Os Santos Da Igreja e Os Santos Do Povo
Os Santos Da Igreja e Os Santos Do Povo
Os Santos Da Igreja e Os Santos Do Povo
Curitiba
2004
Prof.
Dr.
Euclides
CURITIBA
2004
TERMO DE APROVAO
Curitiba,
GABRIEL
e
DANIEL
AGRADECIMENTOS
Este trabalho contou com a inestimvel compreenso e bondade e, em
muitos casos, com o inconsciente encorajamento de familiares e amigos que
compartilharam comigo o tempo de sua elaborao. Registro especialmente
aqueles que, por sua participao atenciosa, facilitaram-me o necessrio
levantamento documental e, aqueles que, pelo generoso testemunho de sua
vivncia, permitiram a utilizao de suas imagens fotografadas.
Difcil seria nomear todas as atenes e contribuies recebidas durante
sua concretizao, mas destaco algumas instituies e amigos que desejo
agradecer publicamente: Biblioteca Pblica do Paran, especialmente o Setor de
Documentao Paranaense e a Biblioteca do Studiun Theologicum, atravs da
Sra. Lria Alemmar Zawadzki Kaminski.
Agradeo aos Professores Doutores Marcus Levy Albino Bencostta e
Renan Frighetto por suas crticas e sugestes, por ocasio do Exame de
Qualificao.
Destaco ainda o apoio acadmico-financeiro recebido da Coordenao
de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior CAPES, pela concesso da
Bolsa de Estudos.
Carinhosamente agradeo ao amigo Professor Jesus Antonio Durigan
pelo incentivo inicial, Maria de Lourdes Tomio Stein, pelo constante incentivo e
discusses acerca do tema em estudo e Cleusa Regina Ferreira da Luz, amiga
de todas as horas.
E, finalmente, manifesto minha gratido ao Professor Doutor Euclides
Marchi que me conduziu, segura e serenamente, em meio as fontes, as leituras e
as anlises, das quais resultou esta tese.
iv
AC Ao Catlica
ACB Ao Catlica Brasileira
CEBs - Comunidades Eclesiais de Base
CELAM Conselho Episcopal Latino-Americano
CERIS Centro de Estatstica Religiosa e Investigaes Sociais
CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil
CRB Conferncia dos Religiosos do Brasil
DM Documentos de Medelln
DP Documentos de Puebla
DSD Documentos de Santo Domingo
ICAB Igreja Catlica Apostlica Brasileira
MEB Movimento de Educao de Base
RCC Renovao Carismtica Catlica
TL Teologia da Libertao
RESUMO
vi
ABSTRACT
disqualify it and, with that, empty out this devotion, as many others for example,
the pious worship at Maria Bueno has been vigorous, in a clear example of a longterm phenomenon.
vii
SUMRIO
Agradecimentos ....................................................................................iv
Lista de Abreviaturas e Siglas .............................................................. v
Resumo ............................................................................................... vi
Abstract ............................................................................................... vii
Sumrio .............................................................................................. viii
Introduo .......................................................................................... 01
55
138
INTRODUO
aproximando-se em alguns
momentos, para se distanciar logo mais adiante, sem que um represente, de alguma
forma, a anulao do outro. Antes, apesar de suas especificidades, essas trilhas
apresentam uma dinmica, tecida de trocas recprocas, que pode ser percebida dentro
de uma perspectiva histrica de incessantes reformulaes, uma vez que, ainda de
acordo com VOVELLE (1987), no h fronteiras fixas, nem modelos invariveis.
1
Ou tempo longo que, segundo o autor, a concepo que os historiadores franceses chamam de poro ao sto.
Este conceito foi um importante neologismo criado para satisfazer as questes referentes s fases longas da histria, o
tempo das representaes coletivas que se modelam ao longo dos sculos, enfocando as resistncias e as
permanncias, que repensam o ritmo da histria oficial. o tempo braudeliano da longa durao que LE GOFF
(1976) define como a histria da lentido na histria.
Relacionadas pelo autor, entre a cultura das classes subalternas e as classes dominantes. Com muita freqncia, diz
ele, idias ou crenas originais eram consideradas, por definio, produto das primeiras e sua difuso entre as demais
classes, representavam um fato mecnico de escasso ou nenhum interesse, quando no se enfatizava presunosamente
a deteriorao ou a deformao que tais idias e crenas sofriam durante o processo de transmisso.Focalizando as
relaes entre Rabelais e a cultura popular de seu tempo, BAKHTIN enfatizou nessa cultura popular, principalmente
o carnaval, o mito, a exaltao da fertilidade e da abundncia, como uma inverso divertida de valores e hierarquias
que resultavam numa viso de mundo que se opunha ao dogmatismo medieval. Assim, se por um lado o autor aponta
para uma dicotomia entre a cultural subalterna e a cultura hegemnica, por outro enfatiza um influxo recproco e
intenso entre elas, da o conceito de circularidade cultural. Seguindo por esta mesma trilha - Carlo GINZBURG, em
O Queijo e os Vermes (1987, p.17) alerta que, em comparao com os antroplogos e outros estudiosos das tradies
populares, os historiadores partem com uma desvantagem pois, ainda hoje, a cultura das classes subalternas
predominantemente oral e os historiadores no se podem colocar a conversar, por exemplo, com os camponeses do
sculo XVII. Assim, precisam, servir-se de fontes que so duplamente indiretas: escritas e, em geral, de autoria de
pessoas, umas mais, outras menos, ligadas cultura dominante. Isso significa que os pensamentos, as crenas e as
esperanas dos camponeses e artesos do passado chegam at ns atravs de filtros e intermedirios que,
invariavelmente, os deformam. Desta forma, os termos do problema mudam de forma radical ante a proposta de se
estudar, no a cultura produzida pelas classes populares ou subalternas, mas sim a cultura que lhe era imposta.
Autor da teoria dos trs estgios ou das idades evolutivas do homem: a primeira fase configurava-se pelo feiticismo,
passando depois pelo politesmo e finalmente pelo monotesmo, em que o homem interpretando os fenmenos
naturais, atribui-os a seres divinizados, imaginados sua semelhana. No segundo estgio, o homem recorreria a
conceitos como natureza ntima dos seres, observando os fenmenos e individualizando leis que possam explicar o seu
comportamento, enquanto no terceiro e ltimo estgio, o homem poderia abandonar as formas anteriores de saber e de
percepo, como a religio e a metafsica, seguindo as cincias, uma vez que j seria capaz de dominar o prprio
ambiente natural ou social quando, a cincia como conhecimento superior, resolveria todos os problemas da
humanidade (1992, p. 171).
soluo de todos os males, nem tem condies de oferecer explicaes cabais de tudo
no mundo. No entanto, no se deve preterir, que a tecnologia moderna, de l para c,
alcanou nveis, antes inimaginveis e, se tornou parte essencial no cotidiano de todos.
Mas, tambm verdade que, apesar de todos estes avanos cientficos, neste incio do
sculo XXI, o mundo, de forma generalizada, continua mstico.
Nessa trilha, sem desmerecer a supremacia alcanada pelas cincias, Reginaldo
PRANDI pondera que elas no conseguiram eliminar as muitas prticas mgicas e
milagrosas porque as explicaes do mundo inteiramente desencantadas e
desprovidas de apelo magia, ao sobrenatural e s concepes que escapam do
controle racional, continuam pertencentes ao universo religioso contemporneo (1992,
p. 81).
Ao compartilhar deste parecer quanto persistente permanncia das crenas,
apesar de alguns tantos esforos em contrrio, Carlos Rodrigues BRANDO afirma que
somente elas nomeiam todas as coisas e tornam mesmo o incrvel, possvel e legtimo
(1986, p. 28).
Essas concepes indicam um vis de entendimento para o crescente interesse
pelo estudo das religies e das religiosidades, em suas mltiplas manifestaes. As
investigaes, no campo da histria, realizadas durante o sculo XX romperam, de
forma acentuada, em termos de saber e reflexo, o monoplio antes exercido pelas
teologias e pela Histria da Igreja, e tm enfrentado o desafio de esclarecer suas
rupturas e suas permanncias, alm de elucidar as novas presenas do religioso,
mundo afora, devido expanso de novas religies e milhares de igrejas, movimentos,
correntes e alternativas religiosas.
Desenvolvendo-se num momento que estimula a emergncia das mais diferentes
abordagens, na busca desse entendimento das religies, das sociedades e da histria,
No cenrio brasileiro podemos indicar que a partir de 1970, com a criao dos Cursos de Ps-Graduao em
Cincias da Religio, com mestrados e doutorados em vrias universidades brasileiras, consolidou-se um espao de
produo e de discusso epistemolgica. Mais recentemente, uma outra iniciativa merece destaque: a Associao
Brasileira de Histria das Religies que, desde sua criao em 1999, j promoveu quatro simpsios: no ano de sua
fundao, na Universidade Estadual Paulista, cmpus de Assis, no ano seguinte na Universidade Federal de Ouro
Preto, em 2001, na Universidade Federal de Pernambuco e em 2002, na Pontifcia Universidade Catlica, de So
Paulo. Partindo de uma abordagem mais ampla, no primeiro encontro, os demais estiveram pautados por eixos
temticos: Religio e Sociedade, Insurgncia e Ressurgncias no Campo Religioso e O Estudo das Religies: desafios
contemporneos. Vale lembrar que esses eventos contaram com a presena de importantes instituies: Departamento
de Teologia e Cincias da Religio, Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio, Ncleo de Estudos:
Religio, Memria e Identidade e Ncleo Religio e Semitica, todos da PUC - SP, alm do Ncleo Interdisciplinar de
Estudo do Imaginrio e Memria, do Instituto de Psicologia e do Centro de Estudos da Religio Duglas Teixeira
Monteiro, ambos da USP, entre outros.
Para VOVELLE (1987, p. 171) feixes de informaes que se conservam ainda hoje como essenciais (...) reunio
insubstituvel de dados, mas ao mesmo tempo, um acervo sem profundidade histrica, para desespero do historiador.
Entendida por ele, numa perspectiva evolucionista a partir do totemismo australiano (em que totem significa uma
espcie de fora annima e impessoal que se encontra em cada um dos seres, sem poder confundir-se com nenhum
deles), concebido como forma elementar da vida religiosa. Para ele, o totemismo se reveste de duas facetas: um
modo de agrupamento social e um sistema religioso de crenas e prticas. Mais tarde, o antroplogo MALINOWSKI
reconheceu que a teoria do totemismo contribuiu expressivamente com a antropologia ao revelar a importncia do
aspecto sociolgico em todas as formas primitivas de culto pois para ele o selvagem encontra-se na dependncia do
grupo com o qual est em contato direto, tanto no que se refere cooperao prtica como solidariedade mental.
Uma vez que o culto e o ritual primitivos se encontram intimamente ligados a preocupaes de ordem prtica, assim
como satisfao de necessidades mentais, deve existir uma estreita ligao entre a organizao social e a crena
religiosa (1984, p. 23).
uma vez que cumprimos os nossos deveres rituais, voltamos para a vida profana com mais
coragem e ardor, no somente porque nos colocamos em contato com uma fonte superior
de energia, mas tambm porque nossas foras se refizeram, por alguns instantes, de vida
menos tensa, mais cmoda, mais livre (1983, p. 222)
Para o autor, isso se deve aos elementos constitutivos do sagrado, como a idia de
deuses e da alma, que fortalecem as foras espirituais do homem, que so formadas,
construdas sobre o social com a finalidade de atuar e, at mesmo, interferir na vida
moral do indivduo coletivo porque
a nica fora real que transcende os indivduos e assume para eles a forma de uma fora
annima e difusa a prpria sociedade. Uma sociedade possui tudo o que necessrio
para despertar a sensao do Divino nas mentes, unicamente atravs do poder que
exerce sobre elas; para os seus membros o mesmo que um Deus para os seus
veneradores (Ibid, p. 223).
Ao invs de ideal coletivo, expresso pela religio, ser devido, a um no sei que poder inato
do indivduo foi, por muito tempo, na escola da vida coletiva que o indivduo aprendeu a
idealizar. Foi assimilando os ideais elaborados pela sociedade que ele se tornou capaz de
conceber o ideal. Foi a sociedade que, o encadeando em sua esfera de ao, fez com que
ele adquirisse a necessidade de se levantar acima do mundo da experincia e ao mesmo
tempo forneceu-lhes os meios de conceber o outro (Ibid., p. 226).
7
Potencializando este fenmeno, recordamos diversas ocasies em que assemblias religiosas lotam estdios, grupos
de peregrinos se unem, fiis realizam procisses ou comcios, sugerindo a conquista de uma renovao interior, uma
comunho ou mesmo uma cartase.
10
De acordo com a anlise que Florncio GALINDO faz do pensamento de MALINOWSKI, a cultura consta de
diversos setores, correspondentes s diversas necessidades do homem e abarca por isso toda uma srie de atividades,
cada uma das quais cumprindo uma funo prpria: educao, controle social, produo e distribuio de bens,
desenvolvimento de arte, etc. Entre tais atividades esto a moral e a f, que proclamam normas e valores destinados a
servir de orientao, em determinadas situaes de vida (1994, p. 56)
11
o rito muda a situao do fiel. Praticando os ritos propiciatrios que deveriam trazer a
chuva, os fiis no provocam sua vinda, mas reunindo-se para realizar a cerimnia
prescrita, os membros do grupo mobilizam as energias que lhes permitem suportar melhor
a prova da seca e da pobreza que a acompanha. O sentido do rito no est em sua
eficcia instrumental. O rito no propicia ao fiel apenas a catharsis de sua angstia por
comportamentos substantivos. A execuo do rito refora e restaura a solidariedade do
grupo desde que tomada a srio e considerada estrita obrigao (1984, p.75).
ELIADE define hierofania como a manifestao do sagrado em que um objeto qualquer se torna outra coisa e,
contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio csmico envolvente. Uma pedra sagrada, no
menos pedra e aparentemente nada a distingue de todas as demais. No entanto, para aqueles, a cujos olhos, uma
pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Assim, para aqueles que
tm uma experincia religiosa, toda a natureza suscetvel de revelar-se como sacralidade csmica. E, o Cosmo, na
sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania (1996, p. 18).
10
Em nosso trabalho identificamos esse fenmeno, tal como pensado por ELIADE, em relao a sacralizao do local
do crime que imortalizou Maria Bueno, tornado inicialmente, local de culto e demarcado por cruz, velas e flores.
12
so experincias
11
13
efervescncia coletiva. Por tudo isso, esclarece o fenomenlogo, da mesma forma que
este mysterium tremendem et fascinorum afasta, ele atrai, pois um impulso
singularmente poderoso de um Bem que somente a religio conhece e que
substancialmente irracional, pois os conceitos racionais que se desenvolvem a partir
desse aspecto do numinoso so o amor, a misericrdia, a piedade, o conforto, etc
(Ibid. p. 48).
Finalizando estas caractersticas do numinoso, o autor acrescenta que se trata de
um mysterium augustu, que por todas as caractersticas anteriores, impe respeito por
si mesmo.
14
humano sem intermedirios, a nica coisa que o leva sua verdadeira dimenso
humana, que lhes traz integridade e salvao (Ibid. 12).
No campo da historiografia buscamos respaldo em vrios estudiosos que,
preocupados em desvendar as tramas destas manifestaes de f, nos favoreceram
com importantes contribuies.
Nesse sentido, recorremos, inicialmente, s reflexes de Jacques LE GOFF, que
na dcada de 1960, suscitaram vrias polmicas em torno das tradies populares e a
cultura erudita mescladas no mundo medieval. Para ele, a tradio folclrica subsidiou,
em boa parte, o fortalecimento e a difuso do cristianismo, na medida em que o clero
aderiu quelas tradies, graas existncia de estruturas mentais comuns e a
necessidade de estabelecer maior contato com os fiis pois, o peso da massa
camponesa e o monoplio clerical so as duas formas essenciais que agem sobre as
relaes entre os meios sociais e os nveis de cultura na Alta Idade Mdia (1980, p.
261).
LE GOFF ressaltou por outro lado, que a romanizao dos brbaros representou
um forte apelo cultural cristandade, induzindo a hierarquia eclesial a promover a
propagao da doutrina crist. Para tanto, foram necessrias duas estratgias: a
primeira se refere ao acolhimento das tradies folclricas, como por exemplo, a
ateno especial aos milagres, o culto das relquias e o uso de talisms, pelos
representantes da Igreja, enquanto a segunda diz respeito ao esforo do clero em se
adaptar aos fiis, pela utilizao dos recursos orais como sermes, cantos e cerimnias
litrgicas, com destaque para as procisses e ladainhas.
Apesar disso, ressalta o autor, a elite erudita recusou-se a assimilar outras
prticas, desencadeando, muitas vezes destruio e desnaturalizao de ritos e crenas
populares, evidenciando assim, a formao de uma barragem cultural, sobretudo nas
hierarquias eclesiais recrutadas na aristocracia. Se houve, por um lado, a apropriao
do legado cultural por parte da Igreja, por outro, algumas tradies se tornaram alvo de
proibies, especialmente os poderes taumatrgicos dos santos, j que, nesta nova
configurao, s Deus faz milagres (Ibid., p. 214).
Nesse sentido, esclarece o historiador, ao criar um mecanismo repressor contra
antigas prticas culturais, a Igreja admitia que, no ocidente medieval, a presena de um
15
a fronteira entre as vrias culturas do povo e as culturas das elites (e estas eram
to variadas quanto aquelas) vaga e por isso a ateno dos estudiosos do
assunto deveria concentrar-se na interao e no na diviso entre elas (...)
biculturalidade das elites, suas tentativas de reformar a cultura popular, sua
retirada dela e finalmente sua descoberta, ou mais exatamente redescoberta da
cultura do povo (1989, p. 21)
Tais reflexes apontam para a modificao do sentido da palavra povo usada,
inicialmente, para designar todo mundo ou gente respeitvel, e que, posteriormente
ganhou uma nova designao: a gente simples. Posto desta forma, no difcil
percebermos, a necessidade de se precisar, as expresses em uso neste trabalho,
envolvendo as manifestaes populares de f, sobretudo quando Igreja, de um lado, e
estudiosos, de outro, utilizam do mesmo termo - religiosidade popular mas, com
entendimentos diferenciados quanto ao seu significado.
Nessa trilha, Dominique JULIA (1976) identificou que, num longo processo iniciado
na Idade Moderna, o corpo social da Igreja se reduziu, basicamente, aos seus
representantes, promovendo um novo funcionamento da linguagem. Assim, a doutrina
enunciada, transformada na ideologia prpria do grupo clerical, se distanciou, das
experincias espirituais comuns ou vida dos fiis, gestando uma forma de
administrao sempre mais atenta e dominadora.
Georges DUBY (1986) props que se refletisse acerca do que o Cristianismo do
sculo XIV recebeu das atitudes religiosas espontneas do povo, no momento em que,
sob a influncia dos pregadores dominicanos e franciscanos, os dirigentes da Igreja
quiseram colocar-se ao alcance das massas. O autor aponta que, naquele momento, o
clero teve que tomar de emprstimo certo nmero de temas e representaes da cultura
popular e mistur-los a um conjunto ideolgico que, apesar de apropriar-se de
16
Todas estas reflexes acerca da cultura e sobre sua dinmica entre os diferentes
estratos sociais, desdobraram-se para as questes das relaes dos homens com o
12
Uma vez que para ele, terra, ar, fogo e gua, todos esses elementos em conjunto, em um dado momento, formaram
uma massa do mesmo modo como o queijo feito do leite e do qual surgem os vermes e esses formam os anjos.
17
18
destacou
jornalista
norte-americano
Kenneth
WOODWARD
(1994),
19
13
Sobretudo no cristianismo catlico, com sua rgida estrutura, organizada hierarquicamente, com definio precisa de
papis e poderes.
14
Francisco Cartaxo ROLIM (1996) chama a ateno que tal comunicao no se restringe ao catolicismo, estando,
portanto presente em diversos domnios: no pentecostalismo, no espiritismo e nos muitos sincretismos religiosos.
20
morte de Maria Bueno e dia de finados, se dirigem ao mausolu para pedir, agradecer e
orar. Atravs de uma cmera de vdeo pudemos registrar o burburinho desses
15
Para VOVELLE (1987, p.177) o ex-voto afirma sua originalidade de testemunho individual, mesmo que ele se
produza sob forma de uma expresso esteriotipada, e se preste ao tratamento quantitativo de longa durao: o ex-voto
pintado ou esculpido, de todos o mais explorvel, iniciando-se no sculo XVII, excepcionalmente no sculo XVI,
para continuar at a poca contempornea.
21
momentos, o vai e vem das pessoas entre o mausolu e o queimadeiro de velas, local
privilegiado para o pagamento de muitas promessas. Ainda em relao ao mausolu da
santinha de Curitiba, registramos em fotografias a materializao da f de muitas
pessoas que, ao longo de dcadas, tm expressado gratido e devotamento atravs de
ex- votos, fitas, velas e flores. De forma especial nos detivemos nas placas votivas que,
so muitas e recobrem boa parte do tmulo e do muro frontal, o que nos permitiu
detectar alguns perodos de maior incidncia desses registros devocionais, associados
com outras iniciativas, como peas teatrais e, sobretudo, com uma mini-srie produzida
por um canal de televiso local.
Para atingirmos nosso objetivo, estruturamos este trabalho, em quatro captulos.
Nosso primeiro captulo, ocupou-se com a construo histrica do conceito de
religiosidade popular. Identificadas, desde o perodo colonial brasileiro, pelos
historiadores
cientistas
sociais,
como
religiosidades
populares,
as
muitas
mudanas
significativas
foram
introduzidas,
at
processo
de
romanizao, a partir da segunda metade do sculo XIX, embora, apesar dos esforos,
a Igreja brasileira no conseguiu eliminar as tradicionais prticas desclericalizadas.
Nesse aspecto, vale ressaltar o convvio harmonioso, para muitos fiis catlicos, de
uma prtica religiosa nos templos, em consonncia com as diretrizes da Igreja e outra,
mais espontnea, mais emotiva, fora desses lugares oficialmente consagrados. Tais
fatos justificam a permanncia de inmeras prticas religiosas condenadas pela Igreja,
mas mantidas por grande nmero de catlicos.
O segundo captulo buscou identificar as mudanas realizadas dentro da prpria
estrutura eclesistica que tem no Conclio Vaticano II, um divisor de guas. O contexto
internacional, sobretudo europeu, ps II Guerra Mundial, exigiu uma reestruturao da
Igreja Catlica perante o mundo cristo, idealizado num discurso em torno de uma
convivncia pacfica e harmoniosa, o ecumenismo. No entanto, as especificidades das
22
23
que
ardem
em
profuso
no
queimadeiro,
especialmente
nas
datas
24
Para Ronaldo VAINFAS (1988), o trabalho dos sacerdotes no Conclio de Trento (1545-63) resultou menos na
renovao legislativa da Igreja do que na mudana de atitude em relao aos velhos cdigos: nova discusso com
respeito hierarquia eclesistica, homogeneizao da pastoral e da prtica sacramental junto s massas de fiis. Tais
questes eram fruto do despreparo, do absentesmo e a ineficcia do clero, desde a alta hierarquia aos curas
paroquiais. Por isso, a reordenao dos bispados viria acompanhada do estmulo para a devoo entre os clrigos,
para prepar-los mais adequadamente para o exerccio pastoral, numa aproximao mais ampla e profcua entre a
Igreja e os leigos, em oposio s prticas cotidianas em que mesmo os grandes momentos da vida, como o batismo,
o casamento e a morte, sofriam pouca interveno do clero e, eram regulados, sobretudo, pelas culturas e tradies
locais.
25
As devoes das novenas vm do costume dos cristos que, desejando festejar determinados acontecimentos
religiosos, preparavam-se para a solenidade, durante nove dias, a fim de regozijar-se no dcimo, atravs da festa
programada, desde a manh, com assistncia Santa Missa e a comunho geral, alm da festa externa, com diverses
em benefcio da Igreja local ou de alguma obra social. Na atualidade esse conceito perdeu seu significado natural,
sendo que muitos fiis crem que o nmero de oraes, para que consigam o que desejam ou precisam, tenha que ser
nove, uma variante das correntes de orao. Muitos julgam que se interromperem a corrente, sero castigados (VOZ
DO PARAN, 14.01.1974, p. 4).
18
Laura de Mello e SOUZA enfatizou tal situao em O Diabo e a Terra de Santa Cruz, quando se dedicou s
representaes e vivncias do sagrado nos primeiros sculos brasileiros, examinando prticas religiosas que, aos
olhos da Inquisio, muitas vezes, se transformavam em feitiaria e cultos diablicos. Em Inferno Atlntico, a
historiadora aprofundou essa problemtica, apontando, por um lado, a anlise das relaes entre as crenas religiosas
e o colonialismo, e por outro, o estudo microscpico da religio cotidiana, privilegiando as representaes populares
e eruditas, do Diabo europeu , trazidas da Metrpole para a Colnia. Neste estudo, chama a ateno para a tenso
entre o racional e o maravilhoso, entre o pensamento laico e o religioso, entre o poder de Deus e do Diabo, numa
disputa constante entre os valores incontestveis do Bem e do Mal. A autora evidenciou como esses embates
evitavam atribuir ao seu opositor uma identidade de poder, embora a persistncia dessa polmica, apontasse para o
contrrio. Carlos Rodrigues BRANDO em O Festim dos Bruxos tambm focaliza basicamente as mesmas tenses
apontadas por SOUZA e indica que o recurso de tal embate no era simples retrica. Antes, evidenciava, de um lado,
o universo mental dos colonos, onde o plano religioso ocupava lugar de destaque, presente nos mais diversos setores
da vida cotidiana e, de outro, uma estratgia poltica de controle social, a partir de acusaes como magia, feitiaria e
curanderismo.
26
Nessa linha de compreenso, Alba ZALUAR afirma que as festas de santo que
acompanhavam as principais datas e pocas do calendrio anual e, toleradas pelos
padres, pouco tinham a ver com a ortodoxia catlica, apostlica e romana (...)
valorizavam as prticas crists da generosidade e solidariedade dos homens de Deus
que promoviam a comensalidade, as danas, a msica e os autos das festas santorais
(1994, p.117).
Nessa mesma trilha, Jos Arthur RIOS tambm enfatiza essa devoo santoral dos
portugueses quando afirma que por toda parte, as imagens de santos povoam nichos,
nos cantos das ruas, em altares, oratrios e capelas, dentro das casas e, como o culto
Virgem, animam festas, romarias e procisses, grandes manifestaes coletivas que se
vo repetir no Novo Mundo (1994, p. 24).
Assim, dada a forma pela qual as terras brasileiras foram ocupadas, logo
prevaleceu um catolicismo marcadamente domstico, mas igualmente social, que
abrangia o chefe familiar, seus agregados e escravos. Nesse contexto, as moradias
eram o locus privilegiado para o exerccio da religiosidade privada da populao, seja
na casa-grande ou nas palhoas dos serviais. Por isso, era comum que o lanamento
da pedra fundamental da construo do engenho contasse com a presena de um
sacerdote encarregado de aspergir gua benta no alicerce, garantindo-se assim o bom
futuro religioso dos moradores (MOTT, 1997, p. 164).
Normalmente, nessas propriedades rurais19, prximas casa-grande, havia a
construo de uma capela ou ermida, onde um sacerdote prestava assistncia
religiosa20. Muitas vezes, tratava-se de um padre residente, acentuando, como apontam
muitos estudiosos, o problema de atendimento espiritual da populao em geral, dado o
19
Ali, Jos Arthur RIOS (1994) identificou uma religiosidade latifundiria e patriarcal, que dava um carter
marcadamente familista instituio e vida religiosa, contrastando com a pregao eclesioncntrica dos jesutas e
das autoridades eclesisticas.
20
Identificado, por RIOS como um catolicismo latifundirio e patriarcal, marcado pela vida fechada das fazendas e
engenhos, essa religiosidade se assentava numa estrutura social que dividia senhores e escravos, patres e agregados,
cortada, entre o tronco e a senzala, de sadismo e promiscuidade (1994, p. 24).
27
nmero reduzido
o verdadeiro interesse na religio era sobretudo do prprio senhor local pois era ele que
procurava orientar e plasmar a religio do povo escravo, que provocava a aliana com
algum padre disponvel e o submetia ao seu poderio, tornando-o um padre-capelo a
servio da casa-grande, sem muita ligao com seu bispo, nem com o seu povo (1977, p.
75).
Tal relato sugere que, frente s limitaes econmicas, no deveria ser muito
desconfortvel, para esses padres, sua submisso aristocracia rural que lhes garantia,
com folga, melhores condies de vida. Dessa forma, garante SOUZA (1986) a
religiosidade subordinava-se fora aglutinadora dos engenhos de acar, integrando o
28
tringulo Casa-grande-Senzala-Capela.
Diferentemente, o clero regular, particularmente os jesutas, tinha como principal
objetivo implantar e dilatar a cristandade no mundo colonial, segundo uma perspectiva
romana de catolicismo que defendia a viso universalista da Igreja Catlica e a
hegemonia da autoridade papal21. Por isso, procurava atuar, de forma independente do
monarca portugus que, por fora do padroado22 era quem, de forma efetiva, dirigia a
Igreja no Brasil. Ao papa, distante, competia simplesmente confirmar as decises rgias
em matria de religio.
Um bom exemplo da fora exercida, no campo religioso pelo rei portugus eram as
procisses de So Sebastio, da Visitao de Santa Isabel, de Corpus Christi23, entre
outras, convocadas pela Igreja, em cumprimento s Ordens Rgias e que tinham a sua
obrigatoriedade ditada pelas Cmaras Municipais24. J as procisses da Semana Santa
tinham uma finalidade instrutiva. Seu objetivo, segundo AZZI (1978) era ensinar
populao os sofrimentos de Jesus e Maria, e a histria da Salvao25.
Nesse contexto, a influncia romana no catolicismo brasileiro, efetivamente, s
ocorreria mais tarde, a partir da segunda metade do sculo XIX, atravs do processo de
romanizao, que ser abordado adiante. At l, no mundo rural, constitudo de
21
Enquanto estes religiosos procuravam fixar o marco da f em seus colgios e redues, pela palavra e pelo
exemplo, campeava nas ruas estreitas das primeiras cidades, nos engenhos e nos campos, essa religiosidade popular,
de festa e foguetrio, animando uma populao indisciplinada, mal regida por um clero secular escasso e inculto
(RIOS, 1994, p.25).
22
No incio do ciclo das Grandes Navegaes, Roma decidiu confiar aos reis ibricos o Padroado Real sobre as novas
terras descobertas. Estes deveriam enviar missionrios, construir igrejas e conventos, fundar parquias e dioceses,
subvencionar o culto bem como remunerar o clero. Para isso, ficava a cargo da Coroa real a arrecadao dos dzimos
eclesisticos. Em termos concretos, o padroado no trouxe grande vantagem para a Igreja do Brasil. Segundo
declaraes oficiais da Coroa, a colnia no era economicamente rentvel, resultando da restries constantes
organizao e expanso da instituio eclesistica, dela dependente (AZZI, 1987, p.46-7).
23
Tambm chamada de Triunfo Eucarstico ou Triunfo de Cristo.
24
Apesar dessas ocasies serem rotuladas como festas populares, os faltosos eram punidos com multas e prises
(AZZI, 1987, p.49).
25
Eram quatro as procisses desses festejos: a procisso de Cinzas, realizada na quarta-feira, marcava a abertura da
Quaresma e se destinava a lembrar os fiis sobre a brevidade da vida, a limitao humana e a necessidade de fazer
penitncia para obter a salvao; a procisso do Encontro, realizada na segunda-feira da Quaresma, revivia algumas
passagens da Paixo de Cristo, especialmente o pretrio, a flagelao, o Salvador carregando a cruz, suas quedas, seu
encontro com Maria e Vernica; a procisso do Fogaru, na Quinta-feira Santa, relembrando os sofrimentos do Cristo
no Jardim das Oliveiras e, a procisso do Enterro, realizada ao cair da tarde da Sexta-feira Santa que relembrava o
enterro de Jesus (VOZ DO PARAN, 12.02.1961, p.3).
29
Nos fins do primeiro sculo da colonizao, as parquias do Brasil no passavam de cinqenta, e no segundo, o da
expanso para o serto, eram cerca de noventa. A Freguesia de Jeremoabo, na Bahia, por exemplo, tinha mais de
setenta mil quilmetros quadrados, quase igual ao territrio de Portugal (NEVES, 1994, p. 173).
27
Dentre as mais conhecidas encontram-se: os ORIXS, mltiplas divindade consideradas guias, sendo o maior de
todos OXAL ou ORIXAL, o orix da criao, representado por Jesus Cristo e pelo Senhor do Bonfim; OXSSI,
o orix dos caadores, representado por So Jorge e por So Sebastio, portando um arco atravessado de flecha;
OXUM o orix das guas doces, divindade feminina, deusa da fertilidade, representada por Nossa Senhora das
Candeias; OGUM ou OGUNDEL, orix que preside as lutas e as guerras, representao de So Jorge e de Santo
Antonio, da iconografia catlica; XANG, um dos orixs mais poderosos, relacionado com os troves, o fogo e a
justia, sincretizado, freqentemente com So Jernimo, So Miguel Arcanjo e, algumas vezes, com So Joo;
IANS, divindade feminina, mulher de Xang, regula os ventos e as tempestades, representada por Santa Brbara;
IEMANJA ou JANANA, a me dgua ou a rainha do mar, representada por Nossa Senhora da Conceio; OMULU,
divindade das doenas contagiosas, representada por So Lzaro e So Roque; LOGUN-ED, orix dos rios dentro
das florestas, sincretizado com So Miguel Arcanjo; OXUMAR, orix do arco-ris, representado por So
Bartolomeu; EXU, orix que representa as potncias contrrias aos homens e, assimilado pelos negros, como o
Demnio dos catlicos, porm cultuado por eles, que o temem, entre outros ( ISTO , 20.12.2000, p.97).
28
Num ambiente institucional de relaes esgaradas e hierarquia distante, no era de admirar que a disciplina e a
moral sofressem reveses. Dela, Gilberto FREYRE traa alguns retratos, como no sculo XVII e XVIII, no houve
senhor branco, por mais indolente, que se furtasse ao sagrado esforo de rezar ajoelhado diante dos nichos, s vezes,
rezas sem fim, tiradas por negros e mulatos. O tero, a coroa de Cristo, as ladainhas. Saltava-se das redes para rezar
nos oratrios: era obrigao. Andava-se de rosrio na mo, bentos, relicrios, patus, santo- antnios pendurados no
pescoo, todo o material necessrio s devoes e s rezas (...) dentro de casa, rezava-se de manh, hora das
refeies, ao meio-dia e de noite, no quarto dos santos, os escravos acompanhavam os brancos no tero e na salverainha (...) quando trovejava forte, brancos e escravos reuniam-se na capela ou no quarto do santurio para cantar o
bendito, rezar a orao de So Brs, de So Jernimo, de Santa Brbara, acendiam-se velas e queimavam-se ramos
bentos ( FREYRE, 1966, 651).
30
Visita peridica de padres a regies desprovidas de clero, a fim de proporcionar aos fiis os sacramentos da Igreja,
principalmente o batismo e o matrimnio.
30
No sculo XVII, normalmente por carmelitas e franciscanos, no sculo seguinte por oratorianos portugueses e
capuchinhos franceses e, ainda, por capuchinhos italianos e lazaristas, no sculo XIX, considerado o sculo por
excelncia das Santas Misses nos sertes do pas (HOORNAERT, 1989, p.49).
31
Nesse sentido, esclarece Michel VOVELLE (1991, p. 38) que assim como no h uma histria imvel, no h
festa imvel (...) as festas so sempre recriaes e reapropriaes, contendo as paixes, os conflitos, as crenas e as
esperanas de seus prprios agentes sociais.
31
32
Com base nas afirmaes do folclorista Getlio CSAR, o culto das relquias tambm se enquadra na longa
durao, j que o autor aponta que sua legitimidade foi garantida no Segundo Conclio de Nicia, em 789, sob o
pontificado de Adriano I. No entanto, assegura o autor, seu uso j era popularizado pelas antigas civilizaes e relata
como exemplo que na cidade de feso, na Jnia grega, prximo ao templo de rtemis, a deusa da fertilidade,
desenvolveu-se o comrcio de relquias, explorado pelos prprios sacerdotes. Nas festas dedicadas a esta deusa,
romeiros e visitantes, mesmo de regies distantes, adquiriam relquias e pequenas imagens, cultuadas por todas os
extratos sociais. Por isso, grande nmero de ourives trabalhava, durante todo o ano, fabricando relicrios e estatuetas
de rtemis, para poderem satisfazer a imensa freguesia que os procurava durante os festejos em honra a essa deusa
(1975, p. 74). Focalizando o cenrio brasileiro, o autor aponta como exemplo a Igreja da Penha, no Recife, que abriga
vrias relquias que pertenceram a D. Frei Vital Maria de Oliveira, Bispo de Olinda e Recife, como almofada, restos
de seu hbito e outras peas de uso pessoal.
32
alminhas. A finalidade desta penitncia era proporcionar a essas almas, uma reduo
em seu sofrimento, sua purificao e assim, sua entrada mais rpida no paraso.
Gilberto FREYRE apontou que era costume, entre os colonos portugueses,
enterrarem os mortos, praticamente dentro de casa, pois a capela, onde efetivamente
se dava o sepultamento, freqentemente se constitua em uma extenso da casa.
Assim,
os mortos continuavam sob o mesmo teto que os vivos, entre os santos e as flores devotas
(...) santos e mortos eram afinal parte da famlia (...) abaixo dos santos e acima dos vivos
ficavam, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possvel a vida
dos filhos, netos e bisnetos. Em muita casa-grande conservavam-se seus retratos nos
santurios, entre as imagens de santos, com direito luz votiva da lamparina de azeite (...)
tambm se conservavam s vezes as tranas das senhoras, os cachos dos meninos que
morriam anjos (1966, p.14-15).
Jean DELUMEAU avalia que o culto aos santos se difundiu, de forma extraordinria, a partir do sculo XV e no
seguinte e, possivelmente por isso tenha exagerado ao afirmar o politesmo estava prestes a renascer, pois os santos
eram os grandes intermedirios a que se recorria para tudo (1986, p.143).
34
Nesse sentido, Freyre destaca a especial devoo a So Joo e Nossa Senhora do pelos lavradores, alm de Santo
Antonio que mergulhado dentro de uma tina de gua, quando o povo precisa de chuva (1966, p. 344).
33
demorados e difceis casos amorosos, as devotas lhe tiravam o Divino Infante, dos
braos, s o restituindo depois de alcanada a graa (MOTT, 1997, p.187).
Outra prtica denotava intensa familiaridade com o santo. Muitos deixavam sua
imagem, dias seguidos de cabea para baixo, at que um objeto perdido fosse
encontrado, o mesmo se dando no caso de um escravo fujitivo. Esses e outros tantos
exemplos, reforam o que FREYRE classificou de religio afetivizada, pelo estreito
lao entre o devoto e o objeto de sua devoo. No Velho Mundo, afirma o autor, estas
formas de religiosidade popular desapareceram, ou se tornaram bastante restritas, no
final do sculo XVIII, enquanto na colnia, persistiram at mais tarde.
Ainda no perodo colonial, outras expresses religiosas podem ser apontadas,
como aquelas vivenciadas por ermites que, contrrios ordem vigente, decidiam se
isolar, vivendo em recluso. Assim foram os ltimos anos de vida do frei espanhol Pedro
Palcios que buscou exlio num eremitrio nos arredores de Vila Velha (ES), onde
passou a viver de orao e penitncia, s se ausentando para mendigar seu sustento e
o dos pobres e doentes que amparava. De sua ao missionria nasceu o santurio da
Penha de Vila Velha, ainda hoje lugar de romaria e piedade popular.
Alm desse exemplo, Maria Aparecida GAETA (1997) enfatiza que passos
semelhantes foram os do monge portugus Francisco de Mendona Mar que, no final
do sculo XVII, se estabeleceu no Morro da Lapa, no Vale do So Francisco (BA), no
interior de uma gruta35. Com a descoberta de minas aurferas nas proximidades,
garimpeiros descobriram o eremita e, logo a notcia se espalhou. O arcebispo da Bahia,
procurando desmistificar a devoo crescente, mandou buscar Francisco de Mendona,
tornou-o seminarista e quando ele j contava com 49 anos, sagro-o sacerdote, ocasio
em que foi nomeado capelo do Santurio da Lapa, at 1772, data de sua morte.
Supostamente, por sua vontade, manifestada em vida, o monge foi enterrado no interior
da gruta que lhe serviu de abrigo por muitos anos.
Segundo Getlio CSAR, desta sepultura que os romeiros retiravam lascas ou
extraam p, e levavam para casa como se fosse relquia de um santo e remdio para
35
Preso ao cobrar por um trabalho realizado, Mendona Mar aps algum tempo, libertado e libertou seus prprios
escravos, adquiriu uma imagem de So Bom Jesus e distribuiu, entre os pobres, o restante do dinheiro conseguido
com a venda de seus poucos bens. Vestiu uma batina e buscou refgio no isolamento. Depois de longa peregrinao,
se estabeleceu no interior da gruta, conhecida depois como Bom Jesus da Lapa.
34
Data em que a Igreja celebra, desde o sculo IV, a transfigurao de Jesus em luz diante dos discpulos.
Na Metrpole, esclarece Joo Jos REIS (1991), as primeiras datam do sculo XIII, dedicando-se a obras de
caridade, voltadas para seus prprios membros ou para pessoas carentes no associadas. Embora recebessem
religiosos, eram formadas, sobretudo por leigos, por isso muitas se associaram a ordens conventuais, como a dos
franciscanos, dos dominicanos e das carmelitas. O autor ainda aponta que para que essas agremiaes religiosas
funcionassem, era necessrio que encontrassem uma igreja que as acolhessem, e que tivessem seu estatuto aprovado
pelas autoridades eclesisticas.
38
A administrao de cada confraria ficava a cargo de uma mesa, presidida por juzes, presidentes, provedores ou
priores, e se compunha de escrives, tesoureiros, procuradores, mordomos, que dividiam entre si diversas tarefas
convocao e direo de reunies, arrecadao de fundos, guarda de livros e bens da confraria, visita de assistncia
aos irmos necessitados, organizao dos funerais, festas, entre outras. A cada ano, os confrades se revezavam no
exerccio destas funes, por meio de votao. Entre os principais deveres dos dirigentes da confraria, estavam o
bom comportamento, a devoo catlica, o pagamento das anuidades e a participao nas cerimnias civis e
religiosas da associao. Em troca os irmos tinham direito assistncia mdica e jurdica, socorro em momentos de
crise financeira, em alguns casos auxlio para a compra da alforria, alm do direito de um enterro decente para si e
familiares, com acompanhamento dos confrades, e sepultura na capela da associao.
37
35
classe, da sua condio social, pois a fraternidade, naquele momento, era bastante
questionvel. Segundo entendimento de Eduardo HOORNAERT (1989), era essa a
forma pela qual o povo oprimido recriava com sabedoria instintiva sua religio,
refugiando-se nela, como forma de preservar sua identidade.
Em uma anlise tangencial, Mary Del PRIORE aponta que essas agremiaes
religiosas eram uma das poucas formas associativas permitidas populao no
branca que as buscavam no s por razes religiosas, mas porque a participao nelas
representava a fuga marginalizao social (1994, p. 38).
Foi, portanto, na brecha institucional que a irmandade penetrou. Os irmos de
confraria formavam, uma alternativa de parentesco. Cabia famlia de irmos oferecer
a seus membros, alm de um espao de comunho, identidade e socorro nas horas de
necessidade, meios de celebrar bem os santos de devoo, o que representava um
investimento ritual no destino aps a morte.
Se as irmandades expressavam as desigualdades sociais, no seu interior, ao
contrrio, todos eram iguais, com os mesmos direitos, constituindo-se assim, num
terreno onde podia florescer para a populao marginalizada, um sentimento de
dignidade, vivenciada, especialmente por ocasio das festas do Divino, da Folia de
Reis, da Procisso das Almas, das Congadas e das Cavalhadas, quando negros,
pardos e brancos pobres vestiam belas roupas, e carregavam, pelas ruas, os andores e
as cruzes, em procisses coloridas e barulhentas, quase anrquicas, para espanto dos
viajantes, que no encontravam aqui o modelo de religio bem ordenada de sua terra
(REZENDE, 1989, p. 91).
A data mxima do calendrio de uma confraria era a festa do santo de devoo,
pois, segundo REIS (1991), de acordo com a viso barroca do catolicismo,
predominante naquele perodo, o santo no se contentava com a prece individual. Sua
intercesso seria mais eficaz, quanto maior era a capacidade dos indivduos de se
unirem para homenage-lo de forma espetacular. Para receber a fora do santo,
deveriam os devotos fortalec-lo com as festas em seu louvor, ocasio em que se
operava o ritual de intercmbio de energias entre homens e divindades.
Assim, a necessidade de abrilhantar essas cerimnias e o interior de suas capelas
e igrejas, acabou por revelar muitos artesos, escultores, pintores e msicos, uma vez
36
que as irmandades rivalizavam entre si no que dizia respeito aos festejos e procisses.
Cabe ressaltar, no entanto, que nem s de festar viviam essas associaes religiosas.
Sua ao no mbito caritativo, entre negros e pardos, ou ainda, entre brancos pobres,
muitas vezes, era a nica garantia de serem assistidos durante as enfermidades e at
mesmo de terem um enterro cristo (HOORNAERT, 1977, p. 383).
A caridade, assim como a fraternidade, ficava restrita, portanto, entre os irmos,
cabendo a eles a tarefa de amenizar as conseqncias da escravido e da segregao
social. Neste sentido, a Igreja se manteve praticamente ausente, durante toda a
vigncia do regime escravocrata. Oscar BEOZZO justifica que, tal descompromisso da
hierarquia eclesistica se devia, em boa parte, sua subordinao ao Estado brasileiro
que, por sua vez estava assentado no trip Coroa- latifndio- escravismo, resultando
que a grande propriedade delegava Igreja apenas a tarefa pastoral de catequizar os
escravos e animar a sua vida religiosa (1980, p. 264).
Para este mesmo perodo, Riolando AZZI aponta que
a Igreja Catlica, como instituio, no se tornou nem grande promotora, nem participante
destacada nesse movimento. A causa da fraca presena catlica na campanha
abolicionista situa-se na grave crise que atingia ento a Igreja motivada, seja pela
desestruturao do modelo de Cristandade vigente no Imprio, seja pela progressiva
afirmao do modelo tridentino (1992, p. 104)
Por outro lado, o historiador indica que o clero, de formao iluminista, deveria ter
se posicionado, de forma efetiva, na campanha abolicionista, uma vez que a meta
libertria se enquadrava adequadamente no iderio progressista. No entanto, tal lgica,
segundo AZZI, na prtica no se verificou, uma vez que este segmento, naquele
momento, se debatia no interior de sua instituio pois
Por isso, o autor esclarece ainda que, numa tentativa de conter o mpeto de parte
do clero, a partir do Segundo Reinado, foram escolhidos pela Coroa, bispos de profunda
37
38
Amrica
tridentino/ultramontano,
Latina,
entendemos
visava
que
efetiva
esse
modelo
substituio
de
do
catolicismo
catolicismo
39
Giuseppe ALBERIGO esclarece que quando Pio IX dirigiu aos ortodoxos orientais um apelo para que voltassem ao
seio da Igreja catlica e pudessem, assim, participar do Conclio, mais genericamente, fez um apelo tambm aos
protestantes e aos crentes de outras religies. A reao foi claramente negativa, inclusive por causa de certas
formalidades, alimentando mais desconfiana do que simpatia em relao ao prximo conclio (1995, p. 369).
39
lio C. SERPA (1989, p. 3) esclarece que a nomeao para ocupar postos na carreira eclesistica, desde
arcebispos, bispos, at vigrios de parquia tinha que ser referendada pelo Governo Imperial de comum acordo com
os interesses dos chefes polticos locais. Por isso, geralmente, eram escolhidos elementos que fechassem com os
interesses do grupo que estava no poder.
41
Convocado pelo papa Leo XIII, no Natal de 1898 e realizado no comeo do ano seguinte, no Colgio Pio Latino
Americano, esse evento se configurou como um importante reforo para a efetivao da romanizao latinoamericana uma vez que defendia um catolicismo tomista, tridentino, ortodoxo e voltado espiritualidade interior
que, rompendo o isolamento das sacristias, agisse no tempo dessacralizado pela modernidade (GAETA, 1991, p.
332). O perfil da religio, da sociedade e da poltica traado, pouco antes da Primeira Pastoral Coletiva (1890),
segundo Euclides MARCHI (1989), apresentava muitos males a serem combatidos, o que justificava inteiramente a
necessidade de uma ao mais efetiva da Igreja: o esmorecimento da f, o abandono de prticas religiosas,
depravao dos costumes, o egosmo substituindo a caridade, perda do esprito de famlia, insubordinao no lar
domstico, na escola, no exrcito, desacato autoridade, abuso do poder pblico, desenfreamento do luxo com todas
as suas conseqncias, entre outros.
42
Outros nomeados, nesse perodo foram: D. Jos de Moraes Torres, para a Diocese do Par, D. Joo Antonio dos
Santos para Diamantina, D. Lus A. dos Santos para o Cear, D. Pedro Maria Lacerda para o Rio de Janeiro e, para a
diocese de So Paulo, D. Antonio Joaquim de Melo.
43
Do futuro sacerdote, antes encarado como mero funcionrio pblico, cheio de mazelas, vivendo em estado de
concubinato, passou-se a exigir o esforo no sentido de ser atuante e dele se esperava o bom exemplo, o recato,
distanciamento do leigo e fidelidade autoridade episcopal. Os casos de desobedincia eram punidos severamente.
Esperava-se ainda que impusesse sua autoridade, que fosse respeitado, como forma de resgatar a sua credibilidade
religiosa perdida h muito. Para isto, ele era investido na qualidade de um escolhido, enviado por Deus. Portanto,
seu poder extrapolava os limites temporais estava na esfera do transcendental, do sobrenatural e sua misso era
preparar o homem para a outra vida. Tinha o vigrio, ento, o dever de conquistar espao na sociedade, preencher o
vazio, tirar o povo da ignorncia religiosa, da superstio, impor bons costumes e ser o condutor de seu rebanho.
Padres e bispos deveriam caminhar juntos. Respeito hierarquia, disciplina, obedincia, eram pressupostos
indispensveis e indiscutveis (SERPA, 1989, p. 29).
40
Cujos cultos favoreciam a prtica dos sacramentos como a Sagrada Famlia, paradigma do lar catlico, o Rosrio, o
Sagrado Corao, entre outros.
45
To logo foram estabelecidas as diretrizes gerais do regime republicano, a separao entre Igreja e Estado veio de
imediato, causando surpresa e espanto ao episcopado, no pela liberdade que h muito defendia, mas pela posio de
igualdade em relao a outras confisses religiosas.
41
Essas associaes assumiram a direo de seminrios, contribuindo com a moralizao do clero, parquias e
hospitais. Pregavam misses populares e realizavam os retiros espirituais, constituindo-se numa fora viva na obra de
romanizao e europeizao do clero e da Igreja no Brasil. A partir de ento, os bispos enfeixaram em suas mos uma
srie de atribuies: gesto e orientao disciplinar e curricular dos seminrios e casas de formao, definio das
atribuies e carreiras dos padres seculares, ereo de novas parquias e outras circunscries eclesisticas, indicao
de novos membros do episcopado, criao de escolas e de colgios diocesanos, de obras pias e assistenciais, controle
e administrao de obras dos santurios e lugares santos, criao de novas dioceses atravs de campanhas de
arrecadao de recursos, entre outros (WERNET, 1987, p. 183-4).
42
Uma medida importante, nesta estratgia, foi trazer a guarda das imagens dos
santos de devoo popular para os templos paroquiais (matriz ou capela), em
substituio s ermidas e oratrios, onde as imagens eram guardadas por leigos.
Correlatamente a essa medida, ocorreu o controle das romarias, onde ermites foram
substitudos por sacerdotes, especialmente de congregaes religiosas, pois quem tinha
o controle da imagem tinha tambm o controle da festa e da devoo. Isto ocorreu nos
grandes centros de romarias que passando para o controle clerical se tornaram fonte de
tenses entre as prticas de romeiros e o catolicismo romano do clero. Assim, o padre
deixou de ser apenas o celebrante da Missa no dia da festa para tornar-se o principal
festeiro (OLIVEIRA, 1976, p. 139).
Srgio MICELI (1988) avalia que, alm de canalizar os recursos da explorao
econmica de importantes santurios, a Igreja teria se ocupado, sobretudo das festas
religiosas, especialmente as dos santos padroeiros, por considerar esses momentos
uma ocasio propcia para a pregao religiosa ultramontana, j que as romarias,
lideradas por leigos, eram encaradas pelo clero romanizado como superstio e
ignorncia religiosa. Tais comemoraes litrgicas foram objeto de pastorais e
circulares, num esforo do episcopado de difundir, no interior de suas dioceses, cultos
romanizados como a devoo ao Sagrado Corao de Jesus47, em grande
florescimento na Europa e que deveriam substituir as cerimnias populares, pois no
entendimento da Igreja, haviam se tornado secularizadas e paganizadas, uma vez que
os interesses externos haviam superado a crena e a devoo que as havia originado.
Assim, a hierarquia promoveu o desmantelamento das antigas irmandades e
ordens terceiras e as substituiu por outras, como o Apostolado da Orao, a Pia
Associao das Filhas de Maria, a Liga Catlica, a Cruzada Eucarstica, a Congregao
Mariana e as Conferncias Vicentinas, entre outras. Estas, segundo OLIVEIRA (1976)
embora fossem associaes leigas, tinham sua direo subordinada ao vigrio local que
por sua vez se remetia ao bispo e este ao papa, fechando o crculo, segundo o modelo
romano e universalista.
Essas novas associaes, sob controle clerical, alm da devoo ao santo
47
Em 1889, por decreto de Leo XIII, toda a humanidade foi solenemente consagrada ao Sagrado Corao sendo que
esta devoo, surgida na Frana, foi implantada no Brasil pelas ordens religiosas de origem francesa, sobretudo pelos
lazaristas (MICELI, 1988, p. 131).
43
institudo pela Igreja romanizada, eram responsveis pelas festas religiosas que
perderam o seu carter tradicional, festivo, onde o profano e o sagrado se confundiam e
passaram a ser, dirigidas pelos vigrios e, aos poucos, foi acabando com seu carter de
reunio social, esvaziando assim o prprio sentido das irmandades e confrarias.
Nos centros urbanos, a substituio dessas devoes foi um pouco mais fcil, no
entanto, no meio rural, as dificuldades giravam em torno das capelas, construdas quase
sempre por elementos da prpria localidade, que ofereceram uma maior resistncia ao
controle clerical. Jos Oscar BEOZZO afirma que
Caldeiro, propriedade do Padre Ccero, prximo Juazeiro, sob a responsabilidade de um fiel romeiro, Jos
Loureno, considerado um beato. Uma lenda dizia que ele tinha um boi considerado sagrado. Em 1936, o stio foi
atacado porque se configura cada vez mais com Canudos, de Antonio Conselheiro. L tambm foi erguida uma igreja
e havia trabalhadores que cavavam reservatrios de gua, canalizavam rios, lanavam sementes, fazendo prosperar
diversos cultivos em terra rida. Em dado momento, as autoridades entenderam que em Caldeiro se criava um foco de
ameaas ordem estabelecida e, somado a isso, depois da morte de Padre Ccero, muitos consideravam Loureno,
seu sucessor. A prosperidade do stio, atraia novos contingentes de pobres e tambm a determinao das autoridades
para acabar com a comunidade. E a exemplo de Canudos, no se poupou munio at que tudo estivesse destrudo e a
maioria da populao local morta.
49
O cristianismo como crena essencialmente ligada salvao, tem na cruz seu maior smbolo uma vez que remete o
fiel, todo momento, idia do sacrifcio de Cristo para salvar os homens, redimindo-os do pecado. Os espinhos, os
pregos, o martrio, o sangue, a paixo do Cordeiro de Deus permanecem na conscincia dos fiis como smbolo de
salvao. A prpria palavra Cristo, que significa ungido, designa aquele capaz de realizar a aliana dos homens com
Deus, da sua abrangncia para eleito, salvador, o messias. Segundo as Sagradas Escrituras, o retorno do Salvador
ocorrer no dia do Juzo Final. Eis o motivo da intensa expectativa messinica. A esperana da salvao estimula a
crena em profecias e sinais que apontem para o retorno do Cristo. Nessas condies no difcil entender a exploso
de uns tantos movimentos messinicos e o rigoroso combate a eles pelas autoridades eclesiais. Vale ressaltar ainda, a
44
colocarem margem das normas tridentinas, estabelecidas pela Igreja. Rui FAC
(1988) aponta que entre meados do sculo XIX e comeo do seguinte, sucederam
vrios movimentos de rebelio de pobres do campo, de norte a sul do pas, assumindo
as mais diversas caractersticas. Para ele, apesar das especificidades de cada
movimento, houve um ponto em comum entre eles: o choque aberto entre a
religiosidade popular e a religio oficial da Igreja dominante, uma vez que essas
populaes rurais, mergulhadas no analfabetismo e no obscurantismo, s poderiam se
expressar atravs de um sentimento religioso, mstico, que se convencionou chamar de
fanatismo, em que pobres insubmissos acompanhavam conselheiros, monges ou
beatos surgidos no interior, como imitaes dos sacerdotes catlicos ou missionrios do
passado.
Antonio Conselheiro, lder do crescimento de Canudos, contrrio aos interesses,
tanto das autoridades civis, quanto das eclesisticas, foi acusado de pregar doutrinas
subversivas, fazer grande mal religio e ao Estado, distraindo o povo de suas
obrigaes e arrastando-o para si, insurgindo-se contra as autoridades constitudas, s
quais no obedecia e mandava desobedecer (MONTEIRO, 1977, p. 59).
Juazeiro do Norte, palco de um suposto milagre, dada as graves implicaes
teolgicas deste reconhecimento, basicamente ligada idia de uma Segunda
Revelao, colocou em plos opostos um bispo combativo e um padre51 cuja
popularidade crescia rapidamente (Ibid, p.44).
No Contestado, em torno do monge Jos Maria52, agruparam-se posseiros
importncia dos movimentos messinicos medievais, que ao lado das cruzadas e das seitas herticas se relacionavam
com o ideal de pobreza, considerado um meio de aproximao com Deus. O socilogo francs Henri DESROCHE
(1989), um dos maiores estudiosos do messianismo, concebe tais manifestaes como movimentos sociais enraizados
profundamente na esperana, j Vittorio LANTERNARI, outro grande conhecedor do assunto, vai mais longe. Para
ele, o messianismo , em sua essncia, a religio dos oprimidos, pois da Idade Mdia, at o sculo XIX, a Europa
conheceu muitos movimentos messinicos e na medida que os europeus conquistavam povos de outros continentes,
implantava em suas conscincias a doutrina crist. O messianismo permaneceu como alternativa de resistncia dos
povos dominados, j que conquista material e conquista espiritual caminharam sempre juntas (1974, p. 44).
50
A situao dos pobres do campo no fim do sculo XIX (...) era mais do que natural, era legtimo, que esses homens
sem terras, sem bens, sem direitos, sem garantias, buscassem uma sada nos grupos de cangaceiros, nas seitas dos
fanticos, em torno de beatos e conselheiros, sonhando em conquistar uma vida melhor (FAC, 1988).
51
Padre Ccero, o Padim Padi Cio dos sertanejos.
52
Elio C. SERPA (1989) identificou que entre a segunda metade do sculo XIX e a segunda dcada do sculo
seguinte, a regio do Planalto Serrano catarinense esteve envolvida no aparecimento de trs homens, a quem a
populao local creditava poderes sobrenaturais. Apesar de portarem traos diferentes entre si, na viso dos adeptos,
eles seriam um s. O primeiro foi Joo Maria de Agostinho, um anacoreta piemonts, que segundo o autor, s se
alimentava de frutos e leite ofertados e se recebia outros alimentos, os distribua aos pobres. Peregrinou por vrias
45
expulsos de suas terras pela ao dos coronis locais e da construo de uma ferrovia.
Marginalizados e empobrecidos, os sertanejos perambulavam por localidades
disputadas por catarinenses e paranaenses. Em conflito com esses ltimos, iniciaram
um confronto armado. Duglas MONTEIRO se refere a ele como
46
futuro, ocupariam os cargos pblicos. Assim, a ruptura entre o Estado e a Igreja, apesar
de oficial, resistia, no setor educacional, especialmente o das ordens religiosas
(MARCHI, 1989).
Por outro lado, o discurso catlico, durante toda a primeira metade do sculo
passado, era pautado pelo slogan de um Brasil catlico. Para Artur Cesar ISAIA, essa
representao sugeria uma cumplicidade entre Estado e Igreja uma vez que
compartilhavam valores e inimigos. Nesse sentido, a Igreja Catlica se apresentava
opinio pblica como a verdadeira alma nacional nos quatro sculos da existncia do
Brasil, e reclamava para si um papel proeminente como porta-voz das aspiraes
nacionais, isto , a Igreja se qualificava como a instituio mais importante para a
manuteno da unidade, da paz e dos ideais nacionais (1996, p.219).
Sem discordar das caractersticas do discurso catlico, apontadas por ISAIA,
Euclides MARCHI ressalta, no entanto, a enorme distncia entre este discurso oficial e
as prticas religiosas do povo, marcadas por crendices e supersties, garantindo assim
a manuteno de uma f que a Igreja oficial no reconhecia, nem controlava (1986,
p.254).
Esta f, segundo a viso deste historiador, fundamentava-se em smbolos e ritos,
objetivamente significativos mas no identificados com a orientao da Igreja Romana.
Por isso,
que comeavam a
54
48
49
Logo aps o Vaticano II, foi transferido para a Arquidiocese de Olinda e Recife, onde deu incio a um dos maiores
programas sociais ali desenvolvidos, a Operao Esperana, ajudando os flagelados e incentivando o surgimento de
lideranas populares para transcender o mero assistencialismo. As obras de Dom Hlder repercutiam
internacionalmente, assim como as denncias de tortura, durante o regime militar. Foi indicado quatro vezes ao prmio
Nobel da Paz (entre 1970 e 1973). Em todas elas era favorito absoluto, mas a presso do governo brasileiro funcionou
e o arcebispo nunca levou o prmio (ISTO ESPECIAL, edio 1552, dezembro de 2000, p. 11).
56
Fundada em 1954, inclua todas as ordens e congregaes religiosas estabelecidas no pas.
50
51
Esta iniciativa, em 1958, sob o estmulo de D. Eugnio Salles, ento bispo administrador apostlico da Arquidiocese
de Natal, era pioneira na experincia brasileira de escolas radiofnicas inspiradas no modelo em curso na Colmbia.
No entanto, a originalidade e a experincia brasileira contava com a introduo de aspectos sociais, comunitrios,
religiosos e de conscientizao poltica. Nesse sentido a alfabetizao transcendia as primeiras letras e resultava numa
educao de base, levando a CNBB a adot-la e a estend-la por vrias regies do pas. D. Salles foi o primeiro
presidente nacional do Movimento de Educao de Base - MEB.
58
Organizadas por Francisco Julio, em Pernambuco e na Paraba, entre 1955 e 1964, como forma de resistncia dos
pequenos agricultores e trabalhadores, que, muitas vezes, recorriam s armas contra os desmandos dos latifundirios e
defendiam uma reforma agrria radical.
52
Dele resultou o Plano de Pastoral de Conjunto (1966-70), com reflexes teolgico-pastorais, base da ao da Igreja
de Norte a Sul do pas, atravs de seis linhas de ao: Promoo da Unidade (padres, religiosos, Ministros da Palavra,
dos Sacramentos e da Caridade Social, movimento leigos e rgos da administrao eclesial); Evangelizao de todos
que estivessem margem do Evangelho; Catequese, proclamando a doutrina e o compromisso com a f; Liturgia com
participao ativa na Eucaristia e demais sacramentos; Ecumenismo, acabando com preconceitos, organizando
servios sociais em comum e realizando encontros com telogos e pastores de diversas Igrejas; Promoo Humana,
com destaque para a educao e a sade (ARNS, 1981, p. 90-91).
60
Faustino TEIXEIRA salienta que se esta experincia preterida em algumas anlises acerca da gnese das
comunidades Eclesiais de Base - CEBs, de um modo geral, ela aceita como exemplo de emergncia leiga e da
desclerizao (1991, p. 569).
61
Que funcionava em termos de realimentao das outras, sem que se delimitasse um perfil de autoridade, seno a da
hierarquia da Igreja (COSTA, 1986, p.57).
53
da populao marginalizada, uma vez que este programa se estruturou de acordo com
a filosofia e a pedagogia de Paulo Freire, mentor metodolgico e ideolgico dessa
prtica de alfabetizao que visava, no somente, o ensino das primeiras letras, mas
sobretudo, o desenvolvimento comunitrio, tcnicas agrcolas, noes de democracia
poltica e direito sindical62.
Teoricamente
para
os
bispos
envolvidos,
essa
ao
educacional
era
transformadora e, de acordo com Mrcio Moreira ALVES, nada tinha a ver com o
socialismo, pois visava, sobretudo, ajudar os marginalizados a se defender contra as
ideologias incompatveis com a idia crist de nao (1979, p. 142).
Essa experincia empreendida pela Igreja brasileira, de forma bastante intensa at
1964, sofreu um forte abalo com a apreenso de milhares de exemplares da cartilha
Viver Lutar, poucas semanas antes do golpe militar. Com a imposio do regime
ditatorial processou-se o desmantelamento do projeto inicial e o MEB passou a ser
dirigido por um episcopado mais conservador.
No entanto, a semente de uma ao pastoral participativa estava lanada apesar
da impossibilidade de se manter qualquer rgo que propusesse participao e
conscientizao. Lentamente, em grupos reduzidos, pequenas comunidades, em reas
rurais ou, espalhadas pelas periferias das grandes cidades, esses ideais estavam sendo
gestados.
62
Um total de quase 390 mil alunos concluiu o curso de alfabetizao para adultos, entre 1961 e 1965, segundo dados
divulgados, em 1982, pela prpria instituio (Apud COSTA, 1986, p.125).
54
63
Ralph DELLA CAVA e Paula MONTEIRO (1991, p. 90) avaliaram que esse trabalho de Gervsio F. de
QUEIROGA o relato mais acabado e definitivo sobre a CNBB, eclesistico e cannico em sua natureza.
55
56
Gaudium et Spes- A Igreja no Mundo de Hoje A Constituio Pastoral do Conclio Vaticano II.
57
Por este posicionamento, avaliamos que, apesar dos esforos e dos avanos, a
hierarquia eclesial ainda concentrava, sob sua responsabilidade, a definio das
manifestaes de religiosidade dos fiis, recusando-lhe aquelas que no fossem
legitimadas e institucionalizadas65.
Como fruto da prpria vivncia das CEBs, justifica MATOS (1986), expandia-se o
sentido de pertena ao corpo eclesial, o elo estruturante e identificador destas
comunidades, cuja singularidade estava no fato de que o leigo comeava a assumir a
Igreja na base, redescobrindo e revalorizando elementos essenciais da identidade da
Igreja.
Pedro Ribeiro de OLIVEIRA (1994), especialista em Sociologia da Religio,
identifica as CEBs como uma inovao pastoral e refora que elas se constituam em
ncleos mnimos de uma comunidade eclesial que tanto podiam ser rurais como as das
periferias urbanas, que organizavam sua prpria catequese e seu culto dominical, desde
que se relacionassem, com as demais, em p de igualdade e no como matrizes
paroquiais. Mesmo porque, afirma OLIVEIRA, 75% das comunidades apresentam um
conselho comunitrio ou uma equipe de coordenao sob responsabilidade de leigos e
leigas que desempenham muitos servios66 e ministrios que antes estavam fora do
seu alcance (1944, p. 933).
Nessa mesma linha de raciocnio, Leonardo BOFF (1984) argumenta que no era
comum nas comunidades se verificar um processo de institucionalizao do poder. Ao
contrrio, havia o reconhecimento de algum ou de uma equipe de coordenadores.
Orava-se, nessa ocasio, para
realar o carter religioso da funo e para o bom andamento dos trabalhos de toda a
comunidade, mas sem qualquer carter de investidura. Essa tendncia, de no conferir um
significado institucional ou oficial aos ministrios, visava evitar que as autoridades
65
Aprofundamos esta temtica no artigo CEBs e TL: dois lados de uma mesma moeda, publicado pela revista
Estudos de Histria, da UNESP- Franca, durante o perodo de elaborao desta tese.
66
Havia os evangelizadores populares, os cantadores que em rima e prosa proclamavam as verdades da f, os que
produziam uma literatura popular em quadrinhos e promoviam dramatizaes, outros que se ocupavam da Primeira
Comunho das crianas, ou do Curso de Noivos, enquanto outros assumiam funes comunitrias referentes
caridade, visitando doentes, assistindo idosos, organizando a subsistncia dos desempregados, enquanto outros ainda,
se encarregavam da alfabetizao de adultos, ou de grupos de estudo das leis trabalhistas ou do Estatuto da Terra
(BOFF, 1984, p. 346).
58
O termo inculturao um neologismo criado no decorrer dos debates sobre o V Centenrio do Descobrimento do
Amrica e pretende indicar o relacionamento, em p de igualdade entre a evangelizao e as culturas locais
(REGIDOR, 1996, p.22).
59
Analisando o alcance dessa vivncia crist, o autor advoga que sua influncia se
restringe minoria das Igrejas latino-americanas pois, na maioria, predomina uma
tendncia conservadora ou moderada, mas destaca que o impacto causado por ela,
est longe de ser desprezvel, sobretudo no Brasil, onde a CNBB, apesar de insistente
presso do Vaticano, recusou-se a conden-la (Ibid., p. 65).
Thomas BRUNEAU (1985), historiador norte-americano e especialista em Igreja
68
60
Equipes de especialistas que atuavam com os bispos nas conferncias episcopais, preparando instrues e propondo
planos para as pastorais e algumas vezes redigindo suas declaraes. Economistas, socilogos, planejadores urbanos,
telogos e advogados constituram uma espcie de aparelho intelectual leigo da Igreja que introduzia na instituio os
ltimos acontecimentos sociais, o que na Amrica Latina, a partir da dcada de 60, significava sociologia e economia
marxistas (teoria da dependncia). A influncia dessas equipes foi decisiva para a formulao de certos documentos
do Episcopado brasileiro na preparao da Conferncia de Medelln (1968) e assim por diante (LWY, 2000, p. 73).
71
No entanto, apesar da proibio, os telogos da libertao estiveram presentes como colaboradores dos bispos,
exercendo grande influncia, mesmo que indireta, nos debates em plenrio (JURKEVICS, 2002, p. 239).
61
O batismo no Esprito Santo tem como referncia bblica a passagem de Atos 2, 1-13 que narra o acontecimento de
Pentecoste. Era a 2 das trs festas em que todo israelita tinha que comparecer diante de Jav. Tambm conhecida
como a festa da colheita do trigo, portanto uma celebrao agrria, comemorada 50 dias depois da Pscoa. Nessa
reunio confluam a Jerusalm peregrinos vindos de todas as partes. Aps a morte de Jesus, segundo o Novo
Testamento, o Esprito Santo desceu sobre a comunidade crist de Jerusalm na forma de lnguas de fogo. Todos os
apstolos cheios do Esprito Santo, comearam a falar em lnguas. (CARRANZA, 2000, p. 86).
62
O falar em lnguas estranhas, que se manifesta em ritual de transe, entendido como carisma ou Dom de Deus,
fundamental identidade dos pentecostais evanglicos, foi incorporado prtica religiosa dos catlicos que seguiam o
movimento carismtico que ento nascia (PRANDI, 1997, p. 33).
63
clima festivo, marca diferencial de outros grupos catlicos, ao mesmo tempo que os
aproximava dos pentecostais evanglicos.
Ari Pedro ORO (1996) identificou que tanto o ambiente quanto a dinmica dos
rituais postos em prtica contribuem para a expresso das emoes. Para os
pentecostais, diz ele, os templos apesar de sua sobriedade em smbolos religiosos e
independentemente do seu tamanho, dificilmente dispensam um servio de sonorizao
que, de forma estratgica, intercala msicas romnticas com hinos apoteticos. Durante
os rituais, o som manejado de tal forma que sua ampliao ou diminuio contribui
para elevar o clima emocional.
Ao se debruar sobre os grupos carismticos de orao, o socilogo Luiz Roberto
BENEDETTI (1995) identificou, entre os fiis, uma satisfao espiritual, desligada,
simblica e ideologicamente, de suas experincias materiais e que na experincia
cotidiana se confronta com conflitos pessoais e de classe. Para este autor, o mundo
objetivo, das relaes de produo, e de reproduo da existncia humana,
permanecem, exteriores a esses grupos o que torna bastante difcil que eles se tornem
efetivos agentes de transformaes sociais.
O movimento carismtico catlico brasileiro se expandiu no contexto da ditadura
militar, numa trajetria semelhante a outros pases latino-americanos, mas aqui no se
tem notcias de confrontos entre o poder poltico e os carismticos74. Monique
HERBRARD apontou que os primeiros atritos surgiram no na relao da RCC com
outros segmentos da sociedade, ao contrrio, antes eles estiveram presentes no interior
da prpria Igreja, a comear por sua denominao. Por favorecer interpretaes
errneas aos poucos, a expresso pentecostalismo catlico foi substituda por
Renovao Carismtica Catlica75.
Reginaldo PRANDI identificou nesses grupos o ponto alto da vida carismtica pois,
neles as pessoas podem vivenciar as mais diversas formas de adorao e louvor
74
Cabe lembrar que nesse mesmo perodo, a Igreja foi sem dvida, um espao fundamental, seno nico possvel para
as organizaes populares, tornando-se foco de oposio ao governo ditatorial. No entanto, esse papel no foi
desempenhado pelos carismticos que direcionavam suas aes em outras direes. Antes, foram os membros das
comunidades eclesiais que ao lado de militantes da esquerda, se constituram em um grupo de resistncia bastante
significativa.
75
A CNBB justificou a alterao pois, a expresso pentecostais representava um incmodo j que pentecostal ou
seita era a designao pejorativa dos evanglicos que no pertenciam s Igrejas Histricas (Comunidade Mensal de
Junho de 1973, p. 645-55).
64
sentido,
posicionando-se
muito
prximo
dos
neopentecostais,
os
76
LE GOFF alerta para a importncia do sobrenatural e do miraculoso para o cristianismo apesar de ter identificado
em alguns momentos uma espcie, se no de rejeio, pelo menos de represso ao maravilhoso, enquanto em outros,
segundo o medievalista, ocorreu uma irrupo deste maravilhoso, explicvel no somente pela fora de uma presso
mas, sobretudo pela capacidade da Igreja recuper-lo e domestic-lo (1983, p. 21- 23).
65
77
66
67
78
Identificado por muitos como o papa da modernidade, Joo XXIII destacado como o idealizador de um novo
tempo da Igreja, a partir dos objetivos que culminaram com o Conclio Ecumnico Vaticano II. Jos COMBLIN
(1981), por exemplo, considera que o Conclio foi, ao mesmo tempo, um dos principais sinais e fatores de uma das
grandes transformaes da histria da Igreja, o que de certa forma justifica o aggiornamento atribudo ao papa.
79
Em sua edio de 01.02.1959, o jornal VOZ DO PARAN, anunciava a convocao papal para a realizao de um
Conclio Ecumnico cuja tarefa principal era procurar a unio das igrejas separadas para realizar o retorno de todos os
cristos unidade da verdade da Igreja de Cristo. O jornal informa que tal disposio deve-se em boa aparte ao
do papa, durante vrios anos, como Visitador Apostlico na Bulgria, na Turquia e na Grcia, pases resistentes ao
catolicismo romano.
80
Anunciado em 1959 e publicado somente em 1983.
68
denominando- o de
Vaticano II, portanto, um novo conclio e no apenas uma retomada do anterior. Nessa
81
Em 1870, o papa Pio IX recusou-se a reconhecer a autoridade real de Vitor Emanuel II, aps os exrcitos italianos
terem submetido Roma, confinando-se no Vaticano e recusando as propostas de entendimento e as garantias da
independncia do poder poltico sobre o clero. Esta pendncia, conhecida como Questo Romana, estendeu-se at
1929, quando foi resolvida pelo Tratado de Latro, assinado entre Mussolini e o papa Pio XI, criando o Estado do
Vaticano, encravado em Roma mas politicamente independente, sob chefia direta do papa.
82
Muitos anos mais tarde, o semanrio catlico VOZ DO PARAN esclarecia que a infabilidade papal e, portanto, da
Igreja, quando estabelecida, em 1870, teve por principal objetivo dar aos catlicos uma garantia de sua f, j que,
sendo uma verdade absoluta e no relativa, essa enunciao no poderia ser conduzida ao sabor dos ventos.
Contextualizando a proclamao do dogma, num perodo dominado pelo racionalismo, todas as questes de f e moral
eram analisadas luz da razo, ocasionando o aparecimento de vrias verdades sobre os mesmos assuntos especficos,
o que punha em perigo a unidade da Igreja, obrigando-a, portanto, a tomar uma posio que a fortalecesse como nica
fonte da verdade a verdade absoluta (15.06.73, p. 4).
83
Os Conclios Ecumnicos nada tm a ver com o movimento ecumnico dos nossos dias. De acordo com as
disposies do Direito Cannico, os Conclios Ecumnicos so as assemblias de bispos e de outros detentores do
poder jurisdicional que, convocados pelo Papa e sob a sua presidncia, tomam decises sobre assuntos relativos f
crist e disciplina eclesistica sendo que suas resolues dependem da confirmao pontifcia (VOZ DO PARAN,
01.07.1987, p. 5).
O Unitatis Redintegratio Documento do Conclio Vaticano II sobre o Ecumenismo define o Movimento Ecumnico
como as atividades e iniciativas que so suscitadas e ordenadas, segundo as vrias necessidades da Igreja e
oportunidade dos tempos, no sentido de oferecer a unidade dos cristos.Tais como: esforos para eliminar palavras,
juzos e aes que segundo a eqidade e a verdade, no respondem condio de irmos separados e, por isso, tornam
mais difceis as relaes com eles; depois, o dilogo estabelecido entre peritos competentes, em reunies de cristos de
diversas igrejas em que cada uma explique mais profundamente a doutrina da sua comunho e apresente com clareza
as suas caractersticas. Com este dilogo todos adquirem um conhecimento mais verdadeiro e um apreo mais justo da
doutrina e da vida de cada comunho (...) Ento, palmilhando este caminho, superando pouco a pouco os obstculos
que impedem a perfeita comunho eclesistica, todos os cristos se congregam numa nica celebrao da Eucaristia e
na unidade de uma nica Igreja (...) Ns cremos que esta unidade subsiste inamissvel na Igreja Catlica e esperamos
que cresa de dia para dia, at a consumao dos sculos.
69
proferida pouco antes da abertura oficial do Conclio, em que o papa sublinhava que
face aos pases subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta tal como e deseja ser: como
a Igreja de todos e particularmente dos pobres (VOZ DO PARAN, 12.09.1962, p. 4).
Giuseppe ALBERIGO (1995) aponta que uma vez iniciados formalmente os
trabalhos conciliares, no final de 1962, os debates anunciavam a importncia de que a
hierarquia eclesistica se interrogasse sobre questes de fundo e se conscientizasse
70
que seu trabalho no se limitava ao mbito interno da Igreja Catlica, pois tinha
repercusses muito mais amplas e que as linhas delineadas na fase preparatria e no
discurso de abertura iam assumindo contornos cada vez mais precisos e exigentes84.
Com exceo da reforma litrgica, nada do que tinha sido previamente preparado,
obtivera consenso. Ao final da primeira fase, a imprensa mundial parece ter captado,
um certo clima de insegurana, pois se temia que no intervalo entre esta e a segunda
fase, grupos mais conservadores conseguissem pressionar e influir no encaminhamento
das discusses ou ainda, que a presena de observadores ortodoxos fosse interpretada
como uma diminuio da primazia romana.
A suspenso da assemblia, por um perodo de quase nove meses, no entanto,
no confirmou tais temores. Naquele momento, uma comisso permanente discutia
projetos de diferentes inspiraes, como o romano, o belga, o francs e o alemo,
tradicionalmente fortes. Apenas um outro provocou surpresa, o elaborado pelo
episcopado chileno, que se revelou
84
O jornal catlico VOZ DO PARAN, em sua edio de 16 de dezembro de 1962, afirmou que, contrariamente o
que muitos pensavam, o Conclio Vaticano II no estava reunido para tirar as batinas dos padres, eliminar o celibato
ou mesmo abolir a latim das missas, pois estas questes so regras disciplinares e os maiores e mais profundos
objetivos, se referem a uma renovao de base, como o incremento da f, a renovao dos costumes do povo cristo e
uma melhor adaptao eclesistica s atuais circunstncias. Mais adiante, o articulista finaliza, afirmando que a
renovao da f a mais urgente necessidade da Igreja, inclusive se no fosse esse o primeiro ponto, o Conclio no
teria sentido.
85
O Secretariado Nacional de Pastoral Operria (1982) ao contextualizar esse documento aponta para o crescimento
do conflito leste (bloco socialista) e oeste (bloco capitalista), na busca da hegemonia mundial materializada em 1960,
pelo governo norte- americano pela implantao de uma poltica externa anticomunista, pelo rompimento com o
governo de Havana, enquanto a China comeava a se opor ao governo sovitico e na Amrica Latina, as ditaduras
militares comeam a ser implantadas (brao direito do imperialismo norte- americano). Em 1962, o monoplio do
controle de energia nuclear americano rompido com a exploso da primeira bomba atmica francesa .
71
Aps um curto mas expressivo pontificado e sem ter visto a finalizao de sua
obra, morria Joo XXIII86, cumprindo em parte o que se esperava por ocasio de sua
eleio, um papa de transio. No porque fosse um papa de perfil pouco definido, mas
porque o Conclio encontrava-se ainda em andamento. No entanto, enfatiza Monsenhor
Roberto M. ROXO inegvel, a importncia de sua iniciativa, com a retomada de
temas como caridade e unidade, estreitamente ligados pela renovao da atitude
espiritual e das estruturas eclesiais (1967, p. 78).
Eleito no conclave de novembro de 1963, Joo Batista Montini, como Paulo VI
(1963-1978),
imediatamente
defendeu
continuao
da
herana
recebida,
86
O pastor Westphal, presidente da Federao Protestante da Frana teria declarado que , sem dvida, a primeira
vez que ns, protestantes choramos um papa. A imagem de Joo XXIII emerge como um marco, um divisor de guas
que, nos poucos anos em que ocupou o trono de So Pedro, teve mais impacto no rumo dos acontecimentos, na Igreja
e fora dela, do que a maioria de seus antecessores (VOZ DO PARAN, 30.06.1963, p. 2).
87
Declarao Nostra Aetate, de 28/10/1965, de Paulo VI: Como to grande o patrimnio espiritual comum a
cristos e judeus, este Sagrado Conclio quer fomentar e recomendar o conhecimento mtuo e a estima entre eles, o
que se consegue sobretudo por meio de estudos bblicos e teolgicos, como tambm com o dilogo fraterno.
88
Por mltiplas razes a Igreja reconhece-se unida aos batizados que se honram do nome de cristos, mas no
professam integralmente a f, ou no mantm a unidade de comunho sob o sucessor de Pedro (...) o Esprito suscita
em todos os discpulos de Cristo o desejo e a ao, para que todos, do modo estabelecido por Cristo, se unam
pacificamente num s rebanho, sob um nico pastor. Para o conseguir, a Igreja, verdadeira me, no deixa de rezar, de
esperar, e de atuar, exortando os seus filhos a purificarem-se e renovarem-se, para que sobre a sua face resplandea
mais brilhante o sinal do Cristo (Lumem Gentium De Eclsia, 15).
72
anti-semitismo catlico, mas sobretudo, dos padres rabes que temiam que este ato
fosse explorado politicamente pelos sionistas e pelo recm criado Estado de Israel. Por
outro lado, a proposta de aprovar a liberdade religiosa no s como reivindicao dos
direitos da Igreja Catlica, mas tambm como reconhecimento de liberdade de
conscincia, encontrou, segundo COMBLIN (1968, p.878) reservas profundas em
vrios setores do conclio, talvez at por causa de uma formulao at ento pouco
aprofundada teologicamente.
Em fins de 1964 ocorreu a terceira fase de trabalhos, que contou entre os
observadores, com delegados do patriarcado de Constantinopla, como resultado da
peregrinao do papa Terra Santa89, e tambm de outras Igrejas ortodoxas.
Entre outros temas, o texto da liberdade religiosa, era considerado bastante difcil
j que as expectativas a respeito eram particularmente intensas, sobretudo por parte do
episcopado de pases caracterizados por pluralismo religioso e confessional. Superado
o problema do ttulo do documento Ecumenismo - uma vez que, liberdade, parecia
ousado demais para alguns e, tolerncia soava como algo obsoleto e fora de poca, o
passo seguinte era fundament-lo teologicamente.
As divergncias, ao que tudo indica, superaram muito o esperado, pois a
apresentao de mais de 2000 emendas, exigia um novo perodo de elaborao na
comisso formada para esse fim. Mesmo porque, um aspecto sublinhava uma
singularidade que poderia transformar-se em inferioridade acerca das Igrejas orientais
por apresent-las apenas como apndice da Igreja romana o que contrariava a nova
expectativa que focava o princpio da comunho entre as Igrejas locais. Alm disso,
considerava-se que a ausncia no conclio, de bispos ortodoxos, melindrava qualquer
deciso e poderia aprofundar ainda mais a diviso j existente.
Tornava-se, pois, evidente a carncia de uma reflexo teolgica suficientemente
avanada que pudesse servir de base para um texto conciliar de flego, uma vez que
no se recusava o dilogo, mas esperava-se um tempo mais propcio para inici-lo, de
modo mais eficaz, pois a Igreja estava em pleno processo de transformao.
89
O Patriarca de Constantinopla entendeu essa viagem como ecumnica s fontes e manifestou seu desejo de se
encontrar pessoalmente com o papa. Tais fatos foram considerados, por muitos, como decisivos para a melhoria das
relaes entre a ortodoxia e a catolicidade romana (AUBERT , 1976).
73
Este tambm era o maior problema para o esquema acerca da relao entre a
Igreja e o mundo. Uma reao compreensvel, segundo ALBERIGO, porm no
desprovida de riscos, alimentava-se sobre a obra do conclio, sem levar em contas a
quase completa ausncia de uma reflexo espiritual e doutrinria (1995, p. 424).
Nestas condies, alguns defendiam que depois da Igreja se definir a si mesma,
deveria empenhar-se nos problemas do mundo com clareza e generosidade, enquanto
outros sustentavam que
esse esquema era apenas um incio de discusso, a ser completada nos prximos
decnios e, por isso, afirmavam que a contribuio mais eficaz que o conclio podia dar a
um autntico dilogo entre a Igreja e o mundo, consistia em desenvolver coerentemente a
renovao da Igreja mesma, o que timidamente, j havia comeado (ALBERIGO, 1995,
425).
90
Tanto na questo litrgica (ritos e lnguas), como institucional (patriarcados, snodos, escolha de bispos) e
disciplinar.
91
Cada bispo o princpio e o fundamento visvel da unidade, na sua Igreja particular, formada imagem da Igreja
Universal, est em todas as Igrejas particulares e, de todas, resulta a Igreja Catlica uma e nica. Por isso, cada bispo
representa a sua Igreja e todos, juntamente com o Papa, representam toda a Igreja no vnculo da paz, do amor e da
unidade (Lmen Gentiun, 23).
74
75
92
Somente nos anos imediatos, esses episcopados tiveram oportunidade de discutir seus problemas especficos: 1968,
II CELAM, em Medelln, 1969 Simpsio Pan- Africano dos Bispos, em Kampala, capital ugandense, e em 1970, na I
Conferncia dos Bispos Asiticos, em Manila, nas Filipinas.
93
Para muitos, depois de Medelln, pode-se falar em uma pastoral latino-americana pois ali ocorreu o encontro entre a
realidade e as aspiraes do homem latino- americano.
76
Esta a hora dos pobres, dos milhes de pobres que esto por toda a terras, esta a
hora do mistrio da Igreja, me dos pobres, a hora do mistrio de Cristo, sobretudo do
pobre. Por conseguinte, a mais profunda exigncia do nosso tempo incluindo nossa
grande esperana de promover a unidade de todos os cristos, no seria satisfeita, seria
ao contrrio, frustrada, se o problema da evangelizao dos pobres do nosso tempo fosse
tratado no Conclio como tema que se junta aos outros. Com efeito, no se trata de um
tema qualquer, mas num certo sentido, do nico tema de todo o Vaticano II (Apud
GUTIRREZ, 1996, p. 117)
A resposta a este clamor, segundo Jos BEOZZO (1998), foi a proposta dos
bispos, expressa no mesmo documento citado acima, em que
O entendimento deste conceito se fundamenta na explicao de Alba ZALUAR, que afirma que De um ponto de
vista meramente descritivo, seriam todos aqueles que esto includos nas faixas de renda mais baixas (at 3 a 5 salrios
mnimos) ou os que exercem as atividades pior remuneradas da economia nacional. Entre eles esto obviamente os
operrios e assalariados do tercirio semi ou no qualificados e que recebem baixos salrios em virtude da poltica
salarial vigente, bem como os trabalhadores por conta prpria pouco ou no especializados, quer sejam estabelecidos
ou no. Esta seria a classificao objetiva e exterior, que apenas os inclui nas mesmas estatsticas, tal como acontece
na literatura tecnocrtica (...) Como categoria de auto-identificao, no h dvida de que o trabalhador pobre toma
como referncia uma certa homogeneidade nas condies de vida. Eles se reconhecem, segundo certos smbolos, como
um igual entre vizinhos, parentes, colegas e conhecidos, referem-se justamente a essa homogeneidade social
demarcada pelos limites da renda, criada na convivncia dos bairros pobres, reinventada nos diferentes arranjos que as
vrias tradies e opes culturais permitem e das quais parecem valer-se sem preocupaes com a ortodoxia ou com
escolhas definitivas. Tudo se passa como se a relativa excluso que os pobres sofrem nos campo educacional e
poltico, terminasse por faz-los compartilhar de alternativas culturais, religiosas e polticas cuja unidade est na
presena de um mesmo conjunto heterogneo, mas limitado de prticas e projetos que podem ser utilizados de modo
alternado, sucessivo ou simultneo (1985, p. 33-34).
95
Documento de Medelln doravante identificado como DM, acompanhado do nmero do pargrafo.
77
explorao
ou
opresso.
Para
ele,
havia
situaes
de
Numa clara aluso teoria do desenvolvimento baseado na cooperao e assistncia, entre o 1 e o 3 Mundo,
materializada no projeto Aliana apara o Progresso, que previa o envio de misses tcnicas de diferentes setores,
bolsas de estudos, etc (MONDIN, 1980, p 27).
97
De agora em diante, grafada como TL.
78
Posicionamento semelhante foi expresso por GALILEA, quando este apontou que
esse posicionamento dos bispos latino- americanos se insere na encclica Pacem in Terris,
de Joo XXIII, em que a expresso sinal dos tempos uma metfora para uma nova
conscincia histrica no interior da Igreja. No como sinais repetitivos do tempo circular da
natureza, mas um tempo histrico cuja conscincia est vinculada irrupo da
modernidade (...) Medelln significou a contextualizao do compromisso religioso com a
realidade humana, uma vez que o paradigma sinal dos tempos98 apontava para a
continuidade da revelao de Deus ( ...) Medelln, procurou decifrar os sinais dos tempos a
partir dos sujeitos preferenciais de Deus (1998, p. 852-53).
98
Para substanciar seu pensamento, o autor aponta que sete dos dezesseis documentos conclusivos de Medelln fazem
aluso ao sinal dos tempos que materialmente lembram os valores da juventude, a nova cultura das imagens e o
novo sujeito com suas funes nas Comunidades Eclesiais de Base CEBs, entre outros, enquanto em outros textos,
prevalece a insero da Igreja no tempo e na histria, pois os sinais dos tempos, que em nosso continente se manifesta
sobretudo no campo social, constituem um lugar teolgico (SUESS, 1998, p .854).
79
80
Em outra obra, Igreja, carisma e poder, Leonardo BOFF, aborda sociologicamente o carter popular da Igreja
afirmando que a Igreja Popular constituda majoritariamente, mas no exclusivamente, por pessoas anteriormente
marginalizadas no campo social ou por fiis dispersos e/ou mal assistidos no campo eclesial que se organizaram em
comunidades e grupos de reflexo e de ao. E junto com eles, uma parcela importante da Igreja, como bispos, padres
e religiosos. Chama-se popular pelo fato de o povo (sociologicamente considerado) deter a hegemonia potencial da
constituio deste processo. Assim, os bispos e os agentes pastorais que se incorporam a esta caminhada pela f vivida
na comunidade, assumem esta verso popular da Igreja. Sob a presena criativa do povo, ocorrem mudanas na forma
de atuao eclesial, redefinindo-se o papel do religioso e do telogo como aqueles que pensam a f juntamente com as
experincias e desafios da comunidade (1994, p. 172).
81
fenmeno configurava-se num novo modo de ser Igreja, estruturado ao redor do eixo da
comunho e da participao de todos, obrigando as vrias instncias eclesiais a se
redefinirem. Nesse sentido, aponta BOFF, em vez de uma Igreja-sociedade com poder
centralizado e hierarquizado, com relaes annimas e funcionais, comeou a surgir
uma Igreja-comunho-e-comunidade com uma distribuio mais eqitativa do poder
sagrado, com relaes orgnicas e mais participativas (1986, p. 47).
Michel LWY (2000) defende que este fenmeno, a TL, se constitui em algo mais
que uma corrente teolgica, sobretudo pelo alcance de suas conseqncias,
rebatizando-o de cristianismo da libertao, j que parte do clero e dos fiis das
Igrejas locais assumiu uma posio mais afinada com as lutas sociais, passando, com
seus recursos materiais e espirituais para o lado dos pobres e de sua luta libertria.
Assim, a TL para LWY o produto espiritual deste movimento social e ao
legitim-lo, ao lhe fornecer uma doutrina coerente, contribuiu substancialmente para sua
expanso e fortalecimento100.
Possivelmente, se fossem mantidas as diretrizes de Medelln, no sentido da Igreja
voltar sua ao pastoral, ao pobre, ao homem simples, ao povo de Deus, as crenas e
as vivncias religiosas, de carter popular, seriam reconhecidas, seno valorizadas,
como expresso natural desse homem. No entanto, no interior da Santa S, nem todos
pensavam assim. O que acenava como um promissor avano, para alguns, era visto,
com temor para outros. E a resposta destes ltimos, no se fez esperar, como ficou
evidente no prximo encontro do bispado latino-americano, no cenrio mexicano de
Puebla de los Angeles, um nome de cidade, no mnimo curioso para as discusses que
l se desenrolaram.
100
O autor justifica que o reconhecimento da dignidade humana dos pobres e a misso histrica e religiosa especial
que lhes foi atribuda pelo cristianismo da libertao uma das razes para seu relativo sucesso, em vrios pases.
Lembra, porm, que esta vertente influenciou apenas a minoria das Igrejas latino-americanas, pois a tendncia
predominante continua sendo a dos moderados e conservadores.
82
Ocidental e no debate secular sobre o mundo moderno e o lugar que a Igreja nele
ocupa.
De um lado, encontrava-se a vertente denominada de liberal por alguns, e
progressista por outros, era afiliada ao jornal internacional Concilium, fundado em 1967,
e apoiava o conclio que acabara de ser concludo naquela poca e, pouco mais tarde,
se identificou com os ideais de renovao estabelecidos em Medelln.
Do outro lado, estava a faco opositora, normalmente chamada de conservadora,
que entrou em cena em 1972, com o peridico Communio101 que sublinhava o apelo
comunidade e unidade. Seus membros-fundadores propagaram a idia comum de
que as divergncias e a desunio que prevalecia na Igreja, durante o incio dos anos 70,
se deveu, em grande parte, interpretao liberal do Conclio Vaticano II. Para eles, o
smbolo da unio e
em Puebla de Los
Angeles, no Mxico, em 1979, foi gestada, portanto, desde 1973, especialmente pelos
progressistas, pois era necessrio, segundo aquele entendimento, estabelecer uma
nova plataforma ideolgica para no ter que se contar somente com Medelln (1984, p.
118).
Por outro lado, este historiador, aponta que alguns bispos tentaram contemporizar
o clima de tenso afirmando que de Medelln se diz mais do que aquilo que houve na
realidade. Se forem lidos com cuidado, os compromissos de Medelln no exigem que a
Igreja tome partido dos pobres (DUSSEL, 1984, p.13).
De qualquer forma preciso lembrar que, durante o perodo de preparao desse
encontro, dois papas morreram e a eleio de Joo Paulo II, o primeiro papa no
italiano desde o incio dos tempos modernos102, adiou a realizao da III Conferncia,
oportunizando novas discusses, a incluso de novos pareceres, a excluso de outros,
especialmente dos telogos da libertao que foram impedidos de participar das
101
102
84
103
Ex-militante da Juventude Estudantil Catlica (JEC), foi eleito em 1962, seu dirigente nacional. Religioso da
Ordem Dominicana, se tornou mais conhecido como Frei Betto. Entre 1969 e 1973 esteve preso sob a acusao de
proteger militantes da Aliana Libertadora Nacional (ALN). Em 1986, eleito o Intelectual do Ano pela Unio
Brasileira de Escritores (UBE), recebeu das mos do ento socilogo Fernando Henrique Cardoso, o trofu Juca Pato
(Isto Especial, Edio 1552, dez. 2000).
104
Joo Batista LIBNIO (1979) compara esta situao ao perodo de martrio dos primeiros cristos.
85
105
Missionrio da Ordem dos Claretianos, foi acusado de comunista e os militares tentaram expuls-lo cinco vezes do
pas durante o perodo ditatorial. Tornou-se um dos principais lderes da corrente progressista da Igreja, defendendo a
Teologia da Libertao. Foi um dos fundadores da Comisso Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionrio.
O Vaticano demonstrando pouca tolerncia com suas audcias quase o puniu com o silncio obsequioso, aplicado a
Leonardo Boff. Justificando que as causas, pelas quais lutava, eram mais urgentes, Casaldliga s realizou sua visita
ao chefe da Igreja, depois de 17 anos como bispo, quando a norma que haja um encontro a cada 5 anos de bispado
(ISTO Especial, Edio 1552, dez. 2000).
106
Uma vez que a opo da Igreja j no era pelos pobres, mas apenas preferencialmente pelos pobres.
107
So elas, a Sagrada Congregao para a Doutrina da F, que se especializou na perseguio sistemtica da
restaurao da ortodoxia e do entendimento correto do Conclio Vaticano II, e a Sagrada Congregao para os Bispos
que controla a prpria reproduo das estruturas fundamentais da autoridade eclesistica. Paralelamente ao servio
86
Com sua opo pelo homem latino-americano visto em sua integridade, com seu amor
preferencial, mas no exclusivo, pelos pobres, com seu nimo para uma libertao integral
dos homens e dos povos, Medelln, a Igreja ali presente, foi uma chamada de esperana
para metas mais crists e mais humanas. Contudo, dez anos se passaram. Fizeram-se
interpretaes por vezes contraditrias, nem sempre corretas, nem sempre benfazejas
para a Igreja (Apud. SOARES, 1986, p. 51).
Ainda mais enftico foi o discurso papal dirigido aos Bispos, em Puebla quando
afirmou que aquele encontro deveria
Medelln, com tudo o que tem de positivo, mas sem ignorar as incorretas interpretaes
por vezes feitas e que exigem sereno discernimento, oportuna crtica e claras tomadas
de posio (PUEBLA, 1979, p.16).
Este documento descreve amplamente o dramtico contexto dos povos do
continente, enfocando o aumento constante da brecha entre ricos e pobres e o
escndalo da misria humana num lugar que se diz cristo. No plano scio-econmico
destaca o aumento da violncia e das diversas formas de violao dos direitos
humanos, alm de constatar um retrocesso nas diferentes formas de participao, em
todos os nveis, marcada pela proliferao de regimes ditatoriais.
O professor Luiz Alberto Gmez de SOUZA (1979), demonstrando mais otimismo,
afirma que os principais elementos da anlise da realidade feita em Medelln foram
retomados e que as denncias se tornaram mais contundentes, entre outras coisas
porque a situao se agravou desde ento.
O autor concorda, no entanto, que bispos, ideologicamente, conservadores,
tentaram algumas manobras no sentido de evitar o encontro desafiante da injustia e
da misria para refugiar-se numa descrio abstrata de estilos de vida e de normas dos
setores dominantes. Afirma, ainda, que o Documento, nas diferentes seqncias de
anlise aponta para um ponto comum: tomar a perspectiva dos pobres no isolar-se
dos outros, mas, atravs dos pobres, chegar aos diferentes setores da sociedade. Para
ele, essa preferncia pelos humildes que permeia todo o texto, expressa uma tendncia
diplomtico do Vaticano, analisa e seleciona todos os indicados ao episcopado, dentre os quais o papa escolhe os
bispos e arcebispos de todo o mundo e, dentre estes, os cardeais da Igreja (DELLA CAVA, 1992).
87
pastoral que foi se impondo e condicionando a maneira de analisar a realidade latinoamericana, apesar das tenses que surgiram durante a realizao da assemblia.
Assim, avalia que, prevaleceu a liderana daqueles que estavam ligados s prticas
pastorais mais fecundas e renovadoras, especialmente a partir das experincias
populares das CEBs. Por isso, o autor esclarece que o Documento no se contenta em
constatar que
Em outra anlise, Simes JORGE (1981) destaca que libertar os pobres desta
humilhante situao, no como etapa casual, o objetivo principal dos bispos
delegados da Amrica Latina e a causa fundamental da opo preferencial pelos
pobres. Libertar pois o homem pobre dessa ordem injusta, seria ento lev-lo a lutar,
em todas as suas dimenses, como protagonista de seu prprio desenvolvimento
humano e cristo (DP, 30)108.
Assim, raciocina JORGE, a opo de Puebla no se caracteriza pela
transitoriedade, antes, constitui-se em uma opo permanente, porm ressalta que
nenhum homem libertado uma vez para sempre; ele se liberta, libertando-se
permanentemente. Como libertao permanente, ela total, mas que no deve ser
entendida como uma ddiva aos pobres, um gesto generoso para com eles, uma
proteo contra seus opressores, mas atravs da qual, podero transformar a histria
(1981, p. 78).
Por isso, a libertao pela qual a Igreja luta, esclarece o autor, no tem sua fonte
na economia ou na poltica, mas aquela que se compromete e que tem sua fora e
seu contedo na mensagem evanglica, aquela que sabe utilizar os meios
evanglicos, com sua peculiar eficcia e que no recorre a nenhuma espcie de
108
Texto Oficial das Concluses da Conferncia de Puebla, identificado doravante por DP e acompanhado do nmero
do pargrafo.
88
violncia nem dialtica da luta de classes, mas vigorosa energia e ao dos cristos
que, movidos pelo Esprito Santo, respondem ao clamor de milhes e milhes de
irmos.
Nessa trilha, a opo pelos pobres implica em uma mudana de lugar social,
esclarece o telogo Beni dos SANTOS (1981), uma vez que este condiciona o
discernimento, a sensibilidade para perceber, a leitura da realidade e a deciso a ser
tomada, a partir do lugar social dos pobres, a partir de baixo, a Igreja procura
evangelizar a todos.
Se existe nos pobres um potencial evangelizador, pondera SANTOS, ento se
pode afirmar que, na Amrica Latina, uma parte da Igreja (hierarquia, religiosos, elites
leigas) est sendo evangelizada pela outra parte, o povo pobre, atravs principalmente,
da interpretao e do questionamento que conduzem converso, solidariedade,
simplicidade e ao servio.
Os padres capuchinhos, adotando uma posio de intermediao, procuraram
esclarecer esta questo, quando apontaram que a opo preferencial pelos pobres
significava para a Igreja, uma passagem de sua postura paternalista e assistencialista
para uma convivncia e um compromisso com eles e que esta postura no significa um
abandono do rico mas este deve ser evangelizado a partir da realidade cruel do pobre
(VOZ DO PARAN, 05.06.1982, p.8).
Os debates em torno da opo pelos pobres derivaram, no entanto, outros
posicionamentos, alguns radicais, como o expresso pelo bispo auxiliar de Salvador D.
Boaventura KLOPPENBURG, da Ordem Franciscana. Referindo-se ao pronunciamento
do papa por ocasio da XIX Assemblia Geral do CELAM, no Haiti, em 1983,
KLOPPENBURG apontou para a amargura de muitos que, por causa de uma equvoca
opo pelos pobres, se sentem abandonados e ignorados nas suas aspiraes e
necessidades religiosas. E justifica tal situao, afirmando que
89
O prprio ttulo do encontro de Puebla aponta para a opo pelos jovens, embora essa questo, ao que tudo
indica, no gerou nenhuma polmica nos meios eclesisticos, ao contrrio do que ocorreu, desde Medelln com a
opo pelos pobres.
90
tendo com isso uma juventude mais curta. H outros, despreocupados, frustrados,
inseguros e, ainda outros, idealistas e desejosos de construir um mundo melhor. Assim,
diferentemente, os jovens se posicionam diante da Igreja: alguns aceitando- a como ela
, outros questionando-a por falta de autenticidade, sem contar ainda com uma
expressiva massa de indiferentes.
Ao optar pelos jovens, a Igreja evangelizadora, convidava os jovens a encontrarem
nela, o lugar de comunho com Deus e com os homens, a fim de construrem uma
civilizao de amor e edificarem a paz na justia (DP, 1184).
Nesse sentido, Joo Batista LIBNIO esclarece que o Documento de Puebla
perpassado, em toda a sua totalidade por este prisma central: Comunho e
Participao, cujo nvel tico-crtico, permite analisar o contexto social em que se vive,
com o quadro traado pela utopia (1979, p. 164).
A integrao dos jovens, na Igreja, seria canalizada atravs de uma pastoral ou
uma comunidade de jovens, integrados a outras pastorais, como a familiar, a
educacional, a de catequese e a de vocaes, mas o prprio Documento previa que era
necessrio orientar os jovens de acordo com sua situao concreta (operrios,
camponeses, estudantes secundaristas, universitrios, etc), a fim de que esta pastoral
pudesse ajudar a formar os jovens de maneira gradual para a ao scio- poltica e,
para as mudanas de estruturas, segundo a Doutrina Social da Igreja (DP, 1196).
Finalizando as orientaes acerca dos jovens, o episcopado latino- americano
alerta que no se deve considerar a juventude de forma abstrata, nem como um grupo
isolado do corpo social, por isso ela requer uma pastoral articulada que permita uma
comunicao efetiva entre os diversos perodos da juventude e uma continuidade de
formao e compromisso depois, na fase adulta (DP, 1204).
Aps as abordagens centrais, em torno do pobre e do jovem, Puebla se debruou
sobre a questo, para esta pesquisa, da maior importncia: as prticas religiosas
Naturalmente, fundamental tentar decifrar o entendimento que a Igreja tinha, naquele
momento, acerca dos atores sociais, seus fiis, e neles o pobre e o povo, no entanto,
dado nosso objeto principal, as questes relativas s manifestaes de religiosidade,
ganham maior interesse.
91
92
um estudo mais acurado da Religiosidade Popular poder elencar uma srie de defeitos
notveis. Na linha da superstio, por exemplo, basta notar a magia, o fatalismo e a
idolatria do poder que, constituem srios obstculos evangelizao da Amrica Latina.
Por outro lado, os elementos de piedade popular quando bem conduzidos so positivos
para a evangelizao, uma vez que se encontra fortemente enraizada a crena na
Santssima Trindade e na Providncia Divina, na Virgem Maria, nos Santos protetores,
expresso da f, numa linguagem que supera todos os racionalismos (imagens, gestos,
danas), alm de grande sensibilidade para as peregrinaes, o respeito ao sagrado, a
integrao dos sacramentos na vida pessoal e social (...) essas riquezas e facilidades no
se encontram na Europa como herana cultural e religiosa pois os europeus perderam,
aps mais de mil anos de presena de f na vida particular, poltica e econmica, o contato
com a natureza e as fontes de vida, adentrando num mundo tecnificado (VOZ DO
PARAN, 26.06.1982, p.9).
93
94
110
No se deve esquecer que estes povos foram, anteriormente, discriminados no interior da prpria Igreja que lhes
negava acesso s ordens sacras.
111
O IV CELAM contou com a participao de importantes lideranas do continente, durante os 9 anos de
preparao do encontro. Nesse perodo foram produzidos, a partir da orientao do papa, os textos que resultaram
depois no Documento de Santo Domingo. Em 1990, uma comisso apresentou o anteprojeto do futuro encontro,
intitulado Elementos para uma reflexo pastoral em preparao IV Conferncia Geral do Episcopado LatinoAmericano, que serviu de base para estudos e debates, que resultaram, em 1991, no Documento de Consulta, cuja
reelaborao originou em 1991 no Documento de Trabalho, que serviu de sustentao para as discusses realizadas
durante a Conferncia, cuja nfase recaia nos trs temas centrais da futura conferncia: a evangelizao propriamente
dita, a promoo humana e a cultura crist (conforme prefcio de Joo Batista LIBNIO, publicao do Documento
de Santo Domingo: Concluses, pela Ed. Loyola, 1992),
95
evangelizao,
central
propusesse
como
tema
desse
encontro
uma
nova
112
Dom Dadeus GRINGS tambm se refere a este fato, afirmando que aquele dia foi o dia penitencial, quando se
pediu perdo ao Senhor, por todo o mal que foi praticado, ao longo destes cinco sculos, no continente. Para ele, se
poderia pensar no descontentamento dos ndios pela invaso de suas terras, por parte dos brancos, e a revolta dos
negros pelo traslado forado, arrancados que foram de suas terras para serem escravizados no Novo Mundo, no
entanto, h mais de um sculo, no existe mais, nestas terras, nem invasores nem escravizadores. Os que vivem neste
continente, nasceram aqui, livres e iguais. Todos so cidados de seus respectivos pases, com plenos direitos e
deveres recprocos (1993, p.10). Entendemos que exatamente a se encontra a chave desta intrincada questo, pois
enquanto os progressistas esperavam um pedido oficial de perdo diretamente aos povos indgenas e, aos afroamericanos, o pedido de perdo foi feito a Deus.
96
pertencemos a povos que se enriqueceram pelo domnio e pela explorao nos ltimos
500 anos. Sendo parte da Igreja Catlica, o V Centenrio e foi para ns um motivo para
uma profunda reflexo do papel da Igreja na conquista e colonizao. Sem cair em
legendas negras sobre o passado do cristianismo, achamos conveniente que a Igreja
repense as aes pretritas, reconhecendo que o anncio do Evangelho se confundiu com
a imposio da realidade dos mais fortes (VAN DE VEN, 1993, p. 164).
Aps explicar que a entidade foi criada com o objetivo de intermediar uma
reconciliao entre Alemanha e Frana, ao final da Segunda Guerra Mundial, o portavoz desse movimento, recorrendo a um discurso do Papa Joo Paulo II afirmou que a
paz no se pode reduzir ausncia da guerra. Assim, continuou ele, enquanto a
injustia social continuar sendo institucionalizada, no podemos falar de paz. (Ibid, id.).
Nessa trilha, Clodovis BOFF afirmou que a Nova Evangelizao, a Promoo
Humana e a Cultura Crist, os trs problemas- chaves priorizados em Santo Domingo,
exigiriam a reflexo de um outro modelo de Igreja, uma vez que resolv-los com o atual
modelo tradicional, piramidal, centralizado e no-participativo, impraticvel. Portanto,
seria fundamental um novo perfil das bases eclesiais que deixariam de ser meras
executoras de tarefas e passariam a exercer um poder deliberativo institucionalizado
(BOFF, 1993, p. 795).
Essa seria, de acordo com aquele religioso, a forma de encarar as exigncias
pastorais daquele momento, sem abandonar Medelln e Puebla, isto , um compromisso
com uma nova evangelizao dos povos latino-americanos, com a sua promoo
humana integral e com uma evangelizao inculturada.
113
Este movimento catlico internacional, sediado em Bruxelas, na Blgica, tem sees nacionais em vrios pases,
contabilizando dezenas de milhares de filiados. No Brasil, uma de suas mais importantes representaes se faz atravs
da Comisso Pastoral da Terra (CPT). A Pax Christi se ocupa, alm da promoo da paz mundial e da luta pelos
direitos humanos, da prtica de polticas de no- violncia, combate ao trfico de armas e da promoo do
desarmanento, entre outros projetos, muitos dos quais receberam o reconhecimento da ONU.
http://www.paxchristi.com/index.htm. Acesso em 18.01.2003.
97
luterano, ou calvinista.
Esse mosaico poltico, tnico e religioso, foi ainda mais reforado, no final da
primeira metade do sculo XIX, por trabalhadores trazidos das colnias europias da
sia, especialmente chineses alm de hindus e indonsios, majoritariamente
114
O conceito latino, aplicvel a Cuba e Santo Domingo e, em parte, a Porto Rico, j no o s demais ilhas e mesmo
s Guianas, colonizadas algumas, por latinos no ibricos, como os franceses em Haiti, Guadalupe, Martinica e Guiana
Francesa; dos ingleses em Bahamas, Jamaica, Granada, Santa Lucia, Saint Vincent, Trinidad e Tobago, Granadinas,
Barbados, entre outras, dos holandeses em Curaao, Aruba, Bonaire, e outras ilhas menores, alm de Suriname, dos
dinamarqueses nas Ilhas Virgens.
98
sentido,
BEOZZO
(1993)
indica
trs
questes
convergentes
115
Este problema j havia sido apontado anteriormente, no 1 Encontro da Assemblia do Povo de Deus (1418/09/1992), em Quito, no Equador, quando foi levantada a questo do macro- ecumenismo que sasse dos marcos
estreitos de um dilogo apenas catlico- protestante e que se despojasse de preconceitos, abrangendo as muitas
linguagens, cantos, smbolos, gestos, com as almas e os corpos em dana e em orao (apud BEOZZO, 1993, p. 815).
99
A segunda questo aponta para um carter mais pastoral de uma dupla pertena e
de uma dupla prtica: a do catolicismo, de um lado, e a das religies tradicionais,
bastante difusas por todo o continente, de outro.
Finalmente, a terceira questo advoga o direito dos povos indgenas e das
populaes afro-americanas, j batizadas, viverem seu cristianismo, segundo suas
razes culturais e seus costumes, num claro reconhecimento de suas expresses
populares de f.
Como era de se esperar, diante de questes to polmicas, muitas foram as
divergncias entre os trabalhos primiciais e o resultado das votaes para a elaborao
do Documento Santo Domingo.
BEOZZO apontou alguns exemplos dos quais destacamos um, que segundo nosso
entendimento, sinaliza o tom mediador que prevaleceu ao final do Encontro. Enquanto a
Comisso defendia que a inculturao um processo conduzido a partir do interior de
cada povo e comunidade, devendo, por isso, ser articulado tarefa da evangelizao,
com a dimenso das culturas e da libertao da opresso e marginalizao dos povos
do Continente, a perspectiva aprovada colocava, no centro da questo, a prpria Igreja,
fazendo dos povos e das culturas objeto de sua ao com a mediao e linguagem de
smbolos compreensveis e apropriados, segundo o juzo da Igreja (DSD 243)116.
Este argumento, nos parece ser a chave que responde, tanto a questo tratada em
Santo Domingo, quanto multiplicidade de culturas, quanto a dos pobres e do povo,
focalizada em Medelln e Puebla. A Igreja, ao que tudo indica, no se dispe a ir ao
encontro do outro, do pobre, do povo, do ndio, do negro. Antes, espera que todos eles
venham a ela, se adaptando s suas diretrizes. Nessa trilha, podemos voltar um pouco
mais no tempo e refletir, se no foi essa, em linhas gerais, a mesma postura adotada,
no Vaticano II, em relao ao ecumenismo e aos irmos separados?
Cabe ressaltar ainda que, todas essas divergncias no se restringiam ao nvel
terico, mas ao contrrio, conduziam igualmente a uma distinta avaliao dos caminhos
que se apresentavam para sua prtica. A proposta de compromisso apresentada pela
Comisso 26, um exemplo disto, pois defendia uma inculturao litrgica que
acolhesse com apreo seus smbolos, ritos, expresses religiosas assim como suas
116
100
mesma
forma,
sem
demonstrar
muito
entusiasmo
quanto
nova
101
preciso alimentar espiritualmente o povo com alimentos que possa assimilar, como o
que a religiosidade popular oferece. Por isso, indispensvel ajud-lo com uma catequese
que acompanhe a religiosidade popular, a aprender seu correto sentido117 (DSD, 475).
isso,
os
bispos
apontavam,
naquela
ocasio,
necessidade
de
117
102
piedosas,
percebemos
que,
nesse
sentido,
no
houve
avanos
Secularismo definido pelo prprio Documento um fenmeno da descrena, de negao a Deus uma vez que, para
os que assim se posicionam, todas as realidades se explicam por si mesmas. No entanto, deve-se distinguir esta posio
secularista do processo de secularizao. Este ltimo, sustenta que as realidades materiais da natureza e do homem
so, em si boas, e por isso suas leis precisam ser respeitadas. Alm disso, a liberdade se destina auto-realizao
humana, sendo respeitada por Deus. Diferente do secularismo, o indiferentismo se relaciona queles que repelem
qualquer religio porque a consideram intil ou at mesmo nociva para a vida humana. Por isso, os termos no se
equivalem e, portanto, nenhuma pode apresentar-se como nica e verdadeira. (DSD, 153)
119
Como no trabalhamos nessa pesquisa a ao episcopal de outras esferas geogrficas, nosso questionamento
aponta apenas para a realidade latino-americana.
103
moderna,
assumindo
inclusive,
em
alguns
momentos,
discursos
latino-americano,
encontraram
forte
resistncia
por
parte
dos
104
121
105
106
afirmando que Deus abenoou e santificou o stimo dia, porque foi nesse dia que Deus
descansou de todo o seu trabalho como Criador, evidenciando o entendimento
dicotmico de sagrado e profano pois, seis dias so profanos, de trabalho,
e um
107
como amou o prprio Cristo, enquanto o novo povo santo representado agora pela
incorporao de todos os batizados, judeus e pagos.
Com os profetas, algumas vezes identificados como santos, a idia de santidade
adquiriu um sentido voltado para a moralidade e para o espiritual, afirma o telogo
francs DOUILLET (1960), em que os santos realizam de maneira excelente aquilo que
todo cristo deveria querer ser, se tivesse conscincia de sua vocao.
No sentido ontolgico, segundo Romualdo RODRIGO (1988), advogado da
Congregao das Causas dos Santos, no h diferena entre a santidade do cristo
medocre e a santidade daquele que pratica as virtudes em grau herico e por isso est
intimamente unido a Cristo, porque a santidade no outra coisa seno a comunho
com Deus.
Assim, raciocina ele quanto mais ntima for essa unio, maior ser o grau de
santidade da pessoa. Os santos oficiais so os gigantes da santidade porque os
cristos comuns que no alcanaram ainda uma ntima unio com Cristo, so santos
pequenos, no cresceram suficientemente, no ultrapassaram os limites da
mediocridade.
Para Caro BAROJA (1995), no entanto, o conceito de santidade muito mais
amplo e relativo, podendo ser aplicado de
maneiras distintas,
108
a santidade tambm era tida como um elo entre o plano natural e um patamar superior,
alcanado por meio de uma purificao espiritual que afastava o homem das coisas do
mundo, como os pensamentos maculados e os prazeres terrenos do corpo, aproximando-o
do Divino, atravs da sabedoria, virtudes, meditaes e sacrifcios, como o jejum e o
isolamento (1987, p. 289).
122
Para Emile DURKHEIM (1983) a fora religiosa nada mais do que o sentimento que a coletividade inspira a seus
membros, mas projetado para fora das conscincias que o experimentam. Para objetivar-se, ele se fixa em um objeto
que se torna sagrado.
109
o exemplo dos inmeros mrtires contribuiu para fortalecer a coeso das comunidades
crists e para a aceitao da nova doutrina pelas camadas populares, uma vez que
podiam implorar graas para todos os seus pecados pois aqueles haviam lavado os seus
com seu prprio sangue. Alm disso, a condio de santos, permitia a eles, por sua
exemplar imitao de Cristo, desenvolverem seus poderes taumatrgicos, operando
os mais variados milagres, mas, de forma mais acentuada, as curas sobrenaturais (1960,
p.23-24).
Os catlicos veneram a Virgem Maria, Me de Jesus desde os primeiros tempos do cristianismo, exemplo de um
dos mais expressivos fenmenos culturais, de longa durao. O Conclio de feso (431) defendeu a sua maternidade
divina e a reconheceu como intercessora junto ao Cristo. No Conclio Vaticano II, os bispos delegados, no Lmen
Gentium a invocaram com os ttulos de Advogada, Auxiliadora, Medianeira e Protetora.
124
Por isso o relato de So Lucas do martrio de Estevo (Atos dos Apstolos, 6-7), o aponta como o primeiro mrtir
do cristianismo. Sua priso, julgamento e morte, corresponde prpria trajetria do Cristo, incluindo o pedido de
clemncia a Deus para seus algozes.
110
125
A causa principal dessas sangrentas perseguies se devia ao carter monotesta do cristianismo e a recusa dos
cristos em reconhecer os deuses romanos e praticar o culto imperial, forma de legitimao religiosa do despotismo
dos soberanos. Dessa forma, num imprio em que o poder tinha um carter poltico-religioso, a crtica dos cristos
convertidos ao culto imperial era encarada pelas autoridades como um ato de subverso, passvel, portanto, de
punio.
126
DOUILLET (1960) enumera as transformaes ocorridas nesse livro da Igreja Catlica e esclarece que muitos
santos cujos cultos no foram autorizados pela hierarquia eclesial, constam apenas dos martiriolgicos particulares das
dioceses ou das ordens religiosas, como um suplemento da listagem oficial.
111
127
Durante 300 anos os cristos foram enterrados nos subterrneos de Roma, ao longo de 18 Km de tneis. Inscries
e splicas encontradas nesses cemitrios atestam a reverncia e o culto a esses mrtires, alm de refletir a crena na
imortalidade da alma e na estreita comunicao dela com o Cristo. Em 1949, arquelogos descobriram, aps
demoradas escavaes, o tmulo de So Pedro Apstolo, debaixo do altar-mor da Baslica de So Pedro, no Vaticano,
que morreu martirizado ali mesmo, no ano de 67 (VOZ DO PARAN, 02.08.1964, p. 2).
128
Cabe ressaltar, no entanto, que o martrio no produziu santos apenas no alvorecer do cristianismo. Em fins de
1998, a holandesa Edith Stein se tornou a primeira santa da Igreja Catlica, nascida judia que se converteu ao
catolicismo em 1922. Anos depois se tornou freira carmelita com o nome de Teresa Benedita da Cruz. Durante a II
Guerra Mundial, morreu na cmara de gs, em Auschwitz, na Polnia. O destino trgico, fez dela o smbolo cristo do
holocausto e serviu de base para um rpido processo de beatificao em 1987. Setores judeus acusaram Roma de tentar
usurpar a tragdia judaica em seu benefcio, uma vez que o martrio da freira ocorreu por sua origem judia
(CORNWELL, 2002).
129
Como mais tarde seria a Al, na doutrina islmica.
130
Neste contexto at os dois pilares da Igreja apostlica, Pedro e Paulo, os fundadores da Igreja Romana, foram
posteriormente considerados santos, no por seu papel de liderana no seio das comunidades crists, mas por terem
sido martirizados pelos romanos, o que os habilitava a serem cultuados como divindades, preservada sua memria de
heris e os projetava como exemplos para os demais cristos (PADOVESE, 2002).
112
nenhuma priso os atemorizava, nenhum crcere, nem exlios, nem fome, nem fogo, nem
dilaceramento dos corpos pelas feras ou suplcios. Pela f, combatiam at o
derramamento de sangue, no apenas homens, mas mulheres, meninos impberes e
virgens delicadas (MACHADO, 1995, p. 134).
Um dos mais cultuados pela Igreja Catlica, nesta tipologia santoral, foi Santo Anto, o Santo da Renncia, ou
Santo Antonio, o Eremita. Nascido no sculo III, no Alto Egito, de rica famlia crist, aps precoce orfandade,
distribuiu seus bens entre os pobres e estabeleceu-se no deserto, jejuando, se autoflagelando, para vencer seus
inimigos. Assim como para o Cristo, o diabo era, para ele uma realidade concreta. Ren FULOP-MILLER (1987)
assegura que foram necessrios mais de 20 anos de vida asctica at que Anto conseguisse venc-lo. Notcias de que
o eremita obtivera sucesso contra o inimigo do homem se espalhou pelo osis e caravanas afluram para ver o
santo. Alguns resolveram aprender seu segredo e formaram uma comunidade de eremitas. Aps ensinar-lhes, Anto
isolou-se ainda mais e quando ouvia a voz de Deus, voltava ao convvio dos homens para transmitir-lhes o que
ouvira. Nessa poca, soldados vindos de Alexandria tinham como misso acabar com aquelas comunidades. Anto
entregou-se ao Imperador Maximino Dario que garantia que o declnio do imprio se devia ao desprezo aos velhos
deuses, que se encontravam encolerizados pela tolerncia que se tinha com o Deus dos cristos. Libertado aps o
dito de Milo (313) , tornou-se o smbolo da obedincia e da renncia .
113
Para Peter BROWN (1990), tal fato se deve s muitas associaes acumuladas ao
longo de sculos em torno das sacerdotisas virgens pags, como as profetizas da
Antiga Grcia e as Vestais romanas. Aquelas sociedades no entendiam a virgindade
como uma perfeio h muito perdida, ou como um estado primevo da humanidade que
pudesse ou devesse ser resgatado por homens ou mulheres. Antes, aquelas
comunidades recrutam suas virgens, votando-as ao servio dos deuses e, libertando-as
posteriormente para que contrassem matrimnio.
Assim, o que estava em jogo, era uma suspenso arquitetada, do processo normal,
mediante o qual as jovens se deslocavam ininterruptamente da puberdade para a
gerao de filhos. As jovens virgens escolhidas para renunciarem ao convvio conjugal,
mesmo que temporariamente, aguava a conscincia dos demais para o fato de que o
casamento e o parto eram o destino incontestvel das outras mulheres.
Esta anlise, ao que tudo indica, refora o princpio durkeiminiano de que uma
comunidade religiosa se estabelece, sobretudo, atravs do seu sentido de pertena,
especialmente, quando depois de cumpridos os deveres rituais, voltamos, para a vida
profana com mais coragem e ardor, no somente porque nos colocamos em contato
com uma fora maior de energia, mas tambm porque nossas foras se refizeram
(1983, p. 222).
No Antigo Testamento, a virgindade como absteno praticada por motivos
superiores era desconhecida, mas era valorizada como preparao para o casamento e
assim, os sacerdotes s podiam se casar com virgens (GNESE 22, 16).
J no Novo Testamento, novas perspectivas foram abertas, especialmente com a
Primeira carta de Paulo aos Corntios, por volta do ano 56, num momento em que a
Igreja primitiva pregava o fim do mundo e a manifestao final e gloriosa do Messias.
Assim, na viso de Paulo, a virgindade era vista como uma forma de empenhar-se
totalmente ao testemunho do Evangelho e, por isso, a virgindade passou a ser
entendida como propter regnum coelorum, um estado de alma, prefervel ao casamento
por se constituir em um devotamento integral ao Senhor (COR 7, 32-35), ou ainda, que
os que permanecessem virgens,
mundo futuro, seriam semelhantes aos anjos, aos filhos de Deus (LC 20, 34-36).
114
Osvaldo Gomes MACHADO (1995) aponta que a castidade tambm foi exaltada
por So Justino como expresso tpica da moral crist, ou quando se buscava nela a
fonte do amor de Deus, conforme expresso de So Clemente, ou ainda, como a forma
mais ampla e independente de martrio, segundo Orgenes, da escola da Alexandria.
De qualquer forma, para ser merecedor da santidade, um homem deveria agir
como um santo, imitando a Deus e mantendo-se puro dos pecados (EFSIOS 5, 1-20).
Por isso, no processo de santificao dos mortos, afirma VAUCHEZ (1987), fazse necessrio a sacralizao de suas vidas. Remetendo-se, sobretudo, s prticas
medievais, o autor focaliza o momento em que a Igreja construa a santidade de
eclesisticos e monarcas, canonizando-os por seus grandes servios quela
instituio, especialmente os fundadores de santurios e mosteiros, ofuscando a
popularidade anterior dos consagrados ascese.
Desta forma, enfatiza a historiadora Maria de Lourdes dos SANTOS,
Ctaros ou albigenses, hereges do sul da Frana, que entre os sculos XII e XIII, professavam uma doutrina dualista
maniquesta, segundo a qual o Universo foi criado e era dominado por dois princpios antagnicos e irredutveis: Deus
ou o bem absoluto e o mal absoluto ou o Diabo.
115
tinha por alvo, segundo DOUILLET, garantir maior prestgio das relquias, na diocese do
santo, e assegurar nas dioceses vizinhas, a autenticidade do novo santo, pois a fantasia
que freqentemente inspirava as canonizaes locais tinha diminudo o seu crdito133.
Assim, tempos depois se firmaram as investigaes ordenadas por Roma sobre a
vida, as virtudes e os milagres dos candidatos a santos, constituindo-se em verdadeiros
instrumentos de seleo dos sanctus, tema que ser tratado, com maior profundidade
mais adiante. No entanto, pode-se ressaltar, desde j, que a afirmao, dessas novas
estruturas, atestava mais do que a centralizao da hierarquia eclesistica e a
subordinao de todos a ela, promoveram um novo entendimento no significado de
santidade uma vez que sublinhavam a transcendncia da natureza divina do santo.
Nessa perspectiva, o telogo Ricardo Willy RIETH defende que, tal caracterstica
pressupunha uma identificao profunda com a vida de f dos santos pois seu exemplo
deveria animar o homem simples a suportar sofrimentos semelhantes aos que eles, os
santos, haviam suportado (2000, p. 854).
O culto a So Francisco de Assis reflete bem tal situao. No incio do sculo XIII,
a Igreja Catlica vivia um perodo de fausto. Estava distanciada dos mais pobres que
chegavam em grandes contingentes para as cidades europias em crescimento.
revelia da hierarquia eclesial, a populao adotou o culto a esse smbolo da pobreza
virtuosa134, assim como de outros exemplos, especialmente com o advento de novas
ordens e de um novo tipo de apostolado, o dos frades pregadores que despojados de
seus bens, viajam a p, percorrendo vilas e castelos distantes. Dentre eles, destacou-se
tambm frei Antonio, mais tarde Santo Antonio de Pdua (ou de Coimbra), que de forma
semelhante a Francisco de Assis, desenvolveu uma ampla ao caritativa. Tendo se
tornando conhecido pelo dom da palavra, recebeu a incumbncia de assumir a
pregao contra hereges. Foi canonizado em 1232 e, poucos anos depois, foi declarado
Doctor angelicus, Doutor da Igreja (PADOVESE, 2002).
133
Alexandre III (1157-1181) foi quem decidiu que dali por diante as causas de canonizao seriam reservadas Santa
S e que sem autorizao de Roma, ningum teria direito de cultuar publicamente a um homem ainda que ele
operasse milagres. Do sculo XII ao XVII, a Igreja foi progressivamente aprimorando o processo tal como vigoram
at hoje. Cabe ressaltar que os processos,empreendidos por Urbano VIII, em 1634, concedeu uma aprovao global a
todas as canonizaes anteriores ao Conclio de Trento, em 1534. Em 1917, o Cdigo de Direito Cannico assegurou
sua forma atual (DOUILLET, 1960).
134
Exemplo de cooptao que a Igreja realiza, em determinadas situaes.
116
Vale lembrar, no entanto, que apesar de ser reconhecido como um dos maiores
representantes da Teologia Catlica, esse santo assumiu, no catolicismo medieval
portugus, caractersticas de Santo Casamenteiro. Esse culto transferido para o Brasil,
desenvolveu algumas particularidades como as simpatias, sempre s vsperas do dia
do santo, 13 de junho, visando o mesmo fim matrimonial, alm de outras, prprias das
manifestaes de religiosidade popular, em diferentes pocas do ano, como por
exemplo, fazer chover.
Andr VAUCHEZ aponta que
em relao centralizao e controle das piedades por parte da Igreja, muitos fiis e
mesmo parte do clero, tiveram dificuldades em adaptar-se s novas orientaes, uma vez
que, principalmente em mbito local, continuaram a serem desenvolvidos cultos populares
em torno de eremitas, peregrinos, penitentes ou reclusos, ou ainda, em torno de simples
vtimas inocentes das foras do mal, sobretudo, crianas e adolescentes barbaramente
assassinados (1987, p. 298).
santoral, uma vez que defendiam que apenas Cristo era fonte de santificao. Para as
novas vertentes do Cristianismo, o catolicismo merecia reconhecimento por observar os
credos, os grandes dogmas da cristandade e por seu valor, como guardio do ideal
cristo. Mas, por outro lado, RIETH denuncia, afirmando que
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137
118
que, se acreditava, eram dotados de poder para interceder junto a Deus, uma vez que
para a Igreja Catlica, somente Ele pode conceder graas e realizar milagres.
Nesse sentido, os santos, foram revestidos no mnu sagrado para socorrer as
precises humanas. Ele elege a uns e os acumula de graa a fim de que possam ajudLo junto a todos os homens (1995, p.169).
Desse grupo se destacam os santos padroeiros, considerados como mediadores
especiais de uma cidade, regio ou pas ou ainda de determinados grupos humanos,
como resultado de uma antiga tradio romana, pois o chefe patrcio era juridicamente
considerado patrono, em relao a seus clientes.
Gradativamente o conceito estendeu-se do mbito familiar para o regional. Assim,
os cristos, desde muito cedo, passaram a usar a figura deles, espiritualizando-as e
aplicando-as aos santos, como So Pedro e So Paulo, identificados como os grandes
patronos e invocados mais tarde pelo ento papa Leo Magno138 (? - 461), como
padroeiros de Roma.
Neste contexto, durante todo o medievo, popularizou-se a prtica de nomear as
portas das cidades com nomes de santos para que eles a protegessem, enfatizando a
condio de padroeiros. A escolha dos santos era determinada por diversas razes: seu
nascimento, seu apostolado, seu martrio, um prodgio extraordinrio, ou a posse de
uma relquia, mas, com freqncia o padroeiro era um antigo bispo da cidade.
Ainda hoje a Igreja dispe de uma lista oficial de padroeiros como, por exemplo,
So Lus Gonzaga, padroeiro da juventude, Santo Afonso Maria de Ligrio, dos
confessores, Santa Zita, das domsticas, So Joo B. de La Salle, dos professores, So
Jorge139, dos escoteiros, Santo Expedito140, o santo das causas urgentes, entre muitos
outros. No entanto, quais as condies pelas quais, esses simples mortais tiveram que
138
Ele prprio, mais tarde, tambm santificado. Entre seus feitos figuram aes conciliatrias com tila, rei dos hunos,
em 452 e pouco depois, com Genserico, rei dos vndalos, ocasies em que Roma foi poupada dos invasores. A ele
tambm atribuda a triologia Cristo-Pedro-Papa (PADOVESE, 2002, p. 145).
139
A bandeira de So Jorge um retngulo branco com duas faixas vermelhas de lado a lado, formando uma cruz, era
a bandeira das cruzadas, os cristos da Europa que no sculo XI aos sculos XIII fizeram muitas expedies militares
para libertarem a Terra Santas do domnio dos muulmanos, e este desempenho era muitas vezes repetido
principalmente pelos ingleses nas tnicas e jaquetas que vestiam. Dizem que na primeira cruzada, durante o stio de
Antioquia, em 1096, os cruzados tiveram a viso de So Jorge, montando um cavalo branco e lutando a seu lado. Na
terceira cruzada (1189-1192), os ingleses sob o comando do rei Henrique II e depois sob o comando do rei Ricardo
Corao de Leo passaram a usar a bandeira de So Jorge, como a bandeira da Inglaterra. No tempo das cruzadas por
deciso do Conclio Nacional de Oxford, em 1222, So Jorge tornou-se oficialmente o Patrono da Inglaterra.
140
Do latim, Expedictus que significa disponibilidade ou rapidez.
119
passar em vida, para que depois de mortos, fossem reconhecidos como santos pela
Santa Madre Igreja?
120
3. 2. A BUROCRATIZAO DA SANTIDADE E DA F
(...) porque os santos esto no meio de ns, pertencem nossa famlia e ns a deles.
Como Igreja a caminho, que hoje d os primeiros passos para o terceiro milnio, olhemos
para eles para no perder a confiana em ns e nos outros. Os santos so sinal de
otimismo nas chances de cada um: dirijamo-nos a eles a fim de descobrir o santo que
existe em ns; meamo-nos com eles para compreender que Deus no est acostumado a
aceitar derrotas em relao fragilidade humana (apud. PADOVESE, 2002, p.7).
Estas palavras, como parte do pronunciamento do papa Joo Paulo II, na Praa de
So Pedro, no primeiro dia de janeiro de 2000, evidenciam a atualidade e a ateno
com que o Vaticano vem tratando essa temtica.
Sagrado bispo de Roma, em 1978, o 264 da Histria dos papas, Joo Paulo II141
tem sido protagonista de um pontificado, onde tudo parece superlativo. John
CORNWELL indica que
Considerado como um dos lderes mais influentes da segunda metade do sculo XX, especialmente por seu apoio
ao movimento dissidente polons Solidariedade que deu incio avalanche que varreu o comunismo do Leste Europeu
e da Unio Sovitica e libertou a perseguida Igreja Catlica daquela regio. Tambm tem sido um firme defensor das
tradies e das prticas que ele acredita serem essenciais para a vida da Igreja e da sociedade em geral (CORNWELL,
2002).
142
Esse nmero estimado, com base na quantidade de missas, inclusive campais, celebradas pelo papa, nas bnos e
nas audincias coletivas.
143
Em So Jos dos Pinhais, municpio prximo Curitiba, o beato foi homenageado, de forma especial, na Colnia
Murici, a pedido dos prprios moradores que, reuniram as assinaturas necessrias para que uma rua da localidade
recebesse o nome do santo do trabalho ( GAZETA DO POVO, 21.12.2003, p. 16).
121
144
Em 1979, a freira albanesa fundadora da ordem religiosa Irms Missionrias da Caridade, ganhou o Prmio Nobel
da Paz. Como nas demais ordens, nesta as religiosas fazem os votos de pobreza, castidade e obedincia mas, ainda
fazem mais um: sua consagrao ao servio dos mais pobres. Em poucos anos, a Congregao nascida em Calcut, na
ndia, com aprovao de Pio XII, em 1953, tornou-se uma rede internacional espalhada atualmente por 77 pases, em
todos os continentes, atuando com doentes e miserveis cobertos de chagas, com elefantase, cncer, lepra, sfilis, etc.
O ento presidente da Comisso do Prmio Nobel, John Sannes teria dito que a religiosa obteve o prmio por
promover a paz da maneira mais fundamental: confirmando a dignidade humana (GAZETA DO POVO, 15.12.1979).
122
Os budistas veneram seus arahants, os tibetanos os lamas, enquanto os hindus tm uma coleo de divindades
encarnadas e humanas divinizadas, e destacam seus mestres espirituais, os gurus. Os muulmanos tm os awiliya
Allah, os amigos de Deus. No judasmo no existe uma prtica de encorajamento da venerao de seres vivos ou
mortos, mas h uma devoo popular a figuras como Abrao ou Moiss, alm de alguns rabinos, os tsaddikim,
considerados justos (NIGG, 1975, p. 17).
146
Em The life of Antony. Essa obra permaneceria durante sculos como um dos clssicos modelos de texto
hagiogrfico (WOODWARD, 1992, p. 61).
123
Apesar da oposio de muitos, quanto venerao das relquias por julgarem essa uma reverncia indevida, outros
defenderam sua prtica por entenderem que, se os corpos dos mrtires eram santificados, por extenso, tambm eram
os objetos tocados por eles (WOODWARD, 1992, p.59).
124
era inevitvel que esse trfico de relquias encorajasse abusos. Muitas eram vendidas e as
falsificaes se tornaram freqentes. At monges foram acusados do desvio de relquias
dos monastrios uns dos outros, j que quanto melhores as relquias de um mosteiro,
tanto maior a sua fama. No sculo XII, esse comrcio chegou ao auge com os
125
148
O caso do bispo Ulrico de Augsburgo, em 993, foi o primeiro de validao papal, de um culto popular
(WOODWARD, 1992, p. 65).
149
Em 1378, na eleio do sucessor de Gregrio XI, dois grupos disputam a indicao do novo papa: os eclesisticos
romanos, partidrios da posse de Urbano VI, e os franceses, favorveis a Clemente VII. Sem acordo, o papado ficou
dividido: o papa de Avignon passou a ser sustentado pelo rei francs e o romano era mantido com apoio do Sacro
Imprio Romano Germnico. O episdio ficou conhecido como Cisma do Oriente e vrias tentativas de revogar a
ciso falharam. Somente aps o Conclio de Constana (1417) e a eleio do papa Martinho V, foi restabelecida a
unidade do pontificado (ALBERIGO, 1999).
126
popularizao dos santos padroeiros, principalmente com o advento das novas ordens
medicantes.
Foi necessrio, portanto, outra medida para garantir o monoplio papal no controle
dos santos s poderiam ser chamados sancti aqueles que o papa tivesse canonizado.
Os venerados localmente ou apenas, por Ordens Religiosas seriam os beati. Em outras
palavras, os cultos locais seriam tolerados, mas o reconhecimento oficial ficava
reservado queles, cujas vidas e virtudes, de acordo com a Santa S, servissem melhor
como modelo para os cristos de toda a Igreja.
Tal medida acabou por provocar um grande debate teolgico a declarao da
santidade um ato infalvel do papa? Enquanto os especialistas em Direito Cannico se
inclinam pela negativa, os telogos assumem que sim. Mas, no basta dizer sim ou no
ao papa. A questo que se coloca que, enquanto a beatificao no afirma que o
Servo de Deus esteja efetivamente no Cu, a canonizao assegura isso. A
manuteno dessa prtica de diferenciao entre beatos e santos acabou sendo
incorporada totalmente ao processo de canonizao, o que de certa forma parece
contradizer o princpio teolgico da infabilidade papal, pelo menos no que se refere a
um perodo mais recente, j que tal princpio foi estabelecido no Conclio Vaticano I, em
1870.
VAUCHEZ (1987) indica que no final do perodo medieval, o nmero de pessoas
contempladas com uma investigao formal comeou a se estreitar, refletindo as
prerrogativas do papado, pois as famlias reais piedosas e os bispos pastoralmente
sensveis que monopolizaram a ateno dos fiis, j no pareciam apropriados como
modelos para a Igreja universal, o que nos remete s reflexes iniciais do item anterior
quando diferentes estudiosos se posicionaram pela transitoriedade do sentido de ser
santo.
A julgar pelas causas bem sucedidas, o que interessava a Roma eram candidatos
cujas virtudes no pudessem ser confundidas com sucesso puramente humano. A
preferncia recaiu sobre os que se dedicavam a formas radicais de pobreza, castidade
e obedincia caminhos de renncia que distinguiam a vida religiosa da vida do leigo.
127
Muitos canonizados haviam fundado ordens religiosas ou movimentos atravs dos quais
suas idias pessoais se institucionalizaram e perpetuaram150.
Nesse sentido, a tendncia das canonizaes j no favorecia somente os
benfeitores pblicos, monarcas e bispos, mas tambm aqueles que renunciavam ao
mundo e, sobretudo, se tornavam defensores e propagadores da f.
VAUCHEZ, no entanto, esclarece que estes santos no eram os mais populares
entre a arraia mida, com exceo a So Francisco de Assis. A justificativa era que, a
grande massa de devotos estava mais interessada nos santos enquanto protetores
contra a peste e as tempestades do que com os exemplos morais, tambm porque as
virtudes ascticas e intelectuais dos santos de Roma no podiam ser imitados fora dos
claustros, reforando a mxima que pregava fora da religio, no h santidade151.
Este historiador apontou ainda que a transformao das vidas em textos
hagiogrficos revela uma nfase crescente na vida contemplativa em oposio ativa,
no desapego ao mundo em contraposio ao engajamento e na vida interior, como
melhor que a ativa o que levaria a uma redefinio da santidade como um estado de
vazio interior to completo que a alma pode receber o Dom de Deus e a infuso do
Esprito Santo (198 7, p. 71).
Os poucos leigos, homens e mulheres canonizados tambm foram enquadrados
em modelos monsticos e msticos152. Nesse sentido, a cristandade medieval contou,
em larga medida, com uma cultura de santos e de suas supostas intervenes. Todas
as cidades e mesmo as aldeias tinham seu santo padroeiro, assim como todos os
150
O paradigma de santo do sculo XIII era Francisco de Assis (1181-1226), visto largamente como um alter Christus,
por ele ter sido a primeira pessoa a receber no corpo as stigmata, ou seja, as feridas do Cristo. O centro de sua
espiritualidade o tema da humanidade de Jesus e sua orao possui o trao caracterstico da universalidade e da
fraternidade de todas as criaturas. Foi canonizado, apenas dois anos depois de sua morte. Sua irm espiritual Clara de
Assis (1193-1253), freira contemplativa e fundadora das clarissas, ordem fiel ao ideal de seguimento do Cristo e de
rgida pobreza e fidelidade aos ideais de Francisco. O papa Inocncio IV esteve a ponto de canoniz-la em seu leito de
morte, o que s ocorreu em definitivo dois anos depois (PADOVESE, 2002).
151
Essa caracterstica medieval encontra forte ressonncia em Roma at hoje. Sem voto pblico ou privado de pobreza
e castidade e sem a indicao de uma ordem religiosa, dificilmente um processo aceito pelas autoridades da
Congregao para a Causa dos Santos que justifica que a santificao objetiva a imitao dos fiis e no para que lhes
sejam concedidas graas e milagres. Naquele contexto, estabeleceu-se uma tenso que perdura nos dias atuais: santos
como exemplo das virtudes e a taumaturgia, pois para os homens em geral, o milagre o filho predileto da f
(DANIKEN, 1976).
152
So Elzear de Sabran, foi o nico leigo canonizado no sculo XIV. Alm de suas revelaes e vises, havia o fato
de um casamento no consumado, de 25 anos, com a beata Delfhina de Puimichel. Santa Brgida da Sucia e Santa
Catarina de Siena, famosas virgens e msticas, foram as nicas mulheres canonizadas entre os sculos XIV e XV
(PADOVESE, 2002).
128
129
tratamento
dado
fontes,
quanto
nas
cincias
mdicas,
reduziram
anos aps a morte do candidato para que suas virtudes fossem discutidas pelo
Vaticano, a fim de se evitar que a santidade fosse fruto de uma passageira celebridade.
153
Entre 1734 e 1738, Lambertini publicou, em 5 volumes, De servorum Deibeatificatione et beatorum canonizatione
Sobre a beatificao dos servos de Deus e a canonizao dos beatos (WOODWARD, 1992).
130
Com a reforma, esse perodo de tempo foi preterido, mas as instrues eram claras
quanto aos cuidados que os bispos teriam que ter para no serem influenciados pelos
meios de comunicao, sempre vidos por modismos. Nessa fase era comum uma
pessoa ou um grupo, iniciar a arrecadao de fundos para o pagamento dos trmites do
processo, o que normalmente ocorria por conta de uma ordem religiosa que alm de
poder arcar com essas despesas, tinha o know-how e interesse institucional para
encaminhar e acompanhar o processo at a sua concluso;
2.
bispo local institua o Processo Ordinrio, oferecendo material para a Congregao dos
Ritos que aps as anlises iniciais, podia ou no sugerir a abertura de um Processo
Formal, em que testemunhas eram ouvidas e o candidato passava a ser designado
como Servo de Deus. Visava-se nesse estgio estabelecer se havia de fato uma
reputao slida de santidade ou martrio e se os fatos arrolados sustentavam essa
reputao. Ainda nesse perodo prevalecia a proibio de objeto ostensivo de
venerao do suposto santo154.
3.
deus eram examinados pelos censores teolgicos para julgamento da ortodoxia de seus
ensinamentos e opinies. Este estgio podia ser bastante demorado dependendo da
quantidade e do teor desses escritos. Se o candidato tivesse sido ousado
intelectualmente em matria de f, sua obra necessariamente era escrutinada com
maior rigor. Um candidato a santo que tivesse divergido, de alguma forma, com os
princpios tradicionais, era naturalmente recusado155.
4.
Fase Romana: era aqui que o processo ganhava substncia. O dossi era
Esta determinao referia-se determinao de Urbano VIII que proibiu o culto santoral, dos no-canonizados
oficialmente por algum papa.
155
Desde 1940, o Vaticano instituiu o nihil obstat, uma espcie de salvo-conduto, uma declarao de que no existe
nada de objetvel contra o Servo de Deus nos arquivos do Vaticano, qualquer informao confidencial sobre sua
obra ou o comportamento do candidato que poderia suspender definitivamente um processo (RODRIGO, 1988).
131
Seo Histrica: criada em 1930 por Pio XI, especialmente para tratar de
causas antigas e de alguns problemas que o processo judicial no tinha como resolver,
como aqueles que no contavam mais com testemunhas oculares, o que exigia ento
uma pesquisa histrica, ou ainda julgamentos de virtudes ou martrio que dependiam
muito das provas histricas.
6.
156
132
considerado, apesar do rigor das investigaes, como humano, portanto falvel. Para
garantir a beatificao ou canonizao eram necessrios os sinais divinos, os milagres
ocorridos por intercesso do suposto santo. E vale lembrar que o processo pelo qual se
provava e comprova atualmente um milagre, to rigorosamente jurdico quanto as
investigaes acerca do martrio e das virtudes hericas.
Um processo de milagre deve provar que Deus operou, de fato, um milagre
geralmente uma cura fsica, por intercesso de um dos Servo de Deus. Como no
Processo Ordinrio, o bispo da diocese onde supostamente teria ocorrido o milagre,
recolhia a evidncia e os testemunhos, tudo devidamente autenticado em cartrio.
Depois, a trajetria se assemelhava a uma positio e cabia congregao discutir,
refutar ou defender as provas. Um grupo de mdicos era chamados a estudar as
provas, para determinar se a cura no poderia ter ocorrido por meios naturais. Em caso
negativo, o processo era entregue a telogos consultores que, mediante provas
circunstanciais, opinavam se o alegado milagre poderia ter ocorrido por oraes ao
Servo de Deus. Os casos de oraes e pedidos para o Servo em discusso, juntamente
a outros santos j oficiais, eram desconsiderados. Se o parecer dos consultores
coincidisse com o dos cardeais, cabia ao papa certificar a aceitao do milagre.
8. Beatificao: antes da beatificao, o papa podia, a despeito dos mritos
comprovados, determinar que ela era inoportuna158. Caso contrrio o papa mandava
fazer um Decreto de Beatificao e escolhia um dia para a cerimnia.
9. Canonizao: depois da beatificao, o processo s prosseguia quando novos
sinais divinos surgiam e o processo do milagre se repetia. Quando o ltimo milagre
requerido, de um total de quatro, era examinado e aceito, o papa expedia uma Bula de
fatores explicveis cientificamente e que no esto necessariamente relacionados santidade de uma pessoa
(CNDIDO, 1991, p. 71).
158
Normalmente quando envolviam questes polticas
133
Canonizao, declarando que o candidato deveria ser venerado como santo pela Igreja
universal.
A cerimnia solene na Baslica de So Pedro encerrava a longa trajetria, desde a
preparao de santinhos para a arrecadao de fundos at a declarao do papa
acerca da mensagem que o novo santo trazia para o mundo cristo. Em decorrncia a
todas estas exigncias e da demora, s vezes por dcadas, o papa Paulo VI (1963-78)
nomeou uma comisso de canonistas e prelados da congregao para que estudassem
um meio de simplificar e, sobretudo, atualizar tais trmites.
WOODWARD indica dois fatores para essa iniciativa: que a teologia e as cincias
humanas fossem mais valorizadas no processo de exame e verificao de uma
santidade e que o processo de fazer santos fosse repensado e revisto de acordo com os
princpios de colegialidade do Vaticano II159.
Durante o conclio, o cardeal belga Joseph Suennens, da ala progressista, sugeriu
que o direito de beatificao fosse devolvido s conferncias episcopais de cada pas,
visando a agilizao do processo e uma ao mais diversificada e, em princpio, mais
representativa dos prprios fiis. Apesar de no receber muito apoio, a proposta do
cardeal Suennens refletia a esperana de libertar, de certa forma, os processos
santorais da burocracia vaticana.
O resultado disso foi que a comisso criada por Paulo VI avanou, pouco a pouco
e, em janeiro de 1983, com o aval de Joo Paulo II, o sistema foi oficialmente alterado,
com o anncio da Constituio Apostlica Divinus perfections Magister, a reforma mais
significativa desde os decretos de Urbano VIII, no sculo XVII.
Em primeiro lugar, toda a responsabilidade de reunir provas em apoio a uma causa
passava para as mos do bispo local. E, em segundo, foram abolidos os debates entre
o advogado da defesa e o Promotor da F - o Advogado do Diabo, doravante
denominado Prelado Telogo, e cuja funo passou a ser a de escolher os consultores
teolgicos para cada causa, alm de presidir as reunies deste grupo.
159
luz destes princpios, os bispos locais deveriam ser vistos no como simples legados do papa, mas como
sucessores do colgio original de 12 apstolos e, desse modo, co-responsveis, juntamente com o papa, pelo
governo da Igreja (WOODWARD, 1992, p. 87)
134
160
O historiador Reinaldo dos SANTOS (2000) enfatiza a importncia da biografia santoral pois por meio dela
feito o reconhecimento, a divulgao e a (re) construo da memria do personagem sacralizado. Assim, a biografia
se configura como uma valiosa fonte de pesquisa sobre as tramas presentes na edificao de um santo, enquadrando
uma pessoa num perfil que o eleva categoria de divindade e, portanto, de exemplo para os demais cristos.
135
essa questo jamais ocorreu aos cristos primitivos porque a voz da Igreja era, neste
particular, a voz do povo. Hoje, porm, a voz do papa, falando em nome de uma Igreja,
que determina quem a Igreja deve venerar oficialmente como santo. A regra : o povo
prope e o papa, depois das devidas investigaes, dispe (1992, p. 36).
136
por novos santos. Mas, enquanto os primeiros, elegem espontaneamente seus santos
de devoo, a Igreja defende toda uma ritualstica, no s do culto, como tambm da
comprovao dos milagres. verdade que Roma, num passado recente, facilitou o
processo santoral, mas no abriu mo do controle que exerce sobre o que considera
ortodoxia: milagres e santificao.
137
138
pequena imagem de Nossa Senhora Conceio, sem a cabea. Fizeram nova tentativa
e a cabea da imagem veio na rede, no se sabendo nunca quem ali a tivesse lanado.
Da em diante os peixes chegaram em abundncia.
Nos quinze anos seguintes, a imagem aparecida nas guas do Rio Paraba ficou
com a famlia do pescador Felipe Pedroso, que a levou para casa, onde as pessoas da
vizinhana se reuniam para rezar o tero, normalmente aos sbados. A devoo foi
crescendo e muitas graas foram, supostamente, alcanadas por aqueles que rezavam
diante da imagem. A fama dos poderes extraordinrios de Nossa Senhora se espalhou
por regies cada vez mais distantes, levando Felipe Pedroso a construir um oratrio
maior, mas que logo se tornou pequeno. Por volta de 1734, o vigrio de Guaratinguet,
com permisso do bispo do Rio de Janeiro, construiu uma capela no alto do Morro dos
Coqueiros, que margeia o Paraba, aberta visitao pblica em julho de 1745, aps a
celebrao da primeira missa diante da milagrosa imagem.
Entretanto, como a devoo atraa sempre mais romeiros, em 1834 foi iniciada a
construo de uma igreja maior, a atual Baslica Velha165. No final daquele mesmo
sculo chegaram ao local um grupo de padres e irmos da Congregao dos
Missionrios Redentoristas, para trabalhar no atendimento dos fiis. Em 1904, a
imagem de Nossa Senhora da Conceio Aparecida166 foi coroada solenemente e
cinqenta anos depois as romarias exigiam a construo de uma outra igreja, a atual
Baslica Nova167 que foi consagrada pelo papa Joo Paulo II em 1980, quando ainda
estava em construo.
O final das obras se deu, em 1984, quando a Conferncia Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) declarou oficialmente a Baslica de Aparecida como Santurio Nacional,
reconhecido desde ento como o maior Santurio Mariano do mundo168.
Atualmente este santurio o maior centro de ao e de irradiao evangelizadora
do pas, realizando as disposies da Pastoral dos Santurios e Romarias que entende
165
Chamada de Aparecida do Norte, em funo dos romeiros da cidade de So Paulo que para l viajavam a partir da
Estao Ferroviria do Brs, conhecida como Estao do Norte.
166
Condensa-se na imagem da Santa o ideal da miscigenao das raas. Nossa Senhora, nacionalssima, negra com
traos europeus e usa uma coroa semelhante que pertenceu Princesa Isabel (VEJA, 17.03.1999, p. 77).
167
O projeto arquitetnico de Benedito Calixto, em forma de cruz levou quase trinta anos para ser concludo, em boa
parte devido as suas dimenses: 23 mil metros quadrados de rea construda, sendo que 18 mil metros se referem
rea coberta do santurio, cuja cpula fica a 70 metros e a torre se ergue a 100 metros de altura.
168
http://www.ositedossantos.hpg.ig.com.br/nsa_aparecida.html. Acesso em 02.02.2003.
139
que o Santurio para muitos fiis, o nico lugar onde ouvem a palavra de Deus e
recebem os sacramentos.
Da a necessidade de uma ateno especial com eles, ainda que a hierarquia
eclesial reconhea que, muitas vezes so motivos interesseiros que levam os romeiros
peregrinao, pois em grande parte, os peregrinos so cristos que no participam
assiduamente da vida das nossas comunidades (7 Plano Bienal, 1983- 84, da CNBB,
Documento n 29).
Desde a sua inaugurao, em 1745, a capela recebe peregrinos durante o ano
todo. As estimativas apontam que, por volta de 1900, o nmero anual de visitantes era
de 150 mil, em meados do sculo passado, esse nmero atingia a marca de um milho
de romeiros e, no limiar do atual sculo, os devotos chegam casa dos 7 milhes
(GAZETA DO POVO, 12.10.2002, p.17).
Pesquisas recentes indicam, que a devoo a Nossa Senhora, no se restringe ao
santurio, pois existem mais de trezentas e trinta parquias espalhadas por todo o pas,
dedicadas a ela. Alm disso, os modernos meios de comunicao marcam a pastoral
do Santurio, cuja mensagem no se restringe apenas ao prprio templo e ao espao
sagrado que o circunda. Pela Internet, pela televiso e pelo rdio, os fiis de todos os
cantos do pas acompanham as celebraes, oraes e novenas. A Rdio Aparecida, a
Rede Catlica de Rdio, a Rdio Cultura de Televiso, a Rede Vida de Televiso entre
outras emissoras, transmitem as celebraes para o Brasil todo.
No Brasil, o Movimento Mariano perceptvel de vrias formas. As mais visveis
so as festas que ocorrem no Santurio de Aparecida do Norte e, em Belm, do Par,
onde se festeja Nossa Senhora do Crio de Nazar169. Alm desses, atribuem-se
numerosos ttulos Virgem Maria: Nossa Senhora de Nazar, Nossa Senhora de
Lourdes, Nossa Senhora de Ftima, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora do
169
Festejos realizados durante toda a primeira quinzena do ms de outubro. Considerado como uma das maiores
manifestaes de f do mundo catlico, atrai capital paraense um crescente nmero de turistas que, em meio
populao local, promovem uma enorme romaria em homenagem santa e revivem a lenda do caboclo que encontrou
a imagem da santa e a levou para casa, embora ela reaparecesse sempre onde havia sido encontrada. Nesse local foi
construda a Igreja de Nossa Senhora de Nazar e, em 1793, se realizou a primeira procisso e o primeiro Crio, que
se tornou, ao longo do tempo, marca da cultura regional.
140
141
princpio de
172
Quando catlicos foram massacrados por ndios e holandeses que dominavam a ento capitania de Pernambuco.
A imprensa estima que a causa de Madre Paulina tenha consumido 100 mil dlares e que, parte considervel deste
valor, tenha vindo de Trento, no norte da Itlia, local de nascimento da Santa Paulina (DIRIO CATARINENSE,
27.02.2002, p. 4).
173
142
Congregao das
174
Considerada a 3 Congregao religiosa em patrimnio do Brasil, administra hospitais, asilos, conventos, creches e
escolas (VEJA, 06.02.1991, p.18).
143
144
O processo santoral do beato Frei Antonio de SantAna, mais conhecido como Frei
Galvo, sacerdote da Ordem dos Frades Menores Descalos e fundador do Mosteiro
das Irms Concepcionistas do Recolhimento da Luz, na cidade de So Paulo, conta
tambm com a irm Cardorin, da Congregao das Irmzinhas da Imaculada
Conceio, como postuladora de sua causa, a pedido do ento cardeal-arcebispo de
So Paulo, D. Paulo Evaristo Arns.
Iniciado em 1938, esse processo ficou praticamente parado at os anos oitenta
do sculo passado. O frei franciscano nascido em Guaratinguet (SP) e morto em 1822,
foi beatificado em outubro de 1998, como nico brasileiro nato com o ttulo de beato175.
O milagre legitimado pelo Vaticano, para sua bem-aventurana, ocorreu em 1990,
quando uma criana de apenas 4 anos contraiu hepatite aguda, diagnosticada como
insuficincia heptica fulminante. A menina sofreu uma parada cardaca e, desenvolveu
infeco respiratria e hospitalar, durante o perodo em que esteve internada.
Desenganada pelos mdicos, recebeu alta um ms depois, sem que permanecesse
qualquer seqela.
Enquanto esteve na Unidade de Terapia Intensiva UTI, do hospital, sua me
tomava as plulas milagrosas176 e logo depois, j na pediatria, a paciente passou a
ingeri-las. O seu restabelecimento foi relatado por seu mdico como um ato divino ao
Tribunal Eclesistico da Arquidiocese de So Paulo, o que foi decisivo para sua
beatificao.
Quando morreu, frei Galvo j tinha fama de santo, o que de certa forma justifica
que, durante o seu velrio, no Mosteiro da Luz, chegaram a cortar pedaos de sua
batina, e que depois de seu sepultamento, a primeira lpide do tmulo, no altar-mor da
igreja foi quebrada em pequenos pedaos e levada por fiis177. Naquela ocasio,
naturalmente sem qualquer apoio da Santa S, qualquer objeto do religioso j tinha
valor de relquia, segundo a historiadora Thereza Maia, que o biografou.
175
Madre Paulina era de nacionalidade italiana, enquanto o jesuta Jos de Anchieta e os trinta mrtires de Cunha e
Uruau eram portugueses.
176
Constituem-se de uma orao Virgem Maria escrita em pequenos pedaos de papel, enrolados e formatados
como plulas e ingeridos como medicamento.
177
Tanto os pedaos da batina quanto as lascas da lpide, certamente se constituam, para os fiis, em objetos
devocionais.
145
146
147
148
A lista dos lanamentos e reedies daquele ano composta por trs ttulos dedicados a So Francisco de Assis:
Irmo Sol Cenas da Vida de So Francisco de Assis, de Valerie MARTIN (S Editora/Emprio do Livro); So
Francisco de Assis, de Maria STICCO (Vozes) e So Francisco de Assis, de Jacques LE GOFF (Record), e do
mesmo historiador So Lus (Record); Tereza vila recebeu duas biografias, uma de Elisabeth REYNAUD (Record) e
outra de Max CARPHENTIER (Loyola) e Joana dArc foi biografada por Mark TWAIN (Record). Ariadne
GUIMARES e Ana Lcia PROA publicaram O Livro dos Santos (Ediouro), entre outros.
149
o sentimento religioso cresce junto com as dvidas e mazelas que envolvem dinheiro (...)
uma espcie de termmetro das crises (...) o auge das manifestaes de devoo foi nos
anos 80, quando a inflao chegou a 80% ao ms (...) atualmente com os ndices
alarmantes de desemprego, o altar fica coberto de carteiras profissionais durante as
missas, o que confirma a associao de sua intermediao nas questes materiais (ISTO
150
151
152
tempo, permitem retratar a realidade social em seus aspectos mais cotidianos e, muitas
vezes, historicamente mais significantes.
Seguimos a trilha aberta por Gilberto FREYRE que ao prefaciar o trabalho Notcias
e anncios de jornais de jornais, de Amaro QUINTAS, defendeu que,
Nos dias subseqentes, outros dirios desta cidade, tambm informaram seus
leitores acerca deste crime. Segundo o peridico A Repblica, as autoridades policiais,
tendo tomado conhecimento do fato, dirigiram-se ao local do crime e depois das
primeiras investigaes, transportaram o cadver para o Hospital da Caridade180 onde
se procedeu o exame de corpo de delito, verificando-se que a morte havia ocorrido por
uma quase decapitao. O Chefe de Polcia indiciou como responsvel pelo crime, o
179
Nem esta, nem as demais matrias jornalsticas que denunciaram o assassinato de Maria da Conceio Bueno, se
ocupou em focalizar sua vida pretrita. Os primeiros dados foram apontados, muitos anos mais tarde, por Sebastio
Isidoro PEREIRA (1948). Segundo o autor, Maria Bueno teria nascido num lugarejo chamado Rio da Prata,
municpio de Morretes, em 08.12.1864. Tendo o pai, Pedro Bueno, sitiante muito pobre, desaparecido na Guerra do
Paraguai, sua me Julia teria se mudado com ela para a Capela de Tamandu, lugarejo prximo a Campo Largo da
Piedade. Anos depois, com a morte de Julia Bueno, a menina, com seis anos, ficou aos cuidados de uma irm mais
velha. Ao perder uma criana, ainda no puerprio, esta irm foi acometida de sucessivos acessos de loucura, e nestas
ocasies investia furiosamente contra Maria Bueno, que por isso, ainda muito jovem, foi trazida para Curitiba (1880),
para o Convento das Irms Marcelinas. Em 1888, essas freiras se transferiram para a cidade do Rio de Janeiro, e
Maria Bueno se empregou como domstica, permanecendo nesta cidade. Como, supostamente, se tratasse de uma
morena muito bonita tornou-se muito assediada. Um de seus admiradores, tomado de paixo doentia teria, em acesso
de cimes, lhe teria tirado a vida.
180
Atual Santa Casa de Misericrdia de Curitiba, na Praa Rui Barbosa, antigo Largo da Misericrdia.
154
181
155
Maria Bueno184, em que o memorialista apontou que Jos Diniz estivera de guarda sem
faltar aos brados darmas na rendio dos quartos, conforme constava dos autos do
processo.
Porm, pouco depois do crime, uns recrutas faxineiros, lidando no poo, iaram um
velho balde e uma pequena trouxa enroscada na beirada rendilhada de bicos pelo largo
uso. Admirados, conforme relato de Sebastio Isidoro, os recrutas abriram-na e nela
encontraram um punhal e uma gandola azul ferrete e s costas, um certo nmero.
Diante da constatao de que a arma e o capote serviam ao anspeada, o ru teria
confessado a autoria do crime, afirmando que alta noite, sara sorrateiro ajustando
contas de cimes com a amsia e voltara depois, tudo em acelerado (PEREIRA, 1948,
p.9).
Por ocasio do julgamento, A REPBLICA (14.07.1893, p.3) noticiou que os
debates estiveram frouxos, talvez em parte porque o ru contou com um defensor
pblico, o cidado Joo Antonio Xavier, ex-vogal do Tribunal de Apelao, visto ter se
recusado a lhe prestar socorro de sua palavra o Dr. Cludio dos Santos.
A defensoria alegou que outra pessoa poderia ter cometido o crime achando-se
armado com aquela faca e gandola, do indigitado criminoso, j que as provas eram
apenas circunstanciais, pois o crime no tinha sido presenciado por nenhuma
testemunha e que o ru s teria se identificado como autor do assassinato, sob presso.
Ao finalizar a matria, o articulista revelou com indignao que, contra Diniz havia
um acervo de provas que no foram destrudas pelo seu defensor e que apesar do
rigor com que eram tratados os criminosos naquela poca, os doze jurados,
considerados homens severos e de responsabilidade na sociedade, no comrcio e nas
cincias, desmentiram tal assero e absolveram Diniz: foram onze votos a favor do
ru, contra um. Em face desse resultado, sua posio foi enftica:
184
156
dadas as circunstncias e normas em uso, Diniz teria comparecido perante a justia civil,
porque recebeu ordens diretas de seus superiores militares para faz-lo, ir ao local
indicado no ofcio de convocao, encaminhado ao comandante do Distrito que, por sua
vez o retransmitia ao comandante do quartel e que talvez pr- concebidamente ou por
costume da caserna, no dava maior ateno aos trmites judiciais das autoridades civis.
Por isso, bem provvel que por lhe convir o mutismo e as negativas nas respostas, no
confessou e no foi condenado, por falta de provas (1996, s/p.).
Filho do escrivo responsvel pelos autos do processo policial, que teria, ao longo do tempo guardado recortes de
jornais e anotaes pessoais com os quais estaria preparando um livro que no chegou a ser concludo. Embora
SECUNDINO JR. no tenha afirmado, parece bastante plausvel que ele tenha se encarregado de terminar a tarefa
iniciada por seu pai.
186
Atual Praa Generoso Marqus.
187
Revoluo desencadeada em Porto Alegre, em 1893, entre os florianistas que defendiam o presidencialismo e o
positivismo, representados pelos chefes do governo local, Julio de Castilhos e os federalistas que lutavam pelo
parlamentarismo e pretendiam revogar a Constituio gacha que permitia a reeleio ilimitada do presidente do
estado (atual governador). Os federalistas liderados por Silveira Martins e Gumercindo Saraiva, contavam com apoio
de boa parte dos estancieiros. Unidos aos rebeldes da Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, avanaram sobre Santa
157
158
Diniz, informado a populao curitibana dos fatos, cumprindo desta forma o papel que
lhe cabia. Mesmo porque, apesar do barbarismo do crime, ele foi considerado, naquela
poca, apenas mais um de carter passional, entre tantos outros.
159
ningum o saberia dizer e no entanto, nenhum crime dessa natureza abalara tanto o
sentimentalismo curitibano (...) em torno de seu tmulo as promessas se multiplicam todos
os anos. Geraes que no a conheceram, lhe prestam memria o mesmo culto (...)
daqui a cem anos, quem sabe, a imagem da modesta criatura repouse nos altares, at l
erguida pela fora espiritual dos crentes de agora (...) a psicologia das multides que faz
os heris e os santos (GAZETA DO POVO, 18.01.1934, p. 8).
foi sendo tecida uma aurola de santidade, cada vez maior, com os milagres que se foram
procedendo, em favor dos que recorriam sua alma pedindo graas em troca de algumas
191
Acreditamos que as cenas do crime e do julgamento e morte do acusado representaram apenas um entorno para seu
principal objetivo: revelar a existncia efetiva de uma devoo piedosa em torno de Maria Bueno. Nesse sentido, o
articulista confirma as afirmaes do historiador Reinaldo dos SANTOS, para quem os relatos e as biografias so
instrumentos importantes para a construo de uma reputao santoral, pois por meio deles que feito o
reconhecimento, a divulgao e a (re)construo da memria envolvendo um personagem sacralizado (2000, p. 43).
192
O que confirmamos pelo exame das placas votivas, algumas datadas do incio dos anos de 1930, que atualmente
revestem o tmulo e o muro frontal do Cemitrio Municipal So Francisco de Paula (Reproduo de algumas placas,
um pouco mais adiante, ainda neste captulo).
160
velas, no local do crime. Durante muito tempo isso se repetiu. A cruz193 ali colocada por
algum crente fervoroso foi um dia transportada, por ordem da Prefeitura, para o Cemitrio
Municipal So Francisco de Paula, onde comeou a ser feita a romaria ao seu tmulo (Ibid,
Id.).
A reportagem se refere ainda ao fato de que Maria Bueno teria sido enterrada em
cova rasa, no local do crime, em um capo de mato, numa ruela deserta, mal iluminada,
sem calamento, chamada de Campos Gerais194 e que, anos antes daquela publicao,
seus restos mortais teriam sido transladados para os fundos do Cemitrio Municipal, o
que no foi confirmado pela Administrao do Cemitrio, uma vez que o registro do
sepultamento data de 30 de janeiro de 1893, tmulo n 3903, quadra 13, rua 4, portanto,
no dia imediato sua morte.
O fato da matria se referir ao sepultamento em cova rasa expressa, segundo
nosso entendimento, a fora do imaginrio social e a presena de certos ingredientes,
geralmente incomuns ou at mesmo fantsticos, na construo de um mito popular.
Nesse sentido Michel VOVELLE (1987) defende que a relao imaginria dos
homens com suas condies reais de existncia significam por um lado, um conjunto de
representaes, enquanto de outro, expressam prticas e comportamentos conscientes
e inconscientes, segundo suas prprias experincias pessoais.
A anlise de Pierre ANSART (1978), tambm se encaminha nessa direo, pois
para ele, nenhuma prtica social redutvel unicamente aos seus elementos fsicos e
materiais. necessrio que esta se realize numa rede de sentidos e que ultrapasse a
segmentao dos gestos individuais.
Nessa perspectiva, o mito construdo ou em construo, expressa uma experincia
cotidiana, um imaginrio vivido, coletivamente, alm de ressaltar o modo de relaes
193
A cruz demarcando o local do crime nos sugere uma releitura das antigas capelinhas de beira de estrada, apontadas
por Oscar BEOZZO (1977). Lugares santificados pela fora de leigos, erigidas em honra de algum santo, essas
capelinhas expressavam, no contexto rural colonial, o que as irmandades e confrarias representavam nas cidades.
Apesar de tratar-se de associaes leigas, estas ltimas estavam sujeitas aprovao da Santa S e ao controle do clero
local, enquanto aquelas outras, at mesmo por sua condio de isolamento, expressavam a espontaneidade da f dos
devotos, que sem interferncia clerical procediam s rezas, ladainhas e festejos. E a se encontra, segundo nosso
entendimento, o ponto de convergncia com a devoo primicial Maria Bueno. Mesmo que o sepultamento tenha
sido realizado no cemitrio, parece bastante provvel que no lugar do crime tenha sido fincada uma cruz. Tal ato,
demarcou e sacralizou o local, que deixou de ser um lugar manchado de sangue, para se tornar um lugar piedoso. E
para os que l se prostavam, acendendo velas, orando, pedindo graas ou agradecendo, o que valia era o carter
sagrado com que o local se revestiu, independente de consentimento ou aprovao da hierarquia clerical.
194
Atualmente Rua Vicente Machado, aproximadamente na altura do nmero 190, na regio central desta cidade.
161
dos homens consigo mesmos, e com os outros, atribuindo-lhes, quase sempre, uma
forma magnificante, quando no dramtica.
Nessa linha, o historiador espanhol Oscar Calavia SEZ (1995, p.18), em seu
estudo acerca de mitos e mortos no campo religioso brasileiro, afirma que no relato
rico em equvocos que o santo respira e se cria.
Essa afirmativa parece confirmar o que foi registrado, no final da dcada de 1930,
numa publicao de Paranagu/ PR, a Marinha Revista do Litoral Paranaense, em
artigo no assinado que afirmava que,
com olhos rasos de interesse, Curitiba vem assistindo ao fiat de uma santa, isto , a
metamorfose em santa de uma pobre mulher assassinada. A canonisao popular no se
delonga, mesmo mais expedita que a eqipolente do ritual eclesistico, faz justia
moderna, encurta os largos prasos interloctrios e salta os degraos hierrquicos
conducentes ao definitivo incenso no radioso nicho (MARINHA, n.27, dez. 1939).
Identifica-se nessa fala a materializao do conceito de circularidade cultural trabalhado por Mikhail BAKHTIN,
Carlo GINZBURG, Michel VOVELLE, entre outros.
162
eterno de Madalena, esculpido, no panteon das idades, pelo amor, o calvrio do destino
de tragdias de onde se geram religies (MARINHA, n.35, ago.1940).
No contexto da religiosidade popular o imaginrio social tem se mostrado historicamente vulnervel s mulheres e,
sobretudo s crianas, quando envolvidas em mortes trgicas. Seguem alguns dos muitos exemplos desse fenmeno: a
devoo Menina sem Nome, mendiga da Praia do Pina, em Recife (PE), batizada assim pelos reprteres policiais
que acompanharam o caso, morta aos sete anos aproximadamente, aps ter sido estuprada (SEZ, 1995); a Menina
Izildinha, de Monte Alto (SP), considerada protetora das crianas.Tendo morrido muito jovem em Portugal, seu caixo
foi trazido para o Brasil, em 1930, pelo comendador Antonio Castro Ribeiro, seu irmo que teria afirmado que aberto
o atade ainda em Portugal, o corpo da menina estaria intacto e as rosas depositadas durante o velrio, ainda estariam
vivas e perfumadas (SANTOS, 1997); Iracema, a menina de 7 anos que tambm morreu aps ter sido violentada em
Marlia (SP) (REIS, 1993), ou ainda Antonio Marcelino, o Santo Menino da Tbua, morto em 1945, depois de alguns
anos de intenso sofrimento fsico. Filho de famlia muito pobre, no teve qualquer acompanhamento mdico e os
relatos apontam para o fato de que no aceitava roupas, nem alimentos slidos. Sua existncia se resumia a ficar
deitado em uma tbua, de onde se originou sua alcunha (DAVID, 1994); Antoninho da Rocha Marmo outra criana
canonizada pelo povo. Morreu de tuberculose, em 1930, na capital paulista, aos 12 anos. O mito revela que ele, aos 5
anos rezava missa e promovia curas. Alm disso, teria suportado com admirvel resignao, o sofrimento causado
pela enfermidade e que, talvez por isso fosse capaz de prever alguns acontecimentos (REIS, 1993). Osvaldo XIDIEH
aponta que esse tipo de culto representa todas as almas, a crena faz sair do anonimato, do imenso mundo dos mortos,
uma figura bem definida, dando-lhe um nome e atribuindo-lhe umas tantas qualidades. Estas entidades individuais
podem ter sido pessoas que, em vida, feriram a ateno do meio social a que pertenciam ou ento, um simples produto
de sntese realizada dentro da prpria crena sobre as almas. Recebem tratamento idntico ao dos santos: orao,
teros, novenas e promessas (1972, p. 26-27). Outros exemplos j foram objeto de investigao pelos cientistas
sociais: Padre Ccero, de Juazeiro do Norte e pelos lderes messinicos Antonio Conselheiro, de Canudos e os monges
Joo e Jos Maria, da regio do Contestado. Esses e outros exemplos foram focalizados no contexto das religiosidades
populares, objeto do primeiro captulo deste trabalho.
163
Seguindo por esta mesma trilha, Luiz Carlos ARBUGERI, na publicao mensal
PANORAMA, depois de afirmar ter sido Maria Bueno uma mulher de vida fcil198, uma
Maria Madalena199 suburbana, cuja vida, jamais teria despertado interesse, revela que
naquela poca,
197
Na realidade deveriam ser franjas douradas. No entanto, para ns, a referncia original, em conjunto com fitas
ricas e baratas, constitui-se em um importante exemplo de circularidade cultural, em que os elementos apontados
no ocupam um lugar definido ou linear, antes se apresentam embaralhados, segundo conceituao de Mikhail
BAKHTIN (1987).
198
Tal julgamento nada traz de surpreendente ou mesmo contraditrio no que se refere construo de uma santidade.
Maria Bueno, no sendo casada e vtima de um crime passional, apresentava elementos suficientes para que se
lanassem dvidas quanto sua conduta moral, tanto na ocasio do crime, quanto nas dcadas seguintes. Margareth
RAGO, focalizando a prostituio e os cdigos de sexualidade feminina em So Paulo, entre o final de sculo XIX e
as primeiras dcadas do sculo XX praticamente o mesmo perodo que analisamos - afirmou que o enquadramento
conceitual da mulher era rainha do lar ou mulher da rua (...) este foi o caminho que os homens cultos do perodo
encontraram para se referirem condio feminina e codificao moral que valorizava a unio sexual monogmica, a
famlia nuclear, a virgindade, a fidelidade feminina, ao mesmo tempo que destinava um lugar especfico s
sexualidades insubmissas (1991, p.22-23). Pouco adiante, a historiadora aponta que apesar da relativa emancipao
da mulher, sua livre circulao pela cidade, sua entrada no mercado de trabalho, maior participao em reunies
sociais, a demarcao era muito bem polarizada, entre as honestas e as perdidas (p. 26). Naturalmente, Maria
Bueno, com quase trinta anos, solteira, parda, lavadeira de soldados rasos, sem familiares na cidade, disponibilizava,
ainda que no de forma intencional, elementos suficientes, para que, de acordo com a mentalidade daquela poca,
fosse enquadrada na segunda categoria, a das perdidas, das mulheres imaginariamente livres.
199
Oscar Calavia SEZ (1996, p.31) afirma que Maria Madalena seria a mais conhecida dessas santas mal afamadas
e sua apario no Evangelho a nica que sobreviveu blizt da Contra- Reforma. Depois aponta que uma das mais
belas e difundidas hagiografias da Idade Mdia a de Santa Maria Egipcaca, prostituta de Alexandria que num
impulso devoto segue um barco de peregrinos que viajavam a Jerusalm. No tendo como pagar a passagem, teria
ganho a romaria, com seu corpo. Sua justificativa para essas devoes de que a marginalidade do culto no implica
na marginalidade de seus praticantes. Seguindo por essa trilha, o antroplogo social Antonio FAGUNDES (1984)
elaborou o estudo de trs santas prostitutas no Rio Grande do Sul: Maria do Carmo, de So Borja, muito dada a beber
e a fumar, porm bondosa e amiga dos pobres. Assassinada, provavelmente por causa de cimes, foi depois
esquartejada e descoberta numa campa, quando partes de seu corpo, haviam sido comidas por ces; Izabel Guapa, de
164
diariamente o jazigo de Maria Bueno visitado por uma romaria de mulheres que lhe
oferecem flores e velas, solicitando graas para as suas dificuldades. Entre as devotas de
Maria Bueno esto desde a mais simples suburbana at a granfina mal embuada sob
discreto vu e seguida pelo choffeur solcito que conduz a braada de rosas finas. Todas
niveladas pela f, para conquistar da padroeira, improvisada, proteo para as suas
causas200 (PANORAMA, n.102, nov. 1960).
No entanto, vale ressaltar que, durante todo este perodo, nem a imprensa local,
nem os memorialistas se preocuparam em focalizar as possveis vozes de resistncia
nesse processo hagiolgico.
O longo silncio, reflexo de uma total indiferena, no foi capaz de interferir na
evoluo mitolgica da santinha Maria Bueno. Prova disso que em meados de
agosto de 1961, o dirio GAZETA DO POVO, esclareceu populao curitibana, em
pequena nota, que havia sido realizado o translado dos restos mortais201 de Maria
Bueno dos fundos do cemitrio, rea normalmente destinada aos indigentes, para o
atual sepulcro, na parte frontal do cemitrio, local destinado s famlias abastadas.
Nessa ocasio, foi construdo o mausolu, com a sua imagem no alto protegida, por
uma redoma de vidro, trajando um longo vestido branco de cetim.
So Gabriel, era tambm prostituta, dona de batacl. Levava uma vida luxuosa, sendo amante de um rico estancieiro
local. A mulher deste, foi a mandante do crime praticado por um miliciano. O crime na poca foi abafado, mas ganhou
projeo, 20 anos depois quando a filha da mandante, foi morta a tiros por seu noivo, sem motivo aparente. O
imaginrio social desenvolveu um culto intenso a Izabel, milagrosamente vingada, e Maria Degolada, que por volta
de 1920, havia sido amante de um cabo da Brigada Militar. Tambm movido por cimes, a teria degolado com uma
faca. Conta a lenda que junto figueira onde ocorreu o crime, Maria Degolada, passou a ser vista por muitos, em
forma de luz, vestida de branco, gemendo e chorando. A partir de ento, velas e flores foram sendo depositadas,
seguidos de pedidos e oraes de agradecimentos.
200
Novamente so apresentados elementos culturais da elite que se mesclam aos populares, reforando a circularidade
cultural defendida por BAKHTIN.
201
A fotografia tirada do tmulo, em 2002, onde ficava anteriormente o de Maria Bueno, nos oferece uma idia da
simplicidade em que ele deveria se constituir.
165
166
congregado
mariano,
portanto,
sujeito
da
enunciao,
embora
no
institucionalizado pela hierarquia eclesial, foi por ela institudo de poderes para
representar seu pensamento. Caso contrrio, teria sofrido alguma forma de censura, o
que no constatamos em nenhum momento. Ao contrrio, as homenagens que a Igreja
local lhe prestou por ocasio de sua morte, atestaram que o clero o tinha na mais alta
conta.
Nesse sentido, por se tratar de um discurso institudo, Eni ORLANDI (2000) alerta
para a necessidade de se conhecer, em linhas gerais, as condies dessa produo
discursiva, dimensionando, os elementos histricos e sociais e mesmo polticos que
estiveram presentes, no momento de sua formulao, para que a anlise no se reduza,
no caso de DALLEGRAVE, s suas crenas e descrenas pessoais
Assim, vale lembrar que, as primeiras publicaes deste jornalista no incio da
dcada de 1960202, estiveram impregnadas, de uma posio, dogmtica e romanizada
202
ngelo DALLEGRAVE escreveu dois livros de cunho religioso: Maria, a flor entre espinhos, traduzido para o
italiano e, Pedro, o Apstolo da F, que teria recebido aprovao eclesistica para sua publicao, conforme dados
167
disponveis na Sesso de Documentos, da Biblioteca Pblica do Paran, onde o autor atuou como bibliotecrio entre
1950 e 1976, data de sua morte.
168
Maria Bueno no santa e no faz milagres. Maria Bueno foi dessas pobres mulheres de
vida airada. Enquanto os santos so aqueles que imitam a Jesus Cristo e do testemunho
de sua f pelas obras praticadas pela heroicidade de suas virtudes (Ibid, Id.).
203
Martha dos REIS ao focalizar Iracema, a santinha de Marlia alerta para a multiplicao das verdades em torno da
vida e da morte de uma santidade popular. Para a historiadora as verses so muitas vezes contraditrias. Assim , no
se busca nesse caso, a verdade, mesmo porque no acreditamos que haja apenas uma, mas sim, diversas. Est-se
lidando com a criao de um imaginrio e fatores de toda ordem interferem no processo que de individual torna-se, ao
longo do tempo, coletivo e acaba por ser incorporado s tradies locais (1993, p. 74).
204
Canonizada, em 1985, como mrtir da pureza e por isso modelo para as jovens virtuosas, segundo o jornal catlico
VOZ DO PARAN (10.03.1985, p.1) teria morrido para salvar sua castidade. Filha de pobres camponeses, foi
assassinada por Alexandre Serinelli, filho do scio de seu pai, no arrendamento de terras no sul da Itlia.
205
Semanrio catlico criado pela iniciativa de D. Manuel da Silveira DElboux, o terceiro arcebispo de Curitiba,
entregue depois aos cuidados dos padres claretianos. Sua primeira edio data de 27.05.1956 e, segundo o primeiro
169
comentar, nenhuma nota anterior sobre essa ou outra qualquer devoo popular havia
sido objeto de anlise ou crtica. Ao que tudo indica, at aquele momento, a Igreja local
no se sentia incomodada com aquela manifestao popular de piedade. No entanto, a
transferncia do tmulo e, portanto do local de culto, de alguma forma, levou a Igreja a
se posicionar, e admitir que, mesmo contrrio sua orientao, este culto existia.
Transcorrido um ano daquela publicao, ngelo DALLEGRAVE voltou a se
pronunciar num artigo intitulado Maria Bueno Santa?. Segundo suas prprias palavras,
a proximidade com o Dia de Finados era uma ocasio propcia para esclarecer o povo
catlico desta cidade de um fato que, segundo ele prprio, se repetia todos os anos no
Cemitrio Municipal:
o povo ignorante, supersticioso, cobre o seu tmulo com flores, velas, ex-votos porque lhe
atribui poderes de santa, de mrtir, de taumaturga. Santos so aqueles que imitam a
Cristo e do testemunho de sua f, pelas obras praticadas e por suas virtudes (VOZ DO
PARAN, 28.10.1962, p.2).
aps o Conclio Vaticano II ou, logo depois, em Medelln, ocasio em que esta temtica
foi bastante discutida.
Neste contexto, vrios artigos do jornal curitibano, apontavam as discusses e
decises, especialmente do encontro episcopal, sem que houvesse, em qualquer
ocasio, feito qualquer referncia ao fenmeno local. Isso nos sugere que, no foi
estabelecida naquela ocasio e, nem mesmo depois, qualquer relao entre a teoria em
estudo e o reconhecimento de uma prtica local, de longa durao, ainda que a ttulo de
exemplificao.
DALLEGRAVE voltou cena, anos depois, com o mesmo questionamento: Maria
Bueno, Santa?, ao que ele mesmo respondeu afirmando que
editorial, assinado pelo seu mentor, destinava-se evangelizao e difuso permanente dos princpios da religio e da
tica catlica.
170
Posso chamar de santos meu pai e minha me por tudo que fizeram por mim e pelos
meus irmos, mas no posso exigir que outras pessoas os considerem desta forma. Se os
chamo de santos para exaltar meu amor filial. Mas, do mesmo modo, no posso chamar
de santo, seno aqueles reconhecidos pela Santa Igreja Catlica Apostlica Romana que
a nica que pode canonizar os santos catlicos postos nossa venerao (VOZ DO
PARAN, 25.08.1973, p.3).
171
210
Analisando os bilhetes deixados no altarzinho no interior da capela e as fitas de cetim, vermelhas, azuis e brancas,
amarradas na porta, no constatamos esse tipo de mensagem. Muitas expressam pedidos de interveno em casos de
doenas, de desemprego e problemas familiares, sendo que a maioria expressa apenas agradecimentos por graas
alcanadas, sem especificao de que natureza elas seriam, como por exemplo: Maria Bueno confio em sua ajuda;
Maria Bueno me socorra nessa grande dificuldade; Santinha me ajude, preciso de um emprego; Maria Bueno
interceda junto ao Pai; Agradeo pela sua ajuda; C.E.J. agradece por uma graa; Grato Maria Bueno, entre
tantas outras. (Fotografia n.3., em anexo)
172
173
Cidade que se preze cria seus prprios milagreiros, seus santos. S para lembrar: So
Paulo ainda cultua o menino Antonio da Rocha Marmo e a menina Izildinha que, alm de
milagreira, empresta seu nome para uma marca de azeitonas. Em Porto Alegre, os jornais
vivem cheios de agradecimentos s graas recebidas do Padre Rus. No se trata de um
Padim Cio, inventado em agrestes sertes, povoados por gente inculta. So santos
urbanos, canonizados por habitantes de modernas cidades, santos que convivem com o
congestionamento do trfego, com a poluio, carestia e televiso. Curitiba tambm cultua
a sua santa: Maria Bueno. Diariamente, centenas de pessoas procuram seu tmulocapela no Cemitrio Municipal, em busca de milagres, sorte no amor, cura de doenas e
sabe-se mais o que. (BOLETIM INFORMATIVO n. 6, Jan. 1975, p. 2).
211
No dia imediato de sua morte, o jornal O ESTADO DO PARAN (15.07.94), lembrou que dos seus 60 anos de
idade, 37 haviam sido dedicados ao teatro paranaense. GEMBA dirigiu um total de 36 peas, das quais, segundo a
matria, duas teriam batido recorde de pblico: Santo de Casa e O Cerco da Lapa, ambas de sua autoria.
Diversificando suas atividades como autor e diretor teatral, criou a Orquestra Sinfnica do Paran, no perodo em que
ocupou a superintendncia do Teatro Guara, quando ativou as apresentaes do Corpo de Baile do Teatro Guara e o
Teatro de Comdia do Paran.
174
E, na apresentao do prprio autor, GEMBA afirma que esta pea mais uma
No quero reverncias e nem lstimas! Pra mim, basta o que penso de mim mesma. De
minha parte, cumpri o prometido: No meu tanque de lavar no se fez cama, e o meu
quarto de dormir no foi o consolo dos meus senhores, portanto, quero a fantasia mais
alva, o pedestal mais alto, na primeira fila do cemitrio mais importante, que pra eu olhar
essa cidade de frente e de cabea no ar! E no se esqueam, quero uma trouxa de roupas
sujas debaixo dos meus ps, que pra eu tambm pisar na cabea da serpente (p. 14).
Coerente com sua proposta inicial, o autor apresentou sua verso de Maria Bueno,
enfatizando a antiga polmica em torno de sua vida pessoal. Preteriu, no entanto,
qualquer aluso a sua santidade, apesar do ttulo. E, independentemente deste fato, por
ocasio das apresentaes213, alguns jornais, especialmente o DIRIO DA TARDE e a
GAZETA DO POVO, informaram o sucesso total alcanado.
Nesse contexto, o que nos chamou a ateno foi que, enquanto os jornais
anunciavam os ensaios e a montagem da pea, DALLEGRAVE era enftico em
contestar toda e qualquer discusso em torno da devoo a Maria Bueno, no entanto,
durante o perodo das apresentaes, ele se manteve em silncio, certamente com o
objetivo de no estimular, ainda mais a imaginao popular em torno da santinha.
Seu silncio, carregado de significado, porm no foi definitivo. Por meio ainda do
semanrio VOZ DO PARAN, ngelo DALLEGRAVE, agora no papel de entrevistado,
na sesso Roda Viva, ocupou um espao privilegiado, de duas pginas inteiras, sob o
ttulo A Igreja, o mundo e as heresias, onde externou suas convices religiosas,
212
De acordo com o romance de Sebastio Isidoro PEREIRA (1948) que, ao que tudo indica, teria servido de
referencial para a elaborao da pea, especialmente infncia e juventude.
213
Que se estendeu de 27 de setembro a 13 de outubro de 1974.
175
Essa devoo surgiu justamente porque quando Maria Bueno foi encontrada de manh,
com a cabea quase degolada e as mos todas cortadas de navalha, quiseram que o
padre fizesse a encomendao do corpo e o padre no aceitou porque ela era uma mulher
da rua muito conhecida. O povo ento comeou a acender velas porque na Igreja o padre
no queria rezar missa como at hoje a Igreja no reza em casos como esse. Da surgiu
essa devoo popular. coisa psicolgica (VOZ DO PARAN, 26.10.1974, p. 7-8).
Fato nada incomum este indicado por DALLEGRAVE. Martha dos REIS, ao focalizar a santidade de Iracema, a
santinha de Marlia tambm relata um silncio por parte da imprensa e o retorno aos fatos, com novos elementos: a
estria foi relembrada pela imprensa local j com algumas modificaes. Trinta e um anos haviam se passado e o
tempo contribuiu para que novos aspectos fossem incorporados memria coletiva. Alguns episdios apareceram pela
primeira vez nos jornais, muito tempo depois (1993, p . 89).
176
atualmente, ou tempos depois com a sua canonizao pela ICAB, ou mais adiante, por
ocasio da montagem da primeira pea teatral encenada em 1974.
Especialmente nessas ocasies, o congregado mariano se expressava como se
seu discurso fosse proferido diretamente do plano espiritual para o plano temporal,
em que o primeiro busca dominar o segundo.
Nessa relao, esclarece ORLANDI, (1983, p. 218-9) o locutor Deus, logo, de
acordo com a crena, imortal, eterno, infalvel, infinito e todo-poderoso; os ouvintes so
os humanos, logo, mortais, efmeros, falveis, finitos, Assim, na desigualdade,
naturalmente Deus domina os homens, o que justifica as suas intransigncias.
Analisando ainda por outro ngulo, poderamos pensar que o congregado assumiu
a subjuno de uma outra voz, como se fosse a prpria instituio que ele representava,
o que fazia com convico e legitimidade, mesmo porque procurava sempre estabelecer
entre o dito por Deus e o dizer dos homens, entre o divino que representava e o
humano que ele combatia: a devoo a santos populares e, especialmente no contexto
de Curitiba, a santinha Maria Bueno.
A ltima vez que ngelo DALLEGRAVE foi focalizado pelo jornal catlico, foi na
condio de homenageado pela ampla contribuio a aquele jornal, como um dos seus
mais importantes colaboradores, logo aps a sua morte, em meados de 1976.
A polmica polarizada por ele, em torno da piedade popular de Maria Bueno, ficou
neutralizada durante os anos de 1980, sendo retomada no incio da dcada seguinte por
Ruy WACHOWICZ215, mas em um outro tom.
Tomando de emprstimo algumas caractersticas da personagem Grabriela, de
Jorge AMADO, do romance homnimo, WACHOWICZ publicou extenso ensaio no jornal
literrio Nicolau216, intitulado Maria Bueno, a Gabriela curitibana.
Depois de detalhar a condio de isolamento do local do crime, na Curitiba do final
do sculo XIX, resumir, em linhas gerais, o que os jornalistas j haviam noticiado
215
Professor j falecido da Universidade Federal do Paran - UFPR, onde ocupou as cadeiras de Histria do Brasil e
Histria Medieval e membro da Academia Paranaense de Letras. Autor de 43 obras publicadas, algumas traduzidas
para o polons, privilegiou as abordagens acerca da imigrao polonesa e da UFPR, a Universidade do Mate.
216
Publicao Mensal da Secretaria de Estado da Cultura Imprensa Oficial do Estado do Paran, coleo encartada
no dirio, Folha de Londrina, entre julho de 1987 e agosto de 1995. Assinando o editorial da primeira edio deste
suplemento literrio, Wilson Bueno afirmou que Nicolau se insere no espao de um novo tempo nacional enquanto a
pluralidade de idias um dado inquestionvel e to mais enriquecedor quanto maiores forem as oportunidades de que
se promova a circulao (...) significativa contribuio de parcelas ponderveis da intelligentsia nacional (NICOLAU,
n.1, jul/ago. 1987).
177
bondosa
corpo
bonito,
demonstrava
especial
carinho
no
seu
No entanto, mais adiante, ele lanou algumas perguntas que parecem fugir da
caracterstica do ensaio literrio, como se desejasse obter algumas respostas mais
concretas, relacionadas com o mundo real: se Maria Bueno tinha uma conduta normal
porque o clero catlico da cidade se recusou a encomendar o corpo e a celebrar a
missa de 7 dia? Que outras atividades a falecida teria e que levassem os padres a
tomarem tal atitude?.
Sem responder diretamente s suas prprias inquietaes, WACHOWICZ afirmou,
no entanto, que este comportamento do clero, teria atiado as correntes religiosas
minoritrias a tomarem conta do caso e estimularem o mito, pois a cruz colocada no
terreno baldio onde Maria Bueno foi quase decapitada, juntamente com as velas
178
acessas e as preces, visavam ligar esse culto com o de Maria, me de Jesus. Para
enfatizar esse parecer, ele apontou o estribilho do Hino a Maria Bueno217:
Maria Bueno, a Gabriela221 curitibana, foi vtima de sua prpria maneira de ser, que no
contava com a violncia favorecida pelo meio onde, nem com o simplismo na formao de
uma imagem que a transformasse em santa, branca e donzela (NICOLAU, 1992, p. 22-23).
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Serge MOSCOVICI (1990) avalia que os devotos destas prticas sentem que os
santos se engajam a favor deles nas dificuldades cotidianas: doenas, problemas
familiares, assuntos de amor, desemprego, endividamentos, entre outros. Por isso, o fiel
sem qualquer mediao sacramental ou clerical estabelece uma relao contratual com
o santo, no importa se oficial ou oficioso, em vista da obteno de uma graa ou
benefcio, uma vez que os devotos recorrem a quaisquer argumentos para justificar sua
f, ainda que tenha que driblar os eventuais controles da Igreja. Para tanto, valem
simpatias, gestos mgicos, oraes, tudo com a inteno de transformar a alma dos
mortos em intermedirios para a soluo dos mais variados problemas. A contrapartida
o reconhecimento e a gratido.
Em alguns momentos pudemos registrar, atravs de fotografias, a intensidade
dessa relao imediata dos devotos com a santinha Maria Bueno. Nelas, o fervor da
orao acompanhada de um gesto, um toque nas placas ou mesmo na imagem da
santa, o que nos remeteu de imediato a Marc BLOCH, que estudou a crena na cura de
molstias pelo toque ou ao similar do taumaturgo sobre o doente225.
225
BLOCH, em Os reis taumaturgos (1993), analisou a antiga tradio medieval dos reis curarem o mal das
escrfulas e, destacou como esta prtica era associada ao princpio de poder e prestgio divino, emprestado aos
monarcas e aos santos.
185
186
L.M.
agradece a
santa Maria
Bueno
06.1962
Bia agradece
(Foto)
Agradecimento
pelas graas
recebidas
Por uma
graa
recebida te
agradeo
19.11.1988
Graa Recebida
A.N. 1937
Maria Bueno
Maria Bueno
agradecemos
Celso, Marly,
Paulo e
Jacson
Barreiras
BA - 1994
A alma benfeitora de
Maria Bueno
Grato 17.-9-948
187
Obrigada, Maria
Bueno --- Leonor
Joinville-SC
Maria da Conceio Bueno
Agradecemos Wilson e Lucia
Pelo nascimento de Melissa
27.01.1980
Gratido e
carinho E.O.
26.6.76
(flores pintadas)
Maria C. Bueno
Lutrcio te agradece
Um levantamento exploratrio dessas placas nos permite afirmar que elas foram
dispostas sem qualquer preocupao em obedecer uma ordem cronolgica uma vez
que os anos e as dcadas se misturam, possivelmente cabendo ao devoto a escolha do
lugar em que ela deveria ser afixada, dentre os espaos disponveis226.
As mais antigas, algumas de madeira, que pelo desgaste do tempo j se
encontram bastante danificadas, datam dos anos de 1930, quando o sacrrio ainda
ocupava o antigo lugar, no fundo da necrpole, mas coincidindo com o artigo de jornal,
da GAZETA DO POVO (18.01.1934), que consideramos um divisor de guas. Nele o
articulista revelou a existncia de um culto que pudemos comprovar por algumas placas
que sobreviveram daquela poca. Possivelmente funcionrios do prprio Cemitrio
tenham se encarregado de fazer a transferncia dessas placas, embora no
pudssemos confirmar nossas suspeitas pois nenhum dos atuais servidores estava
trabalhando ali no comeo da dcada de 1960.
O que parece bastante claro tambm nesse exame das mensagens materializadas
que, as mais antigas expressam uma devoo mais carinhosa e mais ntima como por
226
As fotografias n. 6, p. 183 e n. 9, p.186, permitem visualizar, esta situao, ainda que de forma parcial.
188
exemplo minha santinha querida, querida Santa Maria Bueno, M.L.M. Agradece a
bondade de Maria Bueno, `a alma benfeitora de Maria Bueno, entre outras227.
Com
passar
dos
anos,
as
manifestaes
piedosas
aumentaram
Registramos este mesmo fenmeno em um artigo publicado no jornal COMRCIO DE FRANCA (SP), em
30.10.1994, em que analisamos as epgrafes e constatamos que o discurso dos vivos, em relao aos seus mortos, tem
se abreviado ao longo dos tempos. As saudaes datadas do fim do sculo XIX e comeo do sculo passado, seguiam
mais ou menos, os mesmos dizeres: Aqui jaz, X, filho legtimo de Fulano de tal e de Sicrana, lembranas carinhosas
de sua tia X; Aqui descanso os restos mortaes de X, Ten. Cel. (...) Paz a sua alma e gratido de sua esposa e filhos;
X, esposa e me modelar, amou as flores e a vida, teve a vida da flor e grande alma, no teve occaso, ao ceo em pleno
fulgor, continuando a viver purificada pela morte no perfume das flores que aspargiu com seus exemplos; X,
Falecido aos 49 anos de edade, tributo de amor e saudade da sua inconsolvel espoza e filhos. Esses lamentos
carregados de lirismo sugerem uma imensa dor e uma saudade que nem mesmo o tempo poderia amenizar. No
entanto, as lpides dos anos sessenta em diante, permitem avaliar uma mudana na expresso dos sentimentos
familiares, cujas mensagens tornaram-se mais econmicas e mais padronizadas: Saudades de sua me e irmos,
Saudades da famlia, num dizer quase impessoal. O mesmo processo de transformao nas falas dos devotos foi
verificado na devoo piedosa Maria Bueno. Inmeras placas, que pelo seu bom estado, avaliamos serem mais
recentes, s trazem um agradecimento annimo e atemporal.
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Em janeiro de 1975, a Fundao Cultural de Curitiba Boletim Informativo n. 6, publicou na ntegra o texto de
Oracy GEMBA, que nos pareceu uma cpia bastante fiel do romance de Sebastio PEREIRA, que a focaliza como
lavadeira pobre, porm honesta e que teria morrido nas defesa de sua honra. Vale ressaltar que esta no foi a primeira
pea teatral que, de alguma forma, focalizava Maria Bueno. Em 08 de maio de 1970, o semanrio catlico, VOZ DO
PARAN anunciava: a histria de Maria Bueno est proibida para os palcos. O autor da matria afirmava nessa
ocasio que apesar dos gastos e dos ensaios j estarem adiantado, o Grupo Escala de Curitiba o mais ativo grupo
teatral da capital viu frustradas todas as tentativas de liberao da Censura Federal, em Braslia, do texto Os fuzis de
1894 , de Walmor MARCELINO. Segundo o jornal, a pea teria sido vetada por apresentar a vida, paixo e morte de
uma mulher de vida duvidosa que acabou sendo cultuada como santa por algumas pessoas. Tivemos a oportunidade
de ler a pea e entendemos que Maria Bueno foi apresentada como algum que havia se envolvido com vrios homens,
levianamente, mas no que se prostitusse. De resto ocupou um plano secundrio na trama j que o autor privilegiou o
confronto entre os federalistas gachos e as autoridades militares nesta cidade. Cabe lembrar no entanto, que em
1970, o pas vivia sob a ditadura, e qualquer abordagem menos elogiosa aos militares j seria suficiente para que fosse
decretada a sua censura. Na trama, um dos personagens denunciou que um soldado havia sido promovido porque
arranjara sua mulher, me ou filha para uns oficiais, denunciando uma atitude nada favorvel s autoridades e que
denegria, de forma ampla, a imagem das Foras Armadas. Esta sim parece ser a causa da censura e no o fato da pea
se referir, ainda que de forma tangencial, vida pessoal de uma mulher morta h mais de meio sculo. Por outro lado,
at mesmo o jornal catlico reconhecia que Marcelino era de notria posio marxista, mas certamente aproveitou
essa oportunidade para reafirmar as suas ortodoxias.
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As gravaes tiveram incio em novembro de 1978, embora as transmisses somente tenham ocorrido em abril do
ano seguinte. Vale ressaltar que a novela recebeu o mesmo nome que a pea de Oracy Gemba.
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Conforme Anexo n. 2.
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outrora fra morta defendendo sua honra e dignidade ou como rege uma outra verso,
vtima de cimes doentios.
Porm, vale ressaltar que, tanto em uma ocasio quanto na outra, a imprensa local
acentua desproporcionalmente o nmero de visitantes. Um bom exemplo desta
situao, se constata no pronunciamento do chefe da Diviso de Cemitrios Municipais
da Secretaria do Meio Ambiente231, desta cidade, Juarez Lopes de OLIVEIRA, em 3 de
novembro de 2001, atravs da GAZETA DO POVO, para quem no houve diminuio
na visitao ao tmulo de Maria Bueno, assassinada brutalmente no final do sculo XIX,
no centro desta cidade. Mais de 17 mil pessoas se enfileiraram para oferecer flores e
agradecer as graas alcanadas.
Considerando o horrio de funcionamento daquele campo santo, das 8 da manh
s 18 horas, o tmulo teria recebido em mdia 1,7 mil pessoas por hora. Tais dados no
podem, em hiptese nenhuma, ser confirmados pelas prprias condies fsicas do
local.
Um corredor de pouco mais de dois metros de largura separa os tmulos do muro,
o que no permitiria que Maria Bueno recebesse tantos acenos de devoo.
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Curitiba conta atualmente com 20 cemitrios, sendo 4 municipais, So Francisco de Paula, gua Verde, Santa
Cndida e Boqueiro, sendo os demais particulares.
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CONSIDERAES FINAIS
delineou-se
como
uma
riqussima
construo
cultural,
mesmo
Maria o mais comum dos nomes. Curitiba teve (e tem) milhares de Marias. Todas,
certamente, so dignas de homenagem. Mas trs mulheres com o mais comum dos
nomes transcenderam o anonimato e tornaram-se lendas da capital paranaense. Maria
Bueno era uma simples bordadeira, filha de um veterano da Guerra do Paraguai. Nascida
na Lapa, em 1864, ela no fez, aparentemente, nada que justificasse sua aura de
santidade durante a vida. Porm, sua morte, em 1893 causou comoo no povo
curitibano. Assassinada com requintes de crueldade, Maria Bueno passou a ser o refgio
dos cidados em busca de consolo espiritual (13.04.2003, p. 13).
Da polmica inicial, entre a mulher de moral duvidosa ou aquela que teria morrido,
defendendo sua virgindade, no transcorrer de pouco mais de um sculo, o imaginrio
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morte e o atual, tenha sido suficiente para amenizar a polmica, e, abrandar as vozes
de resistncia, contrrias construo popular de sua santidade.
No entanto, importante lembrar que, tanto no incio desta devoo, como
atualmente, aos devotos, interessava, sobretudo, aquilo que eles acreditavam ser seu
poder de intermediao com o sagrado. Segundo OTTO, esse percebimento do que
divino, transcende qualquer racionalizao, qualquer justificativa concreta, pois se
constitui em um sentimento de emoo e de devoo, capaz de envolver um
abrangente repertrio de conflitos humanos, respondendo s questes mais ntimas e
essenciais, de acordo com as aflies e com as esperanas de cada um.
Neste contexto de crenas e vivncias emocionais e espontneas, encontramos os
sujeitos sociais, adeptos de Maria Bueno, a santinha de Curitiba ou de qualquer outra
santidade popular, embora nem sempre os limites entre o institucional e o
desclericalizado estejam bem definidos ou evidenciados, j que, em determinadas
situaes, ao longo da histria, a Igreja cooptou elementos da religiosidade popular, da
mesma forma que as manifestaes populares de f, mesclam muitos elementos
consagrados pela hierarquia eclesistica.
Esta clivagem ou, de acordo com BAKHTIN, esta circularidade cultural que se
instaurou entre a cultura eclesial, por si s, j polissmica e a dos leigos, no se
constituiu ou se constitui, de forma linear. Antes, em determinados momentos
apresentam movimentos de tenso, de conflito e, s vezes, at mesmo de
enfrentamento, como em outros, ocorre uma aproximao entre elas, que pode resultar
em conciliao e, em alguns casos cooptao, evidenciados em vrios festejos de
santos padroeiros, quando o sagrado e o profano se sucedem de forma muito natural.
Essas apropriaes, tanto de um lado, como de outro, revelam que a religiosidade
no se circunscreve em um sistema cultural fechado, ou que seus rituais sejam
cumpridos de igual forma por todos os grupos sociais. Nesse sentido, nos reportamos a
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FONTES
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3. JORNAIS
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REVISTAS
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211
_____.
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213
ANEXOS
ANEXO 1: HINO
Agradeo Maria
As graas j recebidas
Segura nas minhas mos
Hoje, sempre e por toda a vida.
214
2.1.
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2.2.
Minha querida Maria Bueno, esprito iluminado, mensageira de Jesus, na terra junto s
criaturas. Eu venho pedir o auxlio certo para as minhas dificuldades, pois tenho a
certeza que s a minha protetora e me ouves sempre que estou em desespero. Com a
tua assistncia neste particular (fazer o pedido). Nunca um pedido ficou em
esquecimento. Imediata resposta sempre obtive de ti, querida. Portanto, confiante,
entrego nas tuas mos espirituais este problema, Maria Bueno. Sinto o meu esprito
agitado, desesperado, amargo como o fel por esta provao que me invade. ser,
tenha piedade de mim, ajuda-me como melhor achais, faa que tudo chegue aos
caminhos certos para a alegria, a sade e a paz voltem ao meu esprito to cansado de
sofrer. Por tudo, muito obrigado, querida. Em troca de sua maravilhosa ajuda, eu
socorrerei a todos que mandais ao meu caminho. Agradeo. Amm.
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Maria Bueno, alma santificada pela vontade do povo e por causa das inmeras provas
de milagres que haveis em benefcio dos que dirigem a vs: mrtir que soubeste sofrer
sem gemido at os ltimos momentos de vida: que preferiste a decapitao, a morte
cruel e violenta, do que vos entregardes com vida ao vosso algoz, que foste e continuas
a ser benigna e piedosa: tende pena de X (ou de mim), dai-lhe (ou dai-me) sade,
curai X (ou curai-me) dos males que o afligem (ou me afligem), fazei, enfim, com que
l (ou eu) seja feliz, possa trabalhar e sustentar a sua (ou minha) famlia. Maria Bueno,
sede intermediria junto a Jesus Cristo e atendei esta minha splica que em troca do
favor que me fizerdes, tambm socorrerei os pobres, acenderei velas sobre o vosso
tmulo e rezarei sempre pela vossa alma. Amm.
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