Amor Casamento e Modernidade
Amor Casamento e Modernidade
Amor Casamento e Modernidade
Cf. The complete poems of Emily Dickinson (New York: Little, Brown and Co., 1961).
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2.1.
A padronizao do amor, do casamento e da famlia na modernidade
ocidental
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modernidade ou contemporaneidade 2 . Isso, porque o entendimento desses
processos particulares de formao social, sobretudo ligados privatizao dos
sentimentos (Elias, 1995), individualizao, inveno da sexualidade
(Foucault, 1988) e nuclearizao da famlia (Aris, 2006), subjaz ocorrncia
de mudanas propiciadas pelo nascimento do mundo ocidental moderno, em que o
Estado assume papel preponderante no controle da conduta de grupos e,
sobretudo, de indivduos.
Antes, porm, de falar do perodo moderno, farei um breve recuo, levando
em conta algumas questes que nos parecem relevantes e que, continuamente,
contriburam para a formao de paradigmas scio-culturais, referentes s normas
e papis da famlia, do casamento, das relaes entre os gneros, e da expresso
2.1.1.
A construo simblica do feminino e do masculino no ocidente e o
amor corts
Optei por fazer referncia aos termos mais usados pelos tericos que trabalham com uma
concepo de crise ou transfigurao da modernidade, os quais remetem, por um lado matriz de
formao moderna, e de outro, a uma idia de transposio dessa matriz.
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primeira em relao ao casamento e fidelidade 3 . Desde os escritos de Santo
Agostinho at o romantismo moderno, assim, o amor esteve relacionado ao
sofrimento e ao inatingvel, como percebe Rougemont. As artes em geral e a
literatura esto repletas de histrias de amor que retratam paixes arrebatadoras e
ao mesmo tempo proibidas, e que tm muitas vezes como desfecho a morte e o
suicdio.
Essas obras tambm expressam em alguma medida uma oposio entre
paixo e reciprocidade, j que as histrias contadas falam de amores para os quais
o que importa no a troca equilibrada no interior da relao, mas a obteno
daquilo que de alguma forma seria irresistvel para o indivduo, rompendo com a
noo de reciprocidade.
A potica do amor corts, que teve importante influncia na concepo de
Essa contradio expressa no mito entre paixo, casamento e fidelidade interessante para pensar
o tema deste trabalho, na medida em que me leva a questionar a possvel proximidade entre as
idias de casamento e fidelidade. Da mesma forma, pergunto-me at que ponto a representao
literria da paixo relacionada ao adultrio ecoou e tem se refletido na formao de determinadas
concepes amorosas ocidentais, e at que ponto essa representao foi reflexo destas.
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2.1.2.
Amor, casamento e sistema familiar na modernidade
Michel Bozon (2004b) enfatiza, por outro lado, que o amor no era um
sentimento partilhado pela sociedade ocidental na Idade Mdia. O amor corts,
principalmente - precursor do amor romntico - que era um sentimento entre uma
nobre e um plebeu, adltero e proibido, e que deixara uma imagem de que o amor
deveria ser evitado, fora condenado pela Igreja. J no sculo XVIII, com o incio
do processo de modernizao e de secularizao, iniciou-se um movimento que
transformou o amor no apenas em algo esperado entre os cnjuges, mas na
prpria razo da escolha realizada por eles. No mbito familiar, as mudanas
tambm foram considerveis, na medida em que a famlia passou a se constituir
numa unidade moral e afetiva pela primeira vez, deixando de fazer parte de um
sistema de alianas e interesses, comportado pelo direito privado.
Anthony Giddens (2003) descreve a famlia tradicional europia da Idade
Mdia como uma unidade econmica. A produo agrcola envolvia todo o grupo
familiar e, entre a pequena nobreza e a aristocracia, a transmisso da propriedade
era a principal base do casamento. Na Europa medieval, o casamento no era
contrado com base no amor sexual e no havia lugar na unio matrimonial para
qualquer espcie de fantasia amorosa. Outro trao caracterstico da conjugalidade
tradicional era a marcante desigualdade entre homens e mulheres, que estava
diretamente associada ao sistema de transmisso de bens. Com isso, s mulheres
eram transmitidos valores que exaltavam a virgindade nas moas, e a constncia e
a fidelidade nas esposas. Assim, reduzia-se a possibilidade de as mulheres terem
filhos de outros homens, que no de seus maridos. A sexualidade no sistema
familiar medieval era dominada, sobretudo pela reproduo e pela idia de virtude
feminina.
Foi a partir de um gradual e crescente processo de individualizao do
mundo ocidental, de conteno das emoes, e de constituio de uma economia
psquica (Elias, 1995), com a conseqente introjeo de padres e novos valores,
que pde ser modelado um novo sentimento, o amor moderno, que teve como
qualidade distintiva a focalizao em um ser insubstituvel e nico, expresso
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Ao longo do Antigo Regime, ressalta Donzelot, a famlia esteve inscrita no campo poltico : o
chefe de famlia respondia por seus membros e deveria garantir a fidelidade ordem pblica
daqueles que faziam parte daquela. A no pertinncia a uma famlia, ou seja, a ausncia de um
responsvel scio-politico gerava um problema de ordem pblica, o que foi solucionado com a
formao do Estado e com a criao do aparato de regulao social que acompanhou a constituio
deste.
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ateno que a partir desse processo descrito acima, no apenas a famlia passa a
se destacar de seu enquadramento domstico, como os prprios valores conjugais
tendem a se liberar dos valores propriamente familiares, assumindo certa
autonomia. As alianas continuam, por um tempo, reguladas pelas hierarquias de
famlias, embora se trate menos de preservar a ordem familiar, do que de preparar
para a vida conjugal, de modo a dar novo cdigo a essa ordem. A preparao para
o casamento comea, assim, a ser um fim em si mesmo, no tendo mais como
funo absoluta a preservao da famlia.
No sculo XIX, o social passa, com isso, a se centrar em torno da
conjugalidade, de sua aprendizagem, de seu exerccio, de seus deveres, mais do
que da famlia. Mas em lugar de falar em crise da famlia, tanto Deleuze quanto
Donzelot chamam ateno para a reorganizao ou reestruturao que esta sofreu,
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2.1.3.
Revoluo Francesa e Romantismo: do individualismo quantitativo
ao qualitativo
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2004).
2.2.
O amor contemporneo e a individualizao nas relaes privadas
Da
prpria
constituio
da
modernidade
emanaram
movimentos
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2.2.1.
Eu e ns: A construo da identidade individual e o casamento hoje
possvel notar, ainda, que no existe uma abstrao universal do que seja a famlia, mas
mltiplas concepes e experincias que os indivduos tm em relao a ela. Dessa forma,
portanto, que nas classes populares as dimenses de reciprocidade, colaborao e dependncia,
parecem se sobrepor as de individualizao e autonomia (Mello, 2003).
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ainda
essencial
no
interior
do
casamento
hoje,
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caracteriza
um
trao
marcante
dos
relacionamentos
amorosos
2.2.2.
Reflexividade, amor confluente, e diviso sexual dos papis
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Essa questo importante para minha reflexo, j que estou particularmente interessada na idia
de reconfigurao dos universos simblicos dos gneros, e na possvel reorganizao de papis e
representaes masculinos e femininos, tanto na esfera pblica quanto na privada.
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2.2.3.
Famlia brasileira: entre a moralidade tradicional e o rduo primado
da opo moderna
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. No que diz
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A obra da autora discute o contexto relacional do casal grvido (CG), mas faz uma importante
referncia ao casal igualitrio, que por ser importante para o debate deste trabalho, abreviei como
CI.
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2.2.4.
Amor contemporneo: os dilemas da relao amorosa na atualidade
por outro lado, estamos tambm mais envolvidos com nossas prprias questes,
desejos e constantes transformaes. Como equacionar a unio entre o eu e o
outro, sem que cada um se perca de sua identidade e ao mesmo tempo cuide para
que se construa uma unidade-casal? A questo apontada por diversos autores
revela-nos o desafio de uma busca que ora leva um nmero ascendente de pessoas
a se unirem, ora uma quantidade considervel a se separarem, o que tem
favorecido dentro da trajetria pessoal um acmulo de experincias amorosas.
Entre as mudanas que vm se produzindo no mundo atual, as que
ocorrem nas vidas pessoais dos sujeitos so, segundo Giddens (2003), as mais
impactantes. H uma revoluo global em curso tambm no modo como
pensamos sobre ns mesmos e no modo como formamos laos e ligaes com os
outros. So transformaes perturbadoras, porque atingem diretamente o universo
das emoes individuais. Um dos conceitos que o autor utiliza para problematizar
essa nova realidade o de relao pura, definido como um relacionamento
baseado na comunicao emocional, em que as recompensas derivadas de tal
comunicao so a principal base para a continuao do relacionamento.
(Giddens, 2003: 70). Giddens demonstra que a relao pura tem uma dinmica
completamente diferente dos tipos tradicionais de laos sociais, porque depende
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de processos de confiana ativa, com a abertura de si mesmo para o outro 10 . Para
que esse tipo de relao tenha um bom funcionamento preciso que haja dilogo
e confiana recproca. A relao pura tem dominado, aponta o autor, cada vez
mais, os campos das relaes sexuais e de amor, dos relacionamentos pais- filhos e
da amizade. Trata-se de um tipo de relao baseada na idia de igualdade e
tambm de individualidade, que se associa ao que Giddens chama de emergncia
de uma democracia das emoes da vida cotidiana (Giddens, 2003:72). A
construo de relaes democrticas no plano privado , na viso do autor, to
importante quanto foi a do mundo pblico para o aperfeioamento da qualidade de
nossas vidas.
Jurandir Freire Costa (1998) retoma a obra de Elizabeth Badinter para
discutir uma das formas de problematizar a questo amorosa hoje. De acordo com
importante ressaltar que o autor usa a categoria relao pura como uma idia abstrata que nos
ajuda a entender transformaes que ocorrem hoje no plano das emoes individuais, e no modo
como os relacionamentos pessoais se estabelecem.
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onde, por um lado brilha a euforia do bem estar, e por outro, comum o indivduo
ser tomado pela impresso de no ter vivido o que teria desejado viver.
O cenrio ps- moderno mostra-se ambguo tambm no que se refere
vida ntima e sentimental. Lipovetsky demonstra que crescem as expectativas na
vida conjugal, ao mesmo tempo em que se proliferam os conflitos e decepes
ntimas. A felicidade paradoxal reside numa busca cada vez maior por
proximidade emocional e comunicao intensa nas relaes, que acaba gerando
decepes tambm crescentes no plano individual. Ao difundir no corpo social o
ideal de auto-realizao, a sociedade de hiperconsumo exacerbou as discordncias
entre o desejvel e o efetivo, o imaginrio e o real, as aspiraes ideais e a
experincia cotidiana.
Questionando-se sobre se vivemos uma dessentimentalizao do mundo, o
autor conclui enfaticamente que no. O amor, segundo ele, longe de declinar,
continua a ser centralizado pela cultura. Nos filmes, canes, imprensa, por toda
parte o amor apresenta-se como um ideal superior, como a imagem mais
emblemtica da felicidade (Lipovetsky, 2007:147). Ainda que as questes
econmicas se mostrem onipresentes no cotidiano, uma outra lgica, antinmica,
porque afetiva e desinteressada, no deixa de ganhar legitimidade, modelando
expectativas. Nas mdias de massa, por exemplo, o amor amplamente
consumido. A cultura do amor se generaliza e se intensifica no universo do
consumo- mundo. E a busca pela perenidade nas relaes afetivas parece
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vida.
Estamos falando de um cenrio notavelmente diversificado, mltiplo e de
um universo de relaes humanas cada vez mais dinmico, flexvel e complexo,
embora acreditemos que para alm da contradio de valores, modelos, padres,
crenas, vivemos um momento de coabitao de variados paradigmas. No
incomum encontrar uma mesma pessoa defendendo pontos de vista que acionam
diferentes modelos, inscritos em nveis separados da subjetividade, e que h
alguns anos seriam absoluta e necessariamente excludentes. O discurso dos
sujeitos sobre amor e famlia um exemplo claro dessa composio de
parmetros, at porque os modelos de relacionamento, como j dissemos, so
diversos. E no somente estes, como tambm os valores e convices pessoais so
muito mais particularizados, como se cada indivduo pudesse construir um
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