TARDE, Gabriel - As Leis Sociais

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Gabriel Tarde

As Leis Sociais
um esboo de sociologia
Traduo e notas de Frantisco Traverso Fuchs

Editora da UFF

2012 by Francisco T. Fuchs (Traduo brasileira)


Direitos desta edio reservados Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icara - Niteri - CEP. 24220900 R J Brasil Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: 2629-5288 - www.eduff.uff.br
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Concepo de capa: F. T. Fuchs
Capa e projeto grfico: Marcos Antonio de Jesus
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Escher Company-Holland. A li rights reserved.

________ Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)


T181

Tarde, Gabriel 1843-1904


As leis sociais: um esboo de Sociologia/Gabriel Tarde; traduo e notas:
Francisco Traverso Fuchs - Niteri: Editora da UFF, 2011.
114 p. ; 21cm.
ISBN: 978-85-228-0669-0

Traduo de Les lois sociales. Esquisse d une sociologie.


1. Sociologia

I. Ttulo

_______

CDD 301

Universidade Federal Fluminense


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E d ito ra filia d a a

Rita Leal Paixo


Simoni Lahud Guedes

A sso c ia o Bra sile ira


d a s E d ito ra s U n iv e rsit ria s

Tania de Vasconcellos

Sumrio
Nota do tradutor, 7
Prefcio, 17
Introduo, 19
Primeiro Captulo
Repetio dos fenmenos, 23
Segundo Captulo
O posio dos fenmenos, 49
Terceiro Captulo
A daptao dos fenmenos, 83
Concluso, 109

Nota do tradutor
Jean-Gabriel de Tarde nasceu em Sarlat (hoje Sarlat-la-Canda) no ano de 1843. Passou metade da vida servindo como
juiz na regio de Dordogne, mas em 1894 foi nomeado diretor do
servio de estatstica judiciria do Ministrio da Justia, saindo
da provncia para viver em Paris. Dois anos depois, comeou a le
cionar na cole Libre des Sciences Politiques, e posteriormente no
Collge Libre des Sciences Sociales, onde proferiu as conferncias
reunidas neste livro. No incio de 1900 obteve a cadeira de Filosofia
Moderna no Collge de France,1que ocupou at 1904, ano de sua
morte. Celebrado em sua poca como o grande nome da sociologia
francesa, Tarde polemizou com Lombroso e Durkheim e escreveu
obras que ajudaram a fundar a sociologia e a criminologia moder
nas. J nos primeiros anos do sculo XX, no entanto, a situao se
inverteu a favor de Durkheim, que
tornou-se o principal representante da sociologia como
disciplina cientfica, ao passo que Tarde havia sido evacua
do para a prestigiosa (porm irrelevante) posio de mero
precursor - e um precursor no muito bom, j que havia
sido marcado para sempre pelos pecados do psicologismo
e do espiritualismo.2

Muitos anos se passariam at que o panorama mudasse


novamente, desta vez em favor de Tarde. Pode-se dizer que essa
virada comeou a acontecer em 1968, quando Gilles Deleuze o
apresentou como o inventor de uma nova dialtica da diferena e
1 Bergson, que tambm havia concorrido a essa vaga, obteve trs meses depois a cadeira de
Filosofia Grega e Latina, assumindo aps a m orte deTarde a cadeira de Filosofia Moderna.
Bergson, Henri. Mlanges, Paris, PUF, 1972, p. 415,417 e 637.
2 Latour, Bruno. Gabriel Tarde and the End o fth e Social, w ww .bruno-latour.fr/sites/default/
files/82-TARDE-JOYCE-SOCIAL-GB.pdf (acessado em 11 de agosto de 2010).

As Leis Sociais

da repetio.3Com efeito, graas a Deleuze, Latour e outros, temos


hoje uma ideia muito mais adequada a respeito do pensamento de
Tarde e de sua importncia.
As Leis Sociais, publicado originalmente em 1898 a partir de
uma srie de conferncias realizadas no ano anterior, oferece uma
breve sntese do pensamento tardeano e uma excelente introdu
o obra de Gabriel Tarde. 0 autor no apenas apresenta neste
livro seus trs conceitos fundamentais, abordados separadamente
em livros anteriores, mas tambm mostra as relaes existentes
entre eles, estabelecendo toda uma hierarquia complexa entre a
repetio, a oposio e a adaptao ou inveno. Trabalhando simul
taneamente no plano da epistemologia e da cincia, Tarde procura
mostrar que os fenmenos fsicos, biolgicos e sociais se produzem
a partir de inumerveis repeties, oposies e adaptaes, e que
o conhecimento primeiramente construdo a partir da percepo
de repeties, oposies e adaptaes grandiosas - vagas, impre
cisas ou mesmo francamente errneas - e vai ganhando contornos
mais precisos medida que repeties, oposies e adaptaes
menos grosseiras vo sendo percebidas:
justamente porque tudo no mundo dos fatos caminha do
pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho inver
tido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno
e, pelo progresso da anlise, s atinge os fatos elementares
verdadeiramente explicativos em ltimo lugar.4

A tese central defendida por Tarde neste seu esboo de


sociologia a de que todas as cincias atingiram a maturidade ao
descobrir e compreender, em seus respectivos objetos, as verda

3 Deleuze, Gilles. DiffrenceetRptition, Paris, PUF, 1981 (1968), p. 38,104."0 conjunto da


filosofia de Tarde se apresenta deste modo: uma dialtica da diferena e da repetio,
que funda sobre toda uma cosmologia a possibilidade de uma microssociologia.
4 Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, Paris, Flix Alcan, 1898, p. 88.

Gabriel Tarde

deiras repeties, oposies e adaptaes, e que a sociologia s


ganhar status de cincia a partir do momento em que fizer o mes
mo. Ora, para alcanar esse objetivo, a sociologia precisa descer
at os fatos elementares, infinitesimais, que so tambm os fatos
verdadeiramente explicativos. Assim como a biologia descobriu
na clula e na atividade celular o fato biolgico elementar, preciso
que a sociologia descubra o fato social elementar. Isso equivale a
dizer que, para ultrapassar as analogias vs e as entidades imagi
nrias que ainda encontravam eco na sociologia de sua poca (por
exemplo, as analogias entre as sociedades e os organismos vivos,
a crena no suposto gnio de um povo ou de uma raa, a socie
dade como uma espcie de pessoa divina exterior e superior aos
indivduos, moldando-os sem jamais ser por eles moldada), Tarde
precisava descer at o plano molecular da sociedade, l onde ela
efetivamente produzida por movimentos reais: ou seja, por atos de
indivduos sobre indivduos. No entanto, assim como o tomo no
o limite absoluto da matria, o indivduo no constitui o termo
ltimo de um campo social. Aqum do indivduo existe algo que
pr-individual, e embora o indivduo seja o nico agente social, ele
mesmo s pode ser compreendido a partir dos elementos infinite
simais que o constituem. Esses elementos so os desejos e crenas
que atravessam os indivduos e que se propagam, se opem e se
adaptam em seu percurso. No que Tarde transforme os homens
em impessoais portadores de desejos e crenas; antes como
se o indivduo produzisse sua diferena justamente no jogo aberto
entre os desejos e crenas que o atravessam e que ele incorpora,
ope ou modifica, dando origem (nesse ltimo caso) a um novo
desejo ou crena. Se a Cincia tem por objeto aquilo que se repete,
apenas a Arte poder dar conta dessas singularidades que so os
indivduos; mas se os indivduos so sui generis, porque cada
um deles um lance de dados nico, lanado e relanado a cada
momento a partir das singularidades pr-individuais (desejos e
crenas) que o atravessam e constituem. E se porventura uma

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As Leis Sociais

sociedade qualquer tambm apresenta esse aspecto sui generis,


simplesmente porque ela a integral de todos esses lances de da
dos, a integrao dinmica de mltiplos processos de diferenciao.
Atento revoluo introduzida pelo clculo diferencial e integral,
Tarde esboar (curiosamente, numa nota de p de pgina) todo
um mtodo sociolgico baseado em registros monogrficos das
variaes pontuais de desejos e crenas.5Por fim, guisa de con
cluso, Tarde retorna a um tema esboado na primeira conferncia
e apresenta (ainda que margem, como ele mesmo diz) algumas
especulaes cosmolgicas sobre a natureza da prpria matria
(o infinitesimal no sentido absoluto), que, segundo ele, no uma
poeira infinita de elementos homogneos, mas uma multido de
virtualidades elementares.

Eu diria que Tarde um autor infinitamente mais fcil de ler


do que de traduzir. Suas longas frases repletas de interpolaes no
chegam a dificultar a leitura, mas sem dvida pem qualquer tradu
tor prova. Tentei interferir o mnimo possvel no estilo tardeano,
ainda que algumas vezes tenha me sentido forado, para efeito de
clareza, a alterar a pontuao e o ritmo das frases. Tambm tentei
no multiplicar desnecessariamente o nmero de notas, servindo-me desse recurso ora para fornecer uma rpida referncia, ora para
apontar uma curiosidade de estilo do texto original. Com relao
ao aspecto tcnico ou conceituai da traduo, houve apenas uma
dificuldade realmente digna de nota.6
5 "Para compreender os estados sociais, preciso surpreender ao vivo e em pormenores as
mudanas sociais; mas o inverso no verdadeiro. Pode-se m uito bem acumular cons
tataes de estados sociais em todos os pases do mundo, mas isso no far aparecer a
lei de sua formao, que antes desaparecer sob os fardos de documentos empilhados."
Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, op. cit., p. 154.
6 Tarde usa como noes correlatas as locues rayon im ita tif e rayonnement im ita tif
(literalmente, "raio im itativo" e "irradiao imitativa"). Como notou Bruno Latour (op.
cit.), a locuo raio im itativo um tanto extravagante, e o prprio Tarde no a usou em

Gabriel Tarde

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Para concluir esta breve apresentao, gostaria de chamar a


ateno para um ponto que me parece essencial. Nenhum homem,
ainda que seja um visionrio, consegue escapar inteiramente sua
poca, e o leitor atento h de verificar, ao ler as entrelinhas (ou as
linhas mesmas) desta ou daquela passagem, que Tarde um autor
do sculo XIX. Nada h de surpreendente nisso; em compensao,
o que verdadeiramente espantoso que esse pensador intempes
tivo, que no se alinhou a nenhuma escola ou corrente ideolgica,
pudesse estar to frente de seu tempo. Segundo Bergson, o
pensamento de Tarde
nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver nas iniciati
vas individuais e em sua irradiao a verdadeira causa do
que se faz numa sociedade, e mesmo do que acontece no
mundo. Seduzidos pelos admirveis sucessos das cincias
fsicas, ns nos inclinamos excessivamente a construir as
cincias sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como prin-

Lois de L'Imitation, embora tenha usado a locuo courant im ita tif (corrente im itativa).
Assim, meu prim eiro im pulso foi o de usar a palavra "corrente". Entretanto, ao traduzir-se rayon por corrente quebra-se o vnculo etim olgico (e acima de tu d o o vnculo
igico) entre o rayon (do qual todos os imitadores participam ) e o rayonnement, que
remete fonte de uma novidade, ao seu inventor ou agenciador. Ficaria enfraquecida
a im portante analogia que o autor estabelece entre as"correntes im itativas"e as ondas
fsicas: o leitor tenderia a pensar a "corrente" mais como uma "continuidade de ligao
entre elos" do que como um fluxo que possui uma origem definida e qe pode inter
ferir em o utro fluxo, ou seja, como algo semelhante a uma onda eletromagntica. Por
fim , essa escolha tornaria mais difcil, para o leitor de lngua portuguesa, a distino
entre as ocorrncias de rayon e de courant no texto original. M inha segunda opo foi
o uso do term o onda para traduzir rayon. Nesse caso, somente o vnculo etim olgico
seria perdido; e nas passagens em que Tarde realmente utiliza o term o onde (onda),
ele sempre se refere explicitam ente a ondas fsicas, o que tornaria mais fcil distinguir
os dois usos. No entanto, embora tenha achado essa soluo (onda im itativa), que foi
alis utilizada por Bergson, a mais elegante de todas, acabei optando pela traduo
literal da palavra rayon e de todas as locues de que ela participa; raio, raio imitativo,
raios de exemplos. Se os prprios franceses experim entam um estranhamento diante
da escolha original de Tarde, no h razo para suprim ir essa estranheza na traduo.
Obviamente, essa escolha resolve, em definitivo, todas as dificuldades mencionadas
acima. Por fim, a palavra "irradiao" me pareceu, em todos os casos, bem m elhor do
que "influncia", que um dos significados de rayonnement e que seria uma traduo
aceitvel em determ inados contextos.

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As Leis Sociais

cpio que a evoluo das sociedades deve obedecer a leis


inelutveis, anos representar os acontecimentos histricos
como resultados necessrios de foras cegas, impessoais,
que se comporiam entre si mecanicamente. Contra essa
tendncia, que se tornou natural ao nosso esprito, toda
a filosofia de Tarde protesta. As sociedades humanas so,
sem dvida, atravessadas por correntes; mas na origem de
cada corrente h uma impulso, e es sa impulso vem de um
homem. Assim como a histria de cada um de ns se explica
pelas iniciativas tomadas e pelos hbitos contrados, a vida
das sociedades feita de invenes que surgiram aqui e ali
e das modificaes durveis a que essas invenes condu
ziram ao serem adotadas.7

O que essas palavras - e, portanto, o pensamento de Tarde


- tm a ver com nossa existncia concreta, aqui e agora, para alm
(ou aqum) de todas as querelas acadmicas? Vivemos uma poca
difcil, marcada pelo fim das utopias, pela consolidao de uma
ordem mundial nada auspiciosa (que valoriza somente nossa fora
de trabalho e nossa capacidade de consumo) e por uma crescente
dissoluo do campo social. E ns vivemos o fim das utopias mais
ou menos do mesmo modo que Nietzsche descreveu a derrocada
dos valores superiores: como se a ausncia desses projetos de
futuro decretasse a desvalorizao generalizada da vida, a perda
do sentido, a total impossibilidade de ao, a vigncia do cinismo.
Ns nos sentimos - e esse me parece ser o ponto crucial - peque
nos demais diante das enormes mudanas que teriam de ocorrer
e das potncias que supostamente teramos de enfrentar. Em uma
palavra, ns nos sentimos infinitesimais diante de um onipresente
sistema ao qual nada escapa e que no saberamos ou poderamos
modificar. Afinal, j no temos um projeto que pudssemos opor

7 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mlangs, op.cit., p. 799-800.

Gabriel Tarde

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progressiva transformao do homem num homo economicus, sim


ples apndice descartvel de um sistema globalizado de produo
de bens e servios.8
Diante desse quadro sombrio, a microssociologia de Tarde
uma rajada de ar fresco. Ela vem nos mostrar que tudo, absolu
tamente tudo, vem precisamente do infinitesimal, e que a soluo
dos nossos problemas talvez no venha de um nico e grandioso
projeto de sociedade, mas de pequenas aes e pensamentos ino
vadores capazes de infiltrar-se como a gua e espalhar-se como
o fogo. Assim como as molculas so o infinitesimal da vida e as
partculas so o infinitesimal da matria, ns somos - com nossos
desejos e crenas - o infinitesimal da sociedade. E em todos os
nveis, a potncia inventiva est no infinitesimal.
Evidentemente, nossos hbitos de pensamento tendem a
rejeitar essa maneira de perceber a realidade social. Confron
tados com ela, nossa primeira reao ser a de dizer que seria
muita pretenso pensar que podemos fazer alguma diferena na
imensa ordem das coisas. Mas no seria exatamente o contrrio?
No estaramos sendo pretensiosos ao afirmar a existncia de
limites a respeito dos quais nada sabemos? Pois a verdade que
no sabemos, e jamais poderamos saber de antemo, qual ser o
alcance da menor das nossas aes e do mais casual dos nossos
pensamentos. Hoje, quem nos sugere essa maneira de ver a pr
pria cincia contempornea (to diferente da cincia na poca de
Tarde), uma vez que o chamado efeito borboleta aplica-se tambm
s realidades sociais. Mas ser que podemos atribuir essa maneira
de ver a Gabriel Tarde sem com isso projetar retrospectivamente
uma teoria cientfica relativamente recente no pensamento de um
autor do sculo XIX? Sim, ns podemos e mesmo devemos faz-lo,
como sugere este texto admirvel que Bergson escreveu a respeito
de seu colega no Collge de France;
Obviamente, no estou levando em considerao projetos de sociedade de carter
explicitamente totalitrio ou teocrtico, ou seja, antidemocrticos por excelncia.

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As Leis Sociais

Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode acar


retar consequncias incalculveis, como um simples gesto
individual, caindo no meio social como uma pedra na gua
de uma bacia, o abala por inteiro por meio de ondas imitativas que vo sempre se alargando, ela [a obra de Tarde]
nos d um sentimento agudo de nossa responsabilidade.
Revelando-nos tudo o que devemos a outrem, inventores em
certos momentos, mas imitadores durante a vida inteira, ela
esclarece e fortifica em ns o sentimento de solidariedade.
Remetendo ao costume muitas coisas que normalmente con
sideramos como pertencentes natureza; fazendo remontar
apensamentos individuais, a vontades individuais, aorigem
de transformaes profundas da sociedade e da humanida
de, ela nos desabitua a crer em fatalidades histricas; ela
nos convida a agir, a ganhar confiana em ns mesmos, a
jamais desesperar com o presente, a encarar tranquilamente
o porvir. Para alm da inteligncia qual se dirige, a von
tade que ela atinge, estimula e torna mais firme.9
Talvez estejamos demasiadamente acostumados a pensar
em termos de grandes projetos e de grandiosas finalidades para
que possamos compreender de imediato o alcance dessas pala
vras. Longe de constiturem uma exaltao das prerrogativas da
conscincia, o que seria um total contrassenso na medida em que
remeteria ainda ao plano dos projetos e finalidades, elas se referem
a foras que atravessam os indivduos e, consequentemente, um
campo social dado. Pois esse gesto ou iniciativa individual de que
fala Bergson envolve precisamente algo que de outra natureza:
um puro fluxo de desejo ou crena. Os partidrios de Durkheim

9 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mlanges, op.cit., p. 800-801. Grifo
meu.

Gabriel Tarde

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responderam que isso era psicologia ou inter-psicologia, e


no sociologia. Mas isso no verdade a no ser na aparn
cia, ou numa primeira aproximao: uma micro-imitao
parece ir, com efeito, de um indivduo a outro. Ao mesmo
tempo, e mais profundamente, ela remete a um fluxo ou a
uma onda, e no ao indivduo... A imitao, a oposio e a
inveno infinitesimais so como quanta de fluxos, que mar
cam uma propagao, uma binarizao ou uma conjugao
de crenas e desejos.10
O que pode acontecer quando estudantes fazem uma reivin
dicao? Ou ento: qual a potncia de uma ideia nova, ou talvez
nem to nova assim, porm formulada de uma nova maneira? Qual
a potncia da mais inocente das crenas, do mais inocente dos
desejos? No se sabe, no se pode sab-lo de antemo. Eu diria que
Tarde um autor revolucionrio: a revoluo que nao era o que
pensvamos. Tarde preocupou-se muito menos com a natureza
ntima dos elementos, seu estado original e seu estado final, do que
com sua ao recproca.11 O segredo de um devir revolucionrio,
que por sinal nada tem a ver com as metas de uma revoluo, no
depende necessariamente de barricadas, mas certamente envolve
essa ao recproca entre os homens para alm do otimismo e
do pessimismo, das utopias e distopias, para alm do desespero
e da prpria esperana.

10 Deleuze, Gilles & Guattari, Flix. Mille Plateaux, Paris, De minuit, 1980, p. 267.
" Bergson, Henri. Prface aux "Pages Choisies"de G. Tarde (1909), IN Mlanges, op.cit., p. 812.

Prefcio
Neste pequeno volume, que contm a substncia de vrias confern
cias realizadas no Collge libre des sciences sociales em outubro de
1897, tentei oferecer no somente nem precisamente o resumo ou a
quintessncia de minhas trs obras principais de sociologia geral as Leis da Imitao, a Oposio Social e a Lgica Social - mas ainda,
e acima de tudo, o lao ntimo que as une. Essa conexo, que pode
muito bem ter escapado ao leitor desses livros, aqui iluminada
por consideraes de ordem mais geral. Elas permitem, ao que me
parece, abarcar num mesmo ponto de vista esses trs pedaos, pu
blicados separadamente, de um mesmo pensamento, esses membra
disjecta12de um mesmo corpo de ideias. Talvez me digam que desde
o incio eu poderia ter apresentado num todo sistemtico o que dividi
em trs publicaes. Mas as obras em vrios volumes afugentam,
e com alguma razo, o leitor contemporneo; alm disso, para que
fatigar-nos com essas grandes construes unitrias, com esses
edifcios completos? Se aqueles que nos acompanham tero tanta
pressa em demolir essas edificaes para servir-se de seus materiais
ou apropriar-se de um pavilho destacado, mais vale poupar-lhes o
trabalho da demolio e entregar-lhes o pensamento em fragmen
tos. Todavia, para uso dos espritos singulares que se comprazem
em reconstruir aquilo que se lhes oferece em estado fragmentado,
tal como outros em quebrar aquilo que se lhes apresenta acabado,
talvez no seja intil juntar s partes esparsas da obra um desenho,
um esboo que indique o plano de conjunto que teramos executado
com gosto se para tanto tivssemos sentido a fora e a audcia. Essa
toda a razo de ser desta pequena brochura.
G.T.
Abril de 1898.

12 Traduo livre: partes dispersas, separadas. (N. do T.)

Introduo

o percorrer o museu da histria e a sucesso de seus


quadros multicoloridos e heterclitos, ao viajar atravs
dos povos, todos eles diversos e cambiantes, a primeira

impresso do observador superficial a de que os ienmenos da

vida social escapam a qualquer frmula geral, a qualquer lei cien


tfica, e que a pretenso de fundar uma sociologia uma quimera.
Mas os primeiros pastores que observaram o cu estrelado e os
primeiros agricultores que tentaram adivinhar os segredos da
vida das plantas devem ter ficado igualmente impressionados pela
resplandecente desordem do firmamento, pela multiformidade de
seus meteoros, pela exuberante diversidade das formas vegetais
e animais; e a ideia de explicar o cu e a floresta por um pequeno
nmero de noes logicamente encadeadas sob o nome de astro
nomia e de biologia, essa ideia, se ela pudesse ocorrer-lhes, teria
sido a seus olhos o cmulo da extravagncia. Com efeito, no existe
menos complicao, irregularidade real e aparente capricho no
mundo dos meteoros ou no interior de uma floresta virgem do que
na balbrdia da histria humana.
Como, ento, a despeito da sinuosa diversidade dos estados
celestes ou dos estados silvestres, das coisas fsicas ou das coisas
viventes, chegou-se a gerar e fazer crescer, pouco a pouco, um
embrio de mecnica ou de biologia? Isso se deve a trs condi
es que importa distinguir claramente para formular uma noo
precisa e completa de como convm entender esse substantivo
e esse adjetivo to utilizados, cincia e cientfico. Em primeiro
lugar, comeou-se a perceber algumas similitudes no meio dessas
diferenas, algumas repeties entre essas variaes: os retornos
peridicos dos mesmos estados do cu, das mesmas estaes, o
curso regularmente repetido das idades - juventude, maturidade,
velhice - no seres vivos, e os traos comuns aos indivduos de uma

20

/AsLeis Sociais

mesma espcie. No existe cincia do individual considerado nele


mesmo; s existe cincia do geral, ou seja, do indivduo conside
rado como repetido ou suscetvel de ser repetido indefinidamente.
A cincia uma ordenao de fenmenos encarados pelo vis
de suas repeties. Isso no quer dizer que diferenciar no seja um
dos procedimentos essenciais do esprito cientfico. Diferenciar,
tanto quanto assimilar, fazer cincia; mas somente na medida
em que a coisa que se discerne um tipo extrado, na natureza,
de um certo nmero de exemplares, e mesmo suscetvel de ser
reeditado indefinidamente. Pode-se descobrir um tipo especfico
e caracteriz-lo claramente, mas se ele for julgado como sendo o
privilgio de um indivduo nico, incapaz de ser transmitido sua
posteridade, no ter interesse para o cientista seno a ttulo de
curiosidade teratolgica.
Repetio significa repetio conservadora, causao sim
ples e elementar sem nenhuma criao, pois - como mostram a
transmisso de movimento de um corpo a outro ou a comunicao
da vida de um ser vivo ao rebento que dele nasceu - o efeito re
produz a causa de maneira elementar. Mas tambm a destruio
dos fenmenos, e no apenas sua reproduo, importante para a
cincia. Assim, seja qual for a regio da realidade qual se aplique, a
cincia deve buscar, em segundo lugar, as oposies que ali existem
e que lhe so prprias: ela estar atenta, portanto, ao equilbrio de
foras e simetria das formas, s lutas entre os organismos vivos,
aos combates de todos os seres.
Mas isso no tudo, e nem mesmo o essencial. preciso,
antes de mais nada, estar atento s adaptaes dos fenmenos, s
suas relaes de coproduo verdadeiramente criadora. para
captar, depurar e explicar essas harmonias que o cientista trabalha;
e descobrindo-as, ele chega a constituir essa adaptao superior: a
harmonia entre seu sistema de noes e frmulas e a coordenao
interna das realidades.

Gabriel Tarde

21

Assim, a cincia consiste em considerar uma realidade qual


quer sob trs aspectos: as repeties, as oposies e as adaptaes
que ela encerra, e que tantas variaes, tantas dissimetrias, tantas
desarmonias impedem de ver. A relao entre causa e efeito no
constitui, por ela mesma, o elemento prprio do conhecimento
cientfico. Se assim fosse, a histria pragmtica, que sempre um
encadeamento de causas e efeitos, e que sempre nos ensina que
tal batalha ou tal insurreio teve tais consequncias, seria o mais
perfeito exemplar da cincia. Sabemos, no entanto, que a histria
s se torna uma cincia na medida em que as relaes de causa
lidade que ela assinala aparecem como estabelecidas entre uma
causa geral, suscetvel de repetio ou repetindo-se de fato, e um
efeito geral, no menos repetido ou suscetvel de s-lo. Por outro
lado, a matemtica jamais nos mostra a causalidade em obra; e
quando ela a postula sob o nome de funo, dissimulando-a sob
uma equao. No entanto, a matemtica ^uma cincia e mesmo o
prottipo da cincia. Por qu? Porque em parte alguma realizada
uma eliminao to completa do lado dessemelhante e individual
das coisas, em lugar algum elas se apresentam sob o aspecto de
uma repetio to precisa e to definida, e de uma oposio to
simtrica. A grande lacuna da matemtica a de no enxergar,
ou enxergar mal, as adaptaes dos fenmenos. Da advm sua
insuficincia, to vivamente sentida pelos filsofos, mesmo e
especialmente por gemetras como Descartes, Comte, Cournot.
Repetio, oposio, adaptao: essas so, repito, as trs di
ferentes chaves que a cincia usa para abrir os arcanos do universo.
Ela busca, antes de qualquer coisa, no exatamente as causas, mas
as leis de repetio, as leis de oposio, as leis de adaptao dos fe
nmenos. So trs tipos de leis (e importante no confundi-las) to
solidrias quanto distintas: em biologia, por exemplo, a tendncia
das espcies a se multiplicar segundo uma progresso geomtrica
(lei de repetio) o fundamento da concorrncia vital e da seleo
(lei de oposio); e a produo de variaes individuais, de aptides

22

As Leis Sociais

e harmonias individuais diferentes, assim como a correlao de


crescimento (lei de adaptao)13 so necessrias ao seu funcio
namento. Mas entre essas trs chaves, a primeira e a terceira so
muito mais importantes do que a segunda: a primeira a grande
chave-mestra, a terceira, mais sutil, da acesso aos tesouros mais re
cnditos e mais preciosos; a segunda, intermediria e subordinada,
revela-nos os choques e as lutas de utilidade passageira, espcie
de termo mdio destinado a se esvanecer pouco a pouco, embora
jamais completamente, e a s desaparecer, ainda que parcialmente,
depois de numerosas transformaes e atenuaes.
Essas consideraes eram necessrias para indicar o que a
sociologia deve ser caso deseje merecer o nome de cincia, e para
que caminhos os socilogos devem dirigi-la se eles se importam
em v-la assumir decididamente o posto que lhe pertence. Como
qualquer outra cincia, ela no poder faz-lo a no ser possuindo
seu prprio domnio de repeties, seu prprio domnio de oposies e seu prprio domnio de adaptaes, todos caractersticos
e exclusivos. Ela no progredir a no ser esforando-se, como
fizeram todas as cincias anteriores, para sempre substituir as
falsas repeties por repeties verdadeiras, as falsas oposies
por oposies verdadeiras, as falsas harmonias por harmonias
verdadeiras, e para substituir repeties, oposies e harmonias
verdadeiras, porm vagas, por repeties, oposies e adaptaes
cada vez mais precisas. Coloquemo-nos sucessivamente em cada
um desses pontos de vista para verificar inicialmente se a evoluo
das cincias em geral, e da sociologia em particular, se fez e se faz
no sentido que eu acabo de definir imperfeitamente, e que preten
do definir cada vez melhor; e em seguida, para indicar as leis do
desenvolvimento social sob cada um desses aspectos.
Note-se que Cuvier e os naturalistas de sua poca (inclusive seu adversrio Lamarck) bus
caram, sobretudo, as leis de adaptao, enquanto Darwin e seus discpulos evolucionistas
abordaram os fenmenos da vida dando preferncia aos aspectos relativos s suas repeti
es e s suas oposies (lei de Malthus e lei da concorrncia vital), embora, por certo, eles
tambm tenham se preocupado com aquilo que importa acima de tudo, a adaptao vital.

Primeiro captulo
Repetio dos fenmenos
oloquemo-nos na presena de um grande objeto: o

cu estrelado, o mar, uma floresta, uma multido, uma


cidade. De todos os pontos desse objeto emanam im

presses que assediam os sentidos do selvagem, bem como os


do cientista. Neste, porm, essas sensaes mltiplas e inco
erentes sugerem noes logicamente agenciadas, um feixe de
frmulas explicativas. Como ocorreu a lenta elaborao dessas
sensaes em noes e em leis? Como o conhecimento dessas
coisas se tornou cada vez mais cientfico? Eu diria que isso
aconteceu, em primeiro lugar, medida que mais similitudes
foram descobertas, ou que, depois de se ter acreditado ver
similitudes superficiais, aparentes e decepcionantes, similitu
des mais reais e profundas foram percebidas. Em geral, isso
significa que se passou de similitudes e repeties de massa,
complexas e confusas, a similitudes e repeties de pormenor,
mais difceis de captar, porm mais precisas, elementares e
infinitamente numerosas, bem como infinitesimais. E somente
depois que essas similitudes elementares foram percebidas
que as similitudes superiores, mais amplas, mais complexas,
mais vagas, puderam ser explicadas e reduzidas ao seu justo
valor. Esse progresso ocorreu cada vez que muitas originalidades distintas, anteriormente julgadas sui generis, foram
assimiladas em combinaes de similitudes. Isso no quer
dizer que a cincia, ao progredir, faa desaparecer ou mesmo
diminuir a proporo de originalidades fenomenais, os aspectos
no repetidos da realidade. verdade que as originalidades
de massa, grandes e visveis, se dissolvem sob o olhar mais
penetrante do observador, mas em proveito de originalidades

24

As Leis Sociais

mais profundas e recnditas que vo se m ultiplicando inde


finidamente, juntamente com as uniformidades elementares.
Apliquemos o que foi dito ao cu estrelado. Houve um incio
de cincia astronmica a partir do momento em que pastores ocio
sos e curiosos notaram a periodicidade das revolues celestes
aparentes, o levantar e deitar das estrelas, os passeios circulares
do Sol e da Lua, a sucesso regular e o retorno regular de suas
posies no cu. Mas certos astros pareciam constituir excees
em face da generalidade dessa nica e grandiosa revoluo circular:
as estrelas errantes, os planetas, aos quais se atribua uma marcha
caprichosa, a cada instante diferente dela mesma e das demais;
at que se percebeu quanta regularidade havia nessas anomalias.
Julgava-se, alis, que todas as estrelas fixas e errantes, sis e pla
netas, a compreendidas as estrelas cadentes, eram semelhantes
entre si, e s se estabelecia uma diferena marcante entre elas e
Sol ou a Lua, que gozavam da reputao de serem os nicos astros
verdadeiramente originais do firmamento.
Ora, a astronomia progrediu quando, por um lado, essa
aparente rotao do cu inteiro, enorme e nica, foi substituda
pela realidade de uma inumervel quantidade de pequenas rota
es muito diferentes entre si, e que no apresentavam nenhuma
sincronia, cada qual se repetindo indefinidamente; e quando, por
outro lado, a originalidade do Sol desapareceu, substituda por
uma originalidade mais difcil de perceber, a de cada estrela, sol
de um sistema invisvel, centro de um mundo planetrio anlogo
ao turbilho de nossos planetas.
A astronomia deu um passo ainda maior quando as diferenas
dessas gravitaes siderais, cuja generalidade sem excees no
exclua a desigualdade de velocidade, de distncia, de elipticidade,14
etc., desapareceram diante da lei de gravitao newtoniana, que
apresentou todas as periodicidades de movimento, das menores
14 No o rig in a l, ellipticit, carter de uma fig u ra (no caso, de uma rb ita ) e lp tica
(N. doTJ.

Gabriel Tarde

25

s maiores, das mais rpidas s mais lentas, como a repetio in


cessante e contnua de um mesmo fato: a atrao em razo direta
das massas e em razo inversa ao quadrado das distncias. E seria
ainda melhor se, explicando esse mesmo fato por meio de uma
hiptese audaciosa, sempre perseguida e sempre obsedante, fosse
possvel enxergar a o efeito da presso de tomos etreos, presso
decorrente de vibraes atmicas de uma inimaginvel exiguidade,
mas tambm de uma inconcebvel multiplicidade.
No terei razo ao dizer que a cincia astronmica trabalhou
o tempo todo com similitudes e repeties, e que seu progresso
consistiu em partir de similitudes e repeties nicas ou bem pouco
numerosas, gigantescas e aparentes, para chegar a uma infinidade
de similitudes e repeties infinitesimais, reais e elementares, que
alis permitiram, ao surgirem, explicar as primeiras?
E ser possvel dizer - entre parnteses - que o cu tenha
perdido algo de seu carter pitoresco medida que a astronomia
progredia? De modo algum. Em primeiro lugar, a preciso cres
cente dos instrumentos e das observaes permitiu distinguir nas
gravitaes repetidas dos astros muitas diferenas antes desper
cebidas, sendo fonte de novas descobertas, notadamente a de Le
Verrier.15Depois o firmamento se ampliou cada vez mais, e na sua
imensidade aumentada, foram acentuadas as desigualdades de
volume, de velocidade e de particularidades fsicas entre astros e
grupos de astros. As variedades de configurao das nebulosas se
multiplicaram, e quando o uso do espectroscpio (coisa inaudita)
tornou possvel analisar to maravilhosamente a composio qu
mica dos corpos celestes, foram constatadas entre os seres que
as povoam dessemelhanas que se pode chamar de profundas.
Enfim, percebeu-se melhor a geografia dos astros mais prximos, e
se julgarmos os demais a partir desses, deve-se acreditar - depois
15 Urbain Le Verrier, matemtico e astrnomo francs que em 1846 previu, somente com base
em clculos e na observao da rbita do planeta Urano, a existncia do planeta Netuno.
(N.doT.)

26

As Leis Sociais

de haver estudado os canais de Marte, por exemplo - que cada um


dos inumerveis planetas a gravitar sobre nossas cabeas ou sob
nossos ps possui seus acidentes caractersticos, seu mapa-mndi
especial, suas particularidades locais que, l como aqui, do a cada
canto do solo seu charme peculiar e imprimem, sem nenhuma
dvida, o amor pela terra natal no corao de seus habitantes,
sejam eles quais forem.
A meu ver, isso no tudo - porm digo-o baixinho, com
receio de incorrer na grave censura de fazer metafsica... Eu creio
que impossvel explicar as dessemelhanas s quais me refiro mesmo que fossem apenas essas desigualdades de posio e essa
caprichosa distribuio de matria atravs do espao - pela hip
tese, to cara aos qumicos (que so, quanto a isso, os verdadeiros
metafsicos), de elementos atmicos perfeitamente semelhantes.
Creio que a pretensa lei de Spencer sobre a instabilidade do homo
gneo nada explica, e que, por consequncia, a nica maneira de
explicar a florao de exuberantes diversidades superfcie dos
fenmenos admitir no fundo das coisas uma tumultuosa infinidade
de elementos caracterizados individualmente. Assim, do mesmo
modo que as similitudes de massa foram resolvidas em similitudes
de pormenor, as diferenas de massa, grosseiras e bem visveis,
se transformaram em diferenas de pormenor infinitamente sutis.
E assim como as similitudes de pormenor permitem explicar por
si mesmas as similitudes de conjunto, as diferenas de pormenor,
essas originalidades elementares e invisveis que eu vislumbro,
permitem igualmente explicar por si mesmas as diferenas apa
rentes e grandiosas, o pitoresco do universo visvel.
Temos a o mundo fsico. No mundo vivo acontece a mesma
coisa. Coloquemo-nos, como o homem primitivo, no meio de uma
floresta. Existe ali toda a fauna e flora de uma regio, e ns sabe
mos agora que os fenmenos to dessemelhantes apresentados
por esses diversos animais e plantas se resolvem, no fundo, numa
enorme quantidade de pequenos fatos infinitesimais resumidos

Gabriel Tarde

27

pelas leis da biologia, biologia animal ou vegetal, pouco importa;


atualmente ambas se confundem. Mas no incio se diferenciava
profundamente o que hoje assimilamos, ao passo que muitas
coisas que hoje diferenciamos eram assimiladas. As similitudes e
as repeties percebidas ento, das quais se alimentava a cincia
nascente dos organismos, eram superficiais e decepcionantes:
foram assimiladas plantas sem nenhum parentesco, cujo porte e
folhagem eram vagamente assemelhados, enquanto era traado
um abismo entre plantas da mesma famlia, mas de talhe e silhueta
bastante desiguais. A cincia botnica progrediu ao aprender que
os caracteres mais importantes, isto , mais repetidos e mais sig
nificativos, acompanhados por um cortejo de outras similitudes,
no. eram os mais visveis; ao contrrio, eram os mais recnditos,
os mais sutis, ou seja, aqueles concernentes aos rgos de repro
duo: por exemplo, o fato de ter um ou dois cotildones, ou de
no ter nenhum.
E a biologia, sntese da zoologia e da botnica, nasceu no dia
em que a teoria celular mostrou que, tanto nos animais como nas
plantas, a clula era o elemento infinitamente repetido, primeira
mente a clula germinal, e depois todas as outras que dela proce
dem; e que o fenmeno vital elementar a repetio indefinida, em
cada clula, dos modos de nutrio e de atividade, de crescimento
e de proliferao, cujo depsito tradicional ela recebeu de herana
e transmitir fielmente sua posteridade. Essa conformidade aos
precedentes que se chama de hbito ou de hereditariedade - diga
mos, numa palavra, hereditariedade, j que o hbito uma here
ditariedade interna e a hereditariedade um hbito exteriorizado
- a forma propriamente vital da repetio; tal como a ondulao
ou, em geral, o movimento peridico, sua forma fsica, tal como
a imitao, como veremos, sua forma social.
Vemos, portanto, que o progresso da cincia dos seres
vivos teve como efeito derrubar gradualmente todas as barreiras
que existiam entre eles do ponto de vista de suas similitudes e

28

/)s Leis Sociais

repeties, substituindo, tambm ali, semelhanas grosseiras e


aparentes, grandiosas e pouco numerosas, por semelhanas muito
precisas, inumerveis e infinitesimais, que so as nicas capazes de
explicar as primeiras. Mas ao msmo tempo aparecem distines
mltiplas, e no apenas a originalidade de cada indivduo se torna
mais evidente, mas tambm somos forados a admitir originalidades celulares, e em primeiro lugar germinais: pois no existe nada
to semelhante quanto duas clulas germinais, mas existir algo
mais diferente do que seu contedo? Depois de experimentar a
insuficincia das explicaes propostas por Darwin e Lamarck a
respeito da origem das espcies - cujos termos comuns, por sinal,
a descendncia, a evoluo, permanecem para alm de qualquer
contestao - preciso convir que a causa verdadeira da espcie
o segredo das clulas, a inveno de algum vulo inicial possuindo
uma originalidade particularmente fecunda.16
Pois bem, eu afirmo que se examinarmos uma cidade, uma
multido ou um exrcito, em vez de examinarmos uma floresta ou
o firmamento, veremos que as consideraes anteriores se aplicam
cincia social do mesmo modo que se aplicam astronomia e
biologia. Tambm aqui passamos de generalizaes apressadas,
fundadas sobre analogias vs e factcias, grandiosas e ilusrias, a
generalizaes apoiadas sobre conjuntos de pequenos fatos seme
lhantes, possuindo uma similitude relativamente clara e precisa.
H muito tempo a sociologia trabalha para constituir-se.
Ela tentou seus primeiros balbucios a partir do momento em que
discerniu, ou acreditou discernir, algo de peridico e de regular no
confuso caos dos fatos sociais. A concepo antiga do grande ano
cclico, ao trmino do qual tudo, no mundo social como no mundo
16 Essa afirmao de Tarde parece referir-se teoria do plasma germinativo de August Weismann. 0 bilogo alemo rejeitava a hereditariedade dos caracteres adquiridos e preco
nizava que o segredo da variao (surgimento de novas espcies) reside exclusivamente
nas clulas germinativas e depende de alteraes em seus elementos moleculares. A
descoberta do ADN demonstrou que Weismann estava na direo correta, e tinha razo
ao mesmo tem po contra Darwin e contra Lamarck. (N. doT.)

Gabriel Tarde

29

natural, se repetia na mesma ordem, era j um primeiro esboo de


sociologia. Aristteles substituiu essa nica e falsa repetio de
conjunto, acolhida pelo quimrico talento de Plato, por repeties
de pormenor, frequentemente verdadeiras, mas sempre muito vagas
e difceis de acompanhar de perto; elas so formuladas em sua
Poltica a propsito do que existe de mais superficial ou de menos
profundo na vida social, a sucesso de formas governamentais.
Interrompida desde ento, a evoluo da sociologia recomeou ab
ovo17 nos tempos modernos. Os ricorsi 18 de Vico so a retomada
e a fragmentao, menos quimrica, dos ciclos antigos; essa tese,
tal como a de Montesquieu sobre a pretensa semelhana entre
civilizaes surgidas sob o mesmo clima, so dois bons exemplos
de repeties e similitudes superficiais ou ilusrias que nutriram
a cincia antes que ela encontrasse um alimento mais substancial.
Chateaubriand, no seu Ensaio sobre as Revolues, desenvolveu um
longo paralelo entre a revoluo inglesa e^a revoluo francesa e
divertiu-se com as mais superficiais comparaes. Outros funda
ram grandes pretenses tericas sobre vs analogias entre o gnio
pnico e o gnio ingls, ou entre o imprio romano e o imprio
ingls... Essa pretenso de encerrar os fatos sociais em frmulas
de desenvolvimento, que os constrangeriam a repetir-se em massa
com variaes insignificantes, foi a grande iluso da sociologia:
seja sob a forma j mais precisa que Hegel lhe deu com suas s
ries de trades, seja sob a forma ainda mais cientfica e precisa, e
menos afastada da verdade, que ela recebeu dos evolucionistas
contemporneos. Estes, a propsito das transformaes do direi
to, notadamente do regime familiar e do regime de propriedade
- e a propsito das transformaes da linguagem, da religio, da
indstria, das belas-artes - arriscaram a formulao de leis gerais
razoavelmente precisas que sujeitariam a marcha das sociedades,
sob esses diversos aspectos, a passar e repassar pelos mesmos
17 Traduo livre: desde o incio, a p a rtir do zero. (N. doT.)
18 Recorrncias. (N. do T.)

30

As Leis Sociais

caminhos, arbitrariamente traados, de fases sucessivas. Era ne


cessrio reconhecer que essas pretensas regras esto repletas de
excees, e que a evoluo - lingustica, jurdica, religiosa, poltica,
econmica, artstica, moral - no uma rota nica, mas uma rede
de caminhos na qual abundam as encruzilhadas.
Felizmente, sombra e ao abrigo dessas ambiciosas genera
lizaes, trabalhadores mais modestos se esforavam, com mais
sucesso, para anotar leis de pormenor de uma solidez bem diferente.
Eles eram linguistas, mitlogos, sobretudo economistas. Esses es
pecialistas da sociologia perceberam vrias relaes interessantes
entre fatos consecutivos ou concomitantes, relaes que se repro
duziam a cada instante nos limites do pequeno domnio que eles
estudavam: encontra-se na Riqueza das Naes de Adam Smith, na
Gramtica comparada das lnguas indo-europias de Bopp e na obra
de Dietz, para ficar nesses trs exemplos, uma enorme quantidade
de observaes desse gnero, nas quais se exprime uma similitude
entre inumerveis aes humanas como a pronncia de certas con
soantes ou de certas vogais, as compras e as vendas, a produo e
o consumo de certos artigos, etc. verdade que essas similitudes,
nelas mesmas, deram lugar a leis imperfeitas, relativas ao plerumque
ft,19quando os linguistas ou economistas tentaram formul-las em
leis; mas porque se teve demasiada pressa para enunci-las, antes
mesmo de se discernir, no seio dessas verdades parciais, a verdade
geral que elas implicam, o fato social elementar que a sociologia
persegue obscuramente e que ela deve atingir para realizar-se.
Muitas vezes pressentiu-se que essa explicao geral das leis
ou pseudo-leis (econmicas, lingusticas, mitolgicas ou outras)
cabia psicologia. Ningum compreendeu isso com mais fora e
clareza do que Stuart Mill. No fim de sua Lgica, ele concebeu a
sociologia como a psicologia aplicada. O problema que ele no
exprimiu seu pensamento com suficiente preciso, e a psicologia
19 Traduo livre: o usual, aquilo que geralmente acontece. (N. do T.)

Gabriel Tarde

31

qual ele se dirigiu para obter a chave dos fenmenos sociais era
a psicologia meramente individual, aquela que estuda as relaes
internas entre impresses ou imagens no interior de um mesmo
crebro, e que acredita dar conta de tudo, nesse domnio, pelas
leis de associao desses elementos internos. Assim concebida,
a sociologia se tornava uma espcie de associacionismo ingls
aumentado e exteriorizado, e perdia sua originalidade. No exa
tamente ou unicamente a essa psicologia /nfra-cerebral, antes de
tudo psicologia inter-cerebral, que estuda o estabelecimento de
relaes conscientes entre muitos indivduos, que convm pedir
o fato social elementar, cujos grupamentos ou combinaes mlti
plas constituem os fenmenos ditos simples, objetos das cincias
sociais particulares. O contato de um esprito com outro , com
efeito, na vida de cada um deles, um acontecimento parte, que
se destaca vivamente do conjunto de seus contatos com o resto
do universo e d lugar aos estados de alma mais imprevisveis (e
mais inexplicveis pela psicologia fisiolgica).20
Essa relao de um sujeito com um objeto que tambm
um sujeito no uma percepo que em nada se assemelha
coisa percebida (autorizando por isso o ctico idealista a colocar
20 As experincias realizadas sobre a sugesto hipntica e sobre a sugesto em estado de
viglia forneceram abundantes materiais para a futura construo da Psicologia inter-ce
rebral.Tomarei a liberdade de remeter o leitor s tentativas de aplicao dessa psicologia
ainda embrionria que realizei em todas as minha obras e particularmente no captulo
intitulado Qu'est ce qu'une socit? (Lois de L'Imitation, 1890), que j havia aparecido em
novembro de 1884 na Revue philosophique; em algumas pginas de minha Philosophie
pnale (1890) sobre a formao de hordas criminosas (captulo sobre o crime, p. 384 e
seguintes, 1a edio); em minha comunicao intitulada Crimes des foules, discutida no
Congresso de Antropologia Criminal de Bruxelas em .outubro de 1892; e no meu artigo
publicado sob o ttulo de Foules et Sectes na Revue des Deux Mondes (dezembro de
1893). Esses dois ltim os estudos foram reimpressos sem modificaes no meu Essais et
mlanges sociologiques, em 1895 (Edies Storch et Masson, Paris-Lyon). Eu gostaria de
observar en passant que o trecho da Philosophie pnale citado acima, seno o captulo de
Lois de Limitation, do qual ele no passa de um corolrio, contm em substncia e muito
explicitamente a explicao dos fenmenos de massa que foram desenvolvidos mais
tarde em outros estudos, e que ele apareceu anteriormente aos interessantes trabalhos
sobre a psicologia das massas editados no estrangeiro ou na Frana. Digo isto no para
dim inuir seu mrito, mas para responder a certas insinuaes, s quais, por sinal, eu fiz
justia em outros lugares.

32

As Leis Sociais

sua realidade em dvida), mas ants a sensao de uma coisa


senciente, a volio de uma coisa volitiva, a crena em uma coisa
crente, em resumo, em uma pessoa, na qual a pessoa que perce
be se reflete e que ela no poderia negar sem negar a si mesma.
Essa conscincia de uma conscincia o inconcussum q u id21 que
Descartes procurava e que o eu individual no pde lhe fornecer.
Alm disso, essa relao singular no uma impulso fsica, dada
ou recebida, um transporte de fora motora do sujeito ao objeto
inanimado ou vice-versa, conforme se trate de um estado ativo ou
passivo, mas uma transmisso de algo interior, mental, que passa
de um sujeito ao outro sem por isso, coisa estranha, perder-se ou
diminuir-se no primeiro. E o que pode ser assim transmitido de
uma alma a outra por meio de um contato psicolgico? So suas
sensaes, seus estados afetivos? No, isso essencialmente
incomunicvel. Tudo o que dois sujeitos podem comunicar entre
si tendo conscincia disso, de maneira a sentir-se mais unidos e
semelhantes, so suas noes e volies, seus juzos e desgnios,
formas que podem permanecer as mesmas apesar da diferena
de seu contedo, produtos da elaborao espiritual que se exerce
quase indiferentemente sobre signos sensveis quaisquer. Tampou
co ela difere sensivelmente passando de um esprito de tipo visual
a um esprito de tipo acstico u motor, de modo que as ideias
geomtricas de um cego de nascena so exatamente as mesmas
que gemetras dotados de viso possuem; e um plano de batalha
sugerido por um general de humor bilioso e melanclico a generais
de temperamento vivo e sanguneo ou fleumtico e resignado no
deixar de ser o mesmo: para isso basta que eles tracem a mesma
srie de operaes, e por outro lado, que estas sejam desejadas
por eles com igual fora de querer, a despeito da maneira de sentir
toda especial, toda individual, que leva cada um deles a desejar.
A energia de tendncia psquica, de avidez mental, que eu chamo
21 Traduo livre: algo firme, constante, inabalvel. (N. doT.)

Gabriel Tarde

33

de desejo, tal como a energia de entusiasmo intelectual, de ade


so e constrio mental, que eu chamo de crena, uma corrente
homognea e contnua que, sob a varivel colorao das tintas de
afetividade prprias a cada esprito, circula idntica, ora dividida,
fragmentada, ora concentrada, e que se comunica sem alterao
de uma pessoa a outra, bem como de uma percepo a outra no
interior de uma mesma pessoa.
Quando eu disse que toda cincia verdadeira chega a um
domnio prprio de repeties elementares, inumerveis e infi
nitesimais, como se eu j houvesse dito que toda cincia verda
deira fundamenta-se em quantidades que lhe so especficas.22
A quantidade, com efeito, a possibilidade de sries infinitas e
de repeties infinitamente pequenas. Eis porque eu me permiti
insistir sobre o carter quantitativo das duas energias mentais
que, como dois rios divergentes, banham a dupla face do eu, sua
atividade mental e sua atividade voluntria. JMegar esse carter
declarar a impossibilidade da sociologia. Mas no se pode neg-lo
sem recusar a evidncia, e esta a prova de que as quantidades em
questo so propriamente sociais: sua natureza quantitativa apare
ce tanto melhor, e fere o esprito com maior vivacidade e clareza,
quando so consideradas em massas mais amplas, sob a forma de
correntes de f ou de paixo popular, de convices tradicionais
ou opiniaticidades costumeiras, abraando grupos humanos mais
numerosos. Quanto mais cresce uma coletividade, e mais se eleva
ou apequena uma opinio, ou seja, a crena ou o querer nacional,
afirmativo ou negativo, em relao a um objeto dado - alta ou baixa
exemplarmente expressa pelas cotaes da Bolsa - mais ela se tor
na suscetvel de medida e comparvel aos movimentos de presso
atmosfrica ou fora viva de uma queda dgua. por isso que a
estatstica se desenvolve com crescente facilidade medida que
22 No texto original consta a palavra qualidades (em vez da palavra quantidades): "toute
science vraie repose sur des qualits qui lui sont spciales". Uma vez que o contexto no
d margem a dvidas, optei por fazer a alterao no prprio corpo do texto. (N. doT.)

34

As Leis Sociais

os Estados crescem; o xito da estatstica, cujo objeto prprio


pesquisar e discernir quantidades verdadeiras na barafunda dos
fatos sociais, proporcional sua obstinao de medir, no fundo,
por meio dos atos humanos que adiciona, massas de crenas e de
desejos. A estatstica dos valores da Bolsa exprime as variaes
da confiana pblica no sucesso de tais ou tais empresas, na sol
vncia de tais ou tais Estados devedores, e as variaes do desejo
pblico, do interesse pblico, ao qual se d satisfao por essas
dvidas e por essas empresas. A estatstica industrial e agrcola
exprime a importncia das necessidades gerais que reclamam a
produo de tais ou tais artigos e a suposta convenincia dos meios
necessrios para satisfaz-las. A consulta da estatstica judiciria,
em suas enumeraes de processos e delitos, s interessante
porque a travessia de suas linhas permite, ano aps ano, a leitura
da progresso ou regresso dos desejos pblicos engajados em vias
processuais ou delituosas: por exemplo, a tendncia ao divrcio
ou ao roubo, e tambm a proporo de esperanas pblicas vol
tadas para certos processos ou delitos. A estatstica populacional,
que sob muitos aspectos meramente biolgica e diz respeito
propagao da espcie, tambm sociolgica na medida em que
diz respeito durao e aos progressos das instituies sociais, e
exprime o crescimento ou o decrscimo do desejo de paternidade
e de maternidade, bem como da crena geral de que a felicidade
obtida a partir do casamento e das unies fecundas.
Mas sob que condio as foras de crena e de desejo
acumuladas em indivduos distintos podem ser legitimamente
adicionadas? condio de ter o mesmo objeto, de incidir sobre
uma mesma ideia a afirmar, sobre uma mesma ao a executar.
Mas como se produz essa convergncia de direo que torna as
energias individuais capazes de formar um todo social? Ser espon
taneamente, por um encontro fortuito, ou por uma espcie de har
monia preestabelecida? No, a no ser talvez em casos bem raros;
e mesmo essas excees, se tivssemos tempo para examin-las,

Gabriel Tarde

35

confirmariam a regra. Essa conformidade minuciosa de espritos


e de vontades que constitui o fundamento da vida social, mesmo
nas pocas mais perturbadas; essa presena simultnea de tantas
ideias precisas, de tantos fins e meios precisos em todos os esp
ritos e em todas as vontades de uma mesma sociedade num dado
momento; nada disso o efeito da hereditariedade orgnica que
fez nascer homens muito semelhantes entre si, nem da identidade
do meio geogrfico que teria oferecido recursos mais ou menos
iguais a aptides mais ou menos iguais, e sim da sugesto-imitao
que, a partir de um primeiro criador de uma ideia ou de um ato,
propagou gradualmente seu exemplo. As necessidades orgnicas
e as tendncias espirituais s existem em ns num estado de virtualidades realizveis sob as mais diversas formas, a despeito de
sua vaga similitude primordial; e foi a indicao de um primeiro
iniciador imitado que determinou, entre essas realizaes poss
veis, a escolha de uma delas.
Voltemos ao casal social elementar que mencionei anterior
mente, no o casal do homem e da mulher que se amam - esse casal,
considerado do ponto de vista sexual, puramente vital - mas o
casal de duas pessoas, seja qual for o sexo a que elas pertencem,
no qual uma age espiritualmente sobre a outra. Eu afirmo que a
relao entre essas duas pessoas o elemento nico e necessrio
da vida social, e que ele consiste sempre, originalmente, em uma
imitao de um pelo outro. Porm preciso bem compreender isto
para no cair sob o golpe de vs e superficiais objees. 0 incon
testvel que dizendo, fazendo, pensando no importa o que, uma
vez engajados na vida social, ns imitamos outrem a cada instante,
a menos que ns inovemos, o que raro; e ainda fcil mostrar
que nossas inovaes so, em sua maior parte, combinaes de
exemplos anteriores, e que elas permanecem estranhas vida
social enquanto no forem imitadas. Vocs no dizem uma palavra
que no seja a reproduo - agora inconsciente, mas inicialmente
consciente e desejada - de articulaes verbais remontando ao

36

As Leis Soda is

mais longnquo passado, ainda que com um sotaque caractersti


co da sua vizinhana; vocs no realizam um rito de sua religio,
sinal da cruz, beijo no cone, prece, que no reproduza gestos e
frmulas tradicionais, ou seja, formadas pela imitao dos ances
trais; vocs no executam uma ordem qualquer, militar ou civil,
ou um ato qualquer de sua profisso, que no tenha sido ensinada
e que no tenham copiado de um modelo vivo; vocs no do uma
pincelada, se so pintores, no escrevem um verso, se so poetas,
que no seja conforme aos hbitos ou prosdia de sua escola;
at mesmo sua originalidade feita de banalidades acumuladas, e
aspira a tornar-se banal por sua vez.
Assim, o carter constante de um fato social, seja ele qual for,
imitativo; e esse carter prprio e exclusivo dos fatos sociais.
Sobre esse ponto, entretanto, Giddings - que, por sinal, posicionou-se frequentemente no meu ponto de vista sociolgico - m fez
uma objeo ilusria: imita-se, diz ele, de uma sociedade a outra,
e mesmo inimigos se imitam, apoderando-se de armamentos, de
tticas de guerra, de segredos profissionais. Assim, o campo da
imitao ultrapassaria o campo da sociabilidade e no poderia ser
a caracterstica deste.23Mas espanta-me que tal objeo venha de
23 Dando-se palavra imitao a acepo larga que ela recebe num livro recente e j clebre
( 0 Desenvolvimento Mental da Criana) de Baldwin, professor de psicologia da Universidade
de Princeton, pode-se dizer que a imitao o fato fundamental, no somente da vida
sociale da vida psicolgica, mas da prpria vida orgnica, na qual ela seria a condio para
o hbito e a hereditariedade. Mas a tese desse fino psiclogo, longe de contradizer a minha,
na verdade sua veemente ilustrao e confirmao. A imitao de homem a homem, tal
como eu a entendo, a decorrncia da imitao de estado a estado no mesmo homem,
imitao interna que eu mesmo j havia chamado de hbito e que, distinguindo-se da
primeira por caractersticas suficientemente precisas, no me perm ite confundi-las. Bal
dwin, que antes de mais nada um psicofisiologista, explica muito bem a origem orgnica
e mental da imitao, e seu papel term ina precisamente no mom ento em que comea o
do psicossocilogo. uma pena que seu livro no tenha antecedido meu livro sobre as
Leis da Imitao, pois suas anlises teriam sido proveitosas. Mas elas no me obrigaram
a retificar em nada as leis e consideraes enunciadas em minha obra. Em todo caso, seu
livro a m elhor resposta que posso dar queles que me censuraram por ter estendido
demais o sentido da palavra Imitao. Baldwin, estendendo-o m uito mais, prova que isso
no verdade. Eu soube, durante a reviso deste texto, que Baldwin acaba de aplicar suas
ideias sociologia [Social and Ethical Interprtations in Mental Development], e que ele,
seguindo um caminho independnte, foi conduzido espontaneamente a uma maneira
de ver bastante anloga quela desenvolvida no meu livro Lois de l'Imitation.

Gabriel Tarde

37

um autor que percebe na luta entre sociedades um poderoso agente


de sua posterior socializao, de sua comunho em uma sociedade
mais ampla elaborada por essas mesmas batalhas. Com efeito, no
evidente que povos rivais ou mesmo inimigos tendem a se fun
dir medida que assimilam suas instituies? Assim, certo que
cada novo ato de imitao tende a conservar ou fortificar o lao
social, no apenas entre indivduos j associados, mas tambm
entre indivduos ainda no associados, de modo que a imitao
prepara a associao de amanh, ou seja, tece agora, por meio de
fios invisveis, aquilo que ir se tornar um lao manifesto.
No me deterei em outras objees que me foram feitas, pois
elas provm de um entendimento muito incompleto de minhas
ideias. Elas se desfazem por si mesmas aos olhos de quem se co
loca claramente no meu ponto de vista. No que diz respeito a elas,
remeto leitura de minhas obras.
Mas no basta reconhecer o carter imitativo de todo fen
meno social. Eu afirmo, alm disso, que essa relao de imitao
existiu, na origem, no apenas entre um indivduo e uma massa
confusa de homens (como acontecer mais tarde), mas entre dois
indivduos apenas, entre os quais um, a criana, est nascendo
para a vida social, e o outro, o adulto, j socializado h muito
tempo, lhe serve de modelo individual. avanando na vida que
ns iremos tomar como regra modelos coletivos e impessoais,
geralmente inconscientes; mas antes de falar, pensar e agir tal
como ns falamos, pensamos e agimos em nosso mundo, come
amos por falar, pensar e agir como ele (ou ela) fala, pensa e age;
e esse ele ou ela um de nossos familiares. No fundo desse ns,
se procurarmos bem, no encontraremos outra coisa alm de um
certo nmero de eles e elas que se embaralharam e se confundi
ram ao multiplicar-se. Por mais simples que seja essa distino,
ela esquecida por todos aqueles que contestam que a iniciativa
individual tenha um papel criador numa instituio e numa obra
social qualquer, e acreditam dizer alguma coisa afirmando, por

38

As Leis Sociais

exemplo, que as lnguas e religies so obras coletivas, que as


massas, as massas sem nenhum dirigente, produziram o grego, o
snscrito, o hebraico, o budismo, o cristianismo; e por fim, que a
explicao das formaes e transformaes das sociedades est
na ao coercitiva da coletividade sobre o indivduo pequeno ou
grande, sempre modelado e sujeitado, e jamais na ao sugestiva e
contagiosa de indivduos de elite sobre a coletividade. Na realidade,
tais explicaes so ilusrias, e seus autores no percebem que
eludem a dificuldade principal ao postular uma fora coletiva, uma
similitude, sob certos aspectos, entre milhes de homens: ou seja,
o problema de saber como essa assimilao geral pde acontecer.
Podemos responder com preciso levando a analogia at onde
eu conduzi, at a relao intercerebral entre dois espritos, ao
reflexo de um no outro, e somente ento se poder explicar essas
unanimidades parciais, essas conspiraes dos coraes, essas
comunhes de esprito que, uma vez formadas e perpetuadas pela
tradio, imitao dos ancestrais, exercem uma presso to fre
quentemente tirnica, e ainda mais frequentemente salutar, sobre
o indivduo.24 Portanto, a essa relao que o socilogo deve se
ater, tal como o astrnomo se atm relao entre duas massas
que atraem e so atradas; a ela que ele deve pedir a chave do
mistrio social, a frmula de algumas leis simples, universalmente
verdadeiras, que podem ser discernidas em meio ao caos aparente
da histria e da vida humanas.
O que eu tenho a ressaltar no momento que a sociologia,
assim compreendida, difere das antigas concepes que reinavam
sob esse nome tal como a astronomia moderna difere da dos gregos,
ou tal como a biologia, a partir da teoria .celular, difere da histria

24 No podemos esquecer esta observao, que das mais simples: sempre a partir da
mais tenra infncia que entramos na vida social. Ora, a criana, que se volta para outrem
como a flor se volta para o Sol, sofre m uito mais a atrao do que o constrangimento
de seu meio familiar; e durante toda a sua vida, ela ir beber avidamente os exemplos
recebidos.

Gabriel Tarde

39

natural de outrora.25 Dito de outro modo, ela repousa sobre um


fundamento de similitudes e de repeties elementares e verda
deiras, infinitamente numerosas e extremamente precisas, que
substituram, como matria primeira da elaborao cientfica, um
pequeno nmero de falsas ou vagas - e decepcionantes - analogias.
E eu posso acrescentar que, se por causa dessa substituio o lado
similar das sociedades progrediu em extenso e em profundidade,
seu lado diferencial tambm ganhou com a mudana. Sem dvida
ser preciso, daqui por diante, renunciar a essas diferenas fact
cias que a filosofia da histria estabelecia entre povos sucessivos,
espcies de grandes personagens de um nico e imenso drama no
qual cada um tinha seu papel providencial a desempenhar. Conse
quentemente, j no permitido compreender essa expresso, da
qual tanto se abusou, o gnio de um povo ou de uma raa (e tambm
o gnio de uma lngua, o gnio de uma religio), da mesma maneira
que ela era compreendida por nossos antecessores, mesmo to
prximos como Renan e Taine. Emprestava-se uma originalidade
imaginria, alis mal definida, a esses gnios coletivos, entidades
ou dolos metafsicos; a eles eram atribudas certas predisposies,
supostamente invencveis, em relao a determinados tipos gra
maticais, concepes religiosas e formas de governo; e neles eram
supostas, ao contrrio, certas incompatibilidades absolutas a res
peito de concepes ou instituies pertencentes a estes ou aqueles
entre seus rivais. Por exemplo, o gnio semita seria absolutamente
refratrio ao politesmo, ao sistema analtico das lnguas modernas,
ao governo parlamentar; o gnio grego, ao monotesmo; o gnio chi
ns e o gnio japons, a todas as nossas instituies e concepes
25 Em resumo, essa concepo quase o inverso da concepo professada pelos evolucionistasunilinearese tambm por Durkheim:ao invs de explicar tudo pela pretensa imposio
de uma lei de evoluo que constrangeria os fenmenos de conjunto a se reproduzir, a se
repetir identicamente numa certa ordem, ao invs de explicar o pequeno pelo grande, o
detalhe pelo conjunto, eu explico as similitudes de conjunto pela acumulao de pequenas
aes elementares, o grande pelo pequeno, o conjunto pelo pormenor. Essa maneira de
ver est destinada a produzir na sociologia as mesmas transformaes que a introduo
da anlise infinitesimal produziu na matemtica.

40

As Leis Sociais

europeias era geral... Se os fatos protestassem contra essa teoria


ontolgica, seriam torturados at que fossem constrangidos a
confessar; seria intil mostrar a esses tericos a profundidade
das transformaes sofridas pela propagao de uma religio
proselitista, de uma lngua, ou de uma instituio como o jri, por
exemplo, bem alm das fronteiras de seu povo e de sua raa de
origem, a despeito dos obstculos que os gnios de outras naes
e de outras raas deveriam inelutavelmente lhes opor. Eles respon
dem remanejando a ideia e fazendo uma distino entre as raas
nobres e inventivas, as nicas investidas do privilgio de descobrir
e propagar descobertas, e as raas nascidas para a servido, que
no possuem nenhuma compreenso das lnguas, religies e ideias
que tomam ou parecem tomar emprestado das primeiras. Por sinal,
negava-se a possibilidade de que esse proselitismo conquistador de
uma civilizao sobre outras, de um gnio popular sobre outros,
pudesse franquear certos limites, e especialmente europeizar a
China e o Japo. J foi provado o contrrio em relao a este ltimo,
e em breve ir acontecer o mesmo com o Imprio do Meio.
Mais cedo ou mais tarde, ser preciso abrir os olhos para as
evidncias, e reconhecer que o gnio de um povo ou de uma raa,
ao invs de ser o fator dominante e superior dos gnios individu
ais que seriam seus rebentos e suas manifestaes passageiras,
muito simplesmente uma etiqueta cmoda, a sntese annima
dessas inumerveis originalidades pessoais, que so as nicas
verdadeiras, eficazes e ativas a cada instante, e que esto em fer
mentao contnua no seio de cada sociedade graas a emprstimos
incessantes e a uma fecunda troca de exemplos com as sociedades
vizinhas. 0 gnio coletivo, impessoal, portanto funo e no fator
dos gnios individuais, infinitamente numerosos; ele sua fotografia
compsita, e no deve ser sua mscara. E certamente no teremos
nada a lamentar, em relao ao pitoresco social capaz de suscitar
o interesse do historiador artista, quando chegarmos a perceber
atravs dessa fantasmagoria - esclarecida, mais do que dissipada

Gabriel Tarde

41

- sobre atores histricos vagamente caracterizados que chama


mos de Egito, Roma, Atenas, etc., um pulular de individualidades
inovadoras, cada qual sui generis, marcada pelo seu prprio selo,
distinto e reconhecvel entre mil.
Assim, posso concluir mais uma vez que, pela introduo
desse ponto de vista sociolgico, estaremos fazendo precisamente
o que todas as outras cincias fizeram quando substituram um
pequeno nmero de similitudes e diferenas, falsas ou vagas, por
inumerveis similitudes e diferenas precisas e verdadeiras; e isso
ser duplamente proveitoso para o artista e para o cientista, e
sobretudo para o filsofo, que deve, a no ser que ele mesmo seja
algo distinto, sintetizar ambos.
Mais algumas observaes. Antes que se descobrisse algum
fato astronmico elementar, como a atrao descrita pela lei newtoniana, ou pelo menos a gravitao elptica, houve conhecimentos
astronmicos heterogneos - uma cincia da Lua, selenologia, uma
cincia do Sol, heliologia - mas no a astronomia. Antes que se
descobrisse um fato qumico elementar (afinidades, combinaes
em propores definidas), houve conhecimentos qumicos, qumicas
especiais, do ferro, do estanho, do cobre, etc., mas no a qumica.
Antes que se descobrisse o fato fsico essencial - a comunicao
ondulatria do movimento molecular - houve conhecimentos f
sicos: tica, acstica, termologia, eletrologia, mas no a fsica. A
fsica tornou-se fsico-qumica, a cincia da natureza inorgnica
inteira, quando entreviu a possibilidade de explicar tudo pelas leis
fundamentais da mecnica, ou seja, quando acreditou descobrir,
como fato inorgnico elementar, a reao igual e contrria ao,
a conservao da energia, a reduo de todas as foras em formas
de movimento, o equivalente mecnico do calor, da eletricidade,
da luz, etc. Enfim, antes da descoberta das analogias existentes,
do ponto de vista da reproduo, entre os animais e as plantas,
nem mesmo havia uma botnica e uma zoologia, mas botnicas e
zoologias, ou seja, uma hipologia, uma cinologia, etc. Mas a des-

42

A i Leis Sociais

coberta de similitudes s conferia uma unidade muito parcial a


todas essas cincias esparsas, a esse.s membra disjecta da futura
biologia. A biologia somente nasceu de fato quando a teoria celular
veio mostrar o fato vital elementar, o funcionamento da clula (ou
do elemento histolgico) e sua proliferao, perpetuada pelo vulo,
ele mesmo clula, de modo que a nutrio e a gerao passaram a
ser encaradas sob um mesmo ngulo.
Muito bem, trata-se agora de fazer, similarmente, a cincia
social a partir das cincias sociais. J houve, com efeito, cincias
sociais, ao menos esboadas, preldios de cincia poltica, de
lingustica, de mitologia comparada, de esttica, de moral, uma
economia poltica j bem avanada, muito antes que houvesse
o embrio de uma sociologia. A sociologia supe um fato social
elementar. E ela o supe com tal fora que, enquanto no havia
chegado a descobri-lo - talvez porque ele estivesse na sua cra,
se me perdoam essa expresso - ela sonhava com ele, ela o imagi
nava sob a forma de uma dessas similitudes vs e imaginrias que
atravancam o bero de todas as cincias, e acreditava dizer algo
de profundamente instrutivo ao conceber uma sociedade como
um grande organismo, o indivduo (ou, segundo outros, a famlia)
como a clula social, e toda forma de atividade social como uma
funo de tipo celular. Eu j fiz os maiores esforos, juntamente
com a maior parte dos socilogos, para desembaraar a cincia
nascente dessa estorvante concepo. Ainda cabe uma palavra a
esse respeito.
O conhecimento cientfico sente com tal fora a necessidade
de apoiar-se em similitudes e repeties que, antes de possu
das, criou outras, imaginrias, e ficou espera das verdadeiras;
desse ponto de vista, preciso classificar a famosa metfora do
organismo social entre tantas outras concepes simblicas que
tiveram a mesma utilidade passageira. A alegoria desempenhou
um papel imenso nas origens de todas as cincias, bem como de
toda a literatura. Na matemtica, antes das slidas generalizaes

Gabriel Tarde

43

de Arquimedes, ns tivemos os devaneios alegricos de Pitgoras


e Plato. A astrologia e a magia, vestbulo da astronomia, balbucio
da qumica, esto fundadas sobre o postulado da alegoria universal
mais do que sobre o da analogia universal; elas admitem uma har
monia preestabelecida entre as posies de certos planetas e os
destinos de certos homens, entre tal ao simulada e tal ao real,
entre a natureza de uma substncia qumica e a do corpo celeste
que leva seu nome, etc. No nos esqueamos do carter simblico
dos procedimentos jurdicos primitivos, das aes da lei no direito
romano, antigos tateios da jurisprudncia. Notemos tambm - pois
a teologia foi uma cincia dos nossos ancestrais, tal como a juris
prudncia - o abuso dos sentidos figurados atribudos aos relatos
bblicos por parte dos mais antigos telogos, que viam na histria
de Jac a cpia antecipada da histria de Cristo, ou daqueles que
simbolizavam os amores entre esposo e esposa no Cntico dos
Cnticos como sendo os amores entre Cristo p sua Igreja. Assim co
mea a cincia teolgica na Idade Mdia, assim comea a literatura
moderna no Roman de la Rose. H uma grande distncia entre essas
ideias e as ideias da Suma de So Toms de Aquino. Encontramos
um vestgio desse misticismo simblico ainda em nosso sculo, nas
obras agora esquecidas - porm dignas de serem exumadas em
razo de suas graas fenelonistas de estilo - de Pre Gratry, que
acreditava ver no sistema solar o smbolo das relaes sucessivas
entre a alma e Deus, em torno do qual, segundo ele, gira a alma.
Ainda segundo ele, o crculo e a elipse simbolizam toda a moral,
que est inscrita hieroglificamente nas sees cnicas.
E claro que eu no posso comparar essas excentricidades
aos desenvolvimentos parcialmente slidos, e sempre srios,
que Comte, e depois Herbert Spencer, e ainda mais recentemente
Ren Worms e Novicow, deram tese da sociedade-organismo. Eu
aprecio o mrito e a utilidade momentnea dessas obras, ainda
que as critique. No entanto, agora generalizando o que j foi dito,
creio.ter o direito de enunciar a seguinte proposio: o progresso

44

As Leis Sociais

de uma cincia consiste em substituir as similitudes e repeties


exteriores, isto , as comparaes do objeto prprio dessa cincia
a outros objetos, por similitudes e repeties interiores, isto ,
comparaes desse objeto consigo mesmo, considerado em seus
exemplares mltiplos e sob outros aspectos. A ideia do organismo
social, que encara a nao como uma planta ou um animal, corres
ponde ideia do mecanicismo vital, que encara uma planta ou um
animal como uma entidade mecnica. Mas no foi por meio dessa
comparao, aprofundada e prolongada, entre um corpo vivo e um
mecanismo, que a biologia progrediu, e sim pela comparao das
plantas entre elas, dos animais entre eles, dos corpos viventes entre
si.26E no pela comparao entre as sociedades e os organismos
que a sociologia deu e ainda dar grandes passos, pela compara
o das sociedades entre elas, pelas inumerveis coincidncias
entre evolues nacionais distintas, do ponto de vista da lngua,
do direito, da religio, da indstria, das artes, dos costumes: e
sobretudo pela ateno concedida a essas imitaes de homem a
homem, que fornecem a explicao analtica dos fatos de conjunto.
Depois desses longos preliminares, chegou o momento de
expor as leis gerais que regem a repetio imitativa, que esto
para a sociologia como as leis do hbito e da hereditariedade esto
para a biologia, ou as leis da gravitao para a astronomia, e as
leis da ondulao para a fsica. Mas eu j tratei abundantemente
desse tema numa de minhas obras, As Leis da Imitao, qual
tomarei a liberdade de remeter aqueles que tm interesse nesse
assunto. Todavia, convm trazer luz algo que ainda no est
suficientemente claro, a saber, que todas essas leis decorrem, no
fundo, de um princpio superior: a tendncia que possui um exem26 Do mesmo modo, no foram as comparaes pita^ricas entre a m atemtica e as
demais cincias que fizeram a matemtica avanar; elas foram estreis, ao passo que
a aproximao entre a geometria e a lgebra, conduzida por Descartes, foi fecunda;
mas foi somente a partir da inveno do clculo infinitesimal, quando se desceu at o
elemento matemtico indecomponvel cujas repeties indefinidas tudo explicam, que
a fecundidade matemtica apareceu em sua plenitude.

Gabriel Tarde

45

plo, uma vez lanado num certo grupo social, a se propagar nele
segundo uma progresso geomtrica se esse grupo permanecer
homogneo. No vejo nada de misterioso, alis, nessa tendncia.
Ela significa algo de muito simples: quando, por exemplo, se faz
sentir num grupo a necessidade de exprimir uma nova ideia por
meio de uma nova palavra, o primeiro a imaginar uma expresso
capaz de satisfazer essa necessidade s ter de pronunci-la para
que, de boca em boca, ela seja repercutida por todos os falantes do
grupo em questo, e para que se espalhe, mais tarde, nos grupos
vizinhos. Isso no quer dizer em absoluto que essa expresso seja
dotada de uma alma que a leva a irradiar-se desse modo, tal como
o fsico, ao dizer que a onda sonora tende a espalhar-se pelo ar, no
atribui a essa forma simples uma fora prpria, vida e ambiciosa.27
No, apenas um modo de falar, que serve para dizer, num caso,
que as foras motoras inerentes s molculas do ar encontraram
nessa repetio ondulatria um caminho de escoamento; e para
dizer, no outro caso, que a necessidade particular inerente aos
indivduos humanos do grupo em questo foi satisfeita com essa
repetio imitativa, que poupa sua preguia (anloga inrcia
material) do esforo que a inveno exige. Seja como for, no h
razo para duvidar dessa tendncia progresso geomtrica; na
prtica, porm, ela entravada por obstculos de vrios tipos, e
raro, embora no seja extremamente raro, que os diagramas esta
tsticos relativos difuso pblica de uma nova inveno industrial
mostrem essa progresso regular. Que obstculos so esses? H
aqueles que provm da diversidade de climas e raas, mas eles
no so os mais fortes; o entrave maior que detm a expanso de
uma inovao social (e sua consolidao em costume tradicional)
alguma outra inovao igualmente expansiva que ela encontra em

27 Tampouco o naturalista, ao dizer que uma espcie tende a se propagar segundo uma
progresso geomtrica, encara essa forma simples como possuindo por ela mesma,
independentemente do Sol, das afinidades qumicas, de todas as energias fsicas que ela
meramente canaliza, uma energia e uma aspirao independentes.

46

As Leis Sociais

seu caminho, e que, para empregar uma metfora fsica, interfere


nela. Com efeito, toda vez que algum hesita entre duas maneiras
de falar, entre duas ideias, entre duascrenas, entre duas maneiras
de agir, est ocorrendo nele uma interferncia de irradiaes imitativas, de irradiaes imitativas que, a partir de focos diferentes,
muitas vezes distantes um do outro no espao e no tempo (isto ,
focos de inventores e imitadores individuais primitivos), se pro
pagaram at ele. Como resolver essa dificuldade? Quais sero as
influncias decisivas? Essas influncias, como j disse, so de dois
tipos: lgicas e extralgicas. preciso acrescentar que mesmo es
sas ltimas so lgicas em certo sentido da palavra; por exemplo,
quando diante de dois exemplos, o plebeu escolhe cegamente o
exemplo do patrcio, o campons escolhe o do citadino, o provin
ciano escolhe o do parisiense. No que eu chamei de cascata de
imitao, que corre de cima para baixo na escala social, por mais
cega que seja a imitao, ela sempre advm de uma presuno de
superioridade daquele que d o exemplo; o modelo parece possuir,
sobre o imitador, uma autoridade social. Ocorre o mesmo quando,
entre o exemplo de seus ancestrais e o de um inovador estrangeiro,
o homem primitivo prefere sem hesitao o primeiro, que ele julga
infalvel; ocorre o mesmo quando, diante do mesmo dilema, o indi
vduo das modernas cidades faz a escolha contrria, convencido a
priori de que o novo sempre prefervel ao antigo. No obstante,
uma opinio como essa, fundada sobre consideraes extrnsecas
prpria natureza dos dois modelos comparados, das duas ideias
ou volies, merece ser cuidadosamente distinguida dos casos em
que a opo baseada num juzo sobre o carter intrnseco das
duas ideias ou das duas volies; e para esse tipo de influncias
decisrias que se pode reservar o epteto de lgicas.
Por ora, nada mais direi, pois no prximo captulo falaremos
novamente desses duelos lgicos e teleolgicos, elementos da
oposio social. Acrescento apenas que as interferncias das irra
diaes imitativas nem sempre so entraves mtuos; muitas vezes

Gabriel Tarde

47

elas so alianas mtuas e servem para acelerar, para amplificar


essas irradiaes; e por vezes elas ocasionam uma ideia genial que
nasce de seu encontro e de sua combinao em um crebro, como
veremos no captulo consagrado adaptao social.

Segundo captulo
Oposio dos fenmenos
m termos tericos, o aspecto-repetio dos fenmenos

o mais importante. Mas seu aspecto-oposio, em termos


prticos, do ponto de vista das aplicaes da cincia,

apresenta um interesse maior. E de Aristteles at nossos dias,


ele jamais cessou de ser, seno totalmente ignorado, ao menos
confundido na mixrdia das diferenas sem critrio.
Aqui, como acima, direi que o progresso das cincias con
sistiu na substituio de um pequeno nmero de oposies vs,
grosseiras e superficiais, percebidas ou imaginadas inicialmente,
por oposies sutis e profundas, inumerveis, penosamente des
cobertas, e na substituio de oposies exteriores por oposies
interiores ao assunto considerado. Esse progresso consistiu tam
bm, devo acrescentar, na eliminao de dissimetrias ou de assi
metrias aparentes e em sua substituio por muitas dissimetrias
e assimetrias ocultas e bem mais instrutivas.
Busquemos as oposies no cu estrelado. 0 dia e a noite,
e inicialmente o Cu e a Terra, foram as primeiras antteses; delas
viveram as cosmogonias religiosas e os embries da astronomia
e da geologia nascentes, ou que aspiravam ao nascimento. Depois
surgiram oposies mais verdadeiras, porm ainda mal compreen
didas ou simplesmente subjetivas e superficiais: o znite e o nadir
(que no passa da anttese do alto e do baixo levada ao extremo), os
quatro pontos cardeais (opostos dois a dois), o inverno e o vero,
a primavera e o outono, a manh e a tarde, meio-dia e meia-noite,
o quarto crescente e o quarto minguante da Lua, etc. verdade
que todas essas oposies foram conservadas pela cincia, mas
perdendo muito de sua importncia e de sua significao primitivas.
Para ns, o oeste apenas uma orientao relativa nossa posio

50

As Leis Sociais

em face da estrela que chamamos de Polar; para um selvagem, o


oeste o lugar da felicidade pstuma, do descanso eterno das al
mas (que para outros o leste). Da decorre a orientao ritual dos
templos e das tumbas. O quarto crescente e o quarto minguante
da Lua certamente no tm, para ns, o sentido imaginrio e to
importante que a superstio dos agricultores primitivos (e a de
nossos camponeses) lhes atribui. De acordo com estes, a lua nova
possui a virtude de fazer crescer rapidamente, e a lua cheia, a de
impedir que cresa qualquer coisa que se plante numa ou noutra
dessas duas fases lunares.28 um vestgio da distino antittica
entre dias fastos e nefastos.
Assim, essas oposies foram conservadas, mas com um
carter superficial e convencional. Outras foram suprimidas: por
exemplo, as oposies entre celeste e terrestre, Sol e Lua; e a im
portncia destas e daquelas transferiu-se para outras, bem mais
profundas. Em primeiro lugar, a descoberta da natureza elptica,
parablica ou hiperblica das curvas descritas pelos astros, plane
tas e cometas permitiu compreender a perfeita simetria das duas
metades de cada uma dessas curvas com relao aos dois lados
do eixo central. (Eu chamei a simetria de perfeita, mas existem per
turbaes, que so repeties mtuas dessas curvas, umas pelas
outras, no interior de um mesmo sistma.) Alm disso, percebeu-se que as elipses planetrias iam crescendo e decrescendo de
maneira alternada, com uma grande regularidade, em funo das
oscilaes em torno de uma posio de equilbrio. Enfim, a anttese
astronomicamente profunda, universal, contnua - fundamento de
todas as outras - est na igualdade entre a atrao que a massa ou
molcula sofre e aquela que ela exerce. Cada massa atrai e atrada,
e essa uma das mais belas ilustraes da lei mecnica de oposi
o universal, chamada de lei de reao igual e contrria ao.
28 No original: "La nouvelle lune, suivant ceux-ci, a la vertu de faire pousser rapidement, et
la vieille lune d'empcher de crotre to u t ce qu'on plante l'une ou l'autre de ces deux
phases lunaires". (N. do T.)

Gabriel Tarde

51

A fsica e a qumica, tal como a astronomia, comearam com


falsos contrrios. Os quatro elementos concebidos pelos primeiros
fsicos se opunham dois a dois: a gua e o fogo, o ar e a terra. Imagi
navam-se antipatias inatas entre determinadas substncias. Vieram
luz ideias mais ss sobre a verdadeira natureza das oposies
fsicas e qumicas quando se descobriu o carter de algum modo
oposto dos cidos e bases, e sobretudo das eletricidades de nome
contrrio, assim como a polaridade luminosa. A ideia de polaridade,
que desempenhou um papel to grande nas teorias fsico-qumicas,
marcou um enorme progresso sobre as concepes anteriores; e
agora ela mesma est sendo explicada pela noo de ondulao, que
a abrange ou est em vias de abranger. Assim como a luz, o calor
e a eletricidade aparecem como propagaes esfricas ou lineares
de vibraes infinitesimais e infinitamente rpidas, a combinao
qumica tende a ser considerada como um entrelaamento de ondas
harmoniosamente unidas: mas aqui ns j^tocamos nos domnios
da adaptao. At mesmo a atrao foi muitas vezes explicada por
presses de vibraes etreas. Seja como for, evidente que as
gravitaes elpticas dos astros, apesar da diferena de dimenso,
so comparveis s ondas fsicas, esse vai-e-vem de molculas se
gundo elipses muito alongadas, e que nos dois casos existe ritmo
ondulatrio. Em suma, podemos ver como o progresso das cincias
estendeu e aprofundou o campo da oposio, substituindo vagas
oposies qualitativas por oposies quantitativas precisas e ritma
das, tecido da teia do mundo. A maravilhosa simetria das formas
cristalinas prprias a cada substncia qumica a traduo grfica,
a expresso visual dessas oposies rtmicas entre os inumerveis
movimentos que a constituem. E no seria precisamente a essa
ritmicidade dos movimentos interiores dos corpos que se deveria
pedir a explicao ltima da lei de Mendeleev, que nos mostra os
grupos de substncias formando escalas superpostas e periodica
mente repetidas, teclado ao qual faltam, aqui e ali, algumas teclas
que descobriremos com o passar do tempo?

52

As Leis Sociais

Mas ao mesmo tempo que a evoluo das cincias fsicas


permitia a descoberta de oposies e simetrias mais profundas,
mais claras, mais explicativas, ela tambm revelava assimetrias,
arritmias, inoposies ainda mais importantes. Ela mostrou, por
exemplo, que no existe no sistema solar nenhum corpo planetrio
que retrograde, que caminhe num sentido inverso ao sentido geral;
apenas alguns satlites constituem exceo. A configurao das
nebulosas que nossos telescpios descobrem frequentemente
dissimtrica. Se adotarmos as ideias de Stanislas Meunier, no tere
mos a menor razo para pensar que existe simetria entre a evoluo
e a dissoluo de um sistema solar (se que existe dissoluo),
nem entre a formao das sucessivas camadas geolgicas de um
planeta e sua desagregao final. A disseminao dos astros no
cu continua sendo o que era antes do progresso da astronomia: o
que existe de mais caprichoso e pitoresco. Ao contrrio, a sublime
desordem desse espetculo tanto mais pungente e profunda na
medida em que progride o conhecimento das foras equilibradas,
simetricamente opostas, que parecem constituir tudo isso. Que
astrnomo do presente sonharia, como fizeram os antigos, com
uma Anti-Terra, uma Antichton, onde tudo seria o inverso terrestre?
medida que conhecemos melhor a geografia de nosso planeta,
ficamos cada vez mais assombrados pela total ausncia de simetria
na configurao dos continentes e das cadeias de montanhas, e
a rede pentagonal de lie de Beaumont j no seduz ningum. Os
progressos da cristalografia permitiram a observao de dissimetrias antes desconhecidas, cuja importncia foi posta em relevo
pelos trabalhos de Pasteur; mas tudo o que posso fazer indicar
esse tema.
As oposies grosseiras ou aparentes no mundo vivo - a vida
e a morte, a juventude e a velhice - foram as primeiras a serem nota
das, e tambm esto entre as mais antigas similitudes constatadas
entre as plantas e os animais, rudimento de uma biologia geral.
Tampouco foi possvel deixar de notar a simetria das formas vivas,

Gabriel Tarde

53

to assombrosa e to estranha por sua universalidade. Mas tambm


foram imaginadas vrias oposies vitais sem nenhuma realidade
ou valor; pode-se incluir entre estas a oposio entre os anjos e
os demnios, j que ambos foram concebidos como espcies de
animais superiores. Do mesmo modo, para o selvagem, e s vezes
para o iletrado de hoje, a grande oposio entre os vivos est entre
os seres bons e ruins para comer, entre as plantas alimentcias e
as venenosas, entre os animais teis e os nocivos. Essa oposio
subjetivamente verdadeira, mas torna-se imaginria a partir do
momento em que objetivada, como fazem instintivamente os
ignorantes de todas as raas. Durante muito tempo, os mdicos
conceberam a sade e a doena como dois estados precisamente
contrrios, e as causas da doena como sendo precisamente in
versas s causas da sade. No fundo, o erro homeoptico nasceu
dessa iluso. A doena e a sade, assim concebidas, so entidades
verbais que o progresso da fisiologia dissipou. Longe de se opor
a ele, o desvio patolgico parte do funcionamento fisiolgico.
Tambm a dissoluo individual foi encarada como o inverso da
evoluo, e a velhice, como o retorno da infncia. Esse ponto de
vista s pde ser totalmente eliminado depois que a embriologia
nos permitiu conhecer a travessia de uma srie de formas ances
trais que, evidentemente, nada tm de inversamente anlogo s
fases do declnio senil.
Muito tempo depois que as cincias da vida comearam a
se constituir, os fisiologistas imaginaram uma oposio, factcia e
cientfica ao mesmo tempo, entre a animalidade e a vegetao: para
eles, a respirao animal precisamente o inverso da respirao
vegetal e destri o que esta produz (a combinao de oxignio e
carbono). A fisiologia comparada, por meio dos trabalhos de Claude
Bernard e outros, demonstrou o carter superficial dessa inverso e
a unidade fundamental da vida nos dois reinos, que no so opostos
29 Ver a esse respeito a tese de GeorgesCanguilhem:ONorma/eoPafofg/co, Rio de Janeiro,
Ed. Forense Universitria. (N. doT.)

54

As Leis Sociais

e sim divergentes. Em compensao, o progresso do saber substi


tuiu essas oposies falsas ou vagas, que opunham entre si grupos
de seres, seres ou entidades de um mesmo ser, por inumerveis e
infinitesimais oposies - inteiramente reais - na intimidade dos
tecidos, como a oposio entre a oxidao e a desoxidao de cada
clula, ou entre a acumulao e o gasto de energia. Tambm aqui,
a oposio mostrou-se muito mais fundamental e fecunda sob a
forma do ritmo do que sob a forma da luta.
Ao mesmo tempo, porm, vieram luz dissimetrias novas
e mais dissimuladas: para citar apenas um exemplo, o estudo das
funes cerebrais, que permitiu localizar a faculdade da linguagem
no hemisfrio esquerdo, estabeleceu uma dissimetria funcional
extremamente importante entre as duas metades do crebro. No
o nico caso em que a simetria da forma entre rgos correspon
dentes nas duas metades do corpo mo direita e esquerda, olho
direito e esquerdo, etc. mascara a dissimetria ou a assimetria
profunda de sua funo. Alm disso, como j notei anteriormente,
a muito antiga e especiosa ideia terica segundo a qual a dissolu
o dos seres vivos, dos tipos viventes, havia de ser exatamente
o oposto de sua evoluo, teve de desaparecer diante dos pro
gressos da observao. E seja nos indivduos, seja nas espcies,
essa ausncia de simetria entre os dois lados da vida, ascenso e
descenso, tem um sentido profundo: ela tende a provar que a vida
no um simples jogo, apenas uma gangorra de foras por assim
dizer, mas uma marcha frente, e que a ideia de progresso no
um discurso vo. Ela tende a nos fazer considerar a oposio dos
fenmenos, suas simetrias, suas lutas e tambm seus ritmos, tal
como suas repeties, como simples instrumentos do progresso,
como termos mdios.
A sociologia d lugar a consideraes anlogas. Na origem
(pois, sob certos aspectos, ela bastante antiga), a sociologia
comeou como mitologia; e foi mitologicamente que ela se ps a
explicar toda a histria por meio de lutas fantsticas, guerras ima

Gabriei Tarde

55

ginrias e gigantescas entre deuses bons e deuses maus, deuses


da luz e deuses da noite, heris e monstros. Os metafsicos, assim
como as mitologias, abusaram dos combates; tambm eles imagi
naram oposies seriais, diretas e retrgradas, desenvolvimentos
da humanidade em um sentido seguidos por desenvolvimentos
em sentido inverso. Aqui, Plato e os filsofos hindus deram-se
as mos. Hegel, com suas ambiciosas generalizaes, com sua
classificao dos povos sob o estandarte de ideias antagonistas,
e Cousin, com sua anttese imaginria entre o Oriente-infinito e a
Grcia-finita, tambm so excelentes espcimes das antinomias
sociolgicas do passado. Tudo isso foi dissipado e ningum mais
se d ao trabalho de opor - sobretudo depois da surpreendente
europeizao do Japo em alguns anos - a pretensa imutabilidade
inata dos asiticos pretensa progressividade inata dos europeus.
Os economistas j prestaram um valoroso servio cincia
social substituindo a guerra, como fator-chave da histria, pela
concorrncia, espcie de guerra no apertas adocicada e atenu
ada, mas ao mesmo tempo reduzida e multiplicada. Por fim, se
nosso ponto de vista for adotado, ser preciso considerar que,
no mago daquilo que os economistas chamam de concorrncia
dos consumidores ou dos coprodutores, existe uma concorrncia
de desejos e de crenas; e se essa luta que constatamos entre
as formas industriais for generalizada e estendida a todas as
formas lingusticas, religiosas, polticas, artsticas e morais da
vida social, veremos que a verdadeira oposio social elementar
deve ser buscada no prprio seio de cada indivduo social sem
pre que ele hesita entre adotar ou rejeitar um novo modelo que
lhe proposto: uma nova locuo, um novo rito, uma nova ideia,
uma nova escola de arte, uma nova conduta. Essa hesitao, essa
pequena batalha interna, que se reproduz milhes de vezes a
cada momento da vida de um povo, a oposio infinitesimal e
infinitamente fecunda da histria. Ela introduz em sociologia uma
tranquila e profunda revoluo.

56

As Leis Sociais

Mas ao mesmo tempo, e ainda a partir desse ponto de vista,


revela-se o carter simplesmente auxiliar e subordinado da oposio
social, mesmo sob sua forma psicolgica; e isso decorre da colo
cao em evidncia de muitas assimetrias ou dissimetrias que no
aparecem de imediato. Tive de traar uma distino (que quase no
encontrou opositores) entre o reversvel e o irreversvel em todas as
categorias de fatos sociais, e ficou estabelecido que o irreversvel era
sempre o mais importante: por exemplo, a srie de descobertas da
cincia ou da indstria. Vemos aqui acentuar-se, em virtude dessas
oposies psicolgicas inumerveis que compem a vida de todo
indivduo social, sua originalidade individual, seu gnio prprio que
a nada se ope; e tudo aquilo que chamamos de gnio de um povo,
ou se preferirmos, o gnio de uma lngua, o gnio de uma religio,
sua expresso coletiva e abreviativa. Tambm vemos efetuar-se,
pelo prprio jogo dessas pequenas oposies infinitesimais que
acabei de mencionar, o lado esttico da vida social, pelo qual ela
no comparvel ou oponvel a coisa alguma.
Mas tudo isso no passa de um esboo bastante incompleto;
preciso adentrar mais intimamente esse tema, to pouco explo
rado e to relevante. Ponhamo-nos de acordo, em primeiro lugar,
a respeito dos diversos sentidos dessa palavra: oposio. Vou
permitir-me retomar aqui a definio e a classificao que propus no
meu livro sobre a oposio universal. Faamos um resumo de nosso
ponto de vista atual. A oposio vulgarmente e erradamente
concebida como um mximo de diferena. Ela , na realidade, uma
espcie muito singular de repetio, a de duas coisas semelhantes
que tendem a destruir-se entre si precisamente em virtude de sua
semelhana. Os opostos, os contrrios, formam sempre um par,
uma dualidade, e no so oponveis enquanto seres ou grupos de
seres, sempre dessemelhantes e de algum modo sui generis, e nem
mesmo como estados de um mesmo ser ou de seres diferentes,
mas como tendncias, como foras; pois a razo de percebermos
determinadas formas ou estados como opostos (o cncavo e o

Gabriel Tarde

57

convexo, o prazer e a dor, o frio e o quente) a contrariedade real


ou suposta das foras pelas quais esses estados foram produzidos.
Vemos que preciso eliminar de sada, como pseudo-oposies que
so, todas as antteses das mitologias ou das filosofias da histria
fundadas sobre pretensas contrariedades de natureza, entre dois
povos, duas raas, duas formas de governo: por exemplo, entre a
repblica e a monarquia (ver, a esse respeito, certos hegelianos),
entre o ocidente e o oriente, entre duas religies (cristianismo e
islamismo), entre duas famlias de lnguas inatas (lnguas semticas
e lnguas indo-europeias). Esses contrastes so acidentalmente e
parcialmente verdadeiros se encararmos as maneiras pelas quais
essas coisas, em circunstncias mais ou menos passageiras, afir
mam e negam a mesma ideia, desejam e repelem o mesmo alvo;
mas esses mesmos contrastes so quimricos se julgarmos, tal
como pareciam acreditar muitos filsofos antigos, que a antipatia
recproca entre essas coisas essencial, absoluta, inata.
Toda oposio verdadeira implica, portanto, uma relao
entre duas foras, duas tendncias, duas direes. Mas os fenme
nos pelos quais essas foras se realizam podem ser de dois tipos:
qualitativos e quantitativos, ou seja, eles podem ser formados
por fases heterogneas ou por fases homogneas. Uma srie de
fases heterogneas uma evoluo qualquer, que sempre pode
ser concebida (erradamente ou no) como reversvel, como sus
cetvel de retrogradar seguindo o caminho exatamente inverso.
Por exemplo, um qumico extrai aguardente de uma planta por
meio de uma srie de operaes qumicas, o que no quer dizer
que ser possvel reconstituir a planta; mas se no possvel,
ao menos imaginvel. Esse o sonho dos antigos filsofos no que
concerne s transformaes da humanidade. Uma srie de fases
homogneas constitui essa evoluo de tipo especial que se chama
aumento ou diminuio, crescimento ou declnio, alta ou baixa.
No necessrio entrar em detalhes para notar que cada vez mais
oposies dessa ordem, precisas e mensurveis, vo se revelando

58

As Leis Sociais

medida que a cincia social se desenvolve com a civilizao: as


cotaes da Bolsa, os diagramas estatsticos onde a alta e a baixa
deste ou daquele valor - a alta e a baixa deste ou daquele gnero
de criminalidade, do suicdio, da natalidade, dos matrimnios,
da previdncia medida pelas flutuaes dos livros contbeis dos
bancos ou das seguradoras, etc. - so registrados sob a forma de
curvas ondulatrias.
Eu acabo de distinguir as oposies de srie (evoluo e
contra-evoluo) das oposies de grau (aumento e diminuio).
Mais importante ainda a categoria das oposies de signo ou, se
preferirmos, oposies diametrais. Embora elas sejam confundidas
com as anteriores na linguagem matemtica, na qual o mais e o
menos simbolizam tanto o contraste entre o positivo e o negativo
quanto o contraste entre o aumento e a diminuio, preciso notar
que o crescimento e a diminuio alternados de uma mesma fora
dirigida no mesmo sentido constituem uma oposio muito diferen
te daquela em que, dadas duas foras situadas numa mesma linha
reta, uma se dirige de A para B e a outra de B para A. Do mesmo
modo, a oposio entre o crescimento e a diminuio do crdito
no deve ser confundida com a oposio entre esse crdito e uma
dvida de igual valor; e a maior ou menor inclinao ao roubo e
ao crime, numa sociedade, bem diferente da anttese entre essa
inclinao e a inclinao generosidade e filantropia. Para dar
de imediato uma explicao psicolgica desses e de tantos outros
contrastes sociais, notemos que o aumento e a posterior diminuio
de nossa crena afirmativa em uma ideia (religiosa ou cientfica,
jurdica ou poltica) so coisas completamente diferentes da afir
mao e posterior negao dessa mesma ideia; e que o aumento e a
posterior diminuio do nosso desejo por um objeto, por exemplo,
nosso amor por uma mulher, completamente diferente do desejo
por um objeto e sua posterior repulsa (nosso amor e depois nosso
dio por uma mesma mulher). verdadeiramente curioso constatar
que essas quantidades subjetivas, crena e desejo, comportam dois

Gabriel Tarde

59

signos opostos, um positivo, outro negativo, e que elas so real


mente comparveis s quantidades objetivas, s foras mecnicas
dirigidas em sentidos opostos ao longo de uma mesma linha reta.
0 espao constitudo de modo a comportar uma infinidade de
pares de direes opostas entre si, e nossa conscincia consti
tuda de modo a comportar uma infinidade de afirmaes opostas
a negaes, uma infinidade de desejos opostos a repulses (tendo
precisamente o mesmo objeto). Sem essa dupla singularidade,
cuja coincidncia singular, o Universo no conheceria a guerra
e a discrdia, e todo o lado trgico da vida seria to inconcebvel
quanto impossvel.
Observao essencial: sejam quais forem as oposies (de
sries, degraus ou de signos), elas podem ocorrer seja entre termos
realizados num mesmo ser (uma mesma molcula, um mesmo
organismo, um mesmo eu), seja entre dois seres diferentes (duas
molculas ou duas massas, dois organismos, duas conscincias
humanas). Mas importante distinguir cuidadosamente esses dois
casos; e importante, em primeiro lugar, do ponto de vista de outra
distino no menos essencial, que consiste em no confundir os
casos em que os termos so simultneos e aqueles em que eles
so sucessivos. No primeiro caso, existe choque, luta, equilbrio;
no segundo, existe alternncia, ritmo. No primeiro caso, h sempre
destruio e perda de fora; no segundo, no. Ora, quando eles se
produzem no interior de dois seres diferentes, as oposies, sejam
elas de sries, de graus ou de signos, podem ser simultneas ou
sucessivas, lutas ou ritmos; mas quando seus termos pertencem
a um mesmo ser, a um mesmo corpo ou a um mesmo eu, elas no
podem ser ao mesmo tempo simultneas e sucessivas a no ser
que sejam oposio de signos. Quanto s oposies de sries e
de graus, nessa hiptese, elas s comportam termos sucessivos,
alternativos. Por exemplo, no possvel que a velocidade de um
mvel numa mesma direo aumente e diminua ao mesmo tem
po; isso s possvel sucessivamente; mas pode ser que ele seja

60

As Leis Sociais

animado por duas tendncias distintas, que se dirigem em sentidos


contrrios: o caso do equilbrio, muitas vezes simbolizado pela
simetria de formas opostas, notadamente nos cristais. Do mesmo
modo, no possvel que o amor de um homem por uma mulher
esteja ao mesmo tempo em vias de aumentar e de diminuir, o que
s possvel alternativamente; mas pode ser que ele, ao mesmo
tempo, ame e odeie essa mulher, antinomia do corao realizada
em tantos crimes passionais. No possvel que a f religiosa de
um homem cresa e diminua ao mesmo tempo, isso s possvel
sucessivamente; mas pode ser que ele carregue ao mesmo tempo
em seu pensamento, muitas vezes sem perceber, a afirmao enr
gica e a no menos enrgica negao implcita de certos dogmas, a
afirmao simultnea de certa crena crist e de certo preconceito
mundano ou poltico que nega essa crena. Por fim, evidentemente
impossvel que a mesma molcula passe ao mesmo tempo por uma
srie de transformaes qumicas e pelas transformaes inversas,
ou que o mesmo homem perceba a um s tempo, em dois sentidos
opostos, a mesma srie de estados psicolgicos, o que s seria
possvel sucessivamente. Ao contrrio, nada mais habitual do
que ver simultaneamente, num sistema de corpos, astronmicos
ou outros, um corpo que vai do aflio ao perilio enquanto outro
vai do perilio ao aflio, ou um corpo que acelera enquanto outro
desacelera; e nada mais ordinrio do que ver, numa sociedade,
uma pessoa cuja ambio ou f aumenta enquanto essa mesma
ambio e essa mesma f diminuem em outra; ou ento uma pessoa
que, fazendo uma viagem circular, atravessa uma srie de sensa
es visuais, enquanto outra pessoa, fazendo o itinerrio inverso,
percorre na ordem contrria essa mesma gama de sensaes.
A discusso de cada uma das espcies de oposies apre
sentadas aqui nos levaria demasiadamente longe. Limitemo-nos
a algumas consideraes gerais. Em primeiro lugar, se existem
oposies exteriores (chamemos assim as oposies de tendncia
entre muitos seres, entre muitos homens); elas s so possveis

Gabriel Tarde

61

porque existem ou podem existir oposies internas (entre tendn


cias diferentes de um mesmo ser, de um mesmo homem). Isso se
aplica s oposies de sries e de graus tal como s oposies de
signos, mas sobretudo a estas. Se existem homens ou grupos de
homens que evoluem num sentido, enquanto outros homens ou
grupos de homens evoluem no sentido inverso, por exemplo, do
naturalismo ao idealismo em matria de arte, ou do idealismo ao
naturalismo - ou do regime aristocrtico ao regime democrtico
ou da democracia aristocracia, etc. - porque cada homem pode
evoluir e contraevoluir dessa maneira. Se existem povos e classes
em que a f religiosa aumenta, ao passo que em outros povos e
em outras classes ela diminui, porque a conscincia de cada
homem comporta aumentos e diminuies de intensidade de uma
crena. Enfim, se existem partidos polticos ou seitas religiosas que
afirmam e desejam precisamente o que outros partidos e seitas
negam e rejeitam, porque o esprito e o corao de cada homem
so suscetveis de conter o sim e o no, o a favor e o contra , a
propsito de uma mesma ideia ou de um mesmo desgnio.
Ao dizer isso, estou longe de querer identificar as lutas
exteriores com as lutas internas. Em certo sentido, elas so in
compatveis; com efeito, somente quando a luta interna chegou
ao fim - quando o indivduo, depois de ter sido lacerado por
influncias contraditrias, fez sua escolha e adotou determinada
opinio ou resoluo de preferncia a outras, estabelecendo a
paz em si mesmo - que a guerra entre ele e os indivduos que
fizeram uma escolha oposta se torna possvel. Isso no basta,
entretanto, para fazer a guerra eclodir. Para tal preciso, alm
disso, que esse indivduo saiba que os outros indivduos fizeram
uma escolha contrria dele. Sem isso, seria como se no existisse
a oposio exterior dos contrrios, simultneos ou sucessivos,
pois ela no apresentaria em absoluto as caractersticas de uma
luta exterior que a tornaria realmente eficaz. Para que haja uma
guerra ou luta religiosa, preciso que cada fiel de um culto saiba

62

AsLeisSociais

que os fiis de outro culto negam exatamente o que ele afirma, e


preciso que essa negao (que no adotada imitativamente, mas
ao contrrio, repelida por ele) se justaponha na sua conscincia
sua prpria afirmao, cuja intensidade , desse modo, redobrada.
Por exemplo, para que exista concorrncia econmica entre os
candidatos a compra de uma casa, preciso que cada um deles
saiba que sua vontade de possuir esse imvel contrariada pelos
seus competidores, que querem que ele no a possua; e ele ir
quer-la com ainda mais fora ao saber que seus competidores no
querem que ele a possua. Sem essa condio, a concorrncia nela
mesma ser estril, e os economistas erraram ao no distinguir de
maneira suficientemente clara os casos em que no h, entre os
concorrentes, conscincia de sua concorrncia, e a medida muito
varivel dessa conscincia, os graus infinitos que a separam da
inconscincia completa.
Eis porque eu tinha razo ao dizer que preciso buscar a
oposio social elementar, porm no, como se poderia acreditar
primeira vista, na relao entre dois indivduos que se contra
dizem ou se contrariam, e sim nos duelos lgicos e teolgicos,
nos combates singulares de teses e antteses, de quereres e no-quereres30 cujo teatro a conscincia do indivduo social. Sem
dvida possvel que me perguntem: mas ento qual a diferena
entre a oposio simplesmente psicolgica e a oposio social?
Ela diferente em virtude de sua causa e, sobretudo, pelos seus
efeitos. Em virtude da causa: um solitrio recebe em seus sentidos
duas percepes aparentemente contraditrias, e hesita entre
dois juzos sensitivos: um que lhe diz que determinada mancha
vista a distncia um lago, outro que lhe diz o contrrio; eis uma
oposio interna cuja origem inteiramente psicolgica, e que
um caso infinitamente raro. Pode-se afirmar sem medo de errar
30 No original,"de vouloirs et de nouloirs" (grifo do autor). 0 term o nouloir um neologismo
de Tarde que imita a palavra latina no/o (infinitivo nolle). A palavra noto significa no
querer"e formada por ne (no) e volo, velle (querer). (N. do T.)

Gabriel Tarde

63

que todas as dvidas e hesitaes de que sofre o mais isolado


dos homens, nascido na mais selvagem das tribos, devem-se a
um encontro nele ocorrido, seja entre dois raios de exemplos que
vieram interferir em seu crebro, seja pelo cruzamento entre um
raio de exemplos e uma percepo dos sentidos. Ao escrever, eu
hesito frequentemente entre duas locues sinnimas, e cada
uma delas apresenta-se como prefervel outra na circunstncia
dada: aqui, dois raios imitativos interferiram em mim, ou seja,
duas sries de homens que, a partir do primeiro inventor de uma
dessas palavras e do primeiro inventor da outra, chegaram at
mim. Pois eu aprendi cada uma dessas palavras de um indivduo
que a aprendeu de outro, e assim por diante, remontando at o
primeiro indivduo que a pronunciou. (Mais uma vez, isso que eu
chamo de raio imitatiuo\ e a totalidade de raios desse gnero, pro
venientes de um inventor, de um iniciador, de um inovador qual
quer cujo exemplo se propagou, o que eu chamo de irradiao
imitativa. A vida social se compe de um denso entrecruzamento
de irradiaes desse gnero, entre as quais ocorrem inumerveis
interferncias.) Outros exemplos: eu sou juiz e hesito entre uma
opinio que se funda sobre uma srie de decises baseadas nas
orientaes de determinado autor, por exemplo, Marcad ou Demolombe, e uma opinio oposta que se apoia numa outra srie
de decises emanadas de tal outro comentador; mais uma vez,
interferncia entre dois raios imitativos. A mesma coisa acontece
quando eu hesito entre o gs e a eletricidade para iluminar meu
apartamento. Mas quando um jovem campons, diante do pr do
sol, no sabe se deve acreditar na palavra de seu professor (que
lhe assegura que o cair da noite deve-se a um movimento da Terra
e no do Sol) ou no testemunho de seus sentidos, que lhe dizem
o contrrio, existe um nico raio imitativo que, por intermdio
de seu professor, liga-o a Galileu. Tanto faz, pois isso basta para
que sua hesitao, sua oposio interna e individual, seja social
em virtude de sua causa.

64

As Leis Sociais

Mas sobretudo pelos seus efeitos (ou melhor, por sua inefi
ccia) que a oposio simplesmente individual difere da oposio
social elementar, que tambm , entretanto, individual. Por vezes a
hesitao do indivduo permanece encerrada nele, e no se propaga
(nem tende a se propagar) imitativamente entre seus vizinhos; nes
se caso, o fenmeno permanece puramente individual. Na maioria
dos casos, porm, a prpria dvida quase to contagiosa quanto
a f, e todo aquele que devm ctico num meio fervoroso logo se
tornar o foco de um ceticismo que ir irradiar-se ao seu redor:
ser possvel, nesse caso, negar o carter social do estado de luta
interna que caracteriza cada um dos indivduos desse grupo?
Mas encaremos a questo de uma forma ainda mais geral.
Quando o indivduo toma conscincia da contradio que existe
entre um de seus julgamentos, propsitos, ideias ou hbitos - dog
ma, fraseado, procedimento industrial, tipo de arma ou ferramenta,
etc. -e um julgamento, propsito, ideia ou hbito de outro homem
ou homens, ele tem trs alternativas. Ou ele se deixa influenciar
completamente pelo outro, abandonando bruscamente sua prpria
maneira de pensar e agir; nesse caso no houve luta interna, e sim
vitria sem combate: apenas mais um entre os contnuos fenme
nos de imitao de que feita a vida social. Ou ento o indivduo
apenas parcialmente influenciado pelo outro, e esse o caso
discutido mais acima; depois do choque advm um amortecimento
de sua fora, mais ou menos entravada e paralisada. Ou ento ele
rege contra a ideia ou o hbito estrangeiro, contra a crena ou
a vontade que o afronta, e passa a afirmar ou querer ainda mais
energicamente o que ele j afirmava e queria. Mas nesse ltimo
caso, em que ele tensiona todas as energias de sua convico ou
de sua paixo para repelir o exemplo de outrem, haver nele uma
luta ntima de outro gnero, to tonificante quanto a anterior era
enervante. Ela tambm perturba, e ainda mais do que a outra, pre
cisamente porque uma sobre-excitao (e no uma paralisia) das
foras individuais, apta a espalhar-se contagiosamente; da a ciso

Gabriel Tarde

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de uma sociedade em partidos. Um novo partido sempre formado


por um grupo de pessoas que adotaram, seguindo o exemplo de
outras, uma ideia ou resoluo contrria que reinava at ento
em seu meio, e da qual elas mesmas estavam imbudas. Esse novo
dogmatismo, por outro lado, tornado mais intolerante e mais inten
so medida que se difunde, suscita contra si a coalizo daqueles
que, fiis s tradies, fizeram exatamente a escolha contrria; e
aqui teremos, face a face, dois fanatismos.
Seja sob sua forma dogmtica e violenta, seja sob sua forma
ctica e enervada, a justaposio individual de termos opostos
social desde que se difunda imitativamente. Se no fosse assim,
nada haveria de social em fatos como estes: a rivalidade entre
duas lnguas, o francs e o alemo, ou o francs e o ingls, em
suas respectivas fronteiras, Blgica, Sua, ilhas normandas; ou a
rivalidade entre duas religies igualmente limtrofes. Uma dessas
lnguas e uma dessas religies constantemente sobrepuja a outra
depois de incessantes combates que no ocorrem entre homens
rivais, mas em cada esprito, em cada conscincia, entre duas
locues rivais, entre duas crenas rivais. Haver algo mais inte
ressante, em termos sociais, do que essas enxurradas lingusticas
e religiosas? Socialmente, tudo provm de oposies psicolgicas,
e preciso voltar sempre a esse ponto. Mas tambm verdade
que extremamente importante evitar a confuso entre essas
duas formas de oposio, uma na qual o combate de dois termos
justapostos tem lugar no prprio indivduo, e outra na qual o indi
vduo simplesmente adota um dos termos opostos (embora ambos
estejam justapostos nele), e onde o combate, por conseguinte, s
tem lugar nas suas relaes com outros homens. A esse respeito
podemos nos perguntar, como fiz h muito tempo em um de meus
primeiros artigos,31 o que seria pior para uma sociedade: estar
dividida em partidos ou seitas que se combatem em virtude de
S1 Artigo posteriormente reproduzido no meu livro Lois de 1'lmitation (prim eiro captulo,
quase in fine).

66

As Leis Sociais

seus programas e dogmas opostos, em povos que guerreiam, ou


ser composta por indivduos em paz uns com os outros, mas cada
qual, individualmente, em luta consigo mesmo, presa do ceticismo,
da irresoluo ou do desencorajamento. Valer mais essa paz de
superfcie que oculta um surdo e contnuo estado de guerra das
almas consigo mesmas, ou diremos que as guerras mais mortferas,
as prprias guerras religiosas e tods os acessos de delrio poltico
nas mais sangrentas revolues so preferveis a esse torpor? Se
ns s tivssemos escolha entre essas duas solues, teramos de
confessar que o problema social seria estranhamente rduo. Mas
no parece que exatamente assim, j que os homens, to logo
cessam momentaneamente de guerrear nos campos de batalha e
de combater acirradamente na arena da concorrncia industrial
ou da competio poltica, recaem na doena profunda das al
mas ansiosas, indecisas, desencorajadas, hesitantes entre seus
sacerdotes e seus doutores que se contradizem, entre as velhas
mximas de uma moral respeitada da boca para fora e as prticas
contrrias de uma moral que ainda no ousa formular-se? E no
patente que, quando os homens pem fim ao seu esquartejamento
interior, aos seus contnuos tremores, aos empuxos de doutrinas e
de condutas contraditrias, ser para alinhar-se em dois campos, de
acordo com as diferentes opes que fizeram, e pr-se a guerrear?
S nos restaria escolher entre a guerra exterior ou a luta interna.
Esse seria o dilema apresentado aos derradeiros sonhadores da
paz perptua, entre os quais me incluo.
Felizmente, a verdade menos triste e menos desesperadora.
A observao mostra que todo estado de luta, exterior ou interior,
sempre aspira (e acaba chegando) a uma vitria definitiva ou a um
tratado de paz. No que concerne luta ntima, seja qual for o nome
que lhe dermos - dvida, irresoluo, angstia, desespero - isso
evidente: aqui, a luta sempre aparece como uma crise excepcional
e passageira, e ningum pensaria em consider-la como um estado
normal, ou julg-la prefervel, com suas dolorosas agitaes, paz

Gabriel Tarde

67

pretensamente amolengada do trabalho regular, sob o imprio de


um juzo bem assentado e de uma vontade decidida. Mas ser di
ferente no que concerne luta exterior, luta entre os homens? A
histria, se bem compreendida, mostra que a guerra evolui sempre
num certo sentido, e que essa direo, cem vezes reproduzida e
fcil de distinguir atravs dos tortuosos emaranhados histricos,
nos faz prever sua gradual rarefao e sua futura desapario. Com
efeito, em consequncia da irradiao imitativa, que trabalha, por
assim dizer, incessante e subterraneamente para estender o campo
social, os fenmenos vo se estendendo; e a guerra participa desse
movimento. De uma multido infinita de guerras muito pequenas,
porm atrozes, entre pequenos cls, passa-se a um nmero bem
menor de guerras um pouco maiores, porm menos odientas, entre
pequenas cidades, e depois entre grandes cidades, e depois entre
povos cada vez mais populosos, e chega-se, enfim, a uma era de
conflitos muito grandiosos e raros, porm sem nenhuma ferocidade,
?
entre colossos nacionais cuja prpria grandeza torna pacficos.
Detenho-me para notar que, por causa dessa passagem do
pequeno ao grande, do pequeno muito numeroso ao grande extre
mamente raro, a evoluo da guerra, e de todo fenmeno social
em geral, parece contradizer a evoluo das cincias tal como vem
sendo exposta aqui. No entanto, ela constitui, de fato, sua contra
prova e confirmao. justamente porque tudo no mundo dos fatos
caminha do pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho
invertido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno e,
pelo progresso da anlise, s atinge os fatos elementares verda
deiramente explicativos em ltimo lugar.
Retornemos. Em cada uma de suas etapas, em cada uma de
suas extenses, que so acima de tudo apaziguamentos, a guerra
diminuiu, ou ao menos transformou-se de maneira favorvel ao
seu ulterior desaparecimento. Cada crescimento dos Estados,
das tribos s cidades, das cidades aos reinos, imprios, imensas
federaes, significou a supresso dos combates numa regio cada

68

As Leis Sociais

vez mais extensa. Ainda em nossa poca, h sempre sobre a Terra


regies, mesmo que estreitas - um vale oprimido entre montanhas,
uma grande ilha, um fragmento bem recortado de uma superfcie
continental, mais tarde o contorno de um mar interior - que foram
percebidas durante muito tempo por seus habitantes como uma
espcie de universo distinto; e quando esse pequeno universo foi
enfim pacificado por uma srie de conquistas que reuniram todas
as localidades sob um mesmo jugo, parecia que o alvo derradeiro,
a finalidade sempre buscada - a pacificao universal - havia sido
atingida. Tinha-se enfim um momento de repouso no imprio dos
faras, no Imprio Chins, entre os Incas do Peru, em certas ilhas do
Pacfico, no Imprio Romano. Infelizmente, essa meta fascinante re
cuava assim que era vislumbrada, e a Terra mostrava-se bem maior
do que se acreditava anteriormente; estabeleciam-se relaes, que
logo se tornavam beligerantes, com vizinhos poderosos de cuja
existncia no se havia suspeitado, e que precisavam ser conquis
tados, ou pelos quais era preciso ser conquistado, para assentar
definitivamente a paz no mundo. A continuao das guerras , em
resumo, a extenso gradual do domnio da paz. Mas essa extenso
no poderia ser indefinida; essa miragem ansiosa no poderia ser
um perptuo tormento, j que o globo terrestre possui limites e que
estes j foram, h muito tempo, circunavegados. O que caracteriza
nossa poca, e em certo sentido torna-a profundamente diferente
de todo o passado (embora as leis da histria se apliquem a ela tal
como outrora), que pela primeira vez a poltica internacional dos
grandes estados civilizados j no abrange em suas preocupaes,
como antigamente, apenas um continente ou dois, mas a totalidade
do globo, e que assim se desvela o termo ltimo da evoluo da
guerra, perspectiva to deslumbrante que mal ousamos acredit-la,
perspectiva de um alvo certamente difcil de realizar, mas tambm
muito real; um alvo incapaz de decepcionar e que, uma vez prximo,
no poderia mais retroceder. No existe a algo capaz de eletrizar
todos os coraes? Depois de ter estabelecido a Paz nos limites de

Gabriel Tarde

69

um rio como o Nilo ou o Amur, ou no litoral de um pequeno mar,


depois de ter sido (como demonstrou Metchnikoff, e como as leis
da irradiao imitativa explicam maravilhosamente) pluvial e me
diterrnea, a civilizao se torna ocenica, isto , planetria; e
agora, com o encerramento da poca de suas crises de crescimento,
que sua grande florao poder comear.
E verdade que, mesmo que terminem as guerras, no tero
fim as lutas dolorosas entre os homens. Existem outras formas de
luta, e uma das principais entre elas a concorrncia. Mas tambm
se pode aplicar concorrncia - oposio de ordem econmica e
no mais poltica - o que acaba de ser dito. Como a guerra, a con
corrncia vai do pequeno ao grande: do muito pequeno e muito
numeroso ao muito grande e muito pouco numeroso. A concorrn
cia, desde seu incio, se apresenta sob trs formas: a concorrncia
entre consumidores do mesmo artigo, a concorrncia entre os
produtores de um mesmo artigo, e a concorrncia entre produtor e
consumidor, entre vendedor e comprador do mesmo artigo. Afinal,
se os artigos so diferentes, no h nenhuma oposio recproca
dos desejos; h antes adaptao recproca, quando os artigos so
suscetveis de serem trocados entre si.
Mas j que estamos tocando aqui num tema dos mais deli
cados, e que no convm abordar por enquanto a no ser por um
aspecto especial, para alm de qualquer opinio preconcebida,
coletivista ou outra qualquer, faamos em primeiro lugar algumas
observaes de uma veracidade sem margem para dvidas. Con
corrncia uma palavra ambgua que significa - ao mesmo tempo
ou alternadamente - concurso e luta, e por isso que se eterniza a
disputa entre aqueles que, por enxergarem nessa coisa equvoca
apenas o seu aspecto de oposio, com razo a maldizem, e aque
les que, encarando-a pelo seu aspecto de adaptao, louvam-na
igualmente com razo, por causa das invenes civilizatrias que
ela suscitou. Mas sob seu aspecto desfavorvel que ns iremos
consider-la aqui.

70

As Leis Sociais

O combate e a contradio no so em absoluto essenciais


aos desejos dos diversos consumidores ou dos diversos produtores
de um mesmo objeto, e nem mesmo aos desejos de consumidores
e produtores quando confrontados entre si. Produtor e comprador
esto sempre de acordo na medida em que um quer comprar o que
o outro quer vender; nem sempre pelo mesmo preo, verdade,
mas sempre h um preo com o qual concordaro e que encerrar
o debate entre eles. Os desejos dos produtores tampouco esto em
contrariedade na medida em que cada um deles tem sua clientela
e seus canais de distribuio que, tal como a produo, momen
taneamente no sero capazes de expandir-se; eles s se tornam
contraditrios medida que os meios de produo se expandem
e que cada um deles deseja produzir mais e apropriar-se da pro
duo do outro. verdade que a civilizao acarreta um aumento
constante dos meios de produo, e que, sendo assim, essa luta
entre coprodutores inevitvel e deve tornar-se cada vez mais viva.
Quanto aos desejos dos consumidores de um determinado artigo,
possvel dizer que, longe de se prejudicarem mutuamente, aqueles
que competem pela compra de um mesmo artigo em geral se aju
dam mutuamente, desde que a produo desse artigo seja capaz
de acompanhar o aumento da demanda: pois quanto mais houver
pessoas desejosas de comprar bicicletas, mais o preo das bici
cletas ir baixar. Os desejos dos consumidores s esto realmente
em contradio naqueles casos - como acontece frequentemente
com os artigos de primeira necessidade, bem como com os artigos
de luxo - em que o nmero de exemplares da coisa desejada no
consegue suprir a demanda e tampouco pode multiplicar-se to
rapidamente quanto se multiplicam, pelo contgio da moda, os
desejos que ela suscita.
Dito isso, e voltando ideia que apresentamos h pouco,
notemos que cada uma das trs espcies de concorrncia distin
guidas aqui est em conformidade com a lei indicada. As pequenas
barganhas entre vendedor e comprador, em todos os mercados

Gabriel Tarde

71

primitivos, so incessantes e inumerveis; pouco a pouco elas


so suprimidas, mas para serem substitudas por essas grandes
barganhas suscitadas, nos mercados municipais, pela fixao da
taxa municipal do trigo e da carne; e quando estas so suprimidas,
para dar lugar a barganhas ainda maiores, pelas discusses nas
Cmaras onde se debatem projetos de lei que tendem a favorecer,
pela imposio ou supresso de taxas aduaneiras, os interesses
da massa de produtores ou da massa de consumidores nacionais.
As sociedades cooperativas de consumo, isto , aquelas em que o
consumidor e o produtor se unem, nasceram da necessidade de pr
fim a essa espcie de concorrncia, e se desenvolvem junto com
ela. Tambm entre compradores a concorrncia tende a estender-se:32 em todos os mercados primitivos, a competio por um
saco de trigo ou por uma cabea de gado est restrita a algumas
pessoas; essas inumerveis pequenas competies, que muitas
vezes culminam em pequenas sociedades especulativas locais,
*
so substitudas, quando os mercados comeam a crescer e a di
minuir em nmero, por competies maiores, cada vez maiores, e
estas culminam, por sua vez, ora em unies importantes, como os
sindicatos agrcolas, ora em sociedades especulativas mais vastas,
os trusts e kartells gigantescos que conhecemos.
Mas examinemos a concorrncia mais bem estudada, e que
na realidade a mais intensa, porque a mais consciente: a dos
produtores entre si. Ela comea com rivalidades inumerveis entre
pequenos mercadores que disputam mercados minsculos, origi
nalmente justapostos e praticamente fechados aos demais; mas
medida que caem as barreiras que os separam, eles se confundem
em mercados maiores e menos numerosos, e tambm as pequenas
32 Hoje em dia, em pocas de escassez, no h um nico saco de trigo no mais remoto vilarejo
da Crimeia ou da Amrica que no suscite uma competio, no mais entre vizinhos, como
outrora, mas entre mercadores de todas as naes europeias; assim como no existem, em
pocas normais, quadros de grandes mestres ou livros antigos no mais obscuro dos castelos
franceses cuja aquisio no esteja ameaada pela concorrncia, no de alguns amadores
da vizinhana, ou da provncia, ou mesmo da Frana inteira, mas de milionrios americanos.

72

A s Leis Sociais

oficinas rivais se fundem, seja voluntariamente, seja pela fora, em


fbricas maiores e menos numerosas, onde o trabalho produtivo,
outrora ciosamente oposto a si mesmo, agora harmoniosamente
coordenado; e a rivalidade entre essas fbricas reproduz, numa
escala ainda maior, a das oficinas de outrora, at que se chega,
pelo crescimento gradual dos mercados, que tendem a se tornar
um nico mercado, a alguns gigantes da indstria e do comrcio,
que tambm rivalizam entre si, a menos que entrem num acordo.
Em resumo, a concorrncia se desenvolve em crculos con
cntricos que vo se ampliando. Mas a ampliao da concorrncia
tem como condio e como razo de ser a ampliao da associao.
Da associao ou do monoplio, objetar-se-. Que seja, mas o mo
noplio apenas uma das duas solues possveis para o problema
da concorrncia, assim como a unidade imperial apenas uma das
duas solues possveis para o problema da guerra. Um desses pro
blemas pode ser resolvido pela associao dos indivduos, assim
como o outro pode ser resolvido pela confederao dos povos. De
resto, o prprio monoplio, fora de estender-se, se torna mais
brando, e caso ele se tornasse universal em certas modalidades
de produo (termo ao qual ele tende e que Paul Leroy-Beaulieu
julgou, erroneamente a meu ver, para sempre e absolutamente
inatingvel),33seria provavelmente mais suportvel, em certos casos,
33 Um m onoplio sempre parcial e relativo. Sem dvida, Paul Leroy-Beaulieu tem razo ao
dizer que a concorrncia jamais chega ao m onoplio absoluto e completo, e o exemplo
que ele menciona - o das lojas de departamentos - parece, primeira vista, dos mais
slidos: o BonMarch, por exemplo, depois de ter suprimido a concorrncia de tantas lojas
pequenas, viu surgir a concorrncia do Louvre, do Printemps, da Samartaine, etc. Mas na
realidade, numa certa zona e numa certa medida, cada um desses colossos do comrcio
m onopolizou uma situao disputada por milhares de pequenas lojas; cada uma delas
tem sua prpria clientela numa regio que, por motivos quaisquer de capricho ou de
moda, pertence-lhe com exclusividade. Na maioria dos casos, simplesmente porque
elas adquiriram, em relao a determinado artigo, a reputao de oferecer uma qualidade
m elhor do que seus concorrentes. Na realidade, essa pretensa concorrncia entre as lojas
de departamentos (que alm do mais pode ser temperada ou atenuada por entendi
mentos entre elas, m uito mais fceis, em funo de seu nmero reduzido, do que entre a
infinidade de pequenas lojas que elas substituram), essa concorrncia tende a tornar-se
cada vez mais uma simples diviso de trabalho, ou melhor, uma grande repartio de
monoplios parciais que elas partilharam ou vo, pouco a pouco, partilhando entre si.

Gabriel Tarde

73

do que o estado de concorrncia aguda que ele teria substitudo.


A concorrncia tende a uma monopolizao, ao menos parcial e
relativa, ou a uma associao de concorrentes, tal como a guerra
tende ao esmagamento do perdedor ou a um tratado favorvel com
ele, a uma pacificao igualmente parcial e relativa. 0 crescimento
dos Estados conquistadores contribuiu para isso. Estou ciente de
que os grandes Estados modernos, tomando o lugar dos feudos
da Idade Mdia, fizeram reinar uma paz bastante incompleta, e at
aqui bastante curta, mas cuja extenso e durao vo aumentan
do, tal como os exrcitos grandiosos de hoje em dia. Negar que a
concorrncia culmine no monoplio (ou na associao) e imaginar
que se est defendendo a concorrncia de seus detratores , ao
contrrio, recusar a nica desculpa que se poderia alegar: como
se, para defender o militarismo dos ataques de que ele objeto,
nos esforssemos para demonstrar que a guerra no produz a
paz depois da vitria. E bem verdade que a guerra s produz a
paz para renascer da prpria paz, e numa escala ainda maior; do
mesmo modo, a concorrncia s se apazigua momentaneamente
na associao para renascer da prpria associao, sob a forma de
rivalidades entre associaes, corporaes, sindicatos e assim por
diante; mas chega-se assim, finalmente, a associaes gigantes que,
no podendo mais expandir-se, s podero, depois de travarem
seus combates, associar-se.
Existe uma terceira grande forma de luta social, a discusso.
Ela est sem dvida implicada nas formas precedentes, mas se a
guerra e a concorrncia so discusses, uma a discusso com
atos mortferos, e a outra, a discusso com atos ruinosos. Falemos
um pouco da pura e simples discusso que se vale de palavras.
Tambm ela, quando evolui (pois existem numerosas e pequenas
discusses privadas que no evoluem, e felizmente morrem ao
nascer), evolui da maneira que descrevemos, embora o fenmeno
seja nesse caso mais difcil de perceber. Lembremos que somente
quando a discusso mental entre duas ideias contraditrias pre

74

As Leis Sociais

sentes no mesmo crebro chegou ao fim que se torna possvel


a discusso verbal entre dois homens que resolveram a questo
de maneiras diferentes. Do mesmo modo, se a discusso verbal
escrita ou impressa que ocorre entre grupos de homens, e entre
grupos cada vez mais extensos, substitui a discusso verbal entre
dois homens, sob a condio de que ela tenha sido encerrada em
cada um desses grupos por um acordo relativo e momentneo, por
uma espcie de unanimidade, inicialmente fragmentada em uma
infinidade de pequenas faces, de pequenos cls, de pequenas
igrejas, de pequenas goras, de pequenas escolas que se combatem,
e depois de muitas polmicas, concentrada em um nmero muito
pequeno de grandes partidos, de grandes religies, de grandes
grupos parlamentares, de grandes escolas de filosofia ou arte entre
os quais so travados os supremos combates. No foi assim que
se estabeleceu, pouco a pouco, a unanimidade catlica? No foi
custa de discusses muito vivas, s vezes sangrentas, entre os
fiis de cada igreja local, que se chegou, nos dois ou trs primeiros
sculos da Igreja, a um acordo sobre um pequeno credo, que por sua
vez estava em desacordo com o credo das igrejas vizinhas, dando
lugar a colquios, a conclios provinciais que resolviam as dificul
dades, mas que por vezes se contradiziam e acabavam levando
suas querelas para o seio dos conclios nacionais ou ecumnicos?
A unanimidade poltica da antiga Frana monrquica foi produzida
do mesmo modo, e a unanimidade poltica da nova Frana, num
sentido democrtico, est igualmente em vias de produzir-se. Do
mesmo modo se estabeleceu aquilo que de bom grado eu chamaria
de unanimidade linguistica, ou seja, a unanimidade da lngua nacio
nal: posteriormente s rivalidades entre dialetos e provincialismos
rebeldes ao purismo ortodoxo. Tambm a unanimidade jurdica
se estabeleceu, h muito tempo, de maneira anloga: inumerveis
costumes locais pacificaram milhares de discusses jurdicas dis
tintas (mas no todas, como o mostram os processos), e depois
esses costumes, conflitantes entre si, foram unificados em alguns

Gabriel Tarde

75

costumes regionais que foram, por sua vez, finalmente substitu


dos por uma legislao uniforme. A unanimidade cientfica, que se
constituiu lentamente e, em larga medida, por meio de uma srie
de discusses (ora encerradas, ora revividas) entre cientistas e
escolas cientficas, daria lugar a consideraes semelhantes.
Entre todas as formas de discusso, existe uma, a discusso
jurdica (o processo, civil ou comercial), que chama a ateno. Se
ria verdade que tambm o processo pode ampliar-se, e por causa
dessa ampliao mesma, caminhar em direo sua pacificao?
Sim - por mais estranha que essa proposio possa parecer pri
meira vista. Em primeiro lugar, certo que os processos, entre os
povos primitivos, no diferem das guerras privadas; de fato, sem
a presena soberana do Estado-juiz, a maior parte das diferenas
entre litigantes seria resolvida na base da violncia. Os processos
so duelos atenuados, guerras embrionrias. Reciprocamente, as
guerras so processos entre naes, procesos que seguem seu
desenvolvimento natural em razo da ausncia de uma autoridade
supranacional. Assim, se compararmos as querelas judiciais que
hoje ocorrem em nossos tribunais com as querelas medievais, em
que as partes eram campees armados, ou com as querelas das
tribos germnicas, nos convenceremos de que o ardor litigioso
no cessou de adocicar-se. E eu posso acrescentar que ele se
adocicou por causa de suas prprias ampliaes. Pode-se dizer,
com efeito, que as questes jurdicas se ampliaram medida que
os costumes locais cederam lugar aos costumes provinciais e, por
fim, s leis nacionais; a cada etapa de unificao jurdica, cada
forma de processo, ou seja, cada dificuldade jurdica que d lugar
a duas interpretaes diametralmente opostas, toma um carter
mais geral. Ora, generalizando-se dessa forma que cada espcie
de discusso judicial chega finalmente sua ltima etapa: uma
deciso da Suprema Corte que elimina novas instauraes desse
gnero de processo. Quantas vezes isso no aconteceu ao longo
de nosso sculo!

76

/Is Leis Sodais

Poderiam objetar-me, casualmente, que os povos se tornam


cada vez mais discutidores medida que se civilizam, e que as
discusses pblicas, as polmicas na imprensa e os debates par
lamentares alimentam as discusses verbais privadas em vez de
substitu-las; mas essa objeo no se sustentaria. Se selvagens
e brbaros discutem pouco - felizmente, j que a maior parte de
suas discusses degenera em brigas e combates - porque eles,
por assim dizer, no falam e no pensam. Dado o nmero infinita
mente pequeno de suas ideias, surpreendente que eles briguem
com tanta frequncia; e espantoso que pessoas com to poucos
interesses diferentes encontrem tantos motivos para litigar. Por
outro lado, se h uma coisa que mal notamos e que deveria desper
tar nossa admirao, que exista, em nossas cidades civilizadas,
uma imensa corrente de ideias despertadas em ns pela conver
sao e pela leitura, porm to poucas discusses, e discusses
to pouco acaloradas. Deveramos ficar estupefatos ao ver tantos
homens pensarem e falarem e se contradizerem to pouco, ao
v-los agirem tanto e se enfrentarem to pouco, do mesmo modo
que vemos to poucos acidentes de trnsito em nossas ruas to
animadas e apinhadas, ou to poucas guerras numa poca de
relaes internacionais to extensas e complicadas! E o que nos
colocou mais ou menos de acordo a propsito de tantos pontos?
Estas trs grandes coisas, elaboradas sucessivamente ao longo de
discusses que duraram sculos: a Religio, a Jurisprudncia e a
Cincia. Notemos tambm que, num pas civilizado, as discusses
pblicas sobrepujam e muito, em importncia, em candente inte
resse e mesmo em vivacidade, as discusses privadas; o inverso
do que ocorre num pas brbaro. Nossas sesses parlamentares
so de uma violncia crescente, ao passo que o tom das discusses
nos cafs e nos sales torna-se cada vez mais doce.

Em resumo, sob suas trs formas principais - guerra, con


corrncia, discusso - a oposio-luta em nossas sociedades
humanas mostra-se obediente mesma lei de desenvolvimento:

Gabriel Tarde

77

apaziguamentos intermitentes e crescentes que se alternam com


retomadas da discrdia, amplificada e centralizada, at o acordo
final, ainda que relativo. A consequncia disso - e ns temos
vrias outras razes para pensar assim - que a oposio-luta
desempenha, no mundo social bem como no mundo vivente e no
mundo inorgnico, apenas o papel de um termo mdio, destinado a
desaparecer progressivamente, a esgotar-se e eliminar a si mesma
em virtude de seu prprio crescimento, pelo qual ela corre em
direo sua prpria destruio. E chegou o momento de dizer,
ou de redizer mais explicitamente, qual a verdadeira relao
entre esses trs grandes aspectos cientficos do universo que eu
denominei de Repetio, Oposio e Adaptao dos fenmenos.
Os dois ltimos procedem do primeiro, e o segundo ordinaria
mente, mas nem sempre, o intermedirio entre o primeiro e o
terceiro. porque as foras fsicas se propagam ou tendem a se
propagar em progresso geomtrica - em virtucip de sua repetio
ondulatria - que elas interferem entre si, ou ento se adaptam e
se combinam; e suas interferncias-choques parecem apenas ser
vir para preparar suas interferncias-alianas, suas combinaes.
porque as espcies vivas tendem a se propagar em progresso
geomtrica - em virtude da repetio hereditria de seus exem
plares individuais - que elas interferem, seja em cruzamentos
bem-sucedidos e fecundos, seja nos combates pela vida to bem
estudados pelos darwinistas (que s perceberam a interferncia
vital pelo seu lado violento, no qual eles viram, com um exagero
evidente, o nico ou o principal meio de criao de novas esp
cies, ou seja, de readaptao das antigas espcies). E tambm
porque as realidades sociais em geral (um dogma, uma locuo,
um princpio cientfico, uma regra moral, uma prece, um proce
dimento industrial, etc.) tendem a se propagar geometricamente
pela repetio imitativa que elas - com ou sem xito - interferem,
ou seja, se encontram pelo seu lado dissonante em determinados
crebros, onde suscitam duelos lgicos e teleolgicos, primeiro

78

As Leis Sociais

germe das oposies sociais (guerras, concorrncias, polmicas),


ou ento se encontram, pelo seu lado harmonizvel, em crebros
geniais (mas tambm em crebros ordinrios), suscitando verda
deiras alianas lgicas, invenes, iniciativas fecundas, fontes de
todas as adaptaes sociais.
Eis a os trs termos de uma srie circular capaz de encadear-se sem fim. Pois repetindo-se por imitao que a inveno - a
adaptao social elementar - se difunde e se fortifica, tendendo,
pelo encontro de uma de suas irradiaes imitativas com uma
irradiao imitativa emanada de alguma outra inveno, antiga
ou nova, a suscitar ora novas lutas, ora (diretamente ou por
meio dessas lutas) novas e mais complexas invenes, que em
breve tambm iro irradiar imitativamente, e assim por diante,
ao infinito. Notemos que tanto o duelo lgico como a sntese l
gica, tanto o elemento social da oposio-luta como o elemento
social da adaptao tm necessidade da repetio imitativa para
socializar-se, para generalizar-se e crescer. A nica diferena
que a propagao imitativa do estado de discrdia interior entre
duas ideias, ou mesmo do estado de discrdia exterior entre dois
homens que escolheram uma dessas ideias, ir fatalmente sofrer
um desgaste e pr fim a essa discrdia dentro de um determinado
tempo, pois todo combate fatigante e culmina numa vitria; en
quanto a propagao imitativa do estado de harmonia (ao mesmo
tempo interno e externo) alcanado pela iluminao de uma nova
verdade, sntese de nossos conhecimentos anteriores e comunho
de nosso esprito com todos os espritos que comungam com ela,
no tem razo alguma para deter-se e se fortificar ao avanar. Dos
trs termos comparados entre si, o primeiro e o ltimo ultrapassam
largamente o segundo em altura, em profundidade, em importncia
e talvez em durao. A nica utilidade do segundo, a oposio, a
de provocar uma tenso das foras antagonistas aptas a suscitar
o gnio inventivo: a inveno militar que, ao dar a vitria a um dos
lados, momentaneamente pe fim guerra; a inveno industrial

Gabriel Tarde

79

que, adotada ou monopolizada por um dos rivais da indstria, lhe


assegura o triunfo, e momentaneamente pe fim concorrncia; a
inveno filosfica, cientfica, jurdica ou esttica que interrompe
bruscamente inumerveis discusses, mesmo que seja para dar
origem, mais tarde, a novas discusses. Eis a a nica utilidade,
a nica razo de ser da oposio; mas quantas vezes a inveno
pela qual ela clama deixa de atender ao seu chamado! Quantas
vezes a guerra abate o gnio ao invs de estimul-lo! E quantos
talentos so esterilizados pelas polmicas da imprensa, pelos de
bates parlamentares, pela v esgrima dos Congressos! Tudo que
se pode afirmar - e que confirma o que j foi dito - que a ordem
histrica de preponderncia sucessiva das trs formas de luta
precisamente a de sua aptido a estimular a inventividade: com
efeito, passa-se de uma era em que a guerra preponderante a uma
fase em que a concorrncia predomina, e enfim a discusso. Alm
disso, numa sociedade que se civiliza, a troca se desenvolve mais
rapidamente do que a concorrncia, a conversao se desenvolve
mais rapidamente do que a discusso, e o internacionalismo, mais
rapidamente do que o militarismo.
Acabamos de falar somente das oposies-lutas, aquelas
que acontecem entre termos simultneos que se chocam. Quanto
s oposies-ritmos, que consistem em termos sucessivos (qua
lidades ou quantidades, pouco importa), de uma alta seguida de
uma baixa ou de uma ida seguida de um retorno e vice-versa,
pode parecer primeira vista que elas sejam menos enigmti
cas do que as outras, j que no so paralisias e destruies
mtuas de foras. No entanto, se olharmos mais de perto, esse
vaivm de foras que constituem sucessivamente um a favor
e um contra, ou que dizem um sim e um no, ainda mais
difcil de compreender do que o choque entre duas foras que se
encontram e se equilibram. Pois essas interferncias destrutivas
tm, ao menos, um carter acidental, no desejado, e ns sabemos
que elas so quase inseparveis das interferncias criadoras, tal

80

As Leis Sociais

como a sombra e o corpo; isso para no mencionar que, em ns,


o equilbrio e a neutralizao recproca das tendncias contr
rias, das sugestes rivais que vm de fora, permitem a ecloso
de nossa originalidade natural, sendo essa, possivelmente, uma
das melhores justificativas da luta em geral. Mas o ritmo, seja ele
qualitativo ou quantitativo, parece ser um jogo normal no qual
as foras se comprazem e que foi desejado por elas. E confesso
que se eu tivesse srias razes para considerar esse vaivm, essa
flutuao pueril, como algo que ocorre num plano mais amplo ou seja, se pensasse que a dissoluo fosse exatamente o inverso
da evoluo, a regresso o inverso da progresso, e que tudo se
pusesse a recomear indefinidamente sem nenhuma orientao de
conjunto - eu seria tomado por um desespero schopenhaueriano.
Felizmente no assim, e o ritmo, o ritmo mais ou menos preciso,
regular, verdadeiramente digno desse nome, mostra-se em toda
parte, mas apenas nos detalhes dos fenmenos, sendo a prpria
condio de sua repetio precisa, e por isso mesmo, condio
de sua variao. A gravitao de um astro s se repete em razo
de suas idas e vindas elpticas; uma onda sonora ou luminosa s
se repete em razo de um ir e voltar retilneo, circular ou elptico;
a contrao de um elemento muscular e a inervao de um ele
mento nervoso s se propagam, num msculo ou ao longo de um
nervo, sob condio de voltarem ao seu ponto de partida. Baldwin
mostrou recentemente que tambm a imitao uma reao
circular, e que se pode defini-la como uma reao muscular que
procura alcanar os estmulos capazes de reconduzir aos mesmos
estados, que novamente tendero aos mesmos estmulos e assim
por diante. No livro de onde retirei essa citao, ele estende o
uso da palavra imitao muito alm da minha acepo, e generalizando-a ao ponto de faz-la abranger ao mesmo tempo todo o
funcionamento vital e todo o funcionamento social, ele escreve
o seguinte: O tipo de reaes ou repeties circulares que ns
chamamos de imitao um tipo fundamental, sempre o mesmo

Gabriel Tarde

81

e comum a toda atividade motora.34 Mas a repetio, a marcha


regular dos fenmenos, e apenas a condio de seu itinerrio, de
sua evoluo, sempre mais ou menos irregular e pitoresca, e que
se torna mais e mais irregular e pitoresca medida que progride.
Ora, s na marcha, mas de modo algum no itinerrio, que o
vaivm rtmico apresenta alguma preciso. E assim at mesmo
no que diz respeito ao ritmo quantitativo, essas altas e baixas
gerais que a estatstica permite medir no curso de uma civilizao
em processo de desenvolvimento. extremamente raro, nesse
caso, que o aumento e a diminuio constatados sejam iguais ou
semelhantes; que as curvas ascendentes de riqueza, por exemplo,
ou do preo dos valores da Bolsa, da f religiosa, da instruo,
da criminalidade, etc., se reflitam de maneira inversa nas curvas
descendentes de mesma natureza e com as mesmas caracters
ticas. Isso bem conhecido pelos estatsticos. Eu j me referi ao
carter irreversvel de vrias evolues sociais, justamente as
mais importantes, e no preciso voltar a esse ponto.
Para concluir, a oposio, sob suas duas grandes formas,
revela e acentua cada vez mais seu carter simplesmente auxiliar
e intermedirio: como ritmo, ela s serve diretamente repetio,
e indiretamente variao, desaparecendo quando esta aparece.
Como luta, ela s serve para suscitar a adaptao, da qual iremos
agora nos ocupar.
34 A traduo americana d'As Leis Sociais, prefaciada pelo prprio James Baldwin, alterou
ligeiramente o texto deTarde ao incorporar a redao original das citaes do livro Mental
Development in the Child and the Race (3aed., p. 151 e p. 23). Como isso pode ser dealgum
interesse para o pesquisador, eis aqui a reproduo desse trecho:
... Baldwin has recently shown that im itation itself is a "circular reaction,"and that it may
be defined as a"brain-state due to stim ulating conditions, muscular reaction which repro
duces or retains the stimulating conditions, same brain-state again due to same stimulating
conditions, and so on." In the work from which this quotation is taken, he extends the
meaning o f the word im itation far beyond that which I assigned it; and, generalizing the
term in such a way as to include both the vital and the social functions, he writes: "The
self-repeating or circular type o f reaction, to which the name im itation is given... is seen
to be fundam ental and to remain the same, as far as structure is concerned, for all motor
activity whatever." Gabriel Tarde. Social Laws, trad. Howard C. Warren, Macmillan, New
York, 1899, p. 141. (N. do T.)

Terceiro captulo
Adaptao dos fenmenos

s explicaes datias nas duas conferncias anteriores


j nos prepararam para compreender o verdadeiro
sentido da palavra adaptao, que exprime o aspecto

mais profundo sob o qual a cincia aborda o universo. Veremos


mais uma vez que a evoluo da cincia - seja qual for o tipo de
realidades s quais se aplique - consiste na passagem do gran
de ao pequeno, do vago ao preciso, do falso ou superficial ao

verdadeiro e ao profundo; ou seja, ela consiste primeiramente


em descobrir ou imaginar uma imensa harmonia de conjunto
ou algumas grandes e vagas harmonias exteriores, que vo
sendo gradualmente substitudas por inumerveis harmonias
interiores, um nmero infinito de infinitesimais e fecundas
adaptaes. Veremos tambm que a evoluo da realidade, que
aqui como alhures precisamente inversa do conhecimento,
consiste numa tendncia incessante das pequenas harmonias
interiores a exteriorizar-se e amplificar-se progressivamente.
Incidentalmente, no deixaremos de notar, como fizemos ante
riormente, que se o progresso do saber nos faz descobrir novas
e mais profundas harmonias, ele tambm nos revela muitas de
sarmonias, ainda mais profundas, que antes no percebamos.
Comecemos com algumas definies ou explicaes neces
srias. 0 que exatamente uma adaptao, uma harmonia natural?
Tomemos um exemplo fora do contexto da vida, pois nesta o vnculo
teleolgico entre o rgo e a funo to claro que no precisa ser
explicado: o leito de um rio. Percebe-se aqui uma montanha, ou
uma cadeia de colinas, adaptada ao escoamento das guas do rio;
os raios do Sol adaptados evaporao das guas do oceano em
nuvens; e os ventos adaptados ao transporte dessas nuvens para

84

As Leis Sociais

o cume das montanhas, de onde elas voltam a cair em chuvas que


alimentam as fontes, os riachos e os pequenos rios, afluentes dos
grandes cursos d gua. Existe um equilbrio mvel, um circuito de
aes encadeadas que se repetem - que se repetem com variaes.
Pode-se dizer que um ser vivo um circuito semelhante a esse,
s que muito mais complicado, e onde a adaptao no apenas
unilateral, como nesse exemplo, mas recproca. O rgo serve
realizao da funo vital e, reciprocamente, a funo vital serve
manuteno do rgo; ao passo que, nos ciclos planetrios da
gua, a montanha est adaptada ao escoamento da gua, mas o
escoamento da gua, ao invs de servir manuteno da montanha,
tem poi efeito o seu desnudamento e mesmo, de maneira gradual, a
sua supresso. tambm sem nenhuma reciprocidade que o calor
do Sol est adaptado irrigao do solo.
Lembremos que sempre se trata de uma harmonia que se
repete. Acabamos de ver um exemplo; vejamos outros. Cada pla
neta de um sistema solar, considerado do ponto de vista mecnico,
ou seja, como um ponto que se move, apresenta o espetculo de
uma harmonia entre sua propenso a fundir-se no Sol e sua ten
dncia a afastar-se dele tangencialmente: se essas duas foras,
centrpeta e centrfuga, se exercessem ao longo de uma linha reta,
haveria oposio, mas como elas so perpendiculares entre si, o
que existe adaptao. (Assim, na natureza, oposio e adaptao
se transformam uma na outra.)35 Ora, a gravitao do planeta a
repetio, a repetio variada, dessa adaptao mecnica. Mesmo
se o considerarmos em termos geolgicos - do ponto de vista de
sua composio estratigrfica e fsico-qumica

um planeta um

agenciamento muito harmonioso de estratos superpostos; e se a


esse respeito dermos crdito a Stanislas Meunier, tal agenciamento
se repetir em cada planeta, e mesmo na constituio geral do
Tambm um ciclone ou trom ba d'gua uma harmonia atmosfrica, um circuito de
aes que se deve ao acordo entre duas foras que no se entravam mutuam ente mas
se completam em sua resultante.

Gabriel Tarde

85

sistema solar: pois um corte transversal da Terra mostraria, entre


o centro e a circunferncia, uma sucesso de camadas incan
descentes, depois solidificadas, depois lquidas, depois gasosas,
cada qual necessria seguinte, e essa sucesso seria anloga
encontrada nos astros, desde o Sol, no centro, at Netuno, que
gasoso. De qualquer modo, pouco nos importa se essa analogia
verdadeira ou no.
Um agregado qualquer um composto de seres adaptados
entre si, seja uns com os outros, seja num conjunto subordinado
a uma funo comum. Agregado significa adaptat,36 Mas, alm dis
so, diversos agregados que possuem relaes entre si podem ser
coadaptados, constituindo um adaptat de um grau superior. Seria
possvel distinguir, desse modo, uma infinidade de graus. Para
simplificar, faamos uma distino entre apenas dois graus de adap
tao. A adaptao de primeiro grau aquela que ocorre entre os
elementos do sistema considerado; a adaptao de segundo grau
aquela que os une aos sistemas que os cercam, quilo que podemos
chamar, muito vagamente, de seu meio. 0 ajustamento a si mesmo
difere muito, em toda ordem de fatos, do ajustamento a outrem,
tal como a repetio de si (hbito) difere da repetio de outrem
(hereditariedade e imitao), tal como a oposio a si mesmo (he
sitao, dvida) difere da oposio a outrem (luta, concorrncia).
Muitas vezes esses dois tipos de adaptao, em certa medida, se
excluem mutuamente; o caso das constituies polticas, onde se
observa com bastante frequncia que as mais coerentes, as mais
logicamente deduzidas (apresentando portanto o mais alto grau de
adaptao de primeiro grau) so as menos adaptadas s exigncias
de seu meio tradicional e costumeiro, e que, reciprocamente, as
mais prticas so as menos lgicas. A mesma observao aplica-se
s gramticas de tantas lnguas, s religies, s belas-artes, etc.:
36 Adaptat a 3a pessoa do singular do presente do indicativo do verbo latino adapto (infi
nitivo adaptare): adequar, ajustar, adaptar. 0 uso que Tarde faz do term o adaptat (como
substantivo) anlogo ao uso, bem mais corrente, de outro termo latino: habitat. (N. doT.)

86

As Leis Sociais

a nica gramtica perfeita, com regras sem nenhuma exceo, a


do... volapuque.37Ela tambm aplicvel aos organismos: h entre
eles alguns que so perfeitos, mas que no so viveis, e que se
tornariam mais viveis se fossem menos perfeitos. A perfeio de
sua acomodao pode atrapalhar sua flexibilidade.38
Feitas essas indicaes preliminares, mostremos a verdade
das duas teses enunciadas acima. Os partidrios das causas finais
fizeram tudo o que podiam para desacreditar a ideia de finalidade.
No menos certo, no entanto, que os primeiros balbucias da
cincia datam do momento em que essa noo foi introduzida,
mesmo que de forma mstica e bem pouco racional, na concepo
do mundo. Diante da viso do cu estrelado, com que sonhou a
cincia primitiva? Com uma adaptao imensa, nica, quimrica,
nascida da iluso que aprendemos a chamar de geocntrica, segun
do a qual todas as estrelas existem para a Terra; a Terra, e sobre
ela uma cidade ou um burgo seriam o nico foco de interesse do
firmamento, perpetuamente inquieto acerca do destino desses
seres efemeros que ns somos. A astrologia foi o desenvolvimento
lgico dessa grandiosa e imaginria adaptao do cu Terra e ao
homem. A verdadeira astronomia no somente fez desaparecer essa
absurda harmonia, mas tambm quebrou a unidade da harmonia
celeste ao dividi-la em vrias harmonias parciais, to numerosas
quantos os prprios sistemas solares, coerentes neles mesmos e
simetricamente coordenados, porm ligados entre si por liames
muito vagos e duvidosos, agrupados em nebulosas informes, em

37 Linguagem artificial criada em 1880 pelo clrigo alemo Johann Martin Schleyer. (N. doT.)
38 Sendo dada uma viso espiritual ou ideia, pode-se progredir intelectualmente a partir
dessa ideia (que , em geral, uma mistura de verdade e erro) em dois sentidos diferentes:
(I o) Apenas no sentido de uma adaptao de primeiro grau, ou seja, de uma harmoniza
o gradual dessa ideia consigo mesma, de sua diferenciao e coeso interna (esse o
desenvolvimento de muitas teologias e metafsicas); (2) No sentido de uma adaptao
de segundo grau, isto , de uma harmonizao gradual dessa ideia com os dados dos
sentidos, com os aportes exteriores da percepo e da descoberta (desenvolvimento
cientfico). No primeiro caso, o progresso muitas vezes consiste em passar de um erro
m enor a um erro maior.

Gabriel Tarde

87

constelaes esparsas de resplandecente desordem. Desde sempre


apaixonada pela ordem, a razo humana logo teve de renunciar
sua busca pelas marcas mais evidentes de uma coordenao divi
na na totalidade do mundo - o Cosmos, o mais alto objeto de sua
admirao. Ela teve de descer ao sistema solar para encontr-las, e
quanto mais ela conhecia deste pequeno mundo, mais encontrava
nos detalhes, e no no conjunto desse belo agrupamento de massas,
os motivos para extasiar-se. Mais do que as relaes entre os pr
prios planetas, era a relao de cada um deles com seus satlites, e
mais ainda, era a superfcie de cada um desses globos, sua formao
geolgica, seu regime de guas, que revelavam um acordo perfeito
e surpreendente. Doravante, j no mais em direo imensa
abbada celeste que a alma religiosa deve voltar-se para adorar a
sabedoria profunda que move este mundo; agora, para o cadi
nho do qumico que ela dever olhar se quiser escrutar o mistrio
das harmonias fsicas mais precisas e maravilhosas, ainda mais
admirveis do que a mixrdia estrelada: as combinaes qumicas.
Se, por meio do uso de um microscpio suficientemente forte, pu
dssemos perceber o interior de uma molcula, ficaramos muito
mais fascinados pela mescla prodigiosa de movimentos elpticos
e circulares que provavelmente a constituem do que com o jogo,
no fim das contas bastante simples, dos grandes pies celestes!
Se passarmos do mundo fsico ao mundo da vida, tambm
constataremos que o primeiro procedimento da razo foi conce
ber a criao orgnica inteira, vegetal e animal, como uma nica
e grandiosa adaptao aos fins da humanidade, destinada sua
nutrio, diverso, proteo, e tambm para avis-la sobre perigos
ocultos. As prticas divinatrias e o totemismo, difundidos desde
as origens entre todos os povos, tm o mesmo fundamento. E os
progressos do saber podem muito bem ter dissipado essa iluso
antropocntrica, mas algo dela permaneceu no erro cientfico que
reinou durante tanto tempo entre os filsofos naturalistas: o de re
presentar a srie paleontolgica como uma ascenso em linha reta

88

As Leis Sociais

at o homem, e o de encarar cada espcie viva ou extinta como uma


nota num grande concerto chamado de Plano divino da natureza,
edifcio ideal e regular cujo apogeu era o homem. Penosamente,
fora dos desmentidos acumulados pela observao, ele precisou
desprender-se de uma ideia que lhe era to cara, reconhecendo que
no nas grandes linhas da evoluo dos seres (to ramificadas e
tortuosas), e nem mesmo nos grandes agrupamentos de espcies
diferentes em faunas e floras regionais (apesar da notvel adapta
o revelada nos casos de comensalismo ou em determinadas rela
es entre insetos e flores) que a natureza demonstra no mais alto
grau sua maravilhosa potncia de harmonia, mas sim nos detalhes
de cada organismo. A meu ver, os partidrios das causas finais39
comprometeram a ideia de finalidade ao empreg-la de maneira
abusiva e errnea, mas no excessiva; ao contrrio, eu poderia
critic-los por terem feito dessa ideia, com seus hbitos mentais
unificadores, um uso demasiadamente restrito. No existe um fim
na natureza, um fim em relao ao qual todo o resto seria um meio;
o que existe uma multido infinita de fins que tentam servir-se
uns dos outros. Cada organismo, e cada clula de cada organismo,
e talvez cada elemento celular dentro de cada clula, possui sua
prpria pequena providncia particular. Assim, tal como antes,
tambm aqui somos levados a pensar que a fora harmonizadora
- ao menos aquela com a qual a cincia tem o direito de ocupar-se, sem negar a possibilidade de que alguma outra exista - no
imensa e nica, exterior e superior, mas infinitamente multiplicada,
infinitesimal e interna. A bem dizer, a fonte de todas as harmonias
vitais (s quais temos um acesso cada vez mais restrito medida
que nos afastamos desse ponto de partida para abranger um campo
mais vasto) o vulo fecundado, interseo viva de linhagens que
se encontraram ali, num cruzamento s vezes feliz, incio de novas

39 No original, "les cause-finaliers" (grifo do autor), expresso usada por Voltaire no seu
Dictionnaire Philosophique. (N. doT.)

Gabriel Tarde

89

aptides que iro, por sua vez, se difundir e propagar, graas


seleo dos mais aptos ou eliminao dos menos aptos.
Voltemo-nos para o mundo social. Os telogos, que sempre
foram (sem sab-lo) os primeiros socilogos, frequentemente
concebem a grande rede de todas as histrias dos povos da Terra
como algo que converge, desde os primrdios da humanidade,
para o. advento de seu prprio culto. Leiam Bossuet. A sociologia
pode muito bem ter se tornado laica, mas nem por isso libertou-se
desse gnero de preocupao. Comte transps magistralmente o
pensamento de Bossuet, que ele tinha boas razes para admirar:
para ele, toda a histria da humanidade converge para a era e o
reino de seu prprio positivismo, espcie de neocatolicismo laico.
Aos olhos de Augustin Thierry, de Guizot e de outros historiadores
filsofos, todo o curso da histria europeia parecia convergir, por
volta de 1830, para a Monarquia de Julho... A bem dizer, Comte
no fundou a sociologia, e o que ele nos oferece sob esse nome
ainda uma simples filosofia da histria, embora admiravelmente
deduzida; a ltima palavra em termos de filosofia da histria.
Como todos os sistemas que assim foram nomeados, sua con
cepo apresenta-nos a histria humana (ou melhor, essa mixrdia
confusa de novelos multicoloridos) sob a aparncia de uma nica
e mesma evoluo, representao nica e solitria de uma espcie
de trilogia ou de tragdia nica, agenciada segundo as regras do
gnero, na qual tudo se encadeia, na qual cada um dos trs estados
encadeados se compe de fases ligadas entre si, cada elo adaptado
e encadeado exclusivamente ao elo seguinte, e na qual tudo se
precipita irresistivelmente para o grande e derradeiro desenlace.
Com Spencer, deu-se um grande passo em direo a um
entendimento mais salutar da adaptao social: sua frmula de
evoluo social j no aplicvel somente a um Drama nico, e sim a
um determinado nmero de Dramas sociais diferentes. Ao formular
leis do desenvolvimento lingustico, religioso, econmico, poltico,
moral, esttico, os evolucionistas de sua escola tambm admitem,

90

As Leis Sociais

ao menos implicitamente, que essas leis esto aptas a reger todos


os povos que existem ou existiro, e no apenas uma pequena
parcela de povos aos quais reservamos o privilgio de serem cha
mados de histricos. Entretanto (ao mesmo tempo multiplicado e
com dimenses reduzidas), sempre o mesmo erro que reapare
ce: o de acreditar que, para observar nos fatos sociais o gradual
surgimento da regularidade, da ordem, do encadeamento lgico,
preciso abandonar seus detalhes, essencialmente irregulares, e
elevar-se bem alto, at abraar numa viso panormica os mais
vastos conjuntos; que o princpio e a fonte de toda coordenao
social reside em algum fato de carter muito geral do qual ela desce
gradualmente at os fatos particulares, porm enfraquecendo-se
singularmente; e que, em resumo, o homem agita-se, mas uma
lei de evoluo que o conduz.
Eu acredito que, de algum modo, exatamente o contrrio.
No que eu negue que existam, entre as diversas e multiformes
evolues histricas dos povos, como nos rios que correm numa
mesma bacia, algumas inclinaes comuns; e eu sei muito bem
que, se muitos desses riachos ou rios se perdem pelo caminho, os
demais, por uma srie de confluentes, acabam por confundir-se
numa mesma corrente geral que, apesar de sua diviso em braos
diversos, no parece destinada a fracionar-se em mltiplos estu
rios. Mas eu tambm vejo que a verdadeira causa desse derradeiro
rio, nascido dos demais rios, dessa preponderncia final de uma
evoluo social (a dos povos qualificados como histricos) entre
todas as outras, a srie de descobertas da cincia e de inven
es da indstria que se acumularam sem cessar, utilizando-se
reciprocamente, formando sistema e feixe, e cujo encadeamento
dialtico real, no menos sinuoso, parece refletir-se vagamente no
dos povos que contriburam para produzi-lo. E se remontarmos
verdadeira fonte dessa grande corrente cientfica e industrial,
ns a encontraremos em cada um dos crebros geniais, obscu
ros ou clebres, que adicionaram uma verdade nova ou um novo

Gabriel Tarde

91

meio de ao ao legado secular da humanidade, e que, por meio


dessa contribuio, tornaram as relaes entre os homens mais
harmoniosas ao desenvolver a comunho de seus pensamentos e
a colaborao de seus esforos. De maneira inversa aos filsofos
que acabei de mencionar, constato que somente o pormenor dos
fatos humanos abriga adaptaes notveis, que ali que reside o
princpio das harmonias menores que podem ser percebidas num
domnio mais amplo, e que, quanto mais nos elevamos de um pe
queno grupo social bastante unido (famlia, escola, oficina, igreja
local, convento, regimento) cidade, provncia e nao, menos
notvel e perfeita ser a solidariedade. Em geral, existe mais lgica
numa frase do que em um discurso, e num discurso do que em uma
srie ou grupo de discursos; num rito singular do que em todo um
credo; num artigo da lei do que em um cdigo inteiro; numa teoria
cientfica particular do que em todo um corpo cientfico; assim
como h mais lgica em cada tarefa executala por um trabalhador
do que no conjunto de sua conduta.
Notemos que ser assim a menos que uma potente indivi
dualidade intervenha para regulamentar e disciplinar os fatos de
conjunto. Esse tipo de interveno, alis, tende a se tornar cada vez
mais frequente, pois a civilizao se caracteriza pelas facilidades
que oferece realizao de um programa individual de reorgani
zao social; e nesse caso, nem sempre verdade que a harmonia
dos agenciamentos esteja em razo inversa de sua massa: muitas
vezes, e cada vez mais frequentemente, as massas mais volumosas
podem ser as mais harmoniosas. Por exemplo, a administrao fran
cesa, organizada pelo gnio desptico de Napoleo, est to bem
adaptada sua finalidade geral quanto suas menores engrenagens
aos seus prprios fins; a rede de estradas de ferro da Prssia est
to bem adaptada sua finalidade estratgica quanto cada uma de
suas estaes s suas prprias finalidades comerciais ou outras;
os sistemas de Kant, Hegel ou Spencer so to coerentes em sua
ordenao geral quanto algumas das pequenas teorias parciais que

92

/4s Leis Sociais

lhes servem como base. Uma legislao bem codificada pode apre
sentar tanta ordem no arranjo de suas sees e captulos quanto
em cada uma das leis parciais que ela rene na relao entre suas
diversas disposies; e quando uma religio foi retrabalhada por
uma teologia vigorosa, o encadeamento de seus dogmas pode ser
ou parecer mais lgico do que cada um deles considerado par
te. No entanto, como fcil perceber, esses fatos, aparentemente
contrrios aos que foram expostos acima, na realidade contribuem
para mostrar que o gnio individual a verdadeira fonte de toda
harmonia social. Pois essas belas coordenaes tiveram de ser
concebidas antes de ser executadas; e antes de cobrir um territrio
imenso, elas comearam a existir sob a forma de uma ideia oculta
em algumas clulas cerebrais.
Diremos agora que a adaptao social elementar , no fundo, a
que existe entre dois homens, um dos quais responde, com palavras
ou aes, questo proposta pelo outro, plenamente verbalizada
ou tcita? Pois a satisfao de uma necessidade, assim como a
soluo de um problema, uma resposta a uma questo. Diremos
ento que essa harmonia elementar consiste na relao entre dois
homens, na qual um deles ensina e o outro aprende, um ordena e
o outro obedece, um produz e o outro consome, na qual um ator,
poeta, artista, e o outro espectador, leitor, amador? Ou diremos
que eles se reuniram e fizeram uma obra em colaborao? Sim,
isso que diremos, pois embora nessa relao entre dois homens
esteja implicada uma relao entre modelo e cpia, trata-se de
algo bem diferente.
A meu ver, no entanto, preciso levar a anlise ainda mais
longe e, como j indiquei, buscar a adaptao social elementar no
prprio crebro, no gnio individual do inventor. A inveno que
est destinada a ser imitada - pois aquela que permanece encer
rada no esprito de seu autor no socialmente relevante - uma
harmonia de ideias que a me de todas as harmonias entre os
homens. Para que exista uma troca entre produtor e consumidor, e

Gabriel Tarde

93

para que, em primeiro lugar, exista um dom para o consumidor, o


dom da coisa produzida (pois a troca a ddiva tornada mtua, e
como tal, vem depois da ddiva unilateral), preciso que o produtor
tenha inicialmente duas ideias: a da necessidade do consumidor ou
donatrio, e a de um meio apto a satisfaz-la. A adaptao exterior
que chamamos de ddiva, e em seguida de troca, no teria sido
possvel sem essa adaptao interior de duas ideias. Do mesmo
modo, a diviso de trabalho entre vrios homens que executam
as diversas tarefas de uma mesma operao, anteriormente exe
cutada por um nico homem, no teria sido possvel se ele no
tivesse a ideia de conceber essas diversas tarefas como partes de
um mesmo todo, como meios para um mesmo fim. No fundo de
qualquer associao entre homens, existe originariamente, repito,
uma associao entre as ideias de um mesmo homem.
No posso aceitar a objeo de que essa adaptao das
ideias entre si s merece o nome de social quando ela se exprime
numa adaptao dos homens entre si. Com efeito, ela muitas vezes
se exprime de outro modo, e mais ainda, parece que esse outro
gnero de expresso tende a prevalecer. Depois que o trabalho
realizado por um nico homem foi substitudo por uma diviso do
trabalho entre muitos homens, acontece com frequncia que uma
nova inveno faa com que uma nica mquina realize todas as
fases da operao. Nesse caso, a diviso do trabalho, a associao
das tarefas entre homens, s desempenhou o papel de um termo
mdio entre a associao de ideias do primeiro criador da obra e
a associao das engrenagens da mquina. No no grupo de tra
balhadores que a ideia de gnio se encarnou; ela foi materializada
em pedaos de ferro e madeira. E esse caso tende a generalizar-se
com a progressiva utilizao de mquinas na produo. Suponham,
embora isso seja impossvel, que toda a produo humana seja
realizada pelas mquinas. J no haver diviso do trabalho, pois
no haver nenhum ou quase nenhum trabalho, e podemos dizer,
se quisermos, que j no haver harmonia social propriamente

94

As Leis Sociais

dita, mas que a unio social aumentar; porm essa unio social,
ainda mais desejvel do que a harmonia, no ter sido o efeito
dessas inumerveis e infinitesimais adaptaes cerebrais? Onde
encontrar fatores sociais mais potentes do que esses fatos, que
seriam puramente individuais?
Ns acabamos de ver que a evoluo da sociologia a condu
ziu, tal como aconteceu em outros campos, a descer das alturas
quimricas das causas vagas e grandiosas at as aes infinitesi
mais, reais e precisas. Mostremos agora, ou melhor, assinalemos
- pois falta-nos espao para uma exposio mais detalhada - que
a evoluo da realidade social, exatamente inversa da cincia
social, consistiu na passagem gradual de uma infinidade de har
monias muito pequenas a um menor nmero de harmonias maio
res, e depois a um nmero muito reduzido de harmonias muito
grandes, at chegar, num futuro ainda indefinido, realizao do
progresso social em uma civilizao nica e total, to harmoniosa
quanto possvel. Note-se que essa lei de alargamento progressivo
no deve ser compreendida aqui como a tendncia difuso imitativa de uma inveno ou grupo de invenes; isso seria voltar
lei da imitao, que ns j conhecemos. E nem mesmo se trata
do incessante alargamento que essa irradiao imitativa propor
ciona harmonia social que chamamos de diviso do trabalho
e que deveramos antes chamar de solidariedade dos trabalhos.
Ainda que uma indstria permanea a mesma, sem nenhum novo
progresso, a cooperao social que resulta dela crescer medida
que, por um lado, as necessidades de consumo que ela satisfaz, e
por outro, os atos de produo pelos quais ela supre essa deman
da, se propagarem por imitao para alm da regio, inicialmente
bastante circunscrita, onde ela nasceu. Por mais importante que
seja o fenmeno de crescimento dos mercados, habitual preldio
da federao dos povos, no ele que est em causa aqui. A bem
dizer, muito raro que, sem nenhum progresso intrnseco da in
dstria, esse progresso extrnseco possa realizar-se.

Gabriel Tarde

95

desse progresso intrnseco que queremos falar, ou seja,


da tendncia de uma inveno, de uma adaptao social dada, a
se complicar e intensificar ao adaptar-se a outra inveno, a outra
adaptao, engendrando desse modo uma nova adaptao que,
por meio de outros encontros e outras alianas lgicas do mesmo
gnero, conduzir a uma sntese mais alta, e assim por diante. Esses
dois progressos - o progresso de uma inveno em extenso por
meio de sua propagao imitativa, e seu progresso em compreenso,
de algum modo, por meio de uma srie de alianas lgicas - so
certamente muito distintos, porm longe de serem inversamente
proporcionais (apesar da oposio habitual, concernente a outros
aspectos, entre a extenso e a compreenso das ideias), eles mar
cham paralelamente e so inseparveis. A cada aliana cerebral
de duas invenes em uma terceira quando, por exemplo, a ideia
da roda e a ideia da domesticao do cavalo, depois de se propa
garem independentemente (talvez durante sculos), se fundiram
e harmonizaram na ideia de carro - foi preciso, necessariamente,
que a imitao operasse para aproxim-las em um mesmo crebro,
tal como foi preciso, para o surgimento de cada uma delas, que
seus elementos fossem trazidos para o esprito de seus autores por
meio de diversas irradiaes de exemplos. Melhor ainda, a cada
sntese de novas invenes, geralmente preciso uma irradiao
imitativa mais vasta que as precedentes. Existe um entrelaamento
contnuo entre essas duas progresses, a progresso imitativa,
uniformizadora, e a progresso inventiva, sistematizadora. Elas
esto ligadas entre si por um vnculo que, sem dvida, nada tem de
rigoroso (pois, por exemplo, uma srie de rduos teoremas pde
desenrolar-se no crebro de um Arquimedes ou de um Newton
sem nenhuma contribuio de elementos trazidos por sbios
estrangeiros no decorrer de cada uma dessas descobertas), mas
esse vnculo suficientemente costumeiro para nos fazer acreditar
que constataremos um crescimento da extenso do campo social
e da intensidade das comunicaes sociais, e uma ampliao e

96

As Leis Sociais

aprofundamento das nacionalidades (seno dos Estados), sempre


que crescerem a riqueza das lnguas, a beleza arquitetnica das
teologias, a coeso das cincias, a complexidade e a codificao das
leis, a organizao espontnea ou a regulamentao dos trabalhos
industriais, o regime financeiro, a coordenao e a complicao
administrativas, os refinamentos e a variedade da literatura e das
belas-artes.
Mais uma vez, no entanto, preciso no confundir, como
muitas vezes acontece, o progresso da instruo, simples fato de imi
tao, e o progresso da cincia, fato de adaptao; nem o progresso
da industrializao com o progresso da indstria, ou o progresso
da moralidade com o progresso da moral, ou o progresso do mili
tarismo com o progresso da arte militar, ou o progresso da lngua,
entendido aqui como sua expanso territorial, com o progresso da
linguagem, entendido aqui como o refinamento de sua gramtica
ou o enriquecimento de seu vocabulrio. Tomemos estes dois ca
sos: a cincia progride enquanto a instruo para de expandir-se;
ou ento h uma progressiva expanso da instruo enquanto a
cincia permanece estacionria. Sero eles equivalentes? E ser
possvel dizer, para falar um tanto vagamente, que houve nesses
dois casos um progresso das luzes? No, pois essas coisas no
tm uma medida comum. Cada ganho da cincia, cada verdade que
se acrescenta ao seu agregado ao seu adaptat de proposies
concordantes entre si, no uma simples soma, mas antes uma
multiplicao, uma confirmao recproca. Mas cada aluno novo
que se junta aos outros, cada nova edio de um exemplar cerebral
da cincia ensinada apenas uma unidade extra adicionada s ou
tras. Para sermos exatos, reconheamos que existe a algo mais do
que uma adio: pois a comunho de inteligncia que resulta desse
processo, por conta da similitude do ensinamento transmitido s
diversas crianas, aumenta a confiana de cada uma delas em seus

Gabriel Tarde

97

conhecimentos40 e tambm uma adaptao social; e est longe


de ser uma das menos preciosas.
Antes de prosseguir, faamos algumas importantes observa
es. Em primeiro lugar, notemos a que ponto a ideia de adaptao
torna-se mais clara e precisa quando passamos do mundo fsico, ou
mesmo do mundo vivo, ao mundo social. Ser que sabemos com pre
ciso o que a adaptao de uma molcula cida molcula bsica
com a qual ela se combina, ou o que a adaptao de um gro de
plen ao vulo que, fecundado por ele, dar nascimento a um novo
indivduo que talvez seja o primeiro de uma nova raa? Nada sabe
mos sobre isso. verdade que, no caso da interferncia entre ondas
sonoras que, ao invs de se destrurem, se ajudam mutuamente e
produzem um reforo do som ou um timbre inesperado, ns estamos
um pouco mais bem informados sobre a natureza do fenmeno; no
entanto, esse simples reforo do som, ou mesmo a produo desse
timbre (que uma criao original somente do,ponto de vista sub
jetivo de nossas sensaes acsticas) nada tm em comum com o
fato, objetivamente inovador, da combinao qumica. Do mesmo
modo, quando duas espcies animais ou vegetais se encontram,
ajudando e parasitando uma outra, trata-se de um caso muito
claro de mutualismo vital que proporciona um simples aumento
de seu bem-estar e de sua propagao, e no deve ser confundido
com o caso da fecundao, que continua bastante obscuro. Mas
quando se produz uma feliz interferncia, qualquer que seja, entre
duas irradiaes imitativas, ela sempre transparente para nossa
razo. Ela pode consistir simplesmente num estmulo mtuo - como
40 Notemos de passagem que essa sim ilitude entre os ensinamentos somente completa
na escola primria, e que ela menor na escola secundria, apesar da uniformidade dos
programas de bacharelado [baccalaurat]; e ela ainda menor nas instituies de ensino
superior, onde o livre desacordo das doutrinas to frequente. Nota-se aqui o carter
subordinado e mediador da Contradio, da Discusso: o ensino superior, no qual ela reina,
tende sempre a descambar no ensino secundrio, no qual ela j menos acentuada, e na
escola primria, na qual ela no existe. Aqui as contradies dos cientistas no servem
para nada, ou s servem para trazer luz adaptaes de verdades para uso futuro de
professores rurais.

98

As Leis Sociais

a propagao das lmpadas a gs favoreceu a do gs e vice-versa,


ou como a propagao da lngua francesa favorece a da literatura
francesa, que por sua vez a favorece. E tambm possvel que essa
interferncia tenha uma eficcia mais profunda e provoque uma
inveno nova, foco de uma nova imitao irradiadora - tal como a
propagao do cobre, ao encontrar-se com a do estanho, sugeriu a
ideia da fabricao do bronze, ou como o conhecimento da lgebra
e da geometria sugeriram a Descartes a expresso algbrica das
curvas. Mas nesse ltimo caso, como no primeiro, vemos claramente
que a adaptao uma relao lgica ou teleolgica, e que ela sem
pre se enquadra em um desses dois tipos: ora ela , como a lei de
Newton, tal como em qualquer lei cientfica, uma sntese de ideias
que anteriormente no pareciam nem confirmar-se nem contradizer-se, e que agora se confirmam mutuamente como consequncias
de um mesmo princpio; ora ela , como numa mquina industrial
qualquer, uma sntese de aes que, outrora estranhas umas s
outras, se favorecem mutuamente atravs de uma engenhosa coli
gao, meios solidrios para um mesmo fim. A inveno do carro
(j complexa, como sabemos), a inveno do ferro, a inveno da
fora motriz do vapor, a inveno do pisto, a inveno do trilho:
tantas invenes que pareciam estranhas umas s outras e que se
solidarizaram na inveno da locomotiva.
Em segundo lugar, quer se trate de uma sntese de aes, de
uma inveno cientfica ou industrial, religiosa ou esttica (em uma
palavra, terica ou prtica), podemos chamar de acoplamento
lgico o procedimento elementar que a formou. Com efeito, qual
quer que seja o nmero de ideias ou atos sintetizados numa teoria
ou mquina, jamais existe uma combinao de mais do que dois
elementos de cada vez, adaptados entre si no crebro do inventor
ou de cada um dos inventores que colaboraram sucessivamente
para sua formao.41 Em sua Smantique, Michel Bral fez uma
41 Ver, no livro Lois de 1'imitation, o captulo sobre as leis lgicas da imitao, sobretudo p.
175 e p. 195 e seguintes; e no livro Logique Sociale, o captulo sobre as leis da inveno.

Gabriel Tarde

99

observao muito perspicaz a respeito da linguagem que sustenta


esta minha observao geral: qualquer que seja o comprimento,
diz ele, de uma palavra composta, ela jamais compreende mais
do que dois termos. Essa regra no arbitrria: ela decorre da
natureza de nosso esprito que associa suas ideias em pares. Em
outra passagem relativa s figuras esquemticas pelas quais James
Darmesteter tentou tornar visvel a evoluo dos sentidos das pa
lavras de acordo com diferentes vias, o mesmo autor escreve:
preciso lembrar que essas figuras complicadas s tm valor para
o linguista: aquele que inventa o novo sentido (de uma palavra)
esquece momentaneamente todos os sentidos anteriores, salvo um,
de maneira que as ideias sempre se associam de duas em duas. E
isso sempre acontece, tal como nas oposies entre ideias, como
j vimos. Seria fcil, porm tedioso, mostrar a generalidade desse
processo; bastaria flagrar sucessivamente cada descoberta ou
aperfeioamento no momento em que ela adiionada descoberta
anterior, seja na esfera cientfica, jurdica, econmica, poltica, ar
tstica ou moral. Em vez disso, prefervel indicar por que assim,
e como isso se torna possvel e necessrio.
Por um lado, isso se deve essencialmente ao fato de que a
marcha do espirito, seu funcionamento elementar, consiste em
passar de uma ideia a outra ligando as duas por um juzo ou por
uma volio: por um juzo que mostra a ideia do atributo implicada
na ideia do sujeito, ou por um ato de vontade que encara a ideia
do meio como estando implicada na ideia da finalidade. Por outro
lado, se o esprito passa de um juzo a outro juzo mais complexo,
e de uma volio a outra, mais compreensiva, porque fora de
repetir-se mentalmente em virtude dessa dupla forma de imitao
de si mesmo, que chamamos de memria e hbito, um juzo ter
mina por enrodilhar-se numa noo, fuso de seus dois termos
doravante soldados e indistintos; e uma volio, um desgnio,
acaba transformando-se num reflexo cada vez menos consciente.
Por causa dessa transformao inevitvel - que ocorre em larga

100

As Leis Sociais

escala, socialmente, sob os nomes respeitveis de tradio e costu


me - nossos antigos juzos tornam-se aptos a integrar, agora como
noes, um novo juzo; e nossos antigos desgnios tornam-se aptos
a integrar um novo desgnio. Da mais baixa mais alta operao
de nosso entendimento e de nossa vontade, esse procedimento
o mesmo; e no existe descoberta terica que seja algo alm da
juno judiciria de um atributo, ou seja, de antigos juzos, a um
novo sujeito, assim como no h descoberta prtica que seja algo
alm da juno voluntria de um meio, ou seja, de um antigo fim,
anteriormente desejado por si mesmo, a um novo fim. Por meio
dessa alternncia, ao mesmo tempo to simples e to fecunda,
de mudanas inversas que se sucedem indefinidamente, o juzo
e a finalidade de ontem se tornam a noo simples e o simples
meio de hoje, que suscitaro o juzo ou a finalidade de amanh,
e assim por diante; e foi de acordo com esse ritmo social, e tam
bm psicolgico, que todos os grandes edifcios de descobertas
e invenes que despertam nossa admirao foram construdos:
nossas lnguas, nossas religies, nossas cincias, nossos cdigos,
nossas administraes, e decerto nossa organizao militar, nossas
indstrias, nossas artes.
Quando consideramos uma dessas grandes coisas sociais
- uma gramtica, um cdigo, uma teologia - o esprito individual
parece to diminuto ao p desses monumentos, que a ideia de
enxergar nele o nico construtor dessas gigantescas catedrais
parece ridcula aos olhos de alguns socilogos; e como estes no
percebem que com isso renunciam possibilidade de explic-las,
pode-se perfeitamente desculp-los por serem levados a dizer que
tais obras so eminentemente impessoais. Apenas mais um passo
levaria a postular (como meu ilustre adversrio Durkheim) que,
longe de serem funes do indivduo, elas so seus fatores, existindo
independentemente das pessoas humanas e governando-as despo
ticamente ao projetar sobre elas sua sombra opressiva. Mas como
essas realidades sociais - pois se eu combato a ideia do organismo

Gabriel Tarde

101

social, estou longe de contradizer a de um certo realismo social,


que precisaria ser definido - como, repito, essas realidades sociais
foram produzidas? Eu admito de bom grado que, uma vez que fo
ram produzidas, elas se impem ao indivduo, s vezes de maneira
coercitiva, o que raro, e mais frequentemente por persuaso, por
sugesto, pelo prazer singular de que gozamos, desde o bero, ao
nos impregnar com os exemplos dos mil modelos existentes em
nosso ambiente, como uma criana ao sugar o leite de sua me. Eu
admito isso, mas como esses monumentos grandiosos aos quais
me refiro foram construdos, e por quem, a no ser por homens e
esforos humanos?
Quanto ao monumento cientfico, talvez o mais grandioso
de todos os monumentos humanos, no h dvida possvel. Ele
foi construdo sob a luz plena da histria, e ns seguimos seu
desenvolvimento praticamente desde seu inicio at os dias de
hoje. Que nossas cincias tenham sido no igcio uma poeira de
pequenas descobertas esparsas e sem ligao, que foram em se
guida agrupadas - sendo cada um desses agrupamentos j uma
descoberta - em pequenas teorias que depois foram, por sua vez,
fundidas em teorias mais amplas, confirmadas ou retificadas por
uma infinidade de outras descobertas, e enfim fortemente coligadas
por inmeras hipteses lanadas sobre elas, elevadas invenes
do esprito unificador, tudo isso indiscutvel. No existe lei, teoria
cientfica ou sistema filosfico que no exiba a assinatura de seu
inventor. Tudo isso de origem individual, tanto os materiais quanto
os planos, os planos de conjunto e os planos de pormenor; tudo,
at mesmo aquilo que agora ensinado na escola primria e est
difundido em todos os crebros cultivados, foi no incio o segredo
de um crebro solitrio, onde essa pequena lmpada, tmida e tremeluzente, irradiou com dificuldade numa estreita esfera, atravs
das contradies, at que, fortificada por sua expanso, tornou-se
um luminoso farol.

102

As Leis Sociais

Mas se evidente que a cincia foi construda desse modo,


no menos certo que a construo de um dogma, de um corpo
jurdico, de um governo ou de um regime econmico ocorreu da
mesma maneira; e se existem possveis dvidas no que diz respeito
lngua ou moral, porque a obscuridade de suas origens e a
lentido de suas transformaes ocultam de nossos olhos a maior
parte de seu percurso, mas muito provvel que sua evoluo tenha
seguido o mesmo caminho. No por meio de minsculas criaes
de expresses imaginativas, de giros pitorescos, de novas palavras
ou novos sentidos que nossa lngua se enriquece nossa volta? E
cada uma dessas inovaes, pelo simples fato de ser geralmente
annima, deixa por isso de ser uma iniciativa pessoal que, pouco
a pouco, vai sendo imitada? E no desses achados expressivos,
vicejantes em cada lngua, que as lnguas em contato se servem
reciprocamente para engrossar seu-dicionrio e flexibilizar ou
mesmo complicar sua gramtica? No tambm por uma srie de
pequenas revoltas individuais contra a moral estabelecida, ou de
pequenas adies aos seus preceitos, que essa moral sofre lentas
modificaes? E no foi uma passagem atravs de fases suces
sivas que conduziu de uma era muito antiga, na qual as lnguas
eram inumerveis porm muito pobres, cada uma falada por uma
horda, uma tribo, um burgo, e em que as morais eram tambm
muito numerosas, muito desiguais e muito simples, nossa poca,
na qual um pequeno nmero de lnguas muito ricas e de morais
muito complicadas esto prestes a disputar a futura hegemonia
do globo terrestre?
No entanto, preciso conceder aos adversrios da teoria
das causas individuais na histria o mrito de perceber que ela foi
falseada; e ela foi falseada na medida em que se falava de grandes
homens l onde era preciso falar de grandes ideias, muitas vezes
surgidas em homens muito pequenos, e mesmo de pequenas ideias,
inovaes infinitesimais trazidas por cada um de ns obra comum.
A verdade que todos ns, ou quase todos, colaboramos na pro

Gabriel Tarde

103

duo desses grandes edifcios que nos dominam e nos protegem;


cada um de ns, por mais ortodoxo que parea, tem sua prpria
religio, e por mais correto que parea, tem sua prpria lngua,
sua prpria moral; o mais vulgar dos cientistas tem sua prpria
cincia, o mais rotineiro dos administradores tem sua prpria arte
administrativa. E assim como cada um tem sua pequena inveno,
consciente ou inconsciente, para acrescentar ao legado secular
das coisas sociais das quais somos depositrios passageiros, cada
um tambm gera uma irradiao imitativa (em sua esfera mais ou
menos limitada) que basta para prolongar seu achado alm de sua
existncia efmera, e guard-lo para os trabalhadores futuros que o
faro funcionar. A imitao, que socializa o individual, perpetua em
toda parte as boas ideias, e ao perpetu-las, as aproxima e fecunda.
Acaso poderamos dizer que, sendo dada a natureza eterna
das coisas e estando elas na presena do tambm persistente
esprito humano, a cincia chegaria, mais cedo ou mais tarde, e
no importando por qual caminho de descobrtas individuais, ao
estgio atual e ao estgio em que nossos netos a conhecero, e que
sua forma futura, clara e gloriosa, j estava predeterminada desde
as primeiras percepes do crebro selvagem, e que por isso o
acidente do gnio ou o papel do indivduo pouco importam, ou vo
perdendo a cada dia sua importncia medida que nos aproxima
mos da realidade ideal, platonicamente atrativa, cujos contornos
j se deixam adivinhar? Mas se essa objeo fosse verdadeira, ela
teria de ser generalizada, e disso resultaria que, no decorrer de um
encadeamento qualquer de satisfaes e necessidades, nascidas
alternadamente umas das outras, uma irresistvel atrao de no
sei quais planos divinos, invisivelmente imperiosos, conduziria
inevitavelmente a humanidade ao mesmo termo poltico, econ
mico ou outro, mesma constituio, mesma indstria, mesma
lngua, mesma legislao final... At o momento, no h nada mais
contrrio aos fatos do que essa viso, pois quanto mais as diversas
civilizaes que partilham a Terra - crist, budista, islmica - se

104

As Leis Sociais

desenvolvem, mais sua originalidade e dessemelhana se acentu


am. Entretanto, aquilo que me agrada nessa maneira de ver que
ela idealista, mas no o bastante, sendo por isso um idealismo
falho. O mundo no movido por uma s ideia ou por um peque
no nmero de ideias situadas no ar; existem milhes e milhes
que lutam pela glria de serem seus portadores. Essas ideias que
agitam o mundo so as ideias de seus prprios atores: cada um
deles batalhou para fazer triunfar a sua, sonho de reorganizao
local, nacional ou internacional, que se desenvolvia ao realizar-se, e que mesmo sucumbindo podia avultar-se. Cada indivduo
histrico foi um projeto de uma nova humanidade, e todo o seu ser
individual, todo o seu esforo individual, no passou da afirmao
desse universal fragmentrio do qual ele era o portador. E desse
sem-nmero de ideias, desses grandes programas patriticos ou
humanitrios que dominam, como grandes bandeiras mutuamente
despedaadas, a mixrdia humana, talvez apenas uma sobreviva,
uma nica dentre mirades, porm ela mesma ter sido individual
em sua origem, tendo jorrado do crebro ou do corao de um
homem; e eu aceito a ideia de que seu triunfo tenha sido necess
rio, mas sua necessidade, que se revela retrospectivamente, que
ningum planejou de antemo, que ningum poderia prever com
certeza, no passa da expresso verbal da superioridade dos es
foros individuais postos ao servio dessa concepo individual.
Causa final e causas eficientes se confundem aqui, e no h motivo
para distingui-las.
E justamente porque toda construo social deve todos
os seus materiais, e mesmo todos os seus planos, a contribuies
individuais, que eu no poderia admitir aquilo que chegou a ser
considerado o atributo essencial da realidade social: seu carter
soberano e dominador em relao ao indivduo. Se assim fosse,
essa realidade jamais teria se desenvolvido e esses monumentos
jamais poderiam ter sido edificados, pois em cada um de seus
desenvolvimentos sucessivos causados pela introduo de uma

Gabriel Tarde

105

novidade - uma nova palavra, um novo projeto de lei, uma nova


teoria cientfica, um novo projeto industrial, etc. - evidente que
a inovao no foi introduzida fora, e sim por persuaso e doce
sugesto. Vejam a maneira pela qual cresce o palcio das cincias.
Uma teoria longamente discutida no ensino superior antes de
propagar-se sob a forma de uma hiptese mais ou menos prov
vel, e ao descer para o ensino secundrio ela j se afirma mais
resolutamente; mas, por via de regra, ela s se torna um autntico
dogma quando chega ao ensino primrio, exercendo ou tentando
exercer sobre o esprito de seus partidrios infantis, que alis se
prestam a isso com a maior boa vontade do mundo, a coero, de
modo nenhum desptica, qual nos referimos. Em outros termos,
isso significa que seu atual carter imperioso se estabeleceu em
virtude de sua persuaso anterior, e tudo isso por propagao
imitativa. O mesmo acontece quando uma novidade industrial se
difunde: ela um capricho da elite antes de ser uma necessidade
do pblico e de fazer parte daquilo que se considera necessrio.
Pois o luxo de hoje o necessrio de amanh, pela mesma razo
que o ensino superior de hoje o ensino secundrio, e mesmo o
primrio, de amanh.
Esse grande tema da adaptao social exigiria vrios outros
desenvolvimentos; tomarei a liberdade de remeter o leitor ao meu
livro sobre a Lgica Social, onde esbocei alguns deles. Aqui, porm,
preciso impor limites. No preciso insistir muito na observao,
infelizmente muito bvia, que estabelece a seguinte relao: quanto
mais as adaptaes so mltiplas e precisas, mais aumentam as
inadaptaes sociais, dolorosas, enigmticas, que justificam tantas
queixas. Mas agora estamos aptos a dizer por que as harmonias
naturais, assim como as simetrias naturais, raramente so perfeitas,
e por que elas se misturam (ou mesmo do origem) a desarmonias
e dissimetrias, que por sua vez podero contribuir para suscitar
adaptaes e oposies mais altas. que a adaptao perfeita e a
oposio perfeita so as duas extremidades de uma srie infinita,

106

As Leis Sociais

entre as quais se intercalam inumerveis posies. Entre a confir


mao absoluta de uma tese por outra e a contradio absoluta en
tre ambas, existe uma infinidade de contradies e de confirmaes
parciais, sem mencionar a infinidade de graus de crena afirmativa
e negativa. Uma questo seguida de uma resposta: eis a a inveno.
Porm mil respostas a uma questo dada so possveis, cada vez
mais exatas e completas. Para a questo da necessidade de ver,
o olho humano no a nica resposta; existem todos os olhos de
insetos, de pssaros, de moluscos. Para a questo da necessidade
de fixar a fala, houve apenas a resposta do alfabeto fencio.
No seio de qualquer sociedade h uma infinidade de peque
nas ou grandes respostas s questes, e uma infinidade de novas
questes que surgem dessas mesmas respostas; e precisamente
por causa disso que existe tambm um considervel nmero de
pequenas ou grandes lutas entre partidrios de solues diferentes.
A luta no passa de um choque de harmonias, mas esse choque no
, por certo, a nica relao entre as harmonias; sua relao mais
habitual o acordo, a produo de uma harmonia superior. A cada
instante, seja falando, seja trabalhando com qualquer coisa, ns
experimentamos uma necessidade e a satisfazemos, e essa srie
de satisfaes ou solues que constitui o discurso ou o trabalho,
e tambm a poltica (interna ou externa), a diplomacia e a guerra,
todas as formas de atividade humana. Os esforos incessantemente
repetidos dos indivduos de uma nao para adaptar sua lngua ao
devir de seu pensamento42acabam modificando e transformando
gradualmente as lnguas, bem como suscitando novas lnguas. Se
tivssemos feito o registro de todos esses esforos sucessivos, tal
como tentou fazer o abade Rousselot num recanto de La Charente,
seria possvel dizer o nmero preciso de adaptaes lingusticas
elementares que foram integradas numa modificao do som ou do
sentido das palavras. Para adaptar seus dogmas e preceitos reli
42 Ver a esse respeito a Smantique de Michel Bral.

Gabriel Tarde

107

giosos, e tambm seus costumes e leis, e at mesmo sua moral, aos


seus conhecimentos e necessidades, os indivduos, principalmente
aqueles que se sentem mais inadaptados ao seu meio (e talvez a si
mesmos), tambm fazem esforos incessantes que desembocam
em pequenas descobertas acumuladas.43E de tempos em tempos
surge algum grande inventor, algum grande agenciador.
As desarmonias so, para as harmonias, o que as dissimetrias so para as simetrias, o que as variaes so para as repeti
es. Ora, apenas no seio das repeties precisas, das oposies
claras, das harmonias estreitas, que eclodem as amostras mais ca
ractersticas da diversidade, do pitoresco e da desordem universais,
43 Se quisermos fazer da sociologia uma cincia verdadeiramente experimental e nela impri
mir o mais profundo selo de preciso, necessrio, creio eu, contar com a colaborao de
um grande nmero de observadores devotados e generalizar o m todo do abade Rous
selot no que ele tem de essencial. Suponham que vinte, trinta ou cinquenta socilogos,
nascidos em diferentes regies da Frana ou em outros pases, redijam separadamente,
com o maior cuidado e mincia possveis, a srie de pequenas transformaes - de ordem
poltica, econmica, etc. - que eles foram capazes de observar na sua pequena cidade ou
vilarejo natal, e em primeiro lugar na sua vizinhana mais imediata; suponham que, em
vez de limitar-se a generalidades, ele notem os pormenores das manifestaes individuais
de uma alta ou baixa da f religiosa ou da f poltica, de moralidade ou imoralidade, de
luxo, de conforto, de uma modificao da crena poltica ou religiosa, ocorridas diante de
seus olhos a partir da idade em que j fossem capazes de compreend-las, em primeiro
lugar na sua prpria famlia e no seu crculo de amizades; suponham que eles se esforcem,
como o ilustre linguista citado mais acima, para chegar fonte individual dessas peque
nas diminuies, ou aumentos, ou transformaes de ideias e tendncias, que a partir
dali se propagaram num certo grupo de pessoas e que se traduzem por imperceptveis
mudanas na linguagem, nos gestos, na higiene, em hbitos quaisquer; suponham tudo
isso, e vocs vero que desse conjunto de monografias similares, eminentem ente instru
tivas, seria possvel extrair as mais im portantes verdades, cujo conhecimento seria til
no apenas para o socilogo mas tam bm para o homem de Estado. Essas monografias
narrativas seriam profundamente diferentes das monografias descritivas, e bem mais
esclarecedoras. Para compreender os estados sociais, preciso surpreender ao vivo e em
pormenores as mudanas sociais; mas o inverso no verdadeiro. Pode-se m uito bem
acumular constataes de estados sociais em todos os pases do mundo, mas isso no
far aparecer a lei de sua formao, que antes desaparecer sob os fardos de documentos
empilhados. Mas aquele que conhecer bem, com preciso de detalhes, a mudana de
costumes em alguns pontos particulares, durante dez anos e num nico pas, no poder
deixar de pr as mos na frmula geral das transformaes sociais e, por conseguinte,
das prprias formaes sociais, aplicvel em todos os pases e em todos os tempos. Seria
bom, para tal pesquisa, aplicar um questionrio a princpio bastante limitado; poder-se-ia
perguntar, por exemplo, em certas regies rurais do Sul, por que e como se introduziu e
propagou o hbito de deixar de cum prim entar os proprietrios ricos da vizinhana, ou
sob que influncias se comea a perder a f na bruxaria, nos lobisomens, etc.

108

/\s Leis Sociais

ou seja, as fisionomias individuais. pouca coisa, coisa muito


passageira, uma fisionomia de homem ou de mulher, afinada pela
vida social, pela vida de imitao intensa, complicada e contnua.
Mas nada mais importante do que essa nuana fugidia. E o pintor
no perdeu o tempo que gastou para fix-la, tampouco o poeta ou
o romancista que a faz reviver. O pensador no tem o direito de
sorrir diante de seus longos esforos para captar essa coisa quase
inatingvel que nunca havia existido e que jamais voltar a existir.
No existe cincia do individual, mas s existe arte do individual. E
o cientista, ponderando que a vida universal inteira est suspensa
na florao da individualidade das pessoas, teria de considerar o
trabalho do artista com uma modstia um tanto invejosa se ele
mesmo, imprimindo necessariamente seu estilo pessoal sua con
cepo geral das coisas, no lhe desse sempre um valor esttico,
verdadeira razo de ser de seu pensamento.

Concluso
*

hora de terminar, e para rematar, faamos um resumo

das principais concluses s quais fomos conduzidos e


busquemos sua significao de conjunto. Vimos que toda

cincia vive de similitudes, de contrastes ou de simetrias, e de


harmonias - ou seja, de repeties, oposies e adaptaes e indagamos qual a lei de cada um desses trs termos, bem
como a relao de cada um deles com os demais. Vimos que
o esprito humano, apesar de sua propenso natural - que a
princpio parece to legtima - a ater-se aos maiores fenmenos,
aos mais imponentes, aos mais prestigiosos, para explicar os
menos visveis, foi irresistivelmente conduzido a encontrar o
princpio das coisas, em toda ordem de fatos, nos fatos mais
recnditos, cuja fonte, a bem dizer, continua insondvel para
ele. Essa constatao deveria causar-lhe uma grande surpresa,
mas no foi assim, pois o hbito da observao cientfica nos
familiarizou com essa reverso da ordem sonhada pelo pen
samento nascente. Assim, a lei da repetio, quer se trate da
repetio ondulatria e gravitacional do mundo fsico, ou da
repetio hereditria e habitual do mundo vivo, ou da repetio
imitativa do mundo social, a tendncia de passar por via de
amplificao progressiva de um infinitesimal relativo a um infi
nito relativo. A lei de oposio no diferente: ela consiste em
uma tendncia a amplificar-se numa esfera sempre crescente a
partir de um ponto vital. Socialmente, esse ponto o crebro
de um indivduo, a clula desse crebro onde se produz, pela
interferncia de ondas imitativas vindas de fora, uma contra
dio entre duas crenas ou dois desejos. Essa a oposio
social elementar, princpio inicial das mais sangrentas guerras,
assim como a repetio social elementar o fato individual do
primeiro imitador, ponto de partida de um imenso contgio

110

As Leis Sociais

de moda. A lei de adaptao, por fim, assemelha-se s ante


riores: a adaptao social elementar a inveno individual a
ser imitada, ou seja, a feliz interferncia entre duas imitaes,
inicialmente num nico esprito; e a tendncia dessa harmonia
- que na origem toda interior - no somente exteriorizar-se ao se difundir, mas ainda acoplar-se logicamente, graas
a essa difuso imitativa, com alguma outra inveno, e assim
por diante, at que, por meio de complicaes e harmonizaes
sucessivas de harmonias, apaream essas grandes obras cole
tivas do esprito humano: uma gramtica, uma teologia, uma
enciclopdia, um corpo de direito, uma organizao natural ou
artificial do trabalho, uma esttica, uma moral.
Assim, em resumo, certo que tudo vem do infinitesimal, e
acrescentemos, provvel que tudo a ele retorne. Ele o alfa e o
mega. Tudo o que constitui o universo visvel, acessvel s nossas
observaes, tudo isso provm, como sabemos, do invisvel e do
impenetrvel, de um nada aparente do qual sai, de maneira ines
gotvel, toda a realidade. Se ns refletssemos sobre esse estranho
fenmeno, ficaramos admirados com a potncia do preconceito, ao
mesmo tempo popular e cientfico, que faz com que todo mundo tanto um Spencer como um desavisado - olhe para o infinitesimal
como algo insignificante, ou seja, homogneo, neutro, sem nada
de caracterstico ou espiritual. Iluso inextirpvel! E ainda mais
inexplicvel na medida em que tambm ns, como todos os seres,
estamos destinados a voltar em breve, pela morte, a esse infinitesi
mal de onde samos, esse infinitesimal to desprezado, que poderia
muito bem ser, no fundo - quem sabe? - todo o verdadeiro alm, o
nico refgio pstumo, procurado em vo nos espaos infinitos...
Seja como for, que razo teramos para julgar a priori, sem conhecer
o mundo elementar, que apenas o mundo visvel, o mundo espa
oso e volumoso, o teatro do pensamento, a sede de fenmenos
variados e viventes? Como podemos supor tal coisa, quando a cada
instante vemos emergir um ser individual, com sua fisionomia pr

Gabriel Tarde

111

pria e radiante, do fundo de um vulo fecundado, do fundo de uma


parte desse vulo, de uma parte que quanto mais a procuramos,
mais vai se circunscrevendo e esvanecendo, at no sei que ponto
inimaginvel? Esse ponto, fonte de tamanha diferena, como julg-lo indiferenciado? Eu sei bem qual a objeo que me aguarda:
a pretensa lei da instabilidade do homogneo. Mas ela falsa, ela
arbitrria, ela foi imaginada expressamente para conciliar um
preconceito (o de acreditar que aquilo que indistinto aos nossos
olhos indiferenciado em si mesmo) com a evidncia das diversidades fenomenais, das exuberantes variaes viventes, psicolgicas
e sociais. A verdade que apenas o heterogneo instvel, e que
o homogneo essencialmente estvel. A estabilidade das coisas
est em razo direta de sua homogeneidade. A nica coisa na Na
tureza que (ou parece ser) perfeitamente homognea o Espao
geomtrico, que no mudou desde Euclides. Tem-se a inteno de
dizer simplesmente que o menor germe de heterogeneidade, ao
ser introduzido num agregado relativamente homogneo, como o
fermento na massa, provocar nele uma diferenciao crescente?
Isso eu contesto: num pas ortodoxo, de unanimidade religiosa ou
poltica, a introduo de uma heresia ou de uma dissidncia tem
muito mais chances de ser rapidamente reabsorvida ou expulsa do
que de crescer s expensas da Igreja ou da poltica reinantes. Eu no
nego a lei de diferenciao em suas aplicaes orgnicas ou sociais,
mas ela estar sendo muito mal compreendida caso impea a viso
da lei de uniformizao crescente que se mistura e se entrelaa
com ela. Na realidade, a diferenciao da qual se quer falar antes
a adaptao da qual falamos; por exemplo, a diviso do trabalho
em nossas sociedades no passa da associao ou coadaptao
progressiva de trabalhos diversos por meio de invenes sucessi
vas. Circunscrita em seus primrdios s tarefas caseiras, ela vai se
repetindo e ampliando sem cessar, estendendo-se primeiramente
cidade, na qual as diversas tarefas, outrora semelhantes umas s
outras, porm diferenciadas interiormente, tornam-se diferentes

112

As Leis Sociais

umas das outras, mas separadamente mais homogneas; depois


torna-se nacional, e em seguida internacional. Assim, no verdade
que a diferena v aumentando, pois se a cada instante aparecem
novidades e outras diferenas, tambm desaparecem antigas
diferenas; e levando em conta essa considerao, no teremos
nenhuma razo para pensar que a soma das diferenas, se que
possvel somar coisas que no tm uma medida comum, tenha
aumentado no universo. Algo muito mais importante do que um sim
ples aumento de diferena acontece sem cessar: a diferenciao da
prpria diferena. A prpria mudana vai mudando, e num sentido
determinado, que nos encaminha de uma era de diferenas cruas
e justapostas, como de cores berrantes que no combinam, para
uma era de diferenas harmoniosamente nuanadas. Seja l o que
se possa pensar dessa maneira de ver, inconcebvel que, segundo
a hiptese de uma substncia homognea eternamente submetida
disciplina niveladora e coordenadora das leis cientficas, tivesse
jamais podido existir um universo como o nosso, deslumbrante
em seu desmedido luxo de surpresas e caprichos. 0 que poderia
nascer a partir do perfeitamente semelhante e perfeitamente regra
do, a no ser um mundo eterna e imensamente tedioso? Do mesmo
modo, a essa concepo corrente do universo como formado por
uma poeira infinita de elementos, todos semelhantes no fundo e
dos quais a diversidade teria emergido sabe-se l como, eu me
permito opor minha concepo particular que o representa como
a realizao de uma multido de virtualidades elementares,44cada
qual caracterizada e ambiciosa, cada qual trazendo em si seu uni
verso distinto, seu universo prprio e de sonho. Pois o nmero de
projetos abortados por ele infinitamente maior do que o nmero
de projetos desenvolvidos; e entre os sonhos concorrentes, entre
os programas rivais, muito mais do que entre os seres, que acon
44 Ver a esse respeito o estudo Monadologie et Sociologie, publicado em EssaisetMlanges,
Paris-Lyon, Storck et Masson, 1895. [Existe uma traduo brasileira: Monodologia e socio
logia e outros ensaios, trad. de Paulo Neves, So Paulo, Cosac Naify, 2007. (N. do T.)]

Gabriel Tarde

113

tece a grande batalha pela vida que elimina os menos adaptados.


Dessa forma, o subsolo misterioso do mundo fenomenal seria to
rico em diversidades - embora sejam outras diversidades - quanto
o patamar das realidades superficiais.
Mas, no fim das contas, a metafsica aqui esboada de es
cassa importncia em relao a tudo que foi exposto at aqui, e
entre parnteses que eu lano essa hiptese, fazendo observar que,
mesmo rejeitada, ela deixar de p as consideraes mais slidas
e positivas apresentadas anteriormente. Ela to somente permite
abarcar, sob um mesmo ponto de vista, os dois tipos de verdades,
aparentemente estranhas entre si, que ns colhemos ao longo de
nosso caminho, a saber: aquelas que dizem respeito progresso
regular das repeties, das lutas, das harmonias universais, ao
aspecto regular do mundo, alimento da cincia; e aquelas relativas
ao aspecto selvagem do mundo, presa extraordinria da arte em
perptua renovao em face do que parece ser a eterna necessidade
do diverso, do desordenado, graas ao prprio funcionamento da
assimilao, da simetrizao, da harmonizao universais. Nada
mais fcil de compreender do que essa aparente anomalia, se
supormos que as originalidades subfenomenais das coisas traba
lham no para apagar-se, mas para florescer num nvel mais alto.
A partir disso, tudo se explica; e assim como as relaes
mtuas entre os nossos trs termos, repetio, oposio, adapta
o, so facilmente inteligveis quando consideramos a repetio
progressiva como algo que funciona a servio da adaptao que
ela propaga e que, por suas interferncias, ela desenvolve - mas
tambm como algo que s vezes funciona a favor da oposio, que
por interferncias de outro tipo, ela tambm condiciona - pode-se
igualmente acreditar que todas as trs colaboram para o floresci
mento da variao universal sob suas formas individuais e pessoais
mais elevadas, mais amplas e mais profundas.
(Outubro de 1897)

COLEO RIZOM AS - VOL. 1

Um campo social dirigido pela tcnica, pelo consumo e pelas


exigncias do mercado no apenas danoso ao meio ambiente:
ele tam bm nocivo subjetividade de seus membros. Parece
mesmo haver uma relao direta: quanto mais cresce o
prodigioso corpo das sociedades m odernas - mais mquinas,
mais dispositivos, mais imagens, mais circulao de mercadorias
- mais as subjetividades so diminudas e amesquinhadas. Como
disse Bergson, seria preciso inventar um a alma altura desse
corpo: novas maneiras de sentir e de pensar, novas possibilidades
de vida. Cada crebro nele mesmo um rizom a que se ramifica
em tantos outros rizomas; e se plantar rvores muito bom,
m elhor ainda cultivar rizomas e fazer com que proliferem uns
nos outros. A c o l e o r i z o m a s , voltada para a traduo de
grandes pensadores contem porneos, foi concebida como um
estmulo a esse esforo, que de todos e de cada um.

IS8N sasacbfe'i-i

"u ff"

U niv ers id ad e

Federal
Flum in en s e

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