O Liberal Contra A Miséria

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O liberal contra a misria

A vida e as disputas com o PT do economista Ricardo Paes de Barros, o arquiteto


improvvel do programa social de Lula
por RAFAEL CARIELLO (PIAU n74 novembro 2012)

Castigada pelo calor intenso e pela baixa umidade do ar, que colocaria Braslia em
estado de ateno horas mais tarde, uma comitiva do governo nigeriano e da Unio
Africana chegou no meio daquela manh, no ltimo dia de agosto, ao prdio do antigo
Ministrio do Exrcito.
Apesar do ambiente marcial, com intenso movimento de soldados em fardas
camufladas pelo saguo de entrada, no fazia parte dos planos do assessor especial da
Presidncia da Nigria, Ifeolu Falegan, com seu elegante terno escuro, tratar ali de
assuntos militares. Tampouco essa ideia passava pela cabea do nambio Johan
Strijdom, nico branco da delegao, cuja combinao de camisa de mangas curtas e
gravata lhe dava um ar de gerente de supermercado ingls.
A visita do grupo havia comeado dias antes, com incurses ao interior do pas,
encontros com parlamentares e integrantes do Executivo. Tinha como objetivo

conhecer o funcionamento de programas sociais, como o Bolsa Famlia, e a experincia


brasileira de reduo da desigualdade e da pobreza na ltima dcada. Vamos colocar
tudo isso num documento e distribuir para os nossos ministros, anunciou mais tarde
Strijdom, chefe da diviso de bem-estar social da Unio Africana, entidade inspirada na
anloga europeia.
Servidores e tcnicos estrangeiros tomaram o elevador at o 7 andar do edifcio, onde
funciona a Secretaria de Assuntos Estratgicos, a SAE. Associada no passado
inteligncia militar e hoje ligada diretamente Presidncia da Repblica, a pasta, com
status de ministrio, ainda se abriga no trecho da Esplanada dedicado Defesa. Ali, sob
o comando do ministro Wellington Moreira Franco, do PMDB fluminense, trabalha
Ricardo Paes de Barros, um dos mais respeitados especialistas mundiais em pobreza e
desigualdade.

Pouco

depois das dez da manh, PB, como o pesquisador conhecido, j era

aguardado pelo grupo de africanos numa sala de reunies prxima ao seu gabinete de
trabalho. Ele prprio esperava, sem demonstrar ansiedade, que a economista Rosane
Mendona, sua ex-mulher, tambm funcionria da SAE, realizasse os ltimos ajustes
na apresentao que fariam aos visitantes.
Rosane ia e voltava pelo corredor, esbaforida. Parado no meio do caminho, ao lado da
porta que leva sala de reunies, PB brincava com a caneta laser que usaria dali a
pouco, direcionando o ponto vermelho que o instrumento emite para o cho, ao lado
dos sapatos. Mantinha a cabea baixa.
O pesquisador mede 1,67 metro e tem o tronco largo, o que lhe d uma aparncia de exjudoca, bastante em forma para os 58 anos que completa neste ms. Sorri de maneira
ao mesmo tempo tmida e acolhedora com alguma frequncia, e alterna momentos de
devaneio com outros de total ateno ao interlocutor. Os cabelos encaracolados, ainda
que grisalhos, e a oscilao entre distrao e curiosidade fazem com que ele muitas
vezes parea um menino crescido.
Entre colegas, companheiros de gerao, chefes e professores, PB reconhecido pela
inteligncia fora do comum e pelos hbitos igualmente excntricos. Seu orientador nos
trabalhos de con-cluso da graduao no Instituto Tecnolgico da Aeronutica (ITA),
Michal Gartenkraut, o qualifica como um gnio. J formado, cursou o mestrado do
Instituto Nacional de Matemtica Pura e Aplicada (Impa), uma das poucas instituies
de ensino do pas a fazer frequentes contribuies de relevncia produo acadmica
internacional. James Heckman, que viria a ganhar o Prmio Nobel de Economia em
2000, orientou o pesquisador em seu doutorado na Universidade de Chicago, nos anos
80. O talento matemtico do aluno foi imediatamente reconhecido e aproveitado pelos

mestres norte-americanos. No raro, recorriam a ele para resolver problemas formais


em que haviam empacado.
Heckman avalia que Ricardo Paes de Barros poderia ter seguido uma carreira
internacional como economista terico de primeiro time, no tivesse ele preferido dar
outro rumo a sua vida. Mal se formou, a Universidade Yale, tambm uma das melhores
dos Estados Unidos, ofereceu a PB um cargo de professor-assistente. Aps sete anos de
idas e vindas entre a Costa Leste americana e o Rio de Janeiro, Paes de Barros decidiu
se dedicar exclusivamente ao servio pblico, no Instituto de Pesquisa Econmica
Aplicada (Ipea), rgo ligado ao governo federal onde ele j desenvolvia suas
investigaes sobre desigualdade e pobreza no Brasil.
Vista pelo ngulo financeiro e tambm no que se refere ao prestgio intelectual , a
escolha poderia parecer despropositada. O economista, no entanto, diz ter um
desapego s coisas materiais meio exacerbado. Tenho uma certa averso a bens
durveis, explicou. Virou folclore entre os amigos o fato de o apartamento de quarto e
sala em que ele passou a morar em Niteri, depois da sua volta ao Brasil, ter
continuado desprovido de fogo e de geladeira por mais de uma dcada. Ele no sabe
quanto dinheiro tem na conta, explica o seu chefe de gabinete na SAE, Paulo de
Oliveira Castro. Sua vida bancria administrada conjuntamente pelo funcionrio e
por Rosane, sua ex-mulher do meio PB teve trs casamentos, cada um deles com
durao aproximada de uma dcada. Moreira Franco reclama, com bom humor, que o
subordinado no l jornais.

Apesar da vida pessoal relativamente desorganizada e do jeito areo, o pesquisador


foi responsvel por injetar doses inditas de rigor nos estudos sobre pobreza e
desigualdade no Brasil, ajudando a dar forma, no ltimo quarto de sculo,
expertise brasileira nesses temas. Mas houve um longo caminho entre o
conhecimento acumulado e as razes que levavam as autoridades nigerianas ao seu
gabinete. A visita, com esse interesse especfico, seria impensvel dez anos antes
daquela sexta-feira ensolarada.
Durante pelo menos trs dcadas, entre 1970 e 2000, o Brasil se tornou conhecido pelo
ttulo de sociedade mais injusta do mundo. Sob qualquer medida tradicional que se
utilizasse para avaliar a desigualdade de renda no pas e h vrias , o cenrio era o
mesmo.
A mais conhecida dessas medidas o coeficiente de Gini, que assume valores entre zero
e um, ao considerar as distncias entre todas as rendas de uma determinada
sociedade. Quanto maior o ndice, mais desigual a distribuio. Se um nico sujeito
detivesse toda a renda de um pas e todos os outros no recebessem nada, o indicador

seria igual a um. Se todos os indivduos recebessem a mesma renda, o coeficiente de


Gini seria nulo. Na prtica, mesmo pases bastante igualitrios, como o Canad, tm
coeficientes de Gini no intervalo entre 0,3 e 0,4. Estados Unidos, China e Rssia, mais
desiguais, apresentam valores entre 0,4 e 0,5. As sociedades mais injustas, em sua
maioria localizadas na Amrica Latina e na frica, registram ndices entre 0,5 e 0,6.
Entre 1970 e 2000, o coeficiente de Gini do Brasil esteve sempre entre os mais altos,
oscilando em torno de 0,6.
Algo que no era esperado, contudo, chamou a ateno da comunidade de economistas
dedicados pobreza e desigualdade no Brasil, por volta da virada do milnio. O ndice
de Gini brasileiro, medido a partir das pesquisas anuais por amostra de domiclios
realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), comeou a cair.
E a cair com grande velocidade. As distncias entre as rendas encurtavam. Diferentes
pesquisadores, entre eles Ricardo Paes de Barros, soaram o alarme para o fato, ainda
no primeiro governo Lula. Dada a impressionante estabilidade da desigualdade
brasileira nas trs dcadas anteriores, para muitos a continuidade da queda era uma
incgnita. E no entanto ela se manteve, num ritmo constante e intenso.
Segundo a ltima Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD), o Brasil
atingiu em 2011 o mais baixo nvel de desigualdade de renda desde 1960, quando o
ndice de Gini era de 0,535 e comearia sua escalada rumo aos recordes mundiais de
iniquidade. No ano passado, aps uma dcada de queda, registrou-se um coeficiente de
0,527. Isso ainda coloca o pas entre as doze naes mais desiguais do mundo, segundo
um relatrio recente do Ipea.
Entre 1999 e 2009, a participao dos 10% mais ricos na renda brasileira recuou de
47% para pouco menos de 43% do total. Os 50% mais pobres, que em 1999 recebiam
12,65% da renda, alcanaram o patamar de 15% do total. Parece uma mudana
pequena. Em sua apresentao aos visitantes da frica, PB procurou mostrar que
dificilmente qualquer outra sociedade teria feito melhor, no mesmo perodo.
O pontinho vermelho emitido pela caneta do economista encontrou a projeo de um
grfico em que a populao era dividida em dez partes, dos 10% mais pobres aos 10%
mais ricos. Se considerados apenas os 10% mais pobres, a renda per capita cresceu,
entre 2001 e 2009, a uma taxa de mais de 7% ao ano valor pouco abaixo do aumento
anual da renda per capita na China, entre 1990 e 2005. No decil mais rico, a renda
subiu no mesmo perodo a um ritmo bem mais lento, de menos de 2% semelhante ao
crescimento mdio da renda da populao da Alemanha.
As comparaes permitiram a Paes de Barros reforar o quanto difcil crescer a uma
taxa prxima daquela atingida pelo gigante asitico ritmo alcanado pelos mais
pobres dos pobres no Brasil. Da mesma forma, seria indesejvel que a renda dos mais

ricos aumentasse num ritmo ainda menor do que aquele constatado numa economia
madura da Europa. Os ricos do Brasil esto vendo os pobres se aproximarem na
mesma velocidade que a Alemanha v a China se aproximar dela, resumiu PB.
Falegan, o assessor nigeriano, balanou a cabea em sinal de aprovao.
Em um trabalho de 2008, o pesquisador do Ipea Sergei Soares analisou a velocidade da
queda na desigualdade brasileira. Ele mostrou que o ritmo de reduo do Gini
brasileiro entre 2001 e 2006, de 0,007 ponto ao ano (ritmo que tem se mantido desde
ento), foi maior do que aquele constatado em pases ricos nos perodos em que
construram seus Estados de bem-estar social. No Reino Unido, entre 1938 e 1954, o
Gini foi reduzido taxa de 0,005 ponto por ano tendo partido de um patamar j
baixo, prximo a 0,40. Nos Estados Unidos, entre 1929 e 1944, a queda foi de
0,006 ponto ao ano e partira de um coeficiente pouco abaixo de 0,50. Mesmo que em
velocidade menor, a desigualdade j vinha caindo antes e continuou a trajetria de
queda nos anos seguintes nesses pases. O que Soares mostrou que reduzir as
disparidades de renda tarefa de dcadas, no de alguns anos.
Mesmo que a queda da desigualdade no Brasil ainda esteja em seus estgios iniciais,
efeitos importantes j podem ser constatados. Em um dos slides, PB apontou a
evoluo da pobreza extrema nos ltimos vinte anos no pas. O termo se aplica s
pessoas que no conseguem ter renda suficiente para adquirir o nmero recomendado
de calorias dirias.
Essa condio atingia quase 23% da populao brasileira no ano anterior ao do Plano
Real, em 1993, e caiu, em 1995, para pouco mais de 17% do total. Permaneceu estvel
nesse patamar at 2003, quando passou a cair rapidamente. Em 2009, 8,4% da
populao brasileira ainda viviam em condio de pobreza extrema.
Atento, o nambio Strijdom mexia a cabea para acompanhar as idas e vindas da
luzinha vermelha sobre o grfico. Aquela palestra, com riqueza de detalhes e medies
rigorosas, no seria a mesma no fosse pelo esforo terico de PB e de uma gerao de
especialistas.
Paes de Barros tambm participou da idealizao e da avaliao de polticas pblicas
desde os anos 90. Sob sua liderana intelectual, um grupo de economistas liberais foi
responsvel, j no governo Lula, pela concepo tcnica do programa Bolsa Famlia o
que ajudou a empurrar um pouco mais para baixo o grfico para onde a caneta laser
apontava.
Mas, bem antes de tudo isso, o engenheiro Ricardo Paes de Barros encontrou o livro
que lhe daria rgua e compasso para medir a desigualdade no Brasil.

LANGONI E A EDUCAO

Em seu breve discurso de posse na presidncia do Ipea, em setembro, Marcelo Neri


agradeceu a Paes de Barros pelo que aprendeu com ele. O PB de certa forma o pai
dessa gerao de economistas sociais mais recente, disse Neri, doutor pela
Universidade Princeton em 1996, ao explicar mais tarde a homenagem.
Se Paes de Barros o pai, o av, defende Neri, Carlos Langoni, presidente do Banco
Central entre 1980 e 1983. Um av ausente, disse o presidente do Ipea, em referncia
ao fato de Langoni ter escrito um trabalho decisivo e polmico sobre a distribuio de
renda no Brasil, no incio dos anos 70, e depois ter-se retirado dos debates nessa rea.
O prprio PB declarou ter encontrado o mtodo que buscava para analisar com rigor a
desigualdade brasileira ao se deparar, j na segunda metade dos anos 80, com o livro
que Langoni publicara em 1973, Distribuio de Renda e Desenvolvimento Econmico
do Brasil.
Carlos Langoni nasceu em 1944 em Nova Friburgo, na serra fluminense, numa famlia
de classe mdia mais para pobre. Sua me era professora e sustentava a famlia. Com
a ajuda de uma bolsa de estudos concedida pela prefeitura, Langoni fez o curso
secundrio oferecido pela Fundao Getulio Vargas na cidade. Sempre fui primeiro
aluno, disse com orgulho no incio de agosto, na cabeceira da mesa de reunies em sua
empresa de consultoria. As janelas da sala, num andar alto, davam para a enseada de
Botafogo.
O talento acadmico o levou a ser aceito no doutorado em economia da Universidade
de Chicago, em 1967. Ali, foi aluno de Theodore Schultz, pioneiro da teoria do capital
humano. A ideia de Schultz, controversa para a poca, era a de que os investimentos
feitos pelas pessoas para melhorar o seu desempenho no trabalho, na forma sobretudo
de anos de suas vidas dedicados educao formal, so anlogos aos gastos feitos por
uma empresa que compra maquinrio para produzir mais, a um custo mais baixo, e
assim aumenta os seus lucros. Ao frequentar os bancos escolares, o estudante no s
amplia a sua cultura, mas ganha a capacidade de desempenhar funes mais
complexas, com maior eficincia, no mercado de trabalho e, dessa forma, tambm
aumenta a possibilidade de receber salrios mais altos.
O cara para operar o torno precisa saber ler o manual, exemplifica o socilogo
Marcelo Medeiros, professor da Universidade de Braslia e pesquisador do Ipea. O
trabalhador com maior educao formal tambm tem maior produtividade nos
servios. Voc pode contratar um nmero menor de vendedores, se eles venderem mais
rpido.

Eu fiquei impressionadssimo com as aulas do professor Schultz, disse Langoni


naquela tarde de agosto, com um sorriso animado. Quando chegou a hora de escrever
a tese, decidi usar as ideias dele para o Brasil. Ali, eu calculava as taxas de retorno do
investimento em educao no pas. O economista mostrou que a taxa de retorno a
diferena salarial de quem tinha ensino primrio completo em relao aos
analfabetos era em torno de 32%, em 1969. O ginsio completo, em relao ao primrio
completo, oferecia um retorno de quase 20%. A taxa mdia de retorno para a educao,
em 1969, foi de 28% por ano a mais de estudo aproximadamente o dobro da
rentabilidade anual dos investimentos industriais.

Com essa tese embaixo do brao, Langoni voltou ao Brasil em 1970 e foi convidado a
trabalhar na Universidade de So Paulo. Na capital paulista, passou a conviver com o
ento ministro da Fazenda, Antnio Delfim Netto. Professores da Faculdade de
Economia, Administrao e Contabilidade da USP, onde Delfim se formara e lecionara,
costumavam almoar, s quintas-feiras, em um restaurante da rua Bela Cintra, na
regio dos Jardins. O Delfim, j ministro, ia tambm, para discutir conosco, recordou
Langoni. Isso era em 1970 e 1971. Ele muitas vezes despachava de So Paulo. Foi o
primeiro contato que tive com ele. Discutamos teoria. Meu prazer era conversar sobre
isso.
Vivia-se o momento mais fechado e violento da ditadura militar, que, no entanto,
encontrava apoio na classe mdia, sobretudo pelo bom desempenho da economia.
Entre 1968 e 1974, perodo em que Delfim comandava a Fazenda, o pas cresceu a uma
taxa mdia de 11% ao ano. Resultados preliminares do Censo de 1970, contudo,
indicavam que o milagre brasileiro no tinha ocorrido sem custos. Entre o final de
1971 e meados de 1972, de forma independente, os pesquisadores Rodolfo Hoffmann e
Albert Fishlow analisaram as distribuies de renda em 1960 e em 1970, com base nos
poucos dados disponveis, e mostraram que a desigualdade havia crescido
tremendamente, no intervalo de uma dcada.
Em seu texto, Fishlow defendia que a poltica salarial implementada pela ditadura nos
anos 60, que conferia reajustes abaixo da inflao para os trabalhadores, havia
contribudo para o aumento da desigualdade. O valor real do salrio mnimo ou seja,
j descontada a inflao cara 20% entre 1964 e 1967. Em entrevista recente,
Hoffmann fez questo de lembrar que o controle da renda dos trabalhadores no se deu
apenas por meio da poltica salarial. Fui preso, em 1964, como estudante subversivo,
sem nenhuma ordem judicial. Estava assistindo a uma aula na USP, em Piracicaba.
O crime foi ter manifestado simpatia por ideias consideradas comunistas. Fiquei
cinquenta dias preso. Os outros presos polticos na cadeia de Piracicaba eram todos
lderes sindicais. Isso ocorreu no Brasil todo, em alguns lugares com muito mais

violncia. No bvio que a represso ao movimento sindical de trabalhadores e essa


poltica econmica teriam efeitos importantes sobre a distribuio da renda?
O artigo de Fishlow havia sido produzido para um encontro da Associao Americana
de Economistas, e foi publicado numa das mais importantes revistas acadmicas dos
Estados Unidos. Foi o texto que mais incomodou a ditadura, e Delfim, em particular.
Eu me lembro de que um dia o Delfim, no Rio, chamou alguns poucos economistas
para fazermos um debate sobre a questo da distribuio de renda, contou Langoni.
S a gente ali. Ele j tinha comeado a ler artigos acadmicos sobre o tema. Perguntou:
Vem c, o que mesmo essa histria de desigualdade? Tem esse artigo do Fishlow...
Eu tinha estudado. Cheguei l e, na hora da reunio, quem comeou a apresentar
algumas ideias diferentes fui eu. O Delfim gostou do comentrio e perguntou se algum
queria fazer um artigo, um trabalho sobre o tema. Eu disse que queria.
O ministro da Fazenda fez com que dados detalhados do Censo 70, a que outros
pesquisadores no haviam tido acesso at ento, fossem entregues ao economista. Um
tcnico do Servio Federal de Processamento de Dados (Serpro) foi indicado para
auxiliar Langoni em suas trabalhosas medies estatsticas, feitas com o uso de cartes
perfurados no computador central da PUC-Rio.
Ele confirmou as concluses de Hoffmann e Fishlow quanto ao aumento da
desigualdade de renda entre 1960 e 1970. Mas ofereceu uma explicao alternativa para
o problema, com base na teoria do capital humano. Segundo Langoni, o crescimento
acelerado da economia nos anos 60 fez com que a demanda por mo de obra
qualificada aumentasse numa velocidade maior do que a oferta de trabalhadores
suficientemente bem-educados. Assim, o preo que as indstrias e os servios
estavam dispostos a pagar para a pequena frao de indivduos que tinham um nmero
maior de anos de estudo aumentava mais rpido do que os salrios dos pouco
educados. A interao entre o desenvolvimento econmico e a falta de investimentos
em educao catapultava a desigualdade no pas.
As decomposies estatsticas feitas por Langoni das diferentes causas para a renda
final dos indivduos apontaram a educao como o fator individual de maior
importncia. O que Langoni nomediu foi a contribuio para a desigualdade, naquela
dcada, da represso salarial a que Fishlow e Hoffmann se referiam. O ex-aluno de
Chicago argumentou que seriam necessrias sries de dados anuais para medir tal
impacto poca, todos trabalhavam apenas com os Censos de 1960 e 1970. No
ambiente altamente polarizado e ideolgico da poca, as duas explicaes foram
tomadas como alternativas e excludentes, e o trabalho de Langoni, apoiado pelo
governo militar, foi duramente atacado.

O estigma associado quela tese perduraria em alguma medida at a dcada de 90,


quando, em contrapartida, suas ideias se tornaram quase consensuais. Uma das
concluses do trabalho era a da necessidade de maiores investimentos em educao
como mecanismo para diminuir a desigualdade, o que no havia sido feito at ento e
teria ainda que esperar algumas dcadas para acontecer. Ningum deu bola para essa
recomendao, lamentou Marcos Lisboa, ex-secretrio de Poltica Econmica do
governo Lula, numa conversa, em julho, num restaurante dos Jardins, em So Paulo.

ESCOLA E MILITARES

No final de agosto, em sua sala na Secretaria de Assuntos Estratgicos, Ricardo Paes


de Barros fez uma avaliao pessoal sobre os investimentos em educao no pas.
Quem no vem de famlia militar talvez no se d conta dessa coisa louca dos
militares: o quanto eles do valor educao e o quo pouco valor deram ao ensino
enquanto eram governo no Brasil.
Hlio Paes de Barros, pai de PB, era piloto amador no aeroclube de Cuiab, na dcada
de 40, quando, motivado pelas notcias de que navios brasileiros haviam sido
afundados por submarinos alemes, decidiu se alistar na Fora Area e combater as
potncias do Eixo na Europa. Ao terminar os cursos preparatrios no Rio, em 1945, a
guerra j havia acabado. Dedicou-se por alguns anos aviao civil, pilotando
aeronaves Constellation para a Panair, at voltar FAB e se formar aspirante a oficial
em 1954.
De seus cinco filhos trs do primeiro casamento, incluindo Ricardo, e outros dois
adotados, filhos da segunda mulher , trs so oficiais militares de alta patente: dois na
Aeronutica e um na Marinha. O tenente-brigadeiro Hlio Paes de Barros Jnior, seu
filho primognito, um ano mais velho que PB, hoje responsvel pelo Comando-Geral
de Apoio, cargo imediatamente abaixo do comandante da Aeronutica, Juniti Saito. Em
sua sala na Ilha do Governador, no Rio, diante das fotografias dos superiores
hierrquicos o comandante Saito, o ministro da Defesa, Celso Amorim, e a presidente
da Repblica , o brigadeiro explicou ser responsvel por toda a rea de suprimento e
manuteno da frota da FAB, que conta com cerca de 700 aeronaves militares. No
final dos anos 90, como piloto, comandou o esquadro de caas Mirage.
Hlio carioca, de maio de 1953. Ricardo Paes de Barros nasceu em novembro de 1954,
tambm no Rio. A famlia j havia sido removida para Lagoa Santa, em Minas, mas a
me foi t-lo no Hospital Central da Aeronutica, no Rio Comprido. Durante a infncia,
mudavam muito de cidade. Na poca do ensino fundamental, acho que estudei em
onze escolas diferentes, contabilizou Paes de Barros. Moraram por algum tempo em

Braslia, nos anos 60, quando o pai, j capito, foi ajudante de ordens do ministro da
Aeronutica, no governo Joo Goulart.
Meu pai nunca foi um dos queridinhos do golpe, afirmou PB. Ele foi tolerado. Era o
piloto do avio, o cara que acompanhava o ministro o tempo todo, durante o governo
Jango. Quando veio o golpe, o tiraram de Braslia. Caiu um pouco no ostracismo.
Nunca teve um cargo muito alto no regime.
Em 1970, seguindo os passos do irmo, PB iniciou o curso secundrio na Escola
Preparatria de Cadetes do Ar (Epcar), em Barbacena. A instituio, que ainda
funciona no mesmo local, a cerca de duas horas de Belo Horizonte, forma os
adolescentes que um dia integraro o comando da Fora Area Brasileira. Seu prdio
administrativo uma casa de dois andares do sculo XIX com escadas externas em
meia-lua. Os alunos, todos homens, so chamados pelo nome gravado na farda
camuflada, deslocam-se pelos ptios em grupos, marchando, e prestam continncia
para os militares de mais alta patente ou seja, para quase todo o corpo docente e
administrativo da escola.
Os mais destacados nas conquistas acadmicas so chamados pelas alcunhas de zeroum e zero-dois, que indicam a sua posio no ranking de desempenho escolar. Paes
de Barros entrou como zero-dois do concurso de admisso, mas caiu algumas
posies logo no primeiro ano por causa dos cursos de lnguas, nos quais nunca se saiu
bem. No final do segundo ano, j era o zero-um da sua turma. A posio confere ao
estudante algumas distines. Seu bibico, o chapu de dois bicos usado na Marinha e
na Aeronutica, tem um friso prateado, semelhante ao usado pelos alunos da Academia
da Fora Area, o curso superior preparatrio de oficiais. H tambm uma insgnia
especial, a ser ostentada na farda.
Os alunos do 1 e do 2 anos dormem em enormes alojamentos de aproximadamente
80 metros de comprimento por 15 metros de largura, cada um contendo 150 camas
praticamente coladas umas nas outras. No rancho, como chamado o refeitrio, os
melhores alunos tm direito a se sentar numa mesa destacada, no fundo do salo,
apelidada de santa ceia. Em painis diante das paredes, lemas pedaggicos
contribuem para o processo de formao dos futuros militares. A grandeza de um pas
no medida pela extenso de seu territrio, mas sim pelo carter de seu povo, diz um
deles. Noutro, pode-se ler: Nesta escola no somos educados apenas para sermos
militares, mas para vencermos na vida.

Voc marcha todo dia dizendo para si mesmo: eu sou o melhor do mundo, vou
resolver todos os problemas do pas, comentou Ricardo Paes de Barros, ao falar sobre
o sentimento compartilhado pelos alunos da escola. Servir ao pas a lgica bsica dos

militares. Ele atribui Epcar um papel central na formao dos seus valores e do seu
rigor de raciocnio. Em sala de aula, os estudantes so estimulados a entender
conceitualmente o que ensinado. Voc compreendia o que era um logaritmo, por
exemplo, sem ter que ficar fazendo operaes com ele. Voc entendia por que o cara
tinha inventado o logaritmo e para que ele servia. Segundo PB, isso o levou a
desenvolver uma racionalidade mais francesa, que ele contrape a outra,
americana. Os americanos so muito intuitivos, e j vo arranjando soluo para um
problema que eles nem apresentaram direito. Mas so criativos. Adaptam. Deixam
rolar. Talvez eu tenha um pensamento mais do tipo francs: preciso formular muito
bem a sua pergunta. A voc ter um mtodo abstrato para resolv-la e acabar
encontrando o problema concreto mais para a frente, em algum ponto do tempo.
A utilidade desse tipo de raciocnio para o que veio fazer mais tarde , para ele,
evidente: Meu trabalho muito concreto. Ele visa a problemas muito concretos. Mas
tem sempre uma estrutura analtica abstrata muito slida para chegar l.
Paes de Barros tinha talento intelectual, mas no deixava de ser estudioso e aplicado,
segundo o irmo. O apelido dele em Barbacena era biblifago. Comedor de livros.
noite, voc passava pela sala de aula, estava l a luzinha acesa. Muito depois do horrio,
e o Ricardo l, estudando. O aspirante a cadete era tambm desajeitado e pouco
marcial. Ele no era um atleta, no marchava direito, no personificava aquele garoto
espartano, lembrou o primognito. Usvamos uma japona como parte do uniforme,
porque fazia muito frio em Barbacena. Brincvamos que bastava olhar para a japona do
Ricardo para saber o que tinha no rancho. Por causa das marcas de macarro. Ou de
feijo.
Ao se lembrar dessa poca, PB disse que havia nele um pouco de desleixo total e um
pouco de cientista maluco. Ao final do 2 ano, decidiu que iria prestar vestibular para
engenharia no ITA, em vez de seguir o caminho natural dos alunos da escola e se
candidatar academia da FAB. No ITA, PB desabrochou inteiramente, lembra
Armando Castelar, ex-colega de engenharia e hoje tambm economista. Ele no incio
era muito quieto, mas foi mudando. Ficou muito mais assertivo, dono do ambiente.
Ganhou um papel de liderana. Tinha facilidade para questionar os professores, ia alm
de todo mundo com o professor. Uma mudana da gua para o vinho. Como uma
pessoa que se descobre, e se sente mais segura.
A viso de PB sobre o perodo menos edificante. Ele diz que se tornou quase um
desordeiro no ITA. Fui expulso do Centro de Preparao de Oficiais da Reserva duas
vezes. Tenho um certificado de reservista que diz: No pode ser convocado em caso de
guerra. Era para eu ter sido expulso do ITA, e at hoje no sei por que isso no
aconteceu. No sei se meu pai quebrou o meu galho.

Aps dois anos de ciclo bsico, PB e Castelar optaram pela engenharia eletrnica, o
curso com maior carga de disciplinas matemticas no Instituto. Nessa poca, Paes de
Barros liderou um movimento de alunos que pediam o fim da obrigatoriedade de
comparecimento s aulas. Fizeram um abaixo-assinado. A reivindicao foi negada.
Forado a comparecer em classe, PB ia, mas levava o travesseiro e o cobertor. Ficava
l. E onde, em que regulamento, estava escrito que eu no podia levar travesseiro e
cobertor? Eles no conseguiam me pegar.
Paes de Barros acrescentou outra motivao, mais pessoal, para no querer assistir s
aulas: j havia decidido, nessa poca, que no iria trabalhar como engenheiro. Eu
percebi que no tinha nada a ver com aquilo. Porque o engenheiro no descobre, ele
inventa. A engenharia no dedutiva. O cara que descobre a eletricidade, ele no deduz
aquilo, ele intui. O cara que faz um carro funcionar s vezes no entende direito como
aquilo funciona. O meu raciocnio no tem nada a ver com isso. O meu jeito de pensar
era completamente dedutivo.
Mesmo desinteressado, deu prosseguimento faculdade. Nos veres, fazia cursos no
Impa, no Rio. A eu virava um estudante srio, procurando entender as coisas mais
abstratas da face da Terra. Em 1976, no 4 ano de engenharia, conheceu sua primeira
mulher, Marta Helena de Moura. No ano seguinte, casaram-se, e logo em seguida
nasceu seu nico filho, Alexandre. Foi uma poca difcil. PB tinha que conciliar os
trabalhos de concluso de curso, os estudos de matemtica, a vida em famlia. A Marta
s pegou pedreira. Para fazer a monografia de graduao, eu precisava rodar os meus
programas naqueles computadores gigantes. S tinha horrio de madrugada. A Marta
passava a noite comigo l.
Em mais de uma ocasio, quando conversamos, PB procurou se mostrar agradecido s
trs ex-mulheres. O velho brigadeiro Paes de Barros tambm tem o que agradecer a
elas, segundo o relato do filho mais velho. Meu pai torcia para que a mulher cuidasse
do Ricardo. Porque ele mesmo no cuidava de nada. Ento meu pai dizia: Essa menina
est cuidando dele, o Ricardo est com o cabelo cortado, emagreceu, est bem de
sade. Nesse aspecto ele foi criado muito mal. Minha me sempre o tratou com muito
mimo. Era o queridinho da mame. Perguntava: O que vai comer? E ele sempre
respondia: bife com batata frita. At hoje. O negcio dele esse. Quando no bife,
macarro, pizza.

SEM INGLS EM CHICAGO

No mestrado do Instituto Nacional de Matemtica Pura e Aplicada, no final dos anos


70, Ricardo Paes de Barros conheceu Jos Alexandre Scheinkman. Um estudante de

ps-graduao que abra hoje manuais avanados de organizao industrial ou de


mtodos matemticos em economia usados em universidades americanas encontrar
as ideias de Scheinkman, importantes para o desenvolvimento da disciplina nos
ltimos quarenta anos. Para Paes de Barros, no h dvida de que, cientificamente
falando, Scheinkman o principal economista brasileiro. O que o impede de ser
prmio Nobel o fato de trabalhar em vrias reas. Se ele tivesse pegado um nico
tema e se dedicado quilo, teria ganho o Nobel.
Hoje professor da Universidade Princeton, Scheinkman tambm fez mestrado no Impa
e, logo depois, doutorado na Universidade de Rochester. J era professor em Chicago
quando veio ao Brasil, em 1979, dar um curso de economia matemtica no Impa. PB foi
seu aluno, enquanto fazia o mestrado, e pensava em estudar economia. Chegou a cursar
uma faculdade privada em So Jos dos Campos, enquanto era aluno do ITA, mas no
levou o projeto adiante. No incio dos anos 80, j no Ipea, PB decidiu se candidatar ao
doutorado nos Estados Unidos. S havia um detalhe: eu no sabia falar ingls,
contou, rindo, em agosto. Sabia alguma coisa, mas tremendamente mal.
O Scheinkman deve ter me bancado. Deve ter feito coisas mirabolantes para eu ser
aceito l.
Scheinkman se refere ao episdio de maneira cautelosa, como se o fato de falar ingls
mal fosse uma mcula no currculo do aluno que ele j considerava brilhante desde as
aulas no Impa. O diretor de admisso em Chicago deve ter vindo falar comigo, porque
eu era brasileiro. praticamente certo que foi isso o que aconteceu. E o chefe de
departamento na poca era um amigo meu, o Bob Lucas [Robert Lucas Jr., que mais
tarde ganharia o prmio Nobel, um dos maiores tericos da economia do sculo
XX].
Tive uma conversa com Lucas sobre o Ricardo, contou Scheinkman. Existe uma
grande flexibilidade no processo de admisso em uma universidade americana. A gente
est atrs do melhor aluno, e corriqueiramente faz excees para atingir esse objetivo.
Eu disse que a gente tinha que resolver aquele problema e ele resolveu, ali, na minha
frente.
Recm-chegado, o aluno brasileiro conseguia ler os manuais e entender as aulas, mas
perdia as piadinhas dos professores. Tambm no tinha desenvoltura para fazer
perguntas em sala. s vezes eu tentava, e ningum entendia o que eu queria dizer.
Para piorar a sua situao, havia pedido universidade para s comear o curso no
segundo semestre de aulas. PB j trabalhava no Ipea, num grupo de engenheiros que
estudavam alternativas para a matriz energtica brasileira, e queria cumprir
compromissos assumidos com a equipe, antes de se mudar com a mulher e o filho para
Chicago. De toda forma, contou que numa disciplina importante, Microeconomia 2,

conseguiu a melhor nota da turma, mesmo sem ter cursado antes Micro 1, oferecida no
semestre que perdera. O Scheinkman deve ter pegado a nota e falado para os caras: t
vendo, no precisa saber ingls para estudar aqui!
Por interveno tambm do ex-professor do Impa, PB foi procurado por James
Heckman, que viria a orient-lo no doutorado. Eu estava em casa, e ele bateu na
minha porta, perguntando se eu queria trabalhar para ele. Passava dez, quinze horas
por semana conversando com o Heckman. Eu resolvia as coisas para ele. E ele tambm
tirava as minhas dvidas. Eu no perguntava sobre o problema. Perguntava por que
razo as pessoas pensavam sobre os problemas daquela maneira.
O trabalho continuava em casa, noite e nos fins de semana. Seu irmo Hlio, que
viajara aos Estados Unidos para um curso na Fora Area americana, fez nessa poca
uma visita a PB. Cheguei casa dele e no vi um mvel. Tinha um quadro-negro
enorme, e um pequenininho do lado. O grande, cheio de frmulas, em que o Ricardo
trabalhava. E o pequenininho para o filho, que estava rabiscando. Na memria de
Alexandre no h o segundo quadro-negro, mas cartolinas, em que desenhava
aeronaves e nibus espaciais, enquanto o pai estudava ao lado. O filho de PB hoje
desenhista industrial.

James Heckman, o orientador de Paes de Barros em Chicago, um especialista em


econometria, o ramo da estatstica dedicado a entender a relao entre variveis
econmicas a partir de observaes empricas. Em um caso bastante simples, um
econometrista pode querer conhecer a relao entre a renda de uma pessoa e sua
escolaridade. razovel esperar que, medida que a escolaridade aumente, a renda
tambm o faa. A econometria quer saber em que medida isso acontece, levando em
conta o fato de que essa relao nunca precisa h uma variedade enorme de salrios
para um mesmo nvel de formao educacional. Mas, se apenas a escolaridade
influenciasse o valor do salrio, seria possvel encontrar essa medida exata um
nmero que ligaria cada um dos nveis de educao a uma renda correspondente.
O problema fica mais complexo quando, alm da escolaridade, so includas outras
variveis determinantes da renda, como experincia, sexo, idade. Usando a mesma
tcnica, possvel isolar os efeitos particulares de cada uma dessas causas sobre o
valor final do salrio. J est embutida a uma ideia de decomposio.
Com base nessa diviso das vrias caractersticas daquilo que se pretende estudar,
Langoni fez uma coisa ainda mais interessante nos anos 70, o que provocou a
admirao de PB. Ele primeiro media os efeitos derivados dos dados que recebia da
realidade. Depois mudava alguns desses dados, a partir de perguntas especficas. E se a
participao de analfabetos no total da populao se mantivesse constante, entre 1960 e

1970? Quanto isso mudaria a renda desse grupo, ao longo daquela dcada? E como essa
mudana imaginria se comparava com a mudana efetivamente constatada? Ao
mexer diretamente nos dados, ele construa realidades paralelas, chamadas no jargo
de exerccios contrafactuais, e nelas aplicava os mtodos economtricos usados antes
apenas para o mundo real. Isso permitia a Langoni, por comparao com o que de
fato aconteceu, dizer qual a importncia dos fatores que haviam sido mudados.
A ideia dele 99% do meu trabalho, afirmou PB. Eu quero saber se educao
importante? Eu volto nos microdados. Eu tenho a pesquisa da PNAD. Eu quero saber,
digamos, qual seria a desigualdade no Brasil se no existissem analfabetos funcionais.
Volto na PNAD. Voc analfabeto funcional? Sou. Hoje vai deixar de ser! Vou te dar
cinco anos de estudo. Mas a a sua renda vai mudar. Para quanto? Vamos pegar
pessoas que tenham tudo igual a voc, idade, sexo, cor, mas com cinco anos a mais de
estudo, e vamos achar esse cara na PNAD. A voc vai ter a renda desse cara. Constri
uma nova PNAD, sem analfabetos funcionais, e diz qual seria o novo Gini.
o domnio desse tipo de tcnica que permitiu a Paes de Barros, na apresentao para
a delegao africana, afirmar que a pobreza no Brasil ainda teria cado bastante,
embora metade do ritmo verificado nos anos 2000, se o pib per capita simplesmente
no tivesse crescido e a queda fosse consequncia apenas da nova distribuio de
renda.
Usei meu tempo em Chicago para ter a tcnica mais refinada possvel, explicou PB,
enquanto se agitava atrs da mesa de trabalho. Mas meu interesse, naquele momento,
j era completamente substantivo. Eu estava quicando na cadeira, querendo voltar para
o Brasil e estudar desigualdade. E sabia que j tinha as ferramentas para fazer isso.

DE VOLTA AO BRASIL

Quando Ricardo Paes de Barros anunciou que ia voltar ao pas, em 1987, o orientador
protestou. O Heckman disse que eu era maluco. Para ele, com toda a minha formao,
ir para o Brasil era destruir a minha carreira cientfica. O economista Ricardo
Henriques, que mais tarde viria a trabalhar com PB e teria papel crucial na criao do
Bolsa Famlia, avalia que, nesse momento, ele fez dois movimentos inusitados. Ele no
s volta, como volta para uma agenda que estava margem. Todo mundo estava
envolvido na macroeconomia, resolvendo o enorme problema da inflao. O Ricardo
volta e decide se ocupar de outra coisa.
O interesse obsessivo do pesquisador por pobreza e desigualdade tambm tem
caractersticas pouco usuais. Segundo sua terceira mulher, Mirela de Carvalho, o
Ricardo no um cara que olha as criancinhas na rua com fome e chora; esse mais o

meu perfil. Mirela foi casada com PB na ltima dcada. Tem 38 anos, cabelos
castanhos, magra, no muito alta. De maneira carinhosa, ela o descreve como uma
pessoa movida 100% pela lgica e pela razo. Mas diz acreditar que possvel se
chegar a esse comprometimento contra a desigualdade, afinal tico, por caminhos
quase que exclusivamente cerebrais.
Mirela citou, como exemplo, o experimento racional proposto pelo filsofo americano
John Rawls para determinar a razo pela qual uma sociedade mais igualitria pode ser
prefervel a uma outra, mais injusta. Um indivduo que ignorasse que posio viria a
ocupar em alguma dessas sociedades, e que tivesse a oportunidade de escolher apenas
em qual das duas gostaria de nascer, iria optar por aquela em que a pior posio
possvel fosse a menos pior. Entre as duas, a sociedade mais igualitria que atende a
esse requisito. Voc me pergunta de onde vem essa escolha de trabalhar com pobreza e
desigualdade, se no de um corao? Eu acho que vem de uma mente, de uma mente
extremamente lgica, ela disse.
O primeiro chefe de Paes de Barros no Ipea, depois da volta ao Brasil, foi o pesquisador
Eustquio Reis. Na adolescncia, Reis foi contemporneo da presidente Dilma na
melhor escola pblica de Belo Horizonte, e ainda guarda o sotaque mineiro, apesar de
ter ido estudar no Rio, e depois no Massachusetts Institute of Technology (MIT), na
dcada de 70. O escritrio em que trabalha, na sede carioca do Ipea, atulhado de
papis, que formam pilhas nas estantes e em cima da mesa.
Reis j conhecia o funcionrio recm-chegado do incio dos anos 80, quando PB ainda
se dedicava ao grupo de energia do Ipea, e sabia do seu talento. Ele veio conversar
comigo e eu disse: O que voc quiser e estiver a meu alcance, vou fazer. Paes de
Barros queria dispor dos dados das PNADs, aos quais o acesso era restrito poca.
Segundo PB, ele ganhou uma vantagem parecida com a que Langoni recebera em
1972. Ele obteve os microdados porque o Delfim disse: D os microdados para ele, d
os programadores de que ele precisa. Eu tive a vantagem do Eustquio. Quando eu
cheguei ao Brasil, ningum tinha acesso aos microdados da PNAD. Eu tive.
O economista Lauro Ramos, que tambm fez ITA e foi colega de PB no Ipea nessa
poca, afirma que o amigo era o sujeito certo, no lugar certo, na hora certa. Foi
justamente nessa poca que os computadores ficaram mais comuns, explicou Ramos.
Em 1989, eu j rodava a PNAD em PC. Era um negcio doloroso. Voc botava para
rodar de noite e s no outro dia tinha o resultado. Mas j dava para usar o PC. Ento foi
possvel reunir a capacidade do PB para questes empricas, uma base rica como a
PNAD e a disponibilidade de computadores.

Naqueles primeiros anos de trabalho, j comearam a aparecer os resultados e os temas


pelos quais o pesquisador passaria a ser conhecido. Numa srie de artigos, Paes de
Barros analisou vrios possveis determinantes para as rendas individuais e sua
distribuio. Alguns foram descartados, depois de testados, como pouco relevantes,
como a influncia do tamanho da famlia e do nmero de filhos para a pobreza. Outros
se mostraram mais importantes. Ao final, ningum mais duvidava da relao entre
nvel de escolaridade e pobreza, e entre desigualdade escolar e desigualdade de renda,
no Brasil.

Em um artigo publicado no ano 2000, o economista Francisco Ferreira, poca na


PUC-Rio, hoje no Banco Mundial, fez referncia ao estigma associado tese de
Langoni, que perdurou at os anos 90, e ao papel das pesquisas de PB para super-lo.
Trabalhos desenvolvidos por Ricardo Paes de Barros e colaboradores durante a dcada
de 90 conseguiram remover, ao menos no meio acadmico, a aura de incorreo
poltica que ficara, por algum tempo, associada ao argumento de que , de fato, na
distribuio da educao e na determinao dos seus retornos econmicos que reside a
causa-chave da desigualdade brasileira, como inicialmente defendia Carlos Langoni,
constatou Ferreira.
No final dos anos 90, PB foi protagonista do debate sobre focalizao dos gastos
sociais no pas, ao mostrar que os recursos necessrios para erradicar a misria eram
relativamente pequenos se comparados ao volume total de verbas j destinado rea
social bastaria o equivalente a 25% do que j era despendido para pr fim pobreza
extrema. Grande parte desse gasto, portanto, no estava indo para quem dele mais
precisava. poca, chegou a dizer que, se o dinheiro fosse jogado de um helicptero,
chegaria com mais facilidade s mos dos mais pobres. O Bolsa Famlia em parte
uma resposta a um grfico nosso mostrando que reduzir a pobreza no Brasil exige um
gasto que quase ridculo, ele me disse em agosto, em Braslia.
Paes de Barros tambm viria a mostrar que a pobreza era duas vezes maior entre as
crianas do que na mdia da populao. Disse ter ficado com seu papelzinho sobre as
crianas por mais de dez anos debaixo do brao, at que ele chamasse a ateno de
Dilma Rousseff, ainda na Casa Civil. Sua primeira tarefa na SAE, compartilhada com
Rosane Mendona, foi elaborar um plano de combate pobreza na primeira infncia.
O projeto deu origem ao programa Brasil Carinhoso, lanado neste ano, que estendeu
benefcios do Bolsa Famlia a quem tem filhos entre 0 e 6 anos de idade.

Aproposta de focalizao foi recebida como uma ameaa neoliberal e hostilizada pela
esquerda. Temia-se, no final dos anos 90, que a nfase em eficincia dos gastos sociais
servisse como pretexto para a reduo de verbas destinadas rea ou mesmo para o

desmonte de direitos universais recm-garantidos pela Constituio de 88. Ricardo


Henriques lembra que o debate entre focalizao e universalizao ressurgiu
poca do lanamento do Bolsa Famlia. Havia uma tentativa de colocar a pecha de
liberal por causa da focalizao. Meu argumento era de que ocorria o contrrio. Que a
agenda progressista de transformao do pas passava por compatibilizar direitos
universais com a focalizao da pobreza.
Pergunto a Paes de Barros qual sua posio ideolgica. Talvez, para contrariar um
pouco, eu me classificasse como direita, disse. A seguir, explicou: Se esquerda
significa que estamos dispostos a abrir mo de muita coisa, inclusive de eficincia, para
ter mais igualdade e as necessidades bsicas satisfeitas nas suas mais variadas
formas,ento eu sou de esquerda. Se ser esquerda significa que para atingir essas coisas
voc precisa de um Estado gigante, ento eu sou de direita. O que eu quero atingir o
maior nvel de satisfao com a menor interveno governamental possvel.

A desigualdade atingiu recordes histricos no final da dcada de 80, e a pobreza, que


antes caa apesar da pssima distribuio de renda, voltou a crescer e se tornou mais
visvel, nas grandes cidades, do que jamais fora. Era o saldo de anos de estagnao e de
inflao. No toa, um grande nmero de programas de combate pobreza comeou a
ser concebido, a partir do final da dcada perdida, e implementado nos anos seguintes.
O senador petista Eduardo Suplicy idealizou a renda bsica de cidadania. Ento na
UnB, Cristovam Buarque fez no final dos anos 80 as primeiras propostas de um
programa de transferncia de renda que exigisse, em contrapartida, a frequncia
escolar dos filhos dos beneficirios. Ideia semelhante apareceu num artigo de 1991
escrito pelo professor da PUC-Rio Jos Mrcio Camargo, que poca mantinha um
grupo de estudos com PB sobre pobreza e mercado de trabalho. A ideia surgiu
daquelas nossas conversas, afirmou Camargo em agosto.
Em meados dos anos 90, programas de transferncia condicionada de renda
comearam a ser adotados em diversos municpios brasileiros. Cidades como
Campinas, Jundia, Boa Vista, Santos e Ribeiro Preto criaram suas prprias bolsas,
enumerou Ana Fonseca, estudiosa do tema que mais tarde coordenaria o Bolsa Famlia.
No Distrito Federal, o Bolsa Escola foi institudo em 1995, ano em que Cristovam
Buarque tomou posse como governador.
No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, programas nacionais de
transferncia tambm comearam a ser implementados. Com o mesmo nome usado
por Cristovam no Distrito Federal, o Ministrio da Educao lanou o Bolsa Escola em
todo o pas. A Sade passou a ter o Bolsa Alimentao. E o Ministrio de Minas e

Energia criou o Auxlio Gs. Cada programa tinha sua prpria forma de seleo, e sua
prpria lista de beneficirios. Atendiam sobretudo famlias pobres com crianas.
Wanda Engel, uma carioca extrovertida e de risada gostosa, era ento a ministra de
Assistncia Social. Ela se deu conta de que, apesar das sobreposies e ineficincias,
todos os grupos mais vulnerveis pobreza j recebiam algum tipo de auxlio, se
fossem considerados os programas recm-lanados e os benefcios para os idosos, como
a aposentadoria rural.
Numa viagem de avio para Alagoas, em companhia de Fernando Henrique Cardoso,
Wanda resolveu fazer uma proposta ao chefe. Desenhou algo no papel e disse:
Presidente, quer ver, a gente j tem uma rede de proteo social. O que preciso
agora organizar e integrar essa rede. O Fernando Henrique j chegou a Macei
fazendo discurso: Temos uma rede de proteo social!, contou Wanda em setembro,
em seu apartamento no Rio.
Para organizar e integrar a rede, ela propunha criar um cadastro nico de pobres e
beneficirios de programas de renda no pas. Precisvamos de dados comuns. Podia
ser que tivesse gente superapoiada e gente sem apoio nenhum. Mas todos os programas
j tinham o seu prprio cadastro, e ningum queria parar. Fizemos uma primeira
listagem que era uma espcie de Frankenstein: juntava todos os cadastros.
Wanda usava dados recm-coletados pelo Censo 2000 para informar aos prefeitos o
nmero de pobres em cada municpio, e pedia que eles achassem essas pessoas,
dando cara pobreza no pas. Para fazer o controle das aes do cadastro, usou as
nicas instituies que chegam a qualquer buraco remoto do Brasil: igrejas e
maonaria. Apelei para todos os santos, contou, rindo. Fui a uma reunio com 3 mil
capas pretas em Porto Seguro. E disse: Olha s, gente, tirar dinheiro de pobre deveria
ser crime inafianvel. Vo l e fiscalizem os prefeitos.
Para ajud-la no processo, chamou Paes de Barros, poca j diretor de estudos sociais
do Ipea. Ele era mais ou menos o meu guru. Os veredictos do PB so como os de um
bom mdico. Totalmente confiveis. Segundo Marcos Lisboa, do meio para a frente
dos anos 90, todo mundo que fazia poltica pblica sria chamava o PB.

AGENDA PERDIDA

Wellington Moreira Franco, o atual chefe de Paes de Barros, nasceu em Teresina, no


Piau, mas estudou e fez carreira poltica no Rio. Filiou-se ao MDB no incio dos
anos 70. Na primeira metade dos anos 80, transferiu-se para o PDS de Maluf, partido
que dava continuidade Arena, a legenda que serviu ditadura. Em 1985, retornou ao

PMDB. Sua proximidade com o vice-presidente, Michel Temer, foi decisiva para que
assumisse a Secretaria de Assuntos Estratgicos.
Ainda em 2002, quando presidia a Fundao Ulysses Guimares, brao programtico
da legenda, Moreira Franco encomendou a economistas ligados ao Instituto de Estudos
do Trabalho e Sociedade (IETS), no Rio, a elaborao de propostas para um futuro
governo. Seriam entregues como contribuio candidatura de Jos Serra
Presidncia. A vice da chapa, deputada Rita Camata, era do PMDB. Marcos Lisboa,
Ricardo Henriques, Jos Mrcio Camargo e Ricardo Paes de Barros participaram da
concepo do documento, que veio a ter um ttulo estranho: Tirando o atraso: combate
s desigualdades j. Criticavam a falta de focalizao dos gastos sociais e propunham
aes que significariam levar adiante o trabalho iniciado por Wanda Engel.
Foi entre 2001 e 2002, recorda o hoje ministro da SAE. Fizemos um grande
seminrio, o texto foi aprovado. Fomos apresentar o documento ao Serra, durante uma
reunio, como manda o figurino, num hotel no Rio de Janeiro. Dessa reunio
participaram Marcos Lisboa, Ricardo Henriques, Michel Temer. Ao final do encontro, o
Serra me chama e diz: P, Wellington, como voc gosta desse pessoal de direita! Voc
no tem jeito, voc s anda com a direita!
Poucos meses depois, o tambm candidato Ciro Gomes procurou Jos Alexandre
Scheinkman. Queria pedir ao economista que ajudasse a preparar um programa de
governo. Os dois haviam sido apresentados pelo tucano Tasso Jereissati, num encontro
em So Paulo. Dos Estados Unidos, Scheinkman telefonou para Marcos Lisboa, poca
professor da Fundao Getulio Vargas, no Rio. Mais tarde, chegaram concluso de
que era prefervel fazer um documento que no tomasse partido na disputa
presidencial.
Assim nasceu a Agenda Perdida, feita por um grupo que reunia Lisboa, Jos Mrcio
Camargo e Ricardo Paes de Barros, que j haviam ajudado a elaborar o documento para
o PMDB. Vrios outros professores da PUC-Rio, da FGV carioca e da USP se
associaram iniciativa. Na parte de polticas sociais, elaborada por PB, a Agenda
criticava a ineficincia e a falta de focalizao dos gastos pblicos. Propunha, como
parte da soluo, um sistema unificado de cadastramento e monitoramento das
polticas de assistncia e a unificao de todos os programas de combate pobreza.

Com a vitria de Lula nas urnas, o PT chegou afinal ao Planalto. Portava a promessa
histrica, encarnada na figura de um ex-metalrgico, de reduzir as disparidades de
renda no pas. Mas nem de longe havia clareza sobre como isso seria feito. Era em
grande medida um governo procura de um programa. Em seu livro Sobre Formigas e
Cigarras, Antnio Palocci relata que, quando j comandava a equipe de transio,

recebeu do ento presidente do Banco Central, Armnio Fraga, o texto da Agenda


Perdida. O estudo era realmente muito bom, escreveu Palocci. Ele abordava os mais
diferentes problemas da realidade brasileira, tanto sob o ponto de vista econmico
como social. O futuro ministro da Fazenda procurou Scheinkman e dele recebeu a
sugesto de que falasse com Lisboa. Marcos fez um relato sobre o processo de
elaborao do documento que reaparecera em minhas mos aps a campanha eleitoral,
e discorreu sobre seu contedo, relatou Palocci no livro. Antes mesmo que terminasse
sua apresentao, j estava convidado para integrar a equipe.
Lisboa era amigo, dos tempos de graduao, de Ricardo Henriques, que trabalhava com
PB no Ipea e havia colaborado com o governo de Benedita da Silva, ao longo de 2002,
no Rio. Com essas boas credenciais, na Fazenda e no PT, Henriques foi escolhido para
ser o secretrio-executivo da pasta de Assistncia e Promoo Social, que viria a ser
comandada por Benedita. No Planalto, colocaria em prtica o que PB havia proposto na
Agenda Perdida. As ideias contidas no documento ganharam a ateno de Lula,
segundo Henriques, numa reunio da rea social do governo, ainda em fevereiro de
2003.

Naquele momento, o Fome Zero j comeava a fazer gua. O confuso conjunto de


propostas abrigado naquele programa havia sido trombeteado na campanha como a
principal iniciativa de Lula na rea social. Previa, a princpio, a distribuio de vales e
cupons destinados compra exclusiva de alimentos. Seu idealizador, o professor Jos
Graziano da Silva, do Instituto de Economia da Unicamp, chegou a anunciar que a
burocracia federal elaboraria listas de alimentos que poderiam ser comprados pelos
beneficirios, a serem distribudas a supermercados do pas. O programa acabou se
resumindo entrega de 50 reais mensais. Mais um carto se somava, ento, s bolsas j
existentes, herdadas do governo FHC. Como se no bastassem os problemas de
concepo, o Fome Zero tambm encontrou dificuldades para chegar aos mais pobres,
no tendo ultrapassado a marca de 800 mil famlias beneficirias, no final de 2003,
enquanto o Bolsa Escola, sozinho, j alcanava mais de 5 milhes de domiclios.
Na reunio do incio do governo, incentivado por Lula a falar, Henriques fez a defesa da
criao de um cadastro nico e da reunio de todos os programas sociais em um nico
carto. A ideia, afirma Ana Fonseca, j havia aparecido nos trabalhos do grupo de
transio, de que ela participou. Foi Henriques, de toda forma, quem recebeu o sinal
verde do presidente, em meio crise precoce do Fome Zero. Passou a trabalhar, nos
meses seguintes, no projeto tcnico da unificao do Bolsa Escola, do Bolsa
Alimentao, do Auxlio Gs e do Carto Alimentao do Fome Zero.
Detalhes do novo programa passaram a ser discutidos em reunies semanais que
Ricardo Henriques mantinha, no Rio, com Lisboa, Mrcio Camargo e PB. Trabalhavam

s sextas e nos fins de semana. Francisco Ferreira, j no Banco Mundial, voava de


Washington para participar. Fui a vrias dessas reunies para desenhar a unificao.
Isso virou um mtodo, afirmou Henriques. Eram reunies meio de bombardeio.
Parte da ideia era a de exaurir hipteses possveis. Para formatar o Bolsa Famlia,
tnhamos que testar vrias hipteses. Eu dizia: No posso sair daqui com uma proposta
para o governo sobre a qual tenhamos dvidas. s vezes, a discusso tinha recortes
especficos. Qual o melhor modelo para fazer seleo de beneficirios? Quem pode
ajudar? A parte emprica muito do Ricardo. A Rosane Mendona tambm foi
trabalhar comigo l na Secretaria. Para rodar os dados, fazer simulaes de impacto na
pobreza.
O projeto enfrentou resistncias dentro do governo e tambm em setores do PT, mas
quem importava j havia empenhado seu apoio iniciativa. Os grandes avalistas do
programa foram o Palocci e o presidente, reconheceu Henriques.
Em Braslia, ele participava de reunies com os vrios ministrios. Precisava coordenar
os cadastros e chegar ao formato final do programa. A Caixa Econmica desenvolveu a
estrutura tcnica para alcanar milhes de beneficirios em todo o pas. O novo
programa incorporou condicionalidades das bolsas lanadas no governo Fernando
Henrique: frequncia escolar e acompanhamento do carto de vacinao das crianas.
O Bolsa Famlia, que se tornaria o maior smbolo da era Lula, seria lanado alguns
meses depois, antes que chegasse ao fim aquele primeiro ano de mandato.

A unificao dos programas sociais e a criao de um cadastro nico permitiram que a


transferncia de renda aos mais pobres ganhasse eficincia e escala. As famlias
atendidas saltaram de 6,5 milhes, em 2004, para cerca de 11 milhes, em 2006. H
hoje mais de 13 milhes de famlias no programa. Segundo um estudo do Ipea, no ano
passado 3% das famlias brasileiras eram ao mesmo tempo elegveis para participar do
programa e no o recebiam contra 7% das famlias nessa categoria em 2005.
O Bolsa Famlia contribuiu para a queda da desigualdade na ltima dcada mais
como um aditivo, contudo, do que como a sua causa principal. Como nos anos 60,
transformaes no capital humano dos trabalhadores foram decisivas para as
mudanas na distribuio de renda. Entre 1996 e 2009, a escolaridade mdia de quem
procurava emprego passou de 5,4 anos de estudo para 7,3 um aumento, em 13 anos,
de 35% na qualificao dos trabalhadores. Investimentos decorrentes de exigncias da
Constituio de 88 e da ampliao de verbas para o ensino fundamental no governo
Fernando Henrique fizeram com que a desigualdade educacional, que antes crescia,
comeasse afinal a cair, no incio dos anos 2000.

Como agora havia mais gente com maior escolaridade no mercado de trabalho, tambm
o retorno dado pela educao o quanto compensava ficar um ano a mais nos bancos
escolares em vez de procurar emprego diminuiu. mais ou menos o que Langoni
descreveu para os anos 60, s que de cabea para baixo. Dessa vez, os retornos da
educao ajudaram a reduzir a desigualdade de renda.
Em um trabalho de 2010, Paes de Barros estimou que quase 30% da reduo do ndice
de Gini entre 2001 e 2007 foram provocados por mudanas na escolaridade dos
trabalhadores brasileiros. Segundo PB e Sergei Soares, em artigos distintos, outros 20%
a 30% da queda se deveram especificamente a uma reduo na desigualdade das
aposentadorias. Os aumentos do salrio mnimo contriburam para alavancar os
rendimentos mais baixos pagos aos aposentados, que representam a maior parte dos
benefcios, e a reforma da Previdncia de Lula ajudou a cortar os ganhos dos que
recebiam mais.
Do total, entre 10% e 15% da queda do ndice de Gini, nos ltimos anos, foram
promovidos pelas transferncias do Bolsa Famlia. Em 2011, o programa custou 16,7
bilhes de reais o equivalente a 0,4% do PIB. Por chegar aos mais pobres dos pobres,
de maneira barata, Soares descreve esse aditivo reduo da pobreza e da desigualdade
como um negcio genial, fantstico, maravilhoso.
Aps bater recordes de iniquidade e, depois, recordes de reduo da desigualdade, o
Brasil chegou a 2012 com um ndice de Gini ainda prximo de 0,50 o mesmo patamar
de que partira em 1960, bastante elevado segundo qualquer critrio que se adote.
Enquanto a trajetria da desigualdade de renda parece bem explicada, as razes por
que partiu e voltou a patamar to alto no so fceis de determinar. Questionado,
Sergei Soares contestou que talvez fosse necessrio encontrar uma explicao se ela
no fosse to alta. O que era o Brasil? Como o pas foi criado? Aqui se explorava de
forma cruel a mo de obra, com a escravido. No d para ser muito pior do que isso.
Talvez a pergunta real fosse: por que no somos o Haiti?
Tanto o pesquisador do Ipea quanto Carlos Langoni atribuem histrica desigualdade
na distribuio de ri-quezas, como no caso da concentrao fundiria, grande influncia
sobre o patamar de desigualdade de renda de que o pas partiu ao iniciar o seu processo
de industrializao acelerada. Explicar o nvel de onde parte quase como explicar por
que a sociedade brasileira o que , afirmou Soares.

CAPITAL POLTICO

Logo que os especialistas na rea comearam a dar as primeiras notcias sobre a queda
na desigualdade, em meados dos anos 2000, a validade dos resultados foi questionada

por um pequeno grupo de economistas de esquerda. Entre eles estava o petista Marcio
Pochmann, professor da Unicamp e integrante da equipe da prefeita de So Paulo,
Marta Suplicy, entre 2001 e 2004.
O argumento de Pochmann era o de que a mudana constatada acontecia apenas na
distribuio dos salrios, no interior da renda do trabalho, que era captada pelos
dados da PNAD. Por outro lado, a renda do capital, que abarca juros, lucros e
aluguis de imveis, escaparia pesquisa por amostra de domiclios justamente o
conjunto de dados usado para medir a queda no coeficiente de Gini. O economista do
PT dizia que outra realidade saltaria aos olhos se fosse considerada uma fonte distinta
de informaes, o Sistema de Contas Nacionais, um balano contbil do pas, realizado
anualmente pelo IIBGE. Ali, a renda total do pas repartida em remunerao dos
empregados e em excedente operacional bruto, que equivaleria renda do capital.
Na verdade, afirmou Pochmann, a participao do rendimento do trabalho na renda
nacional vinha caindo ao longo dos anos, enquanto a renda dos proprietrios crescia.
A desigualdade de renda, vista dessa perspectiva, aumentava.
Sem fazer meno explcita a Pochmann, Rodolfo Hoffmann rebateu os principais
argumentos do grupo que o petista liderava e reafirmou a queda na desigualdade, em
artigo publicado em 2008. A PNAD, ele disse, inclui rendas que correspondem, sim,
aos lucros dos empregadores. Os valores ali declarados so certamente menores do que
os reais ganhos do capital, explicou o pesquisador. Mas como as imperfeies da
PNAD so provavelmente as mesmas ao longo dos anos, no h por que duvidar da
evoluo do ndice de Gini calculado a partir de seus dados.
piau, Hoffmann reafirmou que uma simplificao grosseira dizer que as
pesquisas no captam os ganhos do capital. Alm disso, mesmo o Sistema de Contas
Nacionais indicava uma relativa estabilidade na participao dos rendimentos do
trabalho no total da renda, entre 2000 e 2005, variando de 40,5% para 40,1% do total.
Segundo o IBGE, as participaes dos rendimentos do capital e do trabalho
mantiveram-se praticamente estveis desde 2000.
Politicamente, o Pochmann entende que o PB um inimigo, afirmou Eustquio Reis,
atrs da sua mesa e das pilhas acumuladas de papel, ao final de um dia de trabalho, em
agosto. Segundo o pesquisador do Ipea, Paes de Barros sempre bateu forte na viso
sindicalista de parte dos economistas do PT, que centravam o seu interesse e as
sugestes para combater a pobreza no Brasil na evoluo do salrio mnimo.
uma viso sindicalista, argumentou Reis. Uma viso completamente equivocada
do que a pobreza. Uma poltica voltada para uma elite operria formada pelo Getlio.
E que no percebia que abaixo do salrio mnimo tem muito mais coisa do que parece.

Era isso que o PB mostrava. O Lula, alis, se deu conta disso, se deu conta de que tinha
um segmento do eleitorado, muito importante, que est abaixo disso.
Em 2007, o adversrio ideolgico de PB desde os debates da dcada de 90 sobre
focalizao se tornou tambm seu chefe. Marcio Pochmann foi nomeado para a
presidncia do Ipea, onde Paes de Barros ainda trabalhava. Apesar de sua admirao
declarada por Lula e do bom relacionamento pessoal com o ento presidente, PB
afirmou que desde o incio do governo do PT ele j tinha muito menos demanda
dentro do Ipea do que no perodo do Fernando Henrique.
Ainda tinha algum espao, mas menor. Quando entra o Marcio, eu deixo de ter
qualquer espao dentro do Ipea. S que nessa altura a minha conexo com a
Presidncia j era mais forte; e o Lula me chamava, s vezes, independentemente do
Marcio.
Durante muito tempo, cessaram os pedidos de trabalho para um dos mais profcuos
pesquisadores da casa. PB alegou que sua presena no Instituto, a que estava associado
desde a dcada de 80, foi apagada, retirada dos registros. muito esquisito. Voc estar
numa instituio, entrar no site da instituio, e voc no existe. No tinha trabalho
meu, no tinha nada. Teve at o caso de ter reunio com o presidente Lula, viajar com
ele para ver a transposio do So Francisco, fazer seminrio com cinco ministros, e
no aparecer nada no Ipea. Fui escolhido para a Academia Brasileira de Cincias
durante esse perodo. No apareceu nada.
No lhe faltou o que fazer, contudo. Eu tinha uma carteira de projetos grande. Estava
trabalhando com o Unicef, com o Banco Mundial, com outros ministrios. Durante
anos, o Ipea no me pediu para fazer nada. Mas eu continuava trabalhando.
Paes de Barros disse acreditar que Pochmann tinha como objetivo deliberado minar as
suas resistncias, o que quase conseguiu. Porque isso no assim, e o Marcio sabia:
Esse cara vai resistir um ano, dois anos, trs anos. Uma hora esse ostracismo, essa falta
de demanda, essa falta de tudo vai... Eu no resistiria a um novo governo assim. Se eu
no tivesse sido convidado para vir para c, para a SAE, teria procurado outra coisa
para fazer. Dificilmente eu iria passar esse governo Dilma no Ipea.

Marcio

Pochmann foi procurado por piau ao longo de um ms. Candidato

prefeitura de Campinas pelo PT, disse na ltima semana de campanha, por meio de sua
assessoria de imprensa, que preferia no comentar neste momento as declaraes de
PB.
A ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, tambm foi procurada, para
que falasse sobre as contribuies de Ricardo Paes de Barros sua pasta. Um ms antes
da publicao da revista, um assessor da ministra me comunicou que a entrevista no

seria concedida. Questionado sobre a razo da recusa, no respondeu. No final de


setembro, pedi, formalmente, uma entrevista ministra do Planejamento, Miriam
Belchior, que participou da criao do Bolsa Famlia. Alguns dias depois, recebi um
telefonema em que uma assessora do Ministrio questionava a motivao da
reportagem. A matria sobre a queda na desigualdade, no ?, perguntou,
enfatizando a palavra queda. Por que vocs querem falar justo agora sobre o Ricardo
Paes de Barros? Belchior tambm no quis falar piau.
Na avaliao de Eustquio Reis, no fcil quebrar PB. Ele um sujeito muito frio,
pragmtico, que, para fazer suas ideias influenciarem as polticas pblicas, trabalha
com a Roseana Sarney, com o PT e com o Moreira Franco. Ele olha e se pergunta: O
que eu posso tirar daqui? E vai em frente. Eu acredito que isso uma coisa de uma
pessoa que foi criada na caserna. A vida militar desde muito cedo, desligada da famlia,
cria uma pessoa que se v como indivduo. Que luta num lugar em que a solidariedade
vai s at certo ponto.
essa caracterstica, avaliou seu ex-chefe, que permitiu a Paes de Barros fazer com o
PT um arranjo poltico estranho. Apesar das vises antitticas, ele o grande
formulador das polticas sociais do partido. Mas eles no podem reconhecer isso,
porque h segmentos importantes do PT que ficariam enfurecidos. Aquilo um capital
poltico gigantesco.

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