Chauí, Marilena - Engajamento. em Torno Das Cartas de Ruptura Entre Merleau-Ponty

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FILOSOFIA E ENGAJAMENTO: EM

TORNO DAS CARTAS DA RUPTURA


ENTRE MERLEAU-PONTY E SARTRE
MARILENA CHAUI
Professora do Departamento de Filosofia
FFLCH-USP
Nota: Em maio de 1995, o Centro Acadmico de Filosofia Prof. Joo Cruz Costa
realizou o Colquio Sartre 90 anos, evento que diretamente marcava a posio do
Centro de implementar o debate, contribuir para a formao dos estudantes de
filosofia e, sobretudo, conjugar o acadmico ao poltico em suas atividades. De l
para c, outros colquios e discusses seguiram os passos daquele evento,
acentuando a mesma preocupao; com o que, de algum modo, se lhe
reconheceu os erros mas tambm o acerto. O texto que ora publicamos foi
apresentado ento em sua verso integral - ele aparecera parcialmente na Folha
de So Paulo em 14 de agosto de 1994. O tema do texto, a difcil conjugao
entre a Filosofia e a poltica, ainda uma das preocupaes maiores do Centro
Acadmico de Filosofia Prof. Joo Cruz Costa.<O:P</O:P
Reprovo-te, bem mais severamente, por abdicares, nas circunstncias em que
preciso decidir como homem, como francs, como cidado e como intelectual,
usando tua filosofia como libi. (Primeira carta de Sartre)<O:P</O:P
Fiquei sabendo, lendo a revista [Les Temps Modernes], de tua posio atual
sobre o PC [Partido Comunista Francs]. Isto valeu-me o ridculo [...] de te
defender vivamente para saber, tardiamente, numa conversa, que tivemos apenas
porque te pedi...que j no consideras vlidas as obras que publicaste [...]. Eu no
precisaria afastar a filosofia do mundo para permanecer filsofo - e nunca o fiz.
(Resposta de Merleau-Ponty)<O:P</O:P
O EPISDIO E SUA CIRCUNSTNCIA
Trs cartas assinalaram a ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre, embora, como
indica sua leitura, essa ruptura j viesse a caminho antes que a roca epistolar
acontecesse. Essas cartas inserem-se entre os onze anos que vo da Liberao
(1945) invaso da Hungria pela URSS (1956).
Do ponto de vista das atividades e relaes de ambos, esse perodo pode ser
escandido em trs tempos: o primeiro imediatamente posterior atividade
poltica de Resistncia no grupo criado por eles durante a guerra (Socialismo e
Liberdade), publicao de suas primeiras obras, sob o impacto da descoberta
da fenomenologia de Husserl e da filosofia da existncia de Heidegger, e
fundao da revista Les Temps Modernes (Sartre como diretor e Merleau como
diretor poltico e editorialista)1; o segundo tempo o do desentendimento e da
ruptura, correspondendo, na obra de Merleau-Ponty aos textos sobre a
transformao do marxismo em superstio pela ideologia dos partidos
comunistas e sobre os campos de concentrao na Rssia, bem como a aula

inaugural no Collge de France (que seria publicada com o ttulo Elogio da


Filosofia), e, na de Sartre, publicao da srie de artigos de Os Comunistas e a
Paz2. O terceiro tempo, aps a ruptura, corresponde ao restante da obra
merleaupontyana (Merleau-Ponty morre em 1961) e, na sartreana (sem
mencionarmos a imensa produo literria, teatral e poltica), aos ensaios
preparatrios publicao da Crtica da Razo Dialtica (anunciada nas cartas
com a meno de um livro sobre histria, moral e poltica)3.
Politicamente, as cartas situam-se durante a poca turbulenta da Quarta
Repblica francesa, entre novembro de 1945 (primeiro governo de De Gaulle,
aps a Liberao), e maio de 1958 (novo governo de De Gaulle, aps a
insurreio da Arglia). Marcada pelas lutas anticoloniais (Tunsia, Arglia,
Indochina), a poca v o desmantelamento da Action Franaise, arregimentao
catlica fascista, e o crescimento da democracia crist; e a numerosa presena da
esquerda no parlamento, nos ministrios e nas prefeituras municipais, esquerda
que passa da aliana com De Gaulle (vinda da Resistncia) oposio ao
gaullismo. Este responsvel pelo fim da velha direita e pelo surgimento da
moderna, com o conservadorismo liberal, a tecnocracia e o novo patronato.
direita, De Gaulle procura, contra ultraconservadores e comunistas, uma terceira
fora, formada com liberais e cristos; esquerda, busca-se uma terceira via,
opondo-se ao comunismo, aos catlicos de todos os matizes e ao americanismo.
No plano internacional, alm das crises coloniais francesas, o momento da
discusso e implantao do Plano Marshall e do Pacto Atlntico, da guerra da
Coria, do macarthismo, da morte de Stlin e subida de Kruschev, com a primeira
denncia pblica sovitica do stalinismo. Entre 1950 e 1953 (ano das trs cartas),
teme-se uma terceira guerra mundial, prevalecendo na esquerda no-comunista
uma atitude conhecida como attentisme (espera) - aguardar a retomada do
movimento operrio revolucionrio internacional, o recuo da ameaa de nova
guerra, a reabertura de negociaes com Ho Chi Min e, sobretudo, a espera de
uma mudana na poltica internacional, reduzida, no momento, a tticas
diplomticas e militares.
Do ponto de vista cultural, o momento do existencialismo (a existncia precede
a essncia, escrever Sartre), com as idias de subjetividade, situao, projeto,
transcendncia mundana e liberdade, e do marxismo, na verso dos intelectuais
do Partido Comunista Francs. Saindo da paralisia imposta pela guerra, comea a
retomada literria (com o romance existencialista de Sartre e Camus e o nouveau
roman), teatral (com a presena do Thatre National Populaire - TNP -, o
crescimento do festival de Avignon e da animao cultural de rua, em Paris e no
interior) e cinematogrfica (comea a era do cinema de arte e de ensaio,
preparando a Nouvelle Vague, dos cine-clubes, dos festivais de Cannes e da
revista Les Cahiers du Cinma). Do ponto de vista dos costumes, comea a era da
gerao beatnik, cujo lema a frmula do existencialismo ateu, Deus est
morto.
Proliferam revistas, jornais, livros, debates, conferncias, manifestos polticos,
formao de grupos de ao, em suma, um conjunto de atividades ligadas figura
emergente do intelectual engajado que, maneira de Voltaire e Zola, participa da
vida pblica escrevendo, defendendo causas, opinando sobre os acontecimentos,
abandonando a torre de marfim da academia e do gabinete. Essa figura est no
centro da discusso das cartas de Sartre e Merleau-Ponty, cada um deles
possuindo uma concepo diversa do engajamento.
Mencionados brevemente nas cartas, vrios episdios prepararam a ruptura dos
antigos amigos: a exigncia de Camus, aceita por Sartre, de que Merleau-Ponty
no compusesse a mesa da assemblia fundadora da Reunio Democrtica
Revolucionria (RDR), movimento antiamericanista e anticomunista; a conferncia
de Merleau-Ponty sobre as relaes entre filosofia e poltica; a publicao, nos
Temps Modernes, do primeiro artigo de Sartre da srie Os Comunistas e a Paz,
com rplica de Lefort e trplica de Sartre; a durssima conversa entre Merleau-

Ponty e Sartre, quando o primeiro anuncia que publicar sua conferncia sobre as
relaes entre filosofia e poltica e expor suas divergncias com Sartre e a
censura que este impe publicao de tal artigo (que iria transformar-se no
captulo Sartre e o ultrabochevismo, de As Aventuras da Dialtica, de MerleauPonty). O ncleo da desavena a sbita e inexplicvel mudana da posio
sartreana, passando do anticomunismo defesa incondicional dos comunistas,
desavena que j se anunciava quando, nos anos precedentes, Merleau-Ponty,
diferentemente de Sartre, recusou-se a assinar inmeros manifestos comunistas e
anticomunistas porque, segundo ele, tendiam, na realidade, a reforar a corrida
armamentista da URSS, sob a aparncia de pacifismo (do lado anticomunista) e
de defesa da revoluo proletria (do lado comunista).
Quando e por que Sartre muda de posio?
A 28 de abril de 1953, o PCF convoca os operrios franceses para uma
manifestao contra a guerra da Coria, no momento da visita do general Ridgway
a Paris; para 4 de maio, convoca uma greve geral de repdio priso do
secretrio geral do partido, Jacques Duclos, ocorrida durante a manifestao de
abril. Nas duas ocasies, os operrios no respondem em massa convocao.
De Roma, informado dos acontecimentos, Sartre escreve o primeiro artigo de Os
Comunistas e a Paz, contra a priso de Duclos, o anticomunismo e a fraca
resposta operria ao chamamento do PCF. Face ao anticomunismo, declara que,
quando atacado, um partido comunista deve ser incondicionalmente defendido por
todas as esquerdas. Face fraca resposta do operariado francs ao PCF, Sartre
parte da afirmao de Marx, no Manifesto Comunista, da necessidade do
proletariado organizar-se num partido revolucionrio e conclui que, sendo o
Partido Comunista tal partido, sem ele os operrios no existiro como classe,
mas apenas como massa passiva e alienada. Identifica, assim, a histria do
proletariado e a ao dos partidos comunistas ou, como dir Lefort ao criticar esse
artigo, Sartre esquece a longa e difcil histria dos movimentos operrios em favor
da auto-imagem revolucionria de uma burocracia partidria que se coloca como
representante exclusiva da classe.
Merleau-Ponty reage e pretende recusar a posio de Sartre publicando sob forma
de artigo sua prpria conferncia sobre a relao entre filosofia e poltica,
reforando idias que nela desenvolvera: a crise atual da idia de revoluo, a
degenerescncia do liberalismo, e a possibilidade de uma nova relao entre
filosofia e poltica.
Por que h uma crise da idia de revoluo? indaga Merleau-Ponty. E responde:
porque substituiu-se a idia de Marx do desenvolvimento da conscincia de classe
pela idia bolchevique de interesses do partido. Merleau-Ponty enfatiza a
diferena entre Marx e os PCs: enquanto o primeiro exigia uma prxis tecida nas
mediaes entre a subjetividade proletria e a objetividade das condies
materiais histricas, os segundos praticam, a partir do bolchevismo, uma ao
identificadora entre ambas, sem mediaes. Essa concepo desemboca, afinal,
na clebre distino stalinista entre o subjetivo (a inteno pessoal isolada) e o
objetivo (a ao segundo os interesses do partido), conduzindo idia totalitria
de correo-subjetiva-com-traio-objetiva, ou vice-versa, correo-objeticacom-traio-subjetiva (em suma, os critrios usados durante os Processos de
Moscou). J nessa conferncia (significativamente anterior mudana de atitude
Sartre e publicao de seu primeiro artigo sobre Os Comunistas e a Paz),
Merleau-Ponty assinalava a coincidncia entre o pensamento sartreano e a prtica
comunista, pois, tanto num caso como noutro, esto ausentes da idia de prxis
as mediaes exigidas por Marx. A coincidncia entre o anticomunista e o
comunista decorria do fato de que Sartre jamais se dissera marxista - podendo por
isso pensar sem a noo de mediaes entre o objetivo e o subjetivo - e os
comunistas haviam deixado de s-lo. essa coincidncia, transformada por Sartre
em filosofia, que levar Merleau-Ponty, na reelaborao da conferncia em artigo,
a falar em ultrabolchevismo sartreano.

Anticomunista confesso, Sartre, diante da violncia cometida contra um comunista


(a priso de Duclos durante a manifestao de abril), pega da pena e, entre a
clera e a indignao, denuncia o fortalecimento da poltica reacionria e toma
partido, ainda que no ingresse no Partido. Eis por que, simultaneamente, escreve
um bilhete a Merleau-Ponty para avis-lo de que, doravante, Les Temps Modernes
admitir todas as tendncias de esquerda, desde que estas considerem os
problemas polticos como postos para todos os homens, no podendo ser
escamoteados sob o pretexto de que seriam insolveis, e considerem que um
partido que obtm 5 a 6 milhes de votos, como o PCF, no pode ser excludo
nem isolado. Com isso, julga Merleau-Ponty, desfigura-se o projeto de Les Temps
Modernes e de uma esquerda no atrelada ao Partido Comunista.
Em julho de 1953, sob os efeitos do que se passava em Paris, Sartre escreve:
todo anticomunista uma criatura desprezvel, nada me far mudar de opinio.
Trs anos depois, porm, sob o impacto da invaso sovitica a Budapeste,
escrever: jamais ser possvel reatar relaes com os atuais dirigentes do PCF
[...] resultado de trinta anos de mentiras e esclerose [...] Hoje, volto oposio.
Nas cartas da querela que separar os amigos, Sartre cobra de Merleau-Ponty
no engajar-se verdadeiramente. Merleau-Ponty cobra de Sartre a entrega a um
engajamento s cegas, que o deixa ao sabor dos acontecimentos.
O ENGAJAMENTO
Um sentimento de profunda melancolia nos invade quando, rememorados hoje, os
episdios que cercaram a ruptura entre Sartre e Merleau-Ponty aparecem sob a
luz do irremediavelmente ultrapassado. Fosse maior a distncia temporal, talvez
esse sentimento no nos habitasse. Sua proximidade, porm, nos faz perceber o
envelhecimento daquilo que, h pouco, apaixonava, reunia ou separava pessoas,
decidia vidas e mortes, palavras e obras. No entanto, quando o tempo houver feito
seu longo trabalho, nossos psteros, certamente, no vero o velho, mas a
dignidade do antigo.
Todavia, se assim quanto aos fatos que originaram a polmica e seu desenlace,
o mesmo no pode ser dito das questes que a suscitaram, por que estas no
foram ultrapassadas e constituem o solo no qual ainda (talvez sempre?) nos
movemos. A primeira delas, a amizade, perpassa toda a histria da filosofia, nas
pginas extraordinrias de Plato, Aristteles, Santo Agostinho, Bocio, La Botie
ou Montaigne. As trs cartas que constituem a trama da ruptura exprimem a
delicadeza do tecido da amizade, o cuidado recproco dos dois teceles para no
esgar-lo nem romp-lo e sua incapacidade para mant-lo ntegro, pois, a cada
novo fio tranado pelo avesso, algo se desfia no desenho do direito:
Tu me falas de tua amizade. Que pena. Ouvi-te dizer que j no crs nas relaes
pessoais, s havendo relaes de trabalho em comum. Como podes, seno por
condescendncia, falar de amizade no momento em que pes um fim a esse
trabalho? Olhando para todos estes anos, vejo, de tua parte, muitos benefcios quanto amizade, no tenho tanta certeza. Para mim, ao contrrio, no te reduzes
conduta que te vejo ter, no careces de incessantemente fazer por merecer
para que eu te assegure minha amizade. (Carta de Merleau-Ponty).<O:P</O:P
Gostaria de ver-te para salvar nossa amizade e no para acabar de perd-la, eis
o que quero que saibas. (Carta de Sartre).<O:P</O:P
A fora das paixes e a convico de cada um dos protagonistas deixam suas
marcas, como farrapos que mal encobrem sua nudez, mas que, se os dilacera,
no os envergonha nem nos envergonha.
A segunda questo, atada momentaneamente figura do intelectual engajado,
coloca um dos temas fundamentais que Sartre e Merleau-Ponty desenvolveram
em suas obras: o da relao entre filosofia e poltica ou, na expresso de MerleauPonty, as difceis relaes entre o filsofo e a Cidade e, na de Sartre, uma
filosofia que se interesse pelos homens reais, com seus trabalhos e suas penas.
O leitor de hoje talvez no consiga avaliar o peso e a contundncia que essas
afirmaes possuam ontem, justamente porque aquilo que os dois filsofos

buscavam realizou-se em suas obras e, agora, parece uma evidncia adquirida,


uma coisa ao alcance de nossa mo, um dado cultural institudo e uma
significao sedimentada. Em suma, para ns j tradio. Para eles, no entanto,
o que diziam era uma filosofia por fazer, uma concepo da filosofia que exigia
rupturas e criao, ou para usar um dos conceitos que tanto os ocupou, a filosofia
como projeto e um projeto para a filosofia, situado entre duas recusas: a da
filosofia universitria francesa, espiritualista e idealista, e a filosofia da histria do
Partido Comunista Francs, esclerosada pela ciso entre uma teoria idealista e
uma prxis empirista, solidria com stalinismo e com a viso burocrtica do
pensamento e da ao - o que Merleau-Ponty iria chamar de mecanicismo
dialtico (um automatismo que se faz s nossas costas e nossa revelia) e Sartre
chamaria de escolstica da totalidade (um esquecimento de que o materialismo
histrico anlise presente do presente).
Nas Questions de Mthode, distinguindo entre filosofia e ideologia para afirmar
que o marxismo a filosofia de nosso tempo que se manter viva enquanto as
condies histricas que a suscitaram permanecerem, Sartre apresenta o
existencialismo, no o de Kierkgaard nem o de Jaspers, mas aquele que, como
ideologia, se desenvolveu margem do marxismo e no contra ele, isto , um
pensamento parasitrio por que depende do marxismo tanto para existir quanto
para significar e que desaparecer quando o marxismo tambm houver
desaparecido. Ao mesmo tempo, o marxismo de que fala no o dos comunistas
nem o das burocracias partidrias que o transformaram em escolstica da
totalidade, em idealismo voluntarista que opera com essncias a priori ou com
entidades abstratas como se fossem tipos e no singularidades histricas
concretas. A crtica da filosofia universitria depende do marxismo, assim como a
crtica do comunismo depende do existencialismo, na medida em que este, como
o marxismo, aborda a experincia para nela descobrir snteses concretas. Como
era a filosofia universitria francesa?
Quando eu tinha vinte anos, em 1925, no havia uma ctedra de marxismo na
universidade e os estudantes comunistas evitavam recorrer ao marxismo ou
mesmo nome-lo em suas dissertaes; se o fizessem teriam sido reprovados em
todos os exames. O horror dialtica era tal que at mesmo Hegel era
desconhecido. Claro que nos permitiam ler Marx e mesmo aconselhavam-nos a llo: era preciso conhec-lo para refut-lo. Porm, sem a tradio hegeliana e sem
professores marxistas, sem programa, sem instrumentos de pensamento, nossa
gerao, como as precedentes e a seguinte, ignorava tudo do materialismo
histrico. Em contrapartida, ensinavam-nos minuciosamente a lgica aristotlica e
a logstica. Foi por essa poca que li O Capital e A Ideologia Alem: eu
compreendia tudo luminosamente e no compreendia absolutamente nada.
Compreender mudar-se, ir alm de si mesmo: essa leitura no me mudava. Em
contrapartida, o que comeava a me mudar era a realidade do marxismo, a
pesada presena, no meu horizonte, das massas operrias, corpo enorme e
sombrio que vivia o marxismo, que o praticava, e que distncia exercia uma
atrao irresistvel sobre os intelectuais pequeno-burgueses [...] Repito: no era a
idia que nos transtornava, nem a condio operria da qual tnhamos um
conhecimento abstrato e no a experincia. No. O que nos transtornava era uma
ligada outra, era, em nosso jargo de idealistas abandonando o idealismo, o
proletariado como encarnao e veculo de uma idia. Creio ser preciso completar
a frmula de Marx: quando a classe em ascenso toma uma conscincia de si
mesma, essa tomada de conscincia age distncia sobre os intelectuais e
desagrega as idias em suas cabeas [...] Havamos sido educados no
humanismo burgus e esse humanismo otimista se esfacelava porque
adivinhvamos, nos arredores de nossa cidade, a imensa massa de sub-homens
conscientes de sua sub-humanidade, mas ainda sentamos o esfacelamento de
maneira idealista e individualista: os autores que amvamos, naquela poca, nos
diziam que a existncia um escndalo. Todavia, o que nos interessava eram os

homens reais, com seus trabalhos e suas penas; exigamos uma filosofia que
desse conta de tudo sem nos apercebermos de que ela j existia e que era ela,
justamente, que provocava em ns essa exigncia.4<O:P</O:P
De modo semelhante, em La Guerre a eu lieu, Merleau-Ponty descreve o
esfacelamento do otimismo humanista universitrio e da boa-conscincia francesa,
sob os efeitos da guerra que trouxe a evidncia bruta e irrecusvel do peso da
histria, da opacidade das relaes sociais por que estas no so relaes
imediatas entre conscincias, mas relaes mediadas pelas coisas e pelas
instituies. Os franceses foram surpreendidos com a guerra quando, no vero de
1939, pretendiam gozar as frias como sempre as haviam gozado, como se a
invaso da Polnia no houvesse ocorrido, como se os discursos de Hitler se
referissem a uma Alemanha distante, como se no existissem os embates entre os
partidos alemes como expresso da luta de classes e como se o discurso da
guerra no estivesse endereado Europa. Fomos surpreendidos, escreve
Merleau-Ponty, por que no nos guivamos pelos fatos e havamos
secretamente decidido ignorar a violncia e a infelicidade como elementos da
histria. Por que o abandono dos fatos e a ignorncia da histria? Porque
vivamos num pas muito feliz e muito fraco para encar-los. Na universidade,
professores ensinavam que guerras nascem de mal-entendidos que podem ser
dissipados ou de acasos que podem ser conjurados pela pacincia e pela
coragem:
Convidavam-nos a colocar em dvida a histria j feita, a reencontrar o momento
em que a guerra de Tria poderia ainda no acontecer e no qual a liberdade, num
s gesto, esfacelaria as fatalidades externas. Essa filosofia otimista, que reduzia a
sociedade humana a uma soma de conscincias sempre prontas para a paz e
para a felicidade, era a filosofia de uma nao dificilmente vitoriosa, uma
compensao imaginria, recordaes de 1914. Sabamos dos campos de
concentrao, que os judeus eram perseguidos, mas essas certezas pertenciam
ao campo do pensamento. No vivamos em presena da crueldade e da morte,
no estvamos postos diante da alternativa de sofr-las ou enfrent-las [...] Ao
mesmo tempo que objeto de horror, o anti-semitismo nos aparecia como mistrio
e, formados pela filosofia que nos formara, todo dia, durante quatro anos,
perguntvamos: como o anti-semitismo possvel? Havia um nico meio de
evadir-se da questo: podia-se negar que o anti-semitismo fosse verdadeiramente
vivido por algum.5<O:P</O:P
Do mesmo modo, a poltica cartesiana dos intelectuais e professores, ou a
poltica da liberdade das conscincias individuais em seu solipsismo essencial,
no era capaz de compreender o colaboracionismo nem a resistncia. Quanto ao
primeiro, colocou no mesmo plano chefes ou dirigentes e o povo, como se fosse a
mesma coisa optar pela colaborao e no poder recusar trabalhar e prestar
servio aos ocupantes. Quanto segunda, experimentou-a como felicidade no
perigo, como supresso do dilema entre o ser e o fazer, como vida clandestina
tecida nas relaes de homem a homem ou de conscincia a conscincia. Mas,
por seu turno, os intelectuais do Partido Comunista Francs, certos de possurem
o segredo da histria e da luta de classes, consideraram o nazi-fascismo uma
crise do capitalismo e a guerra apenas uma aparncia que no tocaria na
solidariedade internacional do proletariado, em suma, elaboraram uma ideologia
da guerra e da luta de classes que lhes permitia, pela aplicao mecnica da
relao capital-trabalho, evitar uma anlise materialista e histrica da guerra e da
luta de classes. Subjetivismo abstrato cartesiano e objetivismo abstrato comunista,
eis o ensinamento da guerra:
A guerra e a ocupao no somente nos ensinaram que os valores permanecem
nominais e nem mesmo valem sem uma infra-estrutura econmica e poltica que
os faa entrar na existncia. Mais do que isto: que, na histria concreta, os valores
nada mais so do que a maneira de designar as relaes entre os homens tais
como se estabelecem segundo o modo de seu trabalho, de seus amores, de suas

esperanas, numa palavra, de sua coexistncia [...] Na coexistncia dos homens,


para a qual estes anos nos despertaram, as morais, as doutrinas, os pensamentos
e os costumes, as leis, os trabalhos, as palavras se exprimem uns aos outros, tudo
significa tudo. Nada h fora dessa nica fulgurao da existncia.6<O:P</O:P
A guerra e a descoberta do marxismo operaram em Sartre e Merleau-Ponty como
o despertar de um duplo sono dogmtico: o do idealismo universitrio e o do
escolasticismo comunista. Nesta perspectiva, as trs cartas de ruptura entre
ambos ganham um sentido muito mais forte do que pareceria primeira vista, pois
Os Comunistas e a Paz (causa da polmica e da divergncia que iria aprofundarse) aparecem para Merleau-Ponty como a negao do projeto filosfico no qual
tanto ele quanto Sartre pareciam engajados desde a fundao de Les Temps
Modernes. Por outro lado, compreende-se a reao de Sartre (e a de Simone de
Beauvoir) quando, de um lado, Merleau-Ponty afirma o cartesianismo sartreano e,
de outro lado, Lefort acusa o cripto-comunismo de Sartre.
Os Comunistas e a Paz indicam, para os amigos mais prximos, a mudana de
opinio e de posio polticas por Sartre. Qual a mudana? Sartre passara do
anticomunismo defesa do comunismo e retornava ao anticomunismo, mas,
agora, considerando-se marxista. Essa mudana, evidentemente, no era fruto de
humores, manias ou fobias, nem falta de carter. Na interpretao de MerleauPonty, ela se enraza numa concepo da filosofia e da poltica que embora
modificada bastante na Crtica da Razo Dialtica, conserva-se ao longo das
obras sartreanas, desde O Ser e o Nada.
Partindo da fenomenologia husserliana e da filosofia heideggeriana da existncia,
a tese nuclear das primeiras obras de Sartre - O Ser e o Nada e O Imaginrio - a
diferena de essncia (em sentido fenomenolgico) entre o mundo das coisas - o
Ser - e a conscincia - o Nada. O primeiro substncia, resistente, opaco e
viscoso. o em-si, a objetividade nua e bruta. A segunda, ao contrrio,
insubstancial, no alma ou psique, substncia imaterial ou espiritual, mas pura
atividade e espontaneidade. o para-si, a subjetividade plena. Para ela, os outros,
embora presumidos como humanos, so mundo, portanto, seres ou coisas.
Opacos para a conscincia, os outros a deixam no solipsismo como nica
existncia possvel. Donde a clebre expresso de Entre Quatro Paredes: o
inferno so os outros, pois cada um deles, enquanto conscincia ou sujeito, reduz
os demais condio de mera coisa e reduzido pelos outros condio de
coisa.
Embora situada no mundo, a conscincia, por ser nada, no condicionada por
ele, no podendo ser determinada pelas coisas nem pelos fatos. Pelo contrrio,
tem o poder de nadific-los, fazendo-os existir como idias, imagens, sentimentos
e aes. Donde a conhecida frmula sartreana: estamos condenados
liberdade. No casual que, logo aps O Ser e o Nada, a obra seguinte de Sartre
tenha sido justamente O Imaginrio, pois na conscincia imaginante que melhor
se apreende o poder nadificador da subjetividade. Compreende-se tambm
porque, desde essas primeiras obras, aparea nas obras literrias sartreanas a
idia de que a poltica deciso e escolha inteiramente livres, exprimindo-se
noutra clebre frase sartreana: o importante no o que os outros fazem aos
homens, mas o que eles fazem com o que quiseram fazer deles.
Para Merleau-Ponty, desde a Fenomenologia da Percepo (particularmente no
captulo dedicado liberdade), o Nada sartreano a nova verso da conscincia
de si reflexiva de Descartes depois de reformulada por Kant, Hegel e Husserl,
portanto, soberana, fundadora, constituidora do sentido do Ser. significativo que
a O Imaginrio, do lado de Sartre, corresponda, do lado de Merleau-Ponty uma
Fenomenologia da Percepo que acentua o mundo pr-predicativo, pr-ttico, no
qual vivemos e de onde emergimos como intercoporeidade e intersubjetividade,
portanto, atados ao tecido do mundo e aos outros, sem o poder para constitui-los.
Essa diferena aparecer no plano da poltica: na resposta primeira carta de
Sartre, Merleau-Ponty enfatiza o contraste entre a posio de Os Comunistas e a

Paz sobre as condies objetivas na URSS e as anlises merleaupontyanas


dessas mesmas condies, realizadas em Humanismo e Terror, anlises que
haviam sido recusadas publicamente por Sartre quando mencionava, no sem
sarcasmos [...] os infelizes que vem o social entre o em-si e o para-si, isto ,
como tecido intersubjetivo mediado pelas instituies econmicas e polticas. Em
suma, a relao entre o subjetivo e o objetivo que separa os dois filsofos.
A filosofia de Merleau-Ponty, vinda das mesmas fontes que as de Sartre, ergue-se,
porm, contra elas enquanto herdeiras do intelectualismo, isto , da suposio da
soberania da conscincia como doadora de sentido e fundadora do mundo
enquanto significao. A tradio intelectualista a do pensamento de sobrevo,
isto , de uma conscincia que, situando-se fora do mundo e diante das coisas, os
domina pelo pensamento. Ou, como escreve o filsofo, faz a realidade existir
como representao ou idia, numa filosofia que passa do ver ao pensamento de
ver, do imaginar ao pensamento de imaginar, do sentir ao pensamento de
sentir.
Contra a herana intelectualista, Merleau-Ponty afirma a encarnao da
conscincia num corpo cognoscente e reflexivo, dotado de interioridade e de
sentido, relacionando-se com as coisas como corpos sensveis tambm dotados
de interioridade e de sentido. Nossa relao fundamental com o mundo a da
intercorporeidade, fundadora da intersubjetividade e fundada por ela numa troca e
num cruzamento interminveis: os outros no coisas nem partes da paisagem, so
nossos semelhantes. No gratuito, portanto, que as primeiras obras de MerleauPonty estudem a estrutura do comportamento e a essncia da percepo. O
pensamento comea e se faz nas relaes de nossa vida encarnada com o
mundo: a percepo e a linguagem. Se a conscincia no pura espontaneidade
desencarnada soberana, compreende-se que a liberdade, na formulao
merleaupontyana, seja o poder para transcender a situao de fato, que no
escolhemos, dando-lhe um sentido novo, como El Greco, que transforma seu
astigmatismo em pintura, Valry e Czanne, sua melancolia em obra potica e
pictrica, Proust, sua neurastenia em literatura, Marx, sua condio de advogado
pequeno-burgus em traidor de sua classe e revolucionrio. Em lugar de uma
explicao mecanicista que explica a obra pela vida e de uma explicao
intelectualista que explica a vida pela obra, Merleau-Ponty fala numa obra que
exigia esta vida. Eis por que, em sua carta a Sartre, Merleau-Ponty insiste em que
ser filsofo no pode, de modo algum, separar-se e afastar-se do mundo: no
estamos no mundo (como queria Sartre ao falar em situao), mas somos do e
com o mundo.
Quais as conseqncias polticas dessas duas concepes divergentes da
filosofia? Exatamente o que transparece nas trs cartas trocadas entre ambos:
Sartre, pondo-se no turbilho vertiginoso dos acontecimentos - o Nada procura
de Ser para transform-lo no que a conscincia pensa e quer -, Merleau-Ponty
exigindo distanciamento - nossa promiscuidade originria com o mundo exige que
a filosofia no seja submersa pelos fatos, nem o filsofo arrastado pela fora dos
acontecimentos. No prefcio de Sinais, Merleau-Ponty escreve: em filosofia, o
caminho pode ser difcil, mas temos certeza de que cada passo torna possvel os
outros. Em poltica, temos a impresso acabrunhante de que tudo deve ser
sempre refeito.
Porque, para Sartre, a conscincia leve e insubstancial, pode aceitar o apelo de
todos os fatos e de todos os acontecimentos: a conscincia no se deixa
impregnar por eles, conservando a soberania. porque a conscincia
encarnada num corpo e situada na intercorporeidade e na intersubjetividade que
Merleau-Ponty no pode, para usarmos a expresso que emprega no Elogio da
Filosofia ao definir o filsofo, dar o assentimento imediato e direto a todas as
coisas, sem considerandos, pois preciso ser capaz de tomar distncia para ser
capaz de um engajamento verdadeiro, que sempre tambm um engajamento na
verdade.

Referindo-se aula inaugural de Merleau-Ponty no Collge de France, Sartre


afirma que seu amigo possui uma concepo da filosofia que s aparentemente
permitiria concili-la com a poltica, mas que, realmente, torna impossvel jogar
nos dois tabuleiros. A poltica, escreve ele, ao fundada numa escolha objetiva,
a partir dos dados e fatos disponveis. Se a filosofia for, como pretende MerleauPonty, a exigncia de, antes de escolher, colocar-se num distanciamento que
permita apreender totalidades parciais e no os fatos isolados que formam nossa
experincia quotidiana, ento, escreve Sartre, um filsofo de hoje no pode tomar
uma atitude poltica.
Que pretende Merleau-Ponty em julho de 1953? Que preciso saber o que o
regime sovitico para escolher a favor ou contra. Ora, retruca Sartre, essa
exigncia, que parece ser meramente emprica - isto , a necessidade de possuir
mais dados -, , na realidade, uma dificuldade de princpio, pois nunca possumos
um saber total sobre as condies histricas. Escolhemos sempre sem pleno
conhecimento e, sobretudo, no podemos invocar a reflexo filosfica quando
somos chamados a reagir ao que urgente. A filosofia, tal como Merleau-Ponty a
concebe, o transforma em vtima de uma paixo subjetiva, perpassado por uma
contradio insolvel: afirma a coexistncia entre filosofia e poltica, mas
simultaneamente, exige uma opo entre ambas, ou a filosofia ou a poltica. Pior.
Merleau-Ponty pretende usar a filosofia contra a poltica (no caso, contra os
comunistas) para poder condenar mais depressa os que poderiam conden-lo.
Tens o direito, diz Sartre, de escrever teus livros; tens o direito de nada fazer; tens
o direito filosofia como reflexo rigorosa. Mas no tens o direito de criticar os que
fazem poltica e assumem o risco de faz-la em condies humanas, isto ,
tateando, errando e acertando.
Sartre vai mais longe. a concepo merleaupontyana de filosofia que est
equivocada: faz dela uma atitude sonolenta e sonhadora. A imagem do sono e do
sonho usada por Sartre, por um lado, porque, como vimos, ambos haviam posto
o projeto novo da filosofia como despertar do sono dogmtico idealista e
comunista, e, por outro lado, porque assim pode devolver ao amigo o ataque que
este lhe fizera ao consider-lo cartesiano e idealista. Sartre usa essa imagem
porque Merleau-Ponty conclura o elogio da filosofia, em sua aula inaugural do
Collge de France, dizendo que a diviso entre pensamento e ao no a
diviso entre o poltico e o filsofo, mas uma diviso que habita em todo ser
humano. Dizia Merleau: o filsofo o homem que desperta e fala, e o homem
contem silenciosamente os paradoxos da filosofia por que para ser inteiramente
homem, preciso ser um pouco mais e um pouco menos homem.
Isto, escreve Sartre, no convincente. Em primeiro lugar, por que faz do filsofo
uma espcie entre outras, como se se tratasse de uma lio de zoologia; em
segundo lugar, por que um auto-retrato do pintor (isto , nada mais do que a
autobiografia de Merleau-Ponty erigida em princpio), no esclarecendo se tal idia
da filosofia um acidente, uma patologia ou uma escolha fundamental. No a
reconheo como minha. No perteno, portanto, a essa espcie. Mas isso,
prossegue Sartre, talvez explique a atitude sonhadora de Merleau-Ponty em
todas as ocasies urgentes impostas pela poltica e s quais no respondeu.
Ao que parece, responde Merleau-Ponty, eu teria renunciado poltica por haver
escolhido a filosofia, semelhana de algum que, entre vrias profisses,
escolheu a de alpinista. No renunciei poltica: recusei-me a conceber o
engajamento nos mesmos termos em que o concebes. Como Sartre concebe o
engajamento? O intelectual engajado sartreano o escritor de atualidades que
opina e intervm sobre todos os acontecimentos relevantes, medida que vo se
sucedendo uns aos outros. um estado de viglia permanente, contra a
sonolncia sonhadora.
Merleau-Ponty recusa esse tipo engajamento. Dois motivos o afastam da viglia
sartreana, em nome de uma outra vigilncia. Em primeiro lugar, diz ele, porque, ao
escrever em conta-gotas sobre cada acontecimento, o escritor induz o leitor a

aceitar fatos isolados que recusaria se pudesse ter uma viso mais abrangente,
ou, ao contrrio, o induz a recusar como odiosos fatos isolados que, se
percebesse de maneira mais abrangente, aceitaria. Essa viglia engajada , afinal,
m-f. No informa, no analisa, no reflete, corre e muda ao sabor dos eventos,
de tal modo que se fosse dado ao leitor, um dia, reunir o conjunto de manifestos e
pequenos artigos dirios ou mensais de um intelectual engajado ou de um
comentarista poltico perceberia a incoerncia, a leviandade, a irresponsabilidade
daquele que escreve:
isso permitiria fazer engolir no varejo o que no seria aceitvel no atacado, ou, ao
contrrio, em tornar odioso, a golpe de pequenos fatos verdadeiros, aquilo que,
visto no conjunto, faz parte da lgica da luta.<O:P</O:P
O segundo motivo espantoso. Com efeito, tendo apresentado o primeiro, seria
de supor-se que Merleau-Ponty houvesse atacado Sartre por agir s cegas,
manifestando-se em toda parte sobre todos os acontecimentos sem jamais possuir
um conhecimento aproximado do todo ou, pelo menos, das linhas de fora e
vetores dos eventos, no lhes alcanando a significao. Ora, d-se exatamente o
contrrio. que, graas soberania do Nada sobre o Ser, Sartre construiu, em
pensamento e em imaginao, um futuro fixo, mantido em segredo, que regula
clandestinamente o curso dos acontecimentos, acontea o que acontecer. Sartre
possui o futuro e a histria em pensamento e em imaginao, sendo-lhe fcil
opinar sobre tudo e tomar posio em tudo. Em outras palavras, os
acontecimentos so tidos como a superfcie de um sentido secreto conhecido
apenas pelo filsofo que por isso, soberanamente, opina politicamente. Como o
Deus de Descartes, envolvido na tarefa quotidiana da criao continuada do
mundo, dando-lhe o suporte infinito de realidade ou substancialidade s coisas,
Sartre concebeu o mtodo do engajamento continuado que daria substncia
poltica. Espectador absoluto, soberano e transcendente, o filsofo, empoleirado
em Sirius, julga ter a chave do tempo, da histria e do mundo. Sob a aparente
modstia daquele que, dissera Sartre, sabe que a condio humana a da
escolha na ambigidade, s cegas, na ignorncia do todo, esconde-se a
presuno de ser Esprito Absoluto.
Assim, com o primeiro motivo, Merleau-Ponty recusa o engajamento no varejo e,
com o segundo, o engajamento no atacado. Se o filsofo julga poder dizer no
importa o qu a cada dia por julgar-se na posse do sentido total da histria. Sua
irresponsabilidade cotidiana tem como pressuposto uma histria completa (j
realizada em pensamento) que apagar da memria os passos empricos por ela
realizados por que os absorve num sentido nico que os tornar irrelevantes
quando a pena de t-los feito tambm houver-se tornado irrelevante.
Com Sartre e Merleau-Ponty, duas concepes da filosofia e da poltica esto em
choque. No se trata da oposio descrita por Sartre - a da filosofia sonhadorasonolenta face s urgncias da poltica e a da filosofia como viglia engajada e
sem libis -, mas da oposio entre a concepo da filosofia como conscincia
soberana clandestina que manobra as posies e opinies polticas (sabendo, de
antemo, que no so decisivas nem importantes por que o curso da histria se
realiza secretamente com ou sem elas) e aquela que percebe a conscincia
mergulhada no mundo, fazendo-se na relao com ele e, portanto, no dispondo
da chave da histria e da poltica. As cartas e a ruptura anunciam os temas de
Merleau-Ponty em As Aventuras da Dialtica, com suas anlises da poltica do
entendimento e da razo, da dialtica como mquina supersticiosa e do problema
posto por toda revoluo, isto , quando termina uma revoluo e instala-se um
regime?
A histria no uma lgica da necessidade absoluta, nem a poltica, a lgebra da
histria: o revolucionrio, escrever Merleau-Ponty nas Aventuras da Dialtica,
navega sem mapas. Por isso mesmo, prossegue ele na carta a Sartre, cada ato,
cada gesto, cada palavra, cada pensamento contam na determinao do curso da
histria e da poltica, pois est sob nossa responsabilidade compreender as

mediaes subjetivas e objetivas que orientaro o rumo dos acontecimentos.


Manifestar-se sobre tudo, assumir posio e ter opinio sobre tudo, mudar de
atitude conforme mudem os ventos, abandonar a obra j escrita, desdizendo-a e
desdizendo-se, irresponsabilidade, no liberdade.
Sartre podia afirmar que sua obra j realizada deveria ser esquecida a cada nova
circunstncia. Julgava, com isto, demonstrar seu compromisso com a filosofia e a
poltica. Merleau-Ponty, ao contrrio, exigia de sua obra retomada contnua,
constncia para que as reformulaes tivessem sentido e fizessem sentido. Sartre
viveu a alegria inflamada da tomada de posio contnua. Merleau-Ponty, a
exigncia de um pensamento capaz de modificar-se sob a solicitao dos
acontecimentos, mas jamais para satisfaz-los. Por isso, sabendo que perderia o
amigo, escreveu-lhe:
Quando se est muito seguro do futuro, no se est seguro do presente [...] Tens
uma facilidade para construir e habitar o porvir que toda tua. Ao contrrio, vivo
mais no presente, deixando-o indeciso e aberto, como ele . No significa que eu
construa um outro porvir [...] No que eu seja um homem revoltado, e muito
menos um heri. Minha relao com o tempo se faz sobretudo pelo presente, eis
tudo7.<O:P</O:P
Palavras que ecoaro no prefcio de Sinais, quando escrever:
O mal no criado por ns nem pelos outros, nasce do tecido que fiamos entre
ns e que nos sufoca. Que novos homens, suficientemente duros, sero
suficientemente pacientes para refaz-lo verdadeiramente? A concluso no a
revolta, a virt sem qualquer resignao8.<O:P</O:P
As relaes do filsofo com a Cidade so difceis porque ela lhe pede exatamente
o que ele no lhe pode dar: o assentimento imediato, sem maiores consideraes.
Sartre desejou que tais relaes no fossem difceis, empenhou-se para que o
filsofo estivesse engajado por inteiro nos acontecimentos, mas, por isso mesmo,
em sua coragem destemida, acabou cedendo s exigncias cegas da Cidade,
dando-lhe o que ela lhe pedia.
Se a polmica com Sartre e a ruptura com o amigo repercutiu intensamente na
obra de Merleau-Ponty, como transparece na publicao de As Aventuras da
Dialtica, no prefcio de Sinais, no captulo sobre a dialtica e a reflexo em O
Visvel e o Invisvel, se ao longo destes texto insiste na afirmao de que h um
mau casamento entre a filosofia e a poltica quando a primeira, em nome da
segunda, se faz m-f, e a segunda, em nome da primeira, se torna abstrao,
no menos profundas so as marcas deixadas em Sartre e um dos melhores
testemunhos disto encontra-se, justamente, na Crtica da Razo Dialtica e em
sua preparao, as Questes de Mtodo. Em ambas, Sartre dedica-se
compreenso da necessidade das mediaes que constituem as relaes sociais
e o tecido histrico e sem as quais a articulao entre teoria e prtica no pode ser
formulada, nem a alienao pode ser compreendida e, finalmente, sem a qual uma
filosofia da liberdade torna-se impossvel ou miragem idealista. Donde a
importncia, nas Questes de Mtodo, do estudo das chamadas disciplinas
auxiliares e da idia de um mtodo pregressivo-regressivo que d substrato
histrico noo de projeto. Do mesmo modo, na Crtica da Razo Dialtica,
compreende-se o papel preponderante do conceito de trabalho e da teoria do
grupo para a compreenso da idia de classe social e da prtica da luta de
classes como motor da histria. Mas na resposta de Sartre a Lukcs sobre a
conscincia de classe que, finalmente, ele julga responder maior objeo
filosfica que Merleau-Ponty lhe fizera, isto , de haver permanecido no ponto de
vista de uma filosofia da reflexo:
O princpio metodolgico que faz comear a certeza com a reflexo no contradiz
de modo algum o princpio antropolgico que define a pessoa concreta por sua
materialidade. Para ns, a reflexo no se reduz simples imanncia do
subjetivismo idealista: ela s um ponto de partida se logo nos relana para o
meio das coisas e dos homens no mundo. A nica teoria do conhecimento que,

hoje, pode ser vlida aquela que se funda nesta verdade da microfsica: o
experimentador faz parte do sistema experimental. a nica que permite afastar
toda iluso idealista, a nica que mostra o homem real no meio de um mundo real.
Mas esse realismo implica necessariamente um ponto de partida reflexivo, isto ,
que o desvendamento de uma situao se faz na e pela prxis que a muda. No
colocamos a tomada de conscincia na fonte da ao, nela vemos um momento
necessrio da prpria ao: a ao, no curso do cumprimento, d a si mesma
suas prprias luzes. Isso no impede que tais luzes apaream na e pela tomada
de conscincia dos agentes, o que implica necessariamente que faamos uma
teoria do conhecimento. Pelo contrrio, a teoria do conhecimento permanece
como o ponto fraco do marxismo [...] Somente quando se compreender que o
conhecimento no conhecimento de idias, mas conhecimento prtico das
coisas, ento se poder suprimir a noo de reflexo como intermedirio intil e
aberrante. Poder-se-, ento, dar conta desse pensamento que se perde e se
aliena no curso da ao para reencontra-se pela e na prpria ao. Mas, que
nome dar a essa negatividade situada como momento da prxis e como pura
relao com as prprias coisas, seno o de conscincia? H duas maneiras de
cair no idealismo: uma consiste em dissolver o real na subjetividade, a outra em
negar toda subjetividade real em proveito da objetividade. A verdade que a
subjetividade no nem tudo nem nada, mas representa um momento do processo
objetivo (o da interiorizao da exterioridade) e esse momento se elimina sem
cessar para de novo renascer [...] A conscincia de classe no a simples
contradio vivida que caracteriza objetivamente a classe considerada: ela essa
contradio j ultrapassada pela prxis e, por isso mesmo, conservada e negada
conjuntamente. precisamente essa negatividade desvendadora, essa distncia
na proximidade imediata, que o existencialismo chama conscincia de objeto e
conscincia no ttica de si.9<O:P</O:P
Cremos no ser casual que, tendo feito trajetrias to diferentes, mas tendo como
horizonte a recusa do idealismo filosfico e do positivismo cientfico, assim como o
mecanicismo, o empirismo e o idealismo dos comunistas, Sartre e Merleau-Ponty
se vissem confrontados no s com o problema da subjetividade, da objetividade e
da intersubjetividade, como tambm com o da temporalidade e o da histria e,
portanto, com a questo da necessidade e da contingncia, isto , da liberdade.
Vimos que Merleau-Ponty, na Phnomnologie de la Perception propusera
compreender a liberdade como ultrapassamento das condies fatuais por uma
significao que lhes d um novo sentido e indica como a obra explica a
necessidade desta vida determinada, e no o contrrio. No surpreende, ento,
encontrarmos em Sartre a noo do sentido como ultrapassamento ao qual,
finalmente, d o nome de liberdade:
O homem constri signos porque ele significante em sua prpria realidade e
significante porque o ultrapassamento dialtico de tudo o que simplesmente
dado. O que chamamos de liberdade a irredutibilidade da ordem cultural ordem
natural.10<O:P</O:P
Para Merleau-Ponty, no entanto, mesmo nessa derradeira posio Sartre no teria
ultrapassado o dilema do em si e do para si, da coisa e da conscincia, do objetivo
e do subjetivo. As palavras finais da Fenomenologia da Percepo nos deixam ver
que, muito antes que se consumasse a ruptura entre os dois filsofos e amigos,
ela j estava tacitamente posta:
Nossa liberdade, dizem, ou total ou nula. Esse dilema o do pensamento
objetivo e da anlise reflexiva, sua cmplice [...] Estamos misturados com o mundo
e com os outros de maneira indeslindvel. A idia de situao exclui a liberdade
absoluta na origem de nossos engajamentos. E a exclui igualmente no ponto de
chegada. Nenhum engajamento (nem mesmo o engajamento no Estado
hegeliano) pode fazer-me ultrapassar todas as diferenas e tornar-me livre para
tudo [...] Sou uma estrutura psicolgica e histrica. Recebi com a existncia uma
maneira de existir, um estilo. Todas as minhas aes e meus pensamentos esto

em relao com essa estrutura e at mesmo o pensamento de um filsofo nada


mais do que uma maneira de explicitar sua pegada sobre o mundo, aquele que
ele . E, no entanto, sou livre. No a despeito ou aqum dessas motivaes, mas
por meio delas [...] Essa vida significante, essa certa significao da natureza e da
histria que sou no limitam meu acesso ao mundo; pelo contrrio, so meu meio
de comunicar-me com ele [...] Quer se trate das coisas ou das situaes histricas,
a filosofia no tem outra funo seno a de nos reensinar a v-las bem, e
verdade dizer que ela se realiza destruindo-se como filosofia
separada.11<O:P</O:P
<O:P</O:P
1 Obras de MERLEAU-PONTY, nesse primeiro perodo: A Estrutura do
Comportamento, Fenomenologia da Percepo, Senso e No Senso, Humanismo
e Terror, e a aula inaugural publicada como ensaio Elogio da Filosofia. Obras
principais de SARTRE (a produo sartreana enorme e muito diversificada): O
Ser e o Nada, O Imaginrio, conjunto de contos reunidos em O Muro e a pea As
Mos Sujas.<O:P</O:P
2 Os textos da querela, vrios deles publicados inicialmente em Les Temps
Modernes, so: SARTRE, Os Comunistas e a Paz; LEFORT, O marxismo e
Sartre; SARTRE, Resposta a Lefort; LEFORT, Da resposta questo;
MERLEAU-PONTY, Filosofia e Poltica(conferncia que deveria ser o artigo
censurado por Sartre), Elogio da Filosofia, Sartre e o ultrabolchevismo.
Posteriores ruptura, mas referidos a ela: MERLEAU-PONTY, prefcio de Sinais;
SARTRE, necrolgio de Merleau-Ponty Merleau-Ponty vivo; LEFORT, prefcio a
Un Homme en Trop.<O:P</O:P
3 Obras de MERLEAU-PONTY: Sinais (cujo prefcio um balano crtico das
questes polticas e filosficas anteriores e posteriores ruptura com Sartre), As
Aventuras da Dialtica, e a publicao, por Lefort dos captulos e notas de trabalho
do livro pstumo O Visvel e o Invisvel (mencionado na carta como Prosa do
Mundo) e um conjunto de ensaios reunidos em dois volumes, Elogio da Filosofia e
outros ensaios e A Prosa do mundo.<O:P</O:P
4 SARTRE, Questions de Mthode, in Critique de la Raison Dialectique,
Gallimard, Paris, 1960, p. 22-23<O:P</O:P
5 MERLEAU-PONTY, La Guerre a eu lieu, in Sens et Non Sens, Nagel, Paris,
1965, p. 246 e251.<O:P</O:P
6 Idem, Ib., p. 269.<O:P</O:P
7 Carta de Merleau-Ponty a Sartre, loc. cit., p. 79<O:P</O:P
8 MERLEAU-PONTY, prefcio a Signos, So Paulo, Martins Fontes, 1991. p.
37<O:P</O:P
9 SARTRE, Questions de... , in Critique de la Raison Dialectique, op. cit., pp. 3031<O:P</O:P
10 Idem, Ib., p. 96<O:P</O:P
11 MERLEAU-PONTY, Phnomnologie de la Perception, Paris, Gallimard, 1945,
p. 520<O:P</O:P

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