De "Vossa Mercê" A "Cê" Os Processos de Uma

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De vossa merc a c: os processos de uma

mudana em curso
Edenize Ponzo Peres*
Resumo:
Este trabalho apresenta alguns aspectos relacionados mudana que se verificou
na forma de tratamento Vossa Merc. De forma corts para o tratamento ao rei de Portugal,
nos sculos XIV e XV, essa expresso foi-se popularizando e, ao mesmo tempo, perdendo
substncia fontica, dando origem ao pronome voc e s formas oc e c. Por sua
vez, a distribuio sinttica das trs formas mostra-se irregular, ou seja, c mais freqente
como sujeito, ao passo que voc e c so mais freqentes nas funes de objeto de verbo
e de objeto de preposio. Entretanto, embora com pouqussima freqncia, a forma c
comea a aparecer nestes dois ltimos ambientes, o que pode indicar uma expanso de seu
uso. Assim, neste trabalho ser apresentada a hiptese de espraiamento da forma inovadora
c para outros contextos, antes exclusivos das outras duas formas, e sero discutidos os
aspectos lingsticos e extralingsticos envolvidos nessa mudana.
Palavras-chave: mudana lingstica, pronomes de tratamento.

ABSTRACT:
This paper presents aspects related to the change that the Vossa Merc form
has been through. This expression was first used in the XIV and XV centuries when people
had to talk to the Portuguese King. As time passed by, it not only became popular, but if lost
its phonetic charge giving birth to the pronoun voc and to its variants oc e c. It
is interesting to notice that these three forms have an irregular syntactic distribution: c
is more frequently used as a subject, whereas voc and c seem to function as objects of
verbs and prepositions. However, not very often, the same has occurred with c, what may
indicate an increase in its use. To sum up, this work presents a hypothesis of enlargement
of the innovative use of c in other contexts, which were particularly used in the other two
forms. It also discusses linguistic and extra linguistic aspects related to this change
Keywords: linguistic change, pronoun

Introduo
Este trabalho tem por objetivo delinear a trajetria da forma de tratamento
Vossa Merc at os dias atuais, descrevendo a relao entre os aspectos lingsticos
e extralingsticos envolvidos nessa mudana.
Para a anlise atual das formas voc, oc e c, utilizaram-se 1453 dados
obtidos atravs de entrevistas sociolingsticas com 47 belo-horizontinos, divididos
em gnero (masculino e feminino), duas classes sociais (mdia e baixa) e cinco
faixas etrias (de 08 a 11, de 12 a 15, de 16 a 30, de 31 a 47 e acima de 47
anos). Alm desses fatores extralingsticos, na pesquisa foram analisados seis
fatores lingsticos que poderiam exercer influncia quanto ao uso das trs formas:
* Professora Doutora de Departamento de Letras da Universidade Federal do Esprito Santo

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a funo sinttica que exercem nas oraes, se recebem foco ou nfase, o tipo de
referncia definida ou indefinida que expressam, o tipo de orao em que as
formas aparecem, sua posio em relao ao verbo contguas ou no-contguas,
e se elas podem ou no vir topicalizadas na orao.
Os resultados, que aparecem em Peres (2006), mostram que, atualmente,
a forma c a mais utilizada pelos belo-horizontinos, vindo, em segundo lugar, voc
e, em terceiro, com poucas ocorrncias, a forma oc. Esses dados podem ser mais
bem visualizados na Tabela 1, abaixo, extrada de Peres (2006, p. 117).

Entretanto, a forma inovadora c no tem uma distribuio sinttica uniforme:


nas funes de objeto de verbo (objeto direto) e de objeto de preposio (objeto
indireto), sua ocorrncia nfima. A Tabela 2, abaixo, adaptada de Peres (2006, p.
119) apresenta esses resultados.

As frases em que a forma c aparece exercendo essas funes so:


a) Objeto de verbo:
(E 117) Eu vou matar c, fdp!
(E 142) Dinheiro sujo te leva c morte.
(E 614) C vai assistir o futebol c... nego te arrasta c l dentro.
b) Objeto de preposio:
(E 182) ... guardar aquilo ali pc, dentro de si.
(E 683) Eu vou com c.
(E 734) X [Deixe eu] perguntar pc.

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Neste trabalho, ser feita uma breve exposio do fator lingstico funo
sinttica e dos fatores extralingsticos que incidem sobre os resultados acima.
Entretanto, inicialmente, ser feita uma explanao sobre as formas de tratamento
desde o latim at seu uso atualmente em Portugal e no Brasil.
1 As formas de tratamento do latim ao portugus antigo
No latim, para as formas de tratamento, havia os pronomes tu para um
tratamento informal a um nico interlocutor e o uos (vs), usado em dois casos: (i)
para a referncia direta a mais de um interlocutor e (ii) para o tratamento respeitoso
a um nico interlocutor.
Ao lado dessas formas, no latim tambm se usava a forma indireta de
referncia, pela qual se expressavam as qualidades morais e o status social do
ouvinte. Assim, os imperadores romanos no eram tratados simplesmente por
uos, mas sim por Uestra Maiestas17, com o verbo na terceira pessoa do singular,
destacando-se sua importncia naquela sociedade.
Por outro lado, em Portugal, no incio, a situao era diferente. Nos primeiros
tempos da monarquia, o rei mal se distinguia dos outros nobres, j que seu poder
no era suficientemente forte para destac-lo, e os riscos das guerras contra um
inimigo comum e a familiaridade imposta pela vida militar aproximavam-no de seus
vassalos. a partir do sculo XIII que o rei comea a distinguir-se das outras classes
e somente no sculo XV ele consegue eliminar qualquer autoridade contrria sua.
Nesse incio sculo XIII , o soberano era tratado por vs. Entretanto, aos
poucos, outras formas de tratamento foram surgindo, e o pronome vs foi lentamente
sendo substitudo pelas formas Vossa + Nome. As formas de tratamento com essa
estrutura, como Vossa Merc, por exemplo, foram introduzidas na lngua portuguesa
no sculo XIV e, especialmente, no XV. Cintra (1972, p. 18) afirma que a expresso
Vossa Merc aparece pela primeira vez nas Actas das Cortes, em 1331, pronunciada
principalmente por castelhanos para dirigir-se a seu rei ou ao rei de Portugal.
No h um consenso, porm, sobre esse dado. De acordo com Luz (1956,
p. 300; 359), a expresso aparece duas vezes nas cortes de 1331, mas provvel
que j existisse antes dessa poca. Segundo Cintra (1972, p. 17), at o sculo
XIV, notamos antes de mais nada a total ausncia de tratamento de tipo nominal.
No entanto, Faraco (1996, p. 60) afirma que, em textos de Ferno Lopes, sobre o
perodo de 1357 a 1433, os aristocratas j se tratavam por Vossa Merc. Por outro
lado, Ali (1976, p. 93) e Nascentes (1956, p. 115) afirmam que, no sculo XIV,
Vossa Merc ainda no se havia cristalizado como expresso pronominal.
Se no h um total consenso com relao data do surgimento de Vossa
Merc, alguns autores, como Faraco (1996, p. 58) e Cintra (1972, p. 19), concordam
17

Faraco (1996, p. 58) cita ainda Uestra Serenitas, Claritudo, Excellentia e Alternitas, como formas de
tratamento ao imperador.
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com o fato de que a forma foi importada do castelhano Vuestra Merced e era usada
para a referncia ao rei. De acordo com Lopes (2003, p. 1-2), o tratamento com
merced j podia ser encontrado em textos espanhis do sculo XIII, tendo surgido,
assim como em Portugal, em virtude da decadncia do uso de vs como tratamento
de cortesia.
Desse modo, assim como no Imprio Romano o imperador era nomeado
indiretamente, tomando-se por base sua importncia dentro da sociedade, em
Portugal, igualmente, o tratamento ao monarca era indireto, fazendo-se referncia a
sua generosidade e a seu poder de conceder favores, graas, proteo, justia etc.
Esse tratamento diferenciado para o rei se justificava socialmente. A partir
do sculo XII, Portugal e outros pases da Europa comearam a sofrer profundas
transformaes econmicas, polticas e sociais. O crescimento das atividades
artesanais e comerciais nas cidades originou o fortalecimento da burguesia, que
comeou a ter, a partir de 1254, representantes nas Cortes, assim como a nobreza
e o clero (FARACO, 1996, p. 55-6).
A ascenso da burguesia e o conseqente enfraquecimento da nobreza
feudal juntamente com o fato de Portugal transformar-se numa grande potncia
mundial, graas s grandes descobertas e ao comrcio martimo originaram fortes
mudanas na vida social e cultural da Corte e, principalmente, transformaram o rei
numa figura nica. Houve, assim, a necessidade de se destacar essa importncia,
o que fez com que o tratamento dispensado ao rei fosse tambm nico. Portanto,
vs j no era suficiente para nome-lo, surgindo ento as formas nominais de
tratamento.
No incio, era Vossa Merc a forma mais usual para algum se dirigir a ele,
mas logo outras concorrentes a suplantaram: primeiramente Vossa Senhoria, vindo
depois Vossa Alteza18 e, finalmente, Vossa Majestade. Conforme Luz (1956, p. 320),
estas trs ltimas formas evidenciam outras qualidades do rei, mais conformes
com a nova concepo da dignidade real; por isso substituram Vossa Merc, por
exprimirem melhor sua magnificncia.
O declnio de Vossa Merc para o tratamento real deveu-se expanso
de seu uso para outras figuras da aristocracia portuguesa: os filhos do rei, o
condestvel, duques de alto estado e condes. Posteriormente, passou a ser usado
como tratamento para a burguesia, chegando, por fim, a significar um tratamento
respeitoso para qualquer portugus a quem no se poderia tratar por Vossa Senhoria,
por tu (considerado bastante ntimo) ou por vs.19 V-se, assim, como os fatores
18

De acordo com Luz (1956, p. 324-34), o primeiro exemplo conseguido da forma Vossa Senhoria de
1434; Vossa Alteza aparece nas obras de Ferno Lopes (escrivo de D. Joo I e do infante D. Duarte, que
teria nascido em 1380 e morrido em 1460); e o exemplo mais antigo conseguido de Vossa Majestade
de 1442.
19
Nascentes (1956, p. 117) afirma que, no estilo oficial, o tratamento de Vossa Merc perdurou at
1889.

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sociais exercem influncia sobre a lngua. Sendo esta inerente a uma sociedade,
seu uso reflete as experincias sociais de uma comunidade, suas crenas e sua
estrutura social.
Cintra (1972, p. 25-36) assim descreve a decadncia de Vossa Merc:
A frmula Vossa Merc, inicialmente aplicada ao rei e rainha, foi
posteriormente destronada desse cargo no qual foi substituda por, sucessivamente,
Vossa Alteza e Vossa Majestade. O honorfico decadente passou a ser aplicado
nobreza, depois burguesia, e continuou a descer na escala social, circulando em
variantes morfofonolgicas tais como vossanc e voc, a ltima emergindo no sculo
XVII, e chegou, principalmente em Portugal, ao extremo de ser percepcionado como
ofensivo em certas camadas da populao.
Ao mesmo tempo em que Vossa Merc baixava na escala social, essa forma,
por ser repetida a toda hora e por todo mundo, sofreu transformaes fonticas,
como ser visto a seguir20.
2 A forma voc na lngua portuguesa
Em Portugal, poca da colonizao do Brasil, a partir do sculo XVI, o uso tanto
de Vossa Merc quanto de vs pela populao das classes mais baixas de onde
saiu a maior parte de nossos colonizadores estava j em declnio, ao passo que
a simplificao fontica de Vossa Merc estava adiantada, ocorrendo as variantes
dessa forma ao lado do pronome tu.
De acordo com Menn (2000), embora no se saiba ao certo que tipo de
portugus era falado aqui no incio do perodo da descoberta, pode-se pensar que
essa situao lingstica foi trazida para o Brasil pelos colonizadores. Estes vieram de
todas as partes de Portugal, o que deu origem a uma grande diversidade de dialetos
convivendo juntos. Entretanto, rapidamente essa diversidade foi neutralizada, tendo
o nosso falar perdido alguns dos traos mais marcantes do portugus lusitano,
diferenciando-se deste.
Alm disso, essas diferenas lingsticas entre a metrpole e a colnia
tenderiam a aumentar rapidamente, visto que aqui no havia escolas nem imprensa,
ficando a educao a cargo apenas dos jesutas. Assim, como afirma Menn (2000,
p. 131),
Sem escolas para impingir normas e corrigir erros, sem imprensa para fixar
visualmente padres empregados na escrita, a lngua poderia perfeitamente ter se
modificado mais rapidamente que em Portugal no tocante ao uso de vosmec,
sobretudo na grande massa da populao.
20
Luz (1956, p. 271) afirma: ... as frmulas de tratamento corteses so expressivas, por vezes exageradas, e o valor expressivo das palavras atenua-se rapidamente, pelo uso freqente que dela se faz.

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Segundo essa autora, o uso mais longnquo de voc da dcada de 1880,


em cartas oriundas de Minas Gerais, donde se conclui que, na lngua oral, essa forma
j existia h muito mais tempo.
A forma voc e outros pronomes de tratamento no PB, em textos escritos
do sculo XIX, foram alvo de diversas pesquisas. Os dados de Salles (2001), por
exemplo, mostram que, de um total de 595 ocorrncias de tratamentos de terceira
pessoa, apenas 37 foram de voc e trs de vosmic a variante culta de voc -, tendo
essas duas formas sido usadas nas relaes entre iguais, ou seja, hierarquicamente
simtricas.
Outros trabalhos sobre o uso de formas de tratamento em peas teatrais
portuguesas (LOPES, 2003), cartas escritas no Brasil21 (LOPES e DUARTE, 2004) e
peas brasileiras e portuguesas (LOPES e DUARTE, 2003) atestam que o uso das
formas de tratamento e dos pronomes obedecia estrutura social vigente aqui e l,
e ao grau de intimidade existente entre os interlocutores.
Em relao aos pronomes tu e voc no Brasil, estas duas formas coexistiram
por muito tempo, embora, at o sculo XIX, houvesse o predomnio de tu. Entretanto,
nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX, essa coexistncia desaparece, predominando
o uso quase exclusivo de voc. V-se, assim, o surpreendente crescimento dessa
forma em apenas poucas dcadas. Atualmente, a predominncia de voc com
relao a tu, no Brasil, incontestvel. Este ltimo pronome usado (s vezes com
o verbo concordando com a terceira pessoa do singular, como em Tu fez, Tu quis
etc.) principalmente na Regio Sul (em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e numa
minscula rea do Paran) e em algumas reas do Nordeste e do Norte do pas. Em
todo o restante do pas, acontece o uso de voc.
Situao distinta acontece com o voc no portugus europeu, atualmente.
L, ainda hoje, tu o pronome normalmente usado para o tratamento ntimo
(CINTRA, 1972, p. 14-5; FARACO, 1996, p. 63-4; MENN 1995, p. 95), destinandose o pronome voc ao tratamento de superior para inferior, inclusive de idade, e ao
tratamento entre iguais, mas de quem se quer manter uma certa distncia (SANTOS,
1985, p. 2).
Uma das diferenas mais marcantes quanto ao uso de voc no Brasil e em
Portugal sua conotao negativa l, ao contrrio daqui. Oliveira (1996, p. 132),
em seu estudo sobre a avaliao das formas de tratamento por estudantes da
Universidade de vora, verificou que os informantes valorizam mais o tratamento
o vizinho/a vizinha que voc. Porm, ao que parece, a conotao de voc est
mudando, em Portugal: seu sentido depreciativo est desaparecendo, e voc
aparece adoptado como tratamento afectuoso, mais ntimo do que tu (CINTRA,
1972, p. 40-1).
21
A amostra constituda de cartas de Minas Gerais, Paran, Rio de Janeiro e Bahia, escritas nos sculos
XVIII e XIX.

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3 As formas oc e c na lngua portuguesa


So poucos os autores que fazem referncia ao uso das formas oc e c.
Dentre eles, no portugus do Brasil, Nascentes atestou a existncia de oc em Minas
Gerais e em Gois, fazendo uma rpida meno existncia da forma c: Aparece
numa frase tpica do linguajar da malandragem. Quando um malandro se lembra de
ameaar outro, este responde C besta. Existe em Gois (1956, p. 119).
Se a forma c registrada como sendo de uso da malandragem, pode-se
deduzir que, em 1956, o uso de c na zona urbana, pelo menos, no era usual
como atualmente. Por outro lado, Amaral (1976) e Salles (2001) citam oc e c
como variantes de Vossa Merc j em 1920. E, como afirma Salles (op. cit.), se em
1920 a forma c foi atestada, pressupe-se que ela j existisse no sculo XIX.
Paredes Silva (1998) atesta que, em 1990, na cidade do Rio de Janeiro,
a forma c j suplantava voc e a forma zero, ou seja, o sujeito nulo: enquanto c
representava 38% do total de ocorrncias de seu corpus, na funo sujeito, voc
representava 32% e zero, 30% (p.128).
Outros estudos tambm atuais atestam que oc bastante usado na regio
de So Francisco, Minas Gerais, (COELHO, 1999) e que a forma c suplanta voc em
Belo Horizonte e Ouro Preto (RAMOS, 1997 e 2000, respectivamente). Os dados de
Peres (2006), conforme se viu na Tabela 1, acima, corroboram os encontrados por
Ramos: a ocorrncia da forma c, em Belo Horizonte, na lngua falada, bastante
superior a voc, em todas as faixas etrias analisadas, sendo que o nmero de
ocorrncias de oc muito pequeno.
Por outro lado, a Tabela 2 mostra fatos curiosos a respeito da forma c: um
deles a sua ausncia ou quase em contextos em que voc e oc ocorrem
normalmente na lngua falada em Belo Horizonte. Um outro fato interessante a
presena quase nula da forma c na lngua portuguesa falada em outros pases que
no seja o Brasil, como se pode perceber pelo descaso com que ela tratada
por grande parte dos autores que estudaram as formas de tratamento na lngua
portuguesa. Uma razo para a pouca ocorrncia de c fora do Brasil pode ser o fato
de o pronome voc ser menos usado que tu, pois, sabe-se que a freqncia de uso
tende a favorecer a reduo dos vocbulos.
4 A evoluo de Vossa Merc
A forma de tratamento Vossa Merc substituiu o pronome de tratamento
vs, empregado em sinal de distino figura real ou a algum membro da nobreza.
J no sculo XVIII, o uso de vs para a referncia a um nico interlocutor cai em
desuso e praticamente desaparece no fim do sculo XIX (LOPES, 2003, p. 12). Com
relao forma Vossa Merc, esta surge na primeira fase do sculo XVIII, sofrendo
um declnio acentuado a partir do fim desse sculo.
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Mas a anterior generalizao do uso de Vossa Merc trouxe o aumento


da freqncia dessa expresso, o que, de acordo com os estudos de Fidelholtz
(1975), Phillips (1984 e 2001) e Bybee (2001 e 2003), gera mudanas sonoras.
No caso especfico de Vossa Merc, por ser uma expresso um pouco longa, acabou
sofrendo uma simplificao fontica resultante da reduo de segmentos e slabas
tonas, originando diversas variantes. Nascentes (1956, p. 119-121) aponta dezoito
registros de formas simplificadas de Vossa Merc, alm de voc, podendo haver
mais:
C, mec, minc, oc, onc, suc, sunc, vac, vainic, vanc, vansminc,
vassunc, vonc, vosmec, vossemec, vosminc, vossunc, uc.
Apesar de algumas dessas formas ainda existirem, especialmente nos
dialetos rurais do Brasil (AMARAL, 1976; ALI, 1976; COELHO, 1999) e de Portugal
(OLIVEIRA, 1996; COOK, 1997), foi a forma voc que se fixou na lngua portuguesa,
transformando-se em pronome de tratamento. O primeiro registro da forma voc
aparece em texto do Padre Francisco Manuel de Melo, publicado em 1644 (RAMOS
e OLIVEIRA, 2002)22, e vai aos poucos ganhando espao. Atualmente, a forma voc
usada na maior parte do pas.
5 Os fatores lingsticos e extralingsticos envolvidos na mudana
Finda essa exposio, ser analisado, agora, o processo lingstico que
envolve a mudana dessas formas. Uma mudana no um fato isolado, mas
ocorre dentro de um contexto lingstico e social, e a mudana de Vossa Merc para
voc no diferente. Cabe, ento, correlacionar as origens dessa mudana a esses
contextos, a fim de analis-la mais amplamente.
Primeiramente, pode-se dizer que a mudana lingstica originou-se de
mudanas sociais, as quais influenciaram o uso de Vossa Merc. Como aponta Lopes
(2003, p. 20):
... a gramaticalizao23 de Vossa Merc>voc no foi um processo isolado,
mas uma conseqncia de uma mudana encaixada lingstica e socialmente.
H uma emergncia gradativa de formas nominais de tratamento que passam a
substituir o tratamento corts vs, a partir do sculo XV em portugus, num primeiro
momento pela ascenso da nobreza e mais tarde da burguesia, que exigia tratamento
diferenciado. Essa propagao, que comea de cima para baixo, se dissemina pela
comunidade como um todo e as formas perdem sua concepo semntica inicial,
gramaticalizando-se algumas de forma mais acelerada que outras, como o caso
de Vossa Merc>vosmec>voc.
22

Faraco (1996, p. 63) cita uma outra data para o surgimento de voc: 1666.
Gramaticalizao um processo de mudana lingstica em que uma palavra isolada vai perdendo status, transformando-se, cada vez mais, em um elemento preso, dependente de outra palavra. As etapas
da gramaticalizao so: item com significado lexical > item gramatical > cltico > afixo flexional.
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Uma conseqncia extremamente importante do processo de gramaticalizao


de Vossa Merc>voc o rearranjo da estrutura da lngua, especialmente de seu
sistema pronominal, como aponta Lopes (2003). Em primeiro lugar, voc entrou
na lngua portuguesa na sua forma plural, no lugar de vs, que caiu em desuso.
Porm, por se haver originado de uma forma nominal Vossa Merc , que fazia
a concordncia com a 3 pessoa, voc tambm passa a ter esse comportamento,
mesclando a 2 pessoa com a 3. O resultado desse quadro que, numa lngua
de sujeito nulo, como era o PB, formas como amava, partia etc. serviam tanto
primeira pessoa quanto segunda. Portanto, para desfazer essa ambigidade, o
falante sentiu a necessidade de explicitar o sujeito de suas frases, levando o PB a
tornar-se uma lngua de sujeito pleno.
Em segundo lugar, essa combinao da 2 pessoa com a 3 alterou o uso
dos possessivos e dos pronomes-complemento. Assim, ao lado de teu(s)/tua(s),
encontramos seu(s)/sua(s) e de voc(s), e ao lado de te encontramos lhe, muitas
vezes na mesma frase, como atestam cartas escritas no Brasil no sculo XIX (cf.
LOPES e DUARTE, 2003, p. 10-11). Uma conseqncia direta deste ltimo fato
que a forma dele passou a ser cada vez mais usada, para se evitar a ambigidade
gerada pelo possessivo seu, agora correspondente tanto 2. pessoa quanto 3.
Em terceiro lugar, essa mistura entre a 2. e 3. pessoas atingiu o
imperativo, tornando possveis frases como esta: Vem pra Caixa voc tambm,
veiculada na imprensa (cf. FARACO, 1996, p. 78)24.
Por ltimo, o PB adquiriu uma ordem mais rgida na sentena, o que
representa um aspecto interessante do processo de gramaticalizao de Vossa
Merc para voc(s): esta ltima forma apresenta um comportamento sinttico
diferente de sua forma desenvolvida: enquanto Vossa Merc apresentava maior
mobilidade na frase, a forma voc(s) comeou a ocupar posies mais fixas na
sentena, especificamente exercendo a funo de sujeito pr-verbal (LOPES, 2003,
p.19).25 Uma outra caracterstica desse processo de mudana da forma voc
que, de expressar unicamente referncia definida, ela passa a expressar tambm a
referncia indefinida.
O processo de gramaticalizao pelo qual passou voc, que o transformou
em pronome, e a crescente obrigatoriedade do preenchimento do sujeito culminaram
no aumento do uso da forma voc, e essa freqncia levou-a a continuar seu
processo de reduo fontica, originando a forma c.
Alguns trabalhos j realizados sobre a variao de uso de voc, oc e c
constataram que, ao contrrio da forma voc, a forma c somente ocorria como
sujeito pr-verbal e contguo idade ao verbo, no aparecia recebendo nfase
24
Em Faraco (1996), h uma discusso sobre as conseqncias da entrada da forma voc na lngua portuguesa, especialmente no tocante ao imperativo. Consulte-se principalmente a 4 seo, p. 65.
25
Conforme aponta Lopes (2003a, p. 12), baseando-se em Hopper (1991), nos processos de gramaticalizao, uma forma no substitui a outra imediatamente; durante um perodo de tempo, as duas
convivem juntas na lngua.

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etc. Sendo estas as caractersticas lingsticas dos clticos, o fato de a forma c


apresent-las levou alguns autores a lanarem a hiptese de que essa forma estaria
continuando o processo de gramaticalizao iniciado pela forma nominal Vossa
Merc: c estaria tornando-se um cltico, sendo talvez, por ora, um pronome fraco.
Essa hiptese justificvel, tendo em vista os resultados dos corpora
analisados por esses autores. Mas, por outro lado, outros dados, obtidos por meio de
outros corpora, demonstram que c, mesmo timidamente, aparece em contextos
onde clticos no apareceriam. Os dados de Peres (2006) e os de Coelho (1999),
analisados por ela prpria e por Barbosa (2005), demonstram que, embora seja
pouco comum, c exerce a funo de objeto de verbo e de preposio, alm de
poder vir muito distante do verbo e receber foco ou nfase. Ento, como analisar
o comportamento de c? As poucas ocorrncias dessa forma nessas situaes
seriam expresses pronunciadas por equvoco, sadas ao acaso?
Em primeiro lugar, preciso lembrar que as mudanas lingsticas
propriamente ditas chamadas from bellow, segundo Labov (1994) - ocorrem
exatamente desse modo, ou seja, abaixo do nvel de conscincia dos falantes.
Imagina-se, ento, que os processos de mudana se iniciem dessa maneira, com
esse tipo de inovaes por parte dos que os iniciam.
Tambm importante ter-se em mente que, no princpio, toda mudana
lenta. Assim, o processo que, em seu incio, restringe a atuao de uma forma
a determinados contextos, aos poucos permite o espraiamento de seu uso. Isso
aconteceu com a forma voc: inicialmente restrita funo de sujeito pr-verbal, foi
aos poucos ampliando sua atuao para outros contextos. O mesmo sucedeu com os
pronomes eu e ele (cf. Barbosa, 2005, p. 53) e you, no ingls (cf. Nevalainen,
2000, p. 262): no incio, exerciam somente a funo de sujeito, passando depois a
exercer outras funes.
H ainda um outro ponto a ser discutido sobre o comportamento da forma
c. V-se que os contextos em que ela mais desfavorecida so aqueles em que
exerce as funes de objeto de verbo e de objeto de preposio e em que recebe
foco. E esses contextos tm um ponto em comum: so pouco freqentes, com
uma pequenssima porcentagem de ocorrncia, ou seja, so marcados. Omena
(2003, p. 70) observa que os fatores no-marcados favorecem as mudanas,
ao passo que os marcados tendem a restringi-las. Pode-se, ento, aqui, estipular
uma hiptese anloga: contextos marcados tendem a frear as mudanas, como
j apontaram alguns estudos sobre mudana lingstica. Portanto, pode-se pensar
que a focalizao e as funes sintticas de objeto de verbo e de preposio, por
serem marcadas, retardam a atuao da forma inovadora c, mesmo ela j sendo a
grande preferida da comunidade de Belo Horizonte, com mais de 70% do total das
ocorrncias.
Com relao a isso, importante observar novamente o que diz Trudgill

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(1988, p. 44-5), a respeito da expanso de uso das formas inovadoras, como


o caso de c: estas, tendo alcanado quase o fim da mudana, quando chegam
perto dos 100% de uso na fala espontnea, continuam a se expandir para outros
contextos mais formais.
Assim, voltando aos poucos casos de uso de c pelos informantes nesses
contextos marcados, ou seja, pouco comuns, est claro que no se pode afirmar
com certeza que eles sejam um princpio de mudana. Como apontam Hopper e
Traugott (1993, p. 95): ... there is nothing deterministic about grammaticalization
and unidirectionality. Changes do not have to occur. (grifo nosso). Alm disso, uma
mudana, para acontecer, passa pela avaliao da comunidade. E, conforme estes
autores apontam, no incio, toda mudana estranha; assim, os falantes podem
rejeitar certas inovaes. a comunidade que determina o avano ou o bloqueio das
mudanas lingsticas.
Entretanto, o aumento mesmo muito modesto das ocorrncias de c
nesses ambientes e, tambm, esse uso sendo encontrado nas interaes lingsticas
cotidianas, tanto em Belo Horizonte quanto em algumas cidades do Esprito Santo,
como Vitria, Vila Velha e Cachoeiro de Itapemirim, podem indicar uma melhor
avaliao e uma maior aceitao dos falantes para esse uso, indicando, assim,
igualmente, um incio de mudana, em que c avana lentamente, verdade
para outros contextos, antes de uso exclusivo de voc e oc.
6 Concluso
Em resumo, os dados encontrados em diversos estudos sociolingsticos
para as formas voc, oc e c indicam que esta ltima est implementada, na
comunidade de Belo Horizonte, sendo usada preferencialmente na funo de sujeito,
e que apresentou um avano bastante pequeno nas funes de objeto de verbo e
de preposio. Esse resultado sugere que pode haver uma continuao do processo
de mudana originado em Vossa Merc, sendo que c pode estar seguindo a
mesma trajetria pela qual passou o pronome voc, ou seja, o uso de c pode estar
comeando a expandir-se para outros contextos lingsticos, antes exclusivos da
forma padro.
Com isso, v-se que uma mudana na lngua est diretamente relacionada
vida social da comunidade e ao uso que ela faz da lngua e da forma inovadora
- como sua avaliao com respeito a essa forma e a freqncia de uso -, e no
apenas aos fatores lingsticos - como as restries fonolgicas e morfossintticas
s mudanas.

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