O Chalaça

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Universidade Federal de Santa Catarina

Programa de Ps-Graduao em Literatura

CAMILA MARCELINA PASQUAL

O CHALAA, DE JOS ROBERTO TORERO:


O ROMANCE E O DILOGO COM A TRADIO

FLORIANPOLIS
JUNHO 2006

Camila Marcelina Pasqual

O CHALAA, DE JOS ROBERTO TORERO:


O ROMANCE E O DILOGO COM A TRADIO

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Letras-Literatura Brasileira e


Teoria Literria da Universidade Federal de
Santa Catarina para obteno do Ttulo de
Mestre em Literatura Brasileira.

Orientador: Prof. Joo Hernesto Weber, Dr.

Florianpolis, junho 2006


ii

Camila Marcelina Pasqual

O CHALAA, DE JOS ROBERTO TORERO:


O ROMANCE E O DILOGO COM A TRADIO

Esta dissertao foi julgada adequada para a obteno do ttulo de Mestre em


Literatura, e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-Graduao em
Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianpolis, 2006.
____________________________
Prof. Tnia Regina Oliveira Ramos, Dra.
Coordenadora do Programa de
Ps-Graduao em Literatura

Banca Examinadora:

Prof. Joo Hernesto Weber, Dr.


Orientador

Prof.a Angela Maria Fanini, Dr.

Prof. Claudio Celso Alano da Cruz, Dr.

iii

Aos meus familiares,


pelo incentivo.

iv

Agradecimentos

Ao Professor Dr. Lauro Junkes, pela confiana e contribuio


crtica.
Professora Dr. Susana Scramim, por ter mostrado como so
vastos os caminhos da Literatura e, principalmente, como so
inmeros os caminhos da cultura.
Professora Dr. Maria Lcia de Barros Camargo, pelas leituras
e apreciaes crticas.
Professora Dr. Tnia Regina de Oliveira Ramos, pela leitura
minuciosa do texto, e pelas suas sempre preciosas contribuies
e sugestes.
Ao Professor Dr. Cludio Celso Alano da Cruz, pelas valiosas
indicaes e sugestes, muitas delas, aqui, acatadas.
Ao professor Dr. Joo Hernesto Weber, meu orientador, pelas
sugestes, indicaes de leitura, correes e comentrios,
assim como pela compreenso e pacincia durante todo o
percurso de pesquisa e redao.
Elba Maria Ribeiro, pela pacincia e ateno com que sempre
nos atendeu.
Aos amigos e amigas aqui no nomeados, mas que se fizeram
imprescindveis

neste

rduo

crescimento profissional e pessoal.

gratificante

processo

de

No h dvida que uma literatura, sobretudo uma literatura


nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que
lhe oferece a sua regio; mas no estabeleamos doutrinas to
absolutas que a empobream. O que se deve exigir do escritor
antes de tudo, certo sentimento ntimo, que o torne homem do
seu tempo e do seu pas, ainda quando trate de assuntos
remotos no tempo e no espao.
Machado de Assis

vi

SUMRIO

RESUMO..........................................................................................................

viii

ABSTRACT ......................................................................................................

ix

INTRODUO .................................................................................................

1 O CHALAA NA HISTORIOGRAFIA ...........................................................

1.1 A CORTE NO BRASIL................................................................................

1.2 FRANCISCO GOMES DA SILVA, O CRIADO DA CORTE ........................

11

1.3 GOMES DA SILVA: DO FAVORITISMO AO PODER ................................

17

2 ESBOO DE O CHALAA, DE JOS ROBERTO TORERO ......................

30

3 A COMPOSIO DO ROMANCE ................................................................

43

3.1 A HISTORIOGRAFIA E A FICO ............................................................

43

3.2 O NARRADOR, O TEMPO E A MEMRIA ................................................

54

3.3 O CHALAA E A TRADIO LITERRIA .................................................

58

3.3.1 A Stira Menipia ....................................................................................

58

3.3.2 O Chalaa e a forma solta de Laurence Sterne e Machado de Assis......

66

3.3.3 O romance digressivo..............................................................................

72

3.3.4 A interao com o leitor ...........................................................................

81

3.3.5 O humor...................................................................................................

88

3.3.6 Do grotesco ao fantstico ........................................................................

95

3.3.7 O pessimismo .......................................................................................... 102


4 O CHALAA, DE TORERO, E A CONTINUIDADE DE UMA TRADIO... 105
5 CONSIDERAES FINAIS: ENTRE A TRADIO E A NARRATIVA
PS-MODERNA........................................................................................... 118
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS. ............................................................... 131

vii

RESUMO

PASQUAL, Camila Marcelina. O Chalaa, De Jos Roberto Torero: o Romance


e o Dilogo com a Tradio. 2006. 144f. Dissertao (Mestrado em Literatura) Ps-Graduao em Literatura Brasileira, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianpolis, 2006.
A dissertao analisa o romance O Chalaa, de Jos Roberto Torero, na tentativa
de inseri-lo em uma determinada tradio literria e crtica, denominada,
genericamente, de tradio da stira menipia. Em um primeiro momento,
apresenta-se um resumo da histria poltica brasileira, a abranger o Primeiro
Imprio, perodo histrico com que o romance vem a dialogar. Em seguida,
apresenta-se um breve esboo de O Chalaa, com o intuito de, na seqncia,
cotejar a historiografia e o romance. No captulo subseqente, a obra de Torero
examinada sob a perspectiva dos principais elementos da tradio da stira
menipia: a digresso, a interao com o leitor, o humor, o grotesco e o
pessimismo, elementos presentes nas obras de Laurence Sterne e Machado de
Assis, tambm tributrios dessa tradio, e de quem Torero seria um possvel
seguidor. No quarto captulo, a relao entre o romance O Chalaa e a tradio
literria retomada luz da contribuio terica de Mikhail Bakhtin, Jos
Guilherme Merquior e Enylton de S Rego. Uma vez constatada a pertinncia da
hiptese inicial, que situa o romance de Torero dentro da tradio da stira
menipia, lanam-se, nas Consideraes Finais, alguns indicativos que possam
eventualmente levar a uma ainda outra leitura do romance, agora sob a
perspectiva da crtica literria ps-moderna. Indaga-se, a, at que ponto o
romance de Torero, enquanto tributrio de uma tradio, dela no se alimenta para
inclusive apag-la, em termos de sua relevncia crtica.
Palavras-chave: O Chalaa; Jos Roberto Torero; Stira Menipia; Tradio
Lucinica; Romance ps-moderno.

viii

ABSTRACT

PASQUAL, Camila Marcelina. Jos Roberto Toreros Chalaa: The novel and
the dialogue with Tradition .2006. 144f. Dissertation ( Literature Mster ) - PsGraduation in Brazilian Literature , Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianpolis, 2006.
The dissertation analyses the novel O Chalaa written by Jose Roberto Torero, in
an attempt to insert it into a determined literary and critic tradition, known,
generically, as menipeia satiric tradition. At a first moment, a brief of the political
brazilian history is presented, which includes the First Empire, the historic period
with which novel comes to dialogue. In sequence, it is presented a short outline of
O Chalaa, with the goal of, in sequence, to compare historiography and novel. In
next chapter, Toreros work is examined under the perspective of main elements of
menipeia satire tradition: digression, humor, interaction with the reader, grotesque
and pessimism, elements, which are also, present in the work of Laurence Sterne
and Machado de Assis. This analysis is made to legitimate Toreros text within this
literary tradition. In chapter four, the relation between O Chalaa and literary
tradition is discussed again having as theoretical underpinning the contributions of
Mikhail Bakhtin, Jos Guilherme Merquior and Enylton de S Rego. Once
established the pertinence of the initial hypothesis, which puts Toreros novel into
menipeia satire tradition, it is suggested, on Final Considerations, some
indications that can, eventually, lead to one or yet other reading of the novel, now
under the perspective of post-modern literary critic. Is it questioned, there, till where
Toreros novel, while inheritor of a tradition, doesnt feed itself from that tradition to
leave it aside, perhaps, in terms of the critical relevance of the novel.
Key-words: O Chalaa; Post-modern Novel; Menipeia Satire, Jos Roberto
Torero; Lucianic Tradition.

ix

INTRODUO
A escolha que resultou na eleio da obra de estria (1992) do escritor
Jos Roberto Torero, intitulada Galantes Memrias e Admirveis Aventuras do
Virtuoso Conselheiro Gomes, O Chalaa1 como objeto de estudo dessa
dissertao, no foi aleatria. O estudo do romance histrico tem sido objeto de
nossa preocupao h algum tempo. Diramos, para simplificar, que o contato com
O Chalaa se estabeleceu por meio de um livro didtico utilizado para o ensino de
Lngua Portuguesa e Literatura para o nvel mdio. Os autores do mencionado
livro didtico indicavam O Chalaa como romance que retrata com perspiccia os
bastidores da vida poltica brasileira durante o Imprio pela tica do conselheiro
Francisco Gomes da Silva.2 E sugeriam, ainda, a unio entre a historiografia e a
fico para abordar o contexto histrico do perodo romntico brasileiro.
Ao se aplicar tal sugesto em sala de aula o resultado imediato foi a
ocorrncia de certa perplexidade entre os estudantes de Ensino Mdio, por no
saberem discernir entre fato histrico e fico. Cabe essa meno no sentido de
realar a capacidade da fico contempornea em articular a mistura do histrico
e do fictcio, podendo mesmo adulterar os fatos da histria consagrada,
sobrepondo o novo ao velho. A descoberta da obra de Torero deve-se, portanto,
em primeira mo, ao livro de William Roberto Cereja e Tereza Cochar Magalhes.
A virada do Milnio e os Quinhentos Anos do Brasil desencadearam, de
outra parte, comemoraes e revises da histria brasileira sob as mais variadas
formas. Os romancistas passaram a se debruar sobre pesquisas documentais
para construir seus romances, utilizando fatos e personagens histricos como
elementos constitutivos da fico.
Essa vertente romanesca receberia a ateno da crtica, em especial a da
crtica dita ps-moderna. Na viso ps-modernista, o romance histrico seria

TORERO, Jos Roberto. Galantes memrias e admirveis aventuras do virtuoso conselheiro


Gomes, O Chalaa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Doravante, as referncias ao romance sero
feitas, com o intuito de simplificao, como O Chalaa.
CEREJA, William Roberto; MAGALHES, Tereza Cochar. Portugus: Linguagens: literatura,
gramtica e redao. VII, 2 ed. So Paulo: Atual, 1994. p. 46.

instrumento de representao do encontro e do embate terico e discursivo que


aponta para um novo modo narrativo, situado num entre-lugar do gnero
romanesco: a meta-fico historiogrfica. No entender de Linda Hutcheon, a
interao do historiogrfico com o meta-ficcional "coloca igualmente em evidncia
a rejeio das pretenses de representao autntica e cpia inautntica, e o
prprio sentido da originalidade artstica contestado com tanto vigor quanto a
transparncia da referencialidade histrica."3
As perspectivas ps-modernas, que marcaram os anos 1990, descartam
qualquer possibilidade de uma filosofia da Histria, de algum sentido que lhe seja
inerente, ou mesmo da existncia de estruturas sociais, econmicas ou culturais
que lhe sejam minimamente determinantes. Para elas a "Histria-devir" nada mais
que uma sucesso de acasos e contingncias, enquanto que a Histria
disciplina surge como uma confuso de subjetividades. Os ps-modernos
afirmam, na verdade, uma historicidade sem histria.4
Seguir as trilhas dessa discusso, e nela inserir a obra de Jos Roberto
Torero, era uma possibilidade concreta, portanto, para uma investigao mais
acurada do romance em evidncia: at que ponto, afinal, Torero subvertia a
Histria para construir uma nova verso ficcional da histria oficial, de forma
crtica, ou, ento, at que ponto ele simplesmente apagava, enquanto a reiterava,
a Histria, imprimindo ao romance uma historicidade sem histria?
A leitura mais atenta do romance, no entanto, desviou-me do foco inicial
de investigao. que percebi, na forma da construo do romance, para alm
inclusive da eventual re-escritura da histria, os ecos de toda uma tradio literria
de que o autor, parece, bebera. De incio, havia fortes indcios de que se nutrira da
forma romanesca utilizada por Machado de Assis, em especial a de Memrias
pstumas de Brs Cubas, o que lembrava, por sua vez, Laurence Sterne, e o seu
Tristram Shandy. Ao rel-los, para cotej-los com o romance de Torero, e,

3
4

HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo: histria, teoria e fico. Rio de Janeiro:


Imago, 1991. p. 146-147.
NANDA, Meera. Contra a destruio/desconstruo da cincia: histrias cautelares do Terceiro
Mundo. In: WOOD, Ellen Meiksins; FOSTER, John Bellamy. Em defesa da Histria. Rio de
Janeiro: Zahar, 1999. p. 90.

principalmente, ao deter-me na fortuna crtica de Laurence Sterne e Machado de


Assis, percebi que seria necessrio, tambm, remeter os romances, incluindo o de
Torero, tradio da stira menipia, abordada por Mikhail Bakhtin e, no Brasil,
por Jos Guilherme Merquior e Enylton de S Rego. Foi o que intentei fazer, nesta
dissertao: sem abrir mo da mirada inicial, ou seja, a de discutir o texto de
Torero luz da crtica ps-moderna, entendi ser necessrio momento anterior
prpria discusso que me propunha inicialmente analisar o romance O Chalaa
sob a perspectiva da tradio da stira menipia. At que ponto, enfim, Torero era
tributrio dessa tradio?
O romance, na verdade, trabalhava com dois nveis de composio: reescrevia a histria do Primeiro Imprio, sob a tica de um criado de quarto de D.
Pedro I, e a re-escrevia utilizando-se de uma forma literria pertencente a uma
tradio de larga durao.
Assim, optei por, no primeiro captulo, resenhar alguns dos textos de
cunho documental que teriam virtualmente servido ficcionalizao da histria
operada por Torero.
No segundo captulo, decidi-me pela exposio de um esboo do romance
de Torero, que, na seqncia, poderia render em termos de correspondncias
evidentes entre os eventos do romance e os que a historiografia apresenta.
No terceiro captulo, procedi anlise do romance propriamente dito. Em
primeiro lugar, a abordagem se ateve a verificar semelhanas e diferenas entre o
discurso ficcional e o historiogrfico em relao ao personagem Francisco Gomes
da Silva. Num segundo momento, abordei o tema-chave da dissertao, o do
discurso de ordem parodstica, para examinar at que ponto a obra de Torero se
enquadra na tradio da stira menipia, tendo como predecessores mais diretos
Laurence Sterne e Machado de Assis.
Parece provocador ler um romance histrico contemporneo luz da
tradio da stira menipia, ou, no dizer de Enylton de S Rego, lucinica, mas
a composio da obra de Torero a elas nos remetia. Nesse terceiro captulo
insistiu-se, portanto, nas obras Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e Memrias
pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis, com suas caractersticas formais,

para, a seguir, com eles cotejar o romance de Torero, e, por extenso, com a
tradio de que Laurence Sterne e Machado de Assis so tributrios.
O estudo, nesse aspecto, restringiu-se apenas a alguns tpicos dessa
tradio, como a digressividade, a conversa com o leitor, o humor, o grotesco e o
pessimismo, centrados em Tristram Shandy e em Memrias pstumas de Brs
Cubas, postos, sempre, em paralelo obra O Chalaa.
No quarto captulo, recompomos de forma sucinta o caminho trilhado por
Jos Roberto Torero na composio de seu romance. Revisitamos, assim, a
tradio crtica da stira menipia, a partir de Mikhail Bakhtin, que se estende ao
Brasil via Jos Guilherme Merquior e Enylton de S Rego. Procuramos, a,
evidenciar, dentro dessa vertente crtica, como o autor se apropriou da stira
menipia, pela mediao de Laurence Sterne e Machado de Assis.
No captulo final, ou nas Consideraes Finais, por sua vez, retomamos
os principais tpicos que indicavam que a obra de Torero se inseria dentro de uma
abrangente tradio literria do Ocidente, e que, particularmente no Brasil, se
vinculava obra de Machado de Assis. Se isso tinha algum cabimento e
cremos que sim , era de se indagar, no entanto, sobre o estatuto da obra de
Torero na contemporaneidade. Afinal, perguntamo-nos, se Torero se apropria da
tradio, e dela caudatrio, assertiva que se pretende o centro da dissertao,
como se pode avaliar, ainda assim, a sua representatividade no mundo
contemporneo?
Para indicar caminhos, to-somente, para essa discusso, que julgamos
necessria, e ainda por se fazer, como j indicamos ao incio desta Introduo,
recorremos, basicamente, a dois crticos contemporneos: Linda Hutcheon e
Fredric Jameson. Este, pela distino entre pardia e pastiche, e pela discusso
do lugar da narrativa contempornea na ps-modernidade. Aquela, pela
problematizao entre fico e histria na literatura ps-moderna, atravs da
concepo da literatura e da histria como um jogo de textualidades.
Se Linda Hutcheon caracterizava, nesse sentido, uma vertente literria
ps-moderna como metafico historiogrfica, em que se apagam, no fundo,
possveis fronteiras entre fico e histria, Fredric Jameson, de sua parte,

afirmaria que enquanto a modernidade estava dominada pela pardia, como forma
singularizada de uma imitao cmico-irnica excentricamente contraposta a uma
linguagem normatizada e dominante na poca, sendo, portanto, um estilo
carregado de potencial crtico, na ps-modernidade, ao contrrio, a pardia daria
lugar ao pastiche, forma de uma imitao desmotivada, aparentemente neutra e
sem o impulso satrico da sensibilidade que identifica algo, ou seja, a linguagem
normal, para desconstitu-la criticamente. Assim, o que restaria psmodernidade seria a impregnao da moda nostlgica e do fracasso do esttico,
da arte e do novo. Em que medida O Chalaa, perguntamo-nos, portanto, nessas
Consideraes Finais, embora reafirmando a tradio, no estaria ele tambm,
atravs da apropriao dessa mesma tradio, apontando para a prpria
superficialidade da literatura ps-moderna, no dizer de Fredric Jameson? So
questes que fogem, por certo, ao nosso intuito primeiro, o da insero do texto de
Torero na tradio, mas que, ao mesmo tempo, abrem perspectivas para novas
investigaes.

1 O CHALAA NA HISTORIOGRAFIA
Na obra O Chalaa, o autor centra sua escrita em fatos e personalidades
histricas da primeira metade do sculo XIX, os quais so recriados atravs de
imagens sociais que possibilitam um repensar do contexto histrico-social da
sociedade brasileira da poca. A narrativa caminha por espaos conhecidos e
situaes documentadas. No restam dvidas de que o autor mergulhou em
pesquisas de documentos histricos que resultaram no livro e recuperaram um
importante episdio dos bastidores da poca imperial.
Para a compreenso da composio de O Chalaa, que mais adiante ser
apresentada, necessrio fazer, primeiramente, um registro dos principais
acontecimentos do Primeiro Imprio e das influncias que Francisco Gomes da
Silva exerceu sobre D. Pedro I. Quem foi, afinal, esse homem to influente? Quem
foi essa enigmtica figura, to enigmtica que seu nome a Histria do Brasil nem
sequer se digna mencionar?
1.1 A CORTE NO BRASIL
Nelson Werneck Sodr5, como a maioria dos historiadores do perodo
imperial, relata o processo de transferncia da Famlia Real portuguesa para o
Brasil. No incio do sculo XIX, a poltica expansionista de Napoleo Bonaparte
alterou o equilbrio poltico da Europa. Em meados de 1807, o imperador francs
tentou impor a supremacia da Frana sobre os demais pases. Com a resistncia
da Inglaterra a este intento, o imperador francs decretou um bloqueio continental
com o objetivo de tentar arruinar economicamente a nao inimiga. Portugal, que
no podia viver sem o comrcio com os britnicos, encontrava-se em situao
delicada, uma vez que Napoleo o pressionava para que abandonasse sua velha
aliana com os ingleses e se juntasse ao grupo continental liderado pelos
franceses.

SODR, Nelson Werneck. As razes da Independncia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,


1978. p. 119-120.

Portugal temia uma invaso e a dominao francesa. No entanto,


manteve-se em neutralidade por um longo perodo, permitindo assim a entrada
dos produtos ingleses no pas. Napoleo decidiu ento invadir o reino portugus a
fim de efetivar seu decreto. "Nos fins de 1807, o ambiente da Corte de Lisboa era
de perplexidade."6 Pressionada por Napoleo e sem prescindir da aliana
britnica, a corte portuguesa estava hesitante. Qualquer opo significaria, no
mnimo, o desmoronamento do sistema colonial ou do que dele ainda restava. A
prpria soberania de Portugal encontrava-se ameaada sem que fosse possvel
vislumbrar uma soluo aceitvel, "no s pelas tropas de Junot, que avanavam
rapidamente, como pela indeciso joanina, que tardava em optar."7 Destacou-se,
a, o papel desempenhado por Strangford, que, como representante diplomtico
ingls, soube impor, sem vacilao, o ponto de vista da coroa britnica.
Convenceu "o governo luso a transferir para o Brasil a sede da monarquia
portuguesa.8
Conforme Sodr, Strangford livrou Portugal do domnio napolenico, mas
sua ao no se resumia, entretanto, em defender a retirada da corte de Lisboa
para o Brasil.9 O diplomata britnico aproveitou-se da situao de desespero de
Portugal para obter vantagens comerciais excepcionais para a Inglaterra10:
A corte inglesa exigiu a entrega da Ilha da Madeira, para servir de base naval,
compensando a perda dos portos lusos, o que foi concedido s pressas. Em fins de
setembro, finalmente, foram delegados poderes ao representante luso em Londres,
Sousa Coutinho, para negociar a conveno secreta que presidiria as relaes entre
Inglaterra e Portugal.11

Em outubro de 1807, os governos portugus e ingls assinaram o acordo


secreto em que a Inglaterra se comprometeria a ajudar a nobreza em fuga.
Comeou, ento, o que os historiadores caracterizam como o momento do salve-

SODR, Nelson Werneck. As razes da Independncia, op. cit., p. 121.


Ibid., p.121.
8
Ibid., p.123.
9
Ibid., p. 122.
10
Idem.
11
Idem.
7

se quem puder.12 A notcia da fuga da Famlia Real espalhou-se e Lisboa foi


tomada pelo caos. A populao da cidade saiu s ruas para protestar contra os
governantes.
No dia 29 de novembro de 1807, depois de vrios incidentes, a esquadra
real parte de Lisboa, escoltada por navios de guerra ingleses. Vrios nobres
morreram afogados ao tentar alcanar a nado os navios superlotados. Nas 36
embarcaes, o Prncipe Regente D. Joo, a Famlia Real e seu sqito, estimado
em 15 mil pessoas, traziam jias, peas de ouro e prata e a quantia de 80
milhes de cruzados13, o equivalente metade do dinheiro circulante no reino.14
A chegada dos portugueses aconteceu em janeiro de 1808, em Salvador,
na Bahia. Em maro do mesmo ano, a corte portuguesa transferiu-se para o Rio
de Janeiro. D. Joo cumpriria, ento, as clusulas dos acordos assinados com o
governo ingls e no s abria Inglaterra o comrcio com o Brasil como tambm
assegurava quele pas e a seus cidados vantagens e privilgios no concedidos
a quaisquer outros. Como bem observa Sodr, transferiram-se, assim, para o
Brasil, os velhos privilgios e a posio proeminente que a Gr-Bretanha gozara
em Portugal.
A assinatura do tratado de comrcio entre os dois reinos em 1810 foi a
compensao que Portugal deu Inglaterra pela ajuda que recebera na Europa.
Por ele, ficaram garantidas concesses comerciais, mas tambm se asseguravam
aos cidados britnicos direitos que extrapolavam o campo comercial: o direito de
viajar e residir em domnios portugueses; o respeito propriedade religiosa e o
privilgio da extraterritorialidade, atravs da figura do Juiz Conservador da Nao,
a quem ficavam afetas as causas jurdicas de interesse dos ingleses, como anotou
Werneck Sodr.15

12

SODR, Nelson Werneck. As razes da Independncia, op.cit., p. 124.


Ibid., p. 126.
14
Conforme descreve Sodr: A corte era a expresso de uma classe dominante corrupta.
Despojada de sentimento patritico, inteiramente aferrada apenas aos seus interesses, que se
colocava acima de tudo, pronta a sacrificar os de sua gente, os do povo que, abandonado sua
sorte, chorava ou se enfurecia nas ruas, enquanto as foras invasoras adentravam no reino,
prelibando seus chefes as delcias da conquista e do saque. SODR, Nelson Werneck. As
razes da Independncia, op. cit. p. 126-127.
15
Ibid., p. 152.
13

Aps a abertura dos portos s naes amigas, abolindo o monoplio


comercial luso, o Brasil pde manter contatos comerciais diretos e regulares com
o exterior, sem a intermediao de Portugal. O Rio de Janeiro transformou-se
ento num emprio do Atlntico Sul16, nas palavras de Nelson Werneck Sodr.
Ali chegavam mercadorias de diversas procedncias e dali eram exportados os
produtos brasileiros. Em outras palavras, o comrcio se diversificou com a
inundao de produtos estrangeiros.
O desenvolvimento do comrcio, no Brasil, desde a abertura dos portos
at 1814, beneficiou exclusivamente o governo ingls, que praticamente
monopolizou o comrcio com o Brasil. Outros tratados firmados por D. Joo em
1810, como o de Amizade e Aliana e o de Comrcio e Navegao, consolidaram
ainda mais a presena inglesa na colnia. O mais importante deles foi o tratado de
Comrcio e Navegao, que estabelecia uma taxa de apenas 15% sobre a
importao de produtos ingleses. Para avaliar o significado dessa medida basta
lembrar que a taxa de importao de produtos portugueses era de 16% e a de
produtos de outras naes de 24%. Com esse tratado, os ingleses praticamente
eliminavam a concorrncia no mercado brasileiro, dominando-o por completo.17
Em suma, tal abertura modificou completamente o perfil de consumo
brasileiro, uma vez que trouxe para o Brasil uma grande quantidade de
mercadorias importadas, principalmente da Inglaterra. Essa era uma novidade
para o mercado colonial, uma vez que esse esteve sempre sob as restries do
pacto colonial. Um viajante ingls, John Mawe, descreveu o Rio de Janeiro da
poca:
O mercado ficou completamente abarrotado; to grande e inesperado foi o fluxo de
manufaturas inglesas no Rio, logo em seguida chegada do Prncipe Regente, que os
aluguis das casas para armazen-las elevaram-se vertiginosamente. A baa estava
coalhada de navios e, em breve, a alfndega transbordou com o volume de mercadorias.
[...] achavam-se expostos no somente ao sol e chuva, mas depredao geral; [...]
espartilhos, caixes morturios, selas e mesmo patins para gelo abarrotavam o mercado,
no qual no poderiam ser vendidos e para o qual nunca deveriam ter sido enviados.18

16

SODR, Nelson Werneck. As razes da Independncia, op. cit. p. 140.


Ibid., p. 157.
18
Ibid., p. 141.
17

10

De acordo com o historiador Joo Armitage,19 diversas aes da Coroa


Portuguesa contriburam para a evoluo da sociedade brasileira, ainda incipiente.
Como exemplos de incremento cultural, econmico e poltico, citam-se: criao da
Junta de Comrcio, Agricultura e Navegao do Brasil; a Real Fbrica de Plvora;
a Escola Anatmica, Cirrgica e Mdica; a escola Real de Cincias, Artes e
Ofcios; Fundao do Banco do Brasil (1808); a primeira Biblioteca Pblica (atual
Biblioteca Nacional); surgimento de uma imprensa nacional, a Imprensa Rgia, e
com ela o primeiro jornal do Brasil, A Gazeta do Rio de Janeiro,20 entre outros
avanos.
Conforme os apontamentos de Armitage,21 em fevereiro de 1815, o Brasil
foi elevado categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, deixando
oficialmente de ser colnia. Medida acertada no Congresso de Viena, reunio das
potncias que venceram Napoleo. Com isso, buscou-se restabelecer o equilbrio
de foras na Europa e legitimar a permanncia de D. Joo no Brasil.
Como indica Armitage,22 em 1816 faleceu D. Maria I e o Prncipe Regente
foi coroado Rei de Portugal, recebendo, em 1818, o ttulo de D. Joo VI. Conforme
os relatos historiogrficos, entre 1818 e 1821, D. Joo VI era, ao mesmo tempo,
rei de Portugal e do Brasil.
A historiadora Emlia Viotti da Costa23 cita que a elevao do Brasil a
Reino Unido alimentou o inconformismo em Portugal. Sob tutela britnica desde
1808 e alijados do centro das decises polticas do reino, a nobreza e
comerciantes que permaneceram no territrio portugus reivindicaram maior
autonomia. Cresceu o movimento antiabsolutista e, em 24 de agosto de 1820,
deflagrada a revoluo do Porto. Na realidade, apesar de mostrar-se liberal, a

19

ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil. So Paulo: Melhoramentos, 1977. p. 28-29.


A Gazeta do Rio de Janeiro no chegou a ser um jornal, mas um peridico que se destinava a
publicar anncios e atos oficiais da Coroa. Mais tarde surgiram outros peridicos, como: A
Malagueta, O Tamoyo, A Sentinela, etc. Convm ressaltar que, naquela poca, o nico grande
jornal sobre o Brasil era o Correio Brasiliense, publicado em Londres por Hiplito Jos da Costa.
Tal jornal entrava clandestinamente no Brasil. SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa
no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966. p. 11-50.
21
ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil, op. cit., p. 31.
22
Ibid., p. 32.
23
COSTA, Emlia Viotti da. Da monarquia repblica: momentos decisivos. So Paulo, Cincias
Humanas, 1979. p. 37.
20

11

burguesia lusa era predominantemente mercantilista, pretendendo tirar Portugal


da crise econmica atravs do restabelecimento do monoplio de comrcio sobre
o Brasil. Em outras palavras, desejava o retorno do Pacto Colonial.
Segundo Emlia Viotti da Costa, fazendeiros, comerciantes nacionais ou
estrangeiros, funcionrios da Coroa radicados no Brasil, cujos interesses os
levavam a se identificar com a causa do Brasil, viam, na revoluo, uma conquista
liberal que poria por terra o absolutismo, os monoplios e os privilgios que ainda
sobreviviam.24 Por outro lado, um dos principais objetivos dos portugueses era
destruir as concesses liberais feitas por D. Joo VI ao Brasil.25
Portanto, no houve outra alternativa a D. Joo VI: ou ele retornaria ou
seria destronado. Em 1821, o monarca marcou sua volta a Lisboa e, atravs de
um decreto, entregou a seu filho D. Pedro a regncia do Brasil, pressentindo o
inevitvel: a independncia. Teve o cuidado de recomendar o seguinte: Pedro, o
Brasil brevemente se separar de Portugal; se assim for, pe a Coroa sobre tua
cabea, antes que algum aventureiro lance mo dela.26
1.2 FRANCISCO GOMES DA SILVA, O CRIADO DA CORTE

Os abarrotados navios ingleses que transportaram a Corte de Lisboa e


sua comitiva para o Brasil traziam, inclusive, vrios aventureiros. A Famlia Real
admitiu

tais

aventureiros

em

diferentes

ramos

da

administrao.

Esse

procedimento da parte do governo portugus contribuiu para aumentar a rivalidade


entre os portugueses e brasileiros natos.
O historiador Oliveira Lima observa, a esse respeito, que a poca de D.
Joo VI estava destinada a ser, na histria brasileira, pelo que diz respeito
administrao, uma era de muita corrupo e peculato, e quanto aos costumes
privados uma era de muita depravao e frouxido, alimentadas pela escravido e
pela licenciosidade.27

24

COSTA, Emlia Viotti da. Da monarquia repblica..., op. cit., p. 38.


Idem.
26
ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil, op. cit., p. 38.
27
LIMA, Oliveira. Apud SODR, Nelson Werneck. As razes da Independncia, op. cit., p. 134.
25

12

Entre esses aventureiros havia um portugus de nome Francisco Gomes


da Silva, ao qual fora destinada a tarefa de criado honorrio do Pao. Foi uma das
interessantes figuras que viveram nas intrigas palacianas da corte de D. Joo VI e
D. Pedro I.
o jornalista e historiador Assis Cintra28 quem fornece uma viso mais
detalhada sobre o aventureiro que viveu no imprio brasileiro. Francisco Gomes
da Silva, mais conhecido popularmente por Chalaa29, era filho bastardo do
Visconde de Vila Nova da Rainha e de uma rapariga de 19 anos, alde pobre que
trabalhava como servial de quarto da famlia do Visconde.
Maria da Conceio Alves, a moa seduzida pelo fidalgo, deu luz em
Lisboa, aos 22 de setembro de 1791, e registrou a criana como filho de pais
incgnitos. 30 Apesar de no assumi-lo, o Visconde manteve o filho junto de si, at
.

o momento em que decidiu casar-se com a filha do conde de Resende.


Naturalmente, a noiva no queria saber de convivncia com a outra sob o
mesmo teto. Para content-la, o Visconde teve de mandar sua amante para a
frica e sumir com o menino Francisco Gomes da Silva, que contava ento oito
anos. O Visconde pagou oito mil cruzados a um protegido, chamado Antonio
Gomes da Silva, para que assumisse a paternidade do menino e o registrasse
como legtimo. O pai adotivo ainda ganhou, por influncia do Visconde, um
emprego pblico como ourives da Casa Real.
Segundo Assis Cintra, Francisco Gomes foi mandado para o seminrio de
Santarm. L aprendeu filosofia e latim, alm de falar fluentemente francs, ingls,
italiano e espanhol. Esse preparo cultural, alis, em muito o ajudaria na idade
adulta.
O Chalaa, j com 16 anos, estava em vias de se ordenar sacerdote
quando chegaram as notcias dos preparativos da fuga da corte portuguesa para o

28

CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio. Disponvel em: <virtualbooks.com.br/freebook/


port/did/chalaa/chalaa.htm>. 2000. Acesso em: 22 maio 2005. p. 08.
29
a que entra para a histria o Sr. Francisco Gomes da Silva, que tinha o apelido de Chalaa,
que significa dito de zombaria, dito picante, frase graciosa e satrica. (FERREIRA, Aurlio
Buarque de Holanda. Dicionrio Aurlio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995).
.

30

CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 08.

13

Brasil. Ento, brigou com o reitor e com o padre-mestre de disciplina do seminrio


e viajou para Lisboa com a finalidade de participar dos acontecimentos.31 No
caminho, foi preso por uma guarnio francesa e condenado como espio. s
vsperas de ser fuzilado, conseguiu fugir, chegando ao cais de Lisboa na mesma
manh em que D. Joo VI e sua comitiva embarcavam para o Brasil. Em meio
confuso conseguiu reencontrar o pai adotivo e introduzir-se nas embarcaes.
De condenado morte, passou a membro da multido de 15 mil lusitanos que
desembarcaria no Rio de Janeiro.
No Rio de Janeiro, o ourives Antonio Gomes da Silva estabeleceu-se na
Rua Direita (atual Primeiro de Maro). Chalaa passou a auxili-lo, mas logo suas
noitadas bomias e desordeiras levaram-no a indispor-se com o pai. Acrescenta
Assis Cintra, que o Chalaa foi ento morar com Maria Pulguria, cognominada
Maricota Corneta, e abriu uma tenda de barbeiro na rua do Piolho (atual rua da
Carioca), onde trabalhou como dentista e sangrador, aplicando bichas
(sanguessugas) e ventosas, segundo os princpios de medicina da poca.32
Em 1810, obteve sua incluso na lista de criados honorrios do Pao. Um
ano depois, foi nomeado moo de reposteiro por D. Joo. Em 1812, aos 21 anos,
j recebia algumas vantagens por sua atuao em servios reservados
prestados ao Prncipe Regente. Considerando que a corte era um ninho de
intrigas entre faces rivais que se espionavam mutuamente, compreende-se que
o Chalaa j comeava a desenvolver ali algumas das qualidades que o
tornariam famoso mais tarde. Tanto que em 1816 j era juiz da balana da Casa
da Moeda. Protegido por D. Joo, tornou-se pouco tempo depois o favorito de D.
Pedro, que fez dele um companheiro de aventuras noturnas.33
Segundo os relatos de Assis Cintra,34 D. Joo VI era um homem justo e
conservador. Com o intuito de manter bons exemplos na corte contratou o
Chalaa para manter Carlota Joaquina sob discreta vigilncia.

31

CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 08.


CINTRA, Assis. In: SILVA, Francisco Gomes da. Memrias do conselheiro Francisco Gomes
da Silva O chalaa. 2 ed. Rio de Janeiro: Souza, 1959. p. 13.
33
CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 09.
34
Ibid., p. 51-52.
32

14

O Chalaa logo teria papel destacado nesse jogo de espionagem familiar,


o que lhe garantiu o dio da espanhola maldita. Entretanto, Carlota Joaquina
esperava apenas uma chance de se vingar do criado e expuls-lo da corte. Em
1817, o Chalaa cometeu um grave erro no palcio. Aps a denncia de Carlota
Joaquina, foi flagrado pelo prprio D. Joo numa sala do palcio em companhia da
dama do Pao D. Eugnia de Castro, ambos nus e em atitude nada suspeita. D.
Joo expulsou-o de seu servio e baixou ordem de que o Chalaa deveria manterse a uma distncia mnima de dez lguas da corte. O aviso de ordem foi publicado
na Gazeta do Rio de Janeiro pelo ministro Toms Antnio de Vila Nova Portugal:
Sr. Corregedor- No devendo ficar impune o desatino em que caiu o reposteiro da
Cmara Francisco Gomes da Silva de, aleivosamente, aliciar e raptar uma dama do
Pao, El Rei Nosso Senhor servido que vossa merc faa intimar o sobredito reposteiro
que no entre mais no Pao, e que deve sair para fora da Corte numa distncia de dez
lguas, at segunda ordem. O que participo a Vossa Merc para que assim o execute.
Deus guarde a vossa merc.35

O Chalaa foi para Itagua, abrigar-se na casa de um vigrio conhecido


desde os tempos de Santarm, at que a interveno de seu pai biolgico, o
Visconde de Vila Nova, reabilitou-o junto a D. Joo VI.
Trs dias depois, saiu novamente estampado na Gazeta do Rio de Janeiro
o seguinte aviso:
Sr. Corregedor, El Rei Nosso Senhor servido ordenar que o seu criado Francisco
Gomes da Silva, que foi mandado sair para fora desta cidade, na distncia de dez lguas,
possa para ela voltar livremente, conservando-se, ainda at segunda ordem, a proibio
de entrar no Pao. O que participo a Vossa Merc para que assim lhe faa constar e
execute. Tomaz Antonio.36

No Rio, por volta de 1820, havia uma casa de hospedagem de Maria


Pulguria, conhecida popularmente por Maricota Corneta. Cintra aponta que o
Chalaa costumava se reunir ali com os seus amigos desordeiros para cantar,
beber e jogar.

35

SANTOS, Noronha. Prefcio. In: SILVA, Francisco Gomes da. Memrias do Conselheiro
Francisco Gomes da Silva - O Chalaa, op. cit., p. 16.
36
CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 64.

15

Numa noite qualquer, D. Pedro resolve visitar a Hospedaria da Corneta


vestido com grande capa usada pelos paulistas. De repente Jos Janurio, um exescravo do Pao, alforriado, resolve cantar alguns versos direcionados ao
estranho homem de capa que estava sentado numa das mesas de madeira
rstica. D. Pedro levantou da cadeira irritado e gritou ao companheiro: meta o pau
nessa canalha;37 todos desapareceram do bar imediatamente, com exceo do
Chalaa. Aps alguns socos e pontaps os dois homens defrontaram-se e D.
Pedro reconheceu o Chalaa; a partir de ento, passaram a ser amigos.
Com o retorno de D. Joo VI a Portugal, D. Pedro permaneceu no Brasil
como prncipe regente. J muito perto dos acontecimentos que levariam
independncia, D. Pedro esqueceu a falta cometida pelo antigo criado de seu pai,
e ordenou que ele fosse reintegrado no exerccio do cargo. Francisco Gomes da
Silva voltou s salas, s grandezas, s festas, ao luxo do Pao.38
Contudo, ressalta Armitage, a Corte de Lisboa despachou um decreto
exigindo o retorno de D. Pedro a Portugal. H tempos os portugueses insistiam
nessa idia, pois pretendiam recolonizar o Brasil e a presena do Prncipe impedia
este ideal. Porm, D. Pedro respondeu negativamente aos chamados de Portugal.
Essa deciso desagradou s cortes portuguesas, que em vingana suspenderam
o pagamento de seus rendimentos. No entanto, D. Pedro resistiu, criando o
famoso Dia do Fico.
Viotti da Costa afirma que a partir do Fico, o prncipe buscou apoio nas
elites locais, principalmente em Jos Bonifcio que pela sua posio na
sociedade e pelos servios prestados Monarquia, pela sua experincia
administrativa e conhecimentos, pareceu-lhe o mais indicado para assessor-lo.39
Ainda .nas expresses da historiadora,40 aps o Dia do Fico, D. Pedro
tomou uma srie de medidas que desagradaram metrpole, pois preparavam
caminho para a independncia do Brasil. D. Pedro convocou uma Assemblia,

37

CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 13.


Ibid., p. 73.
39
COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia repblica, op. cit., p. 58.
.
38

40

Ibid., p. 43-44.

16

organizou a Marinha de Guerra, obrigou as tropas de Portugal a voltarem para o


Reino. Determinou tambm que nenhuma lei de Portugal seria colocada em vigor
sem a sua aprovao. Alm disso, o futuro imperador do Brasil com o apoio de
Jos Bonifcio, convocou o povo a lutar pela independncia.
Segundo Armitage,41 o Prncipe passou o poder a D. Leopoldina e partiu a
14 de agosto para So Paulo. Nesse nterim, a Princesa regente recebeu notcias
de que Portugal estava preparando uma ao contra o Brasil e, sem tempo para
aguardar a chegada de D. Pedro e aconselhada pelo ministro das Relaes
Exteriores, Jos Bonifcio, e usando de seus atributos de chefe interina do
governo, reuniu-se, no dia 02 de setembro de 1822, com o Conselho de Estado,
assinando o decreto da Independncia. Jos Bonifcio convocou o oficial de sua
confiana, Paulo Bregaro, para levar a sua carta e a de Leopoldina para D. Pedro,
em So Paulo.
Entretanto, como descreve Viotti da Costa,42 em setembro de 1822, ao
retornar de Santos para a capital paulista, D. Pedro recebeu uma correspondncia
de Portugal, comunicando que fora rebaixado da condio de regente a um
delegado temporrio das cortes de Lisboa. Irritado, decidiu pelo rompimento
definitivo com Portugal, ali mesmo, em 7 de setembro de 1822, junto ao riacho do
Ipiranga. O herdeiro de D. Joo VI resolveu romper definitivamente com a
autoridade paterna e declarou a independncia do imprio do Brasil, proferindo o
grito de Independncia ou Morte. De volta ao Rio de Janeiro, foi coroado
imperador e defensor perptuo do Brasil.
A sete de setembro estava Gomes da Silva no Ipiranga e foi uma das
testemunhas presenciais da proclamao da Independncia.43Teria sido ele um

41

ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil, op. cit., p. 60-62.


COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia repblica, op. cit., p. 47.
43
O secretrio privado Francisco Gomes da Silva (o Chalaa) acompanhou o Prncipe e foi ele
quem primeiro entrou em So Paulo, para observar os nimos e trazer as informaes ao seu
amo. Tais anotaes encontram-se em O Brasil Reino e Brasil Imprio, de Melo Morais, Tomo
I, p. 385, que reproduz a notcia que fra publicada no Espelho, em princpios de setembro de
1823. O Quadro Histrico da Independncia, de Paulo Antonio do Vale, publicou-o no Jornal do
Comrcio de 20 de julho de 1854. Nele figuram os nomes de quarenta testemunhas presenciais
do grito do Ipiranga, entre elas o Francisco Gomes da Silva e Joo da Rocha Pinto. O relato de
Paulo Antonio do Vale foi tambm reproduzido por CINTRA, Assis. D. Pedro I e o grito da
Independncia. Transcrio de documentos. So Paulo: Melhoramentos, 1921. p. 221.
42

17

incentivador direto da Independncia e o primeiro a compartilhar a inteno de D.


Pedro em proclam-la. Francisco Gomes da Silva em seu livro de memrias
afirma que D. Pedro o consultou momentos antes da proclamao da
independncia:
Eu no tinha ento, e protesto que nem hoje tenho, e provavelmente nunca terei, a
estlida vaidade de crer importante meu voto em matria alguma - S. M. tambm pouco
me honrou, declarando-me a sua tenso para consultar-me; e por isso eu, recebendo a
nova como uma ordem de meu Amo, no hesitei um momento em dizer-lheprontssimo, senhor; e ainda existem quase todas as pessoas que testemunharam o
meu procedimento... Vi que ele abraara a sua nobre e herica resoluo com maior
vivacidade e determinao do que nenhuma outra que eu lhe tivesse visto adotar at
aquele momento. Proclamou-se, pois, a independncia brasileira por S. M. o Imperador
na cidade de So Paulo a 7 de setembro de 1822.44 [grifo do autor]

De acordo com o historiador Octvio Tarqunio de Sousa,45 o Chalaa


acompanhou o Prncipe a So Paulo como uma espcie de secretrio particular, e
to bem desempenhou seu papel que D. Pedro no queria mais prescindir dele.
Por um lado, Chalaa era dono de caligrafia excelente, dominava vrias lnguas,
escrevia com correo e tinha o pensamento organizado. O imperador o contratou
para desempenhar algumas funes como oficial-de-gabinete, secretrio, escriba.
E tambm espia, delator, alcoviteiro.46
Cipriano Barata indica que esses servicinhos prestados pelo Chalaa
foram, entre outros, o de levar para o Rio de Janeiro D. Domitila de Castro, com
quem se aliou secretamente, na poltica e na alcova47 para tirar proveito do
governo. O fato que, depois da Independncia, a influncia do Chalaa junto ao
imperador crescia rapidamente, o que se traduz em diversos ttulos honorficos por
ele recebidos.
1.3 GOMES DA SILVA: DO FAVORISTISMO AO PODER
Logo aps a proclamao da independncia, foram tomadas as primeiras
providncias relativas nova situao poltica vivida pelo pas.

44

SILVA, Francisco Gomes da. Memrias do Conselheiro Francisco Gomes da Silva - O


Chalaa, op. cit., p. 50-51.
45
SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1972. p. 15,
tomo II.
46
Ibid., p. 102.
47
BARATA, Cipriano. Apud CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do imprio, op. cit., p. 9.

18

Viotti da Costa esclarece que, dias depois da aclamao de D. Pedro,


como imperador constitucional, realizada em 12 de outubro de 1822, as relaes
de Jos Bonifcio com outros promotores da independncia eram divergentes. O
Patriarca foi acusado de conspirar contra as instituies polticas ento vigentes.
Prontamente desejosos de um ambiente de autoridade, para consolidar a
emancipao poltica do Brasil sem risco de alteraes profundas na estrutura
scio-econmica da nao, o ministro deu incio represso aos liberais
reformistas. Inicialmente suspendeu o jornal Correio do Rio de Janeiro, em que
eram publicados artigos contrrios Monarquia Constitucional. Joo Soares
Lisboa, redator do jornal, recebeu ordem de deixar o pas em oito dias.48
Conforme aponta Tarqunio de Sousa,49 o Imperador, influenciado por
Jos Bonifcio, suspendeu os trabalhos das lojas manicas, tradicional reduto de
intelectuais liberais, ordenando, tambm, a realizao de uma rigorosa sindicncia
em So Paulo, onde deveriam ser presos os adversrios do grupo santista.
Ainda nas expresses do historiador,50 com a derrota do grupo manico
houve violentos protestos contra o imperador e este resolveu, ento, permitir que
ficasse no pas o jornalista Joo Soares Lisboa e que as atividades da maonaria
poderiam continuar abertas. Em conseqncia disso,Jos Bonifcio e seu irmo
Martim Francisco exoneram-se imediatamente do Ministrio. A exonerao durou
poucos dias, permitindo aos adeptos dos Andradas realizarem manifestaes em
prol da reconduo desses. Assim, em 30 de outubro de 1822 os Andradas foram
reintegrados ao Ministrio.
Jos Bonifcio procedeu, ento, a um rigoroso inqurito, prendendo todos
os conspiradores liberais. Prontamente reprimiu as atividades da maonaria,
efetuando-se inmeras prises, entre as quais a de Jos Clemente Pereira e a do
Padre Janurio da Cunha Barbosa, pouco depois deportados para a Frana.
Joaquim Gonalves Ledo, refugiou-se em So Paulo, de onde conseguiu escapar
para Buenos Ayres, graas proteo do cnsul da Sucia.51

48

COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia repblica, op.cit., p. 64.


SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p. 65-66.
50
Ibid., p. 67.
51
Ibid., p. 65-66.
49

19

Com o afastamento dos liberais manicos ligados ao movimento da


independncia, D. Pedro conseguiu finalmente reunir os membros da Assemblia
Geral Constituinte e Legislativa, tendo os Andradas uma participao significativa.
Jos Bonifcio, por exemplo, elegeu-se vice-presidente da referida Assemblia e,
em junho, presidente.
Emlia Viotti da Costa salienta52 que Jos Bonifcio foi um monarquista
convicto. Pensava que a democracia e a repblica trariam a anarquia ao Brasil.
Ele tinha planos bem definidos do que deveria ser o Estado Brasileiro. Defendeu a
idia de que a Constituio deveria ser monrquica, evitando assim os vcios
observados nos exemplos da Amrica Espanhola e da Frana. Segundo Bonifcio,
a primeira estava mergulhada em problemas e a segunda s os resolvera ao
retornar Monarquia. Sendo assim, para ele, tanto a Repblica quanto a
Democracia eram sistemas falhos que somente trariam malefcios, como observa
Tarqunio de Sousa.53
Viotti da Costa ainda ressalta que Jos Bonifcio recebeu um texto do
governo provisrio de So Paulo que coincidia com seus pontos de vista. O texto
tratava de firmar princpios liberais que inspiravam, alis, os revolucionrios do
Porto, e de garantir as regalias obtidas pelo Brasil desde a vinda da Corte em
1808, entre os quais a autonomia administrativa, no que evidentemente divergia
dos objetivos dos revolucionrios portugueses desejosos de anular as medidas
liberais.54 Sugeriram ainda a Jos Bonifcio que o Brasil precisaria urgentemente
da criao de colgios e universidades, do povoamento do interior, do
desenvolvimento da minerao, de mudanas no tratamento do indgena, da
igualdade de direitos polticos e civis, de uma poltica gradativa de emancipao
dos escravos e de uma poltica de terras que combatesse a concentrao.
Os trabalhos da Assemblia Constituinte foram iniciados no dia 3 de maio
de 1823. J nas primeiras sesses, D. Pedro destacava que esperava da

52

COSTA, Emlia Viotti da. Da monarquia repblica, op. cit., p. 55.


SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p. 95-96.
54
COSTA, Emlia Viotti da. Da monarquia repblica, op. cit., p. 56.
53

20

Assemblia uma constituio digna dele e do Brasil.55 Foi o suficiente para


levantar polmicas. Imediatamente o imperador corrige e em resposta declara que
a Assemblia far uma constituio digna da nao brasileira, de si e do
Imperador.56 [grifos do autor]
Tarqunio de Sousa 57 afirma que durante a Assemblia Constituinte,
..

discutiu-se um dos projetos de Jos Bonifcio, o da criao de duas universidades


no Brasil, uma em Olinda e outra em So Paulo. No entanto, esse projeto foi
marcado por disputas bairristas que acabaram por desvirtu-lo. Assim, acabou-se
fundando apenas uma Faculdade de Direito em So Paulo e outra em Olinda, com
estatutos iguais aos de Coimbra. Isso refora a idia de que parte das leis
aprovadas para o Brasil foram feitas a partir da antiga metrpole.
Esse fato aumentou o medo da re-anexao do Brasil por Portugal, pois
afirmava-se na antiga metrpole que seria necessrio desfazer aquilo que as
cortes haviam feito, ou seja, a Independncia da maior e mais importante colnia
portuguesa, o Brasil. Alm disso, parte dos deputados ficou receosa quanto s
intenes do Imperador, visto ser ele filho do rei portugus e ter iniciado um
processo de reaproximao com o pai.
No havia na Assemblia uma liderana fixa, uma vez que a mesa
coordenadora dos trabalhos era eleita mensalmente. Mesmo assim, o deputado
Antnio Carlos assumiu certa preponderncia logo no princpio. A maioria dos
deputados presentes Assemblia no tinha pressupostos radicais, visto que tais
integrantes tinham sido exilados ou presos durante os primeiros momentos da
Independncia. Alguns poucos se negaram a comparecer Assemblia por
consider-la manipuladora e monarquista. Alguns deputados estiveram nas Cortes
Constitucionalistas em Portugal e tambm haviam lutado nas guerras pela
Independncia, o que fez com que tivessem uma viso clara de que no queriam
um imperador dspota.

55

PRADO JUNIOR, Caio. Evoluo poltica do Brasil: colnia e imprio. So Paulo: Brasiliense,
1991. p. 55.
56
PRADO JUNIOR, Caio. Evoluo poltica do Brasil. op. cit., p. 55.
..

57

SOUSA, Octvio Tarqunio de. Jos Bonifcio. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1972. p. 96-106.

21

As caractersticas principais da Assemblia eram inspiradas na Revoluo


Francesa, o que desagradava os Conservadores, como o prprio Jos Bonifcio,
uma vez que a Assemblia passaria a representar a soberania nacional,
sobrepondo-se ao prprio Imperador. Alm dessa caracterstica, outras muito
importantes eram a falta de vontade poltica presente na Assemblia e a luta
contra as intenes de D. Pedro I em formar um Poder Executivo forte.58
Tais atitudes do Ministrio fizeram com que tanto os Andradas, quanto a
prpria Constituinte, comeassem a se afastar gradativamente de D. Pedro I.
Segundo as expresses de Tarqunio de Sousa59, Jos Bonifcio ento demitiu-se
do Ministrio e recorreu ao jornal O Tamoyo para fazer crticas contra os
portugueses, insinuando que a Independncia do pas se via ameaada tanto
pelos portugueses que estavam a servio do governo e da administrao pblica
quanto pelo Imperador.
Nesse ambiente de hostilidades recprocas, o jornal Sentinela, tambm
vinculado aos Andradas, publica uma carta ofensiva a oficiais portugueses do
exrcito imperial. A retaliao d-se com o espancamento do farmacutico David
Pamplona. Como Emlia Viotti da Costa relata:
Dois oficiais portugueses resolveram castigar o autor dos artigos, que confundiram com o
farmacutico Davi Pamplona Corte Real a quem aplicaram violenta surra. O fato
repercutiu na Assemblia onde se teceram crticas ao governo. As tropas movimentaramse solidrias ao Imperador. Na Assemblia houve protestos contra a movimentao de
tropas, em seguida decretou-se sesso permanente. Interpelou-se o governo. Criava-se,
assim, o pretexto para a dissoluo que se deu a 12 de novembro de 1823. Entre os
deputados presos achavam-se Jos Bonifcio, Antnio Carlos, Martim Francisco, um seu
sobrinho, padre Belchior, Montezuma, Jos Joaquim da Rocha e seus filhos. Poucos dias
depois Jos Bonifcio seria deportado. A devassa instaurada contra os Andradas,
iniciada em novembro de 1823 prolongou-se at 1828 e s em julho de 1829 voltaria ele
ao pas.60

A agresso contra Davi Pamplona transformou-se em grave caso poltico.


Rapidamente, na prpria assemblia, agravaram-se as divergncias entre os
partidrios da consolidao da Independncia e os componentes do Partido

58

SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p. 93.


Ibid., p. 132.
60
COSTA, Emlia Viotti da. Da monarquia repblica, op. cit., p. 78.
59

22

Portugus, agora assessorando D. Pedro. A sesso da Constituinte de 10 de


novembro de 1823 j de incio deixou patente a anormalidade da situao61 e
adiou os trabalhos para o dia seguinte.
Em 11 de novembro, D. Pedro I enviou Assemblia uma mensagem,
exigindo-lhe satisfao aos oficiais lusitanos. O deputados perceberam que A
Constituinte estava ameaada. Por proposta de Antnio Carlos a Assemblia
declarou-se em sesso permanente e nela ficaram os constituintes durante toda a
noite do dia 11, denominada a noite da Agonia. Na manh seguinte, por ordem
do imperador, as tropas acampadas em So Cristvo dissolveram a Constituinte,
prendendo, em seguida, diversos deputados da oposio, entre os quais os
Andradas, que foram deportados.62
Dissolvida a Constituinte, em conseqncia do agravamento das
hostilidades entre a ala dos brasileiros e a faco portuguesa, D. Pedro I nomeou
um Conselho de Estado formado por 10 membros,63 todos brasileiros natos, e
determinou a elaborao da nova Constituio. No entanto, os membros redigiram
a Constituio, utilizando vrios artigos do anteprojeto de Antnio Carlos,
mudando o texto e o contedo e parte dos artigos constitucionais. Aps ser
apreciada pelas Cmaras Municipais, foi outorgada em 25 de maro de 1824.64
Entretanto, como descreve Pedro Calmon, a Constituio de 1824 vigorou
apenas com poucas mudanas at o final do Imprio, em 1889.65 Ainda segundo o
historiador, a D. Pedro I interessava passar a idia de liberalismo para encobrir
seu despotismo a partir da juno entre o Poder Executivo e o Poder Moderador
nas mos do prprio monarca.
Embora outorgada a Constituio de 1824, o Brasil ainda no era
reconhecido internacionalmente como Nao.

61

SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p. 135.


SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p. 141-147.
63
A Constituio foi redigida ao gosto do Imperador pelos estudos constitucionais, ou antes, pelas
idias de Benjamin Constant, diz Eugne de Monglave, Correspondence de D. Pedro I, Paris,
1827, confirmado por Francisco Gomes da Silva, pg. 81, e doc. no Arq. Imperial, Anais da Bibl.
Nac., LIV, pg. 205: projeto do punho do Chalaa e entrelinhas dele [D. Pedro]. Apud.
CALMON, Pedro. Histria do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1963. p. 1563.
64
SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p.156.
65
CALMON, Pedro. Histria do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1963. p. 1564.
62

23

Werneck Sodr66 afirma que finalmente em agosto de 1825, com a


mediao inglesa, D. Pedro assinou com D. Joo VI um tratado de paz, amizade e
aliana, pelo qual os portugueses reconheciam a independncia do Brasil.
Contudo, como aponta o historiador, Portugal exigiu o pagamento de 2 milhes de
libras esterlinas para reconhecer a independncia de sua ex-colnia. Sem este
dinheiro, D. Pedro recorreu a um emprstimo Inglaterra.
Retomando os relatos de Assis Cintra,67 podemos observar que o Chalaa
foi o suposto escriba do imperador, escreveu discursos, textos para jornais e at
mesmo artigos inteiros da constituio de 1824. Tarqunio de Sousa confirma as
pretenses literrias de Chalaa. O projeto da Constituio datado de 1823
apresentava 24 artigos e trs poderes do Estado. J o projeto escrito pelo
Chalaa, (o que D. Pedro ditava na corrente do seu discurso?) parece posterior;
(....) em vez de 24, contm 41 artigos. (...) O artigo 2 do projeto ditado a Gomes
da Silva por D. Pedro, consagrando a grande novidade da Constituio imperial,
institua quatro
Judicirio.

poderes constitucionais: Legislativo, Moderador, Executivo e

68

D. Pedro I deu mais poderes ao amigo, que alm de redigir as


correspondncias particulares, ficou encarregado de dirigir o arquivo da Casa
Imperial e de administrar os bens do imperador. Assim, organizou uma espcie de
gabinete particular, um ministrio paralelo que influenciava nas importantes
decises do Imprio. Esse suposto gabinete foi chamado pelos seus inimigos de
gabinete dos favoritos, Conselho Secreto, Camarilha Palaciana e Gavetrio do
chupa-chupa.69 [grifos do autor]
O historiador Joo Armitage transcreveu, em sua obra Histria do Brasil,
uma nota satrica, publicada no Aurora Fluminense, ridicularizando o exagerado
procedimento da concesso de ttulos no Brasil:

66

SODR, Nelson Werneck. As razes da independncia, op. cit., p. 160-161.


CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do imprio, op. cit., p. 10.
68
SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p. 157.
69
CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do imprio, op. cit., p.10.
67

24
A Monarquia Portuguesa, dizia este engenhoso lgico, fundada, segundo a autoridade
da folhinha, h 736 anos, tinha em 1803, poca em que se haviam renovado ttulos e
criado outros recentemente, 16 Marqueses, 26 Condes, 8 Viscondes e 4 Bares. O
Brasil, com 8 anos de idade como potncia, encerra j no seu seio 28 Marqueses, oito
Condes, 16 Viscondes e 21 Bares. Ora, progredindo as coisas do mesmo modo, como
de esperar, teremos no ano de 2551, que quando a nossa nobreza titular deve contar
a mesma Antigidade que a de Portugal tinha em 1803, nada menos de 2.385
Marqueses, 710 Condes, 1420 Viscondes e 1863 Bares.70

Lilia M. Schwarcz destaca que o direito de agraciar estava previsto num


rascunho de projeto da Constituio, escrito por Chalaa e com emendas do
Imperador no artigo 19, destinado ao monarca. Determinava que o direito de
agraciar de competncia do monarca, assim como conferir honras e distines
de qualquer qualidade contanto que no pecuniria.71
Com a morte de D. Joo VI, em 10 de maro de 1826, o Imperador decidiu
contrariar as restries da constituio brasileira, que ele prprio aprovara, a
assumir, como herdeiro do trono portugus, o poder em Lisboa como Pedro IV,
27 rei de Portugal. Constitucionalmente no podendo ficar com as duas coroas,
instalou no trono de Portugal a filha primognita, Maria da Glria, como Maria II,
de sete anos, e nomeou regente seu irmo, D. Miguel.
No mesmo ano, morreu a primeira esposa de D. Pedro I. A Imperatriz
Leopoldina Josepha Carolina, arquiduquesa da ustria, faleceu em conseqncia
de uma febre gastro-biliosa complicada com um aborto.72 D. Leopoldina tinha
conscincia de que, com a Independncia proclamada, dificilmente voltaria para a
Europa, pois a consolidao do Imprio exigia sua presena no Brasil. Essa
renncia foi condio necessria para o gozo de sua vitria poltica e, ao mesmo
tempo, o incio de sua tragdia pessoal.
Os historiadores e cronistas Assis Cintra e Paulo Setbal apontam que
Domitila de Castro, aps a morte da Imperatriz Leopoldina, tinha pretenses de
casar-se com o Imperador. No entanto, D. Pedro I despachou-a de volta para So
Paulo e mandou buscar uma nova mulher na Europa.

70

ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil, op.cit., p. 196-197.


SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trpicos. So
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 169.
72
SOUSA, Octvio Tarqunio de. A vida de D. Pedro I, op. cit., p. 239.
71

25

Paulo Setbal73 registra que durante quase trs anos D. Pedro I


permaneceu vivo e o povo comeou a clamar por um segundo casamento. A
corte necessitava de uma segunda imperatriz e, por razes de Estado, razes de
famlia e morais, D. Pedro I enviou Felisberto Caldeira Brant Pontes, o ento
Marqus de Barbacena, para a Europa, com trs cheques em branco e, alm
disso, ordens amplas para dispor de toda a herana de D. Joo VI e tambm um
papel confidencial com especificaes das qualidades necessrias para que a
futura esposa fosse do seu agrado. Segundo Setbal, o Imperador exigia do
diplomata uma princesa bem nascida, bonita, formosa e de boa educao. Alm
dessa misso, o marqus de Barbacena acompanhou Europa D. Maria da
Glria, j ento D. Maria II, rainha de Portugal.
Os historiadores Cintra, Calmon e Armitage, confirmam o episdio da
misso diplomtica do Marqus de Barbacena narrado por Paulo Setbal. Como
descreve Setbal,74 as negociaes para o casamento foram, sem dvida, difceis.
O diplomata brasileiro percorreu inmeras casas reais europias, ustria, Sucia,
Baviera e outros pases em busca de uma noiva para o Imperador. Porm, a corte
europia no via com bons olhos e nem aprovava a vida irregular de D. Pedro I.75
O Marqus de Barbacena, depois de inmeras tentativas, finalmente
encontrou o Visconde de Pedra Branca que demonstrou boa vontade e o
diplomata conseguiu, ento, a princesa D. Amlia Eugnia Napoleona de
Leuchtenberg, sobrinha do rei da Baviera e do imperador da ustria. Barbacena
embarcou, imediatamente, com a noiva para o Brasil e desembarcou no Rio de
Janeiro no dia 16 de outubro de 1829. As npcias tiveram lugar no dia seguinte.

73

SETBAL, Paulo. As maluquices do Imperador: contos histricos. 6 ed. So Paulo: Saraiva,


1949. p. 129.
74
SETBAL, Paulo. As maluquices do Imperador, op. cit., p. 130-131.
75
Schwarcz aponta que: no s a corte europia, mas, tambm, alguns viajantes, que chegaram
ao Brasil por volta de 1825, teciam comentrios depreciativos a respeito da sociedade brasileira
e de D. Pedro I e criticavam igualmente a falta de virtude das mulheres brasileiras.
(SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador, op. cit., p. 251).

26

Joo Armitage76 relata que o Imperador, devido a sua crescente


impopularidade, decidiu substituir o ministrio por outro, composto exclusivamente
por brasileiros natos. Marqus de Barbacena foi nomeado ministro da fazenda;
Miguel Calmon, ministro dos negcios estrangeiros; e o Marqus de Caravelas,
ministro do Imprio. Mas antes de completar a organizao do gabinete, D. Pedro
I sofreu um acidente. Barbacena procurou conciliar-se com os influentes
deputados liberais, encarregou-se de completar o novo gabinete e insistiu com D.
Pedro I que o nico meio de tornar a ganhar a confiana pblica era o de dissolver
o gabinete secreto de So Cristvo e afastar do seu lado Francisco Gomes da
Silva e Joo da Rocha Pinto.
D. Pedro I, que a princpio relutou, acabou por concordar com a sada dos
dois amigos. No entanto, mostrou sua generosidade: de seu bolso concedeu-lhe
D. Pedro uma penso anual: a Gomes da Silva 25 mil francos e a Rocha Pinto 20
mil, por todo o tempo em que estivessem ausentes da corte.77
A dissoluo do gabinete secreto, que funcionou at fins de 1829, se
concretizou de fato. Em 25 de abril de 1830, Francisco Gomes da Silva e Joo da
Rocha Pinto78 foram convidados a deixar o Brasil. Ele prprio aponta no seu livro
de memrias:
Sai, pois, abandonando o Brasil sem o mnimo sentimento de desprazer, mais que o
causado pela saudade de minha famlia e de meu augusto amo, o qual no cessara um
instante de dar-me provas de sua benignidade. S. M. conheceu perfeitamente que,
sujeitando-me a abandonar tudo quanto me era caro no mundo, eu s tivera por objeto
evitar-lhe dissabores e inquietaes.79

Francisco Gomes da Silva fixou-se em Londres, onde conheceu o escritor


Almeida

Garrett.

Chalaa

escreveu

trs

livros,

dois

deles

destinados

exclusivamente a denegrir a imagem de Marqus de Barbacena. Alguns

76

Armitage, Joo. Histria do Brasil, op. cit., p. 197-199.


SILVA, Francisco Gomes da. Memrias do Conselheiro Francisco Gomes da Silva - O
Chalaa, op. cit., p. 156.
78
Joo da Rocha Pinto partiu da corte para um emprego na Europa. L, aps muitas aventuras,
meteu uma bala nos ouvidos. (SETBAL, Paulo. Nos bastidores da Histria, op. cit., p. 71).
79
SILVA, Francisco Gomes da. Memrias do Conselheiro Francisco Gomes da Silva - O
Chalaa, op. cit., p. 151.
77

27

historiadores dizem ser Almeida Garrett o autor das Memrias publicadas, em


1831, em Londres, mas, conforme os apontamentos de Pedro Calmon e Alberto
Rangel, tal hiptese deve ser descartada. Segundo os historiadores, ningum
melhor do que Gomes da Silva para saber o segredo da fazenda imperial e a
leviandade dos funcionrios: Decerto achou em Londres outros elementos de que
carecia, porque no tardou em escrever as suas denncias que envolviam
Barbacena.80
O historiador Joo Armitage, ao comentar que as denncias e calnias,
enviadas atravs de intrigantes cartas escritas por Francisco Gomes da Silva
endereadas ao Imperador, afirma que elas tiveram significativa influncia na
demisso do ministro Marqus de Barbacena.
Maria Thereza Schorer Petrone, professora de Histria da USP, assim
resume o episdio da demisso de Barbacena:
As intrigas referem-se s incorrees nas contas de Barbacena por ocasio de sua
misso na Europa a fim de arranjar uma esposa para o Imperador. Barbacena,
entretanto, teve suas contas reconhecidas pelo Tribunal do Tesouro, que ainda lhe
reconheceu um crdito correspondendo a uma soma que Barbacena tirou do prprio
bolso para custear as despesas na sua misso na Europa, que tambm teve a finalidade
de defender os interesses de D. Maria da Glria sobre o trono portugus. Esse crdito lhe
foi pago em 1838. evidente que a sada de Barbacena, poltico hbil e de projeo do
Ministrio, se refletiu negativamente sobre D. Pedro I. Alis, em 15 de dezembro de 1830,
Barbacena, em carta a D. Pedro, escreve em tom proftico: Se V. M., indeciso,
continuar com palavras de constituio e de Brasileirismo na boca, a ser Portugus e
absoluto no corao, neste caso a desgraa ser inevitvel, e a catstrofe, que praza
Deus no seja geral, aparecer em poucos meses, talvez no chegue a seis.81

A discusso entre o Imperador e o Marqus de Barbacena tornou pblicas


as instrues secretas de D. Pedro, os requisitos que exigia da noiva, o enxoval,
os emprstimos, mil intimidades ridculas e comprometedoras; foi assim que a
corte soube dos detalhes daquele clebre casamento.82

80

CALMON, Pedro. O rei cavalleiro: A vida de D. Pedro I. So Paulo: Nacional, 1933. p. 211.
PETRONE, Maria Thereza Schorer. Apud ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil, op. cit. p. 202.
82
SETBAL, Paulo. As maluquices do imperador, op. cit., p. 154-155.
81

28

O constante declnio de seu prestgio e a crise provocada pela dissoluo


do gabinete levaram o Imperador a abdicar, em 7 de abril de 1831,83 em favor do
filho Pedro. Para tutor de D. Pedro II, nomeou Jos Bonifcio. Portanto, retornou
Europa como D. Pedro IV. Tomando conhecimento da volta do monarca para
Portugal, o Chalaa se apresentou para servi-lo. Imediatamente foi nomeado
Secretrio de Estado da Casa de Bragana.
Conforme os apontamentos de Armitage, D. Pedro I renunciou devido
enorme presso que recebia pelo desleixo com a economia. Deixou os cofres
pblicos vazios e o pas totalmente endividado. As elites da poca, bem como
comerciantes de vrias localidades, perderam muito com suas medidas. Partiu em
direo a Lisboa esvaziando o que restava do tesouro que julgava seu por direito.
De acordo com Pedro Calmon,84 em Portugal, com o ttulo de duque de
Bragana, D. Pedro I assumiu a liderana da luta para restituir filha Maria da
Glria o trono portugus, usurpado por D. Miguel, seu irmo. Em 1832, nos
Aores, criou uma fora expedicionria para invadir Portugal e iniciou uma
campanha que s obteve a vitria em 1834. Apesar de ter reconquistado o trono
portugus para sua filha, Dom Pedro voltou tuberculoso da campanha e morreu
em 24 de setembro de 1834, no Palcio de Queluz, deixando como tutora de seus
filhos Dona Amlia.
De acordo com os relatos de Assis Cintra,85quatro anos depois, Chalaa
casa-se secretamente com Dona Amlia em Berlim e ali passa a viver. Em 1851,
velho e doente, Chalaa faz a partilha de seus bens entre os filhos legtimos e
ilegtimos. Em de 30 de dezembro de 1852, Chalaa morre em Lisboa, no palcio
dos Duques de Bragana, tendo seu filho e bigrafo lhe registrado as ltimas
palavras durante a extrema-uno: Padre Jos, eu amei demais as mulheres e o
dinheiro.86

83

O curto texto escrito por D. Pedro na madrugada do dia 07 de abril de 1831 foi o seguinte:
Usando do direito que a constituio me concede, declaro que hei mui voluntariosamente
abdicado na pessoa do meu muito amado e prezado filho o Sr. D. Pedro de Alcntara. Boa Vista,
sete de abril de 1831, dcimo da Independncia e do Imprio (SOUSA, Octvio Tarqunio de. A
vida de D. Pedro I, op. cit., p. 114. Tomo III).
84
CALMON, Pedro. O rei cavalleiro, op. cit., p. 311-312.
85
CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do imprio, op. cit., p. 11-12.
86
Ibid., p. 13.

29

Resguardando a natureza diversa das obras consultadas, podemos


concluir que Francisco Gomes da Silva exerceu decisiva influncia sobre D. Pedro
I. Joo Armitage diz, textualmente:
O carter dos funcionrios polticos, de que o Imperador se havia cercado, era pouco
prprio para segurar a confiana pblica. frente destes havia um portugus de nome
Francisco Gomes da Silva, mais conhecido no Brasil pela alcunha de Chalaa.Tinha um
carter bulhento, extravagante, insolente e dissipado. De simples criado particular do
Pao, foi promovido pelo Imperador a Ajudante da Guarda de Honra e a seu Secretrio
privado; e finalmente, tanta ascendncia ganhou sobre o nimo de seu augusto amo, que
se pode avanar sem exagerao, que partilhava com ele a autoridade suprema.87

Outros historiadores tambm escrevem sobre este curioso personagem


to adulado pelo Imperador. Alberto Rangel, pesquisador da vida de D. Pedro, faz
o seguinte resumo:
A 19 de novembro de 1822 foi-lhe mandado entregar ouro para a fatura da coroa e do
cetro. Em dezembro de 1823, encontra-se oficial da Secretaria dos Negcios do Imprio,
em substituio de Jos Pedro Fernandes e com o ordenado mensal de 33.333 ris,
depois, a 4 de abril de 1825, oficial maior graduado da mesma Secretaria com exerccio
no Gabinete Imperial, aparece na folha de 3 de junho de 1826 um Decreto que mandava
que ele a seu pedido recebesse emolumentos em todas as secretarias de Estado, como
se fosse Oficial efetivo delas! Intendente Geral das Cavalarias, secretrio do Gabinete
Imperial, Conselheiro de Estado, Comandante da Imperial Guarda de Honra para a qual
tinha sido feito Ajudante a 4 de novembro de 1823, concessionrio de explorao de
ouro, oficial da ordem do cruzeiro, Comendador honorrio da Trre e Espada,
Comendador da Ordem de Cristo e de Leopoldo, Ministro Plenipotencirio, cargo de que
se dispensou, procurador e factotum de Dona Amlia viva. Tudo isso Gomes o foi.88

87
88

ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil, op. cit., p. 111.


RANGEL, Alberto. Dom Pedro I e a Marquesa de Santos: vista de cartas ntimas e de outros
documentos pblicos e particulares. So Paulo: Editora Brasiliense, 1969. p. 175-176.

30

2 ESBOO DE O CHALAA, DE JOS ROBERTO TORERO


Com o lanamento, em 1992, do romance o Chalaa, Jos Roberto Torero
estreava como romancista. O autor conseguiu destaque nacional ao publicar a
obra e como reconhecimento recebeu dois importantes prmios literrios do pas:
Aplub e o Jabuti, pela Cmara Brasileira do Livro. Cinco anos mais tarde, o
escritor relana O Chalaa, em edio revista, com nova capa e projeto grfico,
trazendo para a Editora Objetiva seu maior sucesso literrio.
O escritor atua em diversas reas, como cinema, TV e literatura. Seus
principais romances so: Xadrez, truco e outras Guerras,89 Pequenos amores,90
Os Vermes91 e Terra Papagalli ,92 estes dois ltimos em parceria com Marcus
.

Aurelius Pimenta.
O Chalaa uma narrativa ficcional que procura (re)desenhar um perodo da
Histria do Brasil no incio do sculo XIX, mais especificamente os ltimos anos da
colnia e todo o primeiro imprio, ou seja, o governo de D. Pedro I. Contudo, sem
obedecer a uma linha de sucessividade, de encadeamento lgico entre os fatos, o
autor lana mo da narrativa fragmentada, apropriando-se com freqncia da tcnica
narrativa de Machado de Assis, de que trataremos adiante com mais detalhes.
O romance composto por um livro de memrias e um dirio de
anotaes. Este tem como ponto de observao o tempo da revoluo
constitucionalista em Portugal, quando D. Pedro I resgata o trono portugus para
sua filha Maria da Glria e derrota o irmo, o absolutista D. Miguel. Aquele se
constitui do caderno de anotaes de Francisco Gomes da Silva, conselheiro do
Imprio que, durante um bom tempo, foi um dos mais importantes auxiliares e o
mais prximo de Dom Pedro I. Graas sua privilegiada inteligncia, ascendeu de
simples servial a um dos mais influentes homens do Imprio brasileiro.

89

TORERO, Jos Roberto Xadrez, truco e outras guerras. Rio de Janeiro: Objetiva,1998.
TORERO, Jos Roberto. Pequenos amores. Rio de Janeiro: Objetiva,2003.
91
TORERO, Jos Roberto. PIMENTA Marcus Aurelius. Os vermes: uma comdia poltica. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2000.
90

92

TORERO, Jos Roberto. PIMENTA Marcus Aurelius. Terra Papagalli. Rio de Janeiro:
Objetiva,2000.

31

A narrativa de Torero, , assim composta em dois blocos: o primeiro o


romance propriamente dito, que se processa no presente do narrador, na Europa
a partir do ano de 1830. O segundo, que se intercala no primeiro, constitudo
pelas memrias do narrador, que narra a sua estada no Brasil a partir do dia em
que Francisco Gomes da Silva conheceu D. Pedro. Esses dois blocos so
narrados em primeira pessoa. Como fecho para sua obra, Torero apresenta,
ainda, algumas cartas que funcionam como concluso da narrativa.
De incio, cabe-nos apresentar o narrador-personagem. Como j o indica o
ttulo do romance, em Galantes memrias e admirveis aventuras do virtuoso
conselheiro Gomes, O Chalaa, a personagem central, sujeito quarento, narra
suas memrias na poca em que esteve no Brasil, e faz as anotaes de suas
aventuras em Portugal. Assim, ficamos sabendo que Francisco Gomes da Silva
filho de uma rapariga que o registrou como filho de pais incgnitos, mas que o
vende ao seu legtimo pai Visconde de Vila Nova da Rainha e, como recompensa,
ganha um marido, o ourives Antnio Gomes da Silva, mais oito mil cruzados e
ainda consegue que o Visconde cuide da instruo do filho, mandando-o para o
seminrio de Santarm.
No Seminrio, vive os anos de sua juventude reconhecendo, depois, dever
ao monsenhor Albino ter chegado a altos postos governamentais, pois tivera
oportunidade de estudar latim, retrica, argumentao, astronomia, aritmtica,
msica e geometria.
Em vias de se ordenar sacerdote, Gomes da Silva recebe uma carta de
seu pai-visconde orientando-o que fugisse depressa do seminrio porque os
soldados de Napoleo vinham invadir Portugal.93 O governo da Inglaterra
pressionava D. Joo VI a se mudar para o Brasil com toda a sua corte. Chegando
a Lisboa, acompanhou toda a confuso no porto e acabou encontrando-se com
seus dois pais, o Visconde e o ourives Antnio Gomes da Silva que, com a me,
viajaram ento no mesmo navio. Aps dois meses chegaram ao Brasil.

93

O Chalaa, p. 44.

32

No Brasil, durante dez anos, exerceu a funo de criado do pao. Com a


volta de D. Joo VI para Portugal, no ano de 1820, D. Pedro o escolheu para seus
servios particulares. A partir de ento se tornaram grandes amigos. Gomes da
Silva, alm de levar e trazer recados e intermediar belas mulheres para o prncipe,
passou a auxili-lo tambm na poltica. Vai a So Paulo para acompanhar D.
Pedro e, l, proclamam a independncia do Brasil.
Participou da criao da primeira Constituio Brasileira e, em seguida,
criou uma certa animosidade com o ministro Marqus de Barbacena e este
conseguiu expuls-lo do Brasil. Retirou-se ento para Londres julgando que o
lugar era adequado para sua retirada da vida poltica. Quando soube da
Abdicao de D. Pedro, se encaminhou imediatamente para a Frana com o
objetivo de providenciar uma boa recepo para o ex-imperador. Gomes da Silva
parte, depois, com destino a Lisboa e l continua auxiliando seu amo. D. Pedro
morre em 1834 e Gomes da Silva casa-se com a segunda esposa do imperador.
A partir do captulo 16, Intitulado Memrias para servir grandeza da
Humanidade,94 o narrador comea sua biografia, com a palavra Memrias, em
relao ao seu nascimento, no fsico, mas metafsico que se deu no Imprio do
Brasil, no ano da graa de 180995. Foi quando, ao participar da vida bomia do
Rio de Janeiro, cantava desafios com o amigo Jos Janurio. Havia ali um homem
arredio, com capoto axadrezado para quem Jos Janurio dirigiu os seguintes
versos:
Paulista pssaro bisnau,
Sem f, nem corao
gente que se leva a pau,
A sopapo ou pescoo.96

Quem era o forasteiro? O prncipe D. Pedro, filho de El-Rei D. Joo.


Gomes da Silva ficou paralisado por alguns instantes, mas logo tirou o chapu e
disse ao prncipe:

94

O ttulo do captulo remete de imediato literatura picaresca, pois Lazarillo de Tormes


referncia explcita no romance de Torero.
95
O Chalaa, p. 60.
96
O Chalaa, p. 60.

33
O prncipe pssaro real
Tem f, tem corao.
O verdadeiro bisnau
aquele pretalho.97

D. Pedro riu e depois de alguns minutos estavam bebendo juntos. Assim foi
seu nascimento metafsico que se transformou em amizade e perdurou at o fim
da vida de D. Pedro I.
No captulo 18, l-se que aps a sada de El-Rei D. Joo VI do Brasil, em
1820, Gomes da Silva ficou perambulando pelo pao sem ter o que fazer.
Tambm queria voltar a Portugal, mas D. Pedro o queria para os seus servios.
Sua funo era intermediar os encontros de D. Pedro com as filhas do belo sexo.
Depois que D. Joo partiu, ele foi oficializado nessa funo, ou seja, passava os
meus dias a levar e trazer recados, marcar encontros, distrair maridos e coisas
outras.98 No havia distino de classes, raa ou cor nas preferncias do
Prncipe. A quituteira Andrezza, por exemplo, escrava do bispo, foi comprada por
Gomes da Silva e levada para o Palcio Imperial com o intuito de atender aos
desejos do Prncipe.
A narrativa prossegue nesse ritmo. Nos idos de 22, D. Pedro pediu
conselho a Gomes da Silva para fazer uma viagem a So Paulo, com o objetivo de
verificar como estavam as coisas por l e ele imediatamente aprovou a idia.
Havia comentrios sobre um levante ocorrido na provncia de So Paulo contra os
partidrios de Jos Bonifcio. D. Pedro perguntou a Gomes da Silva se no queria
ficar e ouviu uma declarao de bravura: mesmo que fssemos dois contra dois
milhes, ainda assim eu lutaria at a morte ao lado do meu senhor.99
No captulo 26, Gomes da Silva interrompe a narrativa para narrar a teoria
dos trs rudos, inspirada na obra El hombre y las cosas trplices, do renomado
Caldern de .Meja.100 Tais so eles: o sussurro das mulheres, o tilintar das
moedas e o alarido das palmas. Em seguida descreve a penosa viagem do Rio de

97

O Chalaa, p. 61.
O Chalaa, p. 67.
99
O Chalaa, p. 85.
100
O Chalaa, p.92.
98

34

Janeiro a So Paulo, tendo que enfrentar exatas 96 lguas vencidas em doze


dias. Isto significava um aborrecido trajeto de doze horas dirias em lombo de
burro, subindo montes, vadeando rios, enfrentando frio e chuva,101 para adentrar
na provncia de So Paulo. Ali permaneceram durante dez dias. Contudo, D.
Pedro e todos os membros da comitiva resolveram descer vila de Santos para
verificar algumas fortificaes.
A narrativa interrompida novamente no captulo 28 para o narrador
apresentar as teorias de Tales de Crisia, do sculo IV a. C., a de Marco Rmulo,
a do Padre Jos de SantAnna e a sua prpria teoria. Para Gomes da Silva, o
comportamento masculino, que vai do incio da ereo at a consumao do coito,
o crebro. Tudo para dizer que nesse momento e pelo crebro de D. Pedro
que Domitila de Castro se vale para conseguir o que quer do futuro Imperador.
O regresso da viagem a Santos narrado no captulo 30. Todos passaram
mal depois de um jantar em que foi servida costeleta de porco. No caminho, a
comitiva parou diversas vezes acometida por diarria. No topo da serra D. Pedro
recebeu a notcia de um correio, mandado por Jos Bonifcio e pela Princesa
Leopoldina, trazendo notcias importantes. D. Pedro mandou que metssemos a
espora em nossas montarias com o fim de chegar capital da provncia o quanto
antes.102
Quando chegaram ao riacho do Ipiranga, D. Pedro e os oficiais da
comitiva tiveram que parar para defecar. Nesse momento, chegou colina o oficial
trazendo as correspondncias de D. Leopoldina e de Bonifcio. O Prncipe, ao ler
as cartas, observou que as cortes portuguesas o tinham destitudo do cargo de
Prncipe-regente. Imediatamente gritou: Laos fora, soldados. Todos ficaram um
pouco assustados. Em seguida disse: viva a independncia e a separao do
Brasil. Todos gritaram: viva! E depois: Independncia ou morte. Foi Gomes
quem primeiro levantou a espada e se armou de coragem e repetiu:
Independncia ou morte! e todos concordaram repetindo o brado.103

101
102
103

O Chalaa, p. 93.
O Chalaa, p. 109.
O Chalaa, p. 112.

35

A dissoluo da primeira Constituinte ocupa trs captulos, sendo que no


captulo 34 Gomes da Silva narra as intrigas da assemblia constituinte brasileira:
Aos clamores de morte aos ps-de-chumbo, os ingratos queriam expulsar os europeus
do Brasil, alegando que no passavam de ladres a explorar o povo. Mais, queriam darse excessivos poderes, fazendo do Prncipe D. Pedro um ttere, um soberano decorativo,
tirando dele todas as prerrogativas que lhe seriam inerentes numa monarquia
constitucional.104

Segundo o narrador, somente os trs irmos Andradas tinham algum


conhecimento, os demais eram sexagenrios de altas dignidades da Igreja e
proprietrios de pequenas fortunas. Os Andradas queriam levar o Brasil a uma
subverso geral.105 Ao perceber isso, D. Pedro encarregou Gomes da Silva de
dar ordem a uma tropa de cento e cinqenta homens para que se reunisse no
campo de So Cristvo e exigisse que os trs descendentes de Judas fossem
destitudos.106 No dia seguinte D. Pedro ordenou cercar o Pao da Cmara e
dissolver a Assemblia. Os Andradas foram deportados.
Com isso, Francisco Gomes da Silva, aps a dissoluo da primeira Assemblia Constituinte brasileira, foi condecorado com a medalha da Cruz e da Espada.
D. Pedro I no obteve sucesso com o projeto da primeira Constituinte. No
captulo 36, Gomes da Silva narra, ento, a tarefa que lhe fora atribuda pelo
Imperador: escrever a primeira Constituio brasileira. O fiel criado apenas fez a
fuso das constituies europias. A idia dos conselhos gerais saiu da carta
belga, a fuso das cmaras importei da Noruega e o resto veio de Frana e
Portugal. Uma ou outra coisa inventei eu mesmo.107
D. Pedro estava ocupado com Domitila de Castro que, nessa poca, j
morava no Rio de Janeiro e era sua amante. Depois de atender Gomes da Silva,
ler, revisar e questionar sobre o Poder Moderador, D. Pedro I aprovou a
Constituio e, em troca, concedeu o posto de oficial da secretaria dos negcios
do imprio a Gomes da Silva.

104
105
106
107

O Chalaa, p. 122-123.
O Chalaa, p. 123.
Idem.
O Chalaa, p. 129.

36

No captulo 38, narra-se que Francisco Gomes da Silva e D. Pedro I eram


virulentamente atacados pelos jornalistas. O pior era o jornal A malagueta, dirigido
por Augusto May, que chamou o monarca de amigo das meretrizes e semeador
de bastardos.108 D. Pedro I reuniu, ento, os seus amigos para uma reunio em
So Cristvo: Caldeira Brant, Rocha Pinto, Carlota e Gomes da Silva. O objetivo
era descobrir o que fazer diante da imprensa. A deciso foi dar uma surra no
jornalista.
Depois da morte de D. Joo VI, em 1826, D. Pedro podia se tornar rei de
Portugal por direito, mas abdicou da Coroa lusitana, nomeando a rainha sua filha
D. Maria da Glria.
O imperador queria mostrar seu amor pelo Brasil e viajou, em companhia
do seu criado, at o Sul para levantar o nimo das tropas que lutavam contra
Buenos Aires pela posse da provncia Cisplatina. Nesse nterim, falece D.
Leopoldina, sua esposa. Voltaram imediatamente para o Rio. No caminho, D.
Pedro I comps um comovente soneto, do qual Gomes da Silva transcreve dois
tocantes versos, que to bem resumem o sentimento que os unia:
Ela me amava com o maior amor,
.
Eu nela admirava sua honestidade.109

As foras brasileiras no se saram bem na Guerra da Cisplatina (18251827), sob o comando do Marqus de Barbacena, ocasionando assim a derrota do
Brasil.
A derrota na Guerra da Cisplatina deixou Gomes da Silva feliz, pois se,
antes, mal era convidado para as festas e jantares da corte, agora a sorte mudara
e, alm disso, recebera a comenda cruzmaltina. Ele, Joo Carlota e Rocha Pinto
prepararam um pequeno sarau e Gomes da Silva cometeu a imprudncia de
convidar o Marqus Barbacena para a festa. L, o assunto era Domitila, se ela
seria ou no a nova Imperatriz. Todavia, o Marqus se ofereceu para atravessar o

108
.

109

O Chalaa, p. 138.
O Chalaa, p. 161.

37

oceano e encontrar uma segunda esposa para o monarca. No dia seguinte, todos
os jornais falavam do assunto.
No captulo 48, narra-se que D. Pedro I recebe as primeiras cartas que
Barbacena lhe envia da Europa. O monarca fica desconcertado ao ler sobre as
sucessivas recusas. As cortes europias tinham o Brasil como uma frica
povoada por canibais, ou seja, a m fama do imperador j chegara ao Velho
Mundo. Depois de muitas tentativas Barbacena finalmente consegue uma esposa
para D. Pedro I.
Assim, no captulo 50, narrada a chegada da segunda esposa de D.
Pedro e como Barbacena conseguira influenciar o imperador para expulsar Gomes
da Silva. O Marqus de Barbacena insistia junto a D. Pedro para que houvesse
uma administrao mais popular. As presses se fortaleceram e ele assumiu o
comando. Depois de algum tempo, com o apoio da nova Imperatriz, disse que no
havia outro remdio seno expulsar Gomes da Silva e Joo da Rocha Pinto do
Brasil porque ambos eram absolutistas. Gomes da Silva deixa ento o Brasil:
Deliberei, pois, sair do Brasil. Fi-lo sem o mnimo desprazer, a no ser o causado pela
saudade do meu filho e de meu augusto amo. Com isso, s tive por objeto evitar-lhe
dissabores e inquietaes. Quis o meu senhor, contudo, que eu no ficasse
desamparado nas terras da Europa, e com isso concedeu-me, do prprio bolso, uma
penso anual de 25.000 francos por todo o tempo em que eu estivesse ausente da corte.
Meu destino era Londres. Algo me dizia que aquele era o lugar mais adequado para a
minha retirada da vida poltica.110

Em Londres, Gomes da Silva faz o levantamento das despesas que


Marqus de Barbacena contraiu enquanto estava na Europa em negcios do
segundo casamento de Sua Alteza. Encontra algumas irregularidades e
imediatamente envia uma carta para D. Pedro com todos os recibos das despesas
do Marqus de Barbacena. No Brasil o dio entre brasileiros e portugueses
continuava. D. Pedro I, por mais devotado que fosse, tinha uma marca original, a
de ter nascido portugus, que dava margem para insultos e provocaes. D.

110

O Chalaa, p. 183.

38

Pedro no teve recurso seno abdicar da coroa em nome do seu filho. Foi assim
que, em abril de 1831, a injria triunfou sobre a virtude111.
As memrias do Conselheiro Gomes terminam no captulo 58. Ele se
encontra em Paris. um homem solitrio na capital da civilizao. L, conheceu a
Baronesa Marie-Louise de Vieuxtemps, viva de um rico industrial. Mal sabia ela
que um jovem de 41 anos no era to desinteressado assim ao lhe fazer a corte.
Contudo, ela vem a falecer e Gomes resolve partir para Lisboa.
Essa histria, no encadeamento dos captulos, encontra-se no incio do
livro. Assim, nos captulos de nmero 01, 02 e 03, Gomes da Silva narra seu
relacionamento com a Baronesa. No quarto captulo, o narrador oferece seus
prstimos de pagamento por todas as despesas do enterro, pensando ter-se
tornado o herdeiro da Baronesa.
No quinto, sexto e stimo captulos, Gomes da Silva narra o episdio da
leitura do testamento da finada Baronesa. Esta lhe deixa apenas uma gargantilha
de ouro. Foi o que resultara da imagem que ele criara, ao tentar demonstrar que
no tinha dvidas e estava bem colocado financeiramente.
No nono captulo, aps algumas reflexes sobre o porqu no se
apressara em conseguir logo o que queria, especialmente o testamento ou o
dinheiro da Baronesa, decepcionado o narrador decidiu viajar para Lisboa.
No captulo 11, refere-se luta pelo trono portugus e ao milagre atribudo
disciplina, pois 7.500 homens tomaram as fortificaes e cidades de outro
exrcito que contava com 80.000 soldados. O problema era D. Miguel, que no
aceitara a mo de Maria da Glria, como havia sugerido D. Pedro, passando
ambos a lutar pelo trono. D. Pedro entrou em Lisboa aclamado. Joo da Rocha
Pinto explica que a vitria do Porto foi uma coisa tremenda, s comparvel ao
feito de Henrique V na memorvel batalha de Azincourt. [...] Temos agora em
nosso poder as duas cidades mais importantes do reino.112
Nos captulos 13 e 14, o Conselheiro Gomes encontra-se com D. Pedro
IV, em Lisboa, depois de uma noite de farra na casa de Lady Bloomfield. D. Pedro

111
112

O Chalaa, p. 189.
O Chalaa, p. 42.

39

o recebeu de braos abertos e diante da sua declarao de que morreria com


gosto para defend-lo D. Pedro IV contou ao amigo sobre a guerra, desde o
bloqueio martimo de Napier na foz do Tejo at a investida das tropas do Duque
de Terceira que marcharam sobre Setbal, Amora e Almada antes de entrar em
Lisboa e fazer tremular na cidade a bandeira azul e branca da Rainha D. Maria
II.113 Para que a alegria de D. Pedro IV fosse completa, faltava a chegada da
esposa, a duquesa D. Amlia, acompanhada da filha, Maria II.
No Captulo 17, narra-se que os constitucionais fiis a D. Pedro se
reuniam na casa do Rocha Pinto. Na verdade, o motivo da reunio era que o
exrcito poderoso de D. Miguel estava fazendo manobras militares nos arredores
da cidade. Quem liderava a reunio era Gamito, que se esforava por convencer a
todos que D. Pedro deveria ser confirmado como regente at a maioridade da
Rainha D. Maria II. A regncia seria a forma mais conveniente, embora Gomes da
Silva a considerasse tolice porque lutavam pela monarquia constitucional e
precisavam da figura do soberano para manter a unidade das foras.
Nos captulos 19 e 20 Gomes da Silva narra a chegada da Duquesa D.
Amlia em Lisboa. Francisco Gomes lembra que D. Amlia o havia expulsado do
Brasil, orientada pelo Marqus de Barbacena. s vsperas da chegada da esposa
de D. Pedro IV e da filha, D. Maria II, Gomes da Silva estava em dvida se iriam
conviver pacificamente. Precisava fazer boa figura e passou a se preocupar com a
aparncia. Francisco Gomes faz ento diversas experincias com roupas e
calados, para receber a Duquesa e conseqentemente apagar a imagem
negativa que esta tinha dele.
No captulo 22, aps os abraos de D. Pedro com as recm-chegadas,
Francisco Gomes, muito nervoso, lhe disse: meus respeitos, senhora Duquesa.
Ela respondeu: bom v-lo de novo, senhor Gomes.114 Embora a conversa a
respeito de D. Pedro e da famlia tenha progredido um pouco, Gomes da Silva no
tinha certeza de que ela havia mudado no que lhe dizia respeito.
As anotaes do Conselheiro prosseguem nos captulos 24 e 25.
113
114

O Chalaa, p. 53.
O Chalaa, p. 81.

D.

40

Amlia gritou desesperada ao ver D. Pedro cado no cho depois de receber a


notcia da vitria sobre o usurpador.115 Gomes da Silva presta socorro ao seu
augusto amo, e com isso consegue a simpatia de D. Amlia. Enquanto todos
ficavam no aguardo de que o prncipe obtivesse alguma melhora, Gomes da Silva
lia seu volume de aventuras Lazarillo de Tormes.
O narrador volta s teorias filosficas no captulo 31 e expe a teoria dos
Trs os, que um bbado lhe havia contado: pataco, ereo e braso.Carlota,
que cobia a fazenda, dos que prefere o pataco; o Rocha, ansioso por novas
irlandesas, fica com a ereo; e eu, que tenho pensamentos mais nobres, sou dos
que escolhe o braso.116
A rendio de D. Miguel relatada no captulo 35. D. Pedro, a Duquesa e
a Rainha D. Maria II apareceram vrias vezes sacada para serem saudados pelo
povo. No palcio ele abraou seus amigos leais: Gomes da Silva, Carlota e Rocha
Pinto. O que mais Gomes da Silva esperava, no entanto, era o reconhecimento da
Duquesa D. Amlia.
O Conselheiro Gomes queria ser visto sempre como o amigo mais
prximo de D. Pedro e da Duquesa de Leuchtenberg, como na noite do baile da
grande vitria dos constitucionais, em que estava assentado junto Famlia Real.
D. Pedro precisou se retirar, pois no estava bem. Mas o bem-estar de Gomes da
Silva acabou quando entrou Caetano Gamito, que tirou D. Amlia para uma valsa
e depois para mais algumas danas. Ao voltar mesa, ela o elogiou. Na
seqncia Gomes da Silva danou com ela.
No captulo 41, Gomes da Silva disse a Rocha Pinto que Gamito fazia
avanos sobre D. Amlia, no s sobre a poltica e Rocha Pinto lhe falou que o
grupo contrrio regncia, segundo comentrios, teria frente Gamito. Os
conspiradores tinham como alvo a Constituio de 1826, outorgada por D. Pedro
aos portugueses ao abdicar em favor de sua filha. Para os portugueses a
Constituio era retrgrada e no podia servir s reformas que pretendiam fazer.
Gomes da Silva e Rocha Pinto passaram a se preocupar com o futuro, caso D.
Pedro ficasse invlido ou viesse a falecer.
115
116

O Chalaa, p. 89.
O Chalaa, p. 116.

41

No captulo 45, os quatro amigos se encontraram para tomar vinho, D.


Pedro, Gomes da Silva, Carlota e Rocha Pinto. Enquanto falavam de mulheres D.
Pedro comeou a chorar. Afinal, fazia um ms que no podia mais fazer uso de
seu membro real.
Nos captulos 47 e 49, Gomes da Silva, depois de ouvir o seu augusto
amo dizer que estava no fim da vida, cogitava voltar para a Frana ou retornar
para o Brasil e morar com o filho que deixara por l, mas desistiu porque o filho
era ainda pequeno e no ganharia o suficiente para sustent-lo.
Gomes da Silva narra como ajudou D. Pedro para que este no morresse,
de tal modo que arrancou da duquesa a afirmao: o senhor devolveu a vida ao
meu Pedro. Mas Gamito, que trazia mais novas, procurou tirar o mrito de Gomes
da Silva ao dizer que os males de que hoje padece D. Pedro, so decorrncia da
vida equivocada que levou no passado,117 lembrando, com isso, que Gomes da
Silva era o intermediador.
No captulo 53, o narrador relembra os prenncios da morte de D. Pedro.
D. Amlia e a rainha estavam muito emocionadas. Gomes da Silva diz que estava
desolado, pois, em dois teros da vida, foi como a sombra de D. Pedro e temia as
vinganas de Gamito.
No captulo 55, morre D. Pedro IV. A partir da a vida do fiel conselheiro
mudou: quase no mais chamado ao palcio e seu sonho de baronato ficou
distante. Foi, no entanto, a um jantar oferecido por Gamito. Porm, ao final do
jantar e ao se despedir de D. Amlia, sentiu que Gamito o olhava com grande
altivez, como se fosse o prprio rei. Gamito, dirigindo-se Duquesa, disse que
Gomes precisava de um descanso, mas este lhe deu uma resposta irnica, que
acima de qualquer desejo sempre estar a vontade de meu augusto amo;
portanto, enquanto uma alma vivente puder mover esse meu corpo de pecados,
eu estarei ao servio da sua vontade expressa em testamento.118

117
118

O Chalaa, p. 90.
O Chalaa, p. 199.

42

No captulo 59, Gomes da Silva narra o dia mais feliz de sua vida. Ele e
seus amigos prepararam uma armadilha para afastar Caetano Gamito de D.
Amlia. Com isso consegue estreitar os laos de amizade com a Duquesa.
Os captulos de nmero 60 a 63 so dedicados s cartas para dar final
histria. A carta do captulo 60 dedicada ao Marqus de Barbacena, e o narrador
faz questo de dizer que destituiu Barbacena do ministrio. As cartas dos dois
captulos seguintes so enviadas pelos dois amigos fiis do narrador, Joo da
Rocha Pinto e Joo Carlota. O primeiro, tornou-se assessor de D. Maria II, e o
segundo, fazendeiro. Na ltima carta, temos Gomes da Silva escrevendo para
Gamito, contando as boas novas. Relata a seu casamento com D. Amlia e seus
projetos de vida. Ironicamente, diz que inveja o amigo por este se encontrar na
frica e, para provoc-lo, lhe escreve algumas frases de teor filosfico que
encontrou no famoso livro de Caldern de Meja:
[...] trs exemplos deve o homem imitar, cada qual vindo de um dos reinos da natureza:
dos minerais, deve aprender com a gua, que obedece forma do clice que a contm;
entre os vegetais, deve ser como a orqudea, que cresce sombra das grandes rvores;
e do mundo animal, deve espelhar-se na hiena, que segue os lees e no conhece a
fome.119

Gomes da Silva, com estas frases, quis mostrar ao "amigo" que o homem
sbio, da mesma forma que a gua, sabe se ajustar s variaes da sorte,
colocando-se sempre que possvel, ao lado dos poderosos. Ao se comparar s
orqudeas, mostra sua prpria disposio de buscar a proteo daqueles membros
da Corte mais prximos de D. Pedro e influentes junto a este. E, em relao s
hienas, a "lio" que ficaria seria a de que o homem inteligente sabe como se
postar sombra dos poderosos, sem se fazer notar, de modo a receber as
regalias e privilgios que tal proximidade proporciona.

119

O Chalaa, p. 226.

43

3 A COMPOSIO DO ROMANCE
3.1 A HISTORIOGRAFIA E A FICO
Histria, narrativa, fico. A princpio indistintas, adquirem, no sculo XIX,
com a academizao da Histria, estatuto diferenciado. Desloca-se o olhar acerca
da compreenso da realidade e vincula-se a verdade ao fato, considerando-se a
fico como algo oposto verdade. A histria passou a ser representao do
real e a fico, sobretudo o romance, a representao do possvel ou apenas
do imaginvel. Assim posto, possvel pensar a histria a partir da fico, e a
fico a partir da histria, uma vez que o compromisso de ambas bem distinto?
Quais os limites entre fico e histria?
Alguns estudiosos da histria do sculo XX mostram que h, atualmente,
uma preocupao em delimitar o espao do historiador e o do ficcionista, sem, no
entanto, impedir que existam pontos de confluncia.
Para Peter Burke, as tcnicas literrias inovadoras do sculo XX no so,
obrigatoriamente, aquelas adequadas substituio das velhas formas da histria.
H, todavia, elementos das estruturas narrativas que favorecem em muito a
inteligibilidade da representao do real. A influncia da narrativa pode ser sentida
na mudana de postura dos historiadores que esto comeando a perceber que
seu trabalho no reproduz o que realmente aconteceu, tanto quanto o representa
de um ponto de vista particular.120 O historiador deve assumir posio no
discurso, permitindo a sua visualizao como sujeito, evitando, assim, por
exemplo, uma manifestao de imparcialidade.
O historiador tambm poderia adotar a postura da pluralidade de pontos
de vista ao contar suas histrias, recorrendo aos modelos de romances. A
linearidade

da

narrativa

histrica

desapareceria

cedendo

lugar

uma

multiplicidade de formas de entendimento do real. Burke lembra, neste sentido, a


inveno da descrio densa, de Clifford Geertz, e afirma que a narrativa como

120

BURKE, Peter. A histria dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: A escrita da


histria: novas perspectivas. Traduo: Magda Lopes. So Paulo: Unesp, 1992. p. 337.

44

descrio poderia se caracterizar como mais ou menos fluida, mais ou menos


densa. A ltima permite lidar no apenas com a seqncia dos acontecimentos e
as intenes conscientes dos atores envolvidos, mas igualmente com as
estruturas, intuies e modos de pensar.121
Com isso, Burke confirma a insuficincia de recursos literrios para
preencher os vazios da escrita da histria, sem, contudo, menosprezar sua
importncia e observa que:
provvel que os historiadores possam aprender algo, a partir das tcnicas narrativas
dos romancistas como Tolstoi e Shimazaki Toson, mas no o bastante para resolver
todos os seus problemas literrios. Pois os historiadores no so livres para inventar
seus personagens, ou mesmo as palavras e os pensamentos de seus personagens, alm
de ser improvvel que sejam capazes de condensar os problemas de uma poca na
narrativa sobre uma famlia, como freqentemente o fizeram os romancistas.122

Sabe-se que o conceito de histria no fixo. Varia com o passar do


tempo e com a forma de ver a relao entre os textos histricos e os eventos em
que eles se baseiam, mas o objetivo um s, revelar o que est oculto pelo
presente. Da mesma maneira, o romance histrico varia e apresenta funes
diferentes na sociedade de acordo com o tempo. Em ambas as narrativas existe
uma verdade, mas distinta uma da outra. No se pode comparar a verdade
ficcional com a verdade histrica, porque tanto fico como historiografia so dois
procedimentos, dois caminhos diferentes.123
Para tanto vale lembrar que o texto a .Potica de Aristteles124 o primeiro
a fixar a relao de diferena entre fico e histria, a partir da definio dos
contedos e formas correspondentes Poesia e Histria. Ou seja, estabelece
uma diferenciao e delimitao entre os nveis de composio da escrita potica
e da escrita historiogrfica, com base na especificao dos elementos intrnsecos

121
122
123

124

BURKE, Peter. A histria dos acontecimentos..., op. cit., p. 339.


Ibid., p. 340.
LEENHARDT, Jacques. A construo da identidade pessoal e social atravs da histria e da
literatura.In: LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra Jathay (orgs.) Discurso histrico
e narrativa literria. Campinas, SP: Unicamp, 1998. p. 42.
BRANDO, Roberto de Oliveira. A potica clssica: Aristteles, Horcio, Longino. 5 ed. So
Paulo: Cultrix, 1992. p. 28.

45

a cada um dos gneros. A distino usual entre literatura e histria, com base nas
convenes de ficcionalidade e veracidade, derivada da preceituao aristotlica
de que a Poesia imitao das aes humanas e relata o que poderia acontecer,
ao passo que a Histria a narrao dos eventos realmente ocorridos.
Entretanto, no se pode deixar de aproxim-las, tendo em vista que
Literatura e Histria reconfiguram um tempo passado na composio narrativa. De
acordo com o ponto vista de Sandra Jathay Pesavento:
Enquanto fico, tanto a narrativa literria quanto a histrica pressupem uma ordenao
do real e a busca da coerncia atravs de uma correlao de elementos e do
estabelecimento de relaes entre os dados. Esta coerncia fictiva depende de uma
possibilidade de construo de sentido articulada no momento da escritura do texto, mas
que dever tambm ser reconstruda pelo leitor. Portanto, a construo da coerncia
narrativa dever fazer sentido atravs da leitura. Pode-se, com isso, dizer que a
contemporaneidade de um texto, literrio ou histrico, se d na medida em que a sua
coerncia ficcional resgatada atravs da significncia que lhe atribuda pelo leitor.125

Enquanto representao, a verdade histrica se mede pela sua


credibilidade, pelos fatos selecionados e pela preocupao com a pesquisa
documental. Tem-se uma memria fabricada, mas autorizada pelo discurso
cientfico. J a verdade literria caminha com a liberdade construtiva e com a
imaginao ampla do autor, provocando uma modalidade de leitura diferente do
discurso histrico.
Tentar entender a relao entre fato e evento, entre fico e realidade, e o
conflito entre romancistas e historiadores no significa, portanto, fazer uso
recorrente contextualizao histrica do discurso literrio ou tratar a literatura
como uma fonte alternativa para a construo do conhecimento histrico, mas
perceber a ligao entre texto e realidade.
Walter Mignolo, entre outros, nos mostra que o estatuto da histria
diferente do estatuto da literatura. Cada um deles implica normas e marcos
discursivos bem diferentes: o discurso histrico se insere em uma conveno de
veracidade e o literrio numa conveno de ficcionalidade. A linguagem

125

LEENHARDT, Jacques, PESAVENTO, Sandra Jathay (orgs.) Discurso histrico e narrativa


literria, op. cit., p. 12.

46

empregada na conveno de veracidade significa que o falante se compromete


com o dito pelo discurso, por isso o falante pode mentir ou estar exposto
desconfiana do ouvinte126 e o falante espera que seu discurso seja interpretado
mediante uma relao com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala,
por isso, o falante fica exposto ao erro.127 J a linguagem empregada na
conveno de ficcionalidade no compromete o falante com a verdade do dito
pelo discurso, porque ele no est exposto mentira e o falante no espera que
seu discurso seja interpretado mediante uma relao com os referentes, por isso,
o enunciante no est exposto ao erro.128
Os discursos histrico e literrio so, portanto, portadores de marcas
discursivas que se inscrevem nesta ou naquela conveno. Aqueles que
produzem tais discursos podem proceder eliminando ou reforando estas marcas.
Alm disso, afirma o crtico:
Quando no romance imita-se o discurso antropolgico ou historiogrfico, est-se diante
de um duplo discurso: o ficcionalmente verdadeiro do autor e o verdadeiramente ficcional
do discurso historiogrfico ou antropolgico imitado. Dessa maneira, a questo da
verdade na fico se apresenta quando se imita um discurso cuja prpria natureza
implica o enquadramento na conveno de veracidade. Tal , por exemplo, o caso da
imitao do discurso antropolgico ou historiogrfico.129 [grifos do autor]

De incio, preciso verificar a possibilidade de coexistncia entre os dois


discursos, isto , o de veracidade e o de ficcionalidade, com base na
apresentao do romance O Chalaa. Podemos observar que a narrativa de
Torero, quando colocada em paralelo com as narrativas histricas, apresenta
muitas semelhanas, especialmente quanto ao aspecto temtico. Tanto no
romance como nas fontes histricas os fatos e eventos so coincidentes.
Para

efeito

de

comprovao,

enumeramos

alguns

acontecimentos

relevantes da historiografia como: a vinda de D. Joo VI para o Brasil, em 1808; a

126

127
128
129

MIGNOLO Walter. Lgica das diferenas e poltica das semelhanas: da literatura que parece
histria ou antropologia, e vice-versa. In: CHIAPPINI, Lgia; AGUIAR, Flvio Wolf de (orgs.).
Literatura e histria na Amrica Latina. So Paulo: Edusp, 1993. p. 123.
Idem.
Idem.
Ibid., p. 132-133.

47

volta de D. Joo VI para Portugal, em 1820; a Independncia do Brasil, ocorrida


em 1822; a dissoluo da Assemblia Constituinte; a redao da primeira
Constituio brasileira, de 1824, na qual Gomes da Silva teve participao ativa; a
morte da primeira imperatriz D. Leopoldina, em 1826; o casamento da segunda
imperatriz do Brasil, D. Amlia, em 1829; a expulso de Francisco Gomes da
Silva, em 1830; o constante declnio de D. Pedro I nos ltimos anos de seu
reinado e sua abdicao em 1831; a influncia que Gomes da Silva exerceu sobre
o Imperador; a guerra entre D. Pedro e seu irmo D. Miguel pela posse da coroa
de Portugal; e a morte de D. Pedro, em 1834. Nesse sentido, a narrativa de Torero
se mantm fiel s datas e relatos que as fontes histricas apresentam.
Portanto, no restam dvidas de que o autor se apropriou dos documentos
para construir seu romance, ou seja, trata-se de uma narrativa ficcional baseada
em fontes histricas. Mas esses relatos entram para o romance de Torero numa
modalidade de leitura mais provocadora e simptica, que se distancia do discurso
histrico que apresenta uma modalidade mais autoritria.
Alm da fidelidade dos fatos a que o autor se mantm, o romance
apresenta tambm coincidncias em relao ao contedo textual das narrativas
histricas de Assis Cintra130, em especial obra O Chalaa favorito do Imprio.
Recorre, tambm, As maluquices do imperador, de Paulo Setbal131. Isso est
claro em vrias passagens do romance de Torero.
A ttulo de exemplificao comentaremos alguns episdios mais
relevantes. As informaes sobre os dados biogrficos de Francisco Gomes da
Silva que o romance traz so as mesmas de Assis Cintra. O narrador Gomes da
Silva relembra os principais acontecimentos sobre sua vida no seminrio
Santarm, e da boa instruo que l adquiriu, e como conseguiu fugir para o Brasil
junto com a Famlia Real. No Brasil, exercia a funo de criado do Pao para D.
Joo VI. E nas horas de folga reunia-se todas as noites, com seus amigos, no Bar
da Corneta, para se divertir, beber, tocar viola e improvisar alguns provrbios para
zombar de pessoas de autoridade na corte.

130
131

CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio, op. cit.


SETBAL, Paulo. As maluquices do imperador, op. cit.

48

Numa dessas noites, Gomes da Silva, entoando seus lundus, deparou-se


com D. Pedro. Depois de uma briga, ambos travaram amizade. Conforme afirma o
narrador: D. Pedro ficou a olhar para mim, tentando manter a seriedade, mas
depois no se conteve. Estrondou ento numa gargalhada e, depois de alguns
minutos, j estvamos a nos divertir e a beber o bom vinho de Trs-os-Montes.132
Essa mesma passagem encontra-se em O Chalaa favorito do Imprio, de
Assis Cintra: D. Pedro no se conteve. Estrondou numa formidvel gargalhada,
dessas que s os portugueses sabem dar depois de um bom vinho de Trs-osMontes.133
Outra passagem que apresenta coincidncia textual quando o Marqus
de Barbacena consegue separar o Imperador de Gomes da Silva por intermdio
da segunda esposa de D. Pedro I, que se converteu na fiel aliada de Marqus de
Barbacena. Ambos conseguem convencer o Imperador de que Gomes da Silva
era o responsvel pela impopularidade do regime e desmoralizao do Pao e que
ele precisava deixar o Brasil para que o Imperador conseguisse reconquistar sua
honra perante o povo. D. Pedro I providenciou a partida de Gomes da Silva, mas
sem deix-lo desamparado:
Quis o meu senhor, contudo, que no ficasse desamparado nas terras da Europa, e com
isso concedeu-me, do prprio bolso, uma penso anual de 25.000 francos por todo o
tempo em que eu estivesse ausente da corte.134

Esta mesma passagem encontra-se no livro As Maluquices do Imperador,


de Paulo Setbal, assim transcrita:
O imperador concedeu do seu bolsinho uma penso anual ao Chalaa de vinte e cinco
mil francos. Ao imperador custou muito a separao. Encarregou-se ele prprio de todo o
necessrio da bagagem, para que nada faltasse.135

curioso observar que o escritor parece no querer abandonar as

132
133
134
135

O Chalaa, p. 61.
CINTRA, Assis, O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 14
O Chalaa, p. 183.
SETBAL, Paulo. As Maluquices do Imperador, op. cit., p. 147.

49

caractersticas da figura de Gomes da Silva construda pela historiografia. Torero


aproveita fragmentos das narrativas histricas e os condensa em seu romance.
Ou seja, uma parfrase intertextual, em que o escritor se d ao trabalho de
juntar pedaos de diferentes partes das narrativas histricas para construir seu
romance e em especial a figura pitoresca de Gomes da Silva. Nesse sentido, o
texto de Torero implica continuidade, isto , reafirma em outras palavras aquilo
que est presente na historiografia. Conforme ressalta Bom Meihy: A
continuidade exige revises, retomadas, e implica mecanicamente o uso da
documentao. [...] Com isso no se nega de maneira nenhuma a capacidade de
alguns escritores de serem doubls de historiadores.136
Outro aspecto importante, que fecha o campo das aproximaes, so os
nomes dos personagens que ocupam o romance de Torero, tais como: D. Joo VI,
D. Pedro I, D. Leopoldina, D. Amlia, Marqus de Barbacena, Joo da Rocha
Pinto, Francisco Gomes da Silva. So figuras histricas, ou seja, pessoas que
viveram e participaram da Histria do Brasil na poca do Primeiro Imprio. Essas
mesmas figuras histricas entram para O Chalaa como personagens ficcionais.
Ao colocar a questo do estatuto de nomes reais na literatura, o romance, nesse
sentido, trabalha a relao do discurso literrio com a histria e a relao do
ficcional com o real pela mediao da subjetividade.
Em O Chalaa, h tambm personagens criadas pelo autor. O romance
apresenta uma mescla entre personagens imaginrias e personagens que migram
do discurso histrico para o ficcional. Terence Parsons, citado por Mignolo,137
distingue entidades nativas e entidades imigrantes. Nativas so as personagens
criadas pela imaginao do autor e imigrantes aquelas que mudam de um mundo
onde as reconhecemos como entidades existentes para um mundo ficcional.
Aceitvamos a existncia de Francisco Gomes da Silva, por exemplo, antes dO
Chalaa ser escrito e, agora, no romance, aceitamo-lo como personagem de

136

137

MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom. Viagem em torno de Mignolo: a literatura e a histria. In:
CHIAPPINI, Ligia; AGUIAR, Flvio Wolf de. Literatura e histria na Amrica Latina. So
Paulo: Edusp, 1993. p. 151.
MIGNOLO, Walter. A lgica das diferenas e a poltica das semelhanas..., op. cit., p. 125126.

50

fico e pessoa histrica ao mesmo tempo. As figuras histricas presentes no


romance so transformadas em personagens. Elas podem, ou no, apresentar
caractersticas que tinham antes de imigrarem para o mundo ficcional. A deciso
de como apresent-las do narrador e, em ltima instncia, do autor.
Torero constri a personagem Gomes da Silva servindo-se das mesmas
caractersticas apresentadas nas narrativas histricas. Ou seja, a figura de Gomes
da Silva entra para o romance de forma semelhante quela apontada pelas
narrativas histricas de Paulo Setbal e Assis Cintra. As intenes de Torero, no
entanto, no tm o sentido de provar que os fatos narrados tenham acontecido
concretamente, mas sim representar o imaginrio das venturas e desventuras de
um Brasil monrquico, por meio de uma figura histrica secundria, no caso,
atravs do ponto de vista de um criado de quarto.
No entender de Antonio Candido, as personagens que representam a
possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de
identificao, projeo e transferncia. Surge a um interessante paradoxo: a
leitura do romance depende, por parte do leitor, da aceitao da verdade do
personagem, o qual, por definio, um ser fictcio. Da Candido considerar que:
O problema da verossimilhana no romance depende desta possibilidade de um ser
fictcio, isto , algo que sendo uma criao da fantasia, [ainda assim] comunica a
impresso da mais ldima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance
se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relao entre o ser vivo e o ser fictcio
manifestada atravs do personagem, que a concretizao deste.138

Isto posto, pode-se dizer que Jos Roberto Torero refora, assim, as
marcas do discurso historiogrfico medida que trabalha com informaes
colhidas

das

fontes

histricas,

principalmente

quando

registra

alguns

acontecimentos que ocorreram durante o Primeiro Reinado, como, por exemplo, a


independncia do Brasil e a redao da primeira Constituio brasileira. Por um
lado, como romance que se apropria de acontecimentos histricos, a verdade
pode ser verificada entre o que se conta no romance e os relatos dos quais se

138

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de fico. So Paulo: Perspectiva, 2002. p. 55.

51

apropria. Sustenta-se, assim, como obra cujas partes do enunciado podem ser
confirmadas por elementos externos, no caso os documentos histricos. Temos,
desse modo, em O Chalaa, a verdade de outro discurso, o da conveno da
veracidade. Por outro lado, como obra nica e acabada em si mesma, aquilo que
se conta em O Chalaa uma verdade prpria. Desta forma, a verdade no
romance pode ser verificada em relao obra, e ao que ela relata.
Temos em O Chalaa um dilogo entre estas duas verdades. Torero relata
com certa fidelidade aquilo que est canonizado pelo discurso da histria oficial e
ficcionaliza aquilo que pode ser ficcionalizado, aquilo que recupera atravs da
memria ou cria atravs da imaginao.
Quando Torero registra o episdio da dissoluo da Constituinte e
imediatamente D. Pedro I lidera o trabalho para uma nova carta constitucional que
trazia a juno das constituies europias e alm dos trs poderes, o Judicirio,
o Executivo e o Legislativo, houve o acrscimo do poder Moderador, temos o fato
histrico comprovado, registrado pela historiografia. Mas que Gomes da Silva
tivesse elaborado a carta da Constituio brasileira e D. Pedro I apenas a
houvesse aprovado ficcional, a verdade ficcional. Segundo Tarqunio de
Sousa, o Gomes da Silva foi apenas o escriba de D. Pedro I.
A princpio podemos dizer que a pesquisa histrica que encontramos em
O Chalaa serve para dar verossimilhana ao mundo ficcional, isto , fazer o leitor
acreditar naquilo que o narrador est dizendo. Isto acontece porque a existncia
do narrador estava documentada antes que o romance fosse escrito.
O discurso dos historiadores apresenta uma viso de mundo diferente do
discurso da obra de Torero. Na historiografia, o narrador em princpio, no pode
abandonar sua posio de terceira pessoa139 e da sua correspondncia com o
autor. J o narrador ficcional pode assumir a posio de um narrador em primeira
pessoa, que se assume como fator complicador, considerando que nele vigora a
coincidncia entre o autor e o narrador, posio distinta das obras historiogrficas.

139

LIMA, Luiz Costa. A aguarrs do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1989. p. 103.

52

Chalaa

de

Torero

desconstri

as

estratgias

da

narrativa

historiogrfica e mesmo realista e prope um jogo com o real. Insere-se, a, um


aspecto da maior importncia e que no pode ser desprezado na construo do
romance: o carter memorialstico. Temos ento um texto subjetivo, filtrado pela
viso do narrador.
Os episdios que marcaram a vida do Imperador so vistos do ponto de
vista do secretrio particular, Gomes da Silva. Escolhe-se, digamos assim, o ponto
de vista do criado de quarto"
Para o criado de um heri no existem heris, diz um provrbio, ao qual eu
acrescentaria [...]: no porque o homem no seja um heri, mas porque o outro um
criado. Este tira as botas do grande homem, ajuda-o a deitar-se, sabe que ele bebe um
bocado de champanhe etc. Os personagens histricos, quando descritos nos livros de
histria por tais criados, adquirem m reputao. Eles so colocados no mesmo nvel, ou
at algumas vezes degraus abaixo, da moralidade de tais requintados conhecedores do
ser humano.140

A ateno do autor se volta mais detidamente para uma narrativa


fragmentada, incluindo alternadamente a biografia do Conselheiro Gomes, e o
dirio de anotaes, que o momento presente do narrador. Seguindo sua
viagem de retorno a Lisboa, Gomes da Silva relembra da ltima vez que l esteve:
[...] mas j se vai um quarto de sculo da ltima vez que estive em Lisboa. Eu contava
ento dezoito anos, e estava a ponto de receber as ordens sacerdotais em Santarm. [...]
J em Santarm eu tinha ouvido que o governo da Inglaterra pressionava o nosso bom D.
Joo VI a mudar-se com toda a corte para o Brasil. [...]141

Verificamos, dessa forma, que as implicaes do discurso memorialstico


levam a uma realizao do passado conforme o ponto de vista do narrador. O
passado s pode ser recriado a partir da sua insero no presente:
aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos ns misturamos milhares de
pormenores da nossa experincia passada. Quase sempre essas lembranas deslocam

140
141

HEGEL, Georg Friedrich. Filosofia da histria. Braslia: Editora Universidade de Braslia,


1995. p. 34.
O Chalaa, p. 44-45.

53
nossas percepes reais, das quais retemos ento apenas algumas indicaes, meros
signos destinados a evocar antigas imagens.142

O distanciamento que se evidencia aqui, entre o documento e a narrativa


ficcional de O Chalaa, que o envolvimento do narrador parece impor-se,
prestando um cunho emotivo narrativa do romance.
O discurso das narrativas histricas difere do discurso de O Chalaa, pois
o subsdio dos historiadores o passado evidenciado em documentos e registros
concretos que aconteceram no Primeiro Imprio brasileiro. Torero, por sua vez,
recria um mundo j criado e contado pelos historiadores.
Os historiadores estabelecem algumas distncias no seu processo
discursivo. Buscando a realidade intangvel do passado, esta s ser percebida
para o historiador por meio do referente, no limite, o documento, no caso, os
manuscritos impressos sobre os relatos do Primeiro Imprio. Essa percepo est
organizada por uma linguagem e uma prxis, que vo definir o tipo de construo
da realidade do passado.
O discurso da obra de Torero, ao contrrio, o de desestabilizar a viso
de mundo apresentada pelos historiadores, isto , o romancista utiliza uma
narrativa fragmentria e metalingstica, em que a histria se repete como uma
stira poltica do Brasil Imprio, ou seja, recria a mesma histria com nova
roupagem.
Em suma, as narrativas histricas, e a obra de Torero, so prximas mas
distintas. No caso do romance, notamos que o escritor vale-se no s dos
documentos histricos, a princpio dispersos, mas tambm das narrativas
histricas j existentes para criar uma nova verso da histria oficial, ou seja, uma
verso satrica e humorstica dos bastidores do Imprio.
A verso ficcional do romance se constitui pelo vis do humor e da
intertextualidade, desconstruindo a grandiosidade dos gestos consagrados pela
histria oficial, para oferecer ao leitor cenas de bastidores, segredos de alcova e

142

BERGSON, Henri. Matria e memria. In: BOSI, Ecla. Memria e Sociedade: lembranas de
velhos. So Paulo: EDUSP, 1987. p. 9.

54

mexericos do Imprio. Mas desses procedimentos trataremos nas sees que


seguem.
3.2 O NARRADOR, O TEMPO E A MEMRIA
Em O Chalaa temos uma autobiografia de cunho ntimo, vista pela tica
do narrador Francisco Gomes da Silva, conselheiro de D. Pedro I. O escritor,
apoiado em relatos histricos factuais, constri seu romance como fico, como
podemos observar j nas orelhas do livro, normalmente espao do editor, aqui
ocupadas por uma extravagncia: uma psicografia de D. Pedro I, conforme
informa o seu autor:
Mas Francisco Gomes tambm sabia fazer rir. No toa que seu apelido significa
gracejo, caoada, zombaria. Seu humor fino e inteligente, seu talento musical (tirava
inspirados lundus de sua viola) e sua habilidade ao intermediar meus encontros com as
filhas de Eva fizeram com que ele fosse minha companhia favorita enquanto no
admirava as flores pelo lado da raiz.143

Torero costura alguns episdios da histria oficial, mais precisamente o


perodo do Primeiro Reinado brasileiro, bem como intenta entrelaar o destino do
narrador Gomes da Silva, uma personalidade que realmente existiu, para, com
eles, construir a sua histria.
O autor preocupa-se mais com o modo de contar a "histria" e construir
seus captulos do que com a prpria Histria. A voz do narrador passa a ser o
centro do romance. A todo instante ele se faz ouvir, por meio de interrupes
explcitas, digresses e comentrios margem do texto. A irreverncia e
sagacidade do virtuoso Francisco Gomes da Silva percorrem todas as pginas do
livro, isto , atingem o prprio formular da obra.
Torero insere em seu discurso narrativo diversos elementos, como dirio,
cartas e memrias, fazendo assim um uso constante de gneros intercalados. O
narrador, sujeito j quarento, se pe a escrever um dirio sobre sua vida em

143

O Chalaa. Contracapa.

55

Portugal e tambm sua biografia durante o perodo em que esteve no Brasil.


Organizados em blocos relativamente curtos, os 63 captulos dO Chalaa fluem
segundo o ritmo do pensamento do narrador.
Como quem determina o ritmo do tempo narrativo o prprio narrador,
Francisco Gomes da Silva opera no eixo da durao e no do tempo quantitativo.
A sucesso das idias do narrador determina as articulaes temporais da obra.
Atravs do tempo narrativo, o narrador age a seu bel-prazer sobre o tempo da
ao.
Qual o tempo da ao em O Chalaa? relativamente fcil de se
reconstituir. Quando fugiu para o Brasil junto com a famlia Real, em 1808,
Francisco Gomes da Silva contava com 17 anos. Durante o ano de 1809 passava
os finais de tarde encontrando-se com seus amigos bomios, jogadores,
cantadores do Rio de Janeiro num botequim da cidade. A partir da, segue em
suas atividades de criado da corte at que D. Joo VI deixa o Brasil, em 1820. No
mesmo ano, D. Pedro I escolhe Gomes da Silva como seu criado particular,
tornando-se ambos amigos ntimos.
Em 1822, Gomes da Silva acompanha o seu amo para uma viagem
provncia de So Paulo, onde este proclama a Independncia. O narrador est
agora com 31 anos. Dois anos mais tarde, D. Pedro I outorga a primeira
Constituio do Brasil.
No ano de 1830, entretanto, o ministro Marqus de Barbacena consegue,
por intermdio de D. Amlia, segunda esposa do Imperador, expulsar Francisco
Gomes da Silva do Brasil. Este fixa residncia em Londres, retirando-se da vida
poltica.
Em 1831, o Imperador abdica da coroa em nome de seu filho e
encaminha-se para a Europa. No ano seguinte, j com 41 anos de idade,
Francisco Gomes da Silva arquiteta planos para casar com a Baronesa Marie
Louise, mulher sessentona, que, no entanto, morre em seguida. Gomes da Silva
segue, ento, viagem para Portugal, encontrando-se a, entre 1832 e 1835,
quando escreve o caderno com o dirio de anotaes.
Ora, toda essa cronologia sistematicamente distorcida pelo desejo do

56

narrador. O tempo exterior s existe quando refletido na subjetividade de


Francisco Gomes da Silva. Tudo se passa como se o narrador-personagem,
depois de ter organizado sua obra segundo linhas cronolgicas normais, tivesse
se dado ao trabalho de intercalar os captulos cuidadosamente.
Devemos lembrar que Torero no Francisco Gomes da Silva. O narrador
cria um tempo narrativo que remaneja o tempo da ao, atravs de tcnicas como
flashbacks e flashforwards, o que confere um tom fragmentrio narrativa, com
movimentos de avano e recuo constantes, sem quebra da continuidade do
discurso, que evoca ou antecipa acontecimentos, de modo a deslocar a mesma
ao ora para o passado ora para o futuro.144
Assim como o tempo, o espao tambm desconstrudo e transposto
para dentro da narrativa, transformando-se em vivncia subjetiva. O espao
percorrido pelos personagens no se estende em linha reta de um ponto a outro.
O movimento espacial em O Chalaa se parece mais com o do romance
picaresco, como o de Lazarillo de Tormes, por exemplo, citado pelo prprio
narrador. 145
O espao urbano do Rio de Janeiro se atrofia, encolhe, desrealiza-se,
reduzindo-se ao Palcio So Cristvo e ao Bar da Corneta, onde Gomes da Silva
se encontrava com os amigos da boemia. O espao tambm representado pelas
diversas viagens encetadas pelo narrador, como, por exemplo, do Rio a So
Paulo, quando este acompanhou o seu amo; da travessia martima de Portugal ao
Rio, quando da chegada ao Brasil junto com a Famlia Real; do Rio a Londres,
quando da expulso do narrador do Brasil; e, depois, da Frana a Portugal,
quando Gomes da Silva reencontra o seu amo.

144
145

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2 ed. So Paulo: tica, 2000. p. 32.


O gnero de literatura picaresca surgiu na Espanha no sculo XVI com a obra A Vida de
Lazarillo de Tormes, de autoria annima, estendendo-se pelo sculo seguinte com outras
obras como Guzmn de Alfarache, de Mateo Alemn e El Buscn, de Francisco de
Quevedo, entre outros. Estes livros trazem caractersticas similares da modalidade clssica
picaresca. Em geral, so autobiografias com inteno de desmascarar a sociedade da poca
atravs de meios ilcitos, com a finalidade de uma possvel ascenso social. (GONZALEZ,
Mrio M. A saga do anti-heri: estudo sobre o romance picaresco espanhol e algumas de
suas correspondncias na literatura brasileira. So Paulo: Nova Alexandria, 1994. p. 11-80).

57

O espao vivido e recordado de modo subjetivo, ao sabor dos interesses


do viajante, interessado em pessoas, movido por seus afetos e sentimentos, e no
pela fria racionalidade de um guia turstico. Assim, ao narrar sua viagem a Lisboa,
volta ao ponto de partida:
Esse j o quinto dia em que meus ossos esto a sacolejar dentro de uma sege
apertada e desconfortvel. Estamos agora atravessando Salamanca. Com o dinheiro da
venda de algumas roupas, pude reunir os recursos necessrios para a comida e os
pousos. Se tudo correr bem, poderemos at trocar os cavalos antes de entrar na
Lusitnia.146

Em relao ao estilo narrativo empregado em O Chalaa, cumpre destacar


que um dos elementos mais relevantes consiste no contraste entre a linguagem
culta, formal e o tom coloquial no romance, pois tal contraste ajuda a criar efeitos
cmicos e humorsticos. A linguagem do narrador sutil, lusitana, enquanto que
seus amigos Joo da Rocha Pinto e Joo Carlota apresentam uma linguagem
estereotipada, coloquial, brasileira. Na verdade, o narrador busca sempre se
"eximir" do surgimento de qualquer expresso de natureza chula em sua narrativa,
jogando a "culpa" por este fato sobre seus colegas de boemia. Um exemplo disso
pode ser visto no excerto a seguir:
.

'Diabo! J faz dois dias que no fodo uma mulher!' Essas mesmas palavras, ditas com
essa mesma crueza e mpeto, foram pronunciadas pelo meu amigo Joo Carlota por
ocasio da passagem de uma vendedora de doces muito delgadinha, por sinal,
frente de nossa janela. [...] 'Na frica, por Deus! No h nada como foder na frica!'
Assim respondeu de chofre o Carlota, deixando-me um tanto mais confuso do que j
estava quando constatei que a minha ltima desobedincia ao sexto mandamento tinha
se verificado h... trs semanas.147

O excerto acima demonstra as intenes de Torero de rechear o texto da


sua obra com variadas terminologias de ndole sexual, que ajudam a garantir o
nvel esttico da narrativa ao passar do jocoso ao srio, e do srio ao jocoso
alternadamente. No entanto, essa mescla de seriedade e jocosidade ditada pelo

146
.

147

O Chalaa, p. 34.
O Chalaa, p. 47.

58

discurso do narrador, que lana suas razes numa das tradies narrativas do
Ocidente. Esse assunto ser tratado adiante com maior profundidade.
3.3 O CHALAA E A TRADIO LITERRIA
3.3.1 A stira menipia
Num primeiro momento, verifica-se que a obra de Torero parece remeter
tradio da stira menipia, que se encontra, tambm, em Laurence Sterne e
Machado de Assis. Por isso, traaremos as afinidades entre a escrita de Sterne e
de Machado, com especial ateno ao Tristram Shandy e s Memrias pstumas
de Brs Cubas. Em seguida estabeleceremos paralelos destes dois romances
com a obra de Torero.
Quintiliano (I. d.C.), em De institutione oratria, X, l, atribua a criao da
stira aos latinos. No entanto, sua constituio como gnero literrio se deve, sob
influncia, a muitas fontes gregas, alm das latinas. H, na verdade, dois estilos
satricos: um de vertente horaciana, de cunho moralista e com ntida inteno de
combater as deformaes humanas e outra, chamada de juvenaliana, cujos
autores principais so Varro, Sneca e Petrnio, denominada stira menipia.
A stira juvenaliana concebida para provocar o riso, a partir da ironia, da
raiva provocada, trazendo tona o que est sob a mscara da hipocrisia.
Observa-se o srio a partir do complexo simbolismo da mscara: da a pardia, a
caricatura, e a careta, ingredientes do grotesco. No raro o grotesco deriva em
melanclico; que a expresso do humor destrutivo, quando presente no
grotesco, nos ope realidade do mundo circunscrito esfera da perfeio oficial
que nos imposta.
Essa linha stirica deve sua denominao a Menipo de Gadara, filsofo da
escola cnica (sculos IV-III a.C.), um escravo liberto em Tebas. Quase todos os seus
escritos se perderam, restando apenas alguns ttulos, entre os quais uma
necromancia, na qual Menipo faz uma pardia de Homero e de vrias stiras, em que
se misturavam prosa e verso, o que os antigos chamavam estilo prosimtrico.

59

A seguir vem Marcus Terentius Varro ou Varro (116 a 227 a.C). Escreveu
stiras romanas, de teor moralizante, mas tambm stiras ditas menipias,
imitadas de Menipo, que denunciava os vcios da humanidade pelo riso e no pela
diatribe ou pelo vituprio. Na tradio grega, o satirista um spoudogeloion, um
personagem que atravs do seu riso, gelon, fala com seriedade, spoudaion.148
Essa tradio passa por Sneca que, alm de ter escrito diversos tratados
de filosofia moral, teve tempo para compor a primeira stira menipia
relativamente completa, intitulada Apokolokyntosis,149 que tinha por objetivo
satirizar o imperador Cludio.
S Rego salienta que a Apokolokyntosis uma narrao dos
acontecimentos passados no cu e no inferno no dia 13 de outubro do ano 54 de
nossa era,. dia da morte de Cludio.150 No texto, Cludio sobe aos cus, como
ocorrera com Augusto e Tibrio, e ali recebido por Hrcules, que no o
reconhece. Cludio julgado pela Assemblia dos deuses, que o condenam ao
Hades; desce terra assistindo a seu prprio enterro e, chegando ao mundo
subterrneo, julgado sumariamente e condenado a servir como escravo. Em sua
inteno e em seu contedo, um texto poltico, em que Sneca zomba do
Imperador que o tinha exilado. Em sua forma, uma stira menipia, pelo carter
intertextual no dilogo entre Cludio e Hrcules e tambm pela pardia dos vrios
textos de Homero, pela mistura do discurso erudito e popular e pela mescla de
prosa e verso.
uma alternncia caprichosa, decidida por um narrador que se permite
tudo, passando desinibidamente de um gnero para outro, da prosa para o verso,
do registro vulgar para o sublime.
Mas a tradio da stira menipia na Antiguidade centra-se sobretudo em
Luciano de Samosata.(aproximadamente120-140 d.C.) Nascido na pequena
cidade Sria chamada Samosata, Luciano era de origem humilde, tendo comeado

148
149
.

150

REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia: Machado de Assis, a stira menipia e a


tradio lucinica. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989. p. 3 6.
Ibid., p. 37.
REGO, Enylton de S. O Calundu e a panacia..., op. cit., p. 38.

60

a vida como aprendiz de escultor. Mais tarde, fixou residncia em Atenas para se
dedicar s letras, onde escreveu suas principais obras. Acabou sua vida como alto
funcionrio do Imprio Romano. Luciano deixou cerca de oitenta obras que
compreendem as mais variadas formas literrias, entre as quais figuram Filosofias
venda, O pescador, O dilogo dos Mortos, Lcio, Histria verdadeira e o Asno
entre tantas outras.
Mikhail Bakhtin nos traz uma ampla discusso acerca da teoria da stira
menipia. Esse gnero, segundo o terico russo, remonta suas razes diretamente
ao folclore carnavalesco, e que um gnero carnavalizado, extraordinariamente
flexvel e mutvel como Proteu, capaz de penetrar em outros gneros.151 O
gnero stira menipia desenvolveu-se a partir da antiguidade clssica e se
enquadra no campo srio-cmico.
Segundo Mikhail Bakhtin, dois gneros so determinantes no campo sriocmico: o dilogo socrtico e a stira menipia. Acrescenta, ainda, que a
variedade de desenvolvimento do romance no campo srio-cmico traduz o
dialogismo.
O dilogo socrtico era tido quase como um gnero memorialstico, mas,
com o passar dos tempos, esse gnero comea a enveredar para o campo da
narrativa, manifestando-se contra o monologismo oficial que se pretende dono de
uma verdade acabada.152
J no sculo IV de nossa era Luciano de Samosata transforma Menipo em
personagem e escreve uma srie de dilogos, uma srie de aplogos, de
narrativas em que o personagem central nos ensina a stira que no d
conselhos, a stira que nos deixa com a liberdade de assumir um ponto de vista
diante do ridculo apresentado. Luciano vai, portanto, ser o salvador de uma
linhagem literria, cuja fora hoje verificamos ser o suporte de uma cultura
moderna e, se quisermos, sem exageros conceituais, ps-moderna.

151
152

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski.Traduo: Paulo Bezerra. 3. ed.


Rio de Janeiro: Forense-universitria, 2002. p. 113.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 109.

61

A partir de ento, a stira menipia tornou-se um dos principais veculos


portadores da cosmoviso carnavalesca na literatura at nossos dias.153 Bakhtin
discorre sobre caractersticas prprias da stira menipia, apresentadas
sucintamente a seguir.
uma stira simultaneamente cmica e trgica. sria, mas
desorganizada poltica e socialmente. Nela, a fantasmagoria e o simbolismo
(quase sempre mstico) fundem-se com um materialismo macabro. A stira
menipia se caracteriza por uma excepcional liberdade de inveno temtica e
filosfica. A inveno e a fantasia tm a funo ideolgica de provocar e
experimentar a verdade. Cria situaes extraordinrias para provocar e
experimentar uma idia filosfica154 ou seja, diz das aventuras das idias ou das
verdades no mundo.
O universalismo filosfico da stira menipia abrange trs planos: a terra,
o cu e o inferno. Procura apresentar as palavras derradeiras, decisivas e os atos
do homem, retratando em cada um deles o homem e a vida humana em sua
totalidade, caracterizando-se pela sncrise (ou confronto) dessas ltimas atitudes
no mundo, j desnudadas. Tambm caracterstica da menipia o dilogo no
limiar, isto , na passagem da vida para a morte, de um estado para outro.
A stira menipia apresenta inusitados estados psicolgico-morais
anormais do homem, loucura, dupla personalidade, devaneio incontido, sonhos
extraordinrios, suicdios, entre outros. So tambm caractersticas desse gnero
cenas indecorosas de conduta extravagante, de discusses e declaraes
intempestivas, ou seja, as diversas violaes da marcha universalmente aceita e
comum dos acontecimentos, das normas de comportamento estabelecidas e da
etiqueta, incluindo-se tambm as violaes do discurso,155 pois a stira menipia
joga com contrastes agudos e mudanas bruscas, que livram o comportamento
humano das normas e motivaes que o determinam.

153
154
155

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 113.


Ibid., p. 114.
Ibid., p. 117-118.

62

A stira menipia uma espcie de gnero jornalstico de sua poca,


enfocando em tom mordaz a atualidade ideolgica. Serve-se de acontecimentos
da poca, das tendncias da evoluo do cotidiano, dos tipos sociais e surge em
todas as camadas da sociedade para discutir os conflitos polticos, filosficos,
ideolgicos, religiosos e cientficos, tendncias correntes da atualidade.
Procurando centrar seu referencial terico na stira menipia, apresentada
por Bakhtin, Enylton de S Rego considera que esse gnero vem de uma tradio
grega, dos dilogos socrticos, e mistura temas especificamente filosficos com
assuntos de retrica e dialtica, salpicados de hilaridade, para que os leitores
menos informados pudessem ser atrados sua leitura por seu carter jocoso.156
De carter srio e cmico, a stira menipia abriga o popular, o erudito e o
burlesco concomitantemente, e contrape-se stira de tradio romana,
concebida como instrumento de reforma contra o vcio humano ou o pecado,
partindo de um ponto de vista moral e religioso.
Na viso de Mikhail Bakhtin, h trs peculiaridades do srio-cmico, que
surgem como produto da influncia transformadora exercida pela cosmoviso
carnavalesca: um novo tratamento da realidade, um tratamento profundamente
crtico da lenda, sendo, s vezes cnico desmascarador, e por fim, variados
gneros e estilos, bem como a mistura de vozes de todos esses gneros.157
Caracterizam-se tais gneros pela politonalidade da narrativa, pela mistura do
sublime e do vulgar, do srio e do cmico, e pela presena de gneros
intercalados: cartas, manuscritos encontrados, dilogos relatados, pardias dos
gneros elevados, citaes recriadas em pardia, etc.158 A partir da surge a
fuso dessas manifestaes, enfraquecendo a hierarquia entre elas.
Segundo Bakhtin, o dinamismo da linguagem e da cultura popular se
integra a elementos eruditos, fazendo uma renovao na literatura. O terico russo
destaca que o gnero determinado como "dilogo socrtico" teve breve durao.
Entretanto, no processo de sua desintegrao formaram-se outros gneros

156
157
158

REGO, Enylton de S, O calundu e a panacia..., op. cit., p. 32.


BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op.cit.,p.108.
Ibid., p.108.

63

dialgicos, dentre os quais, a stira menipia, que evidentemente no pode ser


considerada como produto genuno da decomposio do dilogo socrtico, pois
suas razes remotam diretamente ao folclore carnavalesco, cuja influncia
determinante , nela, ainda mais considervel que no dilogo socrtico. Bakhtin,
dessa forma, apresenta as caractersticas da stira menipia com suas
incorporaes hbridas, tendo como um de seus integrantes a pardia.
A pardia um elemento agregado stira menipia e de todos os
gneros carnavalizados, organicamente estranha aos gneros puros (epopia e
tragdia), na qual o tema principal consiste na crtica de instituies, pessoas,
grupos ou hbitos sociais, por meio do exemplo moralizante e do humor.
Conforme observa Bakhtin:
Na Antiguidade, a pardia estava indissoluvelmente ligada cosmoviso carnavalesca. O
parodiar a criao do duplo destronante, do mesmo mundo s avessas. Por isso a
pardia ambivalente. A Antiguidade, em verdade, parodiava tudo: o drama satrico, por
exemplo, foi, inicialmente, um aspecto cmico parodiado da trilogia trgica que o
antecedeu. Aqui a pardia no era, evidentemente, uma negao pobre do parodiado.159
[grifo do autor]

Foi Bakhtin, sobretudo, quem teve o mrito de caracterizar a permanncia


da tradio lucinica na literatura moderna, atravs de suas anlises das obras de
Rabelais e Dostoievski. Alm dos estudos de Bakhtin, sobre a tradio lucinica
na literatura ocidental, h tambm, como j indicado, o estudo de Enylton de S
Rego, que em seu trabalho sobre os romances de Machado de Assis, segue
exatamente aquela proposio bakhtiniana.
Enylton de S Rego160 quem nos fornece as principais caractersticas da
obra de Luciano. Na primeira, Luciano liga dois gneros literrios at ento
distintos, o dilogo filosfico e a comdia. Com isso, ao tratar com seriedade
assuntos frvolos e com zombaria os assuntos srios, resulta numa produo
hbrida dos respectivos gneros. Luciano dessacraliza as respectivas linguagens,
relativizando as crenas dogmticas a que aderiram tanto os comedigrafos, que

159
160

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op.cit., p. 127.


REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia..., op. cit., p. 45-51.

64

criticavam os costumes da poca em nome de princpios morais e universais,


quanto os filsofos, que admitiam a existncia de verdades absolutas.
Segunda caracterstica: Luciano utilizava sistematicamente a pardia,
tanto para caricaturizar os gneros e convenes literrias do estilo de Homero,
como para fazer citaes truncadas de autores clssicos ou contemporneos.
Como exemplo de temas literrios contemporneos, o filsofo grego nos
apresenta Menipo, que desce aos infernos, o que constitui uma pardia no s do
canto XI da Odissia, em que Ulisses visita o reino das almas, mas tambm como
uma pardia do prprio Menipo, autor do texto Nekhyia, do qual s se conservou
o ttulo.161
A terceira caracterstica a extrema liberdade da imaginao com relao
s exigncias da verossimilhana, colocadas em prtica por Luciano em seu texto
Histria verdadeira, ou seja, ele produz um texto em que no existe uma s
palavra verdadeira.
A quarta caracterstica praticada por Luciano a stira no moralizante,
sria e cmica ao mesmo tempo, dos costumes de sua poca. Nisso Luciano se
coloca claramente margem da tradio que nos legou o prprio conceito de
stira isto , da tradio da stira romana.162
A stira romana ou era agressiva, como em Juvenal, ou sorridente, como
em Horcio, mas era sempre moralizante. Em ambas predominava a dimenso
sria, e o ridculo e a ironia eram subordinados, simples meios a servio de uma
preocupao moral. Em Luciano, ao contrrio, o srio e o cmico coexistem, sem
que um predomine sobre outro. Luciano relativista e no hesita em rir de si
mesmo.
E a quinta e ltima ocorre quando o filsofo grego assume o ponto de vista
do observador distanciado, do Kataskopos. Como explica S Rego:
O aproveitamento da viso-de-mundo expressa pelo ponto de vista do Kataskopos
assume em Luciano trs aspectos distintos: no primeiro deles, vemos um narrador que,
presente no texto, v o mundo do alto; no segundo, um narrador que, ausente, mero

161
162

REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia..., op. cit., p. 53.


Ibid., p. 60.

65
observador de suas personagens; e, no terceiro, temos um narrador que, embora
presente no texto, no deixa identificar-se a sua viso-de-mundo.163

A presena de Luciano revivida no Renascimento, sobretudo na obra de


Erasmo de Rotterdam (1465-1536), em o Elogio da Loucura. Especialmente nesta,
Erasmo no quisera tratar de algum em especial, mas da louca humanidade.
Ironiza, portanto, os poderes institudos e desnuda os sentimentos que percorrem
os seres humanos em suas foras subterrneas. Como Luciano, Erasmo
transgride a classificao tradicional dos gneros, parodia

ou cita de modo

truncado passagens de autores clssicos, produz um texto em que o fantstico


desafia todas as leis da verossimilhana. Assim como Luciano, Erasmo situa-se
na perspectiva do observador distanciado, do ponto de vista de Menipo. De fato,
Erasmo apresenta o seu discurso da Loucura, do alto do seu plpito.164
A essa tradio filia-se tambm Robert Burton, autor de Anatomia da
Melancolia. Trata-se de um texto publicado em 1621, pouco estudado pelos
crticos. Burton assina sua Anatomia da Melancolia, utilizando o pseudnimo de
Demcrito Jnior, para reagir contra a loucura dos homens. Atravs do riso, pese na posio de Demcrito.
Robert Burton, em Anatomia da Melancolia, parodia o discurso cientfico
das anatomias. Demcrito, encontrando-se no alto de uma elevao, afirma que
est fazendo anatomia, ou seja, procurando, atravs desse esforo, encontrar o
melhor remdio para a cura da melancolia ou da loucura. Descobriria, portanto,
uma panacia medicinal que curaria de uma vez por todas a humanidade deste
mal da loucura e da tristeza.
Em resumo, Burton tambm seguiu a linhagem lucinica ao ignorar as
fronteiras de gnero, produzindo um texto que em parte cientfico e em parte
literrio; ao apropriar-se parodisticamente de textos alheios e ao assumir o ponto
de vista do observador distanciado. S Rego conclui que o riso de Demcrito
sobrevive com a obra de Sterne na literatura inglesa do sculo XVIII.165

163
164
165

REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia..., op. cit., p. 64.


Ibid., p. 75.
Ibid., p. 81.

66

3.3.2 O Chalaa e a forma solta de Laurence Sterne e Machado de Assis


Sabe-se que a tradio lucinica foi um gnero rejeitado pela igreja
durante a Idade Mdia, devido ao seu tom pago e imoral. Mas a partir do sculo
XVI, o lucianismo passou a difundir-se por toda a Europa, tendo como influncia a
obra de Erasmo de Rotterdam, cujos textos apresentaram a mais tpica inspirao
lucinica.
Enylton de S Rego conclui que Sterne se filiou linhagem menipia
atravs de Robert Burton, de cuja Anatomia da Melancolia retirou inmeras
citaes, quase sempre truncadas. Considerando o estilo parodstico, o
menosprezo pelos gneros e convenes literrias do perodo neoclssico, a
nfase no riso como remdio para curar os males melanclicos e as famosas
digresses, Sterne foi, sem sombra de dvida, um seguidor exemplar da tradio
lucinica. Basta lembrar que ao parodiar os textos de Burton, Sterne seguiu a
tradio lucinica de forma indireta que, mais tarde, chegaria obra de Machado
de Assis.
Haroldo de Campos166 ressalta que Sterne foi um extraordinrio precursor
dos rumos do romance moderno, que incorporou em suas obras o gnero
parodstico, irnico e antiilusionista. O romancista pe a nu a estrutura do
romance, substituindo a stira potica pelas tcnicas de impresso mais populares
da prosa satrica. O romancista faz uso de uma linguagem coloquial, que ajuda a
criar efeitos cmicos e satricos que contrastam com a solenidade literria das
aluses eruditas e a pedanteria dos termos cientficos encontrados ao longo do
texto..167 A digresso miscelnica outro trao marcante que o romancista utiliza
como propsito de crtica ao romance de sua poca. No Brasil essa ruptura do
estatuto dos gneros e da inovao lingstica ocorreu, pela primeira vez, na obra

166

167

CAMPOS, Haroldo. Ruptura dos gneros na Literatura Latino-Americana. So Paulo:


Perspectiva, 1977. p. 36-37.
PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta. In: STERNE, Laurence. A vida e as
opinies do Cavalheiro Tristram Shandy. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 20.

67

de Machado de Assis, em especial em Memrias pstumas de Brs Cubas, livro


onde se pode vislumbrar a influncia de Sterne, assimilada porm e organizada
num sentido muito pessoal.168
Entretanto, para explicar as afinidades estruturais entre Sterne e Machado
importante sintetizar as principais caractersticas da stira menipia, assim
resumidas por Jos Guilherme Merquior:
(1) Ausncia de qualquer enobrecimento dos personagens e de suas aes; (2) mistura
do srio e do cmico, com abordagem humorstica das questes mais cruciais: o sentido
da realidade, o destino do homem, a orientao da existncia etc; (3) absoluta liberdade
em relao aos ditames da verossimilhana; (4) a freqncia da representao literria
de estados psquicos aberrantes: desdobramentos da personalidade, paixes
descontroladas, delrios; (5) o uso constante de gneros intercalados.169

Escrevendo antes do aparecimento do romance moderno, no sculo XVIII,


Sterne ao parodiar o carter enciclopdico e as citaes truncadas da Anatomia
da Melancolia para um novo propsito,170 criou uma nova estrutura romanesca e
a partir dele a tradio da stira menipia sofreu inflexes decisivas. A vida e as
opinies do cavalheiro Tristram Shandy foi o primeiro romance ingls escrito a
partir dos elementos da tradio lucinica. Sterne conseguiu construir seu
romance aplicando uma forma literria criada na Antiguidade e na Renascena, ou
seja, uma tradio que passou de Demcrito e Luciano obra de Erasmo e de
Burton, para a obra de Sterne. A partir do Sculo XVIII, o escritor ingls passou a
exercer decisiva influncia sobre vrios escritores, entre eles o brasileiro Machado
de Assis.
Memrias pstumas de Brs Cubas foi originalmente publicado na
Revista Brasileira, a partir de maro de 1880 e, em 1881, reeditado na forma de
livro. ainda hoje uma obra que provoca estranhamento por se afastar da
literatura de sua poca (realista/naturalista), por sua viso radicalmente crtica,
pelo ceticismo, pela estrutura narrativa e pelo tom da galhofa.

168
169
170

CAMPOS, Haroldo. op. cit., p. 37.


MERQUIOR, Jos Guilherme. De Anchieta a Euclides, breve histria da Literatura Brasileira.
2 ed. Rio de Janeiro. J. Olympio, 1979. p. 167.
REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia..., op. cit., p. 83.

68

Machado de Assis, ao construir seu romance Memrias pstumas de Brs


Cubas, adaptou para seu tempo uma tcnica de criao literria com traos tpicos
da tradio lucinica, ou seja, a mistura de um gnero alto, e de um gnero
baixo, neste caso a mistura do romance romntico e naturalista com o
folhetim.171 Alm disso, Machado utilizou o estilo fragmentrio e a forma livre de
Sterne.
A viso de mundo de Machado de Assis engloba observao aguda e
anlise profunda da realidade. Isto ele faz atravs do humor, carregado de ironia e
tambm de um pessimismo que, longe de ser marcado pelo desespero ou pela
angstia, prope de forma irnica que se desfrutem os pequenos prazeres que a
vida possa trazer, j que impossvel ser completamente feliz. Uma das clebres
digresses de Brs Cubas sobre o homem: [...] uma errata pensante [...] cada
estao da vida uma edio, que corrige a anterior, e que ser corrigida
tambm, at a edio definitiva, que o editor d de graa aos vermes.172
Esse modo de narrar filosfico e cmico, aliado a outros elementos da
narrativa, a linguagem e posio do narrador, transcorrem em ritmo de Carnaval, o
que levou o crtico Jos Guilherme Merquior a chamar o livro de O romance
carnavalesco de Machado. Em Memrias pstumas, brincadeiras e crticas se
alternam para que o narrador execute sua crtica moral e, para isso, utiliza-se de
frtil imaginao e laboriosa reflexo. Captulos curtos e muitas digresses,
atravs de constantes conversas com o leitor, uso de gneros intercalados, por
exemplo, cartas ou novelas presentes ao longo da obra, so possveis porque a
estrutura desse romance, observa Merquior, elstica, permitindo diversas
manobras. O simples fato de estar na boca de um narrador defunto a tarefa de
narrar permite que o autor abuse das crticas e dos comentrios sobre o modo de
vida dos homens dos oitocentos da elite dominante brasileira.
Merquior tambm aponta em suas anlises duas diferenas entre a obra
de Sterne e a de Machado: a primeira que o humorismo e o riso sarcstico

171
172

REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia..., op. cit., p. 151.


MERQUIOR. Jos Guilherme. O romance carnavalesco de Machado. In: ASSIS, Machado de.
Memrias pstumas de Brs Cubas. 18 ed. So Paulo: tica, 1992. p. 06.

69

machadiano diferem do humor simptico e complacente de Sterne. Assim resume


o crtico:
Em lugar do humorismo de identificao sentimental de Sterne, o que predomina nessas
pseudo-memrias o nimo de pardia, o rctus satrico, a dessacralizao
carnavalesca. Quase nenhum sentimento, nenhum valor ou conduta escapam a essa
chacota corrosiva.173

A segunda diferena est na estrutura narrativa. Memrias pstumas


narrado por um personagem alm-tmulo, enquanto que as perambulaes de
esprito do Tristram Shandy so as artimanhas fantasiosas que o narrador usa
para contar sua autobiografia.
No entanto, pondera Merquior, as relaes quanto concepo de
estrutura e expresses do gnero cmico-fantstico da obra machadiana se
aproximam dos textos de Luciano Samosata. Luciano possui um personagem (o
filsofo Menipo) que gargalha no reino do alm-tmulo em situao idntica de
Brs Cubas.174 Machado de Assis elaborou uma combinao original da
menipia com a perspectiva autobiogrfica de Sterne e de Maistre.175
A origem da forma livre que Machado de Assis definiu est no prlogo do
romance, intitulado Ao Leitor. Brs Cubas constri a origem genealgica de seu
prprio texto, referindo-se aos precursores de sua forma narrativa. Assim explica o
narrador: Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brs Cubas, se
adotei a forma livre de um Sterne ou de um Maistre, no sei se lhe meti algumas
rabugens de .pessimismo.176
O personagem das Memrias pstumas refere-se explicitamente aos
textos de Laurence Sterne, Tristram Shandy e tambm a Viagem volta de meu
quarto, da autoria de Xavier de Maistre.
Nessa retomada de relaes entre as Memrias pstumas de Brs Cubas

173
174
175
.

176

MERQUIOR. Jos Guilherme. De Anchieta a Euclides..., op. cit., p. 168.


Idem.
Idem.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas. 18 ed. So Paulo: tica, 1992. p.
16.

70

e suas afinidades eletivas, um novo nome, o qual no constava na lista de Brs


Cubas, vem juntar-se aos de Sterne e Maistre. Trata-se do romancista portugus
Almeida Garrett.
Comentando a observao de Antnio Joaquim de Macedo Soares, que o livro lembrava
as Viagens na minha terra, de Garrett,... Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre roda
do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brs se pode talvez dizer
que viajou roda da vida.177

Partindo da fala do narrador das Memrias pstumas de Brs Cubas


sobre a forma livre adotada por Sterne e Maistre, Antonio Candido argumenta
que a presena da digresso narrativa constitui o elo de ligao entre todos esses
autores:
.

Quando Machado fala em maneira livre, est pensando em algo praticado por De
Maistre: a narrativa caprichosa, digressiva, que vai e vem, sai da estrada para tomar
atalhos, cultiva o a-propsito, apaga a linha reta, suprime conexes. Ela facilitada pelo
captulo curto, aparentemente arbitrrio, que desmancha a continuidade e permite saltar
de uma coisa a outra.178

Em suma, Machado de Assis um escritor inovador e revolucionrio que


transformou sua produo literria, particularmente a partir de Memrias
pstumas. elegncia, correo, ao equilbrio e clareza de sua linguagem, o
mestre do subterrneo incorporou a narrativa problematizante, a forma livre de
Sterne e o realismo cmico-fantstico da stira menipia e da carnavalizao
literria.
Podemos sintetizar, luz desse retrospecto, que Sterne e Machado so
descendentes exemplares de Menipo de Gadara, por se filiarem ao gnero da
stira menipia. E a forma solta do romance O Chalaa, de Jos Roberto Torero,
alude diretamente stira menipia pelas mediaes de Sterne e Machado. O
estilo parodstico do escritor parece remeter ao irnico e divertido. Faz uso de uma

177

178

CANDIDO, Antonio. roda do quarto e da vida. In: . Recortes. So Paulo:


Companhia das letras, 1993. p. 114.
CANDIDO, Antonio. roda do quarto e da vida, op. cit., p. 114.

71

linguagem formal que se aproxima da nobreza lusitana e ao mesmo tempo uma


linguagem coloquial, que ajuda a criar efeitos cmicos e satricos que contrastam
com as aluses dos termos filosficos encontrados ao longo da obra. O escritor
parece praticar uma stira no-moralizante, sria e cmica ao mesmo tempo, para
ridicularizar as intrigas palacianas do primeiro reinado brasileiro.
O uso da pardia, com freqentes citaes literais ou quase literais,
encontrado com freqncia na obra de Torero. Alm de cortar e colar excertos das
narrativas histricas, faz inmeras parfrases e citaes truncadas da obra
Memrias pstumas, de Machado de Assis. Note-se que o narrador Gomes da
Silva no um autor-defunto nem um defunto-autor, mas to volvel e
persuasivo quanto Brs Cubas, personagem de Machado. O que distingue Gomes
da Silva de Brs Cubas, que suas memrias so contadas por um escritor, pois
ele no intencionava cont-las nem vivo, nem depois de morto, como o caso do
personagem de Machado. As memrias pstumas do secretrio Gomes da Silva
no so as do escritor que as trouxe luz. Essas memrias se mostram caras e
duvidosas, porm alegres, dotadas de filosofia, teorias e observaes, que
guiaram os passos retos e tortuosos do nobre Conselheiro Gomes.
Uma das principais caractersticas de O Chalaa a presena de um
narrador que tem opinies sobre tudo e que repetidamente intervm no processo
narrativo para comentar sobre sua prpria narrao. Esse narrador tambm usa
de artifcios extravagantes e quimricos para contar as suas memrias, escrever o
dirio de seu amo e defender suas teorias filosficas.
Em O Chalaa, o estilo fragmentrio, a tcnica de captulos curtos, muitas
digresses, freqente dilogo com o leitor, uso de gneros intercalados, por
exemplo: cartas, trovas, dirio e o livro de memrias do prprio narrador nos
remete forma livre de Sterne e Machado.
Se, por um lado, a aluso s funes medicinais do riso, em Tristram
Shandy, filiam-se Anatomia da Melancolia, de Burton, em Memrias pstumas o
narrador busca a cura para a melancolia da humanidade na tentativa de criar um
emplasto. Gomes da Silva, por seu turno, defende a revolucionria teoria mdica
inspirada na obra de Caldern de Meja, El Hombre e las Cosas Trplices, que o

72

narrador afirma nunca ter existido, para aconselhar os homens a se controlarem


sobre o domnio intelectual que as mulheres exercem sobre eles quando no ato da
cpula.
3.3.3 O romance digressivo
No contexto literrio contemporneo parece estar havendo uma grande
concentrao de obras, cujos autores optam por uma nova forma de exercer a
metaliteratura, ou parodiar os clssicos da literatura, como o caso dO chalaa
de, Jos Roberto Torero, cujo estilo narrativo se aproxima daquele das obras de
Sterne e Machado, mesclando teorias filosficas, escrita no linear, jogo
digressivo, e humor.
Em Tristram Shandy, o narrador usa e abusa do procedimento de tcnicas
como: a paralisao, a inverso, o retardamento e a acelerao, ou seja, o
romance todo se explica pelo incrvel nmero de digresses e enxertos que
interrompem a todo momento a narrativa principal.179
A narrativa comea com a histria da concepo do heri-narrador e dos
incidentes que presidiram o seu nascimento, quando o incio, na perspectiva de
uma narrativa tradicional, deveria ser a histria da vida de Walter Shandy e do tio
Toby. O fim deveria ser a maturidade de Tristram, no momento em que ele
comea a escrever suas memrias. Contudo, encontramos o narrador adulto
escrevendo suas memrias no centro do livro VII. O episdio final marcado pelos
amores do Tio Toby, isto , quatro anos antes de Tristram nascer. Como podemos
observar, o fio cronolgico da obra apresenta-se de forma totalmente distorcida
pelo narrador.
Um dos procedimentos de paralisao o que acontece, por exemplo,
quando Walter Shandy recebe a notcia de que o filho tivera o nariz achatado ao
nascer. O narrador deixa o pai atirado sobre a cama, numa estranha posio:

179

PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta..., op. cit., p. 29.

73
A palma da mo direita, quando tombou sobre o leito, segurou-lhe a fronte e cobriu-lhe
quase totalmente os olhos; afundou-se, de manso, junto com a cabea (o cotovelo
deslizou para trs) at o nariz tocar a colcha; o brao esquerdo pendeu, insensvel, do
lado do leito, descansando os ns dos dedos na asa do urinol.180

Tristram deixa seu pai nessa posio e aproveita para acrescentar uma
infinidade de digresses, entre as quais a histria de um narigudo de Estrasburgo,
dotado de um nariz enorme que encantava todas as mulheres. S ento que o
narrador liberta o seu pai paralisado e Walter Shandy consegue recuperar sua
mobilidade, isto , quatorze captulos depois. Em poucos momentos, a mo
esquerda de meu pai, cujos ns descansaram o tempo todo sobre a asa do urinol,
voltou a si ele o empurrou um pouco mais para dentro do rodap da cama (...)
ergueu a mo at o peito disse hum!181
Os personagens Tio Toby e Trim participam de todos os acontecimentos
relacionados com o nascimento de Tristram. No dia do parto, em 1718, aparece de
repente um Tristram adulto, escrevendo suas memrias em 09 de maro de 1759,
isto , o narrador interpenetra passado e presente num mesmo episdio, atravs
do jogo de acelerao e retardamento simultneo.
Num livro tradicional a dedicatria normalmente vem no comeo. Tristram
faz a sua no final do livro I do captulo 08. bvio, para qualquer autor, que um
prefcio deve vir antes da narrativa propriamente dita. Nada de menos evidente
para Tristram. claro que tambm para ele o livro deve ter um comeo, um meio
e um fim, embora no necessariamente nessa ordem. O fim pode estar no
comeo, o comeo no fim, e um e outro podem estar no meio. Se assim, o que
impediria um prefcio de vir no meio, por exemplo, no captulo 20 do Livro III?
justamente ali que Tristram coloca o seu prefcio.
Normalmente os captulos devem ser consecutivos, o segundo captulo
depois do primeiro, o terceiro depois do segundo e assim sucessivamente. Para
Tristram, isso no tem a menor importncia. No livro IX, ou seja, o ltimo do

180
181

STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy. Traduo,


Introduo e Notas: Jos Paulo Paes. 2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 221.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 273.

74

romance, Tristram decide que precisa escrever o captulo 25 antes dos captulos
18 e 19, por mais que os crticos o censurem. Ele diz: pois como lhes foi possvel
antever a necessidade em que eu estava de escrever o 25 captulo do meu livro
antes do 18 &c.? [...] Tudo quanto quero que possam ser uma lio para o
mundo, deixar as pessoas contarem suas histrias sua prpria maneira.182 Ele
resolve passar diretamente do captulo 17 para o 20, e s muito tempo depois
escreve os dois captulos pulados, ou seja, os captulos 18 e 19, do Livro IX, so
intercalados arbitrariamente no captulo 26183o que produz a seguinte srie: 20,
21, 22, 23, 24, 25, 18 e 19.
Sterne no se limita a inverter a ordem, colocando esses captulos dentro
do captulo 25, mas assinala graficamente os espaos vazios: depois do captulo
17 vem uma pgina em branco, representando o captulo 18, e uma pgina
tambm em branco que representa o captulo 19.
H captulos extremamente longos e outros brevssimos, que mostram os
flashbacks e flashforwards da narrativa. Vejam-se captulos como o 17 do livro II,
contendo um sermo completo de Yorick, com mais de 20 pginas de texto ou, no
captulo inicial, no numerado, do livro IV, com o conto atribudo a Slawkenbergius
de Nasis184, o douto cronista dos narizes flicos: so nada menos que trinta
pginas. Por outro lado, h inmeros captulos com menos de dez linhas e vrios
com pouco mais de duas linhas, como o captulo 05 do livro IV, em que Walter
Shandy se irrita com Tio Toby, dizendo: Ser esta uma ocasio adequada, disse
meu pai consigo, para falar de penses e .granadeiros.185
No entanto, os captulos curtos nos do a impresso de uma narrativa
rpida, alusiva e lacunar. O contraponto entre captulos to longos que pem
prova a pacincia do leitor e to curtos que mal podemos sentir sua necessidade
traduz com muita exatido o modo caprichoso com que Sterne se relaciona com o

182
183
184
.

185

STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 586587.
GOMES, Eugnio. Machado de Assis: influncias inglesas. Rio de Janeiro: Pallas, 1976. p.
61.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 247.
Ibid., p. 275.

75

tempo da ao, ora interrompendo a narrativa com digresses infinitas, ora se


movendo com muita rapidez. Como o caso da autobiografia do narrador, que
no conta quase nada sobre sua vida. Tristram apenas aparece trs vezes no
decorrer de toda a narrativa, ou seja, no momento da concepo, do nascimento e
da maturidade.
Em Machado de Assis, embora a narrao fragmentada seja bem mais
radical do que a de Sterne, no deixa de existir tambm uma relao sutil entre
os dois livros na circunstncia em que ambos narradores comeam a relatar as
suas memrias.186 Enquanto Tristram comea suas memrias pela concepo,
ab-ovo, Brs Cubas decide comear as suas pela morte e no pelo nascimento.
Por dois motivos, afirma o narrador: primeiro, ele no era um autor defunto, e sim
um defunto autor. Segundo, porque o escrito ficaria mais novo, distinguindo-se
nisso do Pentateuco, em que Moiss tambm conta a sua morte, mas a pe no
fim.187 Vale observar, aqui, que o fio cronolgico rompe-se j nas primeiras linhas
da narrativa, ou seja, o texto comea por uma inverso bastante radical. Porm,
depois

de

algumas

digresses,

ele

retoma

ordem

cronolgica

dos

acontecimentos, relatando a infncia e a primeira paixo da adolescncia.


Outro procedimento de inverso acontece quando o narrador decide voltar
atrs em captulos j escritos corrigindo-os em captulos posteriores, como ele
mesmo afirma: no captulo CXXX, convm intercalar este captulo entre a primeira
orao e a segunda do captulo CXXIX.188 De acordo com Eugnio Gomes,
Machado de Assis, ao usar a tcnica de captulos intercalados, tambm serviu-se
do mtodo de Sterne.
O efeito de retardamento obtido especialmente pelas digresses. o
que acontece, por exemplo, no primeiro captulo do romance, quando Brs Cubas
deixa em suspenso por vrios captulos a explicao sobre sua morte. Morri de
uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idia
186
187
188

GOMES, Eugnio.Machado de Assis: influncias inglesas, op.cit., p. 61.


ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 17.
Ibid., p. 154.

76

grandiosa e til, a causa da minha morte, possvel que o leitor me no creia, e,


todavia verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso.189
No entanto, o narrador passeia descomprometidamente por vrios
assuntos dspares, como a idia no trapzio que ele tinha no crebro, e a sua
rvore genealgica, para s ento voltar a falar da causa mortis que ele comenta
somente no captulo V: quando estava ocupado em preparar a inveno do
emplasto, recebeu um golpe de ar, adoeceu e no se tratou. Sabem j que morri
numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha inveno que
me matou.190
O retardamento freqente na obra de Machado, como se percebe j no
captulo I bito do autor. Morto, Brs Cubas poder confessar tudo quanto
cometeu em prejuzo de si mesmo e dos outros. No pode ser julgado, est
habitando agora o undiscovered country. Introduz, na seqncia, a figura de
Virglia, que s conhecemos muito depois:
Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas trs senhoras, minha irm Sabina,
casada com o Cotrim, a filha, um lrio do vale, e... tenham pacincia! Daqui a pouco
lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa annima, ainda
que no parenta, padeceu mais do que as parentes.191

O personagem Brs s d continuidade histria no final do captulo V e


incio do captulo VI. O narrador esclarece quem a senhora que o acompanhara,
entre amigos e familiares, no seu cortejo fnebre: Tinha 54 anos e era uma runa,
uma imponente runa. Imagine o leitor que ela e eu nos amamos.192 Trata-se de
Virglia. Tinham sido namorados, quase noivos, Virglia o preterira em detrimento
de Lobo Neves, mas ambos, depois do casamento desta, tornaram-se amantes.
Assim como a tcnica narrativa atua no processo de retardamento, no
outro extremo focaliza a rapidez. Por exemplo, no captulo XIII, os anos de escola
so narrados muito rapidamente: unamos agora os ps e demos um salto por

189
190
191
192

ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 18.
Ibid., p. 22.
Ibid., p. 17.
Ibid., p. 22.

77

cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar
cacholetas, apanh-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde
quer que fosse propcio a ociosos.193 Comea a falar sobre seu colega de infncia
Quincas Borba, porm, decide dar um outro pulo: Vamos de um salto a 1822,
data da nossa independncia poltica, e do meu primeiro cativeiro pessoal.194
Brs Cubas tambm narra em tempo acelerado os episdios que retratam
a morte dos familiares. Ao descrever a morte da me o narrador faz questo de
dizer que o captulo era triste, mas curto. A morte do pai descrita com mais
brevidade ainda, sob forma de notas, j que o narrador, por ach-lo muito triste,
recusou-se a escrev-lo. E com a mesma rapidez a morte de Nh-lol descrita,
ou seja, Brs Cubas narra a morte de dona Eullia apenas em um curto pargrafo
no incio do captulo CXXVI.
Outra estratgia shandiana de que se vale Machado a paralisao, que
aparece entre o mundo dos vivos e geralmente se manifesta nos aspectos
grficos, como, por exemplo, nos captulos sem ttulo e nos ttulos sem texto. o
que ocorre no captulo LIII, que narra o primeiro beijo de Brs e Virglia (vem sem
ttulo), no captulo LV O velho dilogo de Ado e Eva, o qual um discurso sem
palavras, realizado por meio de pontos de exclamao e interrogao. Alm disso,
no captulo CXXXIX De como no fui ministro dEstado, este fica em branco, pois
H coisas que melhor se dizem calando;195 como o prprio Brs afirma no incio
do captulo CXL, que, diz ele, explica o anterior.
Assim como em Tristram Shandy e Memrias pstumas, em O Chalaa os
fatos e as aes tambm no obedecem a um fio lgico ou cronolgico. A
narrativa comea pela ordem inversa. O narrador inicia o seu dirio de anotaes
a partir do fim. O incio da narrativa se d quando Gomes da Silva, sujeito maduro,
encontra-se na Europa, mantendo um relacionamento ntimo com a baronesa
Marie Louise, uma senhora de sessenta anos. Entretanto, aps a morte da
baronesa, decepcionado por no conseguir herdar nada da falecida, Gomes da

193
194
195

ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 38.
Ibid., p. 39.
Ibid., p. 160.

78

Silva decide viajar a Lisboa para reencontrar o seu amigo D. Pedro IV. No entanto
o comeo, cronologicamente, seria a histria da vinda da Famlia Real para o
Brasil e de como Gomes da Silva chegou no Rio, em 1808.
A linha narrativa vai se quebrar no momento em que o narrador decide
escrever as suas memrias, isto , no captulo dezesseis. A partir da os captulos
intercalam-se entre o passado e o presente do narrador, num constante jogo de
flashbacks e flashforwards.
s vezes o narrador sente necessidade de contar todos os pormenores,
para evitar qualquer empobrecimento do real. Mas, em outros momentos, o
narrador abdica da descrio detalhada, do registro exaustivo, e a narrativa se
torna rpida.
No captulo dezesseis, por exemplo, Francisco Gomes da Silva avisa os
leitores que comear a sua biografia, mas como o narrador tem pressa, avana
rapidamente e sustenta que o verdadeiro ponto de partida da vida de qualquer
homem no seu nascimento fsico, mas o seu nascimento metafsico.196 Ou
seja, pelo seu parto no bar da Corneta, momento em que conheceu o seu augusto
amo D. Pedro. Adota esse procedimento para evitar que os leitores o considerem
enfadonho. O narrador detalha, ento, as condies materiais e espirituais da
famlia, bem como de seu pas, Estado e cidade. Esse nascimento se refere a
festas, divertimentos em bares, boemia. Esse o incio de uma nova vida para
Gomes da Silva, que afirma, o que vem antes disso coisa que no vale a pena
contar por ser pequeno e de pouco interesse.197 Nesse captulo observamos que
o tempo de ao se traduz com muita rapidez, de modo que anos e mesmo
dcadas inteiras so suprimidos.
Convm acrescentar ainda que o narrador de Tristram Shandy comea
sua autobiografia pela concepo e o narrador de Memrias pstumas pela morte;
por sua vez, o narrador dO Chalaa comea a sua histria pelo seu nascimento
metafsico.
Nota-se tambm que a narrativa retarda a ao. Esse efeito

196
197

O Chalaa, p. 59.
O Chalaa, p. 61.

79

essencialmente obtido pelas digresses. No captulo vinte e um o narrador fala da


primeira mulher que teve em terras brasileiras, depois menciona a segunda,
terceira e a quarta, e por ltimo a Marianinha, mas informa ao leitor que adiante
contar o seu caso de amor com a dita moa. Porm, o narrador s explica o seu
relacionamento amoroso com a Marianinha no captulo quarenta, isto , setenta
pginas adiante.
O processo de retardamento tambm acontece no captulo vinte e seis,
quando se indica a viagem que D. Pedro faz a So Paulo, e resolve descer Vila
de Santos. O narrador relata um acontecimento importante que surpreende o
prncipe na sua estada em So Paulo. Tal acontecimento teria importantes
conseqncias, mas o narrador informa ao leitor que o assunto seria matria para
o prximo captulo. Gomes da Silva, depois de algumas digresses, retoma o
assunto s no captulo vinte e oito e finalmente conta o episdio da estada de D.
Pedro em So Paulo, isto , o do encontro do prncipe e Domitila de Castro.
Outra passagem marcada pelo processo digressivo est no final do
captulo vinte e oito. O narrador informa que tal ocorrncia extraordinria, a do
encontro entre o prncipe e Domitila, mudou os destinos da nao brasileira, mas
manda, a seguir, o leitor aguardar que adiante falar sobre o caso. Depois de
algumas digresses, menciona o regresso de So Paulo, de como foram os
acontecimentos da Independncia do Brasil, fala de suas teorias filosficas, da
dissoluo da primeira Assemblia Constituinte, da criao da primeira
Constituio e a retoma o assunto que deixou pendente, isto , somente no
captulo trinta e seis que Domitila reaparece no texto. como se o narrador
tivesse esquecido da personagem num determinado captulo, para despert-la
muito tempo depois.
O retardamento tambm obtido pela tcnica de repetio. Assim, no
captulo cinqenta e oito, o narrador informa que vai regressar a Portugal o mais
depressa possvel, com o intuito de lutar junto com D. Pedro IV pelas suas
convices polticas. No captulo oito, o conselheiro Gomes da Silva decide iniciar
a sua volta para Portugal. A viagem s se concretiza no captulo onze, em que
Gomes da Silva chega a Lisboa e reencontra seus amigos, Joo da Rocha Pinto e
Joo Carlota.

80

Os captulos destinados ao dirio de anotaes do Conselheiro Gomes


so todos numerados, mas no apresentam ttulos. H de se observar aqui que o
autor confecciona captulos maneira de Sterne. J os captulos reservados s
memrias de Gomes da Silva, alm de seguirem a numerao do livro, trazem
ttulos e inclusive um breve comentrio sobre o assunto a ser abordado em cada
captulo. Torero lana mo do aspecto visual, pelo emprego da prpria tipografia
como meio de expresso, com o uso sistemtico da letra em Itlico para dar maior
realce aos captulos que compem as Memrias para servir grandeza da
humanidade que Gomes da Silva dedica ao seu filho. Outra marca bem particular
do romancista o uso sistemtico de aspas para ressaltar o dilogo dos
personagens.
H captulos longos e outros curtssimos, que mostram a alternncia entre
a tcnica de avano e recuo. O captulo trinta, por exemplo, que trata do regresso
da viagem a Santos, contm seis pginas. No outro extremo h captulos com
menos de 10 linhas, como o de nmero oito, em que o narrador encontra a carta
do seu amo e duas moedas. Une as duas coisas na mente e resolve iniciar sua
volta a Portugal.
Os captulos curtos nos passam a idia de uma ao temporal rpida. O
contraponto entre captulos longos e curtos evidencia o modo ambivalente com
que Torero se relaciona com o tempo da ao, ora retardando a narrativa com
digresses, ora se movendo com rapidez.
A aparente falta de coerncia da narrativa, permeada por freqentes
digresses, dissimula uma forte coerncia interna, oferecendo ao leitor todas as
informaes para conhecer a viso de mundo de um homem que passou pela
vida, prolongando vitrias e dissimulando derrotas, para realizar os seus desejos.
Para finalizar, os narradores desses trs romances viajam, aceleram e
retrocedem a narrativa o tempo todo. Tristram Shandy o verdadeiro viajante que
percorre infinitos e tortuosos caminhos para no chegar ao fim. Brs Cubas viaja
roda da vida com certo ar de superioridade, mas no sai do lugar. Gomes da
Silva tambm um viajante, muito ambicioso por sinal, mas consegue o que
deseja.

81

3.3.4 A interao com o leitor


Grande parte da obra de Sterne compe-se do personagem Tristram
falando das suas tarefas de escrita e da sua relao com o leitor. Esse dilogo
mantido pelo narrador com o leitor ou leitora praticamente constante ao longo de
todos os captulos dos nove livros do romance. So os leitores trazidos, s vezes,
para dentro do prprio texto e nele fazendo ouvir a sua voz.198Com isso, Tristram
aconselha, adverte, engana ou simplesmente despreza o leitor.
Jos Paulo Paes salienta que Sterne, ao escrever Tristram Shandy, alm
do efeito humorstico, insistia em chamar a ateno do leitor para o fato de ele
estar lendo um livro, um artefato literrio,199 impedindo-o assim de confundir
realidade e fico, como os demais romances ilusionistas.
A interao entre narrador e leitor se faz justamente para o narrador
advertir ou conscientizar o leitor sobre o procedimento que este deve tomar ao
realizar a leitura de um livro to profundo e erudito como Tristram Shandy.
Observamos, atravs da citao abaixo, retirada do captulo 20 do livro I,
que o narrador repreende a leitora e a chama de desatenta, por estar acostumada
a ler sempre em linha reta, com o objetivo de buscar aventura em vez de uma
leitura mais profunda. O narrador tambm a critica ainda por no saber deduzir o
que ele tinha escrito nas entrelinhas do captulo anterior:
Como pde a senhora mostrar-se to desatenta ao ler o ltimo captulo? Nele eu vos
disse que minha me no era uma papista papista! O senhor absolutamente no me
disse isso. Senhora, peo-vos licena para repetir outra vez que vos disse tal coisa to
claramente quanto as palavras, por inferncia direta, o poderiam dizer. Ento, senhor,
devo ter pulado a pgina. No, senhora no perdestes uma s palavra.200

H momentos no romance em que o narrador mostra a sua tolerncia


dando certa liberdade aos seus leitores, como ocorre, por exemplo, no captulo 38

198
199
200

PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta, op. cit., p. 20.
Ibid., p. 37.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 88-89.

82

do livro VI, quando Tristram deixa o captulo incompleto propositalmente e manda


o leitor desenhar a seu gosto o retrato da viva Wadman. Diz ele:
Para conceber a contento o que seja, mandai buscar pena e tinta eis papel em
branco ao vosso dispor. Sentai-vos, senhor, e pintai-a como quiserdes to parecida
quanto puderdes com a vossa amante to diferente de vossa esposa quanto a
conscincia vos permitir para mim d tudo na mesma cuidai to-s de deleitar
vossa fantasia.201

Em outros momentos o narrador deixa no ar o assunto para que o leitor


se prenda ao mistrio, para retom-lo posteriormente. O captulo 37 do livro III
um exemplo tpico: Walter Shandy tirou do bolso o seu canivete e se ps a fazer
experimentos com a frase,202 procura de um sentido mais literal ou intencional,
numa aluso interpretao e crtica textual. A personagem de Walter tambm
surge como uma figura do leitor. Com a sua imensa lista de leituras e
interpretaes, Walter Shandy o prottipo do leitor volvel que vai incorporando
mentalmente as mais dspares noes e teorias de todos os escritos do passado,
reduzindo-os mera condio de conhecimento instrumental, o que parece ser
uma das origens para a alienao de Walter e Toby Shandy. Ambos aparecem
freqentemente encerrados na sua prpria linguagem e nos seus pensamentos,
mantendo constantes dilogos de surdos como, por exemplo, no captulo 25 do
Livro IV, mostrando-se incapazes de se comunicar fora das suas obsesses e das
suas leituras.
Por outro lado, Tristram Shandy conserva uma transparncia referencial
quase clssica, como se todas as complicaes, interrupes e suspenses
narrativas a que submete o leitor ou a leitora fossem a forma mais naturalmente
convencional de contar uma histria. As transformaes operadas sobre as
convenes narrativas so didaticamente explicadas pelo prprio narrador. Ao
assinalar as estranhezas, no seu modo de contar e escrever, o narrador obriga os
leitores a repararem nos seus atos de leitura. Como acontece, por exemplo, no
captulo 11 do livro II:

201
202

STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 441.
Ibid., p. 231.

83

forneci uma ampla descrio da triste queda do dr. Slop e do seu triste aparecimento
no salo dos fundos; a imaginao do leitor deve agora continuar por sua conta
durante algum tempo. Cuide ele ento de imaginar que o dr. Slop narrou a sua histria,
com as palavras e com os agravantes que a fantasia do leitor tenha escolhido.203

Alm do constante dilogo com o leitor, Tristram Shandy

tenta

representar o prprio livro enquanto narrativa, isto , enquanto uma seqncia de


partes que se determinam mutuamente e que possuem um sistema interno de
referncia e de organizao. Os elementos simblicos e materiais que constituem
o livro determinam tambm a forma da narrativa impressa.
Em Memrias Pstumas de Brs Cubas, tambm h uma quebra nos
estilos tradicionais da literatura. Nesse sentido, o estilo metanarrativo de Machado
aproxima-se ao de Sterne, em particular ao da obra Tristram Shandy.
O leitor de Machado constantemente solicitado a interagir criticamente
com a obra. O narrador ironiza que sua obra ter poucos leitores, porque no
chega a ser um relato srio e denso, que conquistaria os leitores sbios, e
tampouco um folhetim ao gosto romntico, que agradaria aos leitores, em
especial, leitoras acostumadas com textos fceis, que andam em linha reta, cheios
de intrigas e coincidncias, aventuras e lances de amor.
A estrutura do texto de Machado, assim como a de Sterne, exige um leitor
que no se interesse apenas pelo "mythos". Assim, Brs Cubas explica a
subverso da forma e contesta a produo literria convencional e responsabiliza
o leitor pelas deficincias da obra:
.

Comeo a arrepender-me deste livro. No que ele me canse; eu no tenho que fazer; e,
realmente, expedir alguns magros captulos para esse mundo sempre tarefa que distrai
um pouco da eternidade. Mas o livro enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contrao
cadavrica; vcio grave, e, alis, nfimo, por que o maior defeito deste livro s tu leitor. Tu
tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narrao direta e nutrida, o
estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo so como os brios, guinam direita e
esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu,
escorregam e caem...204

203
.

204

STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 131.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 103.

84

Em outros momentos, o narrador Brs Cubas conversa com o leitor, seja


para chamar a ateno sobre algum aspecto da narrativa, seja para recapitular um
fato j narrado. Algumas vezes, o narrador revela desprezo pelo leitor de seu
texto, zombando da sua incapacidade, acusando-o de desatento e incompetente:
Que me conste, ainda ningum relatou o seu prprio delrio; fao-o eu, e a cincia mo
agradecer! Se o leitor no dado contemplao destes fenmenos mentais, pode
saltar o captulo; v direito narrao. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo
que interessante saber o que se passou na minha cabea durante uns vinte a trinta
minutos.205

Percebe-se pelo exemplo acima que o leitor sutilmente ridicularizado: se


no capaz de suportar uma obra surpreendente, se est apenas interessado na
continuao do enredo, ento o leitor no deveria ler o captulo.
Outros procedimentos metalingsticos tambm so empregados para
lembrar o leitor de idias apresentadas anteriormente ou para comentar o estilo da
narrativa, como no trecho a seguir: obra de finado. Escrevi-a com a pena da
galhofa e a tinta da melancolia, e no difcil antever o que poder sair desse
conbio.206 Note-se que o narrador deixa clara qual a tnica do seu texto: por um
lado a ironia e por outro a melancolia deprimida.
Jos Roberto Torero usou desse mesmo subterfgio para compor O
Chalaa. Ou seja, a metalinguagem se faz presente em vrias passagens do
romance. Dentre as quais, comentaremos as mais relevantes.
Em O chalaa, o narrador dirige-se ao leitor, de um modo amvel e s
vezes irnico e debochado. Faz comentrios sobre a sua escrita. Quanto s
aluses escolha da capa, ttulo e dedicatria ele est na verdade tecendo uma
crtica ao consumidor, ou queles compradores convencionais que adquirem livros
s para deix-los na estante como efeito decorativo.
Como sou amigo da disciplina, quero promover a construo dessa minha biografia ab
ovo, isto , partindo da verdadeira gnese da histria de qualquer livro, que a escolha
da sua capa. Sobre esse aspecto no tenho muitas dvidas, pois sempre admirei as

205
206

ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 25.
Ibid., p. 16.

85
encadernaes em couro, com as letras douradas, porque tm uma aparncia agradvel
e destacam-se sob o efeito da luz nas estantes.
J com relao escolha do ttulo, que certamente o segundo passo, tenho c algumas
dvidas.
O terceiro passo a ser dado na preparao de um livro a escolha da dedicatria.
Nenhum autor jamais pense em dar incio sua obra sem antes ter judiciosamente
definido quem h de ser a pessoa qual o volume ser oferecido.[...] Quanto minha
biografia, declaro, desde agora e para sempre, escolhido o meu amado filho Francisco.207

O narrador Gomes da Silva interrompe a narrativa, conversa e brinca com


o leitor, discorre sobre assuntos aparentemente distantes do assunto central.
Nesse vaivm manda o leitor se contentar com a mudana da narrao. Como
podemos observar no trecho que segue:
Fiquem certos de que essa mulher voltar a nossa histria mas, por ora, contentem-se
com a narrao de uma ocorrncia extraordinria que mudou os destinos da nao
brasileira, e na qual a dita senhora no tomou parte.208

J no captulo cinqenta, intitulado: Que trata da chegada ao Brasil da


segunda esposa de D. Pedro e de como o vil Marqus de Barbacena conseguiu a
expulso do inocente Francisco Gomes, o narrador pede pacincia aos leitores
como ele mesmo diz: terem pacincia e conhecero a histria.209 No captulo
trinta e seis, Que Conta como o Jurista Francisco Gomes da Silva Participou da
Criao da Primeira Constituio Brasileira e de seu Merecido Prmio pela
Brilhante Elaborao da mesma, mais uma vez o narrador interrompe a narrativa
para conversar com o leitor, como ele prprio afirma:
Se tu s amigo da gramtica, hs de ter reparado que escrevi a ao invs de uma.
que pela Titlia ele esquecera as negras, as filhas dos oficiais, as esposas dos
comerciantes e as ciganas. A mulher enfeitiara o Imperador e o dominava com uma
muito eficiente aplicao da teoria do fluxo e refluxo sangneo, conseguindo que ele
atendesse seus caprichos.210

207
208
209
210

O Chalaa, p. 57-58.
O Chalaa, p. 103.
O Chalaa, p. 183.
O Chalaa, p. 129-130.

86

Em outras palavras, o narrador chama a ateno do leitor sobre a


influncia que Domitila de Castro exerceu sobre D. Pedro e em seguida retoma a
narrativa e segue adiante.
Citamos, tambm, o captulo de nmero trinta, Que trata da viagem a
Santos e de grandes obras que naquele percurso se fizeram, s para finalizar esta
questo. O narrador alerta o leitor das conseqncias desastrosas antes de contar
o triste episdio:
O leitor, se tem estmago sensvel e no gosta de pratos fortes e de tempero
pronunciado, certamente no se surpreenderia com as caras desalinhadas com que
acordamos no dia seguinte ao que nos foi servida aquela memorvel costeleta de porco,
to elogiada pelo anfitrio e pelos outros convidados.
O fato que, to logo raiou a manh, constatou-se que metade da nossa comitiva
padecia de desconfortveis contraes e aguilhoadas intestinais, cujo resultado a
evacuao constante de uma matria fecal mais lquida do que slida. Os fsicos a
definem como diarrhoea, enquanto a gente mida a conhece por caganeira.211

s vezes o narrador enaltece, ironicamente, seu leitor: como do


conhecimento do ilustrado leitor,212 e lamenta com ele os tumultos e revolues
impensveis do sculo, dos reis decapitados e o desespero dos estudiosos da arte
poltica.
Assim como na fico de Sterne e Machado, em que os narradores
interrompem a narrativa, com saborosa e bem-humorada bisbilhotice, para
comentar com o leitor a prpria escritura do romance, fazendo-o participar de sua
construo ou, ainda, para dialogar sobre uma personagem, refletir sobre um
episdio do enredo ou tecer suas digresses sobre os mais variados assuntos, em
O Chalaa tambm h dilogo com o leitor.
O criador desta tcnica narrativa foi Laurence Sterne. Eugnio Gomes
afirma que Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis aderiram
sugesto do mtodo e passaram a aplic-lo em seus romances213. Jos Roberto
Torero parece ter se apropriado desses autores consagrados, em especial das
obras de Sterne e Machado, para, com eles, construir O Chalaa.

211
212
213

O Chalaa, p. 108-109.
O Chalaa, p. 122.
GOMES, Eugnio. Machado de Assis: influncias inglesas, op. cit., p. 56.

87

3.3.5 O humor
Herdeiro de uma longa tradio satrica, Sterne remete-nos no Tristram
Shandy para as suas grandes influncias, Gargntua e Pantagruel, de Franois
Rabelais e, sobretudo Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Segundo Paulo
Paes,214 a analogia com o romance de Cervantes particularmente fcil de
estabelecer no apenas nas freqentes citaes a que o autor nos remete, mas
tambm na personagem do Tio Toby e do seu criado, o cabo Trim, claramente
inspirados no cavaleiro da Mancha e no seu servo fiel. Tanto Tio Toby como o
cabo Trim, ex-soldados, encontraram o substituto ideal para uma frustrada carreira
militar.
Ainda segundo Paulo Paes, Toby Shandy comunga com Dom Quixote a
mesma tendncia para o exagero humorstico e para confundir a improbabilidade
com a realidade quotidiana e tal como aquele tem a mesma incapacidade para
lidar com o mundo, sendo invariavelmente ultrapassado pelos pormenores da
vida.
O complacente carter de Toby, incapaz de ferir quem quer que fosse, e
a piedade de seu corao, sempre pronto a comungar do sofrimento alheio a
procurar minor-lo,215 adapta-se a uma guerra de brincadeira em vez de guerras
de verdade. Para mostrar seu humor complacente e benvolo, citaremos a famosa
passagem que o incomodava durante o jantar:
- Vai-te diz certo dia, no jantar, a uma grandona [o narrador refere-se mosca] que
estivera a zumbir volta do seu nariz, atormentando-o cruelmente durante toda a
refeio, e que, aps inmeras tentativas, ele conseguira por fim apanhar, quando
voava perto. No vou te machucar, disse meu tio Toby erguendo-se da cadeira e
atravessando o aposento com a mosca presa na mo, No tocarei um s plo da tua
cabea. Vai-te, disse, erguendo a vidraa e abrindo a mo enquanto falava, para
deixar a mosca escapar , vai-te, pobre diabo, some, por que iria eu machucar-te?
Este mundo sem dvida grande bastante para que eu e tu nele, possamos caber.216

214
215
216

PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta, op. cit., p. 23.
Ibid., p. 24.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 134135.

88

No episdio transcrito acima, verifica-se que o personagem no mata a


mosca, apenas a solta pela janela, dizendo-lhe que no mundo havia espao o
bastante para eles dois. A, denota-se o humor da complacncia ou da piedade,
entre irritado e benvolo, do Tio Toby.217
Alm do humor complacente e benvolo, outros efeitos humorsticos
apontados na obra do romancista so os aspectos da natureza do personagem
Tristram: o ridculo e o simptico.
Segundo Wayne C. Booth, ao se debruar sobre o narrador dramatizado,
Sterne coloca o seu desajeitado heri de quarenta anos secretria como se
estivesse no palco, vestido com trajes disparatados e fazendo voar tinta em seu
redor enquanto escreve.218 Entretanto, o aspecto ridculo do heri-narrador se d
justamente quando ele conta a histria de sua vida irremediavelmente manchada
pela forma desastrada da sua concepo, pela deformao do nariz durante o
parto, pela confuso do nome que lhe foi dado e por vrios outros incidentes
ocorridos na casa de Walter Shandy.
O restante da narrativa basicamente composto por digresses, ou seja,
d conta das dificuldades cada vez maiores que o narrador encontra para contar a
sua autobiografia e a probabilidade de no conclu-la. No entanto, ele luta com as
armas do humor, sobretudo sem poupar o humorista contra as vicissitudes da
vida. Seu gesto nobre e honesto de contar a sua histria obriga o leitor a esquecer
o ridculo e colocar-se ao lado sentimental e simptico do narrador.
Machado de Assis tambm utilizou essa tendncia humorstica, sobretudo
o humor, extremamente sutil e refinado, marcado por cortantes ironias. O humor
machadiano d um tom grave ao ridculo, acentuando-o, ou atribui leveza a coisas
srias conduzindo o leitor a refletir sobre a condio humana. Observamos como o
narrador indica o tempo de durao do relacionamento amoroso entre Marcela e
Brs Cubas, no captulo XV, intitulado Marcela, quando Brs Cubas diz: Gastei
trinta dias para ir do Rossio Grande ao corao de Marcela, no j cavalgando o

217
218

GOMES, Eugnio. Machado de Assis: influncias inglesas, op. cit., p. 64.


BOOTH, Wayne C. A retrica da fico. Traduo: Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa:
Arcdia, 1981. p. 236-255.

89

corcel do cego desejo, mas o asno da pacincia, a um tempo manhoso e


teimoso.219 Marcela um dos grandes amores de Brs Cubas, que finge am-lo
para poder conseguir jias, dinheiro. Brs Cubas gastou grande parte da herana
do pai para tentar conquist-la, mas infelizmente o amor durou quinze meses e
onze contos de ris; nada menos.220 Marcela representa a mercantilizao do
amor corrompido pelo jogo de interesses.
O humor da sovinice ou da generosidade intencional maneira de
Sterne, como muito bem anota Eugnio Gomes,221 desenvolveu-se de maneira
rpida e progressiva na fico de Machado de Assis.
Entretanto, a generosidade intencional de Brs Cubas mostra a imagem
de algum que parece ajudar ao prximo, mas, na realidade, um autntico
egosta e mesquinho.
H vrios casos de generosidade intencional, registrados nas Memrias
pstumas, como, por exemplo, no captulo XXI, intitulado Almocreve. Tomamos,
aqui as anlises de Eugnio Gomes para exemplificar: Brs Cubas foi salvo por
um almocreve, que impediu que seu cavalo disparasse e o carregasse preso por
uma das pernas; o narrador sente inicialmente mpetos de recompensar
fartamente o rapaz. Depois comea a achar que trs moedas de ouro seria muito,
talvez uma fosse suficiente, j que o moo no teria feito nada de especial. Brs,
aps vrias reflexes e na pressa de livrar-se logo da situao, deu, porm ao
almocreve um cruzado de prata, certo de que havia deixado na mo do pobre
diabo uma simples moeda de vintm.222 Depois de ofert-la, percebe que o outro
ficara bastante agradecido e que talvez nem precisasse ter dado uma moeda de
tanto valor. Talvez, segundo Brs, algumas moedas de cobre seriam o suficiente
para o pobre rapaz. Fica evidente, nesse caso, a mesquinhez, a avareza de Brs
Cubas: o valor da recompensa vai se adaptando s circunstncias, s desculpas
que ele encontra para diminuir a bravura, a validade da ao do almocreve.

219
220
221
222

ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 41.
Ibid., p. 44.
GOMES, Eugnio. Machado de Assis: influncias inglesas, op. cit., p. 68.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 70-71.

90

Na passagem sobre a borboleta preta, tambm h uma srie de ironias


maldosas, em que Brs Cubas apresenta motivos e justificativas para a eliminao
de uma borboleta que o incomoda. Depois de afugent-la, mata-a com uma
toalha:
No caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabea. Apiedei-me; tomei-a
na palma da mo e fui dep-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de
alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
Tambm por que diabo no era azul? Disse comigo.
E esta reflexo uma das mais profundas que se tem feito, desde a inveno das
borboletas, me consolou do malefcio, e me reconciliou comigo mesmo.223

Nesse trecho, o narrador procura uma desculpa para o seu ato e a


encontra na idia de que a culpa por ter morrido da prpria borboleta: se ela
fosse azul, se fosse agradvel ao olhar, talvez tivesse outro destino. Este mais
um exemplo dos subterfgios mesquinhos, encontrados pelo narrador para
encobrir suas falhas, suas ms aes. Diferente, portanto, da complacncia que
Tio Toby tinha pelos insetos, como comentamos a respeito do episdio da mosca.
O humor tambm utilizado por Torero em O chalaa. O narrador Gomes
da Silva simptico, irreverente, sagaz, oportunista, de grande talento musical,
suas teorias filosficas finas e inteligentes tm uma grande pitada de humor e riso.
Longe, portanto, da ironia amarga e acre do finado Brs Cubas, que apresenta
sempre uma viso problemtica e de natureza inquietante. O personagemnarrador Gomes da Silva o autntico otimista e aproveitador que aspira ao gozo,
ao poder e glria.
Pode-se observ-lo atravs do seguinte exemplo, extrado do captulo trs
do romance, quando o narrador diz: seis jantares, duas peras e trs diamantes
depois, conquistei seu corao. Desde ento poderia dizer que temos sido como
dois jovens .namorados.224 Gomes da Silva fingia amar a baronesa de Lyon,
manteve com ela um caso amoroso, s para herdar seus bens materiais, mas

223
.

224

ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 63.
O Chalaa, p. 17.

91

quando esta vem a falecer, deixa-lhe apenas uma gargantilha de ouro em forma
de corao, com que mais tarde ele presenteia uma criada de quarto.
No captulo seis do romance em foco, o narrador encontra-se com um
mendigo que se diz um humilde pensador e decide ser a prova emprica de sua
teoria, a mais alta das cincias, a Bestofilosofia.225 Enquanto Gomes da Silva
separa as moedas para fazer sua esmola, o humilde filsofo expe o resumo de
sua filosofia.
De acordo com a filosofia prescrita pelo mendigo, haveria uma correlao
entre o reino dos homens e o dos animais. Alguns homens seriam corajosos como
lees; outros obtusos e fortes como jumentos. Outros homens poderiam ser
comparados aos elefantes, dada a sua imponncia. Haveria, tambm, os homensformiga, muito trabalhadores. Cite-se ainda a correlao com lobos e cordeiros.
Para o mendigo, o homem verdadeiramente sbio conseguia identificar o animal
ao qual correspondia e adaptava sua vida e seu proceder aos costumes deste
animal.
De acordo com a concluso mxima do criador da Bestofilosofia, o
mendigo, o animal mais adequado para ser imitado por pessoas desvalidas como
ele eram as hienas. A razo para isso que este animal, conhecido tambm como
"lobo que ri", costuma seguir os lees e tigres durante o dia, observando suas
aes na perseguio de presas inocentes, como zebras e veados. Ao verificar
que o grande predador havia abatido e comeado a devorar sua presa, as hienas
se armavam de pacincia, esperando sua vez de participar do banquete, to logo
o leo ou tigre houvesse se afastado satisfeito. Embora comendo restos, migalhas
do banquete leonino, as hienas sempre comiam uma presa que no haviam lutado
para abater, e conseguiam, por meio deste procedimento, conservar a sade e
manter sua espcie. Ressalte-se que no foi o mendigo que criou a tal filosofia,
mas confessava que teria sido algum "leo", ao passo que ele prprio, como hiena
que era, havia apenas apanhado as migalhas.

225

O Chalaa, p. 27.

92

O narrador, que a princpio dera-lhe apenas uma moeda, fica surpreso e


ao mesmo tempo interessado pelas teorias filosficas do mendigo. Isso o levou a
refletir sobre a sabedoria que o indigente possua e resolveu gratific-lo com mais
um vintm.
Torna-se pertinente realizar aqui uma comparao entre Gomes da Silva e
seu mendigo e o protagonista de Quincas Borba, chamado Rubio. Este amigo
do filsofo semilouco Quincas Borba, que j aparecera em Memrias pstumas de
Brs Cubas. Borba, ao falecer, deixa ao amigo Rubio uma grande herana, com
a ressalva de que este cuide de seu cachorro, que tambm se chamava Quincas
Borba. No final do romance, tendo sido explorado at cair na mais tenebrosa
misria, Rubio termina por exemplificar, em sua prpria vida, a tese do
Humanitismo, a qual havia sido criada pelo personagem Quincas Borba. Segundo
tal tese, a vida no passaria de um campo de batalhas no qual apenas os mais
fortes conseguem sobreviver.
[...] "supe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam
para alimentar uma das tribos, que assim adquire foras para transpor a montanha e ir
outra vertente, onde h batatas em abundncia; mas se as duas tribos dividirem em paz
as batatas do campo, no chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanio. A
paz, nesse caso, a destruio; a guerra a conservao. Uma das tribos extermina a
outra e recolhe os despojos [...] ao vencido, dio ou compaixo; ao vencedor as
batatas!"226

A frase "ao vencedor as batatas" metaforiza a idia de que o mais forte


sobrevive. Conforme atesta Antonio Candido, por ser fraco e puro o personagem
Rubio manipulado pelos fortes e triunfadores: "como queria a filosofia do
Humanitismo. Palha e Sofia esto ricos e considerados, dentro da mais perfeita
normalidade social"227. Rubio, por outro lado, que comea sua desventura como
simples homem, termina por enlouquecer a ponto de se julgar imperador e "acaba
como um pobre bicho, fustigado pela fome e chuva, no mesmo nvel de seu
cachorro."228

226
227
228

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. So Paulo: tica, 1992, p. 19. Srie Bom Livro.
CANDIDO, Antnio. Esquema de Machado de Assis. In: Vrios escritos. So Paulo: Duas
Cidades, 1977, p. 29.
Idem.

93

Pode-se afirmar, portanto, que tanto a teoria da bestofilosofia, "criada"


pelo mendigo de O Chalaa, como a teoria do Humanitismo, criada por Quincas
Borba, transmitem a idia irnica de que o triunfo sempre do mais forte, daquele
que sempre est ao lado do poder.
curioso notar, ainda, que tanto Gomes da Silva como Cristiano Palha e
Sofia,

representam

ironicamente

caricaturas

de

parasitas.

Oportunistas

bajuladores, interesseiros, que se atiram ao dinheiro e posio social como se


estivessem no caminho certo. Ou seja, o humor como triunfo que no visa a
produzir uma cumplicidade. Neste episdio o humor da obra de Torero aproximase, em certa medida, ao humor sarcstico machadiano.
Em suma, o humor sterniano simptico e sentimental. O romance Tristram
Shandy uma seqncia de histrias bem humoradas, excntricas e de uma
constante preocupao com o verossmil. O narrador shandyano brinca e sacode
o leitor o tempo todo, ao contar sua autobiografia. O humor amvel de Sterne
recorre a expedientes mais imediatos de provocao.
Em Machado o humor distancia-se de sentimentos espontneos e
generosos. Consiste em tratar de banalidades com solenidade e, por outro lado,
discorre sobre temas graves de modo banal; nada mais adequado para satirizar
um mundo que nos incentiva a conhecer tudo, menos o essencial. O narrador
machadiano convulsivo, sarcstico e mesquinho. O humorismo de Machado
uma atitude filosfica, mas no filosofia.
Em O Chalaa, por sua vez, o humor estritamente relacionado ao cmico.
O narrador irreverentemente sagaz, dissimulado e aproveitador. O mesmo
acontece com os seus personagens secundrios, como Joo da Rocha Pinto e
Joo Carlota. Graas a estes, e s situaes cmicas geradas pela interao de
suas extravagncias, foi que o romance adquiriu caractersticas humorsticas que
o ligam diretamente a stira menipia. Exemplo disso encontra-se na figura do
protagonista, que assume um carter extravagante ao desenvolver teorias
pseudo-cientficas que buscam satirizar e desmoralizar a cincia mdica da poca
(sculo XIX), como o caso daquela segundo a qual as mulheres exercem total
domnio sobre os homens quando do ato da cpula.

94

Se o humorismo de Machado de Assis no filosofia, mas uma atitude


filosfica, o de Torero, em O chalaa, no nenhuma coisa nem outra, mas sim,
um recurso estilstico destinado a divertir o leitor.
3.3.6 Do grotesco ao fantstico
De acordo com S Rego, a obra Tristram Shandy uma vitrine cultural de
todos os tempos, passando por Burton, Erasmo, Montaigne, Cervantes, Rabelais e
Shakespeare, abrangendo tambm as reas do saber da teologia obstetrcia e
s cincias das fortificaes.
Para fazer aluses s funes medicinais contra as enfermidades da m
sade, Sterne se apropria dos textos de Robert Burton, sobretudo Anatomia da
Melancolia. Tristram, de maneira caprichosa, convida o leitor a rir, para esquecer
os episdios tristes, pois, segundo ele, o riso saudvel vida:
Permitam-me Vossas Senhorias dizer que ao mau-humor; visa, merc de elevao e
depresso mais freqente e mais convulsiva do diafragma, e das sucusses dos
msculos intercostais e abdominais durante o riso, a expulsar a bile e outros sucos
amargos da vescula biliar, do fgado e do pncreas dos sditos de Sua Majestade, de
par com todas as paixes hostis que lhes so prprias, fazendo que se despejem nos
duodenos deles.229

Mas no livro V de Tristram Shandy que Sterne estabelece paralelos mais


evidentes com o texto de Burton. Com a finalidade de provocar os modelos
literrios clssicos, sobretudo os de origem aristotlica que ainda estavam em
pleno vigor durante o Renascimento,230 Sterne, ironicamente, faz uma citao
bastante fiel de Burton, para apresentar sua crtica contra os plagiadores:
Estaremos sempre a produzir novos livros, como os boticrios produzem novas misturas,
com apenas passar de um recipiente a outro?
Estaremos sempre a torcer e retorcer a mesma corda? Sempre na mesma trilha- sempre
no mesmo passo?

229
230

STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 296.
REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia, op. cit., p. 82.

95
Estaremos fadados, por todos os dias da eternidade, tanto os feriados quanto os de
trabalho, a exibir as relquias do saber ...231 [grifos do autor]

Em Tristram, imitam-se ainda certas formas, para expor as suas


convenes, e ridicularizar comportamentos, atitudes e teorias. Como ocorre, por
exemplo, no Conto de Slawkenbergius, narrado no captulo IV. Trata-se de uma
das histrias dentro da histria e sobretudo de uma severa crtica vida religiosa
conforme o episdio abaixo transcrito:
A abadessa de Quedlinburg e suas quatro dignitrias no constituam impedimento, visto
que a enormidade do nariz do forasteiro lhes enchia tanto as imaginaes quanto o seu
prprio caso de conscincia. A questo das aberturas das saias esfriou.(...) Isto gerou
de imediato uma nova controvrsia, que eles levaram longe, acerca da extenso e
limitaes dos atributos morais e naturais de Deus. A controvrsia conduziu-os
naturalmente a Toms de Aquino, e Toms de Aquino ao diabo.232

O trecho acima apresentado permite reconhecer o confronto entre


telogos catlicos e luteranos, colocando em questo o nariz de um forasteiro
cujo tamanho pe em polvorosa os habitantes de Estrasburgo, particularmente
suas mulheres e freiras.233 ou seja, o romancista satiriza a represso sexual
catlica, um dos objetos do conto, que tem seu correspondente na stira da teoria
literria neoclssica enquanto prescrio de uma certa forma de contar histrias.
Para obter efeitos cmicos, Sterne disfara o carter obsceno mantendo a
duplicidade de sentidos com referncia palavra nariz. De acordo com Bakhtin,234
devido ao preconceito difundido na Antiguidade e na Idade Mdia, o nariz passou
a designar o falo por ser uma palavra essencialmente obscena e cujo tamanho
correspondia virilidade do homem.
Inteno semelhante tambm evidente na pardia de legitimao e da
controvrsia cientfica que antecede e prepara a referida histria dos narizes,
descrita no captulo 38 do livro III. Aparece como um modelo de formas e das

231
232
233
234

STERNE, Laurence, op. cit., p. 333-334.


STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 264265.
PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta., op. cit., p. 22.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de
Franois Rabelais. Traduo: Yara Frateschi. So Paulo: Hucitec, 1996. p. 75.

96

prticas cientficas e acadmicas, com as suas hipteses e contra-hipteses,


artimanhas de argumentao, de prova, de crtica, de reviso da literatura e de
compilao da informao. A natureza social da produo do conhecimento fica
satiricamente demonstrada.
Alm de parodiar seus predecessores, a obra de Sterne traz diversos
discursos parodsticos, como da pintura, da msica, da cincia, do direito, do
ensino, da crtica literria, da religio, entre outros. A forma do romance surge
assim de uma arquitetura geral da obra, como compndio adequado para conter e
satirizar um conjunto de prticas discursivas modernas entre as quais se
destacam a lei, a cincia e o ensino.
Apesar da excentricidade na composio, Tristram Shandy apresenta, do
primeiro ao ltimo volume, um sensualismo risonho, um humor afvel, tolerante
enfim, uma narrativa de muita fantasia, mantendo-se assim nos limites do verossmil.
O grotesco a que Machado recorre permite-nos afirmar que a estrutura
narrativa das Memrias pstumas do inslito, inverosssmil, portanto, diferente
do humorismo essencialmente simptico e sentimental do Tristram Shandy. O
travo acre e angustiante que nos deixa a galhofa de Machado falta por completo
ao licor amvel de Sterne,235 conforme adverte Merquior.
No romance machadiano, j na dedicatria, h uma referncia explcita
condio do narrador defunto e degradao do corpo, rodo pelos vermes: Ao
verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadver dedico como saudosa
lembrana estas memrias pstumas.236 No prlogo Ao leitor, tal condio
enfatizada pela observao de que se trata de uma obra de finado, escrita com
a pena da galhofa e a tinta da melancolia237 O narrador opta por comear a
narrativa pela sua morte. A excntrica idia de criar um defunto autor justifica-se
logo nas primeiras pginas: um narrador que j no precisa salvar as aparncias
perante o julgamento da sociedade est livre para expor cruamente os fatos sem a
hipocrisia que tantas vezes caracteriza os vivos.

235
236
237

MERQUIOR, Jos Guilherme. De Anchieta A Euclides..., op. cit., p. 167.


ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., Prefcio.
Ibid., p. 16.

97

Assim, na condio de defunto, Brs Cubas desanda a tecer crticas e


comentrios irnicos sobre tudo. No captulo VII, em que narra o seu prprio
delrio, Brs Cubas se v arrebatado por um hipoptamo que o leva origem dos
sculos. Chega a uma plancie branca de neve, fria, cujo silncio era igual ao
sepulcro. um caso raro em que o narrador pode falar com propriedade do
sepulcro, visto j estar sepultado. Diante dele surge uma figura de mulher, com
olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastido das formas
selvticas, e tudo escapava compreenso do olhar humano, porque os
contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez
difano.238 Tal figura apresenta-se como sendo a Natureza ou Pandora, sua me
e sua inimiga. Note-se aqui a presena de opostos que no se excluem, pelo
contrrio, se completam. Da mesma forma, a figura de mulher lhe diz: eu no sou
somente a vida; sou tambm a morte, e tu ests prestes a devolver-me o que te
emprestei.239 Se a vida emprestada, conclui-se que passageira e no
definitiva. Na natureza, tudo cumpre um ciclo: para que haja renovao, uma
forma de vida d lugar a outra, incessantemente.
A Natureza ou Pandora leva o Brs Cubas para o alto de uma montanha e
o obriga a olhar para baixo, assistindo ao desfilar de todos os sculos. Nessa
passagem,

pode-se

observar

uma

aproximao

com

texto

lucinico

Iracomenippo que observava a vida da cidade vista do alto.


A existncia de Brs Cubas toda decorreu governada pelas aparncias.
Emblemtico, nesse sentido, teve como ltimo desejo em vida a criao de um
emplasto milagroso, um remdio para curar os que esto procura insana de
remdios para males imaginrios. A idia, segundo o prprio narrador, trazia duas
faces, como as medalhas, uma virada para o pblico, outra para mim. De um lado,
filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor da glria.240
Note-se que os exageros e mentiras do narrador esto bem claros nesse trecho. A

238
239
240

ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 26.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 27.
Ibid., p. 19.

98

inveno de um remdio que curaria todos os males, uma espcie de panacia


universal,241 serve apenas sede de nomeada.
Para justificar a criao de tal emplasto frente s autoridades, Brs Cubas
chamou a ateno de que a cura que traria seria algo verdadeiramente cristo,
alm de no negar as vantagens financeiras que tal produto traria. Em outras
palavras um show de cultura geral caricata, uma espcie de universalidade de
pacotilha, na melhor tradio ptria, em que o capricho de Brs Cubas toma como
provncia a experincia global da humanidade e se absolutiza.242
Convm ressaltar, no entanto, que a criao de um remdio para curar a
melancolia da humanidade no uma novidade concebida pelo personagem Brs
Cubas. Tal criao tem vrios antecedentes, como Demcrito, Burton, Fielding e
Sterne, que tambm fizeram uso do mesmo tema, como lembra S Rego.
importante destacar, ainda, a questo da filosofia da ponta do nariz.
Como vimos em pginas anteriores, Sterne faz referncia palavra nariz de forma
ambgua para ridicularizar a questo religiosa. Em Memrias pstumas tal palavra
empregada com o propsito de estabelecer a ordem social entre os homens.
Ao afirmar que cada homem tem necessidade e poder de contemplar o
seu prprio nariz a fim de ver a luz celeste, e tal contemplao, cujo efeito a
subordinao do universo a um nariz somente, constitui o equilbrio das
sociedades243 o narrador sublinha o quanto o sentimento de glria e vaidade
requerem que olhando para nosso prprio nariz, desconsideremos os outros,
desprezando o valor daqueles que nos cercam e que ameaam nossa autoestima. Roberto Schwarz salienta que a rivalidade e o ressentimento
generalizados mesmo que s em devaneio, expressa o estranhamento burgus
entre

indivduo

sociedade,

transformada

esta

ltima

em

objeto

de

manipulao.244 Em outras palavras, fica subentendida a inteno satrica que


Machado cria para ridicularizar a classe dominante.

241
242
243
244

REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia. op. cit., p. 172-173.


SCHAWRZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. So Paulo: Duas Cidades,
2001. p. 32.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 79-80.
SCHWARZ, Roberto. Op. cit., p. 159.

99

Tambm na obra de Torero no se pode negar o carter extravagante do


narrador. O autor deixa as extravagncias por conta da responsabilidade das
perambulaes de Gomes da Silva que, ao escrever suas memrias, trata de suas
revolucionrias teorias, muito banais, por sinal.
Verificamos que Gomes da Silva explora a teoria mdica sobre o fluxo e
refluxo das correntes sanguneas que se entrecruzam dos ps cabea no ato de
copular, fenmeno j experimentado pela maioria dos filhos de Ado. O narrador
levanta uma srie de questionamentos em relao ao comportamento sexual do
homem:
O meu exame do comportamento masculino no momento que vai do incio da ereo at
a consumao do coito, contudo, leva-me a uma outra direo e creio ser minha
inferncia a mais completa, pois, no momento em que copulam, h homens que tm as
pernas muito firmes, h homens que respiram perfeitamente e h homens que no
sentem nenhuma espcie de dor nas cadeiras, sem falar naqueles que no perdem um
fio de cabelo.
Nenhum homem, todavia, tem o perfeito controle do que diz ou pensa, e h mesmo
aqueles que urram, babam e assobiam enquanto arremetem suas estocadas. meu
pensamento, pois, que a parte do corpo mais prejudicada com a grande demanda de
sangue necessria ereo no outra seno o crebro, pois est provado que, na
quase totalidade dos casos, o homem no tem o perfeito domnio das suas faculdades
mentais.245

O processo psquico que o narrador descreve de muita fantasia,


aventura, mentira e obscenidade. Ele tinha teses sofisticadas, mas, obviamente,
falsamente sofisticadas. As teorias mdicas a que o narrador nos remete so de
ndole sexual; com isso passa a ridicularizar a medicina oficial.
Em outra passagem, Gomes da Silva expe mais uma de suas teorias, ou
seja, a teoria cientfica sobre os sete humores que percorrem o corpo humano.
Segundo o narrador, so conhecimentos medicinais ligados teologia:
Trata-se de uma tese qual dediquei largo tempo e creio ter chegado a uma hiptese
plenamente comprovvel pelos que possuem olhos e miolos.
Qualquer um que tenha o mnimo interesse pela medicina reconhece que so sete os
humores que habitam nossa carne: sangue, saliva, linfa, lgrimas, smen e urina. Nossa
sade depende do equilbrio destes lquidos e, se um deles estiver em excesso, inevitveis
problemas surgiro.

245

O Chalaa, p. 101-102.

100
Como sabe tambm o mais ordinrio cristo, os pecados capitais so igualmente sete: ira,
gula, avareza, preguia, inveja, luxria e soberba.246

Ao colocar em paralelo os sete humores do corpo com os sete pecados


capitais, o narrador ridiculariza o catolicismo. Ou seja, aproxima o compromisso
espiritual ao desejo desordenado pelos prazeres sexuais. De acordo com Bakhtin,
a lgica do realismo grotesco rene e combina o sagrado com o profano, o
elevado com o baixo, o grande com o insignificante, a sabedoria com a tolice, o
bem ao mal e o srio ao cmico.247 Essa srie de combinaes d origem
categoria da profanao, que formada pelos sacrilgios e indecncias que se
relacionam com a fora produtora da terra e do corpo, pelas pardias
carnavalescas dos textos sagrados e sentenas bblicas.
Em suma, Tristram Shandy se inclui no universo do grotesco, o qual
expressa a viso de mundo subjetiva e individual, distante da viso popular e
carnavalesca dos sculos anteriores. Sterne exerceu significativa influncia sobre
o grotesco romntico ao posicionar-se contra os cnones da era clssica. Sua
obra apresenta-nos a forma de humor e ironia de maneira complexa e profunda.
No caso de Brs Cubas, trata-se do riso de uma classe burguesa que ri da
prpria desgraa, que ri um riso amargo, um riso que no cria possibilidade de um
mundo novo e diferente. Pelo contrrio, um riso que acentua a decadncia. Brs
fala do lugar da morte, mas isso no implica mudana de valores.
J o narrador de O Chalaa apresenta traos de um riso cnico e fingido,
que engana, burla as autoridades, com o objetivo de ascenso social e
manipulao do poder.
Bakhtin chama ateno para o fato do grotesco romntico do sculo XVIII
no dispor mais do carnaval popular como seu referente, deixando assim de ser a
"sensao carnavalesca do mundo", a sensao corporalmente vivida, da
unidade e do carter inesgotvel da existncia". Tudo agora ntimo, subjetivo e

246
247

O Chalaa, p. 146.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 123.

101

individual. O riso se atenua, toma outras formas, como as da ironia, do sarcasmo e


de um certo tipo de humor, que no mais "explode" de rir.248
3.3.7 O pessimismo
O captulo final de Memrias pstumas tem sido citado freqentemente
pela crtica como exemplo cabal do pessimismo de Machado de Assis.
Citaremos, aqui, o captulo Das Negativas, na ntegra, para facilitar as nossas
observaes a respeito:
Este ltimo captulo todo de negativas. No alcancei a celebridade do emplasto, no fui
ministro, no fui califa, no conheci o casamento. Verdade que, ao lado dessas faltas,
coube-me a boa fortuna de no comprar o po com o suor do meu rosto. Mais; no
padeci a morte de Dona Plcida, nem a semidemncia do Quincas Borba. Somadas
umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginar que no houve mngua nem sobra, e
conseguintemente que sa quite com a vida. E imaginar mal; porque ao chegar a este
outro lado do mistrio, achei-me com um pequeno saldo, que a derradeira negativa
deste captulo de negativas: No tive filhos, no transmiti a nenhuma criatura o legado
da nossa misria.249

Helen Caldwell observa que a ltima frase do captulo acima citado seria
uma parodia resposta dada no Tristram Shandy pelo personagem Cabo Trim a
seu amo Tio Toby: " Cus!, replicou o cabo, com expresso iluminada vossa
senhoria sabe que no tenho nem mulher nem filho portanto no h por que eu
ter pesares neste mundo.250 De acordo com a pesquisadora, o livro de Machado,
enquadra-se na categoria de pico-cmico, com razes em Cervantes251.
No entanto, S Rego, ao tomar de emprstimo a anlise de Caldwell,
afirma que Sterne, ao conceder ao personagem Trim a frase em questo, estava
simplesmente citando mais uma frase da Anatomia da Melancolia de Robert
Burton, para construir o Tristram Shandy. Dessa forma, salienta S Rego,
Machado de Assis no est s parodiando Sterne, mas tambm Burton,
predecessor de Sterne252 na linhagem da tradio lucinica.

248
249
250
251
252

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 33.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 176.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 275.
CALDWELL, Helen. Machado de Assis: The brazilian master and his novels. In: REGO, Enylton
de S. O calundu e a panacia, op. cit., p. 102-103.
Ibid., p. 104.

102

Alm de enumerar a origem do captulo que encerra as Memrias


pstumas, percebemos que a causa das negativas se refere vida, uma vida de
fracassos tanto no plano profissional quanto no plano afetivo. O narrador ironiza
tais fracassos mostrando que, se por um lado, houve faltas de sua parte, por outro
coube-lhe a boa fortuna de no comprar o po com o suor de seu rosto. Apesar
das faltas, Brs observa que nunca teve que trabalhar parar viver. Esta uma das
poucas vantagens que lhe restou para compensar as frustraes do carter
desqualificado da fama, da poltica, da filosofia e dos casamentos em questo.253
Assim como os ecos da linhagem lucinica esto presentes nas obras de
Machado de Assis, observamos que Torero tambm recorre aos seus
predecessores. A citao que segue foi retirada do texto dO Chalaa, e faz
referncia famosa frase com que Brs Cubas encerra suas Memrias pstumas:
sei que sou um homem bem-aventurado. Fui feliz, no conheci a pobreza, combati o bom
combate e agora posso partir assegurado de que os meus queridos filhos sero bem
cuidados por aqueles a cujos cuidados eu os entregarei.254

H de se notar que todos esses romancistas, mencionados aqui,


parodiaram seus predecessores, explcita e diretamente ou atravs de citaes
truncadas e escondidas, ou seja, recorreram a eles para escrever suas obras, e
no por acaso que Torero fez o mesmo.
O personagem D. Pedro I, em seu leito de morte, faz a soma de tudo o
que realizou na vida e imagina que, ao chegar ao outro lado do mistrio, se
encontrar com um saldo bastante positivo.
O enfoque irnico, presente na citao em questo, intensifica-se quando
o personagem D. Pedro I, que est entre a vida e a morte, passa a falsa
impresso de que realizou maravilhas, tendo, na verdade, lutado pelos seus filhos
e deixado o pas, que administrou, endividado.

253
254

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo, op. cit., p. 204.


O Chalaa, p. 185.

103

Este episdio da morte de D. Pedro I e seu "acerto" de contas com a


prpria conscincia, mostra a influncia pessimista do captulo Das Negativas de
Memrias pstumas de Brs Cubas, no qual o personagem-ttulo tambm faz um
balano crtico, porm cido e amargo, de sua vida, o que aproxima os dois
fragmentos citados.

104

4 O CHALAA, DE TORERO, E A CONTINUIDADE DE UMA TRADIO


Na seco anterior, que tratava da composio do romance de Torero,
alm das correlaes entre o discurso historiogrfico e o discurso literrio,
percorremos as obras Tristram Shandy, de Sterne, e Memrias pstumas de Brs
Cubas, de Machado de Assis, para cotej-las com O Chalaa, de Torero, na
perspectiva crtica, muitas vezes tratada de maneira implcita, da stira menipia,
de acordo com Mikhail Bakhtin.
Bakhtin, ao estudar a literatura do incio do sculo XVIII em suas obras A
cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois
Rabelais e Problemas da potica de Dostoivski, entre outros, analisa aspectos
importantes da linguagem, como a carnavalizao, o riso, o grotesco e o
dialogismo.
Com relao carnavalizao, Bakhtin d o nome de literatura
carnavalizada literatura que direta ou indiretamente, atravs de diversos elos
mediadores,

sofreu

influncia

de

diferentes

modalidades

de

folclore

carnavalesco (antigo ou medieval). Todo o campo do srio-cmico constitui o


primeiro exemplo desse tipo de literatura.255 Bakhtin chama a ateno para o fato
de a stira menipia ser o principal veculo de disseminao da carnavalizao na
literatura ocidental, uma vez que a carnavalizao penetra at mesmo no ncleo
propriamente filosfico da menipia.256
Para Bakhtin, o auge da carnavalizao da literatura ocorreu na poca do
Renascimento, a partir do qual comeou, tambm, sua decadncia. Nesse perodo
da Histria, a menipia penetra na totalidade dos grandes gneros, como o caso
da produo de escritores como Rabelais e Cervantes.257
Segundo Bakhtin, as fontes bsicas da carnavalizao da literatura dos
sculos XVII, XVIII e XIX:

255
256
257

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 107.


Ibid., p. 134.
Ibid., p. 136.

105

[...] foram os escritores renascentistas, principalmente Bocaccio, Rabelais, Shakespeare,


Cervantes e Grimmelshausen. Tambm serviu como semelhante fonte o romance
picaresco dos primeiros perodos (diretamente carnavalizado). Alm disso, os escritores
desses sculos encontraram outra fonte de carnavalizao, evidentemente, na literatura
carnavalizada da Antiguidade (inclusive na stira menipia) e da Idade Mdia. [...] O
romance picaresco [por sua vez] retratava a vida desviada do seu curso comum e, por
assim dizer, legitimado, destronava as pessoas de todas as suas posies hierrquicas,
jogava com essas posies, era impregnado de bruscas mudanas, transformaes e
mistificaes, interpretava todo o mundo representvel no campo do contato familiar. [...]
no estamos falando da influncia de temas isolados, idias ou imagens, mas de uma
influncia profunda da prpria cosmoviso carnavalesca, isto , das formas propriamente
ditas de viso do mundo e do homem e daquela liberdade verdadeiramente divina de
enfoque dessas formas que no se manifesta em idias isoladas, imagens e
procedimentos externos de construo, mas no conjunto da obra daqueles escritores.258

A carnavalizao pressupunha a predominncia do no-oficial, e,


inverso de valores que era, desfazia a hierarquia da sociedade feudal e de
transio do feudalismo para o capitalismo, identificada no Renascimento. Durante
a festa carnavalesca, alm das diferenas sociais que eram temporariamente
abolidas, papis sociais e de gnero tambm eram trocados. Era o universo que
sofria inverso, atravs da morte e da renovao, renascendo o mundo para um
novo tempo. Bakhtin confirma que durante o carnaval:
As leis, proibies e restries, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum,
isto , extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval; revogam-se antes de tudo o
sistema hierrquico e todas as formas conexas de medo, reverncia, devoo, etiqueta,
etc., ou seja, tudo o que determinado pela desigualdade social hierrquica e por
qualquer outra espcie de desigualdade (inclusive a etria) entre os homens. [...] o
carnaval aproxima, rene, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o
elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sbio com o tolo, etc.259

Outro aspecto importante da carnavalizao literria o riso carnavalesco


e sua natureza profundamente ambivalente. Associado ao riso ritual, o riso de
carter carnavalesco voltava-se para ridicularizar o sol, o deus supremo, ou outros
deuses, como forma de for-los a uma renovao de si mesmos. notria,
segundo Bakthin,260 a relao estreita entre as formas de riso ritual e o conceito de

258
259
260

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 159-160.


Ibid., p. 123.
Ibid., p. 127.

106

morte e renascimento e, portanto, sua relao com os smbolos das

foras

produtivas. O riso ritual reagia s crises na vida do sol, na vida da divindade, do


universo e do homem, fundindo-se neste riso a ridicularizao e o jbilo. Com a
intermediao do riso, muito do que era considerado como inalcanvel, por
exemplo, atravs do srio, parecia passvel de soluo.
Uma das razes para esta caracterstica do riso que ele se configura
como uma posio esttica determinada diante da realidade que, contudo,
intraduzvel linguagem da lgica. Em outras palavras, o riso pode ser descrito
como um mtodo de viso artstica e interpretao da realidade e, por
conseguinte, um mtodo de construo da imagem artstica, do sujeito e do
gnero. Como atesta Bakthin:
O riso carnavalesco ambivalente possua uma enorme fora criativa, fora essa
formadora de gnero. Esse riso abrangia e interpretava o fenmeno no processo de
sucesso e transformao, fixava no fenmeno os dois plos da formao em sua
sucessividade renovadora constante e criativa: na morte prev-se o nascimento, no
nascimento, a morte, na vitria, a derrota, na derrota, a vitria, na coroao, o
destronamento, etc. O riso carnavalesco no permite que nenhum desses momentos da
sucesso se absolutize ou se imobilize na seriedade unilateral.261

Dada a evoluo natural da forma de influncia do carnaval, sucede que


na literatura carnavalizada dos sculos XVIII e XIX o riso, regra geral,
consideravelmente abafado, chegando ironia, ao humor e a outras formas de
riso reduzido. Ao analisar a obra de Dostoievski, Bakhtin262 ressalta que s vezes
o riso reduzido se manifesta exteriormente nos romances do escritor, sobretudo
onde se introduz o narrador ou o cronista cuja narrao quase sempre se constri
em tons irnico-pardicos ambivalentes. [...] Esse riso tambm se manifesta nas
pardias evidentes ou semi-evidentes que se difundem em todos os romances de
Dostoievski.
A contribuio de Bakhtin para o entendimento das caractersticas da
stira menipia na produo literria do Renascimento se encontra justamente em

261
262

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 166.


Ibid., p. 168.

107

sua anlise de grandes escritores do perodo em questo, como Cervantes e,


principalmente, Rabelais. Na verdade, atravs do exame da obra rabelaisiana
intitulada Gargntua e Pantagruel, que Bakhtin desenvolve outro importante
aspecto da stira menipia, qual seja, o conceito do grotesco. O prprio Bakthin
afirma que:
As explicaes deste tipo [sobre a predominncia do princpio da vida material e corporal
em Rabelais] so apenas formas de modernizao das imagens materiais e corporais da
literatura do Renascimento; so-lhes atribudas significaes restritas e modificadas de
acordo com o sentido que a matria, o corpo e a vida material (comer, beber e
necessidades naturais) adquiriram nas concepes dos sculos seguintes (sobretudo o
sculo XIX). No entanto, as imagens referentes ao princpio material e corporal em
Rabelais (e demais autores do Renascimento) so a herana (um pouco modificada, para
dizer a verdade) da cultura cmica popular, de um tipo peculiar de imagens e, mais
amplamente, de uma concepo esttica da vida prtica que caracteriza essa cultura e a
diferencia claramente das culturas dos sculos posteriores (a partir do Classicismo).
Vamos dar a essa concepo o nome convencional de realismo grotesco. [grifos do
autor] 263

Segundo Bakthin, o riso carnavalesco consistia no aspecto mais


espontneo e prprio das manifestaes da cultura popular da Idade Mdia e
Renascimento, perodo no qual as festividades alcanavam a durao de at trs
meses a cada ano. A cultura cmica popular e a arte que a utilizava como fonte de
inspirao encontravam sua forma de expresso no que o terico russo
denominava realismo grotesco. Neste, predominam a percepo carnavalesca
do mundo e o princpio do rebaixamento. O mundo carnavalizado das festas e da
arte popular um mundo no qual as misturas, os excessos e o rebaixamento de
todas as formas no sentido da vida material e corporal celebram o tempo alegre,
o tempo da transformao e da metamorfose, responsvel pela degradao e
morte de tudo o que existe de antigo, e pelo nascimento daquilo que novo.
Bakhtin enfatiza que no realismo grotesco, denominao dada ao sistema
de imagens da cultura cmica popular, o princpio material e corporal aparece sob
a forma universal, festiva e utpica. O csmico, o social e o corporal esto ligados

263

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 16-17.

108

indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisvel. um conjunto alegre e


benfazejo.264
Com relao expresso princpio do rebaixamento, esclarece
Bakhtin265 que rebaixar consiste em aproximar da terra, sendo que esta
representa, por sua vez, o princpio de absoro e de nascimento, de morte e
semeadura. O corpo, no realismo grotesco, o dos excessos, dos orifcios e dos
excrementos, e ainda do sexo e da gestao da vida. Explica-se assim a figura
recorrente em manifestaes pictogrficas do perodo renascentista da velha
grvida, a qual age, dessa forma, como uma espcie de emblema do realismo
grotesco e de sua franca oposio ao modelo clssico de representao do
mundo. A figura paradoxal da velha grvida lembra que no h nada estvel ou
perfeito nesse corpo de mulher que , efetivamente, quintessncia da
incompletude,266 ao anunciar a proximidade da morte ao mesmo tempo em que
carrega uma nova vida.
Percebe-se, assim, uma estreita relao entre o grotesco e a criao de
uma nova vida, de uma nova realidade, de um novo mundo. Mesmo ao morrer o
mundo d luz. No mundo grotesco, a relatividade de tudo que existe sempre
alegre, o grotesco est impregnado da alegria da mudana e das transformaes,
mesmo que em alguns casos essa alegria se reduza ao mnimo, como no
Romantismo.267 Mas para que esta anunciao de uma nova realidade ou de um
novo mundo pelo realismo grotesco funcione, o corpo humano precisa sofrer
mudanas ou alteraes que lhe permitam romper com os limites que a natureza
lhe impe, uma vez que o exagero, o hiperbolismo, a profuso e o excesso, so os
sinais caractersticos mais marcantes do estilo grotesco.
Por isso, o papel essencial entregue no corpo grotesco quelas partes, e lugares, onde
se ultrapassa, atravessa os seus prprios limites, pe em campo um outro (ou segundo)
corpo: o ventre e o falo: essas so as partes do corpo que constituem o objeto predileto
de um exagero positivo, de uma hiperbolizao; elas podem mesmo separar-se do corpo,
levar uma vida independente, pois sobrepujam o restante do corpo, relegado ao segundo
plano (o nariz pode tambm separar-se do corpo).268 [grifos do autor]

264
265
266
267
268

Ibid., p. 17.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit.,, p. 19.
Ibid., p. 23.
Ibid., p. 42.
Ibid., p. 277.

109

O grotesco, convm frisar, mantm ntima ligao com o riso popular, uma
vez que este riso onipresente nas manifestaes da cultura popular medieval e
renascentista , em primeiro lugar, um riso festivo, no individual; alm disso,
o riso universal, atinge a todas as coisas, todos riem e todos so alvos em
potencial do riso, e o mundo apresentado em seu alegre relativismo e,
sobretudo, o riso prprio ao realismo grotesco ambivalente, isto , alegre e
cheio de alvoroo, mas ao mesmo tempo burlador e sarcstico, nega e afirma,
amortalha e ressuscita simultaneamente.269 No realismo grotesco, no h vestgio
de medo, a alegria soberana, e tudo o que amedrontador e terrvel
representado na forma de espantalhos cmicos e vencido pelo riso
ambivalente, sendo que, assim, o terrvel adquire sempre um tom de bobagem
alegre.270
Com relao ao dialogismo, Bakhtin oferece uma definio do mesmo
como sendo no apenas um tipo de linguagem em que vrias vozes se cruzam ao
mesmo tempo, mas tambm como um espao no qual ocorre o cruzamento de
vrias ideologias. Para Bakhtin, todo e qualquer texto um processo inacabado,
ou que pelo menos tende a isto. Esse processo que teima em no acabar enseja
a possibilidade de se proceder a mltiplas maneiras de leitura, enfocando por um
lado a dualidade entre realidade histrica e social e, por outro, entre a realidade
das palavras, da fala e da lngua.
Dessa forma, o romance prope um dilogo de um texto com outro texto
ou com vrios textos, como vozes que se entrecruzam num mesmo discurso.
Embora os textos possam ser dialgicos quando resultam do embate de muitas
vozes sociais, podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando no h
hierarquia entre as vozes, ou de monofonia medida que uma voz coloca-se
hierarquicamente superior a outras vozes.
A orientao monolgica e a polifonia so observadas por Bakhtin como
aquelas que se diferenciam no discurso como verdades fechadas e abertas. O
discurso monolgico prprio do discurso autoritrio, que tenta obliterar o dilogo

269
270

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 10.
Ibid., p. 34.

110

ou a relao entre o eu o outro. Entretanto Bakhtin destaca que somente na obra


dostoievskiana encontra-se a polifonia que surge como possibilidade discursiva
em dilogo com a multiplicidade de vozes textuais. O romance O Chalaa se
configura a partir do plurilingismo, pois o dilogo social ressoa no seu prprio
discurso, seja ele de contedo ou de forma, que torna o romance um fenmeno
pluriestilstico, plurilnge e plurivocal. Assim, afirma o terico russo:
Introduzido no romance, o plurilingismo submetido a uma elaborao literria. Todas
as palavras e formas que povoam a linguagem so vozes sociais e histricas, que lhe
do determinadas significaes concretas e que se organizam no romance em um
sistema estilstico harmonioso, expressando a posio scio-ideolgica diferenciada do
autor no seio dos diferentes discursos da sua poca.271[ grifos do autor]

Como visto na citao acima, o plurilingismo realiza-se, no romance,


como vozes de diferentes gneros, por meio de construes hbridas tpicas de
dois ou mais estilos. Entre estes, destacam-se a confisso, o dirio, o relatrio de
viagens, estilos de textos moda de algum outro autor ou mesmo como
apropriao de trechos de outros autores. Como resultado desse tipo de
hibridizao, o discurso assume um carter bivocal, ou seja, o discurso de outrem
na linguagem de outrem.272
A tradio da stira menipia, rastreada por Bakhtin na literatura
ocidental, j o indicava anteriormente, tem sido alvo de interessantes
investigaes por parte, tambm, de uma vertente crtica brasileira, que reconhece
a presena dessa tradio em muitas obras da produo local. Entre os crticos de
renome que se debruaram sobre as manifestaes da tradio da stira menipia
no Brasil esto Jos Guilherme Merquior e Enylton de S Rego. Os dois
analisaram a forma pela qual o estilo menipico-satrico influenciou a literatura
brasileira, em especial as obras de Machado de Assis.

271
272

BAKHTIN, Mikhail. O discurso na poesia e o discurso no romance. Questes de literatura e


esttica: a teoria do romance. Trad. Aurora Bernardini. So Paulo: Unesp, 1993. p. 106.
Ibid., p. 127.

111

Merquior, em seu pioneiro ensaio Gnero e Estilo nas Memrias


Pstumas de Brs Cubas

273

, centra sua anlise, no romance de Machado de

Assis, buscando verificar os aspectos da stira menipia presentes nesta obra. E


realmente l esto, entre outros, a no linearidade da narrativa; a presena do
cmico-fantstico; a dialogicidade entre o narrador e o leitor e o uso constante de
gneros intercalados.
Entre suas consideraes acerca de Memrias pstumas, Merquior274
declara ser esta obra um representante moderno do gnero cmico-fantstico,
referindo-se, entre outros aspectos, presena inovadora, em relao aos
romances da poca de Machado, de um autor-defunto ou defunto-autor. Este
carter cmico-fantstico o que, segundo Merquior, liga a obra de Machado
stira menipia, chamada, pelo crtico, de literatura menipia.
Merquior lembra que as principais influncias estrangeiras em Machado
so Sterne (1783-1842) e Xavier de Maistre (1763-1852) e que o prprio escritor
brasileiro do sculo XIX reconhecia esta influncia em Memrias pstumas de
Brs Cubas, ao fazer o narrador declarar ter utilizado a forma livre de Sterne ou de
Maistre, embora houvesse dado mesma umas rabugens de pessimismo275.
O pioneiro ensaio de Merquior chamou a ateno de outro crtico, S
Rego, que, concordando com aquele acerca da representatividade moderna da
obra de Machado em relao ao gnero cmico-fantstico, decidiu aprofundar os
estudos, dentro da tradio da stira menipia no caso, denominada por
lucinica, derivada de Luciano de Samosata, referncia mais prxima de
Machado, como quer o crtico no apenas de Memrias pstumas, mas
tambm das outras obras da fase madura de Machado de Assis, como Quincas
Borba e Dom Casmurro. 276
S Rego, ao analisar a obra de Machado como possvel integrante da
vertente literria chamada de stira menipia, verificou que as referncias

273
274
275
276

MERQUIOR, Jos Guilherme. De Anchieta a Euclides, op. cit., p. 182.


ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit. Prefcio de Jos
Guilherme Merquior. p. 4.
Ibid., p. 16.
REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia, op. cit., p. 191.

112

tradio lucinica feitas por Machado de Assis, presentes na segunda fase de sua
obra, comprovam a teoria de que Machado no apenas tinha um conhecimento
preciso da potica da tradio lucinica, mas que se inspirou nesta para
desenvolver temas e tcnicas literrias intimamente associadas a essa tradio.
Entre

os

textos

machadianos

analisados,

Rego

encontrou

caractersticas fundamentais da tradio lucinica. Dentre essas, sobressaem o


emprego do hibridismo genrico como meio de inovao literria; a utilizao
sistemtica da pardia e de citaes truncadas; uma extrema liberdade de
imaginao e fantasia; a ausncia de preocupaes moralizantes pelo narrador e
o uso sistemtico do ponto de vista irnico do observador distanciado277.
Tradio essa que pretendemos perseguir em nossa anlise, como j por
diversas vezes reiterado, ao analisar O Chalaa, de Torero. Vimos que, para
compor sua obra, Torero lanou mo de recursos estilsticos prprios da tradio
da stira menipia. Por exemplo, a digresso no romance se manifesta na
constatao de que os fatos e eventos narrados no seguem uma linha temporal
cronolgica. J nas primeiras pginas, podemos afirmar que o narrador quebra a
ordem linear ao comear seu dirio de anotaes praticamente pelo fim. Nos
captulos iniciais, resumem-se alguns dos principais acontecimentos da vida do
narrador: seu relacionamento com a baronesa Marie Louise, na Frana, e a
deciso de Gomes da Silva de retornar a Lisboa para o reencontro com D. Pedro
IV. Nesses captulos o narrador interrompe vrias vezes a narrativa, ora para
detalhar a sua vinda para o Brasil, ora para expor a teoria da bestofilosofia,
contada por um mendigo. Contudo, no captulo dezesseis que a narrativa sofre
uma quebra brusca, quando o narrador decide escrever seu livro de memrias. A
partir da, a narrativa apresenta-se de forma embaralhada entre o passado e o
presente do narrador, o que muitas vezes confunde o leitor. Esse procedimento
narrativo, como se afirmou, aproxima-se do estilo de Tristram Shandy e de
Memrias pstumas de Brs Cubas.

277

REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia, op. cit., p. 191.

113

Vale ressaltar, claro, que no se trata, simplesmente, de seguir, risca, a


tcnica narrativa de Sterne. A distribuio dos captulos apresentados na obra de
Torero segue at certo ponto o modelo de Tristram Shandy, Assim, os captulos
do dirio de anotaes de Gomes da Silva vm todos numerados, mas sem ttulo.
Por outro lado, os captulos do livro de memrias do narrador, alm de
numerados, so todos intitulados e com prvio comentrio, diferentemente de
Tristram Shandy e de Memrias pstumas de Brs Cubas.
Como j observamos, Torero utiliza tambm a mesma forma narrativa de
Sterne e Machado, ao fazer uso do recurso metalingstico. Contudo, o dilogo do
narrador Gomes da Silva com o leitor, embora simptico, Sterne, no consegue
manter sempre essa mesma caracterstica. H momentos em que ele atribui ao
leitor uma curiosidade incontrolvel sobre o desenrolar da narrativa, como, por
exemplo, quando se refere s razes pelas quais ele foi expulso do Brasil. Pede
pacincia ao leitor, afirmando que mais adiante contar a sua histria. Mas essa
solicitao de tolerncia aparente. De repente, sem mais nem menos, o narrador
irrompe irnico e debochado, zombando do e ridicularizando o leitor. Quando, por
exemplo, diz uma palavra obscena ou descreve uma cena grotesca, o narrador
transfere imediatamente ao leitor a zombaria. o caso do ato de defecar. Afirma
que o leitor praticaria o ato (defecar), mas indignar-se-ia com o uso da palavra
diarria. Gomes da Silva responde, ironicamente, que diarrhoea teria o mesmo
fedor como qualquer outro nome que se viesse a empregar. A interlocuo com o
leitor, de qualquer forma, remete imediatamente a Sterne e a Machado, embora a
tnica do discurso no seja necessariamente a mesma.
O humor que permeia a obra de Torero, de outra parte, se no to
benevolente como o de Sterne, diferente do riso amargo, custico e mesquinho
do narrador de Memrias pstumas. O humor em O Chalaa manifesta-se na fala
e nas aes de inmeras personagens e situaes caricatas apresentadas ao
longo da narrativa. A linguagem cmica empregada mostra-se, quase sempre,
plena de ironia e humor dissimulado e divertido, conduzindo, por vezes, ao
grotesco.

114

Segundo Vladmir Propp278, a stira ou o cmico surge a partir das aes


absurdas, e mesmo fantsticas, dos seus heris. Em O Chalaa, Gomes da Silva,
em seu af de subir na vida, nem que seja s custas do sacrifcio dos outros,
resolve armar uma cilada para seu inimigo, Caetano Gamito. Assim, prepara uma
festa na qual este ser desmascarado e ridicularizado, numa clara referncia aos
rituais da Antiguidade nos quais ocorria a representao do destronamento e
ridicularizao do poder vigente:
O cerimonial do rito do destronamento se ope ao rito da coroao; o destronado
despojado de suas vestes reais, da coroa e de outros smbolos de poder, ridicularizado e
surrado. [...] Alm do mais, era precisamente no ritual do destronamento que se
manifestava com nitidez especial a nfase carnavalesca nas mudanas e renovaes, a
imagem da morte criadora279.

A ao de Gomes da Silva transforma seu inimigo em motivo de riso e


escrnio. O riso, nos diz Bakhtin, ao analisar as obras Satiricon, o Asno de Ouro e
Gargntua e Pantagruel como modelos de uma manifestao carnavalesca, uma
forma de coroao/destronamento no s do rei, .mas do discurso oficial. 280
O riso ou humor aqui abordado conduz, tambm, j o afirmava, ao
grotesco. Nesse sentido, verificamos, ao longo do romance, os atos grotescos que
o narrador relata. Um exemplo tpico de ato grotesco o do episdio no qual D.
Pedro e sua comitiva so acometidos por forte diarria, ao mesmo tempo em que
aquele recebe as correspondncias que o levam a se decidir pela proclamao da
independncia do Brasil. Nessa passagem, notamos uma aproximao do baixo
corporal da zona dos rgos genitais. Isso indica que os excrementos ali
depositados por D. Pedro estavam ligados fecundidade, ou seja, morte do
Brasil-colnia e ao nascimento de um pas independente. Conforme elucida
Bakhtin, as imagens e gestos populares carnavalescos, tais como a projeo de
excrementos ou a rega com a urina, assumem grande importncia, pois, todas as

278
279
.

280

PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. So Paulo: tica, 1992, p. 9. Traduo: Aurora Fornoni
Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Srie Fundamentos.
BAKHTIN, Mikhail, Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 125.
BAKHTIN, Mikhail. Questes de literatura e de esttica, op. cit., p. 249.

115

imagens verbais e gesticulaes desse tipo faziam parte do todo carnavalesco


impregnado por uma lgica nica. Esse todo o drama grotesco que engloba ao
mesmo tempo a morte do mundo antigo e o nascimento do novo.281
No por acaso, D. Pedro, tendo evacuado de dentro de si toda ligao
com o reino de Portugal, e irado com as notcias ultrajantes de alm-mar, decide
que a nica coisa que lhe resta a fazer para separar-se definitivamente da antiga
ptria arrancar de seus trajes os laos de Portugal. E ainda incita sua comitiva a
fazer o mesmo. Um novo mundo surge das cinzas (fezes) do antigo! Nesse
sentido, o grotesco, em O Chalaa, remete novamente tradio da stira
menipia.
Com relao linguagem utilizada no romance em questo, devemos
frisar que tambm esta gera efeito cmico. Assim, o narrador apresenta uma
linguagem formal, de acordo com os padres gramaticais lusitanos, inclusive
utilizando-se de expresses latinas com o objetivo de falar difcil, de forma
erudita, e, assim, impressionar os incautos, embora, tambm a, a ironia implcita.
o que acontece, por exemplo, quando o narrador diz Triste est omne animal
post coitum, praeter mulierem et gallum282 Em outros momentos, contudo, o
narrador desliza para a linguagem chula, mas imediatamente reage, alegando
que tais expresses so produto de outro personagem. Ironicamente, ele se
reserva o direito de se apresentar como cultivador de uma linguagem
aparentemente culta.
Joo Carlota o personagem que, de fato, emprega um vocabulrio
grotesco. Na verdade, este tipo de linguagem a linguagem da praa pblica, cuja
riqueza e vitalidade so assinaladas por Bakhtin, e que remete cultura popular
medieval e carnavalizao. Essa se produz pelo uso de expresses familiares,
escatolgicas, obscenidades sexuais, grosserias, palavras de duplo sentido e
cmicas de baixo calo. Quando, por exemplo, Joo Carlota v pela primeira vez
D. Amlia, a segunda esposa de D. Pedro, no se contm e admirado utiliza um

281
282

BKAHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 128.
O Chalaa, p. 202.

116

vocabulrio que remete diretamente ao discurso carnavalizado: Que mulher! Que


cintura! Com todo o respeito a D. Pedro daria a minha alma para fod-la! 283
Na obra de Torero, o grotesco aparece, entre outras razes, graas
utilizao, pelo autor, de uma caracterstica importante da stira menipia, ou seja,
o gnero hbrido. Por meio desse, possvel verificar, em O Chalaa, diversas
vozes que se misturam e se entrecruzam. Torero se apropria de textos da histria
oficial, divide sua obra em dirio, memrias e cartas e emprega o discurso de
outros autores, como o de Machado de Assis e o de Sterne. O romance de Torero
caracteriza-se, portanto, pela pluritonalidade de discursos.
No romance em foco, coexistem o verso (sob a forma de trova), a prosa,
cartas e dirio, entre outras vozes que se interpenetram, fato que corrompe a
pureza dos estilos. A trova, por exemplo, introduzida pelo pretalho Jos
Janurio e pelo narrador Gomes da Silva, durante um desafio cantado. A
linguagem chula, plena de ofensas pessoais entre os desafiantes, introduz a tpica
linguagem das classes baixas da sociedade carioca, representada, principalmente,
por freqentadores de botequins, em que, tambm, outra ironia, encontra-se Dom
Pedro. Esse episdio revela que o narrador era capaz de fazer uso de linguagem
chula, embora, no restante da narrativa, procure passar a falsa imagem de pessoa
culta e bem nascida, incapaz de descer o nvel de sua linguagem.
As cartas de autoria dos personagens Joo da Rocha Pinto e Joo Carlota
introduzem um estilo lingstico diverso daquele utilizado pelo narrador. Dessa
forma, como apontado acima, contribuem para corromper a pureza do estilo
lingstico da obra, peculiaridade fundamental da literatura carnavalizada, entre
outras.
Nesse sentido que se pode afirmar que o romance de Torero tributrio
de toda uma tradio literria, a da stira menipia, que se estende, conforme
Merquior e Enylton de S Rego, no Brasil, a Machado de Assis e, atravs deste, a
Torero, ou ao contemporneo.

283

O Chalaa, p. 81.

117

5 CONSIDERAES FINAIS: ENTRE A TRADIO LITERRIA E A


NARRATIVA PS-MODERNA
No primeiro captulo, fizemos uma resenha dos textos sobre os fatos
histricos ocorridos desde a sada da Famlia Real Portuguesa de Lisboa at a
abdicao de D. Pedro I, em 1831, perodo histrico abarcado pelo romance O
Chalaa, de Jos Roberto Torero.
No segundo captulo, procuramos fazer um esboo dos principais pontos
do romance, a fim de, posteriormente, cotej-lo com a histria, uma vez que, como
dito, o romance remete historiografia do Primeiro Imprio brasileiro. Torero,
vimos, ao mesmo tempo em que cria, atravs de verossmeis tramas laterais, um
passado fictcio, narra tambm aquilo que realmente ocorreu, ou melhor, o que
se encontra nos registros histricos a que normalmente se d crdito.
No terceiro captulo, realizamos a anlise de O Chalaa propriamente dita.
Num primeiro momento cotejamos o texto de Torero com a historiografia. O
Chalaa no se refere apenas a uma determinada realidade, mas, enquanto
linguagem prpria, faz-se valer de um passado real para concretizar virtualidades
imaginrias. O romancista no se atm a transcrever o material pesquisado.
Produz, atravs da imaginao, outras tramas, cria o possvel, ou seja, o que
poderia ter ocorrido. Mundo de liberdade que permite a criao ficcional, cria
efeitos de verdade a partir de histrias j registradas, narradas, contadas atravs
de outros textos e/ou narrativas histricas.
Conclumos, assim, que Torero busca relatar alguns pontos da histria,
mas de forma ficcional e humorstica, desconstruindo, desse modo, os principais
pontos canonizados pela historiografia. Ou seja, cria uma verso humorstica e
satrica das intrigas, mexericos e acontecimentos do universo palaciano do
Primeiro Imprio brasileiro, a partir do ponto de vista de um criado de quarto, um
servial que busca, por meio de um comportamento dbio, dissimulado, bajulador
e interesseiro, participar de todos os acontecimentos polticos do pas recmcriado.

118

No mesmo captulo, aps uma breve discusso sobre a tradio da stira


menipia, bem como sobre a forma solta dos romances de Laurence Sterne e de
Machado

de

Assis,

examinamos

composio

da

obra

de

Torero

comparativamente com as obras Tristram Shandy, de Sterne, e Memrias


pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis. Percebemos que o romance em
foco sofre decisiva influncia de seus predecessores pelo fato de apresentar
caractersticas em comum da forma da stira menipia, como a digressividade, a
interao com o leitor, o humor e o grotesco. Nesse sentido, a obra de Torero
tambm nos remete s caractersticas da tradio lucinica.
No quarto captulo nos dedicamos a retraar e a examinar o processo pelo
qual o romancista comps sua obra. Com o intuito de estabelecer a relao ou
no de O Chalaa com a tradio da stira menipia, retomamos os pontos de
contato entre o romance e a tradio a partir de Bakhtin, Jos Guilherme Merquior
e Enylton de S Rego. Notamos que Torero utilizou sistematicamente textos
hbridos, que mesclam linguagem culta e popular e intertextos de passagens
histricas em situaes ficcionais humorsticas.
Em nossa opinio, Torero est claramente consciente do carter hbrido
de seu romance, conforme a tradio da stira menipia, o que faz com que o
romancista componha, na literatura brasileira contempornea, um texto sob forma
de um romance no linear, em tom em que se mesclam seriedade e comicidade.
Nisso, se prende diretamente tcnica narrativa de Sterne e Machado,
encarnando, dessa maneira, em nossa contemporaneidade, toda uma tradio
literria.
Mas da tambm o nosso questionamento, que aqui se expe apenas no
intuito de indicar possveis futuras investigaes, no sentido do que j indicvamos
na Introduo: seria Torero, como um escritor contemporneo que se apropria
das tcnicas narrativas de Sterne e Machado, e, genericamente, dos
procedimentos da tradio da stira menipia, um representante direto dessa
tradio, apresentando o mesmo estatuto de seus predecessores?
Existem duas vises dentro da crtica literria que examinam a produo
ficcional contempornea: a dos formalistas, em que se destacam nomes como

119

Linda Hutcheon e Roland Barthes, a qual considera que o retorno ao passado


realizado pelos romances ditos ps-modernos, como o de Torero, que se apropria
da histria e da historiografia de modo ficcional, se d de modo crtico,
empregando nesse processo aspectos como ironia, pardia, auto-reflexividade e
auto-referencialidade para desconstruir de forma crtica o referencial histrico, e a
outra viso, a dos crticos de orientao marxista, que abriga em suas fileiras
nomes como Fredric Jameson e Terry Eagleton, que considera que o papel da
intertextualidade nos romances ps-modernos, apontada por Linda Hutcheon,
perde valor face evidente falta de profundidade dessas obras e ausncia de
historicidade, sendo que o resgate do passado por esses romances no se deve
ao valor histrico em si, mas sim ao desaparecimento do sujeito individual e falta
de um estilo pessoal. Como ficaria a obra de Torero diante dessas questes?
No final da dcada de 1960, o conceito de polifonia ou de dialogismo,
desenvolvido por Bakhtin, foi rebatizado por Julia Kristeva como intertextualidade.
Para a autora, todo o texto se constri como mosaico de citaes, todo texto
absoro e transformao de um outro texto. Em lugar da intersubjetividade
instala-se a intertextualidade.284 Ou seja, a noo de texto para Kristeva
generalizada no sentido de que todos os sistemas e estruturas culturais so
considerados como texto.
Linda Hutcheon define, na mesma linha, a intertextualidade pardica como
transcontextualizao irnica, como inverso, como um ato de imitao. Para a
autora, a preocupao com o passado histrico no deve ser vinculada ao retorno
nostlgico ao passado.
Para Hutcheon, a pardia intertextual a elaborao de um novo texto a
partir de outro j existente e, para assinalar a diferena que o novo texto
apresenta, insere-se nele uma boa dose de ironia com o intuito de estabelecer
vnculo com o passado. O tom irnico e satrico seria o elo de ligao entre o
presente e o passado que impediria o retorno nostlgico.

284

KRISTEVA, Jlia. Introduo semanlise. Traduo: Lucia Helena Frana Ferraz. So


Paulo: Editora Perspectiva, 1974. p. 64.

120

A metafico historiogrfica, como ela define a resultante desse


procedimento, o que caracteriza o chamado ps-modernismo na fico. As
obras que se enquadram nesse gnero so aqueles romances famosos e
populares que, ao mesmo tempo, so intensamente auto-reflexivos e mesmo
assim, de maneira paradoxal, tambm se apropriam de acontecimentos e
personagens histricos.285
Hutcheon destaca como caracterstica da metafico historiogrfica a
preocupao em rediscutir as relaes entre fico e histria, assim como em
redefinir a prpria conceituao de histria, enquanto produo humana. Sua
autoconscincia terica sobre a histria e a fico como criaes humanas
(metafico historiogrfica) passa a ser a base para o seu repensar e sua
reelaborao das formas e dos contedos do passado.286[ grifos da autora]
As teorias apontadas por Hutcheon tm por finalidade o retorno ao mundo
discursivo, ao mundo dos textos e dos intertextos e no texto versus mundo real.
O ps-modernismo autoconscientemente uma arte dentro do arquivo,287 tanto
na Histria como na Literatura.
Aliada s teorias de Roland Barthes, Jacques Derrida e Umberto Eco,
Hutcheon afirma que a intertextualidade substitui o relacionamento autor-texto,
deixando de exigir a originalidade na literatura ou na obra literria. Os discursos s
adquirem importncia a partir de outros discursos anteriores. Com isso, abandonase a originalidade e o estilo pessoal do artista, passando a valer nas teorias psmodernas a intertextualidade pardica com vises mltiplas. Na viso de
Hutcheon, s seria possvel estabelecer uma relao explcita com o mundo real
por intermdio de narrativas, tanto as do passado como as do presente, sempre
de forma textualizada.
Em

suma,

funcionamento

da

intertextualidade

da

metafico

historiogrfica ps-moderna, no entender de Hutcheon, ocorreria da seguinte


forma: todo texto seria uma absoro e transformao de outro texto, e em lugar

285
286
287

HUTCHEON, Linda. A potica do ps-modernismo..., op. cit., p. 21.


Ibid., p. 22.
Ibid., p. 165.

121

da intersubjetividade se instalaria a intertextualidade. Haveria, assim, no mais


uma escritura, mas uma re-escritura.
Ao analisar o conceito de intertextualidade proposto por Linda Hutcheon, o
crtico norte-americano Fredric Jameson, em sua obra Ps-modernismo a lgica
cultural do capitalismo tardio,288 comenta o carter de pouca profundidade que
acomete a intertextualidade, fato este que lhe retira o valor e a transforma em uma
esttica da superficialidade, composta por colagens e marcada pela ausncia de
historicidade.
oportuno ressaltar que no contexto literrio contemporneo os romances
histricos, mais especificamente os surgidos a partir da dcada de 1990, seguem
a perspectiva da esttica da superficialidade, na tica de Jameson. Eles no
constituem instrumentos de formao de identidade cultural, sendo apenas
narrativas que apontam para um passado essencialmente textualizado e autoreflexivo. Obras que olham o passado com a descrena dos tempos atuais. Tratase, portanto, de uma farsa burlesca destinada a divertir o pblico leitor e reforar a
idia de que tanto ontem como hoje, tudo se resumiria a uma comdia. Essas
narrativas ps-modernas que se debruam sobre o passado para colher material
j reciclado, reprocessado, que geram novas verses sem grande pretenso de
inovaes formais, contribuem apenas como fonte de prazer, como aponta Terry
Eagleton:
A obra de arte ps-moderna tpica e arbitrria, ecltica, hbrida, descentralizada, fluida e
descontnua, lembra o pastiche. Fiel aos princpios da ps-modernidade, rejeita a
profundidade metafsica em favor de uma espcie de superficialidade forjada, jocosidade
289
e falta de afeto; uma arte de prazeres, superfcies e intensidades fugazes.

Inmeros so os exemplos dessa tendncia de meta-narrativa psmoderna. Para efeito de exemplo, so apresentados, na seqncia, cinco obras
contemporneas a O Chalaa, inclusive no que diz respeito ao seu tempo de

288
289

JAMESON, Fredric. O ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio, 2 ed.


Traduo: Maria Elisa Cevasco. So Paulo: tica, 2002.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introduo. Traduo: Waltensir Dutra. So
Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 318.

122

lanamento e em relao ao tempo da histria e universo focalizados: saga da


Famlia Real brasileira ao longo do Primeiro e Segundo Imprios brasileiros.
O primeiro deles, intitulado Dona Leopoldina: uma Habsburg no trono
brasileiro, de Glria Kaiser290, um romance baseado nos dirios reais mantidos
pela imperatriz durante sua juventude. Em tom ressentido, a narradora registra em
seu dirio suas angstias de adolescente, entremeadas de comentrios sobre as
questes polticas que alvoroavam a Europa, nos primeiros anos do sculo XIX,
bem como sua vida adulta no papel de Imperatriz do Brasil.
Outra obra, A imperatriz no fim do mundo: memrias dbias de Amlia de
Leuchtenberg, de Ivanir Calado,291 focaliza Amlia Leuchtenberg, segunda esposa
de D. Pedro I, narrando suas memrias cento e vinte anos aps sua morte. O
romance retrata as dbias memrias de uma imperatriz esquecida, e sua curta
relao matrimonial com D. Pedro I.
A obra A Repblica dos bugres, de Ruy Tapioca,292 constitui uma narrativa
em tom picaresco, envolvendo um perodo que abrange desde a chegada da
Famlia Real portuguesa ao Brasil at a proclamao da Repblica. O narrador
um moribundo que, no final do sculo XIX, j impossibilitado de comunicar-se
voluntariamente, ouve os acontecimentos ao seu redor, o que motiva suas
recordaes a respeito de tudo o que viveu na condio de filho bastardo de D.
Joo VI.
Em Meu adorado Pedro, Vera Moll293 retrata a vida de Dona Leopoldina, a
qual atravessa o Oceano Atlntico para honrar uma aliana de casamento. A vida
trgica da herona narrada com recursos inovadores de emoo. Situaes
muitas vezes irnicas e mesmo inslitas se misturam.
Por fim, outro romance que enfoca a vida da Imperatriz Leopoldina,

290
291
292
293

KAISER, Glria. Dona Leopoldina, uma habsburg no trono brasileiro. Traduo: Christiane
Rupp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo: memrias dbias de Amlia de Leuchtenberg.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
TAPIOCA, Ruy Reis. A repblica dos bugres. Rio de Janeiro: Rocco,1999.
MOLL, Vera. Meu adorado Pedro. Rio de Janeiro: Bom Texto,2001.

123

intitulado Leopoldina e Pedro I: a vida privada na corte, de Sonia SantAnna,294


apresenta uma narrativa que focaliza especificamente a vida poltica de D.
Leopoldina, revelando-a como uma mulher politizada, que dividiu com D. Pedro a
tarefa de construir os alicerces de um novo Brasil.
essa mesma tendncia de meta-narrativa ps-moderna que O Chalaa,
de Jos Roberto Torero, divide com os romances acima citados, posto que, como
visto anteriormente, ficcionaliza os fatos histricos do Primeiro Imprio brasileiro.
No se trata, enfim, de um romance especfico, que enfoca criticamente uma
determinada poca. Insere-se, isto sim, numa modalidade corrente de narrativas
do mesmo teor que vieram a pblico, no Brasil, ao final do sculo XX.
Os romances ficcionais ps-modernos acima parecem justificar a viso do
ensasta ingls Eagleton, que caracteriza o ps-modernismo como uma maneira
de enxergar a realidade que resulta numa aceitao da fragmentariedade, num
esvaziamento da histria e numa repulsa a qualquer totalizao.
Como no h mais nenhuma totalidade social, no pode haver nenhum
sujeito coletivo totalizante, capaz de encaminhar um projeto de transformao da
sociedade como um todo: o que se pode esperar de melhor a realizao de
pequenas reformas e modestos reajustes institucionais.
Nas expresses de Eagleton, o termo ps-modernismo refere-se, em
geral, a uma forma de cultura contempornea reflexo da ps-modernidade, a qual
aludiria a um perodo histrico especfico no qual a linha de pensamento questiona
as noes clssicas de verdade, razo, identidade e objetividade, a idia de
progresso, emancipao universal, os sistemas nicos e as grandes narrativas, ou
os fundamentos definitivos de explicao.295
Assim, ao contrariar o Iluminismo, o ps-modernismo percebe o mundo
como instvel, incerto, imprevisvel.296 Tal modo de ver a realidade emerge em
um momento histrico em que a nova forma assumida pelo capitalismo ocidental

294
295
296

SANTANNA, Sonia. Leopoldina e Pedro I, a vida privada na corte. Riode Janeiro: Jorge
Zahar,2004.
EAGLETON, Terry. As iluses do ps-modernismo. Traduo Elisabeth Barbosa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 07.
Idem.

124

sustenta-se em padres e tecnologias de consumo. O crtico destaca ainda que a


trajetria cultural ter grande repercusso nas cincias e na filosofia e que tal
mudana ser marcada pela superficialidade, auto-reflexividade, pluralismo,
ecletismo, descentramento.
Fredric Jameson, ao tratar da problemtica da identidade cultural no psmodernismo, destaca, como seus elementos estruturantes, o discurso do Fim da
Histria, o ataque s narrativas modernistas, o desmonte da racionalidade, a
inviabilidade de snteses totalizantes, enfim, um discurso que utiliza a ideologia
para dar cabo dela prpria.
A lgica cultural do capitalismo tardio frente indstria cultural est, a seu
ver, organizada sobre uma trade marcante, pastiche, morte do sujeito e
nostalgia, que permite sentir a especificidade da experincia ps-modernista do
espao e do tempo.297
Se a modernidade estava dominada pela pardia, como forma singular de
uma imitao cmico-irnica excentricamente contraposta a uma linguagem
normatizada e dominante na poca, na ps-modernidade o pastiche parece
assumir a forma de uma imitao desmotivada, neutra e sem estmulo para a
sensibilidade satrica que utiliza a linguagem normal para a ela se contrapor.
Para Jameson, o que resta ps-modernidade mergulhar no mundo da
moda nostlgica e do fracasso do esttico, da arte, e do novo. Assim, a psmodernidade no consegue mais criar estilos novos, uma vez que a modernidade j
esgotou sua experincia individual e pessoal. No entanto, a ps-modernidade cai
numa vasta esfera da pastichizao dos estilos mortos, e de um museu imaginrio.298
Jameson aponta ainda que os modelos de profundidade, como dialtica,
conceito de essncia e aparncia, ideologia e falsa aparncia, latente e manifesto,
autenticidade

inautenticidade,

significante

significado,

foram

todos

substitudos, nos anos de 1960 e 1970, pelas concepes de prticas, discursos,


jogos textuais, cujas estruturas baseiam-se em superfcies mltiplas, determinadas
pela explorao de inmeros estilos do passado.
297
298

JAMESON, Fredric. O ps-modernismo e a sociedade de consumo. In: KAPLAN, E. Ann (org.)


O mal estar no ps-modernismo: teorias e prticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 27.
Ibid., p. 31.

125

Na ps-modernidade constatou-se a inviabilidade de um estilo pessoal.


Isso trouxe consigo o enfraquecimento do afeto e uma escritura superficial, neutra,
chamada por Roland Barthes de escritura branca que, no dizer de Jameson,
uma espcie de pardia branca, ou pastiche, uma esttua sem olhos.299 Por
isso, deve-se insistir numa distino entre o procedimento intertextual do
modernismo e o uso que se fez dele a partir dos anos de 1960 e 1970. Assim,
argumenta, Jameson:
Claro que a pardia encontrou um terreno frtil nas idiossincrasias dos modernos e seus
estilos inimitveis[...]. Tudo isso nos parece de algum modo caracterstico, na medida
em que todos se desviam da norma que depois reafirmada, no necessariamente de
forma agressiva, pela imitao sistemtica de suas excentricidades intencionais. [...] A
exploso da literatura moderna em um sem-nmero de maneirismos e estilos individuais
distintos foi acompanhada pela fragmentao da prpria vida social a um ponto em que a
prpria norma foi eclipsada: reduzida ao discurso neutro das mdias. [...] os estilos
modernistas se transformaram em cdigos ps-modernistas [...]. Nessa situao no h
mais escopo para a pardia, ela j teve seu momento, e agora essa estranha novidade, o
pastiche, vem lentamente tomar seu lugar.300

O crtico v a construo dessa nova forma de pensar o passado, feita


pela fico ps-moderna, de forma negativa, caracterizando-a como mero pastiche
que nada mais do que a canibalizao de todos os estilos do passado.301 O
pastiche, de acordo com Jameson, surgiu com o desaparecimento do sujeito como
indivduo e da indisponibilidade de um estilo nico e pessoal. O domnio da
categoria do espao sobre o tempo contribuiu para a alienao do sujeito que no
consegue se reconhecer e traar seu prprio mapa neste espao. Nesse retorno
ao passado de forma negativa, segundo Jameson, o homem da sociedade psmoderna perdeu o senso da histria e est condenado a viver num eterno
presente nostlgico.
Jameson argumenta, por fim, a respeito dos romances ps-modernos, que
tais obras so incapazes de reproduzir representaes de nossa prpria
experincia corrente.302

299
300
301
302

JAMESON, Fredric. O ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio, op. cit., p. 45.
JAMESON, Fredric. O ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio, op. cit., p. 44.
Ibid., p. 46.
Ibid., p. 48.

126

nessa linha que Jameson, Eagleton e outros tericos marxistas, crticos


da ps-modernidade, desenvolvem suas anlises, e tambm nesse campo
terico que se pode, tambm, analisar o romance O Chalaa. A partir de uma
anlise calcada nas argumentaes de Jameson acerca do romance psmoderno, O Chalaa, de Torero, parece encaixar-se numa esttica que contribui
para o desaparecimento do tlos histrico e do estilo individual e pessoal.
A narrativa de O Chalaa ambientada no perodo do Primeiro Imprio
brasileiro, sem estabelecer elos de ligao entre o presente do escritor e o do
leitor. O mundo do tempo histrico passado o assunto central da obra. De
acordo com as teorias ps-modernistas, a narrativa de Torero se inscreve como
pardia auto-reflexiva e auto-referencial.
Como j visto em sees anteriores, Torero vale-se dos fatos histricos
ocorridos com personalidades de quem os registros e documentos histricos
atestam a existncia real para criar sua narrativa. Ele ficcionaliza a Histria, tendo
como solo histrico a capital imperial, o Rio de Janeiro, e o cenrio do conflito
entre os dois irmos, D. Pedro I e D. Miguel, pela posse do trono de Portugal,
mormente a cidade de Lisboa. Utilizando-se destes fatos histricos e alternando
sua narrativa entre estes dois lugares, o autor mescla fico romanesca e dados
histricos para sintetizar, e satirizar ludicamente, um determinado perodo da
histria poltica brasileira.
Nesse sentido, o romance de Torero no apresenta a estrutura dos
romances histricos tradicionais, como os de Sir Walter Scott, os quais envolvem
a mobilizao de um conhecimento histrico anterior, e visam a estabelecer a
coexistncia entre a histria e o romance para se articular em um novo paradigma
discursivo.
Em O Chalaa no h a coexistncia entre a Histria e o destino. O que
faz sugerir que o romance contribui para o enfraquecimento do sentido da histria,
do sujeito, do afeto, caractersticas tpicas da ps-modernidade. A obra de Torero
representa, poder-se-ia dizer, a crise da historicidade. O romance, ao mesmo
tempo em que contm figuras histricas reais, como D. Pedro I, D. Leopoldina,
Marqus de Barbacena, Marquesa de Santos e, evidentemente, o protagonista

127

Francisco Gomes da Silva, que interage com os personagens histricos


mencionados acima e os ficcionais Caetano Gamito, Calimrio e Lady Bloomfield,
promove o enfraquecimento da historicidade medida que opera com fatos
aparentemente fragmentrios. Ora o narrador aborda suas revolucionrias teorias
mdicas, ora interrompe a narrativa para falar sobre seu amo D. Pedro I e as
questes polticas do imprio, ora rompe com a linearidade textual para retom-la
em captulos posteriores, no intuito, parece, de desacreditar a prpria
possibilidade de inteligibilidade do todo, e, nesse sentido, da prpria Histria. Ou,
em outros termos, O Chalaa parece representar a total aceitao do efmero, do
fragmentrio e do descontnuo.
Torero constri o romance servindo-se de textos de arquivo. A partir
desses textos, cria sua narrativa sem se comprometer com a verdade histrica,
inventando personagens e acontecimentos e invertendo parodisticamente o tom e
o estilo dos textos histricos. O autor tambm insere contedo ficcional, como, por
exemplo, as banais filosofias do narrador, sempre repletas de conotaes sexuais,
para fazer as ligaes com o registro histrico. Com isso, a histria apresentada
no romance parece no ter mais nenhuma relao orgnica com os registros
histricos. Nesse sentido, O Chalaa perde seu referente histrico e se prope
apenas representar idias e esteretipos sobre o passado histrico. Textos
lanam-se contra textos para se produzir um novo texto, opaco, simulacro da
histria.
O leitor, em contato com um texto como o de Torero, desreferencializado e
descontnuo, percebe que no est frente a frente com o narrador preconizado por
Walter Benjamin.303 Para Benjamim, o narrador ideal seria aquele que apreciado
pelo povo por trazer histrias que descortinam novos mundos, fruto das viagens
do narrador, ou por traduzir, como ningum, as histrias e tradies de seu prprio
pas. Impossibilitado de contatar este narrador ideal e, tambm, poder-se-ia
dizer, com o indivduo em busca de um sentido para a sua existncia, como ocorre

303

BENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN,
Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura.
Traduo: Srgio Paulo Rouanet. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198-199.

128

no romance moderno resta ao leitor buscar usufruir o universo trabalhado pela


viso ps-moderna. No se trata mais de beber da fonte do conhecimento de um
narrador viajante ou das histrias entranhadas na vida de um homem honesto,
mas, sim, deixar-se invadir pelo movimento do significante a outro significante,
elidindo-se o prprio significado.
Se Machado de Assis se apropriou de uma tradio literria, inventou por
conta prpria seu estilo pessoal, no qual se destaca a ironia contra um mundo em
runas, que rompe com um mundo velho, no caso o do Imprio, ao mesmo tempo
em que apresenta sua descrena em um mundo novo, o da Repblica. A tcnica
narrativa de Torero, por sua vez, apia-se diretamente nos procedimentos de
escrita de Machado para expor as teorias filosficas do narrador Gomes da Silva,
a conversa deste com o leitor, bem como o jogo digressivo que permeia o
romance, numa espcie de texto que visa diverso do leitor, e no escavao
do mundo narrado.
Ao longo de seu romance, Torero deixa registrados inmeros provrbios e
ditos filosficos que se reportam a Memrias pstumas:
[...] No venci o drago, mas pisei um rato. No seria menos vencedor por isso.304
[...] Trs sons tudo o que busca o homem no decurso de sua experincia. No so dois,
nunca poderiam ser quatro. Pois muito bem, e tais so eles: o sussurro das mulheres, o
tilintar das moedas e o alarido das palmas. Nenhum homem poder se considerar
plenamente satisfeito muito embora possa fingir que deles no sente falta, como
alguns devotos se, ao menos uma vez na vida, no tiver tido contato com eles.[...] 305
[...] A vida no mais que um cerco [...].306
[...] As mulheres amam os homens que apresentam qualidades inversas aos seus
defeitos. [...] 307

possvel verificar a estreita ligao entre os provrbios e ditos filosficos


de Torero e as seguintes citaes, retiradas da obra Memrias pstumas de Brs
Cubas:

304
305
306
307

O Chalaa, p. 17.
O Chalaa, p. 92.
O Chalaa, p. 120.
O Chalaa, p. 76.

129

[...] No h amor possvel sem a oportunidade dos sujeitos. [...]308


[...] Deve ser um vinho enrgico a poltica. [...]309
[...] O vcio muitas vezes o estrume da virtude. [...]310
[...] A velhice ridcula , porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza
humana. [...]311
[...] Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. [...]312
[...] Suporta-se com pacincia a clica do prximo. Matamos o tempo; o tempo nos
enterra. [...]313
[...] No te irrites se te pagarem mal um benefcio: antes cair das nuvens, que de um
terceiro andar. [...]314

Torero, assim o parece, imita, simplesmente, o estilo pessoal machadiano.


Se Torero escreve como se fosse Machado, sua escrita vem marcada pelo uso do
estilo alheio, apresentando comentrio histrico em tom cmico, em uma
linguagem de fcil compreenso, desprovida de ambigidade e/ou reflexo
profunda a respeito da matria abordada. Com isso, contribui para o
desaparecimento do sujeito individual e do estilo peculiar. Ou, em outras palavras,
com a morte do sujeito, e do poder da pardia na literatura moderna, Torero
parece inclinar-se para o pastiche.
Em resumo, um romance que se mantm, diriam os crticos da psmodernidade, na horizontalidade. Mas isso, dizamos ao incio, matria para
uma outra investigao....

308
309
310
311
312
313
314

ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 86.
Ibid., p. 89.
Ibid., p. 107.
Ibid., p. 113.
Ibid., p. 116.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 146.
Idem.

130

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