Mariza Peirano. Os Antropólogos e Suas Linhagens.
Mariza Peirano. Os Antropólogos e Suas Linhagens.
Mariza Peirano. Os Antropólogos e Suas Linhagens.
llllilSIIJUilA
nE (~II~N(~IllS
nmero 16 ano 6
julhod8 1991
publicao quadrimestral
Sf)(~llliS
ASSOCIAO NACIONAL DE POS-GRADUAAO
E PESQUISA EM CIENCIAS SOCIAIS
!SSN 0102-6909
SUMRIO
'
66
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89
Resenha
L' Exprience Concentracionnaire. Essai sur le
Mainticn de I' ldentit Social e, de Michael Pollak
Mario Gryn.'izpan.
92
Resumos/AbstraclS/Rsums
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97
ContenlS
Somrnairc
(UFMG)
Conselho Fiscal:
Ana Maria Femmdea (UnB). Raymundo Heraldo Maus (UFPa) e
W16,ano6
Apolo<:
Editores:
Afrnio Raul Gm:ia Jr. (Museu Nacion&JJUFRJ), Eli Diniz
(Iuperj) e Vera Maria Cndido Pereira (UFRJ).
Coordenador editorial: Csar de Queiroz Benjamin
Tct. (011)37-2433
[mp-essa no Brasil
Julho de 1991
MESA-REDONDA
manza g. s. pe1rano
OS ANTROPOLOGOS
E SUAS LINHAGENS
H algo curioso na antropologia: ao mesmo tempo cm
que se vangloria de ter uma das tradies mais slidas
entre as cincias sociais- na qual se reconhecem cronologicamente os mesmos autores 'clssicos quer se
esteja no Brasil, nos Estados Unidos. na ndia ou na rnglaterra - , a disciplina abriga estilos bastante diferen-
como um dos aspectos mais ricos e complexos da disciplina, por outro lado oferece o perigo de, no respeitado
o equiUbrio sutil entre teoria e pesquisa, resvalar para
wna situao na qual existam tantas antropologias quanto
antroplogos.
Esta talvez .seja a fonte da situao problemtica
que a antropologia potencialmente oferece s demais
cincias sociais e que Fbio Wanderley Reis apontou,
P~los comcnt.rios e sugesics ao texto, sou grata a Klaa:!i WooruniUlfl,
LuizAntnio de Caslro Santos e Wilson Trajano Fillio. Fico devendo a Vilmat Faria, que presidiu a me~a, mais re~postas para suas
pertinentes colocaes. A dedical6ria pa:ra Roberto Cardoso de
Oliveira, nosso fundador de linhagem.
em 1988, quando detectou uma certa inspirao 'antropolgica' nos trabalhos pouco sofisticados das cincias
sociais brasileiras na atualidade. Privilegiando o 'popular', o leitor tinha que suportar ..longos depoimentos em
estado bruto de mulheres da periferia urbana", uma
descrio que serve como metfora para muitos dos
problemas que ocorrem tambm dentro da disciplina.
Mais recentemente, o autor denunciou tambm um certo 'conjunturalismo' e um historicismo' como responsveis pela ausncia de uma maior e desejtivel sofisticao terico-metodolgica, resultando num estado de
indigncia analtica que teria se alastrado nas cincias
sociais no Brasil.
As preocupaes de Fbio Wanderley sao srias
e pertinentes e, para o antroplogo, preocupantes. Na
medida em que, nos ltimos tempos, tem crescido o
prestgio e/ou visibilidade da antropologia no :bnbito das
cincias sociais no Brasil- prestgio e/OU visibilidade
que ela estava longe de ter h vinte anos atnis-estabe1eceu-se, no contexto da Anpocs. uma visilo de que, enquanto a sociologia e a cincia poltica se sentem em
crise, tudo vai bem com a antropologia ou com os antrop61ogos: o ensino adequado, os alwws so bem formados teoricamente, a pesquisa de campo continua sendo caracterstica da disciplina, cursos de graduao
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jMl. tk 1991
-MESA-REDONDA
aprimoram a fonnao unindo pesquisa e ensino; em
suma, a disciplina avana.
Parece, ento, que tanto os perigos da vulgarizao quanto o otimismo dos antroplogos precisam ser
exagerando algumas diferenas por uma questo de nfase, no sem esquecer que a antropologia se concebe
como wn desdobramento da sociologia europia do sculo XIX e que, no Brasil, as cincias sociais foram
institucionalizadas nos anos 30 sob o manto da filoso-
Generalizao/universalizao
Diferentemente da cincia poHtica, a antropologia nao
em
MESA-REDONDA
existe fato social, mas 'fatos etnogrficos', sa1ientando
que houve seleo no que foi observado e interpretao
no relato. Aorestan Fernandes pensava como um antroplogo quando. nos idos de 19.10. fQi demitido de uma
pesquisa dirigida por Donald Pierson por haver contestado a orientao de explicitar antecipadamente as hipteses tericas que orientariam a anlise de cada docu-
Ou ainda, ao focalizar o jogo de espelhos que a observao da diferena produz no quadro conceituai estabelecido, reconhecer a a tenso entre o iluminismo no qual
a disciplina foi fundada e o romantismo alemao. onde
foi se inspirar. Metforas parte, mesmo que a pesquisa
etnogrfica se realize com Oobjetivo de desafiar os conceitos estabelecidos e embora a pesquisa de campo caracterize a disciplina. ela no o objetivo final do antroplogo. J se disse que a antropologia estuda problemas
e no povos (Evans-Pritchard, 1950) e. mais recentemente, que os antroplogos no estudam aldeias, mas
em aldeias (Geertz, 1973). Mas o fato que, embora o
conjumuralismo emogrfico vise a uma reflexo teri~.:a. as monografias so o que a disciplina guarda de mais
precioso. A razo bvia: foi o kula de Malinowski que
permitiu a Marcel Mauss conceber o fato social total' e
ajudou Karl Po1anyi a discernir a 'grande transfonnao' no Ocidente. As observaes de Evans-Pritchard
(1940) sobre os Nuer descentralizados, as de Geenz
(1980) sobre o theater-.Siate cm Bali, as de Stanley
Tambah (1976) sobre a galaclic polity asitica. ou as de
Edmund Leach(t 954) sobre aaltcmnciagumsa-gumlao
na Alta Binnnia, naturaJmente trazem conseqncias
para o conceito sociolgico de sistema poltico. Da
mesma maneira, Louis Dumont (1980) foi lndia descobrir a ideologia individualista no renunciador e, na
volta, detectou a perverso da noo de hierarquia no
racismo ocidental. Aqui, ns nos embrenhamos junto a
grupos tribais para descobrir cosmologias to ou mais
sofisticadas quanto as produzidas pelos pensadores ocidentais; ou junto a populaes camponesas para perceber relaes sociais que so baseadas mais na lica da
honra, hierarquia c reciprocidade do que nos princpios
do lucro ou ganho (estes, sim, engendrados pela 'grande
transfOrmao' pela qual o campesinato no passa
necessariamente).( I) A observao de uma pequena
I -Ver, por exemplo, os trabalhos de Eduardo Viveiros de Cutm,
na rea indgena. c de Klaas Woortmann. sobre o ampcsinato.
Teoria-e-histria da antropologia
Este, ento, o cerne do problema: se, na antropologia,
a criatividade nasce na relao entre pesquisa emprica
e fundamentos da disciplina. ento a pesquisa de campo
surge como algo mais que um mero ritual de iniciao
no qual o antroplogo prova que 'sofreu, mas resistiu'.
A solido. embora boa companheira das descobenas da
alteridade, no o caminho virtuoso e mgico que, por
si s, produz boa antropologia. pane o fato de que a
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dis[ncia necessria para produzir o estranhamento pode
ser geogrfica. de classe, de etnia ou outra, mas ser
sempre psquica, os conceitos nativos requerem, necessariamente, a outra ponta da corrente, aquela que liga o
Conseqncias
As obseJVaes acima trazem pelo menos trs conseqncias imediatas. Primeira: no h como propriamente ensinar a fazer pesquisa de campo. Esta uma
concluso antiga; na.o s de professores bem intencionados como de estudantes interessados, mas atnitos. A
experincia de campo depende, entre outras coisas, da
biografia do pesquisador, das opOes tericas dentro da
disciplina, do contexto scio-histrico mais amplo e, nlkJ
menos, das imprevisfveis situaes que se configuram
no dia-a-dia, no prprio local de pesquisa entre pesqui
sador e pesquisados. Eis a, talvez, a razao pela qual os
projetas de pesquisa de estudantes de antropologia sempre esbarram no quesito 'metodologia, quando estes
competem com colegas de outras cincias sociais. Mas.
se impossvel antecipar os acasos que faro ressoar. na
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experincia vivida ali-e-agora, as teorias aprendidas de
outros JX>VOS e outros tempos, no invivel alertar o
estudante para problemas corriqueiros que provavelmente enfrentar, porque outros j os cnfrenLaram. Em
suma, na antropologia, o treinamento metodolgico se
faz melhor quando acoplado s monografias clssicas
ou, o que d no mesmo, quando derivado dos cursos
tericos.
Segunda.: a despeito da cont1ana na excelncia
de sua aparelhagem conceituai, no seu mtodo de pesquisa de campo e na sua tradio disciplinar, a antropo-
logia no se reproduz como uma cincia normal de paradigmas estabelecidos, mas por uma determinada maneira de ligar teoria-e-pesquisa, de modo a favorecer
novas descobertas. Estas ficam sujeita" possibilidade
de que a pesquisa de campo possa revelar. no ao pesquisador, mas no pesquisador, aquele resduo incompreensvel, mas potencialmente revelador, que existe
entre as categorias nativas apresentadas pelos informantes c a observao do etngrafo, inexperiente na
cuJtura estudada e apenas familiarizado com a literatura
terico-etnogrfica da disciplina. As impresses de
campo no so apenas recebdas pelo intelecto, mas tm
impacto na personalidade tota1 do etngrafo, fazendo
com que diferentes cultura...; se comuniquem na experincia singular de uma nica pessoa.(2) Estas consideraes talvez expliquem duas coisas: porque antroplogos sempre consideram uma instncia emprica especftlca e por que, na pesquisa de campo, comum constalarque a vida imita a teoria. No primeiro caso, a procura
do espcc(fico, do diferente - onde talvez se revele
aquele 'resduo que pcnnitir o avano na observa~to
etnogrfica e, conseqUentemente, a possibilidade de refinamento terico- passa a ser prtica regular dos antroplogos, que j balizaram estes casos de 'incidentes
reveladores' (Fernandez, 1990); no segundo caso, o
pesquisador, treinado nos aspectos dos mais bizanus aos
mais corriqueiros da conduta humana, que encontra um
exemplo vivo da literatura que o infonna.
Terceira: se a pesquisa-cum-teoria define o empreendimento antropolgico, ento no h lugar para
criSe enquanto houver pesquisa nova e reflexo terica
correspondente (e vicc-vcrsa). A ltima crise vivida pela
antropologia dataria dos anos 60, quando os antroplogos ainda no haviam percebido que, mais que a um determinado objeto concreto de estudo, a disciplina se dedicava anlise das diferenas culturais. S quando a
iminncia da extinao dos grupos indgenas e a rejeio
da antropologia pelas ex-colnias africanas se tomaram
reais- ameaando a prpria continuidade da disciplina
2- Evans-Pritchard (1972) e Louis Dumont (1970, p. 157) discutiram o impacto da pesquisa de campo na personalidade do etngrafo,
O modismo aluai
Todo esse quadro se c;omplica um pouco quando se
constata que um grupo de antroplogos noite-americanos, autodenominados reflexivos ou ps-interpretativos,
reconhece a existncia de uma das tais crises na disciplina. Na medida em que a nfase prinCipal desse grupo
reside no questionamento da pesquisa de campo como
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prtica, perde-se a tenso essencial entre teoria e pes-
quisa -
Como outras influncias externas que, no primeiro momento, no nos damos ao trabalho de questionar para
depois incorporarmos s tradies locais, esta tennina
Diagnstico
Se: (a) a pesquisa de campo e a tradio terica da an-tropologia se relacionam no dia-a-dia dos especialistas.
(b) a pesquisa de campo, concebida como o encontm
com o 'outro' constitutiva do conhecimento disciplinar. (c) a teoria antropolgica se desenvolve colada no
conhecimento etnogrfico, (d) teoria e histria da anti'Dpologia so inseparveis, talvez se possa detectar alguns
pontos de estrangulamento, nos quais m feitura e mi
leitura ocorram e afetem negativamente a prpria antropologia e as disciplinas afins. Vejamos.
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Primeiro, em relao formao terica. pre-
mar~r-u
de 1991.
MESA-REDONDA
Bibliografia
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