mercado
consumidor, e do outro lado, a massa de operrios e trabalhadores nos pases imperialistas e nas colnias que produzem desde as
matrias-primas at os meios de subsistncia costumeiros (Marx,
1983:251). Quanto menor o custo de produo desses bens (portanto, tambm quanto menor a remunerao dos operrios e trabalhadores desses setores), maior o acesso ao mercado dos assalariados
de maior poder aquisitivo.
Em todos os pases que se industrializaram surgiu um setor operrio mais especializado, com ganhos melhores, maior capacidade
de articulao e ao poltica devido sua maior cultura e melhor
formao profissional, ao lado de um outro setor, mais numeroso,
composto por trabalhadores no especializados, muitas vezes por
mulheres e crianas, com menos estabilidade no emprego, menor
conscincia poltica e menor capacidade de organizao.
Prximo do final do sculo 19, Engels j constatava como esse
setor da classe operria tendia a ser um aliado da burguesia, e o
denominou de aristocracia operria. Lenin, no Prefcio s edies
francesa e alem de Imperialismo, etapa superior do capitalismo, definiria
deste modo a aristocracia operria:
Essa camada de operrios aburguesados ou de aristocracia operria, inteiramente pequeno-burgueses pelo seu gnero de vida, pelos seus vencimentos e por toda a sua concepo do mundo, constitui o principal apoio da II
vador e pioneiro nessa rea. Sobre isso, cf. Lessa, 2013, em especial o Captulo V.
20

Sergio Lessa
Internacional e, hoje em dia, o principal apoio social (no militar) da burguesia. Porque so verdadeiros agentes da burguesia no seio do movimento operrio, lugar-tenentes operrios da classe capitalista (labor lieutenants of
the capitalist class), verdadeiros veculos do reformismo e do chauvinismo. Na
guerra civil entre o proletariado e a burguesia colocam-se inevitavelmente, em
nmero considervel, ao lado da burguesia, ao lado dos versalheses contra
os communards. (Lenin, 1984:585)

Na Frana, por exemplo, entre as duas Guerras Mundiais, o fordismo e o taylorismo foram introduzidos e a aristocracia operria
se destacou do restante do operariado. As contradies desse desenvolvimento industrial conduziram a grandes embates entre os
trabalhadores e os burgueses, embates nos quais a disposio ao
compromisso da aristocracia operria vai separando-a do restante
dos trabalhadores. O ponto culminante foi o Governo da Frente
Popular e a onda grevista que seguiu sua posse, em 1936. A direo
reformista tanto do PCF quando do PS, apoiada pela aristocracia
operria, conduziu a greve a uma histrica derrota e ao fortalecimento dos organismos de controle do Estado e do patronato sobre
os trabalhadores (Danos e Gibelin, 1972). A aristocracia operria recebeu como recompensa uma maior presena nos rgos do Estado
e nos mecanismos institucionais de negociao trabalhista. O resultado foi que, terminada a II Grande Guerra, o governo De Gaulle
pde entregar a administrao dos fundos para a previdncia social
s grandes centrais sindicais, que se transformaram em administradoras da fora de trabalho para o capital. Converteram-se, como
dir Alan Bihr, em ces de guarda do grande capital6.
Na Inglaterra, essa aliana da aristocracia operria com a burguesia teve incio no final do sculo 19.
Pelo terceiro quarto do sculo [19] o Labour Movement havia se convertido eminentemente em um movimento da Labour Aristocracy. As mais
importantes e estveis instituies trabalhistas (Labour institutions) estavam constitudas de tal modo a excluir a vasta maioria dos trabalhadores. () Este profundo abismo entre aaristocracia e os plebeus, en6 Bihr, 1998. Este texto, que teve alguma repercusso no pas, ignora a distino
entre o proletariado e sua aristocracia, e, ainda, entre o proletariado e os demais
assalariados. Desse modo, pde converter o discurso dos burocratas oriundos da
aristocracia operria em expresso do desejo da totalidade dos assalariados. Esse
um dos muitos equvocos de sua tese de que residiria em processo marcado pela
poltica (pela subjetividade), isto , por um compromisso de classe entre o proletariado e o capital, a gnese e a trajetria do Estado de Bem-Estar. Discutimos esse
texto em Lessa, 2013: 206. Um relato muito rico em detalhes dessa aliana dos
sindicatos com o capital na Frana, de uma perspectiva conservadora, pode ser
encontrado em Dutton, 2002. Sobre o caso sueco, conferir Korpi, 1980; sobre a
Inglaterra, Jones, 1971; e sobre os Estados Unidos, Perlo, 1963 e OConnor, 1973.
21

Cad os operrios ?
tre os organizados e os desorganizados, no impediu que os porta-vozes
destes ltimos supusessem que falavam em nome de todas as classes trabalhadoras. Socialmente e nas indstrias, a aristocracia do trabalho tomava as
precaues para se separar da enorme maioria dos que trabalham, mas, na
poltica, algumas vezes achou conveniente posar como autntica porta-voz da
classe trabalhadora como um todo. (Harrison, 1965:32)

Nesse contexto, continua Harrison, () no h dvidas de que nos


anos de 1860 e 1870 um nmero de grandes empregadores adotou
uma nova e positiva postura para com as Trade Unions em particular
e com o Labour Movement em geral (Harrison, 1965: 37).
Arghiri Emmanuel, ao analisar a diviso internacional de trabalho aps a Segunda Guerra, demonstrou como
um de facto unido front dos trabalhadores e capitalistas dos pases que se deram
bem (well-to-do countries), dirigido diretamente contra as naes pobres, coexiste
com uma luta trade-unionista interna sobre a diviso do butim. Nessas circunstncias, as lutas sindicais necessariamente se tornam mais e mais um tipo
de acerto de contas entre scios, e no acidental que nos pases mais ricos, tal
como os Estados Unidos com tendncias similares j aparentes nos outros
grandes pases capitalistas , a luta sindical militante esteja degenerando primeiro em um trade-unionismo de tipo britnico clssico, em seguida em corporativismo e, finalmente, em gangsterismo. (Emmanuel, 1972:181. Conferir
tb. Emmanuel, 1974)

Emmanuel prossegue relatando casos: estivadores estadunidenses que no entraram em greve para colaborar com a agresso
americana contra o Vietn, mas que entraram em greve para no carregar navios que iam a Cuba; Kennedy considerando como presso da minha direita os encontros mantidos com sindicalistas etc.
(Emmanuel, 1972:181 e ss.).
Apesar das divergncias com Emmanuel, Samir Amin tambm
argumentou algo semelhante:

Se Imperialismo, etapa superior do capitalismo permanece o principal trabalho revolucionrio que ainda define o essencial do sistema contemporneo, isto porque Lenin estabeleceu a conexo objetiva entre monoplios e revisionismo
(aquele da Segunda Internacional de sua poca). () O ponto essencial que
a extenso deste papel hegemnico dos monoplios em uma escala mundial,
e a diviso da classe trabalhadora no centro, que aceitou a hegemonia revisionista, ocorreu simultaneamente. (...) Lenin chamou ateno para essa simultaneidade, pois denunciou as razes objetivas da hegemonia da aristocracia
operria sobre a classe, a reduo do marxismo a uma expresso ideolgica
economicista e a burocratizao e a traio nacionalista dos partidos da classe
trabalhadora da Segunda Internacional (...). (Amin, 1977:107-8)

Sendo breve: o desenvolvimento do capitalismo monopolista


deu origem a um setor da classe operria que se distingue do conjunto do operariado pela sua maior disposio aliana com o grande capital, a aristocracia operria. Foi essa aristocracia operria que
22

Sergio Lessa
forneceu parte significativa da base social do reformismo contemporneo. O capitalismo encarregou-se de fornecer a outra poro
da base social do reformismo: o gigantesco deslocamento da fora
de trabalho, das indstrias, para o setor de servios. Uma camada de
trabalhadores tipicamente mais estvel, com salrios melhores e
menores jornadas de trabalho engrossou o mercado de consumo
de produtos fabricados em srie, contribuindo para a queda de seus
preos pelo aumento da produo. Com isso, o crculo se realimentou: queda do valor dos bens que entram na reproduo da fora
de trabalho, consequente queda do valor da fora de trabalho. Essa
situao prosseguiu, com muitas flutuaes, at o incio da crise estrutural, em meados da dcada de 1970.
Para o nosso tema: a aliana da aristocracia operria com o capital
conduziu a um fenmeno tpico do ps-guerra: o aumento do peso
das grandes estruturas sindicais na vida social. Na Europa, onde essas estruturas j existiam, elas passaram por transformaes importantes e se adaptaram nova qualidade da sua relao com os poderes estabelecidos. Em linhas gerais, aumentaram seu peso poltico ao preo da domesticao do seu horizonte estratgico, fizeram
diminuir a influncia dos organismos de base nas decises da cpula
dirigente e converteram os dirigentes em membros remunerados
inamovveis dos sindicatos, formando uma casta com interesses
prprios distintos dos de sua base (Bihr, 1998:48). Aumento do
peso social da aristocracia operria, burocratizao dos sindicatos
e integrao destes ao Estado so tendncias que se potencializam
mutuamente. J mencionamos como De Gaulle pde entregar s
grandes centrais sindicais, que j atuavam como ces de guarda do
capital, a administrao da previdncia social. Na Inglaterra,
O governo () estabeleceu novas relaes com a classe trabalhadora. A liderana sindical foi incorporada na estrutura do governo. Sua cooperao
foi solicitada e ofertada em numerosas questes, a mais dramtica sendo o
congelamento de salrios em 1958. Eles tambm aceitaram a queda no padro
de vida implcita na desvalorizao [cambial] de 1949. A conteno sobre os
salrios praticada pelos sindicatos segurou o crescimento dos salrios reais a
virtualmente zero nos anos de governo trabalhista. Mais importante que tudo,
os lderes sindicais concordaram com a continuidade da National Arbitration
Order, que tornava ilegais todas as greves. () Durante o lustro 1945-50, o
nmero de dias perdidos nunca subiu acima dos 2,5 milhes por ano, e as
greves eram todas no oficiais. (Glyn e Sutcliffe, 1972:37)7
7 Os mesmos autores do os seguintes nmeros para os dias parados/ano: 8,4
milhes durante os anos da Primeira Grande Guerra (1914-18); 32,2 milhes
de 1919-26; 10,6 milhes de 1927-38 (em meio crise e logo antes da Segunda
23

Cad os operrios ?
Miliband, ao analisar essa docilidade dos sindicatos, comenta que
at um sindicalista de esquerda como Walther Reuther pde afirmar que
ns devemos moldar nossas polticas pelo reconhecimento de que trabalho
livre e empreendedorismo livre so menos antagonistas que parceiros, que
eles tm mais em comum do que so conflitantes. Ns precisamos ampliar as
reas de entendimento e minimizar as reas de conflito. (Miliband, 1969:160,
nota 1)

Essa postura dos sindicalistas

() facilitou em muito a relao dos lderes sindicais com os empregadores e


o governo e forneceu uma base slida para um processo de colaborao entre
eles que tornou tais lderes scios menores do empreendimento (enterprise) capitalista. Esse processo agora assumiu um carter muito mais oficial do que no
passado: os sindicatos so agora regularmente consultados pelos seus governos, e seus representantes so tambm encontrados em vrios organismos
do sistema estatal. Os lderes sindicais acreditaram facilmente em que, porque
foram reconhecidos como elementos necessrios na operao do capitalismo,
tambm atingiram paridade com os negcios na determinao das polticas.
De fato, suas incorporaes na vida oficial de seus pases serviram principalmente para faz-los assumir responsabilidades que enfraqueceram ainda
mais suas posies de negociao e que ajudaram a diminuir sua efetividade.
(Miliband, 1969:160-1; tb. Robinson, 1962)

Em um texto de 1971, V. L. Allen comentou a alterao no status


social dos sindicalistas: Os sindicatos so um fenmeno em geral
bem-aceito na Gr-Bretanha.

A integrao dos sindicatos na estrutura da sociedade tem lhes dado importncia em termos ocupacionais e sociais. Um membro do sindicato agora
bem-vindo em todos os nveis da administrao industrial pblica e privada
devido aos seus conhecimentos e compreenso dos sindicatos; ele no necessariamente marginalizado, simpatiza-se com estes. Uma associao com
os sindicatos no mais uma desqualificao para a entrada em alguns antes
muito fechados crculos sociais. () Informalmente, em alguns crculos sociais e em algumas circunstncias, os sindicalistas so pessoas a ser cortejadas
e bajuladas. (Allen, 1971:45-6)

Por onde quer que olhemos, atravs de sua integrao, o movimento operrio seria progressivamente transformado em estrutura
mediadora do comando do capital sobre o proletariado (Bihr, 1998:46).
O desenvolvimento da articulao entre as mais-valias absoluta e
relativa, com a consequente gnese e desenvolvimento da aristocracia operria, o fundamento do que Marx, em O Capital, denomina
de subsuno real do trabalho ao capital (Marx, 1985:106). Parte
da classe operria converte-se em aliada da burguesia na explorao
Grande Guerra); e 3,3 milhes de 1953-64 (Glyn e Sutcliffe, 1972:40).
24

Sergio Lessa
do restante dos trabalhadores (e, a histria tem sua ironia, tambm
na explorao de si prpria). Isso no significa que a aristocracia
operria no seja explorada pelo capital com o qual se aliou, nem significa a gnese de uma nova classe social (Mandel, 1964). Significa,
apenas, que algumas das vantagens da aristocracia operria, se comparada ao restante da classe, podem ser ampliadas, dentro de limites,
pela maior explorao do restante dos trabalhadores.
Temos agora os elementos suficientes para a anlise do desenvolvimento da classe operria no Brasil. Voltemos, pois, a ela.

25

Sergio Lessa

Captulo II

De volta ao Brasil
Mencionamos acima que a passagem do sculo 19 ao sculo 20
foi o momento em que o pas deu os primeiros passos da sua adaptao s novas condies trazidas pelo capitalismo monopolista. Nos
pases capitalistas centrais, esse processo resultou na expanso do
mercado, na gnese e no desenvolvimento da aristocracia operria
com todas as consequncias ideolgicas e polticas decorrentes. No
Brasil, esse mesmo processo resultou na transferncia da produo
de caf do Rio de Janeiro para So Paulo, na expanso da monocultura cafeeira pelas enormes reas de terra roxa com a substituio
dos escravos pelos imigrantes assalariados e no fortalecimento do
nosso carter colonial8 pelo aprofundamento da monocultura exportadora e pela converso em modernas das tradicionais oligarquias. Passamos do Imprio para a Repblica.
A produo de caf em So Paulo requereu a entrada de capitais
estrangeiros numa escala indita em nossa histria. Exigiu a produo local de insumos e equipamentos indispensveis nova escala
de produo e transporte (ferrovias). Surgiram oficinas, pequenas
8 Jos Chasin autor de importante tentativa de investigar at que ponto o desenvolvimento do capitalismo em nosso pas se distingue tanto da via prussiana
quanto do desenvolvimento capitalista tpico dos pases centrais, consubstanciando uma trajetria histrica particular, peculiar, que denominou de via colonial
(Chasin, 1978).
27

metalurgias, e fbricas de ferramentas agrcolas etc. A expanso


da civilizao para o oeste paulista, o crescimento do porto de
Santos e de cidades como Campinas e Jundia geraram um mercado
consumidor limitado e restrito, mas que era uma novidade. O resultado foi uma oligarquia, a paulista, que se modernizou sem deixar
de ser oligarquia. Seu setor dominante no habitava mais o campo
e, sim, os casares da Avenida Paulista. Era mais rica, mais urbana
e mais moderna que as tradicionais oligarquias carioca ou nordestina. Agora, com a Repblica Velha, havia at mesmo eleies, e
a disputa entre as diversas faces oligrquicas encontrava no voto
de cabresto o limite de sua modernizao.
nesse perodo que conhecemos os primeiros trabalhadores que
se aproximavam mais do proletariado que da massa de trabalhadores do campo. As primeiras greves, as dos grficos (um dos primeiros ramos industrializados em nossa economia), datam de meados
do sculo 19 (se as investigaes de Leoncio Basbaum (1986), Edgar
Carone (1989) e Moniz Bandeira (1980) ainda mantm sua validade). Seria preciso, contudo, esperar o ano de 1917 para que o proletariado entrasse em cena em nosso pas.
A ecloso da I Guerra Mundial (1914-18) colocou a oligarquia
brasileira em uma situao catica. Com a guerra, a exportao de
produtos primrios e a importao dos industrializados (o cerne da
economia brasileira) foram subitamente interrompidas. Os portos,
Santos sobretudo, ficaram abarrotados de produtos primrios no
mais exportveis e faltavam os produtos industrializados. Logo,
contudo, novas possibilidades surgiram. A prpria necessidade da
economia de guerra dos pases beligerantes restabeleceu e ampliou
a exportao de bens primrios brasileiros. Ao mesmo tempo, faltavam produtos industrializados para importarmos, j que para o
capital imperialista era mais lucrativo produzir para a guerra do que
para o consumo dos nossos oligarcas. Os preos dos produtos industrializados em nosso pas subiram e estimularam o investimento
na sua produo. Por essa via transversa e meramente conjuntural, o
pas comeou a se industrializar. Pequenas indstrias para abastecer
o mercado interno pipocaram por todo o pas e, na cidade de So
Paulo, j na poca o principal centro consumidor, algumas indstrias
comearam a surgir. Nada semelhante Revoluo Industrial na
Inglaterra entre 1776 e 1830, evidentemente. No nos industrializvamos impulsionados por um mercado mundial nem com base em
um acmulo secular de capital que foi o essencial da Acumulao
Primitiva; nossas indstrias surgiram para atender ao consumo, em
pequena escala, difuso pelo enorme territrio, de uma classe domi-

Sergio Lessa
nante muito pequena e em um pas que nem sequer contava com
um significativo setor de assalariados no proletrios (as classes
mdias).
Esse primeiro impulso industrializao advindo da I Guerra
Mundial, mesmo que limitado, possibilitou o surgimento do primeiro proletariado industrial em nosso pas.
Devido ao nosso passado colonial, mesmo no incio do sculo 20
no havia trabalhadores que conhecessem e estivessem acostumados s exigncias dos processos de trabalho nas indstrias. Faltavam
operrios, pura e simplesmente. A alternativa foi aproveitar a mo
de obra italiana que havia sido trazida ao pas para trabalhar como
assalariada na cafeicultura. O resultado foi surpreendente: uma jovem classe operria, de origem italiana e tradio de luta anarquista
(Garibaldi e tudo o mais), se confrontava com um patronato que,
ainda que economicamente fosse proprietrio de indstrias, carecia de qualquer experincia da vida burguesa no trato com o proletariado. Ou seja, um proletariado pequeno e mal organizado, mas
herdeiro de algumas das tradies de luta dos operrios da Europa,
confrontou-se com uma burguesia recm-surgida e com fortes ranos oligrquicos. Foi o nico momento, em nossa histria, em que
a vantagem no confronto pesou a favor dos operrios: em 1917,
em uma greve memorvel, tomaram por vrios dias a cidade de So
Paulo (Bandeira, 1980).
O final da I Guerra, em 1918, recolocou as coisas nos trilhos:
a agricultura monocultora para exportao, a regra de ouro da economia desde o Descobrimento, voltou a imperar. As indstrias refluram e o peso da classe operria tambm recuou. Muitos trabalhadores voltaram ao campo com a retomada da produo do caf.
As coisas, contudo, no mais seriam exatamente as mesmas, nem
no pas nem no exterior.
Enquanto na Europa e nos Estados Unidos consolidava-se o que
hoje conhecemos como fordismo e taylorismo e o mercado de consumo de massa cumpria um papel cada vez mais importante no deslocamento das contradies do capital; enquanto nos pases imperialistas eram dados passos para a aliana entre a aristocracia operria,
os assalariados no proletrios e a burguesia, sob a liderana dos sindicatos e partidos reformistas, em nosso pas as coisas caminhavam
em um sentido distinto. No Brasil, intensificava-se a necessidade de
produzir mais-valia absoluta a ser predominantemente acumulada
no centro do sistema do capital. Na vida cotidiana isto se expressava
na queda relativa dos preos do caf (e das outras matrias-primas)
29

Cad os operrios ?
em relao aos produtos industrializados e, tambm, nas sucessivas
crises da dvida externa. O pas foi se tornando insolvente. Entre
as faces da oligarquia, a disputa por quem pagaria o preo dessa
insolvncia estrutural marcou a decadncia da Repblica Velha e da
poltica do caf com leite, a aliana entre os oligarcas de Minas
e de So Paulo que dominava a poltica nacional desde o incio do
sculo. A crise de 1929 deu o golpe final na Repblica Velha.
Chegara o momento de So Borja, no Rio Grande do Sul, dar sua
contribuio histria nacional.

30

Sergio Lessa

Captulo III

Getlio Vargas: o novo Brasil no to novo


A nova fase de desenvolvimento do capitalismo brasileiro foi
marcada pela figura de Getlio Vargas. Mesmo tendo se suicidado
em 1954, sua figura continuou a ter presena marcante na vida nacional at o Golpe de 1964.
Getlio encarna, em sua pessoa, muito das contradies mais
importantes do que seria o Brasil entre a Revoluo de 1930 e o
Golpe de 1964. Era um oligarca, da periferia do pas (So Borja, Rio
Grande do Sul). Sem deixar de ser oligarca, foi o principal representante dos interesses dos industriais, banqueiros e comerciantes que
surgiram e se desenvolveram naquelas dcadas. Representante do
capital e dos oligarcas, foi tambm o pai dos pobres, o poltico em
quem as massas trabalhadoras depositavam seus anseios e suas esperanas. Em poucas palavras, Getlio personificou as debilidades,
atrasos e insuficincias do capitalismo brasileiro. A industrializao
acontecia, mas sem foras para destruir o latifndio exportador;
a oligarquia agroexportadora, que dominava o pas desde Cabral,
tambm no conseguia se livrar dos industriais e comerciantes e,
depois, banqueiros que com ela disputavam o poder poltico e as
benesses do governo federal. Os trabalhadores no conseguiram se
constituir em alternativa s classes dominantes e necessitavam da
figura carismtica de Getlio como proteo contra os tubares.
O que explica essa situao histrica so as potencialidades li31

Cad os operrios ?
mitadas, mas reais, do desenvolvimento da indstria e do mercado
interno que do origem a uma burguesia, a um conjunto de assalariados urbanos e a um proletariado que fizeram a sociedade brasileira bem distinta do passado, mas que, contudo, no conseguiram
romper com o destino de uma sociedade produtora de riqueza a
ser acumulada nos centros da economia mundial e, secundariamente, pelos seus scios brasileiros.
A crise de 1929 se prolongou at 1939, quando teve incio a II
Grande Guerra (1939-45). Ainda que a situao econmica no fosse
a mesma durante todos esses 16 anos, teve o efeito de impossibilitar
a manuteno do modelo agroexportador que predominava desde a
colnia. Nos primeiros anos, no era mais possvel exportar os bens
primrios nem importar os produtos industrializados: estava paralisado o centro que absorvia nossa mais-valia absoluta e fornecia
ao pas os produtos industrializados. Tal como durante a I Grande
Guerra, logo restabeleceu-se e mesmo se ampliou a exportao de
bens primrios para os pases em guerra. E, tambm, a elevao dos
preos dos produtos industrializados estimulou a sua produo e foi
retomada a industrializao com capitais locais, voltada ao mercado
local e produzindo bens de consumo. Surgiram pelo pas afora fabriquetas e oficinas de fundo de quintal, cuja lucratividade logo passou
a atrair a ateno de capitais mais vultosos. Comeou a se formar
uma jovem classe operria, recm-deslocada do campo pela paralisia
da agricultura de exportao e diferentemente da gerao anterior
sem a experincia anarquista e combativa dos italianos da jornada
gloriosa de 1917 em So Paulo. Esparramada pelo pas em pequenas
e mdias indstrias, oficinas etc., sem uma organizao nacional,
ainda marcada pelas atrasadas condies rurais de vida e trabalho,
foi surgindo uma classe operria com um baixo nvel de conscincia
e capacidade de luta. Tipicamente, no conhecemos nesse perodo
o fordismo. Os operrios se aproximavam, em seus conhecimentos
e em suas habilidades, nos seus processos de trabalho, dos artesos
das pequenas oficinas que se desenvolveram no pas desde o incio
do sculo 20. Ao final de dcada de 1950, a entrada das multinacionais (automobilsticas, principalmente) comeou a alterar este quadro, com o fordismo e o taylorismo sendo adaptados s condies
extremamente favorveis para se explorar a fora de trabalho local.
Todavia, apenas na dcada de 1970, com o Milagre Brasileiro, a
classe operria no pas ganhou uma verdadeira feio fordista e os
processos de trabalho se aproximaram dos centros capitalistas mais
avanados.
As novidades trazidas pela crise de 1929 e pela II Guerra Mundial,
32

Sergio Lessa
claro est, no foram poucas. Passamos a contar com uma balana
comercial favorvel, chegamos em 1945 (o ano final da II Grande
Guerra) sem dvida externa e com dinheiro em caixa. Nossas exportaes continuavam sendo amplamente de bens primrios. Mas,
agora, os minrios, algodo e outros produtos concorriam com o
caf, ainda nosso principal produto de exportao. As cidades cresceram e as primeiras rodovias foram construdas. A insanidade de
Braslia o smbolo do novo e moderno pas, cujo destino manifesto seria o de crescer 50 anos em 5 (slogan da campanha eleitoral de Juscelino Kubitschek). Um heterogneo setor de assalariados
no proletrios, funcionrios pblicos mas tambm empregados no
comrcio e nos servios, engrossou os centros urbanos ao lado dos
operrios das novas indstrias. Banqueiros e industriais se juntaram
oligarquia como parte das classes dominantes (muitos deles, tanto
por ligao familiar como pela origem de seus capitais, vieram da
oligarquia); o moderno e o arcaico encontraram um modo de
conviver, no sem conflitos, em uma mesma estrutura de poder. O
sonho de um capitalismo nacional, que distribusse renda pelo desenvolvimento do mercado interno a CEPAL , a expresso ideolgica desse novo setor da classe dominante e dos assalariados no
proletrios. O desenvolvimentismo, na sua ala esquerda, ganhou
acento moderadamente anti-imperialista e democrtico um pouco
mais radical. A SUDENE, Celso Furtado etc. conhecem seus dias
de glria. O PCB e, depois, tambm o PC do B, compuseram a ala
esquerda desse projeto verdadeiramente nacionalista, e pretensamente popular.
Tais novidades, contudo, no alteraram a essncia da nossa formao. Desde 1500 nossa funo no concerto das naes foi a
de fornecedor de riqueza (quase sempre, sob a forma de mais-valia
absoluta) para a acumulao do capital na Europa e, depois, tambm
nos EUA. Com a Revoluo Industrial, essa diviso internacional
consolidou a especializao de pases exportadores de industrializados versus exportadores de produtos primrios. Esse nosso lugar,
decorrente do desenvolvimento do sistema mundial do capital, no
foi alterado pela I Grande Guerra e pelos anos entre a crise de 1929
e o final da II Grande Guerra. J mencionamos ao menos as alteraes mais importantes que o pas conheceu nesses momentos: surgiu uma burguesia, um setor assalariado de servios (funcionrios
pblicos etc.) e o proletariado o pas se urbanizava. Contudo, a
ruptura com nosso passado colonial com nosso lugar no mercado
mundial um aspecto que nem sequer foi tocado. Desenvolvemos
as indstrias, as cidades e classes sociais mais modernas no por33

Cad os operrios ?
que rompemos com o grande capital internacional e seus aliados
internos. Justamente, o contrrio: foi a crise do capital mundial que
abriu tais possibilidades e, com a superao da crise, todas elas foram fechadas.
A manuteno dessa subordinao s exigncias do capital internacional se manifestava tambm no fato de que as novas classes
no surgiram contra as velhas. A burguesia e o proletariado no
precisaram destruir nem as oligarquias nem o latifndio para se desenvolverem. Pelo contrrio, condio indispensvel ao seu desenvolvimento foi o latifndio exportador. Foi ele, ao fim e ao cabo, a
origem de muito do capital canalizado para a industrializao. Veio
da exportao dos produtos primrios (em tudo semelhante ao passado colonial, ou seja, pela destruio do meio ambiente, explorao
brutal da fora de trabalho, acumulao nos pases capitalistas centrais etc.) o capital para que o Estado investisse, entre outras coisas,
na CSN, na Petrobras e em outros empreendimentos de porte indispensveis industrializao, mas que a debilidade da burguesia
nacional a impossibilitava de assumir.
A dependncia do novo Brasil para com o velho, do setor
mais moderno da economia e da sociedade para com a economia
agroexportadora e a oligarquia, politicamente se expressou no getulismo ou varguismo, como se queira chamar. Os inevitveis e inerentes conflitos da aliana de uma burguesia nascente e cujos interesses
no coincidiam inteiramente com os dos oligarcas mas que, contudo, deles dependia , foram administrados por um poltico, personalista e carismtico, que se apresentava como acima das classes.
Do ponto de vista do desenvolvimento dos trabalhadores, tivemos a impossibilidade de o proletariado se constituir como sujeito
revolucionrio, tanto devido ao precrio e limitado (ainda que real)
desenvolvimento do parque industrial nacional, como tambm pelo
fato de ser um proletariado que surgiu de uma industrializao dependente da economia agroexportadora. De modo anlogo a como
o operrio era, naqueles dias, um campons que deu certo e subiu na vida ao se transferir para a cidade, boa parte do capital industrial era recurso antes investido na agricultura e que deu certo
ao migrar para a indstria nas cidades. A burguesia e o proletariado
eram, nesse sentido, como que a extenso da oligarquia e do campesinato, no suas superaes. A poltica industrial de Getlio gerava
os empregos que os ex-camponeses necessitavam; a regularizao
das leis trabalhistas impunha uma ordem na disputa entre capital
e trabalho necessria aos bons negcios; os estmulos s exportaes dos bens primrios agradavam tanto oligarquia quanto
34

Sergio Lessa
burguesia. Os trabalhadores e proletrios, historicamente imaturos,
impotentes para se elevar classe dominante, veem no pai dos pobres a defesa contra a sanha exploradora da centenria oligarquia e
da jovem burguesia. Getlio foi se tornando a confluncia de todas
as incompletudes e debilidades do desenvolvimento do capitalismo
em nosso pas9.
O desenvolvimento desigual e combinado no possibilitou que
nossos operrios superassem, em alguns anos, o atraso secular do
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Mas possibilitou que, a
partir das dcadas de 1960-70, a burguesia reproduzisse em novos
moldes a secular articulao das oligarquias com o capital internacional.
A entrada do capital estrangeiro, por meio das multinacionais,
desde o governo JK (1956-1961), era sinal inequvoco de que o lugar
ocupado pelo pas no concerto internacional era essencialmente
o mesmo do passado. Nossa funo, no sistema do capital, continuava sendo a de produzir riquezas para serem acumuladas pelos grandes capitais internacionais. Depois da II Grande Guerra,
tornou-se ainda mais forte a tendncia, que j podemos encontrar
em anos anteriores, de os pases imperialistas montarem estruturas
produtivas para se apropriar diretamente, atravs das multinacionais,
da mais-valia absoluta produzida nos pases da periferia do sistema.
O Brasil foi um dos pases preferidos pelo grande capital: politicamente, era confivel. Nossas classes dominantes nunca tiveram
arroubos mais elevados e sempre se contentaram com o lugar de
lambe-botas dos imperialistas. Contava com centros urbanos e estruturas de transporte e comunicao adequadas industrializao,
as matrias-primas e energias eram abundantes e baratas e, alm
disso, possua uma classe operria sem tradio de luta revolucionria.
Nos dez anos entre 1965 e 1975, o pas se converteu em uma
economia industrializada. O milagre brasileiro (1969-73) a marca da virada. O grande capital internacional se aliou com setores da
burguesia nacional e com o latifndio (que, esto, se transformava
9 H uma tentativa de entender o fenmeno do varguismo (e, por vezes, tambm
do lulismo) como formas de bonapartismo. Meu desconhecimento do tema no
possibilita que tome uma posio. Posso, apenas, marginalmente observar que
transplantar o modelo bonapartista to somente como uma forma poltica de
relao entre o Estado e a sociedade uma variante do politicismo e, enquanto
tal, distante da formulao clssica de Marx em O 18 Brumrio... (Chasin, 1977;
Tonet e Nascimento, 2009).
35

Cad os operrios ?
em agrobusiness), resultando em uma mistura que no poderia ser
mais palatvel para o grande capital: uma agricultura exportadora,
monocultora e capaz de converter rapidamente nossas riquezas naturais em enormes massas de mais-valia absoluta se articulou, poltica e economicamente, com uma economia urbana industrializada
que gera uma adicional massa de mais-valia absoluta a ser apropriada pelos centros capitalistas. A burguesia brasileira, surgida to tardiamente, finalmente encontrou um rentvel lugar subordinado ao
capitalismo internacional e que, alm disso, lhe possibilitou manter
e fortalecer a aliana com a classe dominante do campo. Os trabalhadores brasileiros, principalmente os operrios do campo e das
cidades, encontram pela frente as classes dominantes articuladas em
um projeto comum sob os auspcios do grande capital internacional
e sob o taco da ditadura militar.
A dcada de 1970 fez o pas conhecer seu primeiro verdadeiro
centro industrial, a grande So Paulo; quela poca e por muitos
anos depois, responsvel por mais da metade da produo industrial
do pas. Uma classe operria concentrada, trabalhando em pssimas
condies, com salrios muito baixos, morando em bairros miserveis e reprimida em sua organizao poltica e sindical, passou a fazer
parte da vida nacional. O impressionante crescimento da periferia
da grande So Paulo, naqueles anos, s era comparvel instalao,
no ABC, das grandes montadoras automobilsticas, com dezenas de
milhares de trabalhadores (a Volkswagen de So Bernardo contava
com cerca de 30 mil operrios) e uma no menos gigantesca cadeia
de autopeas e empresas prestadoras de servio. O fordismo chegou
ao Brasil. O mercado interno, inerente ao fordismo nos pases capitalistas centrais, ainda que timidamente, comeou a dar os primeiros
passos no patropi, e os setores assalariados, principalmente os de
maior poder aquisitivo, aderiram de corpo a alma ao Brasil: ame-o
ou deixe-o.
Entre meados de 1960 e o final de dcada de 1970, portanto
algo menos do que em vinte anos, surgiu a gerao de operrios
que sucedeu gerao anterior, a do perodo Vargas. Com a gerao
anterior compartilhou o fato de ter vindo do campo para a cidade
h pouco tempo. A maior parte dos novos operrios nasceu e viveu
a infncia no campo ou muito prximo a ele, em pequenas cidades.
Apenas o fato de vir para a cidade j era uma ascenso social, ainda que fosse para morar na periferia. A industrializao gerava os
empregos necessrios para que, dos casebres dos primeiros anos,
o jovem operrio chegado do campo evolusse para uma primeira
casinha e, depois, para uma casa melhor. Seus filhos iam escola
36

Sergio Lessa
(e a escola pblica era, ento, de boa qualidade). As multinacionais
traziam inverses de capital que movimentavam a economia, o pas
aumentava sua produo e o milagre esteve em marcha at a
crise do petrleo, a derrota americana no Vietn e o incio da crise
estrutural em meados de 1970.
Todavia, a crise estrutural do capital, cujo incio, no Brasil, ps
fim aos anos do milagre, logo iria abrir quem diria! novas e
ainda mais fantsticas possibilidades ao desenvolvimento do capitalismo em nosso pas!
Crise estrutural e desenvolvimentismo petista
Nos anos de 1950 e 1960, a principal mediao para incrementar
a extrao de mais-valia absoluta em nosso pas (no apenas aqui,
nisso no fomos exceo no mundo) eram as multinacionais. A indstria nacional (local, produzindo em pequena escala, tecnologicamente atrasada, dbil) foi eliminada com a entrada das multinacionais; a classe operria teria de ser reciclada aos novos padres e
os sindicatos e partidos ligados aos interesses, mesmo que economicistas e reformistas, dos trabalhadores, deveriam ser retirados do caminho. JK foi o governo que tentou conciliar o desenvolvimento de
um capitalismo nacional (Braslia, principalmente) com o capital
internacional (a entrada das multinacionais no setor automobilstico,
mas no apenas). A impossibilidade histrica de compatibilizar esses interesses levou ao Golpe de 1964. Da burguesia nacional sobreviveria aquela parcela que conseguisse se internacionalizar enquanto
parceira do grande capital na explorao, no campo e na cidade, da
classe operria, agora mais disciplinada e desorganizada pela represso. Dos partidos de esquerda, nenhum sobreviveria para ser o representante do novo proletariado: alm das organizaes menores, tanto o PCB quanto o PC do B perderiam a corrida para o PT.
Tal como vem ocorrendo desde o Descobrimento, em 1500, o
fator decisivo para o rumo que as coisas tomaram no Brasil, depois
de 1970, foi a evoluo do grande capital internacional.
A crise estrutural no se iniciou em meados da dcada de 1970,
digamos, pomposamente, como uma crise estrutural, tal como hoje a
vemos de uma perspectiva de tantas dcadas10. Ela se iniciou com
10 Fazendo justia, j no final da dcada de 1970 Istvn Mszros estava escrevendo sobre a crise estrutural. Em 1983, em sua primeira viagem ao Brasil, esse
foi o tema principal de suas conferncias e entrevistas. Mas, ento, ele era prati37

Cad os operrios ?
uma aparncia semelhante a outras tantas crises que a economia
mundial vinha conhecendo desde meados de dcada de 1950. Era
mais uma crise que, pensavam, seria rapidamente substituda por
um novo perodo de expanso. Para decepo de muitos Delfins
Netos, com altos e baixos, avanos e recuos, desde ento as contradies do sistema do capital no deixaram de se agudizar. O fim
do bloco sovitico no tornou as coisas melhores, e o sculo 21 se
iniciou com a crise de 2001 seguida pela elevao da crise a um novo
patamar, em 2008.
O que tem ocorrido com o Brasil, nesse contexto de crise estrutural, algo anlogo ao que ocorreu com a regio de Hippo, no
norte da frica, nos primeiros sculos da era crist. A decadncia do
Imprio Romano fez com que, por no ter sido invadida e por contar com uma estrutura produtiva de cereais ainda em funcionamento, Hippo se tornasse uma das mais prsperas regies do Imprio.
Eventualmente, a crise tambm chegou l. No antes, contudo, de
ter vivido anos de uma prosperidade econmica que no conhecera
no apogeu do Imprio, quando enfrentava a concorrncia de cereais
do Egito e da prpria Itlia11. Este um fenmeno muito comum
quando da decadncia de imprios: alguns locais da periferia conhecem um sbito e surpreendente crescimento econmico que,
aparentemente, uma contraposio prpria decadncia, quando,
na verdade, no passa de uma sua expresso. a desorganizao da
economia no centro do imprio que torna mais lucrativas algumas
das periferias.
A crise estrutural do capital teve um impacto semelhante em
nossa economia. Por diversos fatores. Por contarmos com enormes
reas ainda a serem ocupadas, o que significa a possibilidade da rpida converso das riquezas naturais em mais-valia com uma baixa
inverso de capitais. Depois, por termos uma fora de trabalho com
tradio industrial de mais de uma gerao, disciplinada poltica e
sindicalmente (graas ditadura militar e, depois, como veremos,
aliana da aristocracia operria no Brasil com o capital). Por fim,
mas no menos importante, por termos uma malha de transportes
voltada exportao e uma produo de energia capazes de atender
camente o nico.
11 O mesmo ocorreu com regies do Oriente Mdio e dos Blcs. Alguns historiadores, por isso, postulam que a crise ainda no havia se instalado no Imprio
Romano (Heather, 2006: 112-4). Como se o contraste entre a decadncia do centro do Imprio e a prosperidade de algumas de suas periferias no fosse, por si
s, sinal da crise.
38

Sergio Lessa
s necessidades de uma economia mais moderna. Esses fatores
contriburam para que o pas se tornasse um dos principais focos de
investimento dos capitais internacionais.
Um novo fator de atrao, contudo, passou a atuar nesse processo, aumentando seu peso com o passar dos anos. As dcadas de
1970 e 1980 assistiram ao surgimento de um mercado consumidor
de bens de primeira necessidade que justificava investimentos em
sua industrializao. Intensificou-se o processo de diminuio do
valor da fora de trabalho tanto pela queda do valor dos bens de
primeira necessidade crescentemente industrializados, quanto pela
introduo de tecnologias mais avanadas (que tambm, como vimos, diminuem a poro da jornada de trabalho destinada aos salrios). Alm de tradicionais fornecedores de mais-valia absoluta,
passamos agora tambm a fornecer mais-valia relativa para a maior
lucratividade de Monsieur Capital. Nossa estrutura econmica se modernizou sem deixar sua vocao histrica, a de gerar riquezas
para serem acumuladas pelo grande capital internacional. Contudo,
no mais um capital qualquer, mas um sistema do capital em crise
estrutural. Sua necessidade e sede por qualquer mais-valia , agora,
muito maior.
Os investimentos imprescindveis para promover uma superior
articulao entre a produo das mais-valias absoluta e relativa conduziram fase desenvolvimentista que os petistas, no Planalto,
no fazem mais do que captar para sua propaganda poltica. O desenvolvimentismo, em nossa histria, comparece assim, pela segunda vez. A primeira, nos anos de 1950, como a tragdia da iluso do
desenvolvimento de um capitalismo nacional contra o imperialismo;
a segunda vez, como farsa, j que o desenvolvimentismo a expresso local do prprio imperialismo. Lula por Getlio Vargas, Jos
Dirceu por Gregrio: que heris miserveis, os nossos!12
A transio para o perodo em que tambm passamos a fornecedores de mais-valia relativa, entre os anos de 1970-80, a marca da
nossa histria recente. Os investimentos tiveram seu ponto de partida no ncleo industrial formado pelas montadoras automobilsticas
e as autopeas, na grande So Paulo. Logo macios investimentos
estrangeiros associados a capitais nacionais promoveram a internacionalizao do sistema financeiro, com a quebra ou a aquisio dos
bancos nacionais de menor porte. A entrada no menos macia do
12 Sobre Jos Dirceu, essa sinistra figura das sombras petistas, conferir Pinheiro,
2008.
39

Cad os operrios ?
capital na agricultura possibilitou a transio do latifndio agrrio-exportador do passado para o agrobusiness do presente. Aumentou
a importncia da produo de mquinas e equipamentos e dos bens
de consumo imediato.
De modo cada vez mais marcante, conforme nos aproximamos
do final do sculo 20, a tecnologia no ser necessariamente atrasada e com emprego intensivo de mo de obra, como ocorria com
as primeiras multinacionais dos anos de 1950 e 1960. Isto ainda
ir ocorrer todas as vezes que a produo nessas condies for a
mais lucrativa. Mas, ao lado desse trao mais tradicional, digamos,
assistimos tambm implantao em nosso territrio de plantas industriais modernas, de tecnologia avanada, com mo de obra muito
especializada. A velocidade desse desenvolvimento e em direo
ao toyotismo , em parte, resultante do fato de no termos sido
to fordistas quanto a Europa e os EUA, o que facilitou a entrada
nas novas e mais avanadas tecnologias, sempre que mais lucrativas.
Em suma, alteraes ocorreram em toda a economia do pas.
O Brasil reproduziu, por esta via, um trao tradicional de sua histria: o desenvolvimento dos setores economicamente mais avanados no gerou nenhum antagonismo com a estrutura da propriedade e das classes sociais tradicionais. Pelo contrrio, a passagem do
pas a um patamar de industrializao que articula agora a extrao
da mais-valia relativa com a absoluta fortaleceu algumas das nossas
caractersticas mais antigas, como a agricultura agroexportadora e
a manuteno do poder das oligarquias no Norte e Nordeste. Deu
origem, tambm, a novas fontes de mais-valia absoluta mediante
a criao de novos setores econmicos com tecnologia por vezes
atrasada e formas de explorao do trabalho que recriam formas
pr-capitalistas, como o trabalho domstico, o trabalho escravo e o
trabalho infantil. O novo, em nosso pas, tem se afirmado no pela
ruptura, mas pelo prosseguimento do velho. Em outras palavras,
alteramos a forma de articulao com a acumulao de capital nos
pases capitalistas centrais, mas mantivemos nosso papel de produtor de riqueza a ser acumulada pelos pases imperialistas e seus
scios internos, as classes dominantes brasileiras. Agora, tambm
produtores de mais-valia relativa, fomos convertidos em uma fonte
ainda mais abundante de riqueza para os pases imperialistas e seus
scios internos.
Nas ltimas dcadas do sculo 20, esse processo se consolidou
como a tendncia predominante do nosso desenvolvimento e da
evoluo das nossas classes sociais. Uma burguesia que controla um
volume de capital muito maior do que no passado, o que a torna e
40

Sergio Lessa
isto no um paradoxo mais dependente do sistema mundial do
capital, mais moderna, decididamente democrtica e liberal (no
sentido que essas expresses adquirem no discurso das classes dominantes de pases perifricos), se desenvolveu em um pas cujo PIB
est entre os dez maiores do mundo. Essa modernizao no alterou nosso lugar colonial no concerto das naes, no superou
o latifndio monocultor-exportador, nem, claro, pode vir a alterar
o padro da distribuio de renda; mas gerou um mercado consumidor, uma aristocracia operria e um bloco dominante em que as
antigas (mas modernizadas) oligarquias convivem em quase perfeita
harmonia com os scios brasileiros do grande capital internacional.
Chegamos, assim, ao Brasil dos nossos dias.

41

Sergio Lessa

Captulo IV

A nossa aristocracia operria e o capital


Na dcada de 1970, tivemos a implantao no pas do primeiro e
verdadeiro centro industrial, com as caractersticas tcnicas do fordismo. Conhecemos a extrema diviso do trabalho, o parcelamento
milimtrico dos atos dos operrios em quilomtricas linhas de montagens, o taylorismo e o tpico controle de qualidade a ele associado.
Os locais de trabalho recebiam denominaes sugestivas por parte
dos operrios: Vietn (o setor de pintura da Volkswagen), Porta do
Inferno (o setor de soldagem da antiga Chrysler), forninho (o
setor de pintura da Ford). Para atender s necessidades das enormes
indstrias, grandes (lembremos da Metal Leve), pequenas e mdias
indstrias e oficinas surgiram para produzir os, agora indispensveis,
insumos, equipamentos, peas e componentes. Uma cadeia no to
grande, mas significativa, de empresas prestava os servios imprescindveis (manuteno de tornos, de equipamentos hidrulicos, limpeza e manuteno de setores ou mquinas especficas, transporte
de trabalhadores, alimentao, assistncia mdica, segurana etc.).
Ao redor desse ncleo produtivo se organizou o espao urbano: favelas, bairros de trabalhadores mais pobres, at os primeiros condomnios para os gerentes, tcnicos, diretores etc. No meio, os bairros
de classe mdia baixa que, agora, recebiam tambm os membros da
aristocracia operria.
Se, excetuando a escala, tecnicamente as condies de trabalho
em So Paulo no eram muito distintas das de Detroit, socialmente
43

as condies eram muito diversas. Nos EUA e na Europa, alm de


produzir mais-valia relativa a partir da mais-valia absoluta produzida nas regies mais atrasadas (o sul dos EUA, por exemplo) e em
pases como o Brasil, os trabalhadores tambm deveriam participar
do mercado consumidor, o que exigiu macias polticas pblicas e o
aumento da massa salarial13. Nos centros imperialistas, a abundncia era, at ento, enfrentada com a ampliao do mercado consumidor, o aumento da produo e o barateamento dos produtos. A
expropriao da riqueza produzida pelos trabalhadores do Terceiro
Mundo era pea decisiva nesse mecanismo. Eram o chamado crculo virtuoso, de Keynes, e o Imperialismo, de Lenin.
A funo dos operrios de So Bernardo e So Paulo era inteiramente distinta. As multinacionais vieram porque eram o modo mais
lucrativo de se levar a riqueza aqui produzida para ser acumulada
nos centros do capitalismo mundial. A fora de trabalho deveria ser
a mais barata, sua reproduo deveria ocorrer da forma a mais precria. As jornadas de trabalho deveriam ser exaustivas, a segurana
nos locais de trabalho no seria preocupao e, fundamentalmente,
os salrios deveriam ser os mais baixos que os capitalistas conseguissem. Sob a ditadura militar e com uma classe operria que no
tinha experincia de luta mais significativa, os conflitos inerentes
situao deram origem a um sistema sindical atrelado ao Estado,
vendido aos patres e dominado pelos pelegos.
A prpria escala e volume da industrializao, todavia, trouxeram
ao pas o fenmeno da aristocracia operria: um setor do proletariado imprescindvel para os ndulos mais desenvolvidos do sistema
de produo, os quais requerem uma fora de trabalho mais especializada, culturalmente mais bem formada e que, por isso, tende a
ter um nvel cultural e de informao poltica superior. Nos pases
centrais, a aristocracia operria era tambm mais bem paga, dominava os sindicatos e os aparelhos de representao dos trabalhadores,
estava presente no Estado tinha sua cidadania reconhecida: era
uma aliada segura da burguesia contra os comunardos, como j
vimos. Em nosso pas, nada disso ocorria. A nossa aristocracia operria recebia um pouco melhor que os pees, mas s um pouco
13 Eram, grosso modo, os trinta anos dourados do Estado de Bem-Estar. No
houve, assim indicam os dados mais confiveis, nenhuma distribuio de renda e
riqueza nesses anos. O aumento da massa salarial foi to lucrativo para o capital
que, pelo contrrio, levou a uma concentrao da renda nos pases imperialistas.
Cf. Lessa, 2013, em especial os dois primeiros captulos, com variadas fontes
estatsticas.

Sergio Lessa
melhor. Era vtima da represso e da violncia policial todas as vezes
que tentava valer sua natural fora de representao dos operrios
e trabalhadores. Ainda que fosse um proletrio mais nobre, era
tratada como parte da plebe.
As greves de 1978-9 foram a exploso desse descontentamento:
os pees seguiram os aristocratas porque para todos a opresso
se tornara insuportvel. As greves do ABC chacoalharam o pas.
No tanto pelo seu tamanho ou capacidade de mobilizao (foram
greves limitadas, parciais, com pautas econmicas, nem sequer se
aproximaram de uma greve geral, mesmo que de uma greve geral
apenas de So Bernardo ou de So Paulo), mas pelo fato de exprimirem a potncia de um setor da classe operria, sua aristocracia,
que se tornara decisiva na produo e que, correspondentemente,
se tornara decisiva na luta de classes entre capital e trabalho. Essa
aristocracia encontrou nos pees a sua base social para pressionar
o capital e a ditadura: da a enorme repercusso das greves, muito
maior do que a sua escala e tamanho. Depois do ABC, a prxima
onda grevista que marcou os anos de 1980 e 1990 foi a dos trabalhadores de colarinho branco (as memorveis greves dos bancrios)
e do funcionalismo pblico.
O processo de redemocratizao no foi apenas limitado
(como se a questo fosse a maior ou menor expanso da democracia); foi, acima de tudo, a reafirmao da essncia do nosso passado
colonial nas condies do agravamento da crise estrutural em um
pas, agora, tambm fornecedor de mais-valia relativa. A introduo
do toyotismo e da reestruturao produtiva garantiu que nos modernizaramos para continuar sendo, no concerto das naes, um
local produtivo da mais-valia de que o sistema do capital necessita para deslocar suas contradies cada vez mais agudas. A mesma
razo que nos conduziu do ciclo da cana-de-acar ao do ouro e,
depois, ao caf; que nos levou do caf carioca produo do caf
em So Paulo; que nos fez fordistas nos anos de 1960-70, nos fez,
nas ltimas dcadas do sculo 20, toyotistas.
As consequncias para a classe operria
Do ltimo quarto do sculo 20 at os nossos dias, nossa economia passou por importantes modificaes. Implementamos o que
de mais avanado h na esfera da produo, passamos pelos CCQs
em direo ao just in time, lean production e a tudo o que devido
aos novos tempos, articulamos os enclaves (Arranjos Produtivos
45

Cad os operrios ?
Locais), exploramos as crianas, as mulheres e reduzimos parte dos
nossos cidados a escravos; trouxemos bolivianos, coreanos e paraguaios para provarem o azar de ser trabalhador produtivo (Marx,
1985:106), adotamos o trabalho terceirizado (os hifenizados,
numa expresso que Ricardo Antunes popularizou entre ns), evolumos das pequenas propriedade agrcolas para a agricultura integrada, convertemos a sade, a educao, os transportes e a energia
em fontes adicionais de mais-valia atravs das privatizaes etc.
pela fundamentalmente nica e mesma razo: a maior lucratividade
do grande capital internacional e das classes dominantes nacionais.
A introduo do fordismo em nosso pas no conheceu muitas
das resistncias enfrentadas nos pases imperialistas devido ao fato
de no possuirmos um slido parque industrial pr-fordista (Piore
e Sabel, 1984). Analogamente, podemos adotar o que de mais avanado a reestruturao produtiva exigia, sem muitas das dificuldades
conhecidas em pases como os EUA, a Frana, a Alemanha, etc.,
devido ao fato de que, em 1980, um enorme territrio (para alm do
eixo Rio-So Paulo-Belo Horizonte) nem sequer tinha sido tocado
pela industrializao. Isso gerou condies muito favorveis implantao das novas tcnicas de produo e gerenciamento da fora
de trabalho. Nos EUA, as automobilsticas e suas autopeas tiveram
de abandonar cidades inteiras como Detroit em busca dos greenfields,
isto , locais sem tradio industrial e, portanto, sem uma classe
operria com organizao e experincia de luta sindical. No Brasil,
os greenfields eram praticamente a totalidade do territrio brasileiro.
Bastou a Volkswagen ir de So Bernardo para Resende, no Rio de
Janeiro, para ser capaz de fazer operar uma planta inteiramente conforme aos ditames dos novos tempos: tecnologia avanada, menos
robs que em So Bernardo com a terceirizao de uma enorme
parcela da produo, jornadas de trabalho intensas e extensas e manuteno em sua folha de pagamento fundamentalmente da aristocracia operria, sem a qual a produo de caminhes e nibus no
pode ocorrer.
Ao mesmo tempo que tais reestruturaes nas grandes empresas e nos principais centros industriais tinham lugar, no interior
do pas importantes transformaes tambm estavam em andamento. Sem mencionar empresas individuais, em 2009 contavam-se 404
Arranjos Produtivos Locais no pas, apenas 16 deles localizados nas
capitais dos Estados, mostrando um forte processo de interiorizao do processo produtivo (Haide, 2009:100) , e nada indica
que esse nmero tenha deixado de aumentar. As indstrias, agora,
se esparramaram por praticamente todo o territrio nacional (um
46

Sergio Lessa
certo exagero, convenhamos, mas no totalmente falso). Passam a
fazer parte da paisagem do interior do pas desde grandes empresas,
mesmo para o padro paulista ou carioca (como a Grandene no
Cear), passando por empresas de menor porte que se articularam
em enclaves produtivos (Toritama, em Pernambuco), at indstrias
multinacionais como frigorficos (a Sadia, em Toledo, no Paran).
No mais necessrio se deslocar para So Paulo ou Rio de Janeiro
para dar de cara com as indstrias e com o proletariado: so agora
parte muito mais generalizada da realidade nacional.
Para uma ideia do impacto desse processo, dois exemplos:
Toritama, em Pernambuco, e Toledo, no Paran.
Com pouco mais de 30 mil habitantes, Toritama foi responsvel
por 16% da produo de jeans do pas em 2008 longe, portanto, de
ser um centro econmico sem importncia. Uma pesquisa realizada
em 2008, por Haide Rodrigues os dados foram retirados de sua
dissertao de mestrado (Rodrigues, 2009) , revelou que as condies de vida e trabalho dos seus habitantes eram estas:
Nas primeiras visitas que a equipe do GET realizou ao municpio a fim de
compreender a interveno do poder pblico na cidade, tcnicos e gestores
afirmam se deparar com os seguintes problemas sociais: trabalho infantil, inclusive atravs da prostituio devido ao aumento do comrcio na cidade;
alto ndice de mortalidade por neoplasias e problemas respiratrios devido
produo do jeans; problemas no saneamento e no abastecimento de gua;
dificuldades financeiras de arrecadao municipal porque a maioria dos empreendimentos so informais; condies de moradia precrias; demandas por
qualificao profissional. Tais problemas no elidem a afirmao de que
quase a totalidade da populao est ocupada (...): 97,7%. Destes, 90,36% se
encontram na informalidade e somente 9,64% trabalham com carteira assinada ou esto nas categorias de militares e estatutrios (...) sendo, na sua maior
parte, remunerados por produo, com mdia salarial de R$ 370,86. Nota-se
haver uma diferenciao salarial entre homens e mulheres: os primeiros possuem uma mdia de R$ 446,23, e as ltimas, R$ 269,03.14 Observa-se, tambm,
um expressivo aumento da populao da cidade. Entre 1998 a 2007 o nmero
de habitantes, que era de 19.334, passou para 29.897, correspondendo a um
aumento de 65%, bastante superior mdia estadual, (...). Toritama o menor
municpio do estado, contando com uma rea fsica de 34,6 km, demonstrando uma alta concentrao demogrfica: 567,10 hab/km, muito superior
mdia de Pernambuco, que de 80,3 hab/km. O percentual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no municpio entre 1991 e 2000 foi
de 41,9%, ndice superior ao brasileiro (31%) (...). No entanto, o crescimento
14 A renda per capita das famlias entrevistadas (sem considerar a renda do Bolsa
Famlia) foi de R$ 188,00, sendo que a menor encontraremos R$ 0,00 (referente
quela famlia que vive da agricultura para subsistncia), seguida de R$ 67,00. A
maior foi de R$ 448,00 (Rodrigues, 2009:121).
47

Cad os operrios ?
da produtividade e da populao vem acompanhado de uma visvel precarizao das condies de vida. (...) A respeito do ndice de Desenvolvimento
Humano entre as cidades que compem o Polo de Confeces do Agreste,
fica evidente que Toritama teve uma variao muito abaixo do resto do pas e
do estado de Pernambuco. Enquanto o municpio de Caruaru obteve variao
de 10,1% entre1991 e 2000, e Santa Cruz do Capibaribe teve percentual de
13,7%, Toritama aumentou somente 4,2%. (Rodrigues,2009:12)

Mais abaixo:

(...) as condies de trabalho e proteo social a que esto submetidos esses


trabalhadores so extremamente precrias e/ou inexistentes: condies insalubres de trabalho, exposio demasiada a produtos que afetam a sade, extensas jornadas de trabalho, ausncia de poltica de ateno sade do trabalhador, escassos servios de sade e educao para atendimento das famlias,
alto grau de informalidade nos contratos de trabalho, diminuio e/ou anulao do poder reivindicatrio e contestador dos trabalhadores, forte presena
de trabalho infantil e domiciliar e indiferenciao entre ambiente domstico e
de trabalho. E quase inexistente a interveno do poder pblico no que se
refere fiscalizao dessas condies de trabalho15. Tavares (2004), ao discutir
sobre informalidade e trabalho domiciliar, afirma que a possibilidade de explorar a custos mais baixos a fora de trabalho promove a re-emergncia do
trabalho domiciliar como uma forma adequada ao padro flexvel de acumulao (p. 77). A produo incorpora toda a famlia, no deixando lugar para
outras dimenses humanas na vida do trabalhador (Tavares, 2004: 171). O
trabalho s interrompido para a realizao de atividades domsticas que no
podem ser adiadas (p. 181). As noes de pblico e privado no se diferenciam nesse modelo de produo. No diferentemente das demais situaes de
explorao da fora de trabalho pelo capital nos diversos ramos produtivos,
observamos em Toritama que a ampliao da jornada de trabalho e intensificao da fora de trabalho so tambm elementos indispensveis para estabelecer o salrio recebido pelos trabalhadores: no mesmo ramo de produo, h
uma mdia de trabalho exigida para a realizao de um quantum de produtos,
uma vez que so remunerados por produo/pea. (Rodrigues, 2009:103)

A participao em sindicatos ou em qualquer forma de organizao que propicie uma ao coletiva em defesa do trabalhadores
contra a explorao inexistente na cidade:

Das 50 entrevistas, apenas 2 (4%) mencionaram que participam do sindicato.


E, ainda, que a sua participao ocorre pela contribuio para o FUNRUAL
com vistas aposentadoria. J nas 48 (96%) respostas que disseram atualmente no participar, 3 mencionaram j ter participado, porm, com um objetivo
muito claro: conseguir assistncia mdica, o que no foi possvel na poca por
meio do sindicato. Observa-se que, apesar da alta concentrao de trabalha15 as doenas mais frequentes ocorridas com os entrevistados refere-se ao tempo de permanncia na mesma posio quando trabalham (mquina de costura), o
que afeta principalmente a coluna e os rins, mas tambm sofrem com problemas
respiratrios devido exposio ao pelo do jeans tanto quanto seus filhos, cuja
nica doena que apresentam so as alergias (Rodrigues, 2009: 131).
48

Sergio Lessa
dores na cidade na rea da produo do jeans, o rgo que teria a funo de
mobilizar os trabalhadores, ainda que na rea rural, volta-se exclusivamente
para a garantia de aposentadorias. E para os trabalhadores da cadeia produtiva
de jeans inexiste rgo que agregue as reivindicaes desse segmento, o que
parece ser uma condio para que a produo se expanda, ou seja, a ausncia de direitos trabalhistas condio para que o capital possa se expandir.
(Rodrigues, 2009:124)

Rodrigues cita uma participao do atual Ministro da Educao


do Governo Dilma, Alosio Mercadante, em um debate sobre o programa de renda mnima (que, depois, foi adotado sob a forma modificada do Bolsa Famlia):

Durante a reunio de debate com a equipe econmica do PT, em 1991,


Alosio Mercadante observou que, com o Programa de Garantia de Renda
Mnima, poderia induzir a uma maior explorao dos trabalhadores, pois os
empregadores podiam sugerir aos empregados uma remunerao com valores
mais reduzidos, j que outra parte da remunerao eles obteriam junto ao governo (...] o que preocupa os formuladores de polticas de gerao de renda e
trabalho: saber at que ponto a transferncia de renda pode influenciar na deteriorao das condies de trabalho. (Ivo, 2008, p. 185-186, apud Rodrigues,
2009:163)

Precisamente isso a pesquisadora constatou em Toritama: o


Bolsa Famlia (...) rebaixa o valor dos salrios pago aos trabalhadores (Rodrigues, 2009:162):
(...) o Bolsa Famlia a principal fonte de manuteno familiar nos perodos
de baixa produtividade de jeans, que tem por consequncia, menor salrio.
Portanto, as condies precrias a que esto submetidos esses trabalhadores
no lhes permite o acesso aos benefcios previdencirios [contudo,] empregam os benefcios assistenciais como [se] (...) os fossem. Ou seja, nos perodos
de baixa produtividade, o capitalista que emprega essa fora de trabalho no
possui nus, e tampouco ressarce esses trabalhadores com seguro-desemprego, pois o Bolsa Famlia acaba por garantir esse direito, s que por meio de
recurso assistencial. (Rodrigues, 2009:127)

Rodrigues termina citando Maria Augusta Tavares, cujo livro Os


fios invisveis da produo capitalista (2004) se firmou como referncia
obrigatria para a discusso contempornea sobre o trabalho informal:
1) o xito das pequenas empresas e, em certos casos, at a condio de existncia, depende de serem subcontratadas pela grande empresa; 2) as cooperativas de trabalho, empresas familiares e associaes de trabalho, reivindicadas pelo suposto carter espontneo e solidrio, para sobreviverem precisam,
tambm, articular-se ao grande capital. H cooperativas que, longe de serem
uma iniciativa dos trabalhadores, so criaes do Estado e da prpria empresa interessada na explorao da fora de trabalho mais barata; 3) o trabalho
domiciliar , em geral, executado mediante planejamento e comando direto de uma empresa, consubstanciado, s vezes, pela participao no trabalho coletivo; 4) os trabalhos que no fazem parte da interioridade do sistema
49

Cad os operrios ?
so integrados e subordinados produo pelos mecanismos do mercado.
(Rodrigues, 2009:113-114)

Informaes preliminares do conta de que a situao muito


semelhante na produo de confeces, principalmente lingerie, em
Gois Velho (GO).
Do Nordeste para o Sul do pas, de um Arranjo Produtivo Local
para uma indstria com 7 mil operrios, a Sadia, em Toledo (no
oeste do Paran). Em sua dissertao de mestrado, Fernando Heck
rigoroso: (...) preciso entender o trabalho em frigorficos, essa
marca territorial do trabalho especfica do Oeste Paranaense e, sobretudo em Toledo (PR), no de maneira isolada, mas como parte
da totalidade imposta pelo metabolismo social do capital (Heck,
2013:63). Toda uma cadeia produtiva, que vai do plantio de cereais
para o fabrico de raes, da agricultura integrada para a produo
de matrizes e, depois, para a engorda dos francos e sunos, at os
frigorficos, impe condies de vida e trabalho desumanas e degradantes. Heck faz uma descrio detalhada da integrao de todas
essas fases do processo produtivo at chegar aos consumidores finais. Ao longo dessa cadeia produtiva, a destruio fsica e psquica
de trabalhadores est presente como norma, e no como exceo.
O que ocorre nos frigorficos no uma excrescncia pontual desta cadeia produtiva, nem um desvio da norma padro do sistema
sociometablico do capital, como Heck menciona seguidamente.
Na Sadia em Toledo, o Ministrio do Trabalho constatou o padro abaixo na repetio de movimentos pelos trabalhadores:
atividade

Movimentos/
minuto

movimentos/
hora

movimentos/
jornada

Refile de peito

Mo direita: 75
aes/min
Mo esquerda: 80
aes/minuto

4.800
aes/hora em
cada mo

36.000/38.400
aes/dia em cada
mo

Desossa de coxa
e sobrecoxa

Mo direita: 46
aes/min
Mo esquerda: 46
aes/min

2.700
aes/hora em aes/dia22.000
em cada mo
cada mo

50

Sergio Lessa
Eviscerao
(retira
da de corao)

Mo direita: 140
8.400
aes/min
em
Mo esquerda: 140 aes/hora
cada
mo
aes/min

67.000
aes/dia em cada
mo

Movimentos repetitivos realizados pelos trabalhadores em trs funes da


Sadia em Toledo (2009) Fonte: ACP n 01428-2010-068-09-00-5 (Heck, 2013:109).

Alm disso, citando Neli (2006), Ca e Murofuse (2008) e Gemelli


(2011), aponta Heck:
O setor industrial instalado na regio, notadamente no setor alimentcio, tem
se caracterizado justamente pelo emprego de trabalhadores com algumas daquelas caractersticas identificadas entre os trabalhadores informais; baixos
salrios (o piso se situava em R$400,00 em 2005), pouca exigncia de qualificao (a ampla maioria dos empregos criados situam-se nas linhas de produo
no denominado servio geral) e com intensa rotatividade, neste caso, dadas
as condies insalubres do servio, promotor, em muitos casos, de doenas
funcionais. (...)
Neli (2006), conclui na sua pesquisa que a caracterstica principal do emprego
em frigorficos se refere ao ambiente de trabalho hostil, desumanizado e angustiante (...) [, com] um grande adoecimento fsico e mental.
Ca e Murofuse (2008), estudando um frigorfico do Oeste Paranaense, encontraram condies de trabalho precrias no mbito da planta fabril, [tais]
como: os trabalhadores devem eviscerar 14 frangos por minuto, cortar 25 asas
de frango por minuto, retirar 19 pontas de asa por minuto e refilar fils em at
10 segundos, o que coloca a sua sade em risco.
Gemelli (2011) tambm constatou ao final de sua dissertao de que o emprego em frigorfico baseado na superexplorao do trabalho. Isto : (...)
pudemos verificar a rapidez com que os trabalhadores foram afetados por
doenas e leses que, na maioria dos casos, so irreversveis, impossibilitando
os trabalhadores de realizarem funes simples do dia-a-dia, tornando-os descartados para o trabalho. (Heck, 2013:91)

No que diz respeito aos acidentes de trabalho, eis os dados entre 2006 e 2010:

Houve 12.258 acidentes/doenas do trabalho relacionados aos frigorficos de aves e sunos no Paran. A ttulo de especulao, se comparssemos este
nmero com o total de empregos no ano 2010 (58.818), teramos que 20% dos
trabalhadores sofreram algum tipo de leso ou doena (Heck, 2013:93). (...) A
possibilidade de uma pessoa desenvolver uma tendinite numa linha de desossa de
frango 743% superior que em outros setores, segundo dados do Ministrio da
Previdncia Social. (Heck, 2013:90)16
16 As estatsticas da Previdncia Social indicam que o trabalhador de frigorfico
tem quatro vezes mais chances de desenvolver transtornos de humor. E isso tem
51

Cad os operrios ?
J que o salrio tem por referncia o tempo de trabalho socialmente necessrio para a reproduo da fora de trabalho, os frigorficos que foram para o oeste do Paran no pagam salrios significativamente maiores dos que os que j eram l praticados. O oposto
mais verdadeiro: deslocaram-se para l justamente para aproveitar
a barata mo de obra local. Por isso as novas condies salariais
no apenas no alteraram a condio econmica que os trabalhadores possuam antes da chegada dos frigorficos na regio (Heck,
2013), mas geraram uma nova contradio: os direitos bsicos no
so respeitados. Tambm no eram antes, verdade. Mas em uma
economia industrializada, os direitos bsicos so requisito para
a reproduo da fora de trabalho e, com isso, sua inobservncia
transformou-se em uma questo e o Ministrio do Trabalho comeou a atuar. Constatou-se a
existncia de escalas de trabalho com jornadas semanais maiores que 44
horas, sem o pagamento devido das horas extras (SRTE Relatrio de
Fiscalizao, p. 11). (...). Constatou-se tambm que h casos em que os trabalhadores perfazem jornadas superiores a 12 horas, o que um dos fatores que
contribuem para o adoecimento fsico e mental17. Nas palavras dos Auditores,
a ver com o ambiente de trabalho, pois, conforme o mdico perito do MPT-RS,
Luis Carlos Fujii, existe a relao entre o adoecimento mental e o meio ambiente
de trabalho: (...) com falta de comunicao, montono, repetitivo, de jornadas
longas com poucas pausas e submisso do trabalhador ao ritmo de produo, entre outros fatores. (MPT-RS, 2009 p. 5) (Heck, 2013:139). Em outra passagem:
Os dados investigados, para dois frigorficos das regies, resultaram: o primeiro
(localizado no Sudoeste Paranaense), com cerca de 1.000 trabalhadores, teve 909
benefcios previdencirios concedidos entre 2004-2011 (Heck, 2013:102). O
Projeto Integrado de Sade do Trabalhador Avcola (PISTA), realizado em 2006
por meio da Federao dos Trabalhadores das Indstrias da Alimentao do Rio
Grande do Sul (FTIA-RS), estudou as condies de trabalho em frigorficos avcolas nesse estado. Foram realizados 1.200 questionrios com trabalhadores do
setor de 12 empresas situadas em 12 municpios. (...) Cerca de 80% dos entrevistados fazem uso de analgsicos, anti-inflamatrios e antibiticos, e pelo menos
20% utilizam remdios de tarja preta. Ou seja, trata-se de impactos na sade fsica
e mental a partir do emprego nos frigorficos avcolas. (Heck, 2013:130)
17 A Sadia vem submetendo seus empregados, de forma habitual, a jornadas
superiores a 10 horas, com durao da carga diria de trabalho de at 19 horas e
22 minutos (ACP n 01428-2010-068-09-00-5, p. 48) (Heck, 2013:111). No caso
dos intervalos intrajornadas, h exemplos de pausas de apenas sete minutos. Na
fiscalizao constatou-se 126 exemplos de intervalos menores que uma hora
(ACP n01428-2010-068-09-00-5, p. 61) (Heck, 2013:112). No depoimento de
uma trabalhadora: (...) acontecia de eu chegar nove horas da manh na sexta, eu
pegar nove da manh e eu ir a noite inteira. Quando eu ficava uma hora da manh,
eles diziam: Cludia, voc ainda t aqui? Voc j passou da hora, voc tem que ir
embora eles falavam pra mim, n? Eu falava: onde que eu vou? No tem cir52

Sergio Lessa
fica evidente que a prorrogao da jornada normal de trabalho deveria ser
proibida nesse tipo de atividade (SRTE Relatrio de Fiscalizao, p. 12),
pelo fato de haver uma enorme repetitividade nas funes desempenhadas
no ambiente de trabalho, com presso e ritmo intensos que contribuem para
os adoecimentos fsicos e mentais. Ainda na questo da jornada de trabalho,
verificou-se, como em outras fiscalizaes, a no concesso regular do descanso semanal remunerado, o desrespeito ao intervalo mnimo de 11 horas
entre duas jornadas de trabalho e a no concesso regular de intervalos para
repouso e alimentao (SRTE Relatrio de Fiscalizao, p. 12). Isso culminou na lavratura de outros quatro Autos de Infrao (016397614, 016397631,
016397649 e 016397657). (Heck, 2013:104)

O quanto esses dados podem estar subestimados difcil avaliar,


como relata o depoimento colhido por Heck de uma das trabalhadoras:

Tem que algum filmar ali dentro enquanto t trabalhando, pra ver como que
a linha rpido e o vareio (...) (ngela, informao verbal). (...) S no tem
vareio na Sadia quando vai o cara l fazer, igual meu irmo, quando perito vai
l eles descobrem, faz aquela calmera. Uma vez ns tava l, a minha supervisora falou: hoje todo mundo vai trabalhar bem devagar porque hoje ns
vamos ter uma percia dentro da empresa. Ento o dia que tem percia, nossa!,
aquela lentido. Parece assim que eles enganam, sabe?, eles querem enganar
pra mostrar que no daquele tipo, e a hora que vira as costas: Rapaz, ,
vamo, vamo, vamo que ns s t l com 16 palet 67, ns tem que fazer mais
16, vamo, vamo, hoje vai ser s meia hora de almoo, vamos trabalhar, vamos
trabalhar, vamos revezar os almoos. desse tipo que funciona (...) (Joana,
informao verbal, grifo nosso). (Heck, 2013:123)18

O maquinrio sem proteo/manuteno causa acidentes que


resultam em mutilaes:

(...) e nesse dia eu s me acidentei, tava eu e a menina pesando, eles colocaram


esteiras novas, no colocaram a placa de metal. J tinha pegado a blusa de
uma amiga minha, a Larissa, tinha pegado a do Flvio, da tarde do segundo
turno, tinha acontecido um monte de casos ali, e as meninas o pessoal tudo
reclamando, at que deu a maior confuso. Nisso a, s que o tcnico de segurana pra no parar e no diminuir: No, no vamos diminuir no, vamos
trabalhar, enquanto t dando. Vamos trabalhar, no t pegando a mo de ningum, vamos trabalhar. Tava pronta as placas, era s colocar, parar e colocar,
mas pra no diminuir a produo no colocaram esse dia no acidente meu.
Eu trabalhando que nem uma louca l, a gente j t cansado pela agilidade
que voc tem que ter ali porque o vareio t caindo bacon pro cho, t caindo
por tudo l, fui catar o bacon, s senti que algo puxou; voc sabe quando
cular, eu morava l no Europa, NE? A eu ia at uma e meia do sbado, pra vocs
verem, das nove da manh at uma e meia do outro dia, no sbado, trabalhando
(...) (Cludia, informao verbal, grifo nosso). (Heck, 2013:124)
18 Esse fato tambm foi constatado na pesquisa de Walter (2012), tratando
sobre a repetitividade no trabalho e as metas a serem atingidas em frigorficos do
Rio Grande do Sul (Heck, 2013:123).
53

Cad os operrios ?
voc sente que d um baque; na hora que eu senti que deu aquele baque,
eu falei pra menina da minha frente, falei. Ju puxou meu dedo, ela falou eu
no acredito. Eu falei eu vou puxar porque at ir l na frente como daqui
l na minha casa l, para apertar o boto de stop, sabe o vermelho (...) (Joana,
informao verbal).
(...) a mquina vivia s quebrada, aquela mquina nunca arrumava, e eu falava
assim: chama um mecnico pra arrumar essa mquina, porque ficava l parada
l. A ligavam assim mesmo a mquina quebrada. A foi at um dia que ele
ligou e eu tava ensinando um homem, n?, um novato l explicando o problema que tinha naquela mquina, j tinha cortado a mo de quatro ali aquela
mquina. Quando eu acabei de falar vou pegar as peas porque t parada, o
rapaz ligou l atrs (...) A mquina levantava uma lmina, uma descia, outra
subia. A minha mo ficou pendurada, cortou tudo, ela ficou pendurada, . at
aqui, cortou o osso, cortou tudo aqui. Parou porque eu bati na tampa dela. Era
to estragada que se relasse nela ela desligava (...) (Cludia, informao verbal).
A mquina sem proteo, sem sensor de desligamento, no desligava no boto
de emergncia, tava fudida mesmo. Da eu sofri o acidente nessa mquina,
e tinha quatro mulheres na linha de produo comigo; quando eu sofri o acidente, as quatro correram pra fora e gritavam: O cara vai morrer, e ningum
vinha me acudir (...) Tava rodando em cima de mim, eu fiquei ali quinze minutos preso mais ou menos, at que algum me achou ali. A foi mais uns dez
minutos pra me tirar da mquina. Ela travou tudo, entortou tudo. Ela entrou
pra dentro aqui uma parte da mquina, uma parte do meu brao quebrou e
uma parte da mquina entortou. (Valdir, informao verbal). (Os nomes so
fictcios Heck, 2013:137-8)

Quanto resistncia e luta dos trabalhadores, Heck assinala que


os sindicatos so de pouca valia (Heck, 2013:166 e ss., principalmente). No apenas porque se organizam de modo a no poder representar a totalidade dos trabalhadores, como, ainda, mantm uma postura
condizente com o status quo. Essa postura de negociao, de ter
conquistado o respeito da empresa (Heck, 2013:166), faz do sindicato um parceiro do capital. Por outro lado, relata Heck, a APLER [Associao dos Portadores de LER] tem se constitudo ento,
a nosso ver, na organizao coletiva dos trabalhadores lesionados,
por fora da seara sindical, e a sua ao tem feito o enfrentamento
mais direto com o capital, mesmo com limites (Heck, 2013:158). O
aspecto dessa questo que Heck no aborda que os sindicatos no
podem organizar o confronto com o capital porque, nacionalmente,
so dominados pela nossa aristocracia operria, e mundo afora se
converteram em ces de guarda do capital. Da que uma associao dos portadores de LER tem uma presena mais efetiva, ainda
que limitada, na defesa dos operrios do que os prprios sindicatos.
O apego estrutura oficial de Estado demonstra o corte negociador dos sindicatos com o capital, aspecto relevante tambm na ao sindical local. Isso se
materializa na ao sindical pouco combativa, pois como se o papel destes
54

Sergio Lessa
se limitasse a alcanar os Acordos e Convenes Coletivas com as empresas
e sindicatos patronais, num dilogo de negociao, como se a luta dos trabalhadores motivada pelas mutilaes e adoecimento no trabalho no fosse
parte de suas preocupaes. (...) (Heck, 2013:166)

Uma fora de trabalho ainda prxima ao campo, com pouca experincia urbana e nenhuma vivncia de luta proletria, possibilitou
ao capital impor nas reas do interior do pas uma elevada taxa de
extrao de mais-valia absoluta. O baixo custo do trabalho domstico, a reproduo muito mais barata da fora de trabalho em regies
no industrializadas e em pequenas cidades (o que resulta em um
valor bem menor dos salrios), a docilidade do Estado e dos sindicatos e centrais sindicais, tornam to lucrativa a industrializao do
interior do pas que as tcnicas so adaptadas a essas circunstncias.
De Franca (So Paulo) ao Nordeste do pas, o trabalho domstico
de mulheres, crianas e, secundariamente, homens, prolifera como
parte do avano da industrializao. Das pequenas e mdias propriedades do Sul do Brasil regio da Mata de Minas Gerais e s
novas reas de plantao de eucalipto na Bahia e no Centro-Oeste, a
explorao do proletariado rural pela agricultura integrada floresce
com exuberncia. Ampliou-se no apenas o proletariado, mas tambm a distncia entre a sua camada mais bem remunerada e com
melhores condies de trabalho e o conjunto da classe.
Lembremos que o capital pode impor as novas e mais duras condies de trabalho porque a reestruturao produtiva tambm sinnimo de desemprego crescente. A intensificao da extrao da
mais-valia, desde meados da dcada de 1970, foi favorecida pelo aumento do desemprego em escala planetria. No Brasil tambm cresceu o exrcito industrial de reserva. Com a vantagem, para o grande
capital, de que ainda temos um espao a ser ocupado no comrcio
e nos servios pelos milhes de desempregados em uma sociedade
que se industrializa e se moderniza no sentido do desenvolvimentismo petista: h uma vlvula de escape a ser empregada e cerca de
60% da fora de trabalho se encontra fora do mercado formal, sem
que isso gere tenses insuportveis ao sistema do capital.
Uma democracia moderna
Como resultado de certo desenvolvimento desigual e combinado, a partir dos anos de 1970, a crise estrutural do capital fez do
Brasil um paraso das multinacionais, passando por um crescimento
econmico e modernizao industrial muito rpidos. Enquanto a
economia mundial dava seus primeiros passos na crise, o Brasil se
55

Cad os operrios ?
desenvolvia. Nenhuma surpresa: a riqueza concentrou-se predominantemente no grande capital e, secundariamente, nos assalariados
mais ricos. Massas novas de trabalhadores urbanos foram geradas
pelo xodo rural, e a industrializao subordinada (Ianni, 1968)
foi acompanhada por uma concentrao sem paralelo da propriedade da terra, mais uma das determinaes do nosso passado colonial.
Na periferia das grandes cidades concentrou-se uma massa de trabalhadores cujos salrios conheceram o menor poder aquisitivo desde
os anos Vargas (o valor real mais baixo do salrio mnimo ocorreu
em 1975).
Com a massa de trabalhadores miserveis dos centros urbanos,
com a derrota da estratgia de luta armada no campo e na cidade,
com o bloqueio da via institucional pela ditadura, com a represso
e a desestruturao das organizaes de esquerda e, no cenrio
mundial, com a crise da URSS e com o avano das lutas camponesas de libertao nacional (Vietn, as colnias portuguesas na
frica etc.) , deu-se uma curiosa e inesperada convergncia poltica. Alguns movimentos espontneos de reivindicao da periferia
de So Paulo, a esquerda catlica representada pelas Comunidades
Eclesiais de Base e o que restara do PC do B paulista e outras organizaes revolucionrias convergiram em um movimento molecular
e reivindicatrio local que evoluiu para uma reunio de poucas dezenas de moradores na Zona Sul de So Paulo. Essa reunio, por sua
vez, decidiu por uma Assembleia para mostrar s autoridades que
no era possvel viver com aquele salrio mnimo. Dessa assembleia
nasceu a proposta de coleta de assinaturas contra a carestia, que se
converteria no Movimento do Custo de Vida. Entre os anos de 1974
e 1978 (ano das greves no ABC), o movimento foi se expandindo,
de incio lentamente, e nos meses finais, de forma quase explosiva
para os padres da poca, para mais de um milho de assinaturas
coletadas muitas vezes em mutires pblicos no centro de So Paulo
, que foram reunidas na Catedral da S, na maior manifestao
(cinco mil pessoas) contra a carestia antes das greves do ABC.
Entre os 5 mil do Movimento Contra o Custo de Vida, na Praa
da S, e os 100 mil do 1 de maio de 1980, na Vila Euclides, foram
apenas dois anos!
Essa experincia marcou profundamente os militantes surgidos aps a represso mais dura, entre 1969-1976. Possibilitou uma
forma de luta e organizao que a ditadura tinha dificuldades em
reprimir. Difusa em centenas de bairros, sem um ncleo dirigente
que pudesse ser identificado, com uma base popular que tendia a
crescer a cada vitria (um asfalto aqui, uma escola ali, um centro de
56

Sergio Lessa
sade acol etc.), essa era uma forma de luta que possibilitava tanto
a sobrevivncia individual dos militantes como a reorganizao dos
partidos revolucionrios. Naquele momento, a combinao da luta
legal com a luta clandestina na organizao e fortalecimento dos
movimentos reivindicatrios possibilitou um acmulo real, efetivo
e de enorme importncia em face das derrotas tanto da luta armada
quanto da estratgia de transio pelo alto do PCB19.
Com clara inteno socialista, com um contedo anticapitalista
professado, no uma inteira falsidade afirmar que a concepo que
predominava no movimento popular era democrtica e politicista
(Chasin, 1977; Tonet e Nascimento, 2009). Democrtica, por conceber que o socialismo viria pelo aprofundamento da participao
democrtica das massas. Os mecanismos da democracia burguesa
(eleies, parlamentos, liberdade de imprensa, de organizao, direitos sociais etc.) eram tidos por formas germinais de uma imaginria
democracia socialista e, por isso, o aprofundamento dos institutos
democrticos conduziria ao socialismo. Politicista, porque a transio tinha um carter quase que exclusivamente poltico, como se
a poltica e no o trabalho fosse o fundante da sociabilidade. A estatizao dos meios de produo e o planejamento econmico centralizado eram identificados com a superao do capital.
Ignorvamos que sem a transio do trabalho proletrio ao trabalho
associado no h transio poltica possvel ao socialismo.
Essa profunda ignorncia resultava, grosso modo, da convergncia
de trs tendncias histricas. A primeira, da degenerescncia terica
do prprio movimento comunista internacional desde pelo menos
os anos de 1920, como argumentou Fernando Claudin no seu clssico A crise do movimento comunista (Claudin, 2012). A cada gerao
assistimos consistente e sistemtica reproduo ampliada da ig19 Talvez a melhor anlise feita naqueles tempos tenha sido a Plataforma para
a Unio dos Comunistas, de 1975. Sua proposta de articulao entre a luta legal
e clandestina era uma significativa e importante ruptura com as teses foquistas e
com as que propunham um enfrentamento mais radical com a ditadura. A relao
do PCB com os movimentos populares foi, para se dizer o mnimo, ambgua.
Desconfiava de um movimento que no tinha possibilidade de controlar (sua
implantao na periferia era irrisria) e cuja base social estava distante das suas
ligaes com o sindicalismo pelego e com os setores de classe mdia. No sem
alguma razo, apontava o obreirismo, o basismo e o espontanesmo dos movimentos; utilizava, contudo, tais argumentos como pretexto para se manter afastado. Sua estratgia de transio para a democracia pelo alto e sua proximidade
cuidadosamente cultivada com os sindicalistas pelegos que classificavam de progressistas levaram-no a se opor, por esquerdistas, s greves de 1978-9.
57

Cad os operrios ?
norncia dos militantes e dirigentes20. A segunda foi o fato de a
represso dos anos de chumbo ter separado dos jovens militantes
os revolucionrios mais experientes que poderiam ter contribudo
para a formao da nova gerao. Por fim, a concepo democrtica
e politicista concebia a teoria como desnecessria. Se a prtica estava mostrando no dia a dia o caminho a seguir, qual a importncia
das milhares de pginas que as pessoas do povo jamais leriam? Que
melhor lio para os intelectuais revolucionrios que o caminhar
a olhos vistos do povo para o socialismo? E algumas citaes
retiradas do contexto de Lenin, Mao e Stalin resolviam, definitivamente, a questo21.
Para os movimentos populares dos anos de 1970-80, o objetivo final era o socialismo; o meio para alcanar esse objetivo era o
aprofundamento da luta democrtica contra a ditadura: lutar pela
democracia era lutar pelo socialismo. Acreditvamos defendamos
explicitamente que a luta pela sade, pela escola, pelo asfalto, pela
terra, contra a carestia etc., eram passos das massas em direo ao
socialismo.22
O apogeu dos movimentos populares foi, tambm, o incio de
seu ocaso: as greves do ABC de 1978-80. As greves de apenas algumas fbricas (repetimos: no houve sequer uma greve geral no
ABC, para no falar de uma greve geral da Grande So Paulo ou
do pas) mudaram o cenrio poltico nacional. Desencadearam uma
moderada onda grevista por todo o pas, e a ditadura nunca mais se
recuperou. A confluncia da luta popular com a luta operria parecia indicar o acerto da estratgia poltica (e, portanto, da concepo
terica e ideolgica) do movimento popular: a luta dos bairros foi
polarizada e catalisada pelas greves operrias. A simpatia generalizada da populao pelos grevistas, os fundos de greve (alimentos
e dinheiro), a atuao poltica dos setores revolucionrios da Igreja
(os partidrios mais radicais da teologia da libertao) etc., tudo parecia confirmar o acerto da nossa estratgia. O cerco pela periferia
20 Sobre a reproduo ampliada da ignorncia no seio dos revolucionrios, cf. O
revolucionrio e o estudo, Lessa, 2014.
21 Como essa concepo mais geral articulava a teoria revolucionria e a prtica
dos revolucionrios em um praticismo absolutamente avesso teoria, em que
pese o discurso rigorosamente oposto, analisamos em Lessa, 2014, Anexo I.
22 interessante como esta concepo de mundo, este Zeitgeist, se refletiu at
mesmo nos intelectuais europeus. As teses de Regis Debray sobre a revoluo
latino-americana bem com os manuais de Marta Harnecker so, hoje, curiosos
testemunhos desse fenmeno.
58

Sergio Lessa
de Mangua da ditadura somozista, em 1979, era tido por prenncio
do que viveramos. Maior luta, maior organizao, conscincia mais
elevada, Nova Democracia (Mao Ts-Tung) e socialismo: a histria
estaria confirmando o acerto poltico e ideolgico do movimento
popular.
A histria, contudo, no fez muito das nossas iluses militantes.
A dcada de 1980 se encerrou com a Assembleia Constituinte e,
no plano internacional, com a consolidao da estratgia neoliberal de administrao da crise estrutural do capital. Ronald Reagan
e Margareth Thatcher deixavam suas marcas; Tony Giddens se
tornou o pensador do momento. No pas, o movimento popular e
operrio sofreu seguidas derrotas eleitorais23 e as greves deixaram de
ser operrias e se deslocaram aos trabalhadores de colarinho branco,
principalmente os bancrios e os funcionrios pblicos. A dcada se
iniciou sob o impacto das greves de 1978-9 e terminou com a transio democracia, com a manuteno no poder das mesmas classes
que, mudando o que deve ser mudado, comandavam o pas desde o
Descobrimento. No apenas as mesmas classes, mas, muitas vezes,
at os mesmos serviais dos militares (Sarney, Tuma, Tancredo etc.).
Nosso primeiro presidente eleito democraticamente, Fernando
Collor, iniciou a abertura do pas e recebeu o beija-mo de Jair
Meneguelli, ento presidente da CUT, em uma cena to memorvel
quanto lamentvel.
nesse momento que teve incio a costura da colaborao
de classes entre a aristocracia operria, representada pelo sindicalismo autntico (Lula, Jair Meneguelli, Jac Bittar, Vicentinho,
Paulo Gushiken etc.) e a grande burguesia. Esta estava disposta a
ser convencida de que uma aliana com as lideranas operrias responsveis, com as quais se pode conversar, poderia ser lucrativa,
principalmente pelo controle da base operria e dos trabalhadores;
a CUT e o PT, por sua vez, precisavam demonstrar que poderiam
controlar suas alas mais esquerda.
nesse momento que a geleia geral que era a ideologia predominante no PT e na CUT nascentes passou a exibir todo o seu potencial para uma acomodao com a burguesia. Um discurso radical,
que identificava a democracia participao dos trabalhadores no
Estado, era associado crtica liberal da experincia socialista so23 A pior delas foi a da candidatura Lula para a Prefeitura de So Paulo em 1982.
Montoro e Maluf venceram nos principais bairros sob forte organizao popular.
Na Zona Leste, nos bairros mais bem organizados e com maior tradio de lutas,
venceu quase sempre Maluf.
59

Cad os operrios ?
vitica, ao apoio incondicional e acrtico ao Sindicato Solidariedade
na Polnia, aliana com a Igreja Catlica e, para extirpar quaisquer
dvidas, filiao da CUT ao CIOLS (1992) e aos financiamentos
que recebia da social-democracia europeia e do sindicalismo estadunidense. Um discurso radical, que se apresentava como a experincia mais importante e revolucionria do ponto de vista dos trabalhadores brasileiros, encobria uma prtica de acomodao ao capital.
Nada disso era uma novidade quando se tratava da ideologia tpica
da burocracia que brotou da aristocracia operria nos pases imperialistas. A novidade que acontecia com vrias dcadas de atraso
e em um pas como o Brasil. Por baixo da pele de lobo, a alma de
cordeiro: a negociao s seria possvel ao redor de pautas economicistas e corporativas. Esse limite no apenas era aceitvel como
ainda era conveniente aristocracia operria e sua burocracia (aqui,
como no resto do mundo).
A nica luta capaz de superar a fragmentao dos trabalhadores,
o confronto geral com o capital, tambm a nica luta que ameaa
de morte a aliana da aristocracia operria com o capital. A manuteno do poder da burocracia sindical e partidria, poder fundado
na aliana com a burguesia, requer um discurso radical e uma prtica
de colaborao de classe. Os limites economicistas e corporativos
no apenas eram aceitos, como ainda eram convenientes aos nossos
burocratas do sindicalismo autntico e do PT. O corporativismo
e as pautas economicistas passaram a ser cada vez mais claramente
defendidos por eles, e as diferenas entre a CUT e a Fora Sindical,
por exemplo, foram desaparecendo. Em um movimento anlogo
ao dos pases imperialistas, a nossa aristocracia encontrou nos burocratas da CUT e do PT (e seus assemelhados) sua melhor expresso ideolgica e poltica. J sabemos o final desse percurso: nossa
aristocracia operria, conduzida por seus burocratas, passou a ser
fiadora do desenvolvimentismo petista, e a Repblica, tornou-se
a Repblica dos Sindicalistas. No h contradio alguma no fato
de essa Repblica dos Sindicalistas ser a continuidade do nosso
passado colonial, nem que seja o instrumento especial de represso dos trabalhadores a servio das classes dominantes. Uma vez
mais na nossa histria, o novo no passa de um aggiornamento do
velho.
Na ideologia dos movimentos populares e do novo sindicalismo, o fator decisivo para a acomodao ao horizonte burgus foi
o seu carter democrtico. A concepo de que o comunismo a
democracia levada s suas ltimas consequncias revela, por si s
e desde o primeiro momento, uma disposio ideolgica de forte
60

Sergio Lessa
inclinao burguesa.
A democracia, era o que se afirmava, seria a entrada das massas
na luta poltica; seria antagnica ao capital e uma mediao acertada
para alcanar o socialismo. A democracia, todavia, exatamente o
oposto: a entrada das massas como trabalhadores assalariados na
poltica burguesa. Tal participao perpetua a condio de assalariamento isto , a subordinao do trabalho ao capital. Seu horizonte
mais amplo no vai alm da luta em direo a um salrio justo por
uma jornada justa de trabalho (Marx, 1978:99). H uma razo profunda que no passa nem pela deciso poltica, nem pela vontade
da classe dominante, nem pela conscincia dos trabalhadores para
que a democracia no possa ser outra coisa. Referimo-nos aos seus
fundamentos ltimos (para sermos precisos, ontolgicos): ela a
forma mais desenvolvida de organizao do poder que brota da forma histrica mais desenvolvida da propriedade privada, o capital
ela a forma mais aperfeioada da organizao poltica24.
Diferentemente das sociedades de classe pr-capitalistas, nas
quais o Estado e a extrao do trabalho excedente mantinham uma
relao imediata, no sculo 19 a explorao do trabalho passar a ser
realizada de forma predominante com a mediao do mercado (pela
extrao da mais-valia). Coube s Revolues burguesas retirar
o Estado da economia e limitar sua ao manuteno da ordem.
Pelas revolues burguesas o capital realizou sua emancipao do
Estado, sua emancipao poltica (Marx, 2010).
Essa a gnese do Estado contemporneo. Ele a propriedade
privada burguesa elevada poltica; a expresso na esfera da poltica da reproduo do capital. As mercadorias fazem com que os seus
guardies estabeleam relaes entre si e, ento, a vontade dos
indivduos passa a residir nas mercadorias de que so possuidores
(Marx, 1983: 79 e seguintes). Passamos a conhecer a plena regncia do fetichismo da mercadoria: a criatura envolveu o criador, e a
24 A descoberta de que a poltica o poder centrado no Estado e fundado pela
propriedade privada de Marx e Engels (Marx, 2010; 2009; 1974; Marx e Engels,
2005; Engels, 2010). Mszros, em Para alm do capital (2002), sintetizou uma investigao de dcadas sobre o Estado contemporneo, na qual essa posio se
expressa sempre vigorosamente. Jos Chasin, um dos mais importantes marxistas
da gerao passada e cuja obra nem de longe tem merecido a devida ateno (parte, sem dvida, da crise do pensamento revolucionrio), desde os anos de 1970
se manifestava contra o politicismo e contra o fetiche da democracia (Chasin,
1977 e 1989). Ivo Tonet contribuiu decisivamente neste sentido entre outros
textos, conferir Tonet 1989, 1999, 2002, 2005 e 2009. Das crticas do jovem Marx
poltica, ao Estado e democracia, tratamos em Lessa, 2007b.
61

Cad os operrios ?
identidade do ltimo foi cedida primeira. O indivduo burgus a
sua propriedade privada, a sua essncia25 so as relaes mercantis:
a sociedade se reduziu a uma arena na qual todos so lobos de
todos, e o mundo no passa de uma enorme coleo de mercadorias (Marx, 1983:45). O lugar dos indivduos na estrutura produtiva
no , como antes, mediado pelo Estado, mas pelo mercado. Apenas
assim as leis do mercado (que nada mais so que as leis da reproduo do capital) podem ter plena vigncia. A organizao poltica
(o Estado) imprescindvel sociedade capitalista deve aplicar cotidianamente a violncia de tal modo a assegurar o predomnio do
mercado; deve garantir uma ordem na qual a concorrncia de todos
contra todos no apenas seja possvel, mas, melhor ainda, seja potencializada (Marx, 1983, 1985, 1969; Lukcs, 1981:670-2; Mszros,
2002; Tonet, 1989, 2002, 2005; Engels, 2010; Lessa, 2007b).
O poder deixa de ser hereditrio para ser objeto de disputa; sua
posse corresponder correlao de foras entre as diferentes faces dos proprietrios privados, que se manifestam e se organizam
principalmente no e pelo mercado. A disputa pelo poder poltico,
por sua vez, requer que os indivduos sejam guardies das mercadorias no preciso sentido de que so livres para se mover pelas relaes mercantis da forma mais apropriada aos seus interesses.
Os indivduos so, ento, livres sua liberdade tem por contedo
as relaes sociais que estabelecem voluntariamente, buscando o
que julgam ser a melhor maneira de reproduzir a propriedade de que
so guardies. o individualismo burgus em seu mximo grau
de alienao26, e a sua expresso poltica a cidadania. Tal como,
na esfera econmica, reduz-se o trabalho ao trabalho abstrato, na
esfera poltica abstrai-se o indivduo concreto no cidado. A sociabilidade do capital aquela em que a pessoa real, concreta, plena de
mediaes, em sua integralidade mais autntica, simplesmente no
tem lugar.
A liberdade, de que a burguesia to ciosa, no passa da liberdade de cada um realizar aquilo que julga o melhor negcio para a
propriedade privada da qual guardio. Ser livre, agora, no ter a
interveno do Estado a limitar as possibilidades de ao de cada
cidado no mercado. At a relao mais ntima das pessoas consigo
prprias passa a ser dominada pela mercadoria: uma conta bancria
que cresce ou que diminui parte importante na elevao ou queda
25 A essncia humana o conjunto das relaes sociais (Marx, 2009a).
26 No sentido de Entfremdung, a desumanidade socialmente posta.
62

Sergio Lessa
do conceito que fazemos de ns mesmos. A liberdade burguesa, por
isso, deve ser sempre e a cada momento especialmente regrada: ela
a expresso, na esfera dos atos individuais, das relaes concorrenciais as nicas possveis entre guardies de mercadorias (Marx,
1983: 79-80). Somos, agora, livres lobos dos prprios homens: esse
o contedo que a liberdade compatvel com a emancipao poltica tem por limite histrico (Marx, 1983 e 1985, 2010, 2009; Tonet,
1989, 1999; Mszros, 2002; Lessa, 2007b).
A obra revolucionria da burguesia consistiu em articular o capital, o indivduo burgus (o guardio de mercadorias), a forma
democrtica do Estado e a regncia do fetichismo da mercadoria em
uma mesma totalidade: a sociedade burguesa desenvolvida. A democracia obra histrica da burguesia: a democracia burguesa ou
no tem lugar na histria! No existe a democracia enquanto uma
ideia platnica fora da histria. A democracia to datada quanto o
foi o Estado Romano: fundada pelo trabalho proletrio e corresponde, na esfera da poltica, generalizao por todo o corpo social
das relaes mercantis. Ela burguesa ou no existe.27
27 H uma longa discusso acerca da existncia ou no de uma democracia socialista. Nos textos de Marx, Engels e Lenin (dentre os quais so os mais frequentemente citados As lutas de classe em Frana e O 18 Brumrio de Lus Bonaparte,
o Manifesto Comunista, O Estado e a revoluo), essa expresso comparece, indiscutivelmente. Aqueles eram tempos nos quais o partido revolucionrio se chamava Partido Social Democrata Alemo. Democracia tinha ento uma acepo um
tanto distinta da do nosso cotidiano. O debate posterior terminou migrando para
um campo to mais marcadamente liberal (e no apenas na esteira do eurocomunismo), que o contedo superador da democracia burguesa pela democracia socialista foi sendo paulatinamente substitudo por um crescente contedo burgus
do prprio socialismo. No levou muito para que as teses de Kautsky fossem
desenvolvidas at se converterem na concepo de que a democracia burguesa
levada sua radicalidade o socialismo (Salvadori, 1979). Como se o governo do
povo, para o povo e pelo povo, de A. Lincoln, pudesse ter qualquer semelhana
ou analogia com o adjetivo socialista, com que os clssicos caracterizavam a ordem democrtica da Ditadura do Proletariado. Com esse andar da carruagem, o
vocbulo democracia ganhou conotaes e hoje provoca ressonncias ideolgicas
distintas das de um sculo atrs. Por essa razo, preferimos salientar o carter
burgus (por insupervel determinao ontolgica) da democracia para, ento,
podermos chamar a ateno de que a ordem socialista, muito mais livre e muito
mais liberta, uma forma superior de organizao da sociedade ainda poltica,
ainda estatal, ainda, portanto, alienada em alguma medida. Essa forma superior a
Ditadura do Proletariado, a qual dever ser superada pelo comunismo. Para Marx,
Engels e Lenin, a Ditadura do Proletariado o contedo do adjetivo socialista
na expresso democracia socialista. Melhor, nos nossos dias, evitar a expresso
democracia socialista e empregar, em seu lugar, Ditadura do Proletariado. , ao
menos, uma forma que dificulta a contradio em termos que a interpretao
63

Cad os operrios ?
Esse fundamento ontolgico, histrico, da democracia, aliado
impossibilidade da constituio de germes do modo de produo
comunista nos interstcios do capital, o que faz da estratgia democrtica uma mediao invivel quando se trata da acumulao de foras para a revoluo proletria28. O aprofundamento da democracia
conduzir apenas a uma democracia mais profunda, isto , a uma
liberdade ainda maior para o capital explorar o trabalho, a um predomnio ainda mais intenso do fetichismo da mercadoria. O aprofundamento da emancipao poltica, para recuperar a expresso de
Marx em A questo judaica, conduzir apenas a uma emancipao poltica mais desenvolvida, jamais emancipao humana(Tonet, 1999,
2002, 2005; Lessa, 2007, 2007b). O aprofundamento da democracia apenas pode fortalecer o poder do capital, nunca o oposto. A
democratizao da democracia resulta em mais democracia, jamais
em comunismo. Por isso, com clarividncia, argumenta Mszros
que o nico trabalho que pode ter representatividade no Estado o
trabalho abstrato, isto , aquele reduzido mercadoria e que faz do
seu possuidor o individualista guardio de mercadoria (Mszros,
2002: 838).
Desconhecer essa determinao burguesa da democracia foi um
dos maiores equvocos dos movimentos populares e da ala revolucionria do, para ser breve, movimento operrio daqueles anos.
Tal equvoco, todavia, no caiu do cu. Tinha bases sociais bastante
slidas. Era a perfeita expresso dos interesses da aristocracia operria que, naqueles anos, ainda buscavaum lugar ao sol na ordem
burguesa. A nossa aristocracia operria, por meio de suas lideranas
histricas, reclamava da burguesia brasileira o que lhe era natural
em toda democracia avanada: uma aliana com o grande capital
que a elevasse aos altos postos de comando do Estado.
Poltica e ideologicamente, o movimento popular e o novo sindicalismo eram irmos siameses. No houve dificuldades para se
articularem em um projeto comum de aprofundamento da democracia pela maior participao dos trabalhadores no Estado. A
reformista corrente da expresso democracia socialista, um socialismo com contedo democrtico, isto , burgus.
28 Mszros, em Para alm do capital, o autor que mais extensa e profundamente
demonstra a razo dessa impossibilidade. O texto de Paniago (2012), sobre a
incontrolabilidade do capital, trata de modo competente e introdutrio essa tese
do filsofo hngaro. Cf. tb. Melo, Paniago e Andrade, 2012. Sobre a relao entre
histria e ontologia, cf. Lukcs, 1981: 34-7, 606-8; Lukcs, 1990: 36-7, 51-2, 73,
90-99; Kofler, 2010; Lessa, 1996, 1999, 2005.
64

Sergio Lessa
aristocracia operria recebeu do movimento popular uma legitimao que teve sua importncia, principalmente, nas primeiras eleies
da dcada de 1980. Cada espao conseguido pelas lideranas petistas
e cutistas em negociaes com o patronato era aclamado como uma
vitria dos trabalhadores e da luta cada vez menos dita socialista
e crescentemente caracterizada como uma luta por uma sociedade
mais justa. Se esses espaos eram conquistados no por um recuo da burguesia, mas sim das lideranas sindicais; se quem acumulava foras era a burguesia, e no o proletariado, era algo que nem
sequer estava em questo. Pois do que se tratava era da conquista
de um lugar ao sol para a aristocracia operria e sua burocracia, tal
como nos pases imperialistas, ou, como se dizia, nos pases de
democracia avanada.
H uma escala de crescente acomodao das lideranas da aristocracia operria s necessidades do capital: das Cmaras Setoriais
s sucessivas negociaes envolvendo demisses; dos estmulos dos
sindicatos para que suas bases aceitassem os acordos de demisso
voluntria, tambm atravs de cursos de empreendedorismo promovidos nas sedes dos prprios sindicatos; das presses dos sindicalistas sobre os trabalhadores para que aceitassem a intensificao
do trabalho inerente reestruturao produtiva traio da greve dos Petroleiros de 1995 e ao apoio reforma da Previdncia de
2004. A superestimao da importncia das instituies democrticas, dos processos eleitorais, dos sistemas burgueses de representao, esses e outros elementos da ideologia burguesa vo sendo trazidos para o iderio dos trabalhadores (como se dizia na poca).
Tal aburguesamento foi acompanhado pela centralizao burocrtica e pelas sucessivas reformas dos programas e documentos estratgicos tanto do PT quanto da CUT. Que o novo sindicalismo
defenda, ontem como hoje, uma sociedade cada vez mais democrtica, isto , com uma participao cada vez maior dos trabalhadores no Estado, e pelos mesmos atos e nos mesmos instantes,
defenda tambm sindicatos e partidos dos trabalhadores cada vez
mais centralistas, autocrticos e burocratizados, no sequer um paradoxo. Nesse discurso, participao dos trabalhadores significa,
de fato, acesso da burocracia sindical aos rgos do Estado.
Em se tratando das organizaes sindicais e do movimento popular, a Constituinte foi o cenrio ideal para que a concepo democrtica, politicista e eleitoreira mas ainda radical dos anos de

65

Cad os operrios ?
1970-80 degenerasse em cretinismo parlamentar29. Parte integrante da ideologia democrtica a crena segundo a qual uma boa
Constituio faria deste um novo pas. Nosso passado colonial, o
complexo processo de formao da burguesia brasileira e do seu antagonista histrico, o proletariado ao lado de outros traos profundos do Brasil contemporneo , seriam revogados se consegussemos inserir na nova Constituio institutos que favorecessem
a participao e a iniciativa democrtica das massas. Tudo seria decidido (a nosso favor!) pela eleio de constituintes e, portanto, era
necessrio disputar com a burguesia o voto das massas. Deveramos
adequar o discurso para conseguir o mximo dos votos ainda que
isso custasse no dizer tudo ao povo. Seria uma mera questo de
ttica dizer o que o eleitor queria ouvir e se calar sobre questes
delicadas (comunismo, aborto, opresso da mulher, revoluo,
propriedade privada etc.). Conquistados os votos, venceramos na
Constituinte, via segura ao socialismo. Deveramos fazer alianas
com polticos burgueses e defend-los junto ao povo, sempre
que isso ajudasse e eleger nossos representantes. A propaganda
revolucionria (Lenin), ento, j fora substituda pelo oportunismo
eleitoreiro.
Essa involuo, que se expressou de modo concentrado na perda
do carter contestador do movimento popular e do novo sindicalismo, se aprofundou ao longo do tempo. Os movimentos popular e
operrio entraram nos anos de 1990 em um profundo refluxo nas
cidades, deixando aberto o espao que seria ocupado pelo MST. A
reestruturao produtiva avanava, a desmobilizao crescia na mesma velocidade do sucesso eleitoral das polticas neoliberais, primeiro na esteira do Plano Real de FHC e, na sequncia, dos governos
Lula. O PT negociava com a burguesia, Meneguelli beijava a mo de
Collor, a CUT se rendia FIESP. Os operrios do ABC na verdade, a aristocracia operria vo se convertendo em base eleitoral do
neoliberalismo e os avanos na Constituinte nem sequer resultaram
em uma alterao para melhor da nossa tradicional m distribuio
da renda, quanto mais na Nova Democracia que abriria o caminho ao socialismo. O restrito apoio popular obtido para a eleio
dos constituintes se esgararia nas eleies seguintes.
Perdidos a base e o apelo populares, para ser vitoriosa a estratgia
eleitoreira precisava se profissionalizar, isto , tornar-se burguesa
no apenas no contedo, mas tambm na forma. Uma vez mais: o
29 Esta uma expresso de Marx, em O 18 Brumrio de Lus Bonaparte.
66

Sergio Lessa
importante era eleger parlamentares para aprofundar a democracia
mediao segura ao socialismo. O Parlamento vai se convertendo,
nessa involuo ideolgica, no local privilegiado e, depois, no nico local em que se faz Poltica (agora, com p maisculo)!
As vitrias de Pirro na Constituinte (o ECA, o SUS etc.) se completaram com a derrota de 1989 do PT ante Collor. A ala esquerda
dos movimentos populares, da CUT e do PT, em vez de questionar os fundamentos dessas tantas e sucessivas derrotas, concluiu,
como uma verdade revelada, que uma boa Constituio no era
suficiente. Seria preciso ter vontade poltica para dar vida a ela!
Trocando em midos, as (pretensas) vitrias na Constituinte apenas
alterariam o pas com a eleio de Lula Presidncia.
Adotada essa perspectiva, a esquerda estava desarmada nos seus
confrontos com a burocracia sindical autntica e com a camarilha dirigente do PT. Ao aceitar a tese de que tudo seria decidido
pela eleio presidncia de Lula, a esquerda teve de aceitar como
legtimo tudo o que fosse necessrio para ganhar as eleies. O que
inclua, entre outras coisas, a profissionalizao do PT e da CUT
o aprofundamento da sua burocratizao, do seu autoritarismo e
a prtica de recursos no contabilizados, como diria Delbio
e uma disposio, declarada no discurso e efetivada na prtica, de
colaborao de classe. De anticapitalistas, o PT e a CUT preferem
agora se apresentar como melhores administradores da ordem burguesa que os prprios burgueses (no que no estavam mentindo).
Ao aderir tese de que as vitrias na Constituinte s sairiam do
papel com a eleio de Lula, a esquerda estava irremediavelmente
derrotada; a partir de ento no era possvel questionar, quanto mais
se contrapor, ao caminhar direita das lideranas da aristocracia
operria brasileira. Os resqucios de radicalismo da estratgia revolucionria democrtica dos anos de 1970 deveriam ser enterrados;
um PT profissional e competente, corrupto e burocratizado, foi o
resultado da vitria final do cretinismo parlamentar.
Papel importante na justificao ideolgica nessa jornada para
o regao da burguesia tiveram as muitas e variadas teses que afirmavam (e ainda afirmam) que no h mais distino entre os trabalhadores e proletrios, bastaria ser assalariado para ser membro da
mesma e nica classe social revolucionria. J tratamos em outros momentos dos graves problemas oriundos dessas teses para a
compreenso da reproduo da sociedade burguesa de como, das
mais variadas formas, caminham ao idealismo tanto ao desvincular
as classes sociais da reproduo do capital, quanto ao ampliar o trabalho, de intercmbio material da sociedade com a natureza, s ati67

Cad os operrios ?
vidades de planejamento e concepo, de educao e de assistncia
social. Agora, devemos apenas chamar ateno a que, ao afirmarem
no haver distino entre o proletariado e os trabalhadores assalariados no proletrios, ao postularem que todos os trabalhadores
formam uma nica e mesma classe social, essas teses caram como
uma luva para que a burocracia oriunda da aristocracia operria pudesse se apresentar sociedade como representante de todos os
trabalhadores. No preciso que nos estendamos a demonstrar o
quanto tais teses auxiliaram a consolidao da colaborao de classe
ao velar que se tratava da elevao ao poder do Estado, no da classe trabalhadora, mas dos burocratas da aristocracia operria, que,
ao longo da histria, tm sido fiis aliados dos versalheses contra
os comunardos.
A virada direita deu certo e, quando Lula chegou Presidncia,
uma enorme parcela da esquerda se emocionou como se fosse a vitria, afinal, da estratgia democrtica dos anos de 1970. Uma parcela no to grande aderiu ao poder.
Mais uma vez a histria fez poucos das nossas iluses agora
no mais to militantes quanto no passado. A vitria do PT a
vitria, contra o trabalho, da aliana da aristocracia operria com o
capital. Essa a essncia da derrota do projeto democrtico dos movimentos populares e do sindicalismo autntico que se pretendia
revolucionrio: impulsionou a colaborao de classes que hoje governa o pas. A transio para a democracia conduziu a uma forma
de controle da burguesia sobre os trabalhadores mais eficiente do
que a ditadura. Muitos dos revolucionrios do passado degeneraram
em uma nova burocracia, ilustrada e moderna, alojada no Estado,
nos sindicatos (hoje, paraestatais), na imprensa e nas universidades.
E, tambm, na direo do que restou do movimento popular, com
cada vez mais raras excees. A derrota da gerao dos movimentos populares tambm e essa uma consequncia que em parte
poderia ser evitada por uma conscincia mais elevada do processo
a degenerescncia dos seus indivduos. Muitos se converteram de
tribunos do povo (Lenin) em lacaios do capital (perdoem a recada nos anos de 1970). Lula, Genono, Delbio e Z Dirceu no
so fenmenos isolados. Sobre isso, infelizmente, nem preciso se
estender.
A integrao entre a aristocracia operria e o grande capital consumiu muito menos tempo no Brasil que na Europa e nos EUA. H
profundas razes histricas para esse aceleramento da histria.
O prprio fato de conhecermos to tardiamente a industrializao
permite que nos apropriemos de seus estgios mais avanados sem
68

Sergio Lessa
termos de passar pelos estgios intermedirios. A nossa estrutura
de classes, com trabalhadores disciplinados e com parca tradio de
lutas e revoltas; uma classe dominante capaz de manter uma aliana
entre os latifundirios e os setores burgueses mais avanados (dado
seu interesse comum de produo de mais-valia absoluta) e, desde
sua gnese, associada ao capital internacional, tudo isso faz com que
a acomodao da aristocracia operria ao capital no encontre nas
lutas de classe qualquer obstculo mais significativo. A debilidade
histrica de nossa burguesia e a precocidade30 de nossa aristocracia
operria convergiram para fazer com que, por alguns anos, um campons nordestino que deu certo ao se converter em operrio fosse
a individualidade mais bem talhada para conduzir essa colaborao
de classe desde o Planalto.
Nossos sindicalistas sabiam qual o caminho a percorrer: tinham
o modelo europeu e estadunidense para imitar31. Nossos burgueses tambm j sabiam o que havia dado certo nos pases mais desenvolvidos. Alm disso, no havia nada semelhante a um Estado
de Bem-Estar para ser desmontado, e as nossas grandes centrais
j surgiram filhas da reestruturao produtiva, j se organizaram no
novo contexto e foram facilmente convertidas em instrumentos de
controle sobre os trabalhadores e os proletrios. Por fim, ao final
da dcada de 1980, o fundamental da nossa esquerda j tinha sido
cooptada pelo horizonte burgus e se convertia rapidamente em
parlamentar e eleitoreira: nenhum acmulo de foras para a revoluo poder vir desse horizonte burgus, como a histria tem
demonstrado j por dcadas.
Em poucas palavras, a redemocratizao teve tambm o efeito de
reconhecer plenamente a cidadania da nossa aristocracia operria.
A aliana de classe que se delineou entre ela e o grande capital se
expressou na chegada de suas principais lideranas aos altos postos de comando do Estado. Os sindicalistas tomaram de assalto a
Repblica no porque os capitalistas perderam o poder, mas porque
os sindicalistas so os agentes e fiadores da colaborao de classe
entre a aristocracia operria, os setores assalariados no proletrios
e o grande capital. Da a fora do PT-CUT no governo federal.
30 No sentido de que muito cedo demonstra capacidades ou habilidades prprias
de crianas mais velhas ou de adultos.
31 Sem esquecer, claro, das verbas e recursos vindos da Europa e dos EUA: a
aristocracia operria sabe reconhecer os seus e aos seus aliados em toda parte do
mundo. Da o internacionalismo aristocrtico proletrio.
69

Cad os operrios ?
Foi assim que surgiu a moderna democracia brasileira: por uma
continuidade, nas condies contemporneas, do nosso passado
colonial. As coisas mudaram: somos hoje muito mais eficientes
na produo de mais-valia e as classes dirigentes incorporaram ao
Estado a burocracia oriunda da aristocracia operria. Dirige o pas,
hoje, uma aliana de classes que inclui, tambm e como scio amplamente minoritrio, os burocratas e a aristocracia operria. Contudo,
as coisas permanecem as mesmas: continuamos sendo produtores
de mais-valia a ser acumulada pelo grande capital internacional e
seus scios brasileiros (que, agora, incorporam tambm a burocracia
sindical e partidria).

70

Sergio Lessa

Captulo V

Cad a classe operria?


Temos, agora, os elementos imprescindveis para responder
questo: cad a classe operria?
Os valorosos militantes que queriam se aproximar da classe operria e que terminaram entrando na CUT e no PT j estavam, obviamente, inclinados a essa opo poltica e sindical mesmo antes
de visitarem a montadora em So Bernardo. Aquele epidrmico
contato com os operrios s poderia resultar na adeso ao PT e
CUT. O fato de no questionarem como o desenvolvimento industrial havia produzido o processo de trabalho que ali assistiram o
fato de nem sequer se colocarem a questo de como so produzidos
os componentes, as peas etc. que ali eram montados, nem tambm
se questionarem como seriam produzidos os minrios, o carvo,
a energia etc. que so parte da estrutura produtiva que se encerra
nos carros esse srio esquecimento de questes revela como j
estavam ideologicamente predispostos ao passo direita que terminaram dando. Sem nenhuma cerimnia, identificaram uma etapa da
produo do carro com a totalidade do parque industrial do pas, na
mesma operao em que tomaram pela totalidade do proletariado
alguns membros da aristocracia operria.
Caso se dirigissem com uma postura cientfica poro da realidade que entraram em contato os operrios eram quase engenheiros de uma planta industrial muito moderna , teriam que se
71

Cad os operrios ?
perguntar:
1) qual a poro da jornada de trabalho daqueles quase engenheiros destinada a pagar os seus salrios? Qual a que se transforma em mais-valia? Veriam que a taxa de explorao, isto , a proporo da riqueza expropriada pela burguesia, muito mais elevada do
que a mdia do restante da cadeia produtiva de automveis.
2) Como tal elevada extrao de mais-valia (a taxa de explorao)
se tornou possvel? Uma anlise da cadeia produtiva que antecede o
setor da fbrica que os militantes foram levados a conhecer revelaria
uma quase infindvel sequncia de processos de trabalho articulados
entre si: desde a produo das ferramentas e energia imprescindveis
retirada do minrio da natureza, sua converso em ao de todos os
matizes, at a fabricao das peas e componentes dos carros; desde
a produo de ferramentas e energia sem as quais a retirada do petrleo da crosta terrestre e sua converso final em peas de plstico
e borrachas de muitas variedades, mais combustveis e lubrificantes
que entram na manuteno de todo o maquinrio industrial; desde
a produo das ferramentas e energia necessrias para converter os
produtos agrcolas em tecidos e outros componentes etc. A anlise
desses processos de trabalho, muito diferentes no tempo e no espao, revelaria a presena dos proletrios do Marx: miserveis, com
jornadas montonas, extensas e intensas, em escalas destrutivas do
ser humano. Revelaria os operrios dos quais o capital extrai a mais-valia absoluta.
3) Uma anlise mais cuidadosa do real, em vez de uma rendio
ao horizonte democrtico, revelaria algo que Marx e Engels (e, depois, Lenin e muitos outros marxistas) j observaram: a submisso
real do trabalho ao capital se inicia com a aristocracia operria, com a
mais-valia relativa. O que eles tomaram pela totalidade da classe no
passava da parte da classe que, entre os comunardos e os versalheses, tipicamente fica com os ltimos. Como no tivemos nenhuma Comuna em nossa histria, entre os petroleiros da greve de
1995 e o grande capital, ficaram com este; na greve dos funcionrios
pblicos contra a reforma da Previdncia (a grande negociata dos
bancos no incio do lulismo, em 2004), ficaram com o capital contra os trabalhadores. Um exame mais cuidadoso tambm revelaria o
porqu de a estrutura sindical no ser capaz de organizar em luta os
desempregados e demais setores proletrios: um confronto em toda
a linha com o capital precisamente o que ameaa a colaborao da
aristocracia e seus burocratas com o patronato. preciso manter
organizados os setores da classe dispostos colaborao de classes e
ao mesmo tempo e pelos mesmos atos manter desorganizados
72

Sergio Lessa
e sem voz os demais setores, justamente os mais explorados e os desempregados. Todas as reformas sindicais propostas pelas grandes
centrais tm, tambm, essa finalidade.
Independentemente da rendio ideolgica que pautava a busca
pela classe operria dos militantes que nos servem de exemplo, a
questo est posta: se o proletariado a classe revolucionria, por
que, por tantas e tantas dcadas, est ela afastada das grandes lutas
de classe e no apenas no Brasil, mas no mundo todo? Cad, enfim,
a classe revolucionria que o proletariado?
Do ponto de vista da reproduo material da humanidade contempornea, a classe operria no apenas continua existindo, como
ainda h fortes indcios de que est se tornando presente tambm
nas reas geogrficas mais atrasadas. H bons argumentos a sustentar a tese de que a expanso das relaes de produo capitalista
est substituindo os tradicionais camponeses e artesos, com suas
formas pretritas de produo, pelo agrobusiness e pela produo industrial, gerando uma massa de novos proletrios indita pela localizao e pela extenso territorial.
Alm dos proletrios tradicionais, j existentes na primeira metade do sculo 20, hoje contamos com ncleos proletrios importantes na maior parte dos pases perifricos do sistema (Filipinas,
Brasil, Coreia, Mxico, ndia, Tailndia, China, Vietn, frica do Sul,
Ir etc.). Mesmo pases como El Salvador, Costa Rica, Nicargua
e Uruguai, at recentemente produtores exclusivos de matrias-primas, passaram a receber investimentos estrangeiros para a estruturao de centros industriais significativos e, por vezes, para
a produo de artigos que incorporam tecnologia avanada no
raramente em reas industriais nas quais nem sequer as leis trabalhistas do pas tm vigncia. As condies de vida e trabalho so as
piores32. As diferenas nacionais nas condies de vida e trabalho
32 A INTEL montou uma fbrica de chips para computadores na Costa Rica. Os
uruguaios assistem, nesses dias em que escrevo, montagem de uma rea especial
para a instalao de grandes multinacionais, com direito extraterritorialidade.
Ainda nesses dias, uma rebelio eclodiu em Bangladesh envolvendo os trabalhadores nas indstrias de confeco, que recebem um salrio mensal de U$ 38,00
(trinta e oito dlares americanos por ms!!) e esto em greve por um aumento
de 77%, ou seja, que elevaria seus salrios para pouco mais de... 67 dlares americanos por ms! Os dados indicam que a indstria de confeco de Bangladesh
movimenta cerca de 22 bilhes de dlares anuais e emprega 4 milhes de trabalhadores. As condies de trabalho: um nico acidente em uma indstria matou
mais de 1.130 pessoas! (NYT, editorial A living Wage in Bangladesh, em 12
de novembro de 2013). Os exemplos so muitos. As maquiladoras gozam do
73

Cad os operrios ?
tendem a diminuir. Afinal, por todo o globo, so os mesmos capitais, com as mesmas formas de administrao da fora de trabalho
e as mesmas tecnologias no raramente produzindo os mesmos
produtos. Apesar da diferenciao das formas de contratao nas
ltimas dcadas (terceirizao, precarizao etc.) e da consolidao
da distncia entre a aristocracia e o conjunto da classe, as relaes de
produo em cada pas cada vez mais se aproximam de uma mdia
internacional imposta pelo mercado.
No interior dos pases mais industrializados, duas tendncias parecem estar predominando. Uma desindustrializao generalizada,
em pases como a Inglaterra, tem implicado a diminuio do proletariado e o crescimento dos trabalhadores de servio uma situao
marcada pela forte concorrncia pelos postos de trabalho entre os
imigrantes e os nativos. Em outro extremo, em pases como o Brasil,
o Mxico, a ndia, a Coreia e a China, a industrializao nos centros
tradicionais est sendo complementada pela migrao de plantas
industriais, ou pela instalao de novas unidades produtivas, s regies habitualmente atrasadas, de tradio agrcola ou extrativista.
Os Estados Unidos parecem ocupar uma posio intermediria entre esses extremos, com uma forte desindustrializao em algumas
reas tradicionais (nordeste do pas) e o surgimento de centros industriais em novas reas (na Califrnia e no Sul Profundo Deep
direito de extraterritorialidade nos pases em que se estabelecem, quase sempre
em territrios delimitados por cercas eletrificadas, com o regime de trabalho imposto diretamente pelas empresas, sem nenhuma mediao estatal. Nestes locais
de trabalho, nem as leis do pas nem os acordos internacionais possuem validade
alguma. A segurana, neste caso, no apenas para garantir a propriedade privada
das indstrias, mas, tambm, para garantir o controle da fora de trabalho submetida a nveis de explorao dos mais violentos. Na Colmbia, por exemplo, pelo
assassinato sistemtico das lideranas dos trabalhadores, a Coca-Cola conseguiu,
no espao de uma dcada, reduzir o salrio mdio de 700 para 150 dlares
por ms, e o nmero de trabalhadores com contrato regular de 10 mil para 500
(Uesseler, 2008:152). Os absurdos continuam: o prncipe do basquete Michael
Jordan ganhou mais (20 milhes de dlares) em 1992 para endossar os sapatos
esportivos da Nike do que toda a fora de trabalho de 30.000 indonsios que os
produziu. O presidente (CEO) da Disney, Michael Eisner, ganhou mais de 200
milhes de dlares em aes e salrios em 1996, quantia que, a 97.600 dlares por
hora, chegou a 325.000 vezes o salrio dos trabalhadores haitianos que produzem
os pijamas e camisetas Pocahontas, Rei Leo e Corcunda de Notre Dame e que
costuravam as orelhas do Mickey Mouse (Ross, 1997:9). Vrios movimentos de
consumidores preocupados com as condies de vida e trabalho dos trabalhadores moveram aes e boicotes contra GAP, Yves Saint Laurent, Marisa (no Brasil)
pela explorao considerada excessiva da fora de trabalho, no raramente identificada com formas de escravido.
74

Sergio Lessa
South), ainda que seja muito mais significativo para a crise daquele
pas o efeito econmico da desindustrializao do que o das novas
reas industriais.
No h indcios convincentes do desaparecimento ou da queda do nmero absoluto do proletariado como uma tendncia predominante em todo o planeta. O oposto parece ser mais correto.
A expanso de novas reas de indstrias e a consequente formao
de massas novas de proletrios compensariam, com vantagem, os
postos perdidos nos pases capitalistas mais avanados. Se verdade que, em alguns poucos lugares e pases, h um processo de
desindustrializao e de perda da classe operria, essa tendncia est
longe de predominar por todo o planeta. A funo social do proletariado continua fundante do modo de produo capitalista: produz
todo o capital; e isso se relaciona, com as devidas mediaes, com
o fato de que sem o trabalho que transforma a natureza no h reproduo social possvel33.
No Brasil, tivemos a formao da classe operria a partir dos anos
de 1930. Depois de 1970, o desenvolvimento do proletariado se intensificou e ele ganhou novas caractersticas, concentrando-se em
grandes massas nos polos industriais de So Paulo e Rio de Jameiro.
Associada a esse processo, vivemos mais recentemente a formao
de massas proletrias, ainda mais jovens, nas cidades do interior do
pas ou na interface entre o campo e a cidade. Tal como no passado fomos capazes de assimilar alguns dos traos mais avanados do
fordismo e, depois, do toyotismo, pois desconhecamos os entraves
oriundos de uma industrializao antiga e consolidada, hoje somos
capazes de assimilar os arranjos produtivos locais e a agricultura
integrada num grau mais elevado que muitos pases imperialistas.
Algo como a agricultura integrada ou os arranjos produtivos locais
impensvel, por exemplo, em inteiras reas da Frana, da Inglaterra
e da Alemanha, devido s tradicionais relaes de propriedade a
estabelecidas desde o sculo 19. Nada disso ocorre em nosso pas,
mais uma razo para que seja o paraso do capital internacional e de
seus scios internos.
Do ponto de vista objetivo, portanto, a classe operria no apenas no desapareceu, como ainda continua seu desenvolvimento;
no Brasil, com uma provvel expanso numrica e, seguramente,
geogrfica.
33 A articulao entre trabalho e trabalho abstrato foi tratada em Lessa, 2011,
2012, 2007a, e Lessa e Tonet, 2012.
75

Cad os operrios ?
Sendo assim, por que o proletariado no entra na luta de classes
como o inimigo mortal da burguesia que ele, de fato, ?
Porque vivemos as consequncias de uma gigantesca derrota do
proletariado que o incapacitou por toda uma gerao a reagir revolucionariamente crise estrutural do capital. J vimos como o desemprego, a intensificao do trabalho e a degradao das condies
de vida so as consequncias necessrias da crise estrutural. A nica
resposta possvel e vivel aos trabalhadores, nessas circunstncias
histricas, o confronto aberto e em toda a linha contra o capital:
justamente a forma e o contedo da luta que a burocracia oriunda
da aristocracia operria sabe ser sua inimiga mortal. a aliana da
aristocracia operria com o grande capital, que se expressa na ao
castradora da potncia revolucionria dos trabalhadores pelos sindicatos e partidos de origem operria, que garantiu (e ainda garante)
ao grande capital colher os frutos dessa vitria. Os sindicalistas tomaram o Estado, e a estrutura sindical converteu-se em extenso
desse mesmo Estado; por isso a burocracia oriunda da aristocracia
operria pode, em nossos dias, cumprir melhor sua funo cotidiana
de coveiro da revoluo.
Sem alternativas, os proletrios e os trabalhadores encontram-se
no beco sem sada de negociar o desemprego de seus camaradas e
sofrer sucessivas pioras das condies de vida e de trabalho. A negociao com o capital divide no unifica a classe, pois sempre
e necessariamente ocorre ao redor da plataforma corporativa e economicista de cada setor dos trabalhadores. Quanto mais avanam a
reestruturao produtiva e a crise estrutural, mais a concorrncia
entre os trabalhadores se intensifica e mais a classe operria se dissolve em profisses. A burocracia sindical e partidria age sobre essa
tendncia para intensific-la e eterniz-la. Com essa ajuda, o capital
pode, planeta afora e tambm no Brasil, impor as piores condies
de vida e trabalho ao mesmo tempo que intensifica a extrao
da mais-valia (com sua superior articulao entre a mais-valia relativa e absoluta) e concentra a riqueza em nveis nunca antes vistos.
Lembremos: com o apoio ativo das centrais sindicais como a CUT,
Fora Sindical, Central Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras
do Brasil e congneres, e do PT, do PC do B e seus aliados.
No contexto da crise estrutural do capital, a derrota dos proletrios e dos trabalhadores, articulada pela burocracia sindical e partidria que se encastelou no poder, lanou os trabalhadores de todo
o mundo em uma trajetria cujo resultado o que hoje vivemos: as
melhores condies para o grande capital impor ao trabalho os custos da crise estrutural e, por isso mesmo, as melhores condies para
76

Sergio Lessa
que o predomnio poltico e organizacional da aristocracia operria
ocorra aparentemente sem maiores desafios ou questionamentos.
O proletariado no est desaparecendo, nem est em vias de desaparecimento. Sua paralisia poltica possui causas profundas, cujas
razes se estendem mesmo a antes da Revoluo de 1917. A essncia
dessa paralisia a aliana entre a aristocracia operria e o grande capital. Fundamentais para essa aliana foram o desenvolvimento e a
ao da burocracia nos sindicatos e partidos que tiveram sua origem
na luta dos trabalhadores.
E agora?
Sendo essa caracterizao da classe operria no Brasil no inteiramente equivocada, o que fazer?
H muito a ser feito, e as perspectivas so promissoras.
H de se considerar, em primeiro lugar, que a massa de proletrios e trabalhadores que surge a cada dia fora das reas industriais
mais tradicionais so pores muito recentes da classe; boa parte
deixou o campo e a agricultura h poucas dcadas, por vezes, mesmo, anos. So trabalhadores que no passaram pela educao ou
formao tpicas da social-democracia ou do stalinismo , justamente por no terem maiores experincias de organizao ou de
luta. Suas condies objetivas de vida e trabalho os tornam menos
permeveis s negociaes tpicas da prtica sindical burocratizada. No apenas porque no so sindicalizadas, mas, principalmente,
porque no podem manter seus empregos se a taxa de extrao de
mais-valia absoluta for significativamente minorada. um setor do
proletariado para o qual no h negociao que possa melhorar sua
vida, justamente porque produtor da mais-valia absoluta que est
na base da reproduo de todo o capital. Por isso, a sua inexperincia, ao mesmo tempo que a torna fcil massa de manobra para
as velhas raposas sindicais, tambm a faz mais explosiva na sua
reao s duras condies de vida e trabalho.
Entre esse setor do proletariado e a aristocracia operria abre-se
um antagonismo objetivo que, mudando o que deve ser mudado,
reproduz no interior do proletariado o antagonismo entre o capital
e o trabalho, entre os comunardos e os versalheses, no dizer
de Lenin. Mais cedo do que mais tarde, esse antagonismo objetivo
ascender conscincia e os revolucionrios precisam estar presentes e capacitados para retirar nas lutas de classes todas as consequncias dessa elevao.
77

Cad os operrios ?
Em segundo lugar, para a paralisia operria tambm contribui
um dos maiores equvocos da esquerda ao tratar da classe operria:
o sistemtico e persistente desconhecimento da contradio entre a
classe e sua aristocracia.
No que o reconhecimento dessa diferena seja uma novidade. Um rpido exame na literatura constatar como esse era um
tema j examinado no sculo 19 (Jones, 1971:317-8, 335). Autores
como Harrison (1965), Taylor (1960), Dutton (2002), Chomsky
(1997:345), Lentin (1975:123-4, 118), James OConnor (1973:223, 43-4), Tom Nairn (1964, 1964a, 1964b e 1965), Samir Amim
(1977:107-8), Emmanuel (1972, 1974) etc. etc., consideraram o peso,
a importncia e influncia poltico-ideolgica da aristocracia operria; analisaram, com avaliaes pela direita e pela esquerda, a aliana
da aristocracia operria e sua burocracia com o Estado e os grandes
capitais. No raramente, a crtica burocracia sindical e sua ao em
eventos importantes como as greves de 1936 na Frana, de 1967 na
Inglaterra, e novamente na Frana, de 1968, teve como fundamento
a constatao de que tais aes desmobilizadoras possuam sua base
social na aristocracia operria. O curioso caso sueco, em que a social-democracia ficou no poder por mais de quatro dcadas e meia,
tambm explicado por uma colaborao de classes semelhante nas
condies especficas do capitalismo sueco (Korpi, 1980). Nada h
de original nem de grande descoberta no reconhecimento das contradies entre a aristocracia e o restante do proletariado.
Todavia, do ponto de vista terico, o ltimo meio sculo assistiu
a um curioso fenmeno. No momento em que a crise estrutural
do capital tornou necessria, como nunca antes, a colaborao da
aristocracia operria e seus burocratas para deslocar as crescentes
contradies de todo o sistema nesse momento exato, as teses
centradas na anlise da ao traidora da aristocracia operria so
destinadas ao esquecimento pelas teses que reafirmam o fim do proletariado e sua fuso com a totalidade dos assalariados34. Por que,
no momento em que a colaborao de classes se tornou vital para
o grande capital, no apenas velado o papel, mas at mesmo a
existncia da aristocracia operria? Por que quando a aristocracia
operria joga um papel de primeira ordem na reproduo do capital,
ela desaparece das teorias e deixa de ser considerada?
34 Reafirmam porque as teses acerca do desaparecimento do proletariado nas
dcadas de 1980 e 1990 so, quase sempre, repeties pouco modificadas das
mesmas teses nas dcadas de 1960 e 1970. Cf. Lessa, 2011, em especial a Parte I.
78

Sergio Lessa
Como sempre em fenmenos ideolgicos dessa ordem, vrios
fatores intervm e com pesos diversos. Contudo, talvez o momento
predominante desse esquecimento da aristocracia operria e de seu
papel de aliada do capital decorra precisamente do seu papel fundamental na manuteno do status quo. O fortalecimento da aristocracia operria em pases do Terceiro Mundo que se industrializavam e
a nova aliana internacional que se fez possvel entre os aristocratas
proletrios e seus burocratas do Primeiro e do Terceiro Mundos
tambm podem ter exercido alguma influncia nesse esquecimento.
A CUT, para ficar no Brasil, agiu ativamente nessa rea, aderiu
CIOLS (1992) e se aliou ao sindicalismo cristo. Nesses mesmos
anos, as lutas camponesas ou assemelhadas tomaram a dianteira das
lutas de classe quase sempre com o apoio da aristocracia operria e
seus burocratas. Geraram, ento, a iluso de que uma nova aliana
operrio-camponesa estaria em marcha. Fenmenos como os zapatistas, o MST no Brasil, a Via Campesina, a Taxa Tobin, o ATAC, o
Frum Social Mundial etc. aparentavam a muitos que uma acumulao revolucionria de foras estava sendo realizada com a participao das organizaes sindicais. Ledo engano, como a histria
em poucos anos demonstrou. Os movimentos camponeses seriam
isolados pelo prprio desenvolvimento das relaes capitalistas de
produo, e os sindicatos e partidos que os apoiavam (ao menos
formalmente) j estavam domesticados pelo capital e sob o slido
controle das aristocracias operrias locais.
Nesse contexto, no foi difcil nem burocracia sindical e partidria, nem burguesia e seus complexos ideolgicos como a universidade e a imprensa, esquecerem-se da distino entre os comunardos e os versalheses no interior dos operrios. Com tal
esquecimento, os principais aliados da burguesia contra os trabalhadores, os burocratas, podiam se apresentar como representantes da
totalidade dos trabalhadores nas sucessivas rendies ao capital que
so as rodadas de negociao. Em nome de todos os trabalhadores,
legitimam a efetivao de tudo o que peculiar reestruturao
produtiva, bem como combatem tudo que ameaa a colaborao
de classes.
Esse esquecimento - deve estar claro - no foi, apenas, um
grave erro terico. Corresponde aos interesses do capital e da aristocracia operria. Muito cedo, portanto, esse esquecimento foi
tematizado na universidade. A derrota poltica dos proletrios, que
os paralisaria por uma gerao, foi elevada condio universal do
futuro: a classe operria estaria se fundindo com todos os assalariados e, por essa via, estaria desaparecendo. Pela esquerda, essa tese
79

Cad os operrios ?
teve sua formulao mais consistente em Ricardo Antunes, com a
sua proposio da classe-que-vive-do-trabalho35. Por muitos anos,
essa foi uma das teses cultivadas pela aristocracia operria encastelada na CUT. Era a prova de que entre bancrios, professores,
funcionrios pblicos e proletrios no haveria mais distines; todos pertenceriam mesma classe social. Os setores mais esquerda,
minoritrios, que tentavam manter indivduos oriundos do proletariado na direo com a esperana de evitar o prosseguimento do
alinhamento da CUT ao grande capital, foram ultrapassados por
teses mais atualizadas e mais contemporneas, que afirmavam
o fim da distino entre proletrios e demais assalariados. Tanto no
movimento operrio quanto na universidade, criticar a burocracia
sindical a partir da oposio entre o proletariado e sua aristocracia
foi se tornando cada vez mais raro.
Assim, na academia, nos sindicatos, na imprensa e nos partidos,
o debate passou a ser acerca da existncia da classe operria e a
luta contra a aristocracia operria e seus burocratas nem sequer foi
tematizada.
O equvoco no poderia ser maior. A luta por um posto na estrutura sindical, no parlamento ou no Executivo era (e ) identificada
com a disputa pela liderana das classes trabalhadoras. Os atuais
burocratas, pelegos em tempos neoliberais, so de fato confundidos com representantes da totalidade dos operrios e trabalhadores.
Nem ao menos so consideradas tarefas to importantes quanto a
organizao prtica e a luta ideolgica pelas massas proletrias que
se multiplicam na base de todo o sistema: todas as energias so canalizadas para a ocupao de cargos na estrutura sindical e poltica
do status quo. Como o uso do cachimbo faz a boca torta, anos dessa
prtica converteram em burocratas mesmo aqueles que, antes, eram
seus crticos.
No polo mais direita desse debate, prevaleceu a concepo de
que entre capital e trabalho h uma relao de complementaridade
35 Basta uma rpida comparao com autores do mesmo perodo, como Lojkine,
Schaff, Alan Bihr, Negri, Lazzarato e Hardt (os proponentes da tese do trabalho
imaterial), para se constatar a superioridade e a maior consistncia das teses de
Antunes. Isto porque: 1) seu ponto de partida uma ampliao do trabalho para
alm do intercmbio material com a natureza; 2) desse ponto de partida, teoriza
como as atividades de concepo e de organizao da produo teriam se integrado nova morfologia do trabalho; 3) de 1) e de 2), deduz que o critrio decisivo
na distino das classes sociais seria o assalariamento. Por mais questionvel que
seja esse percurso terico, mais consistente que as fantasias dos autores citados
como exemplo nesta nota (Lessa, 2011, 2004a).
80

Sergio Lessa
pela qual o prprio desemprego gerado pela crise abria novas e fantsticas possibilidades para que os trabalhadores se convertessem
em empresrios. Tudo o que foi utilizado, inclusive no interior dos
sindicatos, em recursos materiais e propagandsticos para iludir os
trabalhadores, nem sequer precisa ser mencionado.
Pode ser interessante nos lembrarmos do que ocorreu com o
PCB, no passado. Sua forte insero no aparelho sindical nos anos
de 1950 e 1960 terminou por lev-lo a ser o principal aliado dos pelegos quando o sindicalismo autntico passou a organizar a CUT
e novos sindicatos. O PCB estava convencido de que a luta deveria
ser por dentro da estrutura sindical pelega, pois tomava os pelegos como os representantes dos trabalhadores. Naqueles anos os
pecebistas eram os arautos da unidade ao redor dos pelegos,
bem entendido. Hoje, esse mesmo papel cumprido por parte da
esquerda vinculada ao PT, alm, claro, dos atuais pelegos, os dirigentes sindicais dos nossos dias. J que pretendem falar em nome
de todos os trabalhadores, suas organizaes deveriam ser o espao
em que a disputa poltica pela direo das lutas seria legitimamente
travada. O controle desse espao, contudo (tal como nos sindicatos
pelegos do passado), est to solidamente nas mos da burocracia
que mais prtica a criao de novas formas de organizao do que
reformar as velhas. Tal como na dcada de 1980, um novo levante
das lutas de massa far brotar como cogumelos depois da chuva
novas formas, antes imprevistas e, por isso, impossveis de ser controladas pelos de cima, de organizaes de luta dos operrios e
trabalhadores. Os pelegos ento, tal como no passado, ficaro com
suas organizaes, mas sem seguidores, e desaparecero da histria.
Sem que ao menos o proletariado tenha de se dar ao trabalho de cavar a cova dos pelegos, como ser imprescindvel fazer com a classe
dominante.
Hoje h um enorme e promissor campo de trabalho para uma
esquerda revolucionria, comunista. Uma massa proletria, pelo interior do pas e pela periferia dos grandes centros, produz a mais-valia absoluta, sem a qual o sistema do capital no pode girar (e
sem a qual a aristocracia operria no pode produzir a mais-valia
relativa que lhe cabe na ordem das coisas). Os burocratas sindicais
e partidrios pouco podem oferecer a essa massa. Bolsa famlia e
assemelhados, no muito mais, nas localidades mais atrasadas. No
h espao econmico para concesses do capital a esses operrios
o que restringe a eficcia de controle da burocracia operria. Os
centros urbanos j esto se convertendo em zonas de guerra. Para
que essa guerra receba um contedo de classe proletrio, ao menos
81

Cad os operrios ?
uma das condies imprescindveis, a macia concentrao de proletrios, est dada.
A interiorizao da classe operria abre, ainda, novas possibilidades. Tanto ao capital quanto aos revolucionrios. Ao primeiro,
fornece uma fora de trabalho sem experincia de luta e com parca
formao poltica. Quase sempre so pessoas ainda marcadas pelas
relaes de poder das reas do interior do pas e com forte presena
de oligarquias. Provm da a docilidade com que tais operrios tm
acatado, at o momento, a explorao que lhes imposta.
Para os revolucionrios, por outro lado, esses novos proletrios
significam que a base de apoio da contrarrevoluo, os camponeses
pobres e dominados pelos oligarcas, est sendo extinta. O antagonismo entre o capital e o trabalho proletrio substitui a antiga relao do campons com o proprietrio da terra: a revoluo proletria
passa a contar com uma base social slida mesmo nos locais mais
atrasados. O quanto isso potencialmente importante em uma crise
de propores revolucionrias difcil de ser exagerado. Vai facilitar a destruio dos setores interiorizados das classes dominantes.
Dos Arranjos Produtivos Locais, como em Toritama; da agricultura
integrada, como na produo avcola e de sunos no sul do pas;
das indstrias como a Sadia em Toledo (PR), Grandene no Cear
passando pela destruio da propriedade camponesa e pela generalizao do agrobusiness. H muito mais o que fazer na propaganda
e organizao da revoluo do que tomar postos nos sindicatos ou
eleger parlamentares. H todo um proletariado nossa espera. A ele,
contudo, apenas poderemos chegar se formos capazes de identificar
entre os inimigos do proletariado a burocracia sindical oriunda da
aristocracia operria. Enquanto tivermos iluses acerca dessa burocracia e de sua estrutura organizativa nos sindicatos e nos partidos,
seremos fceis presas do capital e de seus aliados.
A classe operria est a, em nossa vida cotidiana. A aristocracia
operria, tambm. Enquanto perdurar o longo perodo contrarrevolucionrio36 em que estamos imersos pelo menos desde os anos de
1950, provvel que tambm tenhamos o domnio da aristocracia
operria e de seus burocratas sobre o proletariado; a colaborao
de classes e no o confronto com o capital tender a ser a feio
cotidiana dos proletrios. Em contato com essa aparncia, podemos
36 No preciso sentido de que as solues tpicas dos conflitos sociais tendem a
ser aquelas aceitveis para a reproduo do capital, e no as solues revolucionrias.
82

Sergio Lessa
a ela sucumbir e entrar na CUT ou no PT ou podemos investigar
que est por trs desta aparncia e agir sobre a realidade a partir do
que descobrirmos.
H toda uma classe operria espera dos revolucionrios. A
questo, hoje, se os revolucionrios tero a conscincia e a organizao imprescindveis a essa tarefa ou se, pelo contrrio, manter-se- a continuidade predominante de nossa histria desde 1500; se a
luta de classes ser capaz de quebrar o capital ou se, pelo contrrio,
o velho engolir o novo e os trabalhadores continuaro a ser
oprimidos pelo capital. Esse o dilema da atual gerao de revolucionrios que est nascendo nas ruas, nos locais de moradia e de
trabalho: sero leais aristocracia operria e sua burocracia ou participaro, junto com a massa de proletrios, da luta contra o capital
e todos os seus aliados?
Os prximos anos daro a resposta a essa questo.

83

Sergio Lessa

Bibliografia

Allen, V. L. (1971) The sociology of industrial relations. Longman,


Londres.
Amin, S. (1977) Imperialism and unequal development. Monthly Review
Press, Nova Iorque.
Bandeira, M. (1980) O ano vermelho. Civilizao Brasileira, Ed., So
Paulo.
Basbaum, L. (1986) Histria Sincera da Repblica (vol. 1 a 4). Alfamega, Editora, So Paulo.
Bihr, A. (1998) Da grande noite alternativa. Boitempo, So Paulo.
Carone, E. (1989) Classes sociais e movimento operrio. Editora tica,
So Paulo.
Ca, G. S. S., Murofose, N. T. (2008) Associao dos Portadores de LER
(AP-LER) na luta pelo direito dos trabalhadores de frigorfico do Oeste
do Paran. In Tumolo, P. S., Batista, R. L. Trabalho, economia e
educao: perspectivas do capitalismo global. Maring: Prxis.
Chasin, J. (1977) A politizao da totalidade: oposio e discurso
econmico. Revista Temas de Cincias Humanas, Grijalbo, So
Paulo.
Chasin, J. (1978) O Integralismo de Plnio Salgado. Ed. Cincias
Humanas, S. Paulo.
85

Chasin, J. (1989). A sucesso na crise e a crise na esquerda. Revista


Ensaio, 17/18, Ed. Ensaio, So Paulo.
Chomsky, N. (1997) Deterring Democracy. Hill and Wang, Nova Iorque.
Claudin, F. (2012) A crise do movimento comunista. Ed. Expresso
Popular, So Paulo.
Danos, J. e Gibelin, M. (1972) Juin 1936 (tomos I e II). Petite
Collection Maspero, Paris.
Dutton, P. V. (2002) Origins of the French Welfare State. Cambridge
University Press, New York.
Emmanuel, A. (1972) White-Settler Colonialism and the Myth of
Investment Imperialism. New Left Review, n. 85, Londres.
Emmanuel, A. (1974) Myths of Development versus myths of
Underdevelopment. New Left Review, n. 85, Londres.
Engels, F. (2010) A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado.
Ed. Expresso Popular, So Paulo.
Gemelli, D. D. (2011) Mobilidade territorial do trabalho como expresso
da formao do trabalhador para o capital: o frigorfico de aves da Copagril
de Marechal Cndido Rondon/PR. Dissertao Mestrado em Geografia,
Universidade Estadual do Oeste do Paran, Francisco Beltro.
Glyn, A. e Sutcliffe, B. (1972) British Capitalism, workers and the profits
squeeze. Penguin, Londres.
Harrison, R. (1965). Before the socialists. Routledge & Kegan Paul.
Londres.
Heather, P. (2006) The fall of the Roman Empire. Oxford University
Press, Nova Iorque.
Heck, F. M. (2013) Degradao anunciada do trabalho formal na Sadia, em
Toledo (PR). Dissertao de Mestrado, Geografia, Unesp.
Ianni, O. (1968) O colapso do populismo no Brasil. Ed. Civilizao
Brasileira, So Paulo.
Jones, G. S. (1971) Outcast London: study in the relationship between classes
in Victorian Society. Oxford, England.
Kofler, L. (1997) Contribuicin a la historia de la sociedad burguesa. Ed.
Amorrurtu, Buenos Aires.

Sergio Lessa
Kofler, L. (2010) Histria e dialtica. UfrjEditora, Rio de Janeiro.
Korpi, W. (1980). The working Class in Welfare Capitalism. Work, unions
and politics in Sweden. Routledge & Keagan Paul, Londres.
Lentin, A.-P. (1975) Politique daujourdhui. Ed. Association politique
daujourdhui en Europe. Paris.
Lessa, S. (1996) Lukcs: ontologia e historicidade. Revista
Transformao, v. 19, Unesp, So Paulo.
Lessa, S. (1999) Notas sobre a historicidade da essncia em Lukcs. Revista
Novos Rumos, v. 30, So Paulo.
Lessa, S. (2004a) Uma praga de fantasias. Rev. Praia Vermelha, PsGraduao em Servio Social, UFRJ.
Lessa, S. (2005) Histria e ontologia: a questo do trabalho. Crtica
Marxista, n. 20, editora Revan, R. de Janeiro.
Lessa, S. (2007a) Servio Social e Trabalho: porque o Servio Social no
trabalho. Edufal, Macei.
Lessa, S. (2011). Trabalho e proletariado no capitalismo contemporneo. 2
edio, Ed. Cortez, So Paulo.
Lessa, S. (2012) Mundo dos Homens. Instituto Lukcs, So Paulo.
Lessa, S. (2013) Capital e Estado de Bem-Estar o carter de classe das
polticas pblicas. Instituto Lukcs, So Paulo.
Lessa, S. e Tonet, I. (2012) Proletariado e Sujeito Revolucionrio. Instituto
Lukcs, So Paulo.
Lukcs, G. (Vol I, 1976, Vol II, 1981) Per una Ontologia dellEssere
Sociale. Ed. Rinuti, Roma.
Lukcs, G. (1990) Prolegomini all Ontologia dell Essere Sociale. Ed.
Guerini e Associati, Milo.
Mandel, E. (1964) After Imperialism?. New Left Review, n. 25, Londres.
Marx, K. (1974) Crtica do programa de Gotha in Marx, K. e Engels, F.
Critica dos programas socialistas de Gotha e Effurt. Porto, Portugal, s/
editora.
Marx, K. (1978) Salrio, preo e lucro. Textos 3, ed. Sociais, S.
Paulo.
Marx, K. (1979) Misria de la Filosofia. Ed. Progressio, Moscou.
87

Cad os operrios ?
Marx, K. (1983, Tomo I, 1985, Tomo II) O Capital. Vol. I, Ed. Abril
Cultural, So Paulo.
Marx, K. e Engels, F. (2009) A ideologia alem. Ed. Expresso Popular,
So Paulo.
Marx, K. (2010) Da questo Judaica. Expresso Popular, So Paulo.
Mszros, I. (2002) Para alm do capital. Boitempo, So Paulo
Melo, E., Paniago, C., Andrade, M. (orgs.) (2012) Marx, Mszros e o
Estado. Instituto Lukcs, So Paulo.
Miliband, R. (1969) The State in capitalist society an analisis of Western
system of power. Weidenfeld and Nicolson, Londres.
Nairn, T. (1964) The nature of the Labour Party 1. New Left Review, n.
27, Londres.
Nairn, T. (1964a) The nature of the Labour Party 2. New Left Review, n.
28, Londres.
Nairn, T. (1964b) The English Working Class. New Left Review, n. 24,
Londres.
Neli, M. A. (2006) Reestruturao produtiva e sade do trabalhador: um
estudo com os trabalhadores de uma indstria avcola. Dissertao de
Mestrado em Medicina Social. Unesp, ribeiro Preto.
OConnor, J. (1973) The fiscal crisis of the State. St. Martin Press, Nova
Iorque.
Paniago, C. (2012) Mszros e a incontrolabilidade do capital. Instituto
Lukcs, So Paulo
Perlo, V. (1963) Militarism and Industry. International Publishers,
Nova Iorque.
Pinheiro, D. (2008) O consultor. Revista Piau, n. 16, Rio de Janeiro.
Piore, M. e Sabel, C. (1984) The second industrial divide. Basic Books,
Nova Iorque.
Rodrigues, H. (2009) Trabalho e assistncia social: estratgias de reproduo
da fora de trabalho o municpio de Toritama/PE. Dissertao de
Mestrado, Ps-Grad. Servio Social, UFPE.
Ross, A. (1997) No Sweat, Fashion, free Trade and the Rights of Garment
Workers, Verso, London.
88

Sergio Lessa
Salvadori, M. (1979) Karl Kautsky and the Socialist Revolution 18801938. New Left Books (NLB), Londres.
Skazkin, S. D. (2013) Problemas fundamentais da segunda servido na
Europa Central e Oriental. Seguido de imprescindvel comentrio de Pedro
Leo da Costa Neto, Comentrios bibliogrficos sobre a segunda servido na
Polnia. Rev. Crtica Marxista n. 36, Edunesp, So Paulo.
Tavares, M. A. (2004) Os fios (in)visveis da produo capitalista. Ed.
Cortez, So Paulo.
Taylor, C. (1960) Whats Wrong with Capitalism? 1. New Left Review,
n. 2, Londres.
Tonet, I. (1999) Liberdade ou democracia?. Edufal, Macei.
Tonet, I. (2002) A questo do socialismo. HDD Livros, Curitiba.
Tonet, I. (2005) Educao, cidadania e emancipao humana. Ed. Uniju,
Iju, R. G. do Sul.
Tonet, I.; Nascimento, A. (2009) Os descaminhos da esquerda: da centralidade do trabalho centralidade da poltica. Ed. Alfa-mega, So
Paulo.
Uesseler, R. (2008) Servants of war private military corporations and the
profit of conflict. Soft Skull Press, Berkeley, Estados Unidos

89

LIVROS PUBLICADOS PELO INSTITUTO LUKCS


www.institutolukacs.com.br
Abaixo Famlia Monogmica Srgio Lessa
Educao Contra o Capital Ivo Tonet
Individuo e Sociedade: Sobre a Teoria da Personalidade em Georg
Lukcs Gilmaisa Macedo Costa
Marx, Mszros e o Estado Edivnia Melo, Maria Cristina Soares
Paniago (Org) e Mariana Alves de Andrade
Mszros e a Incontrolabilidade do Capital Maria Cristina Soares
Paniago
Mundo dos Homens: Trabalho e Ser Social Srgio Lessa
Proletariado e Sujeito Revolucionrio Ivo Tonet e Srgio Lessa
Racismo e Alienao: Uma Aproximao Base Ontolgica da
Temtica Racial, Ulber B. Silva
Servio Social e Trabalho: Porque o Servio Social no Trabalho
Srgio Lessa
Sobre o Socialismo Ivo Tonet
Trabalho, Educao e Formao Humana Frente Necessidade
Histrica da Revoluo Edna Bertoldo, Luciano Accioly Lemos
Moreira e Susana Jimenez
Uma Nova Questo Social? Razes Materiais e Humano-Sociais
do Pauperismo de Ontem e Hoje Edlene Pimentel
Sobre el Socialismo (Espanhol) Ivo Tonet
Mtodo Cientfico uma Abordagem Ontolgica Ivo Tonet

Livro Didtico: a Simplificao e a Vulgarizao do Conhecimento Maria Lcia Paniago


Trabalho e Tempo ee Trabalho na Perspectiva Marxiana Artur
Bispo Dos Santos Neto
Esttica e tica na Perspectiva Materialista Artur Bispo Dos Santos Neto
Capital e Estado de Bem-Estar: O Carter de Classe das Polticas
Pblicas Srgio Lessa
Lanamentos 2014
Cad os Operrios - Srgio Lessa
Marx e a Diviso do Trabalho no Capitalismo - Liana Barradas
Universidade, Cincia e Violncia de Classe - Artur Bispo Dos Santos Neto
Lukcs: Ontologia e Alienao - Norma Alcntara
A Necessidade da Educao Fsica na Escola - Rosngela Mello
O Revolucionrio e o Estudo - Srgio Lessa
Anurio Lukcs - 2014
Conversando com Lukcs Entrevista a Lo Kofler, Wolfgang
Abendroth e Hans Heinz Holz (Coleo Fundamentos)

ANOTAES

Você também pode gostar