A Constituição Da Pessoa Segundo Emmanuel Mounier
A Constituição Da Pessoa Segundo Emmanuel Mounier
A Constituição Da Pessoa Segundo Emmanuel Mounier
A CONSTITUIO DA PESSOA
SEGUNDO EMMANUEL MOUNIER
Fortaleza
2011
A CONSTITUIO DA PESSOA
SEGUNDO EMMANUEL MOUNIER
Fortaleza
2011
A CONSTITUIO DA PESSOA
SEGUNDO EMMANUEL MOUNIER
Banca Examinadora:
__________________________________
Profa. Dra. Ir. Maria Celeste de Sousa
Orientadora
____________________________________
Profa. Ms. Janine Barreira
Examinadora
Fortaleza
2011
homem
apaixonado
pela
AGRADECIMENTOS
A Nosso Senhor Jesus Cristo, Redentor da humanidade, por me ter sustentado e feito
encontrar sentido durante todo o curso de Filosofia.
Aos meus familiares, especialmente aos meus pais Vicente e Elenita e irms Maria
Paula e Camilla , meus primeiros formadores, que sempre incentivaram a minha vocao e
os meus estudos.
Aos irmos de comunidade: Rodrigo, Thiago Jos, Jonas, Michel e Mrcio, pela companhia
durante os trs anos do curso de Filosofia.
Ao Felipe Alves, colega de faculdade, pelo emprstimo dos livros e pela motivao contnua.
Aos irmos da minha atual casa comunitria da Comunidade de Vida, Casa Me 2, pela
intercesso e pelo apoio neste tempo to exigente.
Professora Dra. Ir. Maria Celeste de Sousa, pela orientao cheia de solicitude e ateno.
SUMRIO
INTRODUO........................................................................................................................ 7
CONSIDERAES FINAIS................................................................................................ 41
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................. 44
INTRODUO
LORENZON, Alino. Atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier. 2. ed. Iju: UNIJU Ed., 1996. p. 100.
MOUNIER apud MOIX, O pensamento de Emmanuel Mounier. Trad. de Frei Marcelo L. Simes O. P. Rio de
Janeiro: Paz de Terra, 1968. p. 100. (Srie Encontro e Dilogo).
3
Jean Guitton, pensador catlico muito amigo do papa Paulo VI, participou do Conclio Ecumnico Vaticano II.
So luminosas as suas palavras dirigidas a Mounier, como uma homenagem pstuma escrita na revista Esprit de
2
No fomos feitos para horas fceis, eis tudo. Mas preciso, juntos, tornar
belas todas as que nos forem concedidas. Marcando pelos caminhos, h
pouco, tentei fazer cantar meu corao. Isto no custou muito. Bastava-me
pensar que todo sofrimento integrado no Cristo perde seu desespero, sua
prpria fealdade9.
dezembro de 1950: Sois destes seres privilegiados que herdaram a simplicidade... Basta que apareais, e logo
todos se agrupam em torno de vs.
4
Sacerdote lazarista quase cego, que exerceu um extraordinrio apostolado entre os intelectuais de seu tempo,
aproximando da f grandes mentes como Albert Camus e Henri Bergson.
5
Severino acrescenta Plato, Pascal e Henri Delacroix s influncias ao pensamento de Mounier. As prprias
obras de Mounier revelam ainda forte influncia do existencialismo cristo de Gabriel Marcel, Kierkegaard,
dentre outros.
6
Como professor, Mounier procurava no transparecer suas tendncias pessoais em detrimento de um ensino
que queria completo. Alm disso, mostrava-se bastante respeitoso s pessoas, com uma presena irradiante.
7
Aps a morte de Emmanuel Mounier, Domenach dirigir a revista Esprit por aproximadamente vinte anos.
8
SEVERINO, Antnio Joaquim. A antropologia personalista de Emmanuel Mounier. So Paulo: Saraiva,1974.
p. 6.
9
MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 19.
10
10
11
11
A ordem dos captulos no segue nenhum tipo de orientao sistemtica, visto que
o pensamento de Emmanuel Mounier essencialmente dialtico. Notar-se- facilmente como
os contedos dos captulos faro referncia direta uns aos outros.
No primeiro captulo ser abordada a dimenso corprea da pessoa, inserida na
dialtica interioridade-exterioridade relao necessria para se descobrir o real significado
da corporeidade como manifestao do ser pessoal. As implicaes da existncia encarnada
da pessoa ganham acentos especiais quando Mounier estabelece a relao entre Encarnao e
Cristianismo.
A dimenso intersubjetiva da pessoa o assunto apresentado no segundo captulo,
que argumenta que existe na pessoa um tipo de exigncia ontolgica de comunicao e de
relao com os outros, uma relao baseada no amor, capaz de construir, simultaneamente, a
pessoa e a comunidade.
O terceiro captulo descreve os argumentos de Mounier em defesa da dimenso
espiritual da pessoa, que no deve ser entendida como fuga da realidade, mas como fator
determinante da eficcia de qualquer ao que se pretenda humana. Nesse sentido,
compreende-se tanto o imperativo de uma generosa abertura do ser humano transcendncia,
como tambm a necessidade de um primado da vida interior sobre o seu agir.
A dimenso tica da pessoa o tema do quarto captulo, que apresenta a ao
responsvel como condio de realizao da pessoa. A autenticidade da vida de uma pessoa se
prova, segundo Mounier, tanto pela qualidade do seu engajamento na construo da histria
quanto pela fora do seu testemunho.
12
MARX apud MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. 2. ed. Trad. de Joo Bernard da Costa. So Paulo:
Duas Cidades,1964. p. 51.
13
MOUNIER, 1964, p. 51.
14
Ibidem, p. 52.
15
MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 157.
16
Ibidem.
17
MOIX, 1968, p. 157.
18
Ibidem, p. 210.
19
MOUNIER, 1964, p. 40.
13
prejuzos. Esta verdade defendida por Mounier adquirir particular gravidade quando ele se
dirige aos cristos, devido centralidade do mistrio da Encarnao em suas vidas.
14
Numa feliz mxima de Karol Wojtyla, que, alm de papa, um grande filsofo
personalista, o corpo o sacramento da pessoa. Sacramento entendido como sinal que
transmite, eficazmente, ao mundo visvel o mundo invisvel [...]: o espiritual e o divino
27
Interpretando a viso mounieriana de corporeidade, assim diz Moix: graas ao meu corpo
que eu sou, que eu comunico com o mundo e com o outro, graas ao corpo que eu posso
agir28.
No posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo: atravs dele exponhome a mim prprio, ao mundo, aos outros, atravs dele escapo solido de
um pensamento que mais no seria que pensamento do meu pensamento.
[Ele] lana-me sem cessar para fora de mim na problemtica do mundo e nas
lutas do homem. Atravs das solicitaes dos sentidos, lana-me no espao,
atravs do seu envelhecimento ensina-me o tempo, atravs da sua morte
lana-me na eternidade. A sua servido pesa-nos, mas ao mesmo tempo
base para qualquer conscincia e para toda a vida espiritual. mediador
onipresente da vida do esprito29.
JOO PAULO II (papa); PETRINI, Joo Carlos e SILVA, Josaf Menezes da. (Orgs.) Homem e mulher o
criou: catequeses sobre o amor humano. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 114.
28
MOIX, 1968, p. 137.
29
MOUNIER, 1964, p. 51.
30
Ibidem, p.40.
31
Ibidem.
15
tradio32, pois o homem se salva com seu corpo, e no contra ele 33.
Entretanto Mounier reconhece que em alguns momentos histricos o desprezo dos
gregos pela matria revestiu-se de falsas justificaticas crists, o que no produziu seno
espiritualismos estreis, experincias de f intimistas e descomprometidas. A fuga do mundo,
segundo Mounier, algo absolutamente incoerente com o mistrio central do cristianismo
que , precisamente, a encarnao do Filho de Deus. Esta verdade pode ser claramente
reconhecida na Constituio Pastoral Gaudim et spes, um dos mais importantes documentos
do Conclio Vaticano II:
Pois o prprio Verbo encarnado quis participar da vida social dos homens.
Tomou parte nas bodas de Can, entrou na casa de Zaqueu, comeu com os
publicanos e pecadores. Revelou o amor do Pai e a sublime vocao dos
homens, evocando realidades sociais comuns e servindo-se de modos de
falar e de imagens da vida de todos os dias. Santificou os laos sociais e
antes de mais os familiares, fonte da vida social; e submeteu-se livremente s
leis do seu pas. Quis levar a vida prpria dos operrios do seu tempo e da
sua terra34.
Este mistrio tem, na vida do cristo, uma srie de implicaes prticas, caso este
queira ser verdadeiro imitador de Cristo. Assim escreve Mounier: O dever da encarnao, se
a ele fssemos fiis sem abusar da palavra, nos obrigaria [...] a contar como valor a
interioridade, mas tambm a nos expandirmos na natureza para conquistar a vida universal
para a interioridade35. E acrescenta: preciso despertar do seu sono dogmtico aqueles que
confundiram eternidade e intemporalidade e que, finalmente, por recusarem atualizar o eterno,
eternizaram o provisrio 36.
No correto, portanto, falar de oposio entre o espiritual e o temporal. Convm
que se tenha uma constante vigilncia que possa prevenir tanto a separao quanto a confuso
entre essas duas realidades. Alm disso, Mounier entende que no temos de trazer o
espiritual para o temporal, quando o espiritual j est no temporal. Nossa tarefa descobrir o
primeiro no segundo e viv-lo, propriamente comungar com ele 37.
O cristo deve aprender a recolher-se do temporal sem deixar de inserir-se no
temporal. Uma religio do puro esprito no seria uma religio de homens 38. Segundo
32
16
Mounier, tentao fortssima para o cristo sentar-se com enternecimento diante das belas
paisagens teolgicas, enquanto a caravana humana prossegue sua marcha com os ps em
brasa39. Para o fundador de Esprit, o fogo da religio e do esprito devem irradiar em
atividade poltica40.
Mounier dedicou algumas de suas obras dimenso combativa da f crist. Em
uma dessas obras ele afirma que os cristos em massa perderam o hbito deste combate,
fora de tanto confundirem a vida interior com o confinamento subjetivista 41. Assim como
Pguy, Mounier considerava insuportvel a segurana mstica de certos catlicos, uma vez
que prprio do mstico possuir uma inquietude invencvel42. O apelo mstico no pode
substituir o esforo humano, antes deve impulsion-lo e orient-lo.
Emmanuel Mounier, imbudo do realismo, da coragem e da honestidade que lhe
so caractersticos, mas tambm inspirado por um grande amor Igreja, no teme, antes se
sente impelido a fazer duras crticas ao que ele chama de mundo deformado dos cristos, que
resultado das incoerncias e omisses dos discpulos de Cristo.
Mounier, que era profundamente conhecedor das obras de Nietzsche, diz que o
que este filsofo ateu atacava era exatamente uma caricatura crist, e no o cristianismo na
sua essncia. Mounier ainda lamenta amargamente que os cristos no sejam mais atentos a
Nietzsche, porque ele lhes revelaria sua infidelidade ao Evangelho, sua incapacidade de levar
a srio um cristianismo cheio de vida 43.
A mxima instigante de Emmanuel Mounier: Aos cristos s se pede que sejam
eles mesmos44, foi certamente cunhada a partir da firme certeza que tinha de que o
cristianismo, enquanto mensagem de Cristo, possui um poder revolucionrio, um vigor tpico
de personalidades fortes e hericas, no sendo, de forma alguma, a negao da humanidade e
da vida nem o refgio de desertores da luta45.
O personalismo mounieriano revela que um autntico humanismo ser sempre
consonante com a religio crist. Nessa perspectiva, h um relato de uma experincia pessoal
de Mounier que servir de exemplo: S quando acabo de sair da meditao ou da comunho
a mais purificada que me sinto mais prximo dos homens, em contato mais rico com eles 46.
39
17
Outra frase deste filsofo torna ainda mais evidente a misso do cristo no mundo: dele
exigida a arte de transfigurar as horas mortas, as aes medocres, a monotonia cotidiana. Seu
dever resgatar toda a sua participao na nusea do mundo 47.
Pode-se notar nas palavras de Mounier certo profetismo, visto que, mesmo cerca
de trs dcadas antes do Conclio Vaticano II, j levantava uma questo que a Igreja tornaria
uma prioridade pastoral: como tornar mais eficaz a sua presena no mundo.
47
48
18
Se a questo da intersubjetividade paradigmtica na contemporaneidade, podese dizer, com propriedade, que o ainda mais para o personalismo. Mounier defende que no
existe subjetividade sem intersubjetividade, nem existncia que no seja igualmente
coexistncia. Em uma palavra, viver conviver.
O tema do outro, j muito trabalhado nos diversos existencialismos, tambm
central no personalismo. Mounier parte do pressuposto de que a experincia fundamental da
pessoa reside na comunicao, como o demonstra Lorenzon: No somos seres solitrios. A
linguagem, a razo e o prprio corpo testemunham e reclamam um direcionamento
comunicao49. Segundo o personalista francs, h no homem uma exigncia ontolgica de
ter algum com quem se relacionar.
Na base desta comunicao est o amor, entendido como dom de si feito ao outro.
Mounier prope uma metafsica da pessoa, segundo a qual o homem s se realiza na medida
em que sai de si para ir ao encontro do outro.
Radicalmente oposto a toda e qualquer forma de individualismo, o personalismo
mounieriano defende a restaurao da intersubjetividade, entendendo que a pessoa
inseparvel da comunidade e incompreensvel sem ela50.
49
19
vida interior de uma pessoa, se esta no for partilhada, minguar, semelhante gua de um
poo que apodrece quando no tirada constantemente. Os prprios bens da pessoa sejam
eles materiais, espirituais, culturais ou intelectuais perdem a sua razo de ser se no so
colocados a servio dos outros.
Desta forma, pode-se afirmar que o outro no um limite do eu, mas uma fonte
do eu, a descoberta do ns estritamente contempornea da experincia pessoal. O tu aquele
em quem ns nos descobrimos e pelo qual ns nos elevamos 53. Uma pessoa para quem os
outros se tornam estranhos, cedo tornar-se- estranha a si mesma. to constitutiva da pessoa
esta relao de comunicao que, quando o alter se torna alienus para algum, esse mesmo
algum tambm se aliena.
Mounier acredita que a pessoa s se conhece atravs do outro, que o melhor
espelho para o olhar do homem o olhar do outro homem. [...] Entra um ser novo no espao
imediato da minha vida, e tudo posto em questo por esta simples presena 54. por este
motivo que Mounier via no outro uma fonte benfazeja e, sem dvida, necessria de
renovao e de criao55. A presena do outro indispensvel para que eu me torne eu
mesmo, pois ele me interroga, me convoca a crescer.
No h para a pessoa, possibilidade de conhecer-se e realizar-se fora da dinmica
da comunho interpessoal, pois o homem no uma solido irredutvel, nem uma
conscincia unicamente voltada para si mesma, mas sim, um movimento em direo ao outro
e do outro em direo a mim numa comunicao de existncias 56. nessa perspectiva que se
pode afirmar que a primeira preocupao do personalismo descentrar a pessoa e coloc-la
em uma perspectiva de abertura, disponibilidade e generosidade.
Para Mounier o grande erro do Ocidente foi ter-se distanciado perigosamente da
verdade primeira de que o homem pessoal no um homem isolado, mas um homem rodeado,
atrado, chamado. Esta verdade constitui o prprio alicerce do personalismo. Simplesmente
no h eu sem o tu e sem o ns.
A comunicao, segundo Mounier, s comea com o sentido do outro, que o
respeito do outro. Ter o sentido do outro aceitar outrem diferente de mim mesmo, que pela
ateno e o respeito que lhe consagro, torna-se meu semelhante, outro eu mesmo 57. O
filsofo francs defende que a compreenso do outro o que origina a conscincia pessoal, e
53
20
Mounier admite que o mundo dos outros no um jardim de delcias, pois incita
para a luta, para a adaptao, para a superao; introduz o risco e o sofrimento no ponto exato
em que beirvamos a paz. Por isso, muitas vezes, o instinto de auto-defesa reage recusandoo60. Entretanto, o outro , ao mesmo tempo, um impulso motriz indispensvel ao
desenvolvimento do sujeito. Fugir dessa tenso salutar seria sacrificar uma experincia
irrenuncivel na constituio do ser pessoal.
A respeito da lucidez e da verdade que devem estar presentes nos relacionamentos
humanos, so significativas as palavras de Mounier em uma carta dirigida a sua me: H
58
21
feridas vs, mas tambm h feridas necessrias. por isso que muitas vezes os temores de
constranger, de fazer sofrer, de explicar, so contrrios s verdadeiras relaes humanas 61.
Sartre, segundo Emmanuel Mounier, s quis ver no olhar dos outros um olhar
que sustm e detm, s quis ver na sua presena uma usurpao que me despoja e me
escraviza. A parte de verdade de tudo isto est em que [o outro] me perturba, introduz a
desordem em minhas convices, meus hbitos, meu sono egocentrista62. Mas, por outro
lado, Mounier via que, mesmo quando hostil, o outro o mais seguro revelador de mim
mesmo, o que lhe permitia afirmar que a relao interpessoal positiva uma provocao
recproca e uma mtua fecundao.
61
22
23
constituio
da
sociedade,
que,
para
Mounier,
se
d,
74
24
pessoas78.
Todo o esforo doutrinal do personalismo, segundo Mounier, visava libertar o
senso da pessoa dos erros individualistas e das cadeias dos erros coletivistas
79
, gerando,
78
25
Nessa perspectiva, entende-se porque nem toda sociedade merece ser chamada de
comunidade. Alis, segundo Mounier, jamais houve tantas sociedades e to poucas
comunidades. H, sem dvida, um grande nmero de homens que passam sua vida sem
experimentarem uma nica comunho verdadeira. Muitas experincias supostamente
comunitrias, at mesmo familiares, no passam de conglomerados impessoais, meros
agrupamentos motivados mais pelas circunstncias que pela liberdade.
Caberia aqui a percepo que Mounier tem da famlia e do seu papel inalienvel
na edificao da pessoa e da comunidade. Segundo o filsofo personalista,
26
que encontrar89. Urge, portanto, que cada pessoa humana se reconhea artfice indispensvel
da comunho universal, a comear pelos mais prximos dentre os prximos.
Vale lembrar que o chamado construo da sociedade pelos indivduos no os
dispensa de um trabalho de auto-formao. preciso enriquecer-se interiormente para, em
seguida, enriquecer os outros. Ningum pode dar o que no tem. Antes de fazer-se dom,
necessrio descobrir o prprio valor por meio da vida interior. O prximo captulo aborda o
homem em sua dimenso espiritual.
89
27
90
28
enquanto que a pessoa, fechada sobre si mesma, recusa-se a uma aceitao do outro e da
realidade93. Uma ao, para ser s e vivel, no pode desprezar nem uma preocupao de
eficcia nem tampouco o contributo duma vida espiritual.
Diante das ameaas tanto do materialismo quanto dos espiritualismos, a
concepo mounieriana, que pretende ver o homem na sua unidade e complexidade, afirma
que o espiritual [...] o homem integral, reencontrando sua ordem, e, segundo esta ordem,
at as ltimas consequncias de suas responsabilidades, pensando, querendo, ultrapassandose, consagrando-se94.
A riqueza da vida espiritual de uma pessoa pode, em certa medida, ser verificada
por meio da sua capacidade de transcender rumo aos valores e, desta forma, tambm em
direo a sua prpria essncia. Alm disso, contra o ativismo estril da modernidade,
Emmanuel Mounier relembra a todos a necessidade de se viver um primado da vida interior.
3.1 A transcendncia
O homem, para o personalismo, sendo um ser natural, mais que um ser natural,
pois ele transcende a natureza. Esta realidade da transcendncia humana pode ser constatada
na possibilidade que o homem tem de conhecer e transformar a natureza, mas sobretudo na
sua capacidade de amar.
Em O personalismo, Mounier afirma que mil fotografias sobrepostas no nos do
um homem que anda, que pensa e que quer [...] A pessoa no o mais maravilhoso objeto do
mundo, objeto que conhecssemos de fora, como todos os outros. a nica realidade que
conhecemos e que, simultaneamente, construmos de dentro. Sempre presente, nunca se nos
oferece
95
, pois nos transcende. Viver como uma coisa, sem dimenso interior, para o
93
29
dignidade, procura do seu segredo e da sua essncia. Para Mounier, essncia e existncia
so duas dimenses indissociveis na experincia humana. A medida da autenticidade da
existncia de uma pessoa tambm a medida da conscincia que tem da sua essncia.
O filsofo personalista rejeita a tirania das definies formais que procuram
classificar as pessoas, mas tambm contrrio posio de alguns existencialistas que negam
ao homem toda essncia e toda estrutura. A Histria testemunha de que quando a
organizao e a ideologia desprezam o absoluto pessoal, elas levam, tal como as paixes,
crueldade e guerra97.
Negar a permanncia do homem sob a diversidade de sua fisionomia abrir
caminho desumanidade, consentir em todos os crimes, mesmo quando
no cometidos do prprio punho. [...] tarefa urgente lembrar a este mundo
tumultuado a presena do homem eterno por trs da fisionomia mutvel da
Histria. Da afirmao que no h natureza humana, h muitos que
concluem que tudo permitido ao homem, e abandonam todo freio98.
97
30
quais sabemos que mesmo a morte nada conseguiria contra eles 102. A certeza do valor dos
valores surge na plenitude da vida pessoal e na alegria que inseparvel da vida valorizada.
nessa perspectiva de reconhecimento e valorizao da transcendncia humana
que se encontram tambm as crticas de Emmanuel Mounier ao materialismo marxista que,
para ele, consiste numa violenta reao provocada pela traio do esprito. Ns designamos
por materialismo uma filosofia que insistindo exatamente sobre um humanismo do trabalho e
da funo produtora, considera como iluses outras dimenses no menos essenciais do
homem, notadamente a interioridade e a transcendncia 103.
Segundo Mounier, o primado do material uma desordem grave, pois as solues
biolgicas dos problemas humanos, por mais perto que estejam das necessidades mais
elementares e imediatas das pessoas, so incompletas e frgeis, se no forem tomadas em
conta as mais profundas dimenses do homem. Alm disso, a mais racional estrutura
econmica, se estabelecida com desprezo das exigncias fundamentais da pessoa, trs dentro
de si a prpria runa104. O progresso material a base e a condio necessria, mas de
nenhum modo suficiente, de uma vida mais humana, mas nunca seu coroamento e seu
sustento105.
O marxismo, que tinha a ambio de dar uma explicao total do homem uma
vez que deixara de se apresentar somente como mtodo de anlise para se apresentar como
pretensa antropologia , esqueceu-se de reservar um lugar na sua viso ou na sua
organizao do mundo a esta forma ltima da existncia espiritual que a pessoa, e a seus
valores prprios: a liberdade e o amor106. Contra o marxismo, Mounier afirma que no h
civilizao e cultura humana seno metafisicamente orientadas 107.
A histria contempornea testemunha que, quando desaparecem no seu aspecto
cristo, as formas religiosas de transcendncia reaparecem sob outros quaisquer dados:
divinizao do corpo, da coletividade, dum chefe, dum partido, etc. Separado da
transcendncia, o homem chama de felicidade a adaptao biolgica e social, o que no passa
de um nocivo reducionismo que no raro conduz ao vazio existencial e degradao da
prpria dignidade humana. S humano o mundo que der suas possibilidades s exigncias
102
31
essenciais do homem108.
Mounier, que desde a sua juventude demonstrou grande sensibilidade e
compaixo pelos pobres, chegando, por assim dizer, a tocar com o dedo a misria humana
enquanto era membro da Conferncia de So Vicente de Paulo, no considera pobres somente
aqueles materialmente desprovidos, mas tambm aqueles que ignoram ou recusam a luz, cuja
porta de acesso no seno a abertura aos valores transcendentais.
Ibidem, p. 90.
MOUNIER, 1964, p. 81.
110
MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 369.
111
Cf. MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 276.
112
MOUNIER, 1964, p. 157.
109
32
constante. Sem o dilogo interior toda revoluo se encaminha para o fracasso 113.
Para Mounier, a vida espiritual a base de toda ao slida, uma dimenso
interior inaltervel, nossa razo de ser e nossa razo de agir 114. Entendendo que o fazer deve
seguir-se ao ser, Mounier prope uma revoluo espiritual que consiste na restaurao dos
valores espirituais trados, e que deve ser empreendida por cada um contra si mesmo. A
verdadeira revoluo antes de tudo interior: No nas urnas ou na rua que jogamos com a
sorte da pessoa, antes de tudo em cada um de ns115.
Toda transformao social passa, necessariamente, pelos indivduos singulares.
Para o personalista francs, as instituies no so capazes de fazer um homem novo
prescindindo de um trabalho pessoal do homem sobre si mesmo, no qual ningum pode
substituir ningum116. Segundo Mounier, no segredo do corao que se decide, por opo
pessoal, a transmutao do universo 117. Em um nmero de Esprit de 1934, ele afirmava: S
merecemos nossa revoluo se comearmos por passarmos ns mesmos por completa
transformao118.
Na obra O Personalismo, mais precisamente no captulo que trata sobre a
necessidade do homem de empreender continuamente uma converso ntima, Mounier
defende que no h crescimento pessoal sem recolhimento. As distraes da nossa civilizao
dispersam as vozes interiores e podem fazer o homem se confundir com o tumulto exterior,
encerrando-se fora de si prprio. Para Mounier, a unificao interior da pessoa comea com a
capacidade de romper contatos com o meio. O recolhimento liberta-a da priso das coisas e de
uma vida sobrecarregada de solicitaes exteriores.
Segundo o personalismo mounieriano, o recolhimento no um movimento de
fuga, mas uma concentrao de foras para um melhor engajamento. Fazer retiro algo bem
diferente de bater em retirada. A pessoa recua para depois saltar melhor 119. Nesse sentido,
a pessoa no busca o silncio pelo silncio, nem a solido pela solido, mas o silncio
porque nele preparamos a vida, a solido porque nela reencontramos o homem 120.
O movimento de meditao simplificador, capaz de atingir diretamente o centro
113
33
ainda por meio da vida interior que a pessoa toma conscincia da sua
singularidade e da sua vocao primria, que , antes de tudo, ser integralmente ela mesma,
desenvolvendo as riquezas da sua individualidade e afastando-se das ameaas do ecletismo e
da uniformidade. Para Mounier, a originalidade subproduto da vida pessoal: Toda pessoa
tem uma significao tal, que o lugar que ocupa no universo das pessoas no pode ser
preenchido por outra qualquer. Esta a magistral grandeza da pessoa, que lhe confere a
dignidade dum universo124.
Ao final deste captulo, convm salientar que o cultivo da vida interior no pode
ser entendido como centralizao ou fechamento, pois, dentro da dialtica interioridadeexterioridade desenvolvida por Mounier, a vida espiritual como a mola propulsora e
tambm condio necessria de toda ao legitimamente humana. Para o homem, a qualidade
do ser resultar, necessariamente, na qualidade do agir. O prximo captulo pretende
apresentar o pensamento mounieriano acerca dessa dimenso tica da pessoa.
121
34
125
35
132
36
Segundo Mounier, a prpria palavra existir indica pelo seu prefixo que ser
expandir-se, exprimir-se. Esta muito primitiva tendncia que, sob sua forma ativa, nos leva
a [...] pr a marca da nossa ao nas obras visveis, a interferir nos problemas do mundo e dos
outros138. Por este motivo que o personalismo recusa vigorosamente qualquer tipo de
passividade. O homem que se enterra no conformismo para no assumir as responsabilidades
prprias, assemelha-se, segundo Mounier, ao inseto que se confunde com um ramo, para se
fazer esquecer na imobilidade vegetal139.
Emmanuel Mounier tambm denunciou incansavelmente uma espcie de molstia
do esprito que ele chamou de boa conscincia, e que consiste, em ltima anlise, numa
forma velada de indiferena, meio para encobrir a injustia e disfarce da mediocridade.
Assemelha-se aos mecanismos de defesa apresentados pela psicologia, uma espcie de
negao
da
realidade
comprometimentos.
na
tentativa
supremo
de
esquivar-se
desespero,
escreveu
de
possveis
Kierkegaard,
incmodos
no
estar
137
37
satisfeita sem dvida a forma moderna do vazio e talvez, como dizia Bernanos, do
demonaco143. A evaso pode constitui-se em uma porta para o niilismo. Os valores que no
vo s ruas, marchando e cantando ao lar livre do mundo que se constri144, tendem a
desintegrar-se sob o peso do individualismo e do relativismo.
143
38
mais altos valores150; valor este que urge ser resgatado diante de um individualismo reinante
que impede que as pessoas pensem nas consequncias sociais e histricas das suas prprias
aes.
Um dos grandes mritos de Marx, segundo Mounier, foi o de relembrar, em
plena poca individualista, a realidade do genus humanum, solidrio num mesmo corpo,
acima da diversidade dos destinos individuais 151.
Mounier constata que o universo pessoal no existe ainda seno em ilhas
individuais e coletivas, como promessa a realizar. A sua progressiva conquista a histria do
homem152. Convm, portanto, derrubar o mito preguioso da marcha irresistvel da
histria153, pois, se o destino est de antemo fixo no pode haver liberdade 154. A histria
no pode ser coberta com uma estrutura j feita, tem que ser escolhida e amada, uma vez que
esta consiste numa co-criao de homens livres155.
A ideia de liberdade, segundo Mounier, indissocivel da noo de
responsabilidade pelo bem comum. Certamente Mounier concordaria com Moix, quando este
comenta que os determinismos fazem a Histria, na medida em que os homens
consentem156. Os dramas histricos a que assistimos so, em ltima instncia, consequncia
do mal uso da liberdade humana, seja por parte de quem faz o mal seja por parte daqueles que
se omitem na prtica do bem. Uma concepo fatalista do sentido da histria ou do
progresso justificaria hoje todos os conformismos. [...] Frente a tanta demisso urgente
restituir o sentido da pessoa responsvel, e do imenso poder que esta detm, quando confia em
si prpria157.
Nem mesmo a grande confiana que Mounier, como cristo, alimentava na ao
da providncia divina sobre a histria era capaz de faz-lo pensar que esta ltima poderia
prescindir das liberdades individuais. A histria uma obra divina tanto quanto humana. O
tempo simultaneamente pacincia de Deus e uma homenagem liberdade do homem 158.
Cada dia que se inicia uma nova chance de acertar oferecida ao homem, um
renovado convite a um generoso engajamento na construo da histria comum da
150
Ibidem.
MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 247.
152
MOUNIER, 1964, p. 47.
153
Cf. MOUNIER, 1964, p. 131-132.
154
Ibidem, p. 145.
155
Cf. MOUNIER, 1964, p. 145.
156
MOIX, 1968, p. 361.
157
MOUNIER, 1964, p. 152.
158
MOIX apud SEVERINO, 1974, p. 115.
151
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Mounier afirmava que ningum pode ser constrangido a uma experincia de vida
pessoal. A coero seria uma negao da liberdade que uma prerrogativa eminente da
dignidade humana. No entanto, o filsofo acreditava que aquelas pessoas que mais
integralmente realizam uma experincia de vida pessoal vo atraindo outros sua roda,
despertam os que dormem, e assim, de apelo em apelo, a humanidade vai-se libertando do
pesado sono em que vegetava e que ainda a amortece 160.
A prpria concepo mounieriana de educao defende que uma pessoa suscitase por apelos, no se fabrica domesticando161. Educar consiste em despertar pessoas
capazes de viver e de se engajar como pessoas 162. Para Mounier o primeiro ato duma vida
pessoal a tomada de conscincia dessa vida annima e a revolta contra a degradao que
representa163. A misso dos educadores nesse trabalho de conscientizao inalienvel.
159
40
166
Ibidem, p. 115.
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CONSIDERAES FINAIS
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168
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
JOO PAULO II (papa); PETRINI, Joo Carlos e SILVA, Josaf Menezes da. (Orgs.) Homem e
mulher o criou: catequeses sobre o amor humano. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 113-115.
MOIX, Candide. O pensamento de Emmanuel Mounier. Trad. de Frei Marcelo L. Simes. Rio
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______. Manifesto a servio do personalismo. Trad. de Antnio Ramos Rosa. Lisboa: Morais,
1967. p. 108-120.
______. O personalismo. 2 ed. Trad. de Joo Bernard da Costa. So Paulo: Duas Cidades,
1964. 169 p.