O Liberal Contra A Miséria
O Liberal Contra A Miséria
O Liberal Contra A Miséria
Castigada pelo calor intenso e pela baixa umidade do ar, que colocaria Braslia em
estado de ateno horas mais tarde, uma comitiva do governo nigeriano e da Unio
Africana chegou no meio daquela manh, no ltimo dia de agosto, ao prdio do antigo
Ministrio do Exrcito.
Apesar do ambiente marcial, com intenso movimento de soldados em fardas
camufladas pelo saguo de entrada, no fazia parte dos planos do assessor especial da
Presidncia da Nigria, Ifeolu Falegan, com seu elegante terno escuro, tratar ali de
assuntos militares. Tampouco essa ideia passava pela cabea do nambio Johan
Strijdom, nico branco da delegao, cuja combinao de camisa de mangas curtas e
gravata lhe dava um ar de gerente de supermercado ingls.
A visita do grupo havia comeado dias antes, com incurses ao interior do pas,
encontros com parlamentares e integrantes do Executivo. Tinha como objetivo
Pouco
aguardado pelo grupo de africanos numa sala de reunies prxima ao seu gabinete de
trabalho. Ele prprio esperava, sem demonstrar ansiedade, que a economista Rosane
Mendona, sua ex-mulher, tambm funcionria da SAE, realizasse os ltimos ajustes
na apresentao que fariam aos visitantes.
Rosane ia e voltava pelo corredor, esbaforida. Parado no meio do caminho, ao lado da
porta que leva sala de reunies, PB brincava com a caneta laser que usaria dali a
pouco, direcionando o ponto vermelho que o instrumento emite para o cho, ao lado
dos sapatos. Mantinha a cabea baixa.
O pesquisador mede 1,67 metro e tem o tronco largo, o que lhe d uma aparncia de exjudoca, bastante em forma para os 58 anos que completa neste ms. Sorri de maneira
ao mesmo tempo tmida e acolhedora com alguma frequncia, e alterna momentos de
devaneio com outros de total ateno ao interlocutor. Os cabelos encaracolados, ainda
que grisalhos, e a oscilao entre distrao e curiosidade fazem com que ele muitas
vezes parea um menino crescido.
Entre colegas, companheiros de gerao, chefes e professores, PB reconhecido pela
inteligncia fora do comum e pelos hbitos igualmente excntricos. Seu orientador nos
trabalhos de con-cluso da graduao no Instituto Tecnolgico da Aeronutica (ITA),
Michal Gartenkraut, o qualifica como um gnio. J formado, cursou o mestrado do
Instituto Nacional de Matemtica Pura e Aplicada (Impa), uma das poucas instituies
de ensino do pas a fazer frequentes contribuies de relevncia produo acadmica
internacional. James Heckman, que viria a ganhar o Prmio Nobel de Economia em
2000, orientou o pesquisador em seu doutorado na Universidade de Chicago, nos anos
80. O talento matemtico do aluno foi imediatamente reconhecido e aproveitado pelos
ricos aumentasse num ritmo ainda menor do que aquele constatado numa economia
madura da Europa. Os ricos do Brasil esto vendo os pobres se aproximarem na
mesma velocidade que a Alemanha v a China se aproximar dela, resumiu PB.
Falegan, o assessor nigeriano, balanou a cabea em sinal de aprovao.
Em um trabalho de 2008, o pesquisador do Ipea Sergei Soares analisou a velocidade da
queda na desigualdade brasileira. Ele mostrou que o ritmo de reduo do Gini
brasileiro entre 2001 e 2006, de 0,007 ponto ao ano (ritmo que tem se mantido desde
ento), foi maior do que aquele constatado em pases ricos nos perodos em que
construram seus Estados de bem-estar social. No Reino Unido, entre 1938 e 1954, o
Gini foi reduzido taxa de 0,005 ponto por ano tendo partido de um patamar j
baixo, prximo a 0,40. Nos Estados Unidos, entre 1929 e 1944, a queda foi de
0,006 ponto ao ano e partira de um coeficiente pouco abaixo de 0,50. Mesmo que em
velocidade menor, a desigualdade j vinha caindo antes e continuou a trajetria de
queda nos anos seguintes nesses pases. O que Soares mostrou que reduzir as
disparidades de renda tarefa de dcadas, no de alguns anos.
Mesmo que a queda da desigualdade no Brasil ainda esteja em seus estgios iniciais,
efeitos importantes j podem ser constatados. Em um dos slides, PB apontou a
evoluo da pobreza extrema nos ltimos vinte anos no pas. O termo se aplica s
pessoas que no conseguem ter renda suficiente para adquirir o nmero recomendado
de calorias dirias.
Essa condio atingia quase 23% da populao brasileira no ano anterior ao do Plano
Real, em 1993, e caiu, em 1995, para pouco mais de 17% do total. Permaneceu estvel
nesse patamar at 2003, quando passou a cair rapidamente. Em 2009, 8,4% da
populao brasileira ainda viviam em condio de pobreza extrema.
Atento, o nambio Strijdom mexia a cabea para acompanhar as idas e vindas da
luzinha vermelha sobre o grfico. Aquela palestra, com riqueza de detalhes e medies
rigorosas, no seria a mesma no fosse pelo esforo terico de PB e de uma gerao de
especialistas.
Paes de Barros tambm participou da idealizao e da avaliao de polticas pblicas
desde os anos 90. Sob sua liderana intelectual, um grupo de economistas liberais foi
responsvel, j no governo Lula, pela concepo tcnica do programa Bolsa Famlia o
que ajudou a empurrar um pouco mais para baixo o grfico para onde a caneta laser
apontava.
Mas, bem antes de tudo isso, o engenheiro Ricardo Paes de Barros encontrou o livro
que lhe daria rgua e compasso para medir a desigualdade no Brasil.
LANGONI E A EDUCAO
Com essa tese embaixo do brao, Langoni voltou ao Brasil em 1970 e foi convidado a
trabalhar na Universidade de So Paulo. Na capital paulista, passou a conviver com o
ento ministro da Fazenda, Antnio Delfim Netto. Professores da Faculdade de
Economia, Administrao e Contabilidade da USP, onde Delfim se formara e lecionara,
costumavam almoar, s quintas-feiras, em um restaurante da rua Bela Cintra, na
regio dos Jardins. O Delfim, j ministro, ia tambm, para discutir conosco, recordou
Langoni. Isso era em 1970 e 1971. Ele muitas vezes despachava de So Paulo. Foi o
primeiro contato que tive com ele. Discutamos teoria. Meu prazer era conversar sobre
isso.
Vivia-se o momento mais fechado e violento da ditadura militar, que, no entanto,
encontrava apoio na classe mdia, sobretudo pelo bom desempenho da economia.
Entre 1968 e 1974, perodo em que Delfim comandava a Fazenda, o pas cresceu a uma
taxa mdia de 11% ao ano. Resultados preliminares do Censo de 1970, contudo,
indicavam que o milagre brasileiro no tinha ocorrido sem custos. Entre o final de
1971 e meados de 1972, de forma independente, os pesquisadores Rodolfo Hoffmann e
Albert Fishlow analisaram as distribuies de renda em 1960 e em 1970, com base nos
poucos dados disponveis, e mostraram que a desigualdade havia crescido
tremendamente, no intervalo de uma dcada.
Em seu texto, Fishlow defendia que a poltica salarial implementada pela ditadura nos
anos 60, que conferia reajustes abaixo da inflao para os trabalhadores, havia
contribudo para o aumento da desigualdade. O valor real do salrio mnimo ou seja,
j descontada a inflao cara 20% entre 1964 e 1967. Em entrevista recente,
Hoffmann fez questo de lembrar que o controle da renda dos trabalhadores no se deu
apenas por meio da poltica salarial. Fui preso, em 1964, como estudante subversivo,
sem nenhuma ordem judicial. Estava assistindo a uma aula na USP, em Piracicaba.
O crime foi ter manifestado simpatia por ideias consideradas comunistas. Fiquei
cinquenta dias preso. Os outros presos polticos na cadeia de Piracicaba eram todos
lderes sindicais. Isso ocorreu no Brasil todo, em alguns lugares com muito mais
ESCOLA E MILITARES
Braslia, nos anos 60, quando o pai, j capito, foi ajudante de ordens do ministro da
Aeronutica, no governo Joo Goulart.
Meu pai nunca foi um dos queridinhos do golpe, afirmou PB. Ele foi tolerado. Era o
piloto do avio, o cara que acompanhava o ministro o tempo todo, durante o governo
Jango. Quando veio o golpe, o tiraram de Braslia. Caiu um pouco no ostracismo.
Nunca teve um cargo muito alto no regime.
Em 1970, seguindo os passos do irmo, PB iniciou o curso secundrio na Escola
Preparatria de Cadetes do Ar (Epcar), em Barbacena. A instituio, que ainda
funciona no mesmo local, a cerca de duas horas de Belo Horizonte, forma os
adolescentes que um dia integraro o comando da Fora Area Brasileira. Seu prdio
administrativo uma casa de dois andares do sculo XIX com escadas externas em
meia-lua. Os alunos, todos homens, so chamados pelo nome gravado na farda
camuflada, deslocam-se pelos ptios em grupos, marchando, e prestam continncia
para os militares de mais alta patente ou seja, para quase todo o corpo docente e
administrativo da escola.
Os mais destacados nas conquistas acadmicas so chamados pelas alcunhas de zeroum e zero-dois, que indicam a sua posio no ranking de desempenho escolar. Paes
de Barros entrou como zero-dois do concurso de admisso, mas caiu algumas
posies logo no primeiro ano por causa dos cursos de lnguas, nos quais nunca se saiu
bem. No final do segundo ano, j era o zero-um da sua turma. A posio confere ao
estudante algumas distines. Seu bibico, o chapu de dois bicos usado na Marinha e
na Aeronutica, tem um friso prateado, semelhante ao usado pelos alunos da Academia
da Fora Area, o curso superior preparatrio de oficiais. H tambm uma insgnia
especial, a ser ostentada na farda.
Os alunos do 1 e do 2 anos dormem em enormes alojamentos de aproximadamente
80 metros de comprimento por 15 metros de largura, cada um contendo 150 camas
praticamente coladas umas nas outras. No rancho, como chamado o refeitrio, os
melhores alunos tm direito a se sentar numa mesa destacada, no fundo do salo,
apelidada de santa ceia. Em painis diante das paredes, lemas pedaggicos
contribuem para o processo de formao dos futuros militares. A grandeza de um pas
no medida pela extenso de seu territrio, mas sim pelo carter de seu povo, diz um
deles. Noutro, pode-se ler: Nesta escola no somos educados apenas para sermos
militares, mas para vencermos na vida.
Voc marcha todo dia dizendo para si mesmo: eu sou o melhor do mundo, vou
resolver todos os problemas do pas, comentou Ricardo Paes de Barros, ao falar sobre
o sentimento compartilhado pelos alunos da escola. Servir ao pas a lgica bsica dos
militares. Ele atribui Epcar um papel central na formao dos seus valores e do seu
rigor de raciocnio. Em sala de aula, os estudantes so estimulados a entender
conceitualmente o que ensinado. Voc compreendia o que era um logaritmo, por
exemplo, sem ter que ficar fazendo operaes com ele. Voc entendia por que o cara
tinha inventado o logaritmo e para que ele servia. Segundo PB, isso o levou a
desenvolver uma racionalidade mais francesa, que ele contrape a outra,
americana. Os americanos so muito intuitivos, e j vo arranjando soluo para um
problema que eles nem apresentaram direito. Mas so criativos. Adaptam. Deixam
rolar. Talvez eu tenha um pensamento mais do tipo francs: preciso formular muito
bem a sua pergunta. A voc ter um mtodo abstrato para resolv-la e acabar
encontrando o problema concreto mais para a frente, em algum ponto do tempo.
A utilidade desse tipo de raciocnio para o que veio fazer mais tarde , para ele,
evidente: Meu trabalho muito concreto. Ele visa a problemas muito concretos. Mas
tem sempre uma estrutura analtica abstrata muito slida para chegar l.
Paes de Barros tinha talento intelectual, mas no deixava de ser estudioso e aplicado,
segundo o irmo. O apelido dele em Barbacena era biblifago. Comedor de livros.
noite, voc passava pela sala de aula, estava l a luzinha acesa. Muito depois do horrio,
e o Ricardo l, estudando. O aspirante a cadete era tambm desajeitado e pouco
marcial. Ele no era um atleta, no marchava direito, no personificava aquele garoto
espartano, lembrou o primognito. Usvamos uma japona como parte do uniforme,
porque fazia muito frio em Barbacena. Brincvamos que bastava olhar para a japona do
Ricardo para saber o que tinha no rancho. Por causa das marcas de macarro. Ou de
feijo.
Ao se lembrar dessa poca, PB disse que havia nele um pouco de desleixo total e um
pouco de cientista maluco. Ao final do 2 ano, decidiu que iria prestar vestibular para
engenharia no ITA, em vez de seguir o caminho natural dos alunos da escola e se
candidatar academia da FAB. No ITA, PB desabrochou inteiramente, lembra
Armando Castelar, ex-colega de engenharia e hoje tambm economista. Ele no incio
era muito quieto, mas foi mudando. Ficou muito mais assertivo, dono do ambiente.
Ganhou um papel de liderana. Tinha facilidade para questionar os professores, ia alm
de todo mundo com o professor. Uma mudana da gua para o vinho. Como uma
pessoa que se descobre, e se sente mais segura.
A viso de PB sobre o perodo menos edificante. Ele diz que se tornou quase um
desordeiro no ITA. Fui expulso do Centro de Preparao de Oficiais da Reserva duas
vezes. Tenho um certificado de reservista que diz: No pode ser convocado em caso de
guerra. Era para eu ter sido expulso do ITA, e at hoje no sei por que isso no
aconteceu. No sei se meu pai quebrou o meu galho.
Aps dois anos de ciclo bsico, PB e Castelar optaram pela engenharia eletrnica, o
curso com maior carga de disciplinas matemticas no Instituto. Nessa poca, Paes de
Barros liderou um movimento de alunos que pediam o fim da obrigatoriedade de
comparecimento s aulas. Fizeram um abaixo-assinado. A reivindicao foi negada.
Forado a comparecer em classe, PB ia, mas levava o travesseiro e o cobertor. Ficava
l. E onde, em que regulamento, estava escrito que eu no podia levar travesseiro e
cobertor? Eles no conseguiam me pegar.
Paes de Barros acrescentou outra motivao, mais pessoal, para no querer assistir s
aulas: j havia decidido, nessa poca, que no iria trabalhar como engenheiro. Eu
percebi que no tinha nada a ver com aquilo. Porque o engenheiro no descobre, ele
inventa. A engenharia no dedutiva. O cara que descobre a eletricidade, ele no deduz
aquilo, ele intui. O cara que faz um carro funcionar s vezes no entende direito como
aquilo funciona. O meu raciocnio no tem nada a ver com isso. O meu jeito de pensar
era completamente dedutivo.
Mesmo desinteressado, deu prosseguimento faculdade. Nos veres, fazia cursos no
Impa, no Rio. A eu virava um estudante srio, procurando entender as coisas mais
abstratas da face da Terra. Em 1976, no 4 ano de engenharia, conheceu sua primeira
mulher, Marta Helena de Moura. No ano seguinte, casaram-se, e logo em seguida
nasceu seu nico filho, Alexandre. Foi uma poca difcil. PB tinha que conciliar os
trabalhos de concluso de curso, os estudos de matemtica, a vida em famlia. A Marta
s pegou pedreira. Para fazer a monografia de graduao, eu precisava rodar os meus
programas naqueles computadores gigantes. S tinha horrio de madrugada. A Marta
passava a noite comigo l.
Em mais de uma ocasio, quando conversamos, PB procurou se mostrar agradecido s
trs ex-mulheres. O velho brigadeiro Paes de Barros tambm tem o que agradecer a
elas, segundo o relato do filho mais velho. Meu pai torcia para que a mulher cuidasse
do Ricardo. Porque ele mesmo no cuidava de nada. Ento meu pai dizia: Essa menina
est cuidando dele, o Ricardo est com o cabelo cortado, emagreceu, est bem de
sade. Nesse aspecto ele foi criado muito mal. Minha me sempre o tratou com muito
mimo. Era o queridinho da mame. Perguntava: O que vai comer? E ele sempre
respondia: bife com batata frita. At hoje. O negcio dele esse. Quando no bife,
macarro, pizza.
conseguiu a melhor nota da turma, mesmo sem ter cursado antes Micro 1, oferecida no
semestre que perdera. O Scheinkman deve ter pegado a nota e falado para os caras: t
vendo, no precisa saber ingls para estudar aqui!
Por interveno tambm do ex-professor do Impa, PB foi procurado por James
Heckman, que viria a orient-lo no doutorado. Eu estava em casa, e ele bateu na
minha porta, perguntando se eu queria trabalhar para ele. Passava dez, quinze horas
por semana conversando com o Heckman. Eu resolvia as coisas para ele. E ele tambm
tirava as minhas dvidas. Eu no perguntava sobre o problema. Perguntava por que
razo as pessoas pensavam sobre os problemas daquela maneira.
O trabalho continuava em casa, noite e nos fins de semana. Seu irmo Hlio, que
viajara aos Estados Unidos para um curso na Fora Area americana, fez nessa poca
uma visita a PB. Cheguei casa dele e no vi um mvel. Tinha um quadro-negro
enorme, e um pequenininho do lado. O grande, cheio de frmulas, em que o Ricardo
trabalhava. E o pequenininho para o filho, que estava rabiscando. Na memria de
Alexandre no h o segundo quadro-negro, mas cartolinas, em que desenhava
aeronaves e nibus espaciais, enquanto o pai estudava ao lado. O filho de PB hoje
desenhista industrial.
1970? Quanto isso mudaria a renda desse grupo, ao longo daquela dcada? E como essa
mudana imaginria se comparava com a mudana efetivamente constatada? Ao
mexer diretamente nos dados, ele construa realidades paralelas, chamadas no jargo
de exerccios contrafactuais, e nelas aplicava os mtodos economtricos usados antes
apenas para o mundo real. Isso permitia a Langoni, por comparao com o que de
fato aconteceu, dizer qual a importncia dos fatores que haviam sido mudados.
A ideia dele 99% do meu trabalho, afirmou PB. Eu quero saber se educao
importante? Eu volto nos microdados. Eu tenho a pesquisa da PNAD. Eu quero saber,
digamos, qual seria a desigualdade no Brasil se no existissem analfabetos funcionais.
Volto na PNAD. Voc analfabeto funcional? Sou. Hoje vai deixar de ser! Vou te dar
cinco anos de estudo. Mas a a sua renda vai mudar. Para quanto? Vamos pegar
pessoas que tenham tudo igual a voc, idade, sexo, cor, mas com cinco anos a mais de
estudo, e vamos achar esse cara na PNAD. A voc vai ter a renda desse cara. Constri
uma nova PNAD, sem analfabetos funcionais, e diz qual seria o novo Gini.
o domnio desse tipo de tcnica que permitiu a Paes de Barros, na apresentao para
a delegao africana, afirmar que a pobreza no Brasil ainda teria cado bastante,
embora metade do ritmo verificado nos anos 2000, se o pib per capita simplesmente
no tivesse crescido e a queda fosse consequncia apenas da nova distribuio de
renda.
Usei meu tempo em Chicago para ter a tcnica mais refinada possvel, explicou PB,
enquanto se agitava atrs da mesa de trabalho. Mas meu interesse, naquele momento,
j era completamente substantivo. Eu estava quicando na cadeira, querendo voltar para
o Brasil e estudar desigualdade. E sabia que j tinha as ferramentas para fazer isso.
DE VOLTA AO BRASIL
Quando Ricardo Paes de Barros anunciou que ia voltar ao pas, em 1987, o orientador
protestou. O Heckman disse que eu era maluco. Para ele, com toda a minha formao,
ir para o Brasil era destruir a minha carreira cientfica. O economista Ricardo
Henriques, que mais tarde viria a trabalhar com PB e teria papel crucial na criao do
Bolsa Famlia, avalia que, nesse momento, ele fez dois movimentos inusitados. Ele no
s volta, como volta para uma agenda que estava margem. Todo mundo estava
envolvido na macroeconomia, resolvendo o enorme problema da inflao. O Ricardo
volta e decide se ocupar de outra coisa.
O interesse obsessivo do pesquisador por pobreza e desigualdade tambm tem
caractersticas pouco usuais. Segundo sua terceira mulher, Mirela de Carvalho, o
Ricardo no um cara que olha as criancinhas na rua com fome e chora; esse mais o
meu perfil. Mirela foi casada com PB na ltima dcada. Tem 38 anos, cabelos
castanhos, magra, no muito alta. De maneira carinhosa, ela o descreve como uma
pessoa movida 100% pela lgica e pela razo. Mas diz acreditar que possvel se
chegar a esse comprometimento contra a desigualdade, afinal tico, por caminhos
quase que exclusivamente cerebrais.
Mirela citou, como exemplo, o experimento racional proposto pelo filsofo americano
John Rawls para determinar a razo pela qual uma sociedade mais igualitria pode ser
prefervel a uma outra, mais injusta. Um indivduo que ignorasse que posio viria a
ocupar em alguma dessas sociedades, e que tivesse a oportunidade de escolher apenas
em qual das duas gostaria de nascer, iria optar por aquela em que a pior posio
possvel fosse a menos pior. Entre as duas, a sociedade mais igualitria que atende a
esse requisito. Voc me pergunta de onde vem essa escolha de trabalhar com pobreza e
desigualdade, se no de um corao? Eu acho que vem de uma mente, de uma mente
extremamente lgica, ela disse.
O primeiro chefe de Paes de Barros no Ipea, depois da volta ao Brasil, foi o pesquisador
Eustquio Reis. Na adolescncia, Reis foi contemporneo da presidente Dilma na
melhor escola pblica de Belo Horizonte, e ainda guarda o sotaque mineiro, apesar de
ter ido estudar no Rio, e depois no Massachusetts Institute of Technology (MIT), na
dcada de 70. O escritrio em que trabalha, na sede carioca do Ipea, atulhado de
papis, que formam pilhas nas estantes e em cima da mesa.
Reis j conhecia o funcionrio recm-chegado do incio dos anos 80, quando PB ainda
se dedicava ao grupo de energia do Ipea, e sabia do seu talento. Ele veio conversar
comigo e eu disse: O que voc quiser e estiver a meu alcance, vou fazer. Paes de
Barros queria dispor dos dados das PNADs, aos quais o acesso era restrito poca.
Segundo PB, ele ganhou uma vantagem parecida com a que Langoni recebera em
1972. Ele obteve os microdados porque o Delfim disse: D os microdados para ele, d
os programadores de que ele precisa. Eu tive a vantagem do Eustquio. Quando eu
cheguei ao Brasil, ningum tinha acesso aos microdados da PNAD. Eu tive.
O economista Lauro Ramos, que tambm fez ITA e foi colega de PB no Ipea nessa
poca, afirma que o amigo era o sujeito certo, no lugar certo, na hora certa. Foi
justamente nessa poca que os computadores ficaram mais comuns, explicou Ramos.
Em 1989, eu j rodava a PNAD em PC. Era um negcio doloroso. Voc botava para
rodar de noite e s no outro dia tinha o resultado. Mas j dava para usar o PC. Ento foi
possvel reunir a capacidade do PB para questes empricas, uma base rica como a
PNAD e a disponibilidade de computadores.
Aproposta de focalizao foi recebida como uma ameaa neoliberal e hostilizada pela
esquerda. Temia-se, no final dos anos 90, que a nfase em eficincia dos gastos sociais
servisse como pretexto para a reduo de verbas destinadas rea ou mesmo para o
Energia criou o Auxlio Gs. Cada programa tinha sua prpria forma de seleo, e sua
prpria lista de beneficirios. Atendiam sobretudo famlias pobres com crianas.
Wanda Engel, uma carioca extrovertida e de risada gostosa, era ento a ministra de
Assistncia Social. Ela se deu conta de que, apesar das sobreposies e ineficincias,
todos os grupos mais vulnerveis pobreza j recebiam algum tipo de auxlio, se
fossem considerados os programas recm-lanados e os benefcios para os idosos, como
a aposentadoria rural.
Numa viagem de avio para Alagoas, em companhia de Fernando Henrique Cardoso,
Wanda resolveu fazer uma proposta ao chefe. Desenhou algo no papel e disse:
Presidente, quer ver, a gente j tem uma rede de proteo social. O que preciso
agora organizar e integrar essa rede. O Fernando Henrique j chegou a Macei
fazendo discurso: Temos uma rede de proteo social!, contou Wanda em setembro,
em seu apartamento no Rio.
Para organizar e integrar a rede, ela propunha criar um cadastro nico de pobres e
beneficirios de programas de renda no pas. Precisvamos de dados comuns. Podia
ser que tivesse gente superapoiada e gente sem apoio nenhum. Mas todos os programas
j tinham o seu prprio cadastro, e ningum queria parar. Fizemos uma primeira
listagem que era uma espcie de Frankenstein: juntava todos os cadastros.
Wanda usava dados recm-coletados pelo Censo 2000 para informar aos prefeitos o
nmero de pobres em cada municpio, e pedia que eles achassem essas pessoas,
dando cara pobreza no pas. Para fazer o controle das aes do cadastro, usou as
nicas instituies que chegam a qualquer buraco remoto do Brasil: igrejas e
maonaria. Apelei para todos os santos, contou, rindo. Fui a uma reunio com 3 mil
capas pretas em Porto Seguro. E disse: Olha s, gente, tirar dinheiro de pobre deveria
ser crime inafianvel. Vo l e fiscalizem os prefeitos.
Para ajud-la no processo, chamou Paes de Barros, poca j diretor de estudos sociais
do Ipea. Ele era mais ou menos o meu guru. Os veredictos do PB so como os de um
bom mdico. Totalmente confiveis. Segundo Marcos Lisboa, do meio para a frente
dos anos 90, todo mundo que fazia poltica pblica sria chamava o PB.
AGENDA PERDIDA
PMDB. Sua proximidade com o vice-presidente, Michel Temer, foi decisiva para que
assumisse a Secretaria de Assuntos Estratgicos.
Ainda em 2002, quando presidia a Fundao Ulysses Guimares, brao programtico
da legenda, Moreira Franco encomendou a economistas ligados ao Instituto de Estudos
do Trabalho e Sociedade (IETS), no Rio, a elaborao de propostas para um futuro
governo. Seriam entregues como contribuio candidatura de Jos Serra
Presidncia. A vice da chapa, deputada Rita Camata, era do PMDB. Marcos Lisboa,
Ricardo Henriques, Jos Mrcio Camargo e Ricardo Paes de Barros participaram da
concepo do documento, que veio a ter um ttulo estranho: Tirando o atraso: combate
s desigualdades j. Criticavam a falta de focalizao dos gastos sociais e propunham
aes que significariam levar adiante o trabalho iniciado por Wanda Engel.
Foi entre 2001 e 2002, recorda o hoje ministro da SAE. Fizemos um grande
seminrio, o texto foi aprovado. Fomos apresentar o documento ao Serra, durante uma
reunio, como manda o figurino, num hotel no Rio de Janeiro. Dessa reunio
participaram Marcos Lisboa, Ricardo Henriques, Michel Temer. Ao final do encontro, o
Serra me chama e diz: P, Wellington, como voc gosta desse pessoal de direita! Voc
no tem jeito, voc s anda com a direita!
Poucos meses depois, o tambm candidato Ciro Gomes procurou Jos Alexandre
Scheinkman. Queria pedir ao economista que ajudasse a preparar um programa de
governo. Os dois haviam sido apresentados pelo tucano Tasso Jereissati, num encontro
em So Paulo. Dos Estados Unidos, Scheinkman telefonou para Marcos Lisboa, poca
professor da Fundao Getulio Vargas, no Rio. Mais tarde, chegaram concluso de
que era prefervel fazer um documento que no tomasse partido na disputa
presidencial.
Assim nasceu a Agenda Perdida, feita por um grupo que reunia Lisboa, Jos Mrcio
Camargo e Ricardo Paes de Barros, que j haviam ajudado a elaborar o documento para
o PMDB. Vrios outros professores da PUC-Rio, da FGV carioca e da USP se
associaram iniciativa. Na parte de polticas sociais, elaborada por PB, a Agenda
criticava a ineficincia e a falta de focalizao dos gastos pblicos. Propunha, como
parte da soluo, um sistema unificado de cadastramento e monitoramento das
polticas de assistncia e a unificao de todos os programas de combate pobreza.
Com a vitria de Lula nas urnas, o PT chegou afinal ao Planalto. Portava a promessa
histrica, encarnada na figura de um ex-metalrgico, de reduzir as disparidades de
renda no pas. Mas nem de longe havia clareza sobre como isso seria feito. Era em
grande medida um governo procura de um programa. Em seu livro Sobre Formigas e
Cigarras, Antnio Palocci relata que, quando j comandava a equipe de transio,
Como agora havia mais gente com maior escolaridade no mercado de trabalho, tambm
o retorno dado pela educao o quanto compensava ficar um ano a mais nos bancos
escolares em vez de procurar emprego diminuiu. mais ou menos o que Langoni
descreveu para os anos 60, s que de cabea para baixo. Dessa vez, os retornos da
educao ajudaram a reduzir a desigualdade de renda.
Em um trabalho de 2010, Paes de Barros estimou que quase 30% da reduo do ndice
de Gini entre 2001 e 2007 foram provocados por mudanas na escolaridade dos
trabalhadores brasileiros. Segundo PB e Sergei Soares, em artigos distintos, outros 20%
a 30% da queda se deveram especificamente a uma reduo na desigualdade das
aposentadorias. Os aumentos do salrio mnimo contriburam para alavancar os
rendimentos mais baixos pagos aos aposentados, que representam a maior parte dos
benefcios, e a reforma da Previdncia de Lula ajudou a cortar os ganhos dos que
recebiam mais.
Do total, entre 10% e 15% da queda do ndice de Gini, nos ltimos anos, foram
promovidos pelas transferncias do Bolsa Famlia. Em 2011, o programa custou 16,7
bilhes de reais o equivalente a 0,4% do PIB. Por chegar aos mais pobres dos pobres,
de maneira barata, Soares descreve esse aditivo reduo da pobreza e da desigualdade
como um negcio genial, fantstico, maravilhoso.
Aps bater recordes de iniquidade e, depois, recordes de reduo da desigualdade, o
Brasil chegou a 2012 com um ndice de Gini ainda prximo de 0,50 o mesmo patamar
de que partira em 1960, bastante elevado segundo qualquer critrio que se adote.
Enquanto a trajetria da desigualdade de renda parece bem explicada, as razes por
que partiu e voltou a patamar to alto no so fceis de determinar. Questionado,
Sergei Soares contestou que talvez fosse necessrio encontrar uma explicao se ela
no fosse to alta. O que era o Brasil? Como o pas foi criado? Aqui se explorava de
forma cruel a mo de obra, com a escravido. No d para ser muito pior do que isso.
Talvez a pergunta real fosse: por que no somos o Haiti?
Tanto o pesquisador do Ipea quanto Carlos Langoni atribuem histrica desigualdade
na distribuio de ri-quezas, como no caso da concentrao fundiria, grande influncia
sobre o patamar de desigualdade de renda de que o pas partiu ao iniciar o seu processo
de industrializao acelerada. Explicar o nvel de onde parte quase como explicar por
que a sociedade brasileira o que , afirmou Soares.
CAPITAL POLTICO
Logo que os especialistas na rea comearam a dar as primeiras notcias sobre a queda
na desigualdade, em meados dos anos 2000, a validade dos resultados foi questionada
por um pequeno grupo de economistas de esquerda. Entre eles estava o petista Marcio
Pochmann, professor da Unicamp e integrante da equipe da prefeita de So Paulo,
Marta Suplicy, entre 2001 e 2004.
O argumento de Pochmann era o de que a mudana constatada acontecia apenas na
distribuio dos salrios, no interior da renda do trabalho, que era captada pelos
dados da PNAD. Por outro lado, a renda do capital, que abarca juros, lucros e
aluguis de imveis, escaparia pesquisa por amostra de domiclios justamente o
conjunto de dados usado para medir a queda no coeficiente de Gini. O economista do
PT dizia que outra realidade saltaria aos olhos se fosse considerada uma fonte distinta
de informaes, o Sistema de Contas Nacionais, um balano contbil do pas, realizado
anualmente pelo IIBGE. Ali, a renda total do pas repartida em remunerao dos
empregados e em excedente operacional bruto, que equivaleria renda do capital.
Na verdade, afirmou Pochmann, a participao do rendimento do trabalho na renda
nacional vinha caindo ao longo dos anos, enquanto a renda dos proprietrios crescia.
A desigualdade de renda, vista dessa perspectiva, aumentava.
Sem fazer meno explcita a Pochmann, Rodolfo Hoffmann rebateu os principais
argumentos do grupo que o petista liderava e reafirmou a queda na desigualdade, em
artigo publicado em 2008. A PNAD, ele disse, inclui rendas que correspondem, sim,
aos lucros dos empregadores. Os valores ali declarados so certamente menores do que
os reais ganhos do capital, explicou o pesquisador. Mas como as imperfeies da
PNAD so provavelmente as mesmas ao longo dos anos, no h por que duvidar da
evoluo do ndice de Gini calculado a partir de seus dados.
piau, Hoffmann reafirmou que uma simplificao grosseira dizer que as
pesquisas no captam os ganhos do capital. Alm disso, mesmo o Sistema de Contas
Nacionais indicava uma relativa estabilidade na participao dos rendimentos do
trabalho no total da renda, entre 2000 e 2005, variando de 40,5% para 40,1% do total.
Segundo o IBGE, as participaes dos rendimentos do capital e do trabalho
mantiveram-se praticamente estveis desde 2000.
Politicamente, o Pochmann entende que o PB um inimigo, afirmou Eustquio Reis,
atrs da sua mesa e das pilhas acumuladas de papel, ao final de um dia de trabalho, em
agosto. Segundo o pesquisador do Ipea, Paes de Barros sempre bateu forte na viso
sindicalista de parte dos economistas do PT, que centravam o seu interesse e as
sugestes para combater a pobreza no Brasil na evoluo do salrio mnimo.
uma viso sindicalista, argumentou Reis. Uma viso completamente equivocada
do que a pobreza. Uma poltica voltada para uma elite operria formada pelo Getlio.
E que no percebia que abaixo do salrio mnimo tem muito mais coisa do que parece.
Era isso que o PB mostrava. O Lula, alis, se deu conta disso, se deu conta de que tinha
um segmento do eleitorado, muito importante, que est abaixo disso.
Em 2007, o adversrio ideolgico de PB desde os debates da dcada de 90 sobre
focalizao se tornou tambm seu chefe. Marcio Pochmann foi nomeado para a
presidncia do Ipea, onde Paes de Barros ainda trabalhava. Apesar de sua admirao
declarada por Lula e do bom relacionamento pessoal com o ento presidente, PB
afirmou que desde o incio do governo do PT ele j tinha muito menos demanda
dentro do Ipea do que no perodo do Fernando Henrique.
Ainda tinha algum espao, mas menor. Quando entra o Marcio, eu deixo de ter
qualquer espao dentro do Ipea. S que nessa altura a minha conexo com a
Presidncia j era mais forte; e o Lula me chamava, s vezes, independentemente do
Marcio.
Durante muito tempo, cessaram os pedidos de trabalho para um dos mais profcuos
pesquisadores da casa. PB alegou que sua presena no Instituto, a que estava associado
desde a dcada de 80, foi apagada, retirada dos registros. muito esquisito. Voc estar
numa instituio, entrar no site da instituio, e voc no existe. No tinha trabalho
meu, no tinha nada. Teve at o caso de ter reunio com o presidente Lula, viajar com
ele para ver a transposio do So Francisco, fazer seminrio com cinco ministros, e
no aparecer nada no Ipea. Fui escolhido para a Academia Brasileira de Cincias
durante esse perodo. No apareceu nada.
No lhe faltou o que fazer, contudo. Eu tinha uma carteira de projetos grande. Estava
trabalhando com o Unicef, com o Banco Mundial, com outros ministrios. Durante
anos, o Ipea no me pediu para fazer nada. Mas eu continuava trabalhando.
Paes de Barros disse acreditar que Pochmann tinha como objetivo deliberado minar as
suas resistncias, o que quase conseguiu. Porque isso no assim, e o Marcio sabia:
Esse cara vai resistir um ano, dois anos, trs anos. Uma hora esse ostracismo, essa falta
de demanda, essa falta de tudo vai... Eu no resistiria a um novo governo assim. Se eu
no tivesse sido convidado para vir para c, para a SAE, teria procurado outra coisa
para fazer. Dificilmente eu iria passar esse governo Dilma no Ipea.
Marcio
prefeitura de Campinas pelo PT, disse na ltima semana de campanha, por meio de sua
assessoria de imprensa, que preferia no comentar neste momento as declaraes de
PB.
A ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, tambm foi procurada, para
que falasse sobre as contribuies de Ricardo Paes de Barros sua pasta. Um ms antes
da publicao da revista, um assessor da ministra me comunicou que a entrevista no