De "Vossa Mercê" A "Cê" Os Processos de Uma
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mudana em curso
Edenize Ponzo Peres*
Resumo:
Este trabalho apresenta alguns aspectos relacionados mudana que se verificou
na forma de tratamento Vossa Merc. De forma corts para o tratamento ao rei de Portugal,
nos sculos XIV e XV, essa expresso foi-se popularizando e, ao mesmo tempo, perdendo
substncia fontica, dando origem ao pronome voc e s formas oc e c. Por sua
vez, a distribuio sinttica das trs formas mostra-se irregular, ou seja, c mais freqente
como sujeito, ao passo que voc e c so mais freqentes nas funes de objeto de verbo
e de objeto de preposio. Entretanto, embora com pouqussima freqncia, a forma c
comea a aparecer nestes dois ltimos ambientes, o que pode indicar uma expanso de seu
uso. Assim, neste trabalho ser apresentada a hiptese de espraiamento da forma inovadora
c para outros contextos, antes exclusivos das outras duas formas, e sero discutidos os
aspectos lingsticos e extralingsticos envolvidos nessa mudana.
Palavras-chave: mudana lingstica, pronomes de tratamento.
ABSTRACT:
This paper presents aspects related to the change that the Vossa Merc form
has been through. This expression was first used in the XIV and XV centuries when people
had to talk to the Portuguese King. As time passed by, it not only became popular, but if lost
its phonetic charge giving birth to the pronoun voc and to its variants oc e c. It
is interesting to notice that these three forms have an irregular syntactic distribution: c
is more frequently used as a subject, whereas voc and c seem to function as objects of
verbs and prepositions. However, not very often, the same has occurred with c, what may
indicate an increase in its use. To sum up, this work presents a hypothesis of enlargement
of the innovative use of c in other contexts, which were particularly used in the other two
forms. It also discusses linguistic and extra linguistic aspects related to this change
Keywords: linguistic change, pronoun
Introduo
Este trabalho tem por objetivo delinear a trajetria da forma de tratamento
Vossa Merc at os dias atuais, descrevendo a relao entre os aspectos lingsticos
e extralingsticos envolvidos nessa mudana.
Para a anlise atual das formas voc, oc e c, utilizaram-se 1453 dados
obtidos atravs de entrevistas sociolingsticas com 47 belo-horizontinos, divididos
em gnero (masculino e feminino), duas classes sociais (mdia e baixa) e cinco
faixas etrias (de 08 a 11, de 12 a 15, de 16 a 30, de 31 a 47 e acima de 47
anos). Alm desses fatores extralingsticos, na pesquisa foram analisados seis
fatores lingsticos que poderiam exercer influncia quanto ao uso das trs formas:
* Professora Doutora de Departamento de Letras da Universidade Federal do Esprito Santo
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a funo sinttica que exercem nas oraes, se recebem foco ou nfase, o tipo de
referncia definida ou indefinida que expressam, o tipo de orao em que as
formas aparecem, sua posio em relao ao verbo contguas ou no-contguas,
e se elas podem ou no vir topicalizadas na orao.
Os resultados, que aparecem em Peres (2006), mostram que, atualmente,
a forma c a mais utilizada pelos belo-horizontinos, vindo, em segundo lugar, voc
e, em terceiro, com poucas ocorrncias, a forma oc. Esses dados podem ser mais
bem visualizados na Tabela 1, abaixo, extrada de Peres (2006, p. 117).
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Neste trabalho, ser feita uma breve exposio do fator lingstico funo
sinttica e dos fatores extralingsticos que incidem sobre os resultados acima.
Entretanto, inicialmente, ser feita uma explanao sobre as formas de tratamento
desde o latim at seu uso atualmente em Portugal e no Brasil.
1 As formas de tratamento do latim ao portugus antigo
No latim, para as formas de tratamento, havia os pronomes tu para um
tratamento informal a um nico interlocutor e o uos (vs), usado em dois casos: (i)
para a referncia direta a mais de um interlocutor e (ii) para o tratamento respeitoso
a um nico interlocutor.
Ao lado dessas formas, no latim tambm se usava a forma indireta de
referncia, pela qual se expressavam as qualidades morais e o status social do
ouvinte. Assim, os imperadores romanos no eram tratados simplesmente por
uos, mas sim por Uestra Maiestas17, com o verbo na terceira pessoa do singular,
destacando-se sua importncia naquela sociedade.
Por outro lado, em Portugal, no incio, a situao era diferente. Nos primeiros
tempos da monarquia, o rei mal se distinguia dos outros nobres, j que seu poder
no era suficientemente forte para destac-lo, e os riscos das guerras contra um
inimigo comum e a familiaridade imposta pela vida militar aproximavam-no de seus
vassalos. a partir do sculo XIII que o rei comea a distinguir-se das outras classes
e somente no sculo XV ele consegue eliminar qualquer autoridade contrria sua.
Nesse incio sculo XIII , o soberano era tratado por vs. Entretanto, aos
poucos, outras formas de tratamento foram surgindo, e o pronome vs foi lentamente
sendo substitudo pelas formas Vossa + Nome. As formas de tratamento com essa
estrutura, como Vossa Merc, por exemplo, foram introduzidas na lngua portuguesa
no sculo XIV e, especialmente, no XV. Cintra (1972, p. 18) afirma que a expresso
Vossa Merc aparece pela primeira vez nas Actas das Cortes, em 1331, pronunciada
principalmente por castelhanos para dirigir-se a seu rei ou ao rei de Portugal.
No h um consenso, porm, sobre esse dado. De acordo com Luz (1956,
p. 300; 359), a expresso aparece duas vezes nas cortes de 1331, mas provvel
que j existisse antes dessa poca. Segundo Cintra (1972, p. 17), at o sculo
XIV, notamos antes de mais nada a total ausncia de tratamento de tipo nominal.
No entanto, Faraco (1996, p. 60) afirma que, em textos de Ferno Lopes, sobre o
perodo de 1357 a 1433, os aristocratas j se tratavam por Vossa Merc. Por outro
lado, Ali (1976, p. 93) e Nascentes (1956, p. 115) afirmam que, no sculo XIV,
Vossa Merc ainda no se havia cristalizado como expresso pronominal.
Se no h um total consenso com relao data do surgimento de Vossa
Merc, alguns autores, como Faraco (1996, p. 58) e Cintra (1972, p. 19), concordam
17
Faraco (1996, p. 58) cita ainda Uestra Serenitas, Claritudo, Excellentia e Alternitas, como formas de
tratamento ao imperador.
R. (con) Tex. Ling.
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com o fato de que a forma foi importada do castelhano Vuestra Merced e era usada
para a referncia ao rei. De acordo com Lopes (2003, p. 1-2), o tratamento com
merced j podia ser encontrado em textos espanhis do sculo XIII, tendo surgido,
assim como em Portugal, em virtude da decadncia do uso de vs como tratamento
de cortesia.
Desse modo, assim como no Imprio Romano o imperador era nomeado
indiretamente, tomando-se por base sua importncia dentro da sociedade, em
Portugal, igualmente, o tratamento ao monarca era indireto, fazendo-se referncia a
sua generosidade e a seu poder de conceder favores, graas, proteo, justia etc.
Esse tratamento diferenciado para o rei se justificava socialmente. A partir
do sculo XII, Portugal e outros pases da Europa comearam a sofrer profundas
transformaes econmicas, polticas e sociais. O crescimento das atividades
artesanais e comerciais nas cidades originou o fortalecimento da burguesia, que
comeou a ter, a partir de 1254, representantes nas Cortes, assim como a nobreza
e o clero (FARACO, 1996, p. 55-6).
A ascenso da burguesia e o conseqente enfraquecimento da nobreza
feudal juntamente com o fato de Portugal transformar-se numa grande potncia
mundial, graas s grandes descobertas e ao comrcio martimo originaram fortes
mudanas na vida social e cultural da Corte e, principalmente, transformaram o rei
numa figura nica. Houve, assim, a necessidade de se destacar essa importncia,
o que fez com que o tratamento dispensado ao rei fosse tambm nico. Portanto,
vs j no era suficiente para nome-lo, surgindo ento as formas nominais de
tratamento.
No incio, era Vossa Merc a forma mais usual para algum se dirigir a ele,
mas logo outras concorrentes a suplantaram: primeiramente Vossa Senhoria, vindo
depois Vossa Alteza18 e, finalmente, Vossa Majestade. Conforme Luz (1956, p. 320),
estas trs ltimas formas evidenciam outras qualidades do rei, mais conformes
com a nova concepo da dignidade real; por isso substituram Vossa Merc, por
exprimirem melhor sua magnificncia.
O declnio de Vossa Merc para o tratamento real deveu-se expanso
de seu uso para outras figuras da aristocracia portuguesa: os filhos do rei, o
condestvel, duques de alto estado e condes. Posteriormente, passou a ser usado
como tratamento para a burguesia, chegando, por fim, a significar um tratamento
respeitoso para qualquer portugus a quem no se poderia tratar por Vossa Senhoria,
por tu (considerado bastante ntimo) ou por vs.19 V-se, assim, como os fatores
18
De acordo com Luz (1956, p. 324-34), o primeiro exemplo conseguido da forma Vossa Senhoria de
1434; Vossa Alteza aparece nas obras de Ferno Lopes (escrivo de D. Joo I e do infante D. Duarte, que
teria nascido em 1380 e morrido em 1460); e o exemplo mais antigo conseguido de Vossa Majestade
de 1442.
19
Nascentes (1956, p. 117) afirma que, no estilo oficial, o tratamento de Vossa Merc perdurou at
1889.
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sociais exercem influncia sobre a lngua. Sendo esta inerente a uma sociedade,
seu uso reflete as experincias sociais de uma comunidade, suas crenas e sua
estrutura social.
Cintra (1972, p. 25-36) assim descreve a decadncia de Vossa Merc:
A frmula Vossa Merc, inicialmente aplicada ao rei e rainha, foi
posteriormente destronada desse cargo no qual foi substituda por, sucessivamente,
Vossa Alteza e Vossa Majestade. O honorfico decadente passou a ser aplicado
nobreza, depois burguesia, e continuou a descer na escala social, circulando em
variantes morfofonolgicas tais como vossanc e voc, a ltima emergindo no sculo
XVII, e chegou, principalmente em Portugal, ao extremo de ser percepcionado como
ofensivo em certas camadas da populao.
Ao mesmo tempo em que Vossa Merc baixava na escala social, essa forma,
por ser repetida a toda hora e por todo mundo, sofreu transformaes fonticas,
como ser visto a seguir20.
2 A forma voc na lngua portuguesa
Em Portugal, poca da colonizao do Brasil, a partir do sculo XVI, o uso tanto
de Vossa Merc quanto de vs pela populao das classes mais baixas de onde
saiu a maior parte de nossos colonizadores estava j em declnio, ao passo que
a simplificao fontica de Vossa Merc estava adiantada, ocorrendo as variantes
dessa forma ao lado do pronome tu.
De acordo com Menn (2000), embora no se saiba ao certo que tipo de
portugus era falado aqui no incio do perodo da descoberta, pode-se pensar que
essa situao lingstica foi trazida para o Brasil pelos colonizadores. Estes vieram de
todas as partes de Portugal, o que deu origem a uma grande diversidade de dialetos
convivendo juntos. Entretanto, rapidamente essa diversidade foi neutralizada, tendo
o nosso falar perdido alguns dos traos mais marcantes do portugus lusitano,
diferenciando-se deste.
Alm disso, essas diferenas lingsticas entre a metrpole e a colnia
tenderiam a aumentar rapidamente, visto que aqui no havia escolas nem imprensa,
ficando a educao a cargo apenas dos jesutas. Assim, como afirma Menn (2000,
p. 131),
Sem escolas para impingir normas e corrigir erros, sem imprensa para fixar
visualmente padres empregados na escrita, a lngua poderia perfeitamente ter se
modificado mais rapidamente que em Portugal no tocante ao uso de vosmec,
sobretudo na grande massa da populao.
20
Luz (1956, p. 271) afirma: ... as frmulas de tratamento corteses so expressivas, por vezes exageradas, e o valor expressivo das palavras atenua-se rapidamente, pelo uso freqente que dela se faz.
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Faraco (1996, p. 63) cita uma outra data para o surgimento de voc: 1666.
Gramaticalizao um processo de mudana lingstica em que uma palavra isolada vai perdendo status, transformando-se, cada vez mais, em um elemento preso, dependente de outra palavra. As etapas
da gramaticalizao so: item com significado lexical > item gramatical > cltico > afixo flexional.
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