O Chalaça
O Chalaça
O Chalaça
FLORIANPOLIS
JUNHO 2006
Banca Examinadora:
iii
iv
Agradecimentos
neste
rduo
gratificante
processo
de
vi
SUMRIO
RESUMO..........................................................................................................
viii
ABSTRACT ......................................................................................................
ix
INTRODUO .................................................................................................
11
17
30
43
43
54
58
58
66
72
81
3.3.5 O humor...................................................................................................
88
95
vii
RESUMO
viii
ABSTRACT
PASQUAL, Camila Marcelina. Jos Roberto Toreros Chalaa: The novel and
the dialogue with Tradition .2006. 144f. Dissertation ( Literature Mster ) - PsGraduation in Brazilian Literature , Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianpolis, 2006.
The dissertation analyses the novel O Chalaa written by Jose Roberto Torero, in
an attempt to insert it into a determined literary and critic tradition, known,
generically, as menipeia satiric tradition. At a first moment, a brief of the political
brazilian history is presented, which includes the First Empire, the historic period
with which novel comes to dialogue. In sequence, it is presented a short outline of
O Chalaa, with the goal of, in sequence, to compare historiography and novel. In
next chapter, Toreros work is examined under the perspective of main elements of
menipeia satire tradition: digression, humor, interaction with the reader, grotesque
and pessimism, elements, which are also, present in the work of Laurence Sterne
and Machado de Assis. This analysis is made to legitimate Toreros text within this
literary tradition. In chapter four, the relation between O Chalaa and literary
tradition is discussed again having as theoretical underpinning the contributions of
Mikhail Bakhtin, Jos Guilherme Merquior and Enylton de S Rego. Once
established the pertinence of the initial hypothesis, which puts Toreros novel into
menipeia satire tradition, it is suggested, on Final Considerations, some
indications that can, eventually, lead to one or yet other reading of the novel, now
under the perspective of post-modern literary critic. Is it questioned, there, till where
Toreros novel, while inheritor of a tradition, doesnt feed itself from that tradition to
leave it aside, perhaps, in terms of the critical relevance of the novel.
Key-words: O Chalaa; Post-modern Novel; Menipeia Satire, Jos Roberto
Torero; Lucianic Tradition.
ix
INTRODUO
A escolha que resultou na eleio da obra de estria (1992) do escritor
Jos Roberto Torero, intitulada Galantes Memrias e Admirveis Aventuras do
Virtuoso Conselheiro Gomes, O Chalaa1 como objeto de estudo dessa
dissertao, no foi aleatria. O estudo do romance histrico tem sido objeto de
nossa preocupao h algum tempo. Diramos, para simplificar, que o contato com
O Chalaa se estabeleceu por meio de um livro didtico utilizado para o ensino de
Lngua Portuguesa e Literatura para o nvel mdio. Os autores do mencionado
livro didtico indicavam O Chalaa como romance que retrata com perspiccia os
bastidores da vida poltica brasileira durante o Imprio pela tica do conselheiro
Francisco Gomes da Silva.2 E sugeriam, ainda, a unio entre a historiografia e a
fico para abordar o contexto histrico do perodo romntico brasileiro.
Ao se aplicar tal sugesto em sala de aula o resultado imediato foi a
ocorrncia de certa perplexidade entre os estudantes de Ensino Mdio, por no
saberem discernir entre fato histrico e fico. Cabe essa meno no sentido de
realar a capacidade da fico contempornea em articular a mistura do histrico
e do fictcio, podendo mesmo adulterar os fatos da histria consagrada,
sobrepondo o novo ao velho. A descoberta da obra de Torero deve-se, portanto,
em primeira mo, ao livro de William Roberto Cereja e Tereza Cochar Magalhes.
A virada do Milnio e os Quinhentos Anos do Brasil desencadearam, de
outra parte, comemoraes e revises da histria brasileira sob as mais variadas
formas. Os romancistas passaram a se debruar sobre pesquisas documentais
para construir seus romances, utilizando fatos e personagens histricos como
elementos constitutivos da fico.
Essa vertente romanesca receberia a ateno da crtica, em especial a da
crtica dita ps-moderna. Na viso ps-modernista, o romance histrico seria
3
4
para, a seguir, com eles cotejar o romance de Torero, e, por extenso, com a
tradio de que Laurence Sterne e Machado de Assis so tributrios.
O estudo, nesse aspecto, restringiu-se apenas a alguns tpicos dessa
tradio, como a digressividade, a conversa com o leitor, o humor, o grotesco e o
pessimismo, centrados em Tristram Shandy e em Memrias pstumas de Brs
Cubas, postos, sempre, em paralelo obra O Chalaa.
No quarto captulo, recompomos de forma sucinta o caminho trilhado por
Jos Roberto Torero na composio de seu romance. Revisitamos, assim, a
tradio crtica da stira menipia, a partir de Mikhail Bakhtin, que se estende ao
Brasil via Jos Guilherme Merquior e Enylton de S Rego. Procuramos, a,
evidenciar, dentro dessa vertente crtica, como o autor se apropriou da stira
menipia, pela mediao de Laurence Sterne e Machado de Assis.
No captulo final, ou nas Consideraes Finais, por sua vez, retomamos
os principais tpicos que indicavam que a obra de Torero se inseria dentro de uma
abrangente tradio literria do Ocidente, e que, particularmente no Brasil, se
vinculava obra de Machado de Assis. Se isso tinha algum cabimento e
cremos que sim , era de se indagar, no entanto, sobre o estatuto da obra de
Torero na contemporaneidade. Afinal, perguntamo-nos, se Torero se apropria da
tradio, e dela caudatrio, assertiva que se pretende o centro da dissertao,
como se pode avaliar, ainda assim, a sua representatividade no mundo
contemporneo?
Para indicar caminhos, to-somente, para essa discusso, que julgamos
necessria, e ainda por se fazer, como j indicamos ao incio desta Introduo,
recorremos, basicamente, a dois crticos contemporneos: Linda Hutcheon e
Fredric Jameson. Este, pela distino entre pardia e pastiche, e pela discusso
do lugar da narrativa contempornea na ps-modernidade. Aquela, pela
problematizao entre fico e histria na literatura ps-moderna, atravs da
concepo da literatura e da histria como um jogo de textualidades.
Se Linda Hutcheon caracterizava, nesse sentido, uma vertente literria
ps-moderna como metafico historiogrfica, em que se apagam, no fundo,
possveis fronteiras entre fico e histria, Fredric Jameson, de sua parte,
afirmaria que enquanto a modernidade estava dominada pela pardia, como forma
singularizada de uma imitao cmico-irnica excentricamente contraposta a uma
linguagem normatizada e dominante na poca, sendo, portanto, um estilo
carregado de potencial crtico, na ps-modernidade, ao contrrio, a pardia daria
lugar ao pastiche, forma de uma imitao desmotivada, aparentemente neutra e
sem o impulso satrico da sensibilidade que identifica algo, ou seja, a linguagem
normal, para desconstitu-la criticamente. Assim, o que restaria psmodernidade seria a impregnao da moda nostlgica e do fracasso do esttico,
da arte e do novo. Em que medida O Chalaa, perguntamo-nos, portanto, nessas
Consideraes Finais, embora reafirmando a tradio, no estaria ele tambm,
atravs da apropriao dessa mesma tradio, apontando para a prpria
superficialidade da literatura ps-moderna, no dizer de Fredric Jameson? So
questes que fogem, por certo, ao nosso intuito primeiro, o da insero do texto de
Torero na tradio, mas que, ao mesmo tempo, abrem perspectivas para novas
investigaes.
1 O CHALAA NA HISTORIOGRAFIA
Na obra O Chalaa, o autor centra sua escrita em fatos e personalidades
histricas da primeira metade do sculo XIX, os quais so recriados atravs de
imagens sociais que possibilitam um repensar do contexto histrico-social da
sociedade brasileira da poca. A narrativa caminha por espaos conhecidos e
situaes documentadas. No restam dvidas de que o autor mergulhou em
pesquisas de documentos histricos que resultaram no livro e recuperaram um
importante episdio dos bastidores da poca imperial.
Para a compreenso da composio de O Chalaa, que mais adiante ser
apresentada, necessrio fazer, primeiramente, um registro dos principais
acontecimentos do Primeiro Imprio e das influncias que Francisco Gomes da
Silva exerceu sobre D. Pedro I. Quem foi, afinal, esse homem to influente? Quem
foi essa enigmtica figura, to enigmtica que seu nome a Histria do Brasil nem
sequer se digna mencionar?
1.1 A CORTE NO BRASIL
Nelson Werneck Sodr5, como a maioria dos historiadores do perodo
imperial, relata o processo de transferncia da Famlia Real portuguesa para o
Brasil. No incio do sculo XIX, a poltica expansionista de Napoleo Bonaparte
alterou o equilbrio poltico da Europa. Em meados de 1807, o imperador francs
tentou impor a supremacia da Frana sobre os demais pases. Com a resistncia
da Inglaterra a este intento, o imperador francs decretou um bloqueio continental
com o objetivo de tentar arruinar economicamente a nao inimiga. Portugal, que
no podia viver sem o comrcio com os britnicos, encontrava-se em situao
delicada, uma vez que Napoleo o pressionava para que abandonasse sua velha
aliana com os ingleses e se juntasse ao grupo continental liderado pelos
franceses.
12
16
10
19
11
tais
aventureiros
em
diferentes
ramos
da
administrao.
Esse
24
12
28
30
13
31
14
35
SANTOS, Noronha. Prefcio. In: SILVA, Francisco Gomes da. Memrias do Conselheiro
Francisco Gomes da Silva - O Chalaa, op. cit., p. 16.
36
CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 64.
15
37
40
Ibid., p. 43-44.
16
41
17
44
18
48
19
52
20
55
PRADO JUNIOR, Caio. Evoluo poltica do Brasil: colnia e imprio. So Paulo: Brasiliense,
1991. p. 55.
56
PRADO JUNIOR, Caio. Evoluo poltica do Brasil. op. cit., p. 55.
..
57
SOUSA, Octvio Tarqunio de. Jos Bonifcio. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1972. p. 96-106.
21
58
22
61
23
68
66
24
A Monarquia Portuguesa, dizia este engenhoso lgico, fundada, segundo a autoridade
da folhinha, h 736 anos, tinha em 1803, poca em que se haviam renovado ttulos e
criado outros recentemente, 16 Marqueses, 26 Condes, 8 Viscondes e 4 Bares. O
Brasil, com 8 anos de idade como potncia, encerra j no seu seio 28 Marqueses, oito
Condes, 16 Viscondes e 21 Bares. Ora, progredindo as coisas do mesmo modo, como
de esperar, teremos no ano de 2551, que quando a nossa nobreza titular deve contar
a mesma Antigidade que a de Portugal tinha em 1803, nada menos de 2.385
Marqueses, 710 Condes, 1420 Viscondes e 1863 Bares.70
70
25
73
26
Garrett.
Chalaa
escreveu
trs
livros,
dois
deles
destinados
76
27
80
CALMON, Pedro. O rei cavalleiro: A vida de D. Pedro I. So Paulo: Nacional, 1933. p. 211.
PETRONE, Maria Thereza Schorer. Apud ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil, op. cit. p. 202.
82
SETBAL, Paulo. As maluquices do imperador, op. cit., p. 154-155.
81
28
83
O curto texto escrito por D. Pedro na madrugada do dia 07 de abril de 1831 foi o seguinte:
Usando do direito que a constituio me concede, declaro que hei mui voluntariosamente
abdicado na pessoa do meu muito amado e prezado filho o Sr. D. Pedro de Alcntara. Boa Vista,
sete de abril de 1831, dcimo da Independncia e do Imprio (SOUSA, Octvio Tarqunio de. A
vida de D. Pedro I, op. cit., p. 114. Tomo III).
84
CALMON, Pedro. O rei cavalleiro, op. cit., p. 311-312.
85
CINTRA, Assis. O Chalaa favorito do imprio, op. cit., p. 11-12.
86
Ibid., p. 13.
29
87
88
30
Aurelius Pimenta.
O Chalaa uma narrativa ficcional que procura (re)desenhar um perodo da
Histria do Brasil no incio do sculo XIX, mais especificamente os ltimos anos da
colnia e todo o primeiro imprio, ou seja, o governo de D. Pedro I. Contudo, sem
obedecer a uma linha de sucessividade, de encadeamento lgico entre os fatos, o
autor lana mo da narrativa fragmentada, apropriando-se com freqncia da tcnica
narrativa de Machado de Assis, de que trataremos adiante com mais detalhes.
O romance composto por um livro de memrias e um dirio de
anotaes. Este tem como ponto de observao o tempo da revoluo
constitucionalista em Portugal, quando D. Pedro I resgata o trono portugus para
sua filha Maria da Glria e derrota o irmo, o absolutista D. Miguel. Aquele se
constitui do caderno de anotaes de Francisco Gomes da Silva, conselheiro do
Imprio que, durante um bom tempo, foi um dos mais importantes auxiliares e o
mais prximo de Dom Pedro I. Graas sua privilegiada inteligncia, ascendeu de
simples servial a um dos mais influentes homens do Imprio brasileiro.
89
TORERO, Jos Roberto Xadrez, truco e outras guerras. Rio de Janeiro: Objetiva,1998.
TORERO, Jos Roberto. Pequenos amores. Rio de Janeiro: Objetiva,2003.
91
TORERO, Jos Roberto. PIMENTA Marcus Aurelius. Os vermes: uma comdia poltica. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2000.
90
92
TORERO, Jos Roberto. PIMENTA Marcus Aurelius. Terra Papagalli. Rio de Janeiro:
Objetiva,2000.
31
93
O Chalaa, p. 44.
32
94
33
O prncipe pssaro real
Tem f, tem corao.
O verdadeiro bisnau
aquele pretalho.97
D. Pedro riu e depois de alguns minutos estavam bebendo juntos. Assim foi
seu nascimento metafsico que se transformou em amizade e perdurou at o fim
da vida de D. Pedro I.
No captulo 18, l-se que aps a sada de El-Rei D. Joo VI do Brasil, em
1820, Gomes da Silva ficou perambulando pelo pao sem ter o que fazer.
Tambm queria voltar a Portugal, mas D. Pedro o queria para os seus servios.
Sua funo era intermediar os encontros de D. Pedro com as filhas do belo sexo.
Depois que D. Joo partiu, ele foi oficializado nessa funo, ou seja, passava os
meus dias a levar e trazer recados, marcar encontros, distrair maridos e coisas
outras.98 No havia distino de classes, raa ou cor nas preferncias do
Prncipe. A quituteira Andrezza, por exemplo, escrava do bispo, foi comprada por
Gomes da Silva e levada para o Palcio Imperial com o intuito de atender aos
desejos do Prncipe.
A narrativa prossegue nesse ritmo. Nos idos de 22, D. Pedro pediu
conselho a Gomes da Silva para fazer uma viagem a So Paulo, com o objetivo de
verificar como estavam as coisas por l e ele imediatamente aprovou a idia.
Havia comentrios sobre um levante ocorrido na provncia de So Paulo contra os
partidrios de Jos Bonifcio. D. Pedro perguntou a Gomes da Silva se no queria
ficar e ouviu uma declarao de bravura: mesmo que fssemos dois contra dois
milhes, ainda assim eu lutaria at a morte ao lado do meu senhor.99
No captulo 26, Gomes da Silva interrompe a narrativa para narrar a teoria
dos trs rudos, inspirada na obra El hombre y las cosas trplices, do renomado
Caldern de .Meja.100 Tais so eles: o sussurro das mulheres, o tilintar das
moedas e o alarido das palmas. Em seguida descreve a penosa viagem do Rio de
97
O Chalaa, p. 61.
O Chalaa, p. 67.
99
O Chalaa, p. 85.
100
O Chalaa, p.92.
98
34
101
102
103
O Chalaa, p. 93.
O Chalaa, p. 109.
O Chalaa, p. 112.
35
104
105
106
107
O Chalaa, p. 122-123.
O Chalaa, p. 123.
Idem.
O Chalaa, p. 129.
36
As foras brasileiras no se saram bem na Guerra da Cisplatina (18251827), sob o comando do Marqus de Barbacena, ocasionando assim a derrota do
Brasil.
A derrota na Guerra da Cisplatina deixou Gomes da Silva feliz, pois se,
antes, mal era convidado para as festas e jantares da corte, agora a sorte mudara
e, alm disso, recebera a comenda cruzmaltina. Ele, Joo Carlota e Rocha Pinto
prepararam um pequeno sarau e Gomes da Silva cometeu a imprudncia de
convidar o Marqus Barbacena para a festa. L, o assunto era Domitila, se ela
seria ou no a nova Imperatriz. Todavia, o Marqus se ofereceu para atravessar o
108
.
109
O Chalaa, p. 138.
O Chalaa, p. 161.
37
oceano e encontrar uma segunda esposa para o monarca. No dia seguinte, todos
os jornais falavam do assunto.
No captulo 48, narra-se que D. Pedro I recebe as primeiras cartas que
Barbacena lhe envia da Europa. O monarca fica desconcertado ao ler sobre as
sucessivas recusas. As cortes europias tinham o Brasil como uma frica
povoada por canibais, ou seja, a m fama do imperador j chegara ao Velho
Mundo. Depois de muitas tentativas Barbacena finalmente consegue uma esposa
para D. Pedro I.
Assim, no captulo 50, narrada a chegada da segunda esposa de D.
Pedro e como Barbacena conseguira influenciar o imperador para expulsar Gomes
da Silva. O Marqus de Barbacena insistia junto a D. Pedro para que houvesse
uma administrao mais popular. As presses se fortaleceram e ele assumiu o
comando. Depois de algum tempo, com o apoio da nova Imperatriz, disse que no
havia outro remdio seno expulsar Gomes da Silva e Joo da Rocha Pinto do
Brasil porque ambos eram absolutistas. Gomes da Silva deixa ento o Brasil:
Deliberei, pois, sair do Brasil. Fi-lo sem o mnimo desprazer, a no ser o causado pela
saudade do meu filho e de meu augusto amo. Com isso, s tive por objeto evitar-lhe
dissabores e inquietaes. Quis o meu senhor, contudo, que eu no ficasse
desamparado nas terras da Europa, e com isso concedeu-me, do prprio bolso, uma
penso anual de 25.000 francos por todo o tempo em que eu estivesse ausente da corte.
Meu destino era Londres. Algo me dizia que aquele era o lugar mais adequado para a
minha retirada da vida poltica.110
110
O Chalaa, p. 183.
38
Pedro no teve recurso seno abdicar da coroa em nome do seu filho. Foi assim
que, em abril de 1831, a injria triunfou sobre a virtude111.
As memrias do Conselheiro Gomes terminam no captulo 58. Ele se
encontra em Paris. um homem solitrio na capital da civilizao. L, conheceu a
Baronesa Marie-Louise de Vieuxtemps, viva de um rico industrial. Mal sabia ela
que um jovem de 41 anos no era to desinteressado assim ao lhe fazer a corte.
Contudo, ela vem a falecer e Gomes resolve partir para Lisboa.
Essa histria, no encadeamento dos captulos, encontra-se no incio do
livro. Assim, nos captulos de nmero 01, 02 e 03, Gomes da Silva narra seu
relacionamento com a Baronesa. No quarto captulo, o narrador oferece seus
prstimos de pagamento por todas as despesas do enterro, pensando ter-se
tornado o herdeiro da Baronesa.
No quinto, sexto e stimo captulos, Gomes da Silva narra o episdio da
leitura do testamento da finada Baronesa. Esta lhe deixa apenas uma gargantilha
de ouro. Foi o que resultara da imagem que ele criara, ao tentar demonstrar que
no tinha dvidas e estava bem colocado financeiramente.
No nono captulo, aps algumas reflexes sobre o porqu no se
apressara em conseguir logo o que queria, especialmente o testamento ou o
dinheiro da Baronesa, decepcionado o narrador decidiu viajar para Lisboa.
No captulo 11, refere-se luta pelo trono portugus e ao milagre atribudo
disciplina, pois 7.500 homens tomaram as fortificaes e cidades de outro
exrcito que contava com 80.000 soldados. O problema era D. Miguel, que no
aceitara a mo de Maria da Glria, como havia sugerido D. Pedro, passando
ambos a lutar pelo trono. D. Pedro entrou em Lisboa aclamado. Joo da Rocha
Pinto explica que a vitria do Porto foi uma coisa tremenda, s comparvel ao
feito de Henrique V na memorvel batalha de Azincourt. [...] Temos agora em
nosso poder as duas cidades mais importantes do reino.112
Nos captulos 13 e 14, o Conselheiro Gomes encontra-se com D. Pedro
IV, em Lisboa, depois de uma noite de farra na casa de Lady Bloomfield. D. Pedro
111
112
O Chalaa, p. 189.
O Chalaa, p. 42.
39
O Chalaa, p. 53.
O Chalaa, p. 81.
D.
40
O Chalaa, p. 89.
O Chalaa, p. 116.
41
117
118
O Chalaa, p. 90.
O Chalaa, p. 199.
42
No captulo 59, Gomes da Silva narra o dia mais feliz de sua vida. Ele e
seus amigos prepararam uma armadilha para afastar Caetano Gamito de D.
Amlia. Com isso consegue estreitar os laos de amizade com a Duquesa.
Os captulos de nmero 60 a 63 so dedicados s cartas para dar final
histria. A carta do captulo 60 dedicada ao Marqus de Barbacena, e o narrador
faz questo de dizer que destituiu Barbacena do ministrio. As cartas dos dois
captulos seguintes so enviadas pelos dois amigos fiis do narrador, Joo da
Rocha Pinto e Joo Carlota. O primeiro, tornou-se assessor de D. Maria II, e o
segundo, fazendeiro. Na ltima carta, temos Gomes da Silva escrevendo para
Gamito, contando as boas novas. Relata a seu casamento com D. Amlia e seus
projetos de vida. Ironicamente, diz que inveja o amigo por este se encontrar na
frica e, para provoc-lo, lhe escreve algumas frases de teor filosfico que
encontrou no famoso livro de Caldern de Meja:
[...] trs exemplos deve o homem imitar, cada qual vindo de um dos reinos da natureza:
dos minerais, deve aprender com a gua, que obedece forma do clice que a contm;
entre os vegetais, deve ser como a orqudea, que cresce sombra das grandes rvores;
e do mundo animal, deve espelhar-se na hiena, que segue os lees e no conhece a
fome.119
Gomes da Silva, com estas frases, quis mostrar ao "amigo" que o homem
sbio, da mesma forma que a gua, sabe se ajustar s variaes da sorte,
colocando-se sempre que possvel, ao lado dos poderosos. Ao se comparar s
orqudeas, mostra sua prpria disposio de buscar a proteo daqueles membros
da Corte mais prximos de D. Pedro e influentes junto a este. E, em relao s
hienas, a "lio" que ficaria seria a de que o homem inteligente sabe como se
postar sombra dos poderosos, sem se fazer notar, de modo a receber as
regalias e privilgios que tal proximidade proporciona.
119
O Chalaa, p. 226.
43
3 A COMPOSIO DO ROMANCE
3.1 A HISTORIOGRAFIA E A FICO
Histria, narrativa, fico. A princpio indistintas, adquirem, no sculo XIX,
com a academizao da Histria, estatuto diferenciado. Desloca-se o olhar acerca
da compreenso da realidade e vincula-se a verdade ao fato, considerando-se a
fico como algo oposto verdade. A histria passou a ser representao do
real e a fico, sobretudo o romance, a representao do possvel ou apenas
do imaginvel. Assim posto, possvel pensar a histria a partir da fico, e a
fico a partir da histria, uma vez que o compromisso de ambas bem distinto?
Quais os limites entre fico e histria?
Alguns estudiosos da histria do sculo XX mostram que h, atualmente,
uma preocupao em delimitar o espao do historiador e o do ficcionista, sem, no
entanto, impedir que existam pontos de confluncia.
Para Peter Burke, as tcnicas literrias inovadoras do sculo XX no so,
obrigatoriamente, aquelas adequadas substituio das velhas formas da histria.
H, todavia, elementos das estruturas narrativas que favorecem em muito a
inteligibilidade da representao do real. A influncia da narrativa pode ser sentida
na mudana de postura dos historiadores que esto comeando a perceber que
seu trabalho no reproduz o que realmente aconteceu, tanto quanto o representa
de um ponto de vista particular.120 O historiador deve assumir posio no
discurso, permitindo a sua visualizao como sujeito, evitando, assim, por
exemplo, uma manifestao de imparcialidade.
O historiador tambm poderia adotar a postura da pluralidade de pontos
de vista ao contar suas histrias, recorrendo aos modelos de romances. A
linearidade
da
narrativa
histrica
desapareceria
cedendo
lugar
uma
120
44
121
122
123
124
45
a cada um dos gneros. A distino usual entre literatura e histria, com base nas
convenes de ficcionalidade e veracidade, derivada da preceituao aristotlica
de que a Poesia imitao das aes humanas e relata o que poderia acontecer,
ao passo que a Histria a narrao dos eventos realmente ocorridos.
Entretanto, no se pode deixar de aproxim-las, tendo em vista que
Literatura e Histria reconfiguram um tempo passado na composio narrativa. De
acordo com o ponto vista de Sandra Jathay Pesavento:
Enquanto fico, tanto a narrativa literria quanto a histrica pressupem uma ordenao
do real e a busca da coerncia atravs de uma correlao de elementos e do
estabelecimento de relaes entre os dados. Esta coerncia fictiva depende de uma
possibilidade de construo de sentido articulada no momento da escritura do texto, mas
que dever tambm ser reconstruda pelo leitor. Portanto, a construo da coerncia
narrativa dever fazer sentido atravs da leitura. Pode-se, com isso, dizer que a
contemporaneidade de um texto, literrio ou histrico, se d na medida em que a sua
coerncia ficcional resgatada atravs da significncia que lhe atribuda pelo leitor.125
125
46
efeito
de
comprovao,
enumeramos
alguns
acontecimentos
126
127
128
129
MIGNOLO Walter. Lgica das diferenas e poltica das semelhanas: da literatura que parece
histria ou antropologia, e vice-versa. In: CHIAPPINI, Lgia; AGUIAR, Flvio Wolf de (orgs.).
Literatura e histria na Amrica Latina. So Paulo: Edusp, 1993. p. 123.
Idem.
Idem.
Ibid., p. 132-133.
47
130
131
48
132
133
134
135
O Chalaa, p. 61.
CINTRA, Assis, O Chalaa favorito do Imprio, op. cit., p. 14
O Chalaa, p. 183.
SETBAL, Paulo. As Maluquices do Imperador, op. cit., p. 147.
49
136
137
MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom. Viagem em torno de Mignolo: a literatura e a histria. In:
CHIAPPINI, Ligia; AGUIAR, Flvio Wolf de. Literatura e histria na Amrica Latina. So
Paulo: Edusp, 1993. p. 151.
MIGNOLO, Walter. A lgica das diferenas e a poltica das semelhanas..., op. cit., p. 125126.
50
Isto posto, pode-se dizer que Jos Roberto Torero refora, assim, as
marcas do discurso historiogrfico medida que trabalha com informaes
colhidas
das
fontes
histricas,
principalmente
quando
registra
alguns
138
51
apropria. Sustenta-se, assim, como obra cujas partes do enunciado podem ser
confirmadas por elementos externos, no caso os documentos histricos. Temos,
desse modo, em O Chalaa, a verdade de outro discurso, o da conveno da
veracidade. Por outro lado, como obra nica e acabada em si mesma, aquilo que
se conta em O Chalaa uma verdade prpria. Desta forma, a verdade no
romance pode ser verificada em relao obra, e ao que ela relata.
Temos em O Chalaa um dilogo entre estas duas verdades. Torero relata
com certa fidelidade aquilo que est canonizado pelo discurso da histria oficial e
ficcionaliza aquilo que pode ser ficcionalizado, aquilo que recupera atravs da
memria ou cria atravs da imaginao.
Quando Torero registra o episdio da dissoluo da Constituinte e
imediatamente D. Pedro I lidera o trabalho para uma nova carta constitucional que
trazia a juno das constituies europias e alm dos trs poderes, o Judicirio,
o Executivo e o Legislativo, houve o acrscimo do poder Moderador, temos o fato
histrico comprovado, registrado pela historiografia. Mas que Gomes da Silva
tivesse elaborado a carta da Constituio brasileira e D. Pedro I apenas a
houvesse aprovado ficcional, a verdade ficcional. Segundo Tarqunio de
Sousa, o Gomes da Silva foi apenas o escriba de D. Pedro I.
A princpio podemos dizer que a pesquisa histrica que encontramos em
O Chalaa serve para dar verossimilhana ao mundo ficcional, isto , fazer o leitor
acreditar naquilo que o narrador est dizendo. Isto acontece porque a existncia
do narrador estava documentada antes que o romance fosse escrito.
O discurso dos historiadores apresenta uma viso de mundo diferente do
discurso da obra de Torero. Na historiografia, o narrador em princpio, no pode
abandonar sua posio de terceira pessoa139 e da sua correspondncia com o
autor. J o narrador ficcional pode assumir a posio de um narrador em primeira
pessoa, que se assume como fator complicador, considerando que nele vigora a
coincidncia entre o autor e o narrador, posio distinta das obras historiogrficas.
139
LIMA, Luiz Costa. A aguarrs do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1989. p. 103.
52
Chalaa
de
Torero
desconstri
as
estratgias
da
narrativa
140
141
53
nossas percepes reais, das quais retemos ento apenas algumas indicaes, meros
signos destinados a evocar antigas imagens.142
142
BERGSON, Henri. Matria e memria. In: BOSI, Ecla. Memria e Sociedade: lembranas de
velhos. So Paulo: EDUSP, 1987. p. 9.
54
143
O Chalaa. Contracapa.
55
56
144
145
57
'Diabo! J faz dois dias que no fodo uma mulher!' Essas mesmas palavras, ditas com
essa mesma crueza e mpeto, foram pronunciadas pelo meu amigo Joo Carlota por
ocasio da passagem de uma vendedora de doces muito delgadinha, por sinal,
frente de nossa janela. [...] 'Na frica, por Deus! No h nada como foder na frica!'
Assim respondeu de chofre o Carlota, deixando-me um tanto mais confuso do que j
estava quando constatei que a minha ltima desobedincia ao sexto mandamento tinha
se verificado h... trs semanas.147
146
.
147
O Chalaa, p. 34.
O Chalaa, p. 47.
58
discurso do narrador, que lana suas razes numa das tradies narrativas do
Ocidente. Esse assunto ser tratado adiante com maior profundidade.
3.3 O CHALAA E A TRADIO LITERRIA
3.3.1 A stira menipia
Num primeiro momento, verifica-se que a obra de Torero parece remeter
tradio da stira menipia, que se encontra, tambm, em Laurence Sterne e
Machado de Assis. Por isso, traaremos as afinidades entre a escrita de Sterne e
de Machado, com especial ateno ao Tristram Shandy e s Memrias pstumas
de Brs Cubas. Em seguida estabeleceremos paralelos destes dois romances
com a obra de Torero.
Quintiliano (I. d.C.), em De institutione oratria, X, l, atribua a criao da
stira aos latinos. No entanto, sua constituio como gnero literrio se deve, sob
influncia, a muitas fontes gregas, alm das latinas. H, na verdade, dois estilos
satricos: um de vertente horaciana, de cunho moralista e com ntida inteno de
combater as deformaes humanas e outra, chamada de juvenaliana, cujos
autores principais so Varro, Sneca e Petrnio, denominada stira menipia.
A stira juvenaliana concebida para provocar o riso, a partir da ironia, da
raiva provocada, trazendo tona o que est sob a mscara da hipocrisia.
Observa-se o srio a partir do complexo simbolismo da mscara: da a pardia, a
caricatura, e a careta, ingredientes do grotesco. No raro o grotesco deriva em
melanclico; que a expresso do humor destrutivo, quando presente no
grotesco, nos ope realidade do mundo circunscrito esfera da perfeio oficial
que nos imposta.
Essa linha stirica deve sua denominao a Menipo de Gadara, filsofo da
escola cnica (sculos IV-III a.C.), um escravo liberto em Tebas. Quase todos os seus
escritos se perderam, restando apenas alguns ttulos, entre os quais uma
necromancia, na qual Menipo faz uma pardia de Homero e de vrias stiras, em que
se misturavam prosa e verso, o que os antigos chamavam estilo prosimtrico.
59
A seguir vem Marcus Terentius Varro ou Varro (116 a 227 a.C). Escreveu
stiras romanas, de teor moralizante, mas tambm stiras ditas menipias,
imitadas de Menipo, que denunciava os vcios da humanidade pelo riso e no pela
diatribe ou pelo vituprio. Na tradio grega, o satirista um spoudogeloion, um
personagem que atravs do seu riso, gelon, fala com seriedade, spoudaion.148
Essa tradio passa por Sneca que, alm de ter escrito diversos tratados
de filosofia moral, teve tempo para compor a primeira stira menipia
relativamente completa, intitulada Apokolokyntosis,149 que tinha por objetivo
satirizar o imperador Cludio.
S Rego salienta que a Apokolokyntosis uma narrao dos
acontecimentos passados no cu e no inferno no dia 13 de outubro do ano 54 de
nossa era,. dia da morte de Cludio.150 No texto, Cludio sobe aos cus, como
ocorrera com Augusto e Tibrio, e ali recebido por Hrcules, que no o
reconhece. Cludio julgado pela Assemblia dos deuses, que o condenam ao
Hades; desce terra assistindo a seu prprio enterro e, chegando ao mundo
subterrneo, julgado sumariamente e condenado a servir como escravo. Em sua
inteno e em seu contedo, um texto poltico, em que Sneca zomba do
Imperador que o tinha exilado. Em sua forma, uma stira menipia, pelo carter
intertextual no dilogo entre Cludio e Hrcules e tambm pela pardia dos vrios
textos de Homero, pela mistura do discurso erudito e popular e pela mescla de
prosa e verso.
uma alternncia caprichosa, decidida por um narrador que se permite
tudo, passando desinibidamente de um gnero para outro, da prosa para o verso,
do registro vulgar para o sublime.
Mas a tradio da stira menipia na Antiguidade centra-se sobretudo em
Luciano de Samosata.(aproximadamente120-140 d.C.) Nascido na pequena
cidade Sria chamada Samosata, Luciano era de origem humilde, tendo comeado
148
149
.
150
60
a vida como aprendiz de escultor. Mais tarde, fixou residncia em Atenas para se
dedicar s letras, onde escreveu suas principais obras. Acabou sua vida como alto
funcionrio do Imprio Romano. Luciano deixou cerca de oitenta obras que
compreendem as mais variadas formas literrias, entre as quais figuram Filosofias
venda, O pescador, O dilogo dos Mortos, Lcio, Histria verdadeira e o Asno
entre tantas outras.
Mikhail Bakhtin nos traz uma ampla discusso acerca da teoria da stira
menipia. Esse gnero, segundo o terico russo, remonta suas razes diretamente
ao folclore carnavalesco, e que um gnero carnavalizado, extraordinariamente
flexvel e mutvel como Proteu, capaz de penetrar em outros gneros.151 O
gnero stira menipia desenvolveu-se a partir da antiguidade clssica e se
enquadra no campo srio-cmico.
Segundo Mikhail Bakhtin, dois gneros so determinantes no campo sriocmico: o dilogo socrtico e a stira menipia. Acrescenta, ainda, que a
variedade de desenvolvimento do romance no campo srio-cmico traduz o
dialogismo.
O dilogo socrtico era tido quase como um gnero memorialstico, mas,
com o passar dos tempos, esse gnero comea a enveredar para o campo da
narrativa, manifestando-se contra o monologismo oficial que se pretende dono de
uma verdade acabada.152
J no sculo IV de nossa era Luciano de Samosata transforma Menipo em
personagem e escreve uma srie de dilogos, uma srie de aplogos, de
narrativas em que o personagem central nos ensina a stira que no d
conselhos, a stira que nos deixa com a liberdade de assumir um ponto de vista
diante do ridculo apresentado. Luciano vai, portanto, ser o salvador de uma
linhagem literria, cuja fora hoje verificamos ser o suporte de uma cultura
moderna e, se quisermos, sem exageros conceituais, ps-moderna.
151
152
61
153
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65
observador de suas personagens; e, no terceiro, temos um narrador que, embora
presente no texto, no deixa identificar-se a sua viso-de-mundo.163
ou cita de modo
163
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175
.
176
70
Quando Machado fala em maneira livre, est pensando em algo praticado por De
Maistre: a narrativa caprichosa, digressiva, que vai e vem, sai da estrada para tomar
atalhos, cultiva o a-propsito, apaga a linha reta, suprime conexes. Ela facilitada pelo
captulo curto, aparentemente arbitrrio, que desmancha a continuidade e permite saltar
de uma coisa a outra.178
177
178
71
72
179
PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta..., op. cit., p. 29.
73
A palma da mo direita, quando tombou sobre o leito, segurou-lhe a fronte e cobriu-lhe
quase totalmente os olhos; afundou-se, de manso, junto com a cabea (o cotovelo
deslizou para trs) at o nariz tocar a colcha; o brao esquerdo pendeu, insensvel, do
lado do leito, descansando os ns dos dedos na asa do urinol.180
Tristram deixa seu pai nessa posio e aproveita para acrescentar uma
infinidade de digresses, entre as quais a histria de um narigudo de Estrasburgo,
dotado de um nariz enorme que encantava todas as mulheres. S ento que o
narrador liberta o seu pai paralisado e Walter Shandy consegue recuperar sua
mobilidade, isto , quatorze captulos depois. Em poucos momentos, a mo
esquerda de meu pai, cujos ns descansaram o tempo todo sobre a asa do urinol,
voltou a si ele o empurrou um pouco mais para dentro do rodap da cama (...)
ergueu a mo at o peito disse hum!181
Os personagens Tio Toby e Trim participam de todos os acontecimentos
relacionados com o nascimento de Tristram. No dia do parto, em 1718, aparece de
repente um Tristram adulto, escrevendo suas memrias em 09 de maro de 1759,
isto , o narrador interpenetra passado e presente num mesmo episdio, atravs
do jogo de acelerao e retardamento simultneo.
Num livro tradicional a dedicatria normalmente vem no comeo. Tristram
faz a sua no final do livro I do captulo 08. bvio, para qualquer autor, que um
prefcio deve vir antes da narrativa propriamente dita. Nada de menos evidente
para Tristram. claro que tambm para ele o livro deve ter um comeo, um meio
e um fim, embora no necessariamente nessa ordem. O fim pode estar no
comeo, o comeo no fim, e um e outro podem estar no meio. Se assim, o que
impediria um prefcio de vir no meio, por exemplo, no captulo 20 do Livro III?
justamente ali que Tristram coloca o seu prefcio.
Normalmente os captulos devem ser consecutivos, o segundo captulo
depois do primeiro, o terceiro depois do segundo e assim sucessivamente. Para
Tristram, isso no tem a menor importncia. No livro IX, ou seja, o ltimo do
180
181
74
romance, Tristram decide que precisa escrever o captulo 25 antes dos captulos
18 e 19, por mais que os crticos o censurem. Ele diz: pois como lhes foi possvel
antever a necessidade em que eu estava de escrever o 25 captulo do meu livro
antes do 18 &c.? [...] Tudo quanto quero que possam ser uma lio para o
mundo, deixar as pessoas contarem suas histrias sua prpria maneira.182 Ele
resolve passar diretamente do captulo 17 para o 20, e s muito tempo depois
escreve os dois captulos pulados, ou seja, os captulos 18 e 19, do Livro IX, so
intercalados arbitrariamente no captulo 26183o que produz a seguinte srie: 20,
21, 22, 23, 24, 25, 18 e 19.
Sterne no se limita a inverter a ordem, colocando esses captulos dentro
do captulo 25, mas assinala graficamente os espaos vazios: depois do captulo
17 vem uma pgina em branco, representando o captulo 18, e uma pgina
tambm em branco que representa o captulo 19.
H captulos extremamente longos e outros brevssimos, que mostram os
flashbacks e flashforwards da narrativa. Vejam-se captulos como o 17 do livro II,
contendo um sermo completo de Yorick, com mais de 20 pginas de texto ou, no
captulo inicial, no numerado, do livro IV, com o conto atribudo a Slawkenbergius
de Nasis184, o douto cronista dos narizes flicos: so nada menos que trinta
pginas. Por outro lado, h inmeros captulos com menos de dez linhas e vrios
com pouco mais de duas linhas, como o captulo 05 do livro IV, em que Walter
Shandy se irrita com Tio Toby, dizendo: Ser esta uma ocasio adequada, disse
meu pai consigo, para falar de penses e .granadeiros.185
No entanto, os captulos curtos nos do a impresso de uma narrativa
rpida, alusiva e lacunar. O contraponto entre captulos to longos que pem
prova a pacincia do leitor e to curtos que mal podemos sentir sua necessidade
traduz com muita exatido o modo caprichoso com que Sterne se relaciona com o
182
183
184
.
185
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 586587.
GOMES, Eugnio. Machado de Assis: influncias inglesas. Rio de Janeiro: Pallas, 1976. p.
61.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 247.
Ibid., p. 275.
75
de
algumas
digresses,
ele
retoma
ordem
cronolgica
dos
76
189
190
191
192
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 18.
Ibid., p. 22.
Ibid., p. 17.
Ibid., p. 22.
77
cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar
cacholetas, apanh-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde
quer que fosse propcio a ociosos.193 Comea a falar sobre seu colega de infncia
Quincas Borba, porm, decide dar um outro pulo: Vamos de um salto a 1822,
data da nossa independncia poltica, e do meu primeiro cativeiro pessoal.194
Brs Cubas tambm narra em tempo acelerado os episdios que retratam
a morte dos familiares. Ao descrever a morte da me o narrador faz questo de
dizer que o captulo era triste, mas curto. A morte do pai descrita com mais
brevidade ainda, sob forma de notas, j que o narrador, por ach-lo muito triste,
recusou-se a escrev-lo. E com a mesma rapidez a morte de Nh-lol descrita,
ou seja, Brs Cubas narra a morte de dona Eullia apenas em um curto pargrafo
no incio do captulo CXXVI.
Outra estratgia shandiana de que se vale Machado a paralisao, que
aparece entre o mundo dos vivos e geralmente se manifesta nos aspectos
grficos, como, por exemplo, nos captulos sem ttulo e nos ttulos sem texto. o
que ocorre no captulo LIII, que narra o primeiro beijo de Brs e Virglia (vem sem
ttulo), no captulo LV O velho dilogo de Ado e Eva, o qual um discurso sem
palavras, realizado por meio de pontos de exclamao e interrogao. Alm disso,
no captulo CXXXIX De como no fui ministro dEstado, este fica em branco, pois
H coisas que melhor se dizem calando;195 como o prprio Brs afirma no incio
do captulo CXL, que, diz ele, explica o anterior.
Assim como em Tristram Shandy e Memrias pstumas, em O Chalaa os
fatos e as aes tambm no obedecem a um fio lgico ou cronolgico. A
narrativa comea pela ordem inversa. O narrador inicia o seu dirio de anotaes
a partir do fim. O incio da narrativa se d quando Gomes da Silva, sujeito maduro,
encontra-se na Europa, mantendo um relacionamento ntimo com a baronesa
Marie Louise, uma senhora de sessenta anos. Entretanto, aps a morte da
baronesa, decepcionado por no conseguir herdar nada da falecida, Gomes da
193
194
195
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 38.
Ibid., p. 39.
Ibid., p. 160.
78
Silva decide viajar a Lisboa para reencontrar o seu amigo D. Pedro IV. No entanto
o comeo, cronologicamente, seria a histria da vinda da Famlia Real para o
Brasil e de como Gomes da Silva chegou no Rio, em 1808.
A linha narrativa vai se quebrar no momento em que o narrador decide
escrever as suas memrias, isto , no captulo dezesseis. A partir da os captulos
intercalam-se entre o passado e o presente do narrador, num constante jogo de
flashbacks e flashforwards.
s vezes o narrador sente necessidade de contar todos os pormenores,
para evitar qualquer empobrecimento do real. Mas, em outros momentos, o
narrador abdica da descrio detalhada, do registro exaustivo, e a narrativa se
torna rpida.
No captulo dezesseis, por exemplo, Francisco Gomes da Silva avisa os
leitores que comear a sua biografia, mas como o narrador tem pressa, avana
rapidamente e sustenta que o verdadeiro ponto de partida da vida de qualquer
homem no seu nascimento fsico, mas o seu nascimento metafsico.196 Ou
seja, pelo seu parto no bar da Corneta, momento em que conheceu o seu augusto
amo D. Pedro. Adota esse procedimento para evitar que os leitores o considerem
enfadonho. O narrador detalha, ento, as condies materiais e espirituais da
famlia, bem como de seu pas, Estado e cidade. Esse nascimento se refere a
festas, divertimentos em bares, boemia. Esse o incio de uma nova vida para
Gomes da Silva, que afirma, o que vem antes disso coisa que no vale a pena
contar por ser pequeno e de pouco interesse.197 Nesse captulo observamos que
o tempo de ao se traduz com muita rapidez, de modo que anos e mesmo
dcadas inteiras so suprimidos.
Convm acrescentar ainda que o narrador de Tristram Shandy comea
sua autobiografia pela concepo e o narrador de Memrias pstumas pela morte;
por sua vez, o narrador dO Chalaa comea a sua histria pelo seu nascimento
metafsico.
Nota-se tambm que a narrativa retarda a ao. Esse efeito
196
197
O Chalaa, p. 59.
O Chalaa, p. 61.
79
80
81
198
199
200
PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta, op. cit., p. 20.
Ibid., p. 37.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 88-89.
82
201
202
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 441.
Ibid., p. 231.
83
forneci uma ampla descrio da triste queda do dr. Slop e do seu triste aparecimento
no salo dos fundos; a imaginao do leitor deve agora continuar por sua conta
durante algum tempo. Cuide ele ento de imaginar que o dr. Slop narrou a sua histria,
com as palavras e com os agravantes que a fantasia do leitor tenha escolhido.203
tenta
Comeo a arrepender-me deste livro. No que ele me canse; eu no tenho que fazer; e,
realmente, expedir alguns magros captulos para esse mundo sempre tarefa que distrai
um pouco da eternidade. Mas o livro enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contrao
cadavrica; vcio grave, e, alis, nfimo, por que o maior defeito deste livro s tu leitor. Tu
tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narrao direta e nutrida, o
estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo so como os brios, guinam direita e
esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu,
escorregam e caem...204
203
.
204
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 131.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 103.
84
205
206
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 25.
Ibid., p. 16.
85
encadernaes em couro, com as letras douradas, porque tm uma aparncia agradvel
e destacam-se sob o efeito da luz nas estantes.
J com relao escolha do ttulo, que certamente o segundo passo, tenho c algumas
dvidas.
O terceiro passo a ser dado na preparao de um livro a escolha da dedicatria.
Nenhum autor jamais pense em dar incio sua obra sem antes ter judiciosamente
definido quem h de ser a pessoa qual o volume ser oferecido.[...] Quanto minha
biografia, declaro, desde agora e para sempre, escolhido o meu amado filho Francisco.207
207
208
209
210
O Chalaa, p. 57-58.
O Chalaa, p. 103.
O Chalaa, p. 183.
O Chalaa, p. 129-130.
86
211
212
213
O Chalaa, p. 108-109.
O Chalaa, p. 122.
GOMES, Eugnio. Machado de Assis: influncias inglesas, op. cit., p. 56.
87
3.3.5 O humor
Herdeiro de uma longa tradio satrica, Sterne remete-nos no Tristram
Shandy para as suas grandes influncias, Gargntua e Pantagruel, de Franois
Rabelais e, sobretudo Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Segundo Paulo
Paes,214 a analogia com o romance de Cervantes particularmente fcil de
estabelecer no apenas nas freqentes citaes a que o autor nos remete, mas
tambm na personagem do Tio Toby e do seu criado, o cabo Trim, claramente
inspirados no cavaleiro da Mancha e no seu servo fiel. Tanto Tio Toby como o
cabo Trim, ex-soldados, encontraram o substituto ideal para uma frustrada carreira
militar.
Ainda segundo Paulo Paes, Toby Shandy comunga com Dom Quixote a
mesma tendncia para o exagero humorstico e para confundir a improbabilidade
com a realidade quotidiana e tal como aquele tem a mesma incapacidade para
lidar com o mundo, sendo invariavelmente ultrapassado pelos pormenores da
vida.
O complacente carter de Toby, incapaz de ferir quem quer que fosse, e
a piedade de seu corao, sempre pronto a comungar do sofrimento alheio a
procurar minor-lo,215 adapta-se a uma guerra de brincadeira em vez de guerras
de verdade. Para mostrar seu humor complacente e benvolo, citaremos a famosa
passagem que o incomodava durante o jantar:
- Vai-te diz certo dia, no jantar, a uma grandona [o narrador refere-se mosca] que
estivera a zumbir volta do seu nariz, atormentando-o cruelmente durante toda a
refeio, e que, aps inmeras tentativas, ele conseguira por fim apanhar, quando
voava perto. No vou te machucar, disse meu tio Toby erguendo-se da cadeira e
atravessando o aposento com a mosca presa na mo, No tocarei um s plo da tua
cabea. Vai-te, disse, erguendo a vidraa e abrindo a mo enquanto falava, para
deixar a mosca escapar , vai-te, pobre diabo, some, por que iria eu machucar-te?
Este mundo sem dvida grande bastante para que eu e tu nele, possamos caber.216
214
215
216
PAES, Jos Paulo. Sterne ou o horror linha reta, op. cit., p. 23.
Ibid., p. 24.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 134135.
88
217
218
89
219
220
221
222
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 41.
Ibid., p. 44.
GOMES, Eugnio. Machado de Assis: influncias inglesas, op. cit., p. 68.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 70-71.
90
223
.
224
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 63.
O Chalaa, p. 17.
91
quando esta vem a falecer, deixa-lhe apenas uma gargantilha de ouro em forma
de corao, com que mais tarde ele presenteia uma criada de quarto.
No captulo seis do romance em foco, o narrador encontra-se com um
mendigo que se diz um humilde pensador e decide ser a prova emprica de sua
teoria, a mais alta das cincias, a Bestofilosofia.225 Enquanto Gomes da Silva
separa as moedas para fazer sua esmola, o humilde filsofo expe o resumo de
sua filosofia.
De acordo com a filosofia prescrita pelo mendigo, haveria uma correlao
entre o reino dos homens e o dos animais. Alguns homens seriam corajosos como
lees; outros obtusos e fortes como jumentos. Outros homens poderiam ser
comparados aos elefantes, dada a sua imponncia. Haveria, tambm, os homensformiga, muito trabalhadores. Cite-se ainda a correlao com lobos e cordeiros.
Para o mendigo, o homem verdadeiramente sbio conseguia identificar o animal
ao qual correspondia e adaptava sua vida e seu proceder aos costumes deste
animal.
De acordo com a concluso mxima do criador da Bestofilosofia, o
mendigo, o animal mais adequado para ser imitado por pessoas desvalidas como
ele eram as hienas. A razo para isso que este animal, conhecido tambm como
"lobo que ri", costuma seguir os lees e tigres durante o dia, observando suas
aes na perseguio de presas inocentes, como zebras e veados. Ao verificar
que o grande predador havia abatido e comeado a devorar sua presa, as hienas
se armavam de pacincia, esperando sua vez de participar do banquete, to logo
o leo ou tigre houvesse se afastado satisfeito. Embora comendo restos, migalhas
do banquete leonino, as hienas sempre comiam uma presa que no haviam lutado
para abater, e conseguiam, por meio deste procedimento, conservar a sade e
manter sua espcie. Ressalte-se que no foi o mendigo que criou a tal filosofia,
mas confessava que teria sido algum "leo", ao passo que ele prprio, como hiena
que era, havia apenas apanhado as migalhas.
225
O Chalaa, p. 27.
92
226
227
228
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. So Paulo: tica, 1992, p. 19. Srie Bom Livro.
CANDIDO, Antnio. Esquema de Machado de Assis. In: Vrios escritos. So Paulo: Duas
Cidades, 1977, p. 29.
Idem.
93
representam
ironicamente
caricaturas
de
parasitas.
Oportunistas
94
229
230
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do Cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 296.
REGO, Enylton de S. O calundu e a panacia, op. cit., p. 82.
95
Estaremos fadados, por todos os dias da eternidade, tanto os feriados quanto os de
trabalho, a exibir as relquias do saber ...231 [grifos do autor]
231
232
233
234
96
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237
97
pode-se
observar
uma
aproximao
com
texto
lucinico
238
239
240
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 26.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 27.
Ibid., p. 19.
98
indivduo
sociedade,
transformada
esta
ltima
em
objeto
de
241
242
243
244
99
245
O Chalaa, p. 101-102.
100
Como sabe tambm o mais ordinrio cristo, os pecados capitais so igualmente sete: ira,
gula, avareza, preguia, inveja, luxria e soberba.246
246
247
O Chalaa, p. 146.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 123.
101
Helen Caldwell observa que a ltima frase do captulo acima citado seria
uma parodia resposta dada no Tristram Shandy pelo personagem Cabo Trim a
seu amo Tio Toby: " Cus!, replicou o cabo, com expresso iluminada vossa
senhoria sabe que no tenho nem mulher nem filho portanto no h por que eu
ter pesares neste mundo.250 De acordo com a pesquisadora, o livro de Machado,
enquadra-se na categoria de pico-cmico, com razes em Cervantes251.
No entanto, S Rego, ao tomar de emprstimo a anlise de Caldwell,
afirma que Sterne, ao conceder ao personagem Trim a frase em questo, estava
simplesmente citando mais uma frase da Anatomia da Melancolia de Robert
Burton, para construir o Tristram Shandy. Dessa forma, salienta S Rego,
Machado de Assis no est s parodiando Sterne, mas tambm Burton,
predecessor de Sterne252 na linhagem da tradio lucinica.
248
249
250
251
252
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 33.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 176.
STERNE, Laurence. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy, op. cit., p. 275.
CALDWELL, Helen. Machado de Assis: The brazilian master and his novels. In: REGO, Enylton
de S. O calundu e a panacia, op. cit., p. 102-103.
Ibid., p. 104.
102
253
254
103
104
sofreu
influncia
de
diferentes
modalidades
de
folclore
255
256
257
105
258
259
260
106
foras
261
262
107
263
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 16-17.
108
264
265
266
267
268
Ibid., p. 17.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit.,, p. 19.
Ibid., p. 23.
Ibid., p. 42.
Ibid., p. 277.
109
O grotesco, convm frisar, mantm ntima ligao com o riso popular, uma
vez que este riso onipresente nas manifestaes da cultura popular medieval e
renascentista , em primeiro lugar, um riso festivo, no individual; alm disso,
o riso universal, atinge a todas as coisas, todos riem e todos so alvos em
potencial do riso, e o mundo apresentado em seu alegre relativismo e,
sobretudo, o riso prprio ao realismo grotesco ambivalente, isto , alegre e
cheio de alvoroo, mas ao mesmo tempo burlador e sarcstico, nega e afirma,
amortalha e ressuscita simultaneamente.269 No realismo grotesco, no h vestgio
de medo, a alegria soberana, e tudo o que amedrontador e terrvel
representado na forma de espantalhos cmicos e vencido pelo riso
ambivalente, sendo que, assim, o terrvel adquire sempre um tom de bobagem
alegre.270
Com relao ao dialogismo, Bakhtin oferece uma definio do mesmo
como sendo no apenas um tipo de linguagem em que vrias vozes se cruzam ao
mesmo tempo, mas tambm como um espao no qual ocorre o cruzamento de
vrias ideologias. Para Bakhtin, todo e qualquer texto um processo inacabado,
ou que pelo menos tende a isto. Esse processo que teima em no acabar enseja
a possibilidade de se proceder a mltiplas maneiras de leitura, enfocando por um
lado a dualidade entre realidade histrica e social e, por outro, entre a realidade
das palavras, da fala e da lngua.
Dessa forma, o romance prope um dilogo de um texto com outro texto
ou com vrios textos, como vozes que se entrecruzam num mesmo discurso.
Embora os textos possam ser dialgicos quando resultam do embate de muitas
vozes sociais, podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando no h
hierarquia entre as vozes, ou de monofonia medida que uma voz coloca-se
hierarquicamente superior a outras vozes.
A orientao monolgica e a polifonia so observadas por Bakhtin como
aquelas que se diferenciam no discurso como verdades fechadas e abertas. O
discurso monolgico prprio do discurso autoritrio, que tenta obliterar o dilogo
269
270
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 10.
Ibid., p. 34.
110
271
272
111
273
273
274
275
276
112
tradio lucinica feitas por Machado de Assis, presentes na segunda fase de sua
obra, comprovam a teoria de que Machado no apenas tinha um conhecimento
preciso da potica da tradio lucinica, mas que se inspirou nesta para
desenvolver temas e tcnicas literrias intimamente associadas a essa tradio.
Entre
os
textos
machadianos
analisados,
Rego
encontrou
277
113
114
278
279
.
280
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. So Paulo: tica, 1992, p. 9. Traduo: Aurora Fornoni
Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Srie Fundamentos.
BAKHTIN, Mikhail, Problemas da potica de Dostoievski, op. cit., p. 125.
BAKHTIN, Mikhail. Questes de literatura e de esttica, op. cit., p. 249.
115
281
282
BKAHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, op. cit., p. 128.
O Chalaa, p. 202.
116
283
O Chalaa, p. 81.
117
118
de
Assis,
examinamos
composio
da
obra
de
Torero
119
284
120
suma,
funcionamento
da
intertextualidade
da
metafico
285
286
287
121
Inmeros so os exemplos dessa tendncia de meta-narrativa psmoderna. Para efeito de exemplo, so apresentados, na seqncia, cinco obras
contemporneas a O Chalaa, inclusive no que diz respeito ao seu tempo de
288
289
122
290
291
292
293
KAISER, Glria. Dona Leopoldina, uma habsburg no trono brasileiro. Traduo: Christiane
Rupp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo: memrias dbias de Amlia de Leuchtenberg.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
TAPIOCA, Ruy Reis. A repblica dos bugres. Rio de Janeiro: Rocco,1999.
MOLL, Vera. Meu adorado Pedro. Rio de Janeiro: Bom Texto,2001.
123
294
295
296
SANTANNA, Sonia. Leopoldina e Pedro I, a vida privada na corte. Riode Janeiro: Jorge
Zahar,2004.
EAGLETON, Terry. As iluses do ps-modernismo. Traduo Elisabeth Barbosa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 07.
Idem.
124
inautenticidade,
significante
significado,
foram
todos
125
299
300
301
302
JAMESON, Fredric. O ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio, op. cit., p. 45.
JAMESON, Fredric. O ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio, op. cit., p. 44.
Ibid., p. 46.
Ibid., p. 48.
126
127
303
BENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN,
Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura.
Traduo: Srgio Paulo Rouanet. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198-199.
128
304
305
306
307
O Chalaa, p. 17.
O Chalaa, p. 92.
O Chalaa, p. 120.
O Chalaa, p. 76.
129
308
309
310
311
312
313
314
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 86.
Ibid., p. 89.
Ibid., p. 107.
Ibid., p. 113.
Ibid., p. 116.
ASSIS, Machado de. Memrias pstumas de Brs Cubas, op. cit., p. 146.
Idem.
130
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tica,1992.
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Magia e tcnica, arte poltica: ensaios sobre a literatura e histria da cultura.
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BURKE, Peter. A histria dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: A
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