Chauí, Marilena - Engajamento. em Torno Das Cartas de Ruptura Entre Merleau-Ponty
Chauí, Marilena - Engajamento. em Torno Das Cartas de Ruptura Entre Merleau-Ponty
Chauí, Marilena - Engajamento. em Torno Das Cartas de Ruptura Entre Merleau-Ponty
Ponty e Sartre, quando o primeiro anuncia que publicar sua conferncia sobre as
relaes entre filosofia e poltica e expor suas divergncias com Sartre e a
censura que este impe publicao de tal artigo (que iria transformar-se no
captulo Sartre e o ultrabochevismo, de As Aventuras da Dialtica, de MerleauPonty). O ncleo da desavena a sbita e inexplicvel mudana da posio
sartreana, passando do anticomunismo defesa incondicional dos comunistas,
desavena que j se anunciava quando, nos anos precedentes, Merleau-Ponty,
diferentemente de Sartre, recusou-se a assinar inmeros manifestos comunistas e
anticomunistas porque, segundo ele, tendiam, na realidade, a reforar a corrida
armamentista da URSS, sob a aparncia de pacifismo (do lado anticomunista) e
de defesa da revoluo proletria (do lado comunista).
Quando e por que Sartre muda de posio?
A 28 de abril de 1953, o PCF convoca os operrios franceses para uma
manifestao contra a guerra da Coria, no momento da visita do general Ridgway
a Paris; para 4 de maio, convoca uma greve geral de repdio priso do
secretrio geral do partido, Jacques Duclos, ocorrida durante a manifestao de
abril. Nas duas ocasies, os operrios no respondem em massa convocao.
De Roma, informado dos acontecimentos, Sartre escreve o primeiro artigo de Os
Comunistas e a Paz, contra a priso de Duclos, o anticomunismo e a fraca
resposta operria ao chamamento do PCF. Face ao anticomunismo, declara que,
quando atacado, um partido comunista deve ser incondicionalmente defendido por
todas as esquerdas. Face fraca resposta do operariado francs ao PCF, Sartre
parte da afirmao de Marx, no Manifesto Comunista, da necessidade do
proletariado organizar-se num partido revolucionrio e conclui que, sendo o
Partido Comunista tal partido, sem ele os operrios no existiro como classe,
mas apenas como massa passiva e alienada. Identifica, assim, a histria do
proletariado e a ao dos partidos comunistas ou, como dir Lefort ao criticar esse
artigo, Sartre esquece a longa e difcil histria dos movimentos operrios em favor
da auto-imagem revolucionria de uma burocracia partidria que se coloca como
representante exclusiva da classe.
Merleau-Ponty reage e pretende recusar a posio de Sartre publicando sob forma
de artigo sua prpria conferncia sobre a relao entre filosofia e poltica,
reforando idias que nela desenvolvera: a crise atual da idia de revoluo, a
degenerescncia do liberalismo, e a possibilidade de uma nova relao entre
filosofia e poltica.
Por que h uma crise da idia de revoluo? indaga Merleau-Ponty. E responde:
porque substituiu-se a idia de Marx do desenvolvimento da conscincia de classe
pela idia bolchevique de interesses do partido. Merleau-Ponty enfatiza a
diferena entre Marx e os PCs: enquanto o primeiro exigia uma prxis tecida nas
mediaes entre a subjetividade proletria e a objetividade das condies
materiais histricas, os segundos praticam, a partir do bolchevismo, uma ao
identificadora entre ambas, sem mediaes. Essa concepo desemboca, afinal,
na clebre distino stalinista entre o subjetivo (a inteno pessoal isolada) e o
objetivo (a ao segundo os interesses do partido), conduzindo idia totalitria
de correo-subjetiva-com-traio-objetiva, ou vice-versa, correo-objeticacom-traio-subjetiva (em suma, os critrios usados durante os Processos de
Moscou). J nessa conferncia (significativamente anterior mudana de atitude
Sartre e publicao de seu primeiro artigo sobre Os Comunistas e a Paz),
Merleau-Ponty assinalava a coincidncia entre o pensamento sartreano e a prtica
comunista, pois, tanto num caso como noutro, esto ausentes da idia de prxis
as mediaes exigidas por Marx. A coincidncia entre o anticomunista e o
comunista decorria do fato de que Sartre jamais se dissera marxista - podendo por
isso pensar sem a noo de mediaes entre o objetivo e o subjetivo - e os
comunistas haviam deixado de s-lo. essa coincidncia, transformada por Sartre
em filosofia, que levar Merleau-Ponty, na reelaborao da conferncia em artigo,
a falar em ultrabolchevismo sartreano.
homens reais, com seus trabalhos e suas penas; exigamos uma filosofia que
desse conta de tudo sem nos apercebermos de que ela j existia e que era ela,
justamente, que provocava em ns essa exigncia.4<O:P</O:P
De modo semelhante, em La Guerre a eu lieu, Merleau-Ponty descreve o
esfacelamento do otimismo humanista universitrio e da boa-conscincia francesa,
sob os efeitos da guerra que trouxe a evidncia bruta e irrecusvel do peso da
histria, da opacidade das relaes sociais por que estas no so relaes
imediatas entre conscincias, mas relaes mediadas pelas coisas e pelas
instituies. Os franceses foram surpreendidos com a guerra quando, no vero de
1939, pretendiam gozar as frias como sempre as haviam gozado, como se a
invaso da Polnia no houvesse ocorrido, como se os discursos de Hitler se
referissem a uma Alemanha distante, como se no existissem os embates entre os
partidos alemes como expresso da luta de classes e como se o discurso da
guerra no estivesse endereado Europa. Fomos surpreendidos, escreve
Merleau-Ponty, por que no nos guivamos pelos fatos e havamos
secretamente decidido ignorar a violncia e a infelicidade como elementos da
histria. Por que o abandono dos fatos e a ignorncia da histria? Porque
vivamos num pas muito feliz e muito fraco para encar-los. Na universidade,
professores ensinavam que guerras nascem de mal-entendidos que podem ser
dissipados ou de acasos que podem ser conjurados pela pacincia e pela
coragem:
Convidavam-nos a colocar em dvida a histria j feita, a reencontrar o momento
em que a guerra de Tria poderia ainda no acontecer e no qual a liberdade, num
s gesto, esfacelaria as fatalidades externas. Essa filosofia otimista, que reduzia a
sociedade humana a uma soma de conscincias sempre prontas para a paz e
para a felicidade, era a filosofia de uma nao dificilmente vitoriosa, uma
compensao imaginria, recordaes de 1914. Sabamos dos campos de
concentrao, que os judeus eram perseguidos, mas essas certezas pertenciam
ao campo do pensamento. No vivamos em presena da crueldade e da morte,
no estvamos postos diante da alternativa de sofr-las ou enfrent-las [...] Ao
mesmo tempo que objeto de horror, o anti-semitismo nos aparecia como mistrio
e, formados pela filosofia que nos formara, todo dia, durante quatro anos,
perguntvamos: como o anti-semitismo possvel? Havia um nico meio de
evadir-se da questo: podia-se negar que o anti-semitismo fosse verdadeiramente
vivido por algum.5<O:P</O:P
Do mesmo modo, a poltica cartesiana dos intelectuais e professores, ou a
poltica da liberdade das conscincias individuais em seu solipsismo essencial,
no era capaz de compreender o colaboracionismo nem a resistncia. Quanto ao
primeiro, colocou no mesmo plano chefes ou dirigentes e o povo, como se fosse a
mesma coisa optar pela colaborao e no poder recusar trabalhar e prestar
servio aos ocupantes. Quanto segunda, experimentou-a como felicidade no
perigo, como supresso do dilema entre o ser e o fazer, como vida clandestina
tecida nas relaes de homem a homem ou de conscincia a conscincia. Mas,
por seu turno, os intelectuais do Partido Comunista Francs, certos de possurem
o segredo da histria e da luta de classes, consideraram o nazi-fascismo uma
crise do capitalismo e a guerra apenas uma aparncia que no tocaria na
solidariedade internacional do proletariado, em suma, elaboraram uma ideologia
da guerra e da luta de classes que lhes permitia, pela aplicao mecnica da
relao capital-trabalho, evitar uma anlise materialista e histrica da guerra e da
luta de classes. Subjetivismo abstrato cartesiano e objetivismo abstrato comunista,
eis o ensinamento da guerra:
A guerra e a ocupao no somente nos ensinaram que os valores permanecem
nominais e nem mesmo valem sem uma infra-estrutura econmica e poltica que
os faa entrar na existncia. Mais do que isto: que, na histria concreta, os valores
nada mais so do que a maneira de designar as relaes entre os homens tais
como se estabelecem segundo o modo de seu trabalho, de seus amores, de suas
aceitar fatos isolados que recusaria se pudesse ter uma viso mais abrangente,
ou, ao contrrio, o induz a recusar como odiosos fatos isolados que, se
percebesse de maneira mais abrangente, aceitaria. Essa viglia engajada , afinal,
m-f. No informa, no analisa, no reflete, corre e muda ao sabor dos eventos,
de tal modo que se fosse dado ao leitor, um dia, reunir o conjunto de manifestos e
pequenos artigos dirios ou mensais de um intelectual engajado ou de um
comentarista poltico perceberia a incoerncia, a leviandade, a irresponsabilidade
daquele que escreve:
isso permitiria fazer engolir no varejo o que no seria aceitvel no atacado, ou, ao
contrrio, em tornar odioso, a golpe de pequenos fatos verdadeiros, aquilo que,
visto no conjunto, faz parte da lgica da luta.<O:P</O:P
O segundo motivo espantoso. Com efeito, tendo apresentado o primeiro, seria
de supor-se que Merleau-Ponty houvesse atacado Sartre por agir s cegas,
manifestando-se em toda parte sobre todos os acontecimentos sem jamais possuir
um conhecimento aproximado do todo ou, pelo menos, das linhas de fora e
vetores dos eventos, no lhes alcanando a significao. Ora, d-se exatamente o
contrrio. que, graas soberania do Nada sobre o Ser, Sartre construiu, em
pensamento e em imaginao, um futuro fixo, mantido em segredo, que regula
clandestinamente o curso dos acontecimentos, acontea o que acontecer. Sartre
possui o futuro e a histria em pensamento e em imaginao, sendo-lhe fcil
opinar sobre tudo e tomar posio em tudo. Em outras palavras, os
acontecimentos so tidos como a superfcie de um sentido secreto conhecido
apenas pelo filsofo que por isso, soberanamente, opina politicamente. Como o
Deus de Descartes, envolvido na tarefa quotidiana da criao continuada do
mundo, dando-lhe o suporte infinito de realidade ou substancialidade s coisas,
Sartre concebeu o mtodo do engajamento continuado que daria substncia
poltica. Espectador absoluto, soberano e transcendente, o filsofo, empoleirado
em Sirius, julga ter a chave do tempo, da histria e do mundo. Sob a aparente
modstia daquele que, dissera Sartre, sabe que a condio humana a da
escolha na ambigidade, s cegas, na ignorncia do todo, esconde-se a
presuno de ser Esprito Absoluto.
Assim, com o primeiro motivo, Merleau-Ponty recusa o engajamento no varejo e,
com o segundo, o engajamento no atacado. Se o filsofo julga poder dizer no
importa o qu a cada dia por julgar-se na posse do sentido total da histria. Sua
irresponsabilidade cotidiana tem como pressuposto uma histria completa (j
realizada em pensamento) que apagar da memria os passos empricos por ela
realizados por que os absorve num sentido nico que os tornar irrelevantes
quando a pena de t-los feito tambm houver-se tornado irrelevante.
Com Sartre e Merleau-Ponty, duas concepes da filosofia e da poltica esto em
choque. No se trata da oposio descrita por Sartre - a da filosofia sonhadorasonolenta face s urgncias da poltica e a da filosofia como viglia engajada e
sem libis -, mas da oposio entre a concepo da filosofia como conscincia
soberana clandestina que manobra as posies e opinies polticas (sabendo, de
antemo, que no so decisivas nem importantes por que o curso da histria se
realiza secretamente com ou sem elas) e aquela que percebe a conscincia
mergulhada no mundo, fazendo-se na relao com ele e, portanto, no dispondo
da chave da histria e da poltica. As cartas e a ruptura anunciam os temas de
Merleau-Ponty em As Aventuras da Dialtica, com suas anlises da poltica do
entendimento e da razo, da dialtica como mquina supersticiosa e do problema
posto por toda revoluo, isto , quando termina uma revoluo e instala-se um
regime?
A histria no uma lgica da necessidade absoluta, nem a poltica, a lgebra da
histria: o revolucionrio, escrever Merleau-Ponty nas Aventuras da Dialtica,
navega sem mapas. Por isso mesmo, prossegue ele na carta a Sartre, cada ato,
cada gesto, cada palavra, cada pensamento contam na determinao do curso da
histria e da poltica, pois est sob nossa responsabilidade compreender as
hoje, pode ser vlida aquela que se funda nesta verdade da microfsica: o
experimentador faz parte do sistema experimental. a nica que permite afastar
toda iluso idealista, a nica que mostra o homem real no meio de um mundo real.
Mas esse realismo implica necessariamente um ponto de partida reflexivo, isto ,
que o desvendamento de uma situao se faz na e pela prxis que a muda. No
colocamos a tomada de conscincia na fonte da ao, nela vemos um momento
necessrio da prpria ao: a ao, no curso do cumprimento, d a si mesma
suas prprias luzes. Isso no impede que tais luzes apaream na e pela tomada
de conscincia dos agentes, o que implica necessariamente que faamos uma
teoria do conhecimento. Pelo contrrio, a teoria do conhecimento permanece
como o ponto fraco do marxismo [...] Somente quando se compreender que o
conhecimento no conhecimento de idias, mas conhecimento prtico das
coisas, ento se poder suprimir a noo de reflexo como intermedirio intil e
aberrante. Poder-se-, ento, dar conta desse pensamento que se perde e se
aliena no curso da ao para reencontra-se pela e na prpria ao. Mas, que
nome dar a essa negatividade situada como momento da prxis e como pura
relao com as prprias coisas, seno o de conscincia? H duas maneiras de
cair no idealismo: uma consiste em dissolver o real na subjetividade, a outra em
negar toda subjetividade real em proveito da objetividade. A verdade que a
subjetividade no nem tudo nem nada, mas representa um momento do processo
objetivo (o da interiorizao da exterioridade) e esse momento se elimina sem
cessar para de novo renascer [...] A conscincia de classe no a simples
contradio vivida que caracteriza objetivamente a classe considerada: ela essa
contradio j ultrapassada pela prxis e, por isso mesmo, conservada e negada
conjuntamente. precisamente essa negatividade desvendadora, essa distncia
na proximidade imediata, que o existencialismo chama conscincia de objeto e
conscincia no ttica de si.9<O:P</O:P
Cremos no ser casual que, tendo feito trajetrias to diferentes, mas tendo como
horizonte a recusa do idealismo filosfico e do positivismo cientfico, assim como o
mecanicismo, o empirismo e o idealismo dos comunistas, Sartre e Merleau-Ponty
se vissem confrontados no s com o problema da subjetividade, da objetividade e
da intersubjetividade, como tambm com o da temporalidade e o da histria e,
portanto, com a questo da necessidade e da contingncia, isto , da liberdade.
Vimos que Merleau-Ponty, na Phnomnologie de la Perception propusera
compreender a liberdade como ultrapassamento das condies fatuais por uma
significao que lhes d um novo sentido e indica como a obra explica a
necessidade desta vida determinada, e no o contrrio. No surpreende, ento,
encontrarmos em Sartre a noo do sentido como ultrapassamento ao qual,
finalmente, d o nome de liberdade:
O homem constri signos porque ele significante em sua prpria realidade e
significante porque o ultrapassamento dialtico de tudo o que simplesmente
dado. O que chamamos de liberdade a irredutibilidade da ordem cultural ordem
natural.10<O:P</O:P
Para Merleau-Ponty, no entanto, mesmo nessa derradeira posio Sartre no teria
ultrapassado o dilema do em si e do para si, da coisa e da conscincia, do objetivo
e do subjetivo. As palavras finais da Fenomenologia da Percepo nos deixam ver
que, muito antes que se consumasse a ruptura entre os dois filsofos e amigos,
ela j estava tacitamente posta:
Nossa liberdade, dizem, ou total ou nula. Esse dilema o do pensamento
objetivo e da anlise reflexiva, sua cmplice [...] Estamos misturados com o mundo
e com os outros de maneira indeslindvel. A idia de situao exclui a liberdade
absoluta na origem de nossos engajamentos. E a exclui igualmente no ponto de
chegada. Nenhum engajamento (nem mesmo o engajamento no Estado
hegeliano) pode fazer-me ultrapassar todas as diferenas e tornar-me livre para
tudo [...] Sou uma estrutura psicolgica e histrica. Recebi com a existncia uma
maneira de existir, um estilo. Todas as minhas aes e meus pensamentos esto