4 Multiplas e Singulares
4 Multiplas e Singulares
4 Multiplas e Singulares
MLTIPLAS E SINGULARES:
HISTRIA E MEMRIA DE ESTUDANTES UNIVERSITRIAS EM
TERESINA (1930-1970)
Recife
2002
MLTIPLAS E SINGULARES:
HISTRIA E MEMRIA DE ESTUDANTES UNIVERSITRIAS EM
TERESINA (1930-1970)
Recife
2002
MLTIPLAS E SINGULARES:
HISTRIA E MEMRIA DE ESTUDANTES UNIVERSITRIAS EM
TERESINA (1930-1970)
Recife
2002
Dr.
Durval
Muniz
de
MLTIPLAS E SINGULARES:
HISTRIA E MEMRIA DE ESTUDANTES UNIVERSITRIAS EM
TERESINA (1930-1970)
Aprovado em ____/____.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________________
Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jnior - Orientador
_________________________________________________________________________
Dra. Regina Beatriz Guimares Neto 1 Examinadora.
_________________________________________________________________________
Dra. Isabel Cristina Martins Guillen 2 Examinadora.
A minha famlia.
AGRADECIMENTOS
Ao Dr. Valmir Miranda, diretor da Empresa O Dia, por ter permitido a consulta aos
exemplares arquivados do Jornal O Dia e a Valdir da Silva Castro, que operacionalizou a
pesquisa naquela empresa.
Ednalva Assis, Rosemary Lima, urea Queiroz e Jacirene Moura, pela amizade e
imensa contribuio na construo das fontes utilizadas neste trabalho.
s funcionrias da Fundao CEPRO, do Arquivo Pblico do Piau e do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica, pela ateno e presteza com que atenderam s
solicitaes de consulta aos acervos daquelas instituies.
Solange Hiller, por ter possibilitado a consulta aos peridicos no catalogados da
Biblioteca Estadual Des. Cromwell de Carvalho.
Aos colegas do curso de Mestrado pela convivncia fecunda e afetuosa.
A minha imensa gratido a Ceclia Mendes, Clis Portella, Claudete Dias, Fides
Anglica Ommati, Glria Sandes, Irlane Abreu, Nerina Castelo Branco e Rosa Amlia Tajra
por terem me permitido compartilhar a emoo singular de suas memrias, tornando possvel
a construo da histria contada neste trabalho.
RESUMO
Este trabalho estuda a configurao das relaes de gnero e as condies histricas que
tornaram possvel a emergncia das mulheres, com formao superior. Ao mesmo tempo
procura pontuar de que maneira a passagem pelo ensino de terceiro grau marcou a vida das
mulheres que tiveram acesso a esse nvel de ensino, no perodo focalizado. O texto
construdo atravs de histrias de vida de mulheres que ingressaram no ensino superior e se
profissionalizaram, em Teresina, entre as dcadas de 1930 e 1970. As principais fontes
utilizadas so os depoimentos orais, a partir dos quais procurou-se articular as fontes
impressas (matrias jornalsticas, histricos escolares, documentos oficiais, memrias e dados
estatsticos), a fim de estabelecer dilogo entre o individual e o coletivo. Nessa trilha,
contextualizou-se o momento em que, tanto as mulheres esto passando a ingressar e a se
firmar no ensino superior, em Teresina, quanto desenvolvendo seus projetos de
profissionalizao. O processo de escolarizao das entrevistadas e as suas inseres no
sistema de ensino superior em Teresina so, tambm, destacadas no trabalho. Da mesma
forma, d-se destaque aos discursos feminino e masculino que, na imprensa, propiciavam
visibilidade s universitrias. As relaes de poder entre as entrevistadas e suas famlias, no
que diz respeito educao feminina, tambm, so objeto de anlise no presente trabalho.
Buscou-se, ainda, mediante os depoimentos, mostrar algumas mudanas ocorridas no
cotidiano das entrevistadas, aps o ingresso no ensino de terceiro grau, bem como o
desenvolvimento de suas trajetrias profissionais. Finalmente, analisam-se os discursos
feminino e masculino, veiculados pelos jornais, e que significavam a profissionalizao
feminina, com o intuito de delinear a imagem das mulheres enquanto profissionais.
Palavras-chave: gnero, memria, ensino superior.
ABSTRACT
This work studies the configuration of the genre relationships and the historical conditions
that made the emergence of women with collegiate degrees possible. Meanwhile looking to
pinpoint the ways that the collegiate experience marked the lives of the women who had
access to this level of teaching, in the focal period. The text is constructed around the stories
of women who entered the university and became professionals in Teresina between the
decades of 1930 and 1970. Oral depositions are utilized as the principal
source of
information while print sources (newspapers, magazines, scholastic records, official
documents and statistical data) are used to cross reference and articulate upon the subject in
order to establish a dialogue between the individual and the community. This path
contextualizes the time that women spent entering into and establishing themselves in the
world of higher education in Teresina while developing their professional careers. The
scholastic process of the interviewed and their insertion into the higher education system in
Teresina are also highlighted in this work. Also highlighted are the feminine and masculine
discussions that, in the press, propitiate visibility of the female university students. The
relationship of power between those interviewed and their families relating to feminine
education is also an object of analysis in this work. This work also looks to, through the
depositions, show some changes that have occurred in the daily life of the interviewed after
enrolling in the university; such as the development of their professional trajectory. Finally,
the feminine and masculine discussions, driven by the newspapers, and what the feminine
professionalization signified is analyzed with the intention of delineating the image of the
women while they are professionals.
Key Words: Genre, higher education, memory.
Descompasso
Me querem me
e me querem fmea,
me querem lder
e me fazem submissa,
me fazem omissa
e me cobram participao,
me impedem de ir
e me cobram a busca,
me enclausuram nas prendas do lar
e me cobram conscientizao,
me tolhem os movimentos
e me querem gil,
me castram os desejos
e me querem em cio,
me inibem o canto
e me querem msica,
me apertam o cinto
e me cobram liberdade,
me impem modelos
gestos
atitudes
e comportamentos.
E me querem nica, me castram
podam
falam
e decidem
por mim
e me querem plena.
Hilma Renauro
SUMRIO
1 INTRODUO.....................................................................................................................12
2 UMA PIONEIRA: DA ESCOLA MODELO ARTUR PEDREIRA FACULDADE DE
MEDICINA DO RIO DE JANEIRO.....................................................................................21
3 TEMPOS DE ESCOLA.........................................................................................................31
4 ASPIRANTES-A-ACADMICAS E INVESTIMENTOS NA EDUCAO.........................57
5 ACADMICAS NOS TEMPOS DE FACULDADE............................................................76
6 DE ASPIRANTES-A-ACADMICAS A PROFISSIONAIS.................................................105
7 PROFISSIONAIS, MES E ESPOSAS..............................................................................128
8 CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................162
FONTES E BIBLIOGRAFIA.................................................................................................168
1 INTRODUO
um
acontecimento que tem pouco mais de um sculo, pois s na dcada de 1880, que as
primeiras mulheres ingressaram nesse nvel de ensino.1 No Piau, data do incio do sculo XX
o acesso das primeiras mulheres ao ensino superior. Para isso, essas mulheres tiveram que se
dirigir para outros estados, visto que somente em 1931 foi instalada a primeira instituio de
ensino superior, no Estado. Trata-se da Faculdade de Direito, implantada em Teresina.
Na primeira metade do sculo XX, o acesso das mulheres do Piau ao ensino de terceiro
grau era bastante incipiente, embora comeassem a surgir as primeiras mulheres formadas em
alguns ramos do saber, como Medicina, Direito, Farmcia, Odontologia e Magistrio. Entre o
final dos anos 1950 e o incio dos anos 1970, expande-se a presena feminina nesse nvel de
ensino, em paralelo institucionalizao do ensino superior no Estado, com a implantao,
em Teresina, da Faculdade Catlica de Filosofia (FAFI, 1958), da Faculdade de Odontologia
(FOPI, 1960), da Faculdade de Medicina (FAMEPI, 1968) e, posteriormente, a instalao da
Universidade Federal do Piau (UFPI, 1968/1971), em Teresina, e tambm em Parnaba.
A proposta deste trabalho , portanto, compreender, mediante fragmentos de histrias de
vida de mulheres que ingressaram no ensino de terceiro grau, as relaes de gnero e as
condies histricas que tornaram possveis a emergncia das mulheres com formao
superior, em Teresina, entre os anos 1930 e o incio dos anos 1970.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 1979.
p. 203.
A respeito da trajetria dos estudos de gnero ver SCOTT, Joan. Histria das mulheres. In: BURKE, Peter
(Org.). A escrita da histria: novas perspectivas. So Paulo: UNESP, 1992. p. 63-95; SAMARA, Eni de
Mesquita et al. Gnero em debate: trajetrias e perspectivas da historiografia contempornea. So Paulo:
EDUC, 1997.
3
Maria Ceclia da Costa Arajo Mendes nasceu em 1941, em Teresina-PI, cursou o Bacharelado em Letras
Neolatinas, na Faculdade Catlica de Filosofia e a Licenciatura, na mesma rea, na Universidade Federal de
Minas Gerais. mestra em Educao, habilitao em Metodologia do Ensino pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Seguiu carreira na rea do magistrio superior, sendo autora de artigos na rea de educao e de
cultura. Atualmente, professora aposentada da Universidade Federal do Piau (UFPI) e Coordenadora de
Extenso e Cultura do Instituto Camillo Filho.
4
Maria Clis Portella Nunes, nasceu em 1934, em Valena-PI, cursou o Bacharelado em Histria e Geografia na
Faculdade Catlica de Filosofia. especialista em Histria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Seguiu carreira no magistrio superior, sendo autora de diversos trabalhos na rea de histria do Piau.
Atualmente, professora aposentada da UFPI e exerce atividades paroquiais.
5
Claudete Maria Miranda Dias, nasceu em 1951, em So Raimundo Nonato-PI. Formou-se em Histria na
Faculdade Catlica de Filosofia. mestre e Doutora em Histria pela Universidade Federal Fluminense.
professora titular do Departamento de Geografia e Histria da UFPI, tendo diversos trabalhos publicados na
rea de histria do Piau.
6
Fides Anglica de Castro Veloso Mendes Ommati, nasceu em 1945, em Floriano-PI. bacharela em Cincias
Jurdicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Piau e licenciada em Letras pela UFPI. mestra em Direito
Pblico pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seguiu carreira na rea de advocacia pblica e no
magistrio superior. membro da Academia Piauiense de Letras e autora de diversos trabalhos na rea
jurdica. Atualmente, professora aposentada da UFPI e reitora da Escola Superior de Advocacia do Piau.
7
Glria Maria Veras de Sandes Freitas, nasceu em 1947, em Teresina. Formada em Jornalismo e Comunicao
Social pela Universidade de Braslia, poetisa e jornalista. autora de diversos artigos e poesias. Seguiu
Redigimos o trabalho a partir das histrias de vida. Com base nas regularidades e
singularidades que emergem nos discursos das entrevistadas, compusemos os recortes
temticos da dissertao, atravs dos quais procuramos situ-las no tempo, com o intuito de
relacionar o individual e o coletivo. Nesse exerccio, buscamos articular as trajetrias de vida
das entrevistadas s informaes relativas s mulheres com formao superior encontradas
nas demais fontes pesquisadas.
Vale salientar que no foi nosso objetivo contar as histrias de vida das entrevistadas at
o momento atual, nem enfatizar todos os acontecimentos que marcaram as suas vidas. Tratase, na verdade, de objetivo mais modesto, pois enfocamos, principalmente, suas trajetrias
educacionais e profissionais. Dessa maneira, a abordagem do contexto no qual estavam
inseridas, tambm, partiu desses eixos temticos.
Na construo do texto, os documentos no foram concebidos como prova, mas como
material de trabalho. Portanto, no os hierarquizamos, procuramos coloc-los para funcionar
conforme nossos objetivos. Nesse percurso, considerando o argumento de Michel de Certeau,
ao dizer que o historiador longe de aceitar os dados, ele os constitui, uma vez que o
material criado por aes combinadas, que o recortam no universo do uso, que vo procurlo tambm fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego coerente. 11 Assim,
buscamos relacionar as fontes orais s impressas.
Questionar, portanto, a veracidade das informaes prestadas pelas entrevistadas no
foi nossa preocupao, buscamos, na verdade, responder as questes de pesquisa a partir das
imagens que essas mulheres projetaram a respeito de si mesmas ao narrarem suas histrias de
vida. Contudo, oportuno enfatizar que
carreira no servio pblico estadual e, atualmente, funcionria pblica aposentada da Fundao CEPRO e
militante do movimento de mulheres em Teresina.
8
Irlane Gonalves de Abreu, nasceu em 1942, em Teresina. Licenciou-se em Geografia pela Faculdade Catlica
de Filosofia, mestra em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Seguiu carreira no magistrio de nvel mdio e no magistrio superior, tendo trabalhos publicados sobre teoria
da geografia, geografia urbana e a respeito da cidade de Teresina. Atualmente, professora aposentada da
Universidade Federal do Piau, professora do curso de Geografia da Universidade Estadual do Piau (UESPI) e
da Faculdade Mafrense de Turismo e Cincias Humanas de Teresina (FAMA).
9
Maria Nerina Pessoa Castelo Branco, nasceu em 1934, em Teresina. bacharela em Cincias Jurdicas e
Sociais pela Faculdade de Direito do Piau e licenciada em Filosofia pela Faculdade Catlica de Filosofia, foi
jornalista, poetisa, integra a Academia Piauiense de Letras, tendo vrios livros publicados. Seguiu carreira no
magistrio superior. Atualmente, professora aposentada da Universidade Federal do Piau e assessora da
Fundao Estadual de Cultura e Desporto (FUNDEC).
10
Rosa Amlia Tajra Frana, nasceu em 1918, em Teresina. Formou-se em Medicina, em 1943, na Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como mdica pediatra no servio pblico
estadual e como profissional liberal por 35 anos. Atualmente, mdica aposentada pela Secretaria de Sade do
Estado.
11
CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000. p. 81.
A articulao entre fontes orais e impressas visou criar condies para a tessitura da
cena e do cenrio no qual as entrevistadas ingressaram no ensino de terceiro grau, em
Teresina, no perodo em estudo. Isso por concordamos com Albuquerque Jr., ao argumentar
que
MONTENEGRO, Antonio Torres. Histria oral e memria: a cultura popular revisitada. 3. ed. So Paulo:
Contexto, 1994. p. 19-20.
13
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A inveno do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed.
Massangana; So Paulo: Cortez, 1999. p. 32.
partir das histrias de vida, esse foi o recorte temporal que emergiu, tendo em vista que, Rosa
Amlia Tajra, a mais velha das nossas entrevistadas, ingressou no ensino superior no final dos
anos 1930; enquanto Claudete Dias, a mais jovem, iniciou, em 1970, seu curso superior. No
entanto, necessrio enfatizar que no temos por objetivo trabalhar exaustivamente esse
perodo temporal, o que no seria possvel nos limites deste trabalho. Com efeito, a
contribuio deste trabalho para o conhecimento do perodo estudado configura-se a partir do
enfoque das trajetrias de vida das entrevistadas e das condies histricas que nos permitem
compreend-las.
Em termos espaciais, a delimitao a cidade de Teresina, embora ao longo do texto
tenhamos feito referncias a outras cidades, visto que nem todas as entrevistadas cursaram o
ensino superior em Teresina.
Alguns autores nos ajudaram a compreender as trajetrias de vida estudadas. Nesse
sentido, Joan Scott, ao demonstrar a potencialidade do gnero como categoria de anlise
histrica, enfatiza a necessidade de percepo do masculino e do feminino como construes
histricas e culturais, em que homem e mulher devem ser vistos ao mesmo tempo como
categorias vazias e transbordantes. Vazias, porque no tm nenhum significado ltimo,
transcendente. Transbordantes, porque mesmo quanto parecem estar fixadas, ainda contm
dentro delas definies alternativas, negadas ou suprimidas.14 O que significa dizer que o
homem e a mulher so compostos de diferentes formas, ao longo do tempo, assim como num
dado momento emergem diferentes configuraes de masculino e de feminino.
Joan Scott argumenta que, numa primeira significao, gnero um elemento
constitutivo das relaes sociais baseadas nas diferenas percebidas entre os sexos, e numa
segunda perspectiva uma forma primria de dar significado s relaes de poder.15 Ora,
conforme a primeira proposio de Scott, o gnero comporta dimenses simblicas,
normativas, institucionais e subjetivas, a partir das quais se torna possvel dizer que a escola,
o mercado de trabalho e a poltica so como vrias instncias sociais e econmicas
generificadas. Em outros termos, o gnero um elemento importante na estruturao do
sistema escolar, do mercado de trabalho, da poltica e das identidades subjetivas femininas e
masculinas. De acordo com a segunda proposio, a autora nos mostra que as relaes de
gnero so relaes de poder e, nesse ponto, possvel acentuar o dilogo da autora com o
14
SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til de anlise histrica. Educao & Realidade, n. 20, v. 2, p. 93,
1995.
15
Ibid., p. 86.
filsofo Michel Foucault, na medida em que Scott toma como uma das referncias para
teorizar o conceito de gnero, a concepo de poder do filsofo.
Igualmente, Michel Foucault nos ajuda a entender as relaes de poder que tornaram
possveis a emergncia das mulheres com formao superior, ao nos ensinar a compreender o
poder como relao de fora, o poder como teia, nos dizendo que o poder no algo que se
adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a
partir de inmeros pontos e em meio a relaes desiguais e mveis.16
As reflexes de Jeni Vaitsman17, Suely Rolnik18 e Ana Paula Vosne Martins19, a respeito
das mulheres com formao universitria, tambm nos ajudaram a compreender as trajetrias
de vida das mulheres estudadas neste trabalho.
Jeni Vaitsman, em Flexveis e plurais, mediante o estudo de momentos da trajetria de
vida de homens e mulheres dos segmentos altos e mdios da classe mdia do Rio de Janeiro,
que passaram a ingressar no ensino superior a partir de meados dos anos 1960, aborda a
identidade, o casamento e a famlia em circunstncias ps-modernas. Vaitsman demonstra
que, nas trs ltimas dcadas do sculo XX, houve uma pluralizao e flexibilizao da
famlia. Isto porque a famlia conjugal moderna, caracterizada pela autora como hierrquica,
nuclear e marcada por papis dicotmicos significados conforme o gnero, foi deixando de
ser o modelo de famlia predominante nos segmentos sociais estudados. Passando a famlia a
configurar-se, portanto, sob arranjos diversos e mltiplos.
nesse processo, explica Vaitsman, que o ingresso feminino no ensino superior a partir
de meados da dcada de 1960 se constituiu em uma via para a democratizao das relaes de
gnero. Conseqentemente, acrescenta a autora, essas mulheres desafiaram duas dicotomias
que marcavam a viso de mundo e as prticas de gnero da gerao anterior: a primeira, entre
os papis pblicos e privados atribudos segundo o gnero; e a segunda, as normas de
comportamento sexual diferenciadas segundo o sexo.20
Suely Rolnik, em Cartografia sentimental: transformaes contemporneas do desejo,
andando por metrpoles da Amrica do Sul cartografou os sentimentos de uma gerao de
mulheres que comearam a viver as primeiras experincias coletivas intensas nos anos 1960,
16
FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade 1: a vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p.
89-90.
17
VAITSMAN, Jeni. Flexveis e plurais: identidade, casamento e famlia em circunstncias ps-modernas. Rio
de Janeiro: Rocco, 1994.
18
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformaes contemporneas do desejo. So Paulo: Estao
Liberdade, 1989.
19
MARTINS, Ana Paula Vosne. Um lar em terra estranha: a experincia da individualizao feminina. PsHistria, Assis-SP, n. 3, p. 77-91, 1995.
20
VAITSMAN, op. cit., p. 122.
seriam de duas ordens as possveis explicaes para esse fato. A primeira que a
mulher a desterritorializao por excelncia, e a introduo desse modo de produo
do desejo veio intensificar ainda mais sua deriva, intensificar a sensao de terremoto
que abala freqentemente os territrios de sua alma. A segunda que as mulheres
passaram no s, como os homens, para a condio de trabalhadoras livres, mas, ainda
por cima, para a condio de trabalhadoras fora de casa, situao que desconheciam.
No h ningum no planeta hoje, que no saiba da dor e da euforia dessa mutao.22
21
22
ROLNIK, 1989.
Ibid., p. 292.
significado da CEUC num tempo de mudanas era forjar um modelo de mulher que se
desdobrasse entre os domnios pblico e privado. 23 [Grifo da autora]
Como vemos, as referidas autoras destacam que as mulheres que estavam investindo no
ensino superior, entre as dcadas de 1950 e 1970, vinham ampliando a presena no espao
pblico e que esta mudana desacomodava o territrio existencial feminino construdo a partir
do casamento e da maternidade, na medida em que essas mulheres passavam a desenvolver
projetos pessoais voltados para a esfera pblica. Partindo dessas afirmativas e das referncias
tericas aludidas, buscamos contar parte da histria das mulheres entrevistadas, de modo a
delinear a configurao das relaes de gnero que as tornaram possveis. As respostas e as
questes a que chegamos o leitor ir descobrir ao longo dos seis captulos nos quais dividimos
este trabalho.
No captulo 1, mostramos a trajetria educacional de Rosa Amlia Tajra, entre a
segunda metade da dcada de 1920 e o incio dos anos 1940, com o intuito de enfatizar a
singularidade do caminho seguido pela entrevistada e as condies histricas que tornaram
possvel sua trajetria.
No captulo 2, destacamos a
elementar e mdio. Mediante esse enfoque, buscamos situ-las no contexto educacional das
dcadas de 1940 e 1970, abordando as possibilidades de acesso e permanncia na escola,
nesse perodo. Dessa maneira, procurando caracterizar as trajetrias educacionais das
entrevistadas e enfatizar como o processo de escolarizao foi marcando-lhes a memria.
No captulo 3, expressamos de que maneira a presena feminina no ensino superior ia
tendo visibilidade nos discursos veiculados na imprensa, nas dcadas de 1950 e 1960, assim
como observamos, mediante trechos dos depoimentos das entrevistadas, as relaes de poder
entre pais e filhas no que tange educao. Foi ainda objetivo desse captulo destacar os
investimentos familiares e individuais na educao superior feminina.
No captulo 4, estudamos a insero das entrevistadas no sistema universitrio, tanto em
Teresina quanto fora do Estado, assim como pontuamos de que modo a passagem pelo ensino
superior foi marcando o cotidiano dessas mulheres.
No captulo 5, discorremos sobre as trajetrias profissionais das entrevistadas e
destacamos suas condies de ingresso e de permanncia no mercado de trabalho.
No captulo 6, procuramos mostrar como a profissionalizao feminina ia sendo
significada pelos contemporneos e vivida pelas entrevistadas. Isso posto com o intuito de
23
emigram para Teresina. Em 1911, por exemplo, chegam cidade os jovens irmos Tomaz e
Tufy Jorge Tajra.
Tomaz Jorge Tajra logo comea a trabalhar como comerciante, tal qual os demais
membros da famlia, fundando a sua primeira loja, na qual vendia tecidos, armarinhos, rendas,
bicos, bordados e botes.
Pacheco.24
Em 1913, Isabel Sadi, de famlia libanesa, que emigrara para Teresina, em 1909, aos 11
anos de idade, ingressa na recm-criada Escola Modelo Artur Pedreira, que funcionava anexa
Escola Normal Oficial. Essa Escola tinha a funo no s de preparar meninas atravs da
escolarizao de nvel primrio para futuramente serem aproveitadas pela Escola Normal
Oficial, mas tambm de possibilitar a prtica pedaggica das estudantes do curso normal. A
menina Isabel, no entanto, no chega a concluir o primrio, estudando menos de um ano, visto
que a irm que a criava, dera a luz a duas meninas, ela precisou sair da escola para ajudar a
cuidar das sobrinhas recm-nascidas. Diante desse acontecimento, a trajetria de vida de
Isabel vai tomando rumos distanciados da escola, pois se encaminha para a vivncia do
casamento e da maternidade. Aos 14 anos, portanto, 2 anos aps o nascimento das sobrinhas,
Isabel casa-se com o comerciante Tomaz Jorge Tajra, tornando-se a senhora Tajra. Aps 2
anos de casada, em 1918, nasce a primeira filha do casal, Rosa Amlia Tajra.25
Esse pequeno trecho da histria de Isabel Sadi, a despeito de ser a personagem uma
imigrante, ilustrativo da trajetria da maioria das moas que viveram a juventude em
Teresina no incio do sculo XX. Poucos anos de estudo, quando tinham acesso educao
formal, casamento em tenra idade, significao da vida mediante a vivncia dos papis
tradicionais femininos me, esposa e dona de casa de maneira que a educao das
meninas/moas nesses anos era, sobretudo, voltada para o espao do lar. As mes ensinavam
as filhas a cozinhar, a lavar, a costurar, a bordar, a cuidar dos futuros filhos e maridos, posto
que as expectativas em relao ao futuro feminino eram o casamento e a maternidade. As
filhas das famlias mais ricas tinham um refinamento educacional adquirido mediante
rudimentos de leitura e escrita, alm da educao de salo. Em geral, passavam de 2 a 3 anos
na escola26, enquanto os rapazes dos mesmos segmentos sociais chegavam s instituies de
24
TAJRA, Marta Teresa. A imigrao dos Tajras para o Piau. Carta CEPRO, Teresina, v. 11, n. 1, p.5-26, dez.
1986.
25
FRANA, Rosa Amlia Tajra. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
26
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres plurais: a condio feminina em Teresina na Primeira
Repblica. Teresina: F.C.M.C., 1996. p. 61.
ensino de terceiro grau, formando-se na maioria das vezes em Direito, Medicina, Farmcia,
Engenharia.27
Nesse sentido, o caminho seguido por Isabel Sadi inseria-se nas prdicas sociais
dominantes quanto ao futuro feminino: deixar a escola logo nos primeiros anos de estudo para
exercer as funes e os papis que se esperava das mulheres, casar-se,
vivenciar a
maternidade e cuidar dos filhos e filhas e do marido. Embora essa trajetria no coincidisse
com as expectativas de todas as jovens desse contexto em termos educacionais, pois alm da
educao para o lar e dos rudimentos de leitura, o anseio pela ampliao dos nveis de
escolaridade era fato manifestado pelas mulheres em Teresina, no incio do sculo XX, assim
como em outros centros urbanos do Brasil, onde era constante nos peridicos femininos a
reivindicao por mais acesso educao formal. Assim, o discurso feminino relativo
educao , marcadamente, de reivindicao, de busca de ampliao dos nveis de estudo. No
peridico feminino A Borboleta editado em Teresina em 1908, por exemplo, era constante a
veiculao de matrias em prol do aumento da instruo feminina28. Em 1907, Maria Amlia
Rubim, uma das articulistas do peridico, conclua mesmo os preparatrios para o curso de
Direito.29
As jovens que buscavam educao formal no incio do sculo XX encontravam, por sua
vez, um quadro constitudo de aulas particulares primrias e por algumas escolas pblicas e
privadas, polarizadas pelas propostas pedaggicas que marcam o panorama educacional:
educao leiga x educao religiosa.30
No incio do sculo XX, as escolas particulares voltadas para a formao feminina eram
o Colgio Sagrado Corao de Jesus (1906), o Colgio Nossa Senhora das Dores, o Instituto
21 de abril e Colgio Benjamin Constant.31 O primeiro era feminino, os demais, mistos. O
Colgio Benjamin Constant, alm do curso primrio, ministrava aulas de nvel secundrio,
no profissionalizante, para rapazes e moas.32
O Colgio Sagrado Corao de Jesus, que se popularizou como Colgio das Irms, tinha
por intuito formar, sobretudo, o carter das meninas de acordo com os valores morais, o
modelo a ser seguido era o das prprias freiras, o objetivo era instrumentaliz-las, a partir dos
27
QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a Repblica: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo. 2.
ed. Teresina: UFPI, 1997. p. 99.
28
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho, op. cit., p. 78-9.
29
R.T.. Piauhy, Teresina, ano XVII, n. 925, p. 4, 19 out. 1907.
30
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho, op. cit., p.59-80.
31
Ibid., p. 65-6.
32
COLLEGIO Benjamin Constant. Piauhy, Teresina, ano III, n. 109, p. 4, 15 mar. 1915.
preceitos bblicos, para que fossem filhas, esposas e mes exemplares.33 Contudo, as demais
escolas particulares, a despeito de terem projeto pedaggico leigo, no buscavam encaminhar
as meninas/moas para atividades profissionais, embora a demanda feminina por trabalho se
fizesse presente. O interesse era prover-lhes de noes elementares de leitura e de escrita. Nos
currculos incluam-se noes de msica, trabalhos manuais e trabalhos de agulha. Disciplinas
que objetivavam propiciar um certo polimento s moas, bem como lhes dar formao para o
exerccio dos papis tradicionais femininos. Contudo, este tipo de ensino propiciava quelas
que no constituam famlia, ou enviuvavam, os meios para o sustento, atravs do
desenvolvimento das habilidades adquiridas, uma vez que podiam fazer uso dos
conhecimentos musicais e da habilidade com trabalhos manuais.34
Nas trs primeiras dcadas do sculo XX, a possibilidade de ampliao dos nveis de
escolarizao feminina, assim como a preparao para o trabalho, era oferecido pela Escola
Normal Oficial. Nesse perodo o funcionamento regular dessa escola ampliou os horizontes
femininos polarizados entre o lar e a Igreja, na medida em que as normalistas ampliavam seus
espaos na cidade, mediante o ingresso no magistrio. Nesse sentido, em 1925, a professora
normalista Jandira Campelo no discurso de colao de grau da Escola Normal, assim se
expressava:
este o nosso caso. Seria, para apavorar a cena lembrada e indita se daqui no
sassemos aparelhadas para lutar e vencer. Outro intuito alis no tem esta escola. O
casamento uma hiptese.
Da a necessidade de armar a mulher para triunfar pela inteligncia, se as suas graas,
as suas virtudes, formosura com que Deus a dotou e distinguiu no conseguirem
domar o corao masculino. Felizmente passou o tempo em que se punha em dvida o
intelecto feminino.35
No mesmo ano em que a professora Jandira Campelo proferiu este discurso, a filha mais
velha do casal Isabel e Tomaz Tajra, Rosa Amlia Tajra comea a estudar. Rosa Amlia
Tajra, assim como sua me, ingressou na Escola Modelo Artur Pedreira. Nesse perodo, a
Escola Modelo era considerada a melhor escola pblica de Teresina e polarizava com o
33
Colgio Sagrado Corao de Jesus, no que diz respeito formao, em nvel primrio, das
filhas dos setores mais abastados.36
Nos anos em que Rosa Amlia Tajra freqentou o curso primrio37, a feminizao do
magistrio, nesse nvel, caminhava a largos passos, sendo ocupado majoritariamente por
mulheres38. A presena das mulheres nesse espao vinha ganhando vulto desde a criao da
Escola Normal Oficial em 1910 e ia constituindo em uma das mudanas mais significativas
em termos educacionais das trs primeiras dcadas do sculo XX, na medida em que se
processava a substituio dos professores pelas professoras normalistas.
Quando Rosa Amlia Tajra conclui o primrio em fins de 1920, o curso normal era o
tipo de formao regular feminina. Contudo, diferente das jovens da sua gerao e do seu
segmento social, Rosa Amlia Tajra resolve fazer o ginsio no tradicional Liceu Piauiense, ao
invs de dar continuidade aos estudos na Escola de Adaptao que funcionava no mesmo
complexo da Escola Normal Oficial com vistas a ingressar no curso normal.
O Liceu Piauiense, hoje Colgio Estadual Zacarias de Gis e o Colgio So Francisco
de Sales, popularizado como Colgio Diocesano, eram, nesses anos, os principais
estabelecimentos que ministravam o curso ginasial, recebendo os filhos das famlias
abastadas. Por aceitar alunos e alunas, o Liceu Piauiense tornava possvel o acesso de algumas
poucas jovens que desejavam cursar o ginsio, como Rosa Amlia Tajra.
36
A memria de Rosa Amlia Tajra nos permite dizer que, embora o caminho tradicional
seguido pelas moas de mais recursos fosse o curso normal, outras possibilidades iam se
colocando para as jovens, uma vez que podiam cursar o ginsio. E na gerao de Rosa Amlia
Tajra, outras moas tambm optaram por seguir este caminho, conforme ela destaca, ao
recordar que na sua turma havia cerca de 7 moas e de 20 rapazes.
No perodo em que Rosa Amlia Tajra estava concluindo o curso ginasial, Arimatia
Tito Filho, bacharel em Direito e professor, ingressava no tradicional Liceu Piauiense.
Relembrando os seus tempos de ginsio, A. Tito Filho nos conta que
ingressei no Liceu Piauiense como estudante do curso ginasial, no tempo em que este
se integrava de cinco sries. [...] Os meus colegas de turma foram vitoriosos na vida,
com justia. Entre trinta e tantos, a esto alguns, como Tasso Rego (Ministro
Pblico), Jos Lopes da Cunha (Crtico Literrio e Jornalista), [...] Wilson Brando
(mestre universitrio, deputado estadual), Joo de Deus Fonseca Filho (industrial), e
quantos mais, inclusive as garotas virtuosas, que quase todas se casaram.40
[...] Eu gostava de estudar, acho que a busca de conhecimento em mim era to grande
que era uma compulso, estudava mesmo, era uma compulso [...] sempre fui assim,
sempre fui estudiosa, no ginsio [no primrio] nem tanto, porque menino de primrio
7, 8 anos, 9 anos s brincadeira, mas nunca repeti ano, d para perceber que eu
40
TITO FILHO, A. O velho Liceu. In: OLIMPIO, Jos. Liceu Piauiense: sntese histrica. 3. ed. rev.aum.
Teresina: [s.n.], 1993. p. 11.
Concludo o ginsio em 1935, a paixo pelo saber em Rosa Amlia Tajra, conjugada aos
valores do pai, um autodidata, que projetava a formao de terceiro grau para os filhos e as
filhas, como acentua a entrevistada, levou-a seguir outras trilhas. Nesses anos, j estava
funcionando, em Teresina, a primeira escola de nvel superior, a Faculdade de Direito,
fundada em 1931, no entanto como a aspirante-a-acadmica no desejava seguir a carreira
jurdica, mas a de farmacutica, Rosa Amlia Tajra, ento, seguiu, apoiada pelos pais, para
Belm, em 1936.
Em 1932, foi decretada a Reforma Francisco Campos que alterou o ensino secundrio
no pas, dividindo-o em dois ciclos: um formativo de 5 anos, e outro completar de 2,
subdivido em trs reas, o pr-medicina, farmcia e odontologia, pr-engenharia e prdireito.42 Em 1936, em Belm, aparentemente no havia sido implantado o curso
complementar para Farmcia, pois a jovem Rosa Amlia Tajra retorna a Teresina,
impossibilitada de continuar esse curso na cidade.
Diante desse fato, o caminho de Rosa Amlia Tajra passou a ser a capital da Repblica,
onde j estudavam dois primos e uma prima. Assim, Rosa Amlia parte para o Rio de
Janeiro.
Eu tinha dois primos que estudavam Medicina no Rio de Janeiro, eu iria fazer
Farmcia, ento nos comunicamos para saber se l tinha possibilidade de eu ir estudar,
esse tal curso complementar. Deu positivo. Eu fui sozinha daqui de Teresina, meu pai
foi me deixar em So Lus, no tinha avio aqui em Teresina, [...] fui direto para
Recife, pernoitei na casa de uns amigos de papai, [...]. Sa de Recife de manh cedo e
fui chegar s 4 horas da tarde no Rio de Janeiro. [...] Chegando l, o curso j estava
marcado para ser iniciado, eu logo fui l me matricular.43
Chegando ao Rio de Janeiro, Rosa Amlia Tajra instala-se na mesma penso em que
moravam os primos e a prima para vivenciar, assim como algumas poucas moas, a
41
experincia de passar pelo ensino de terceiro grau, visto que mesmo no Rio de Janeiro e em
So Paulo, cidades que estavam passando por um processo de metropolizao, a presena
feminina no ensino superior, nesses anos, ainda era bastante incipiente, concentrando-se em
So Paulo nos cursos de Farmcia, Odontologia e Medicina.44
E, em Teresina, que repercusso causou a sada dessa aspirante-a-acadmica, que,
sozinha, ruma para o Rio de Janeiro para dar continuidade aos estudos?
A histria de Rosa Amlia Tajra e a admirao local que esta causou permitem-nos dizer
que nos anos 1930 coexistiam perspectivas diferenciadas em relao formao feminina,
embora o encaminhar das jovens dos segmentos alto e mdio, para cursarem o ensino
superior em outros Estados, no fosse ainda um caminho tpico. Este era um caminho seguido
pelos rapazes, pois era prtica corrente nas famlias da elite propiciarem aos filhos o acesso ao
ensino superior, enquanto a formao regular das filhas era o curso normal e, para aquelas que
no desejassem esse tipo de formao, o curso ginasial. Aos homens deveriam ser dadas as
possibilidades para que desempenhassem bem os seus papis de pai e provedor familiar e s
mulheres a formao necessria para serem boas mes e esposas e professoras, caso
necessitassem ou desejassem. Nesse sentido, a escola ideal seria a Escola Normal, pois o tipo
de educao fornecida tambm contribua para a formao de moas casadouras, ao buril-las
para o casamento.
importante ressaltar que no decorrer da dcada de 1930 e, mesmo antes, outras jovens
filhas das famlias da elite local j haviam seguido caminhos semelhantes aos de Rosa Amlia
Tajra. o que nos sugere os dados estatsticos apresentados pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE)46, bem como a referncia atuao da Doutora Mrcia Cruz
44
ingressado nas instituies de ensino de terceiro grau na dcada de 1930. INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATSTICA. Censo demogrfico: populao e habitao; censos econmicos: agrcola,
industrial, comercial e dos servios. Rio de Janeiro, 1952.
47
QUEIROZ, Teresinha. Notas sobre educao no Piau. [1989]. Monografia apresentada no curso de PsGraduao em Histria Universidade de So Paulo, Teresina, [1989]. p. 39.
48
Sobre a presena feminina em exames preparatrios ver QUEIROZ, 1997, p. 80.
49
Em 1940, em todo o Piau havia 432 homens formados e somente 14 mulheres, dos quais 212 homens e 11
mulheres, em Teresina, de modo que o percentual de mulheres formadas em relao ao total de formados na
cidade era de 4,93%. Em 1950, o total de diplomados em todo o Estado passa a ser 591, dos quais 567
(95,94%) eram homens; 24 (4,06%), mulheres. Cf. Censo demogrfico de 1940; INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA. Censos demogrfico e econmico. Rio de Janeiro, 1956.
Contudo, na dcada de 1940 quando Rosa Amlia Tajra comea a trabalhar como
mdica pediatra, algumas mulheres que nasceram na dcada de 1930 comeam a se
escolarizar, enquanto outras futuras aspirantes-a-acadmicas esto nascendo. Essas mulheres,
entre as dcadas de 1950 e 1970 vo trilhar caminhos semelhantes ao de Rosa Amlia Tajra,
investindo no estudo e no trabalho. Como foram os casos de Clis Portella, Ceclia Mendes,
Claudete Dias, Fides Anglica, Glria Sandes, Irlane Abreu e Nerina Castelo Branco. No
entanto, o perodo em que essas mulheres se escolarizam nos nveis elementar e mdio vai
assumindo alguns contornos diferenciados do vivido por Rosa Amlia Tajra nas dcadas de
1920 e 1930. A propsito, a respeito das trajetrias educacionais dessas mulheres e do
contexto educacional no qual estavam inseridas que discorreremos no captulo seguinte.
3 TEMPOS DE ESCOLA
No incio dos anos 1940, Clis Portella e Nerina Castelo Branco, nascidas em 1934,
ingressam na escola. Nerina Castelo Branco comea a estudar no Colgio das Irms, que
continuava a ser a principal escola formadora das filhas dos setores mais abastados. J Celis
Portella ingressa na Escola Modelo Artur Pedreira, que, por sua vez, era a escola pblica
primria de maior prestgio em Teresina.
Ao recordar os seus tempos de primrio Clis Portella nos diz que
[...] eu estudei na Escola Modelo todo meu curso primrio [...] a Escola Modelo era
uma escola maravilhosa! muito boa! e a professora era a professora Iara Lago, tinha
sido a aluna mais brilhante do curso de formao dela, das normalistas e ela eu acho
que estava ingressando e a primou por ser uma boa professora, era excelente, assim
muito boa, muito aberta. [...] Eu sempre tive essa professora, essa era a forma de
funcionamento da Escola Modelo, uma professora para cada turma, professora
dedicada mesmo. Agora a gente tinha muitas coisas que eu hoje no vejo, no vejo
que tenha, pode at ser que tenha, mas eu nunca vi professora primria ministrar aula
de arte, a gente tinha [...] eu sempre cantava, danava, tinha aqueles saraus mesmo.
Convidava todas as outras turmas, a gente era uma coisa assim que elas tinham muita
preocupao de novos mtodos.50
A memria de Clis Portella reteve um dos traos que caracterizou a Escola Modelo
Artur Pedreira: o alto nvel das professoras e a qualidade do ensino ministrado, tendo em vista
que este estabelecimento funcionava como escola de aplicao, em que as estudantes do curso
normal exerciam o tirocnio, como era chamado, na poca, o estgio curricular, quando
procuravam desenvolver novas metodologias de ensino.
50
NUNES, Clis Portella. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, abr. 2002.
No incio dos anos 1940, quando Clis Portella cursava o primrio, as professoras
normalistas j compunham quase 80% da rede escolar primria de Teresina e quase 50% do
total do corpo docente primrio de todo o Estado.51 Igualmente, por esses anos, o acesso
feminino escola vinha sendo ampliado. A partir do estudo de dados divulgados no censo
demogrfico de 1940, possvel acentuar que, embora as mulheres continuem sendo menos
alfabetizadas do que os homens, nos grupos etrios mais jovens, entre 10 e 19 anos, a
proporo de mulheres que sabe ler e escrever mais ampla do que a masculina, isto porque,
em face da expanso da rede escolar ocorrida durante os anos 1930, as mulheres mais jovens
passaram a ter mais acesso escola do que tiveram as das geraes anteriores. Em 1940, alm
do ndice de alfabetizao feminina nos grupos etrios mais jovens ser mais elevado, as
mulheres eram a maioria dentre os que haviam concludo os cursos primrio e ginasial.52
Dentre os alunos matriculados na rede escolar primria em Teresina, em 1944, a matrcula
feminina tambm era mais ampla.53
vlido ressaltar, no entanto, que, embora a expanso da rede de ensino durante os anos
1930 tenha favorecido a ampliao da presena feminina no mbito escolar54, o acesso
escola primria ainda era restrita a uma pequena parcela da populao feminina e masculina,
pois a maioria continuava margem do sistema escolar. Em 1940, 64,44% da populao de
Teresina no era alfabetizada, enquanto que no Piau o ndice de analfabetismo era de
77,11%.55
ento nesse cenrio, em que a maioria da populao feminina e masculina no tinha
acesso escola, que Clis Portella vai dando continuidade aos estudos. Em 1946, aps
concluir o primrio, presta o exame de admisso no Liceu Piauiense para ingressar no curso
ginasial. A esse respeito Clis Portella nos conta que
[...] eu estudei um ano pra fazer o curso de admisso, porque queria passar no Liceu,
nesta poca o nvel de dificuldade era igual ao fazer um vestibular, proporcionalmente
51
falando, claro!. E eu realmente passei um ano estudando a fiz graas,... tambm foi o
nico ano que eu estudei, passei bem e realmente fiz, comecei, fiz o Liceu, depois a
turma toda do Liceu passou para a Escola Normal [...] s as mulheres, ficaram os
homens. Essa foi toda a minha desgraa! s as mulheres. Foi o professor Wilson
Brando que fez essa desgraa toda, passou as mulheres todas para a Escola Normal e
ficaram os homens no Liceu, mas quando eu acabei o ginsio que era at o 4 ano, eu
voltei para o Liceu, para estudar o cientfico l no Liceu, a eu me esbaldei! porque a
turma era mista, no era nem que eu ia, ... porque acho isso um negcio
discriminatrio, que no tinha nada a ver, eu j sofria represso em casa, no queria
mais outra e estudei no Liceu [...]. 56
secundrio.58 Assim, como vimos, em 1948, todas as moas que cursavam o ginsio no Liceu
Piauiense foram transferidas compulsoriamente para a Escola Normal Antonino Freire,
extinguindo-se a freqncia mista no Liceu Piauiense. Essa situao perdurou at a primeira
metade da dcada de 1950, quando novamente o Liceu Piauiense passou a ter freqncia
mista.59 No entanto, no se encerra nessa dcada a separao feminina e masculina no ensino
secundrio, pois mesmo atendendo uma clientela mista, em meados dos anos 1960, quando
Glria Sandes estudava nessa escola, as moas e rapazes estudavam em turnos diferentes.60
Aparentemente, essa configurao perdurou at os primeiros anos da dcada de 1970.
Nos anos 1940, contudo, nas escolas primrias pblicas, a educao conjunta feminina
e masculina continuou sendo largamente praticada. Assim, Ceclia Mendes e Irlane Abreu,
que iniciam suas trajetrias em fins de 1940, vo estudar em escolas mistas. Irlane Abreu, que
cursou o primrio na Escola Modelo Artur Pedreira relembra que nessa escola era
Ah! menino, menina, sabe? e ningum se importava com isso, voc sabe? que a gente
no sacava essa diferena de menino e menina. Vivia todo mundo numa boa, acho que
sim, ningum percebia isso, eu lembro as festas bonitas que se fazia na escola, eram as
primeiras comunhes, que eram na escola, as crianas todas iam fazer a primeira
comunho na Igreja do Amparo e voltavam para a escola para comemorar l. 61
Ceclia Mendes, que estudou o primrio no grupo escolar Baro de Gurguia, nos conta
que
no primrio a escola era mista [...] as turmas eram mistas, as carteiras eram de dois
lugares, a gente sentava com menino, no tinha problema nenhum. Ns tnhamos aula
separada era de educao fsica, pras meninas era ginstica rtmica, coisa mais leve,
pros meninos faziam esporte mais pesado, jogavam futebol. Eu me lembro que havia
58
A Lei Orgnica do Ensino Normal, Decreto-lei n 8530 de 02/01/1946, subdividiu o curso normal em primeiro
e segundo ciclos; o primeiro, para a formao de regentes para o ensino primrio, com durao de 4 anos; o
segundo, para formao de professoras primrias, com durao de 3 anos. Essa legislao estabeleceu que as
escolas normais deveriam manter um curso ginasial, como tambm centralizou o ensino normal, fixando as
normas para sua implantao em todo o territrio nacional. No Piau, a adaptao do ensino normal nova
legislao federal foi feita atravs do Decreto-lei n 1.402 de 27/01/1947 e, em sua observncia, foi criado o
curso ginasial da Escola Normal Oficial, que passou a denominar-se Escola Normal Antonino Freire, mediante
a Lei n 46, de 18/12/1947. Ver ROMANELLI, op. cit., p.164-5; BRITO, Itamar Sousa. Histria da educao
no Piau. Teresina: EDUFPI, 1996. p. 98-105.
59
OLMPIO, Jos. Liceu Piauiense: sntese histrica. 3. ed. rev. aum. Teresina: [s.n.], 1993. p. 33.
60
SANDES, Glria. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
61
ABREU, Irlane Gonalves de. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, abr. 2002.
Como vemos mediante essa memria de Ceclia Mendes, embora a escolarizao mista
neutralizasse algumas diferenas de gnero, uma vez que meninos e meninos no mais
estavam sendo submetidos a currculos distintos, persistiam diferenciaes, pois a educao
fsica era distinta: s meninas, por serem consideradas delicadas, a ginstica rtmica; aos
meninos, por serem tidos como mais fortes, o futebol. Essa distino quanto s aulas de
educao fsica esta relacionada ao fato dessa rea continuar sendo um lugar privilegiado de
produo de diferenas na constituio da identidade de gnero, como acentua Guacira Lopes
Louro, ao dizer que:
Entre as dcadas de 1940 e 1960, dada a configurao das redes de ensino de nvel
primrio e ginasial as meninas/moas dos setores altos e mdios compunham trajetrias
escolares plurais: umas estudaram do primrio ao ensino mdio em escolas pblicas, umas nas
escolas particulares e outras em ambas as escolas. Conseqentemente, algumas estudaram
tanto em escolas mistas quanto femininas, como ocorreu com Ceclia Mendes e a Irlane
Abreu, que, aps conclurem o primrio, prestam exame de admisso no Colgio das Irms e
passam a cursar o ginsio nessa escola. Na verdade, essa trajetria no era um caso isolado,
tendo em vista que era comum o fato das meninas/moas cursarem o ensino primrio nas
escolas pblicas e o ginsio em escolas particulares, pois as escolas pblicas predominavam
na rede de ensino primrio, de modo que parte dos filhos e filhas das famlias dos setores altos
e mdios estudava nesse tipo de escola, principalmente na Escola Modelo Artur Pedreira.
62
MENDES, Maria Ceclia da Costa Arajo. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina,
maio 2002.
63
LOURO, Guacira Lopes. A construo escolar das diferenas. In:______. Gnero, sexualidade e educao:
uma perspectiva ps-estruturalista. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997. p. 72.
J o ensino ginasial, que constitua o primeiro ciclo do ensino mdio secundrio, era
oferecido, sobretudo, pelas escolas particulares. Os principais estabelecimentos pblicos que
ministravam esse tipo de ensino eram o Liceu Piauiense e a Escola Normal Antonino Freire,
sendo as vagas ofertadas por essas escolas insuficientes para absorver a demanda por esse
nvel de ensino. Predominava, assim, a iniciativa privada na oferta de curso ginasial. O
Ginsio Leo XIII (1937), o Colgio Demstenes Avelino (1942), o Ginsio Desembargador
Antonio Costa (1945) e as escolas confessionais Colgio das Irms (1906) e Colgio
Diocesano (1906) eram as principais escolas particulares que ministravam o ginsio. No h
indcios de que o ensino ministrado nessas escolas fosse de melhor qualidade do que o
oferecido nos estabelecimentos pblicos, visto que o quadro docente destes era to qualificado
quanto o daqueles.
Com efeito, a predominncia do ensino particular na rede de ensino ginasial tornava o
sistema escolar mais seletivo, pois ficava margem da escola mdia a maior parte da
populao feminina e masculina que conclua o primrio, posto que aquelas e aqueles que no
pudessem arcar com as mensalidades escolares e nem conseguissem passar no concorrido
exame de admisso das escolas pblicas, encerravam suas trajetrias escolares. Portanto,
aqueles e aquelas que continuavam os estudos eram uma minoria, pertencentes em geral aos
extratos sociais mais elevados, tanto por possuir meios para se preparar para o exame de
admisso nas escolas pblicas, quanto por ter condies financeiras para estudar nas escolas
particulares.
64
Enquanto Clis Portella e Nerina Castelo Branco estavam cursando o segundo ciclo do
ensino mdio, Ceclia Mendes e Irlane Abreu estavam estudando o ginsio no Colgio das
Irms e Fides Anglica iniciava sua trajetria escolar ingressando na mesma escola.
Em 1955, aps concluir o ginsio, Ceclia Mendes ingressa no curso cientfico no Liceu
Piauiense e, em 1959, Irlane Abreu passa a estudar o clssico na mesma escola. O fato de
Ceclia Mendes e de Irlane Abreu cursarem o segundo ciclo do ensino secundrio no Liceu
Piauiense relaciona-se oferta desse nvel de ensino nas escolas da cidade. Em 1943, um ano
aps ter sido decretada a reforma do ensino secundrio, o Liceu Piauiense passa a oferecer o
segundo ciclo do ensino secundrio. No ano seguinte, o Colgio So Francisco de Sales faz o
mesmo. O Colgio das Irms, no entanto, que vinha formando as filhas das famlias mais
abastadas de Teresina e do interior, no implanta de imediato essa modalidade de ensino,
oferecendo os cursos ginsio e normal, sendo somente em 195965, que a escola passa a
oferecer o segundo ciclo do ensino secundrio. Assim, as moas que no desejavam cursar o
normal, e sim, um dos cursos secundrios,
Colgio Demstenes Avelino que, desde a segunda metade da dcada de 1940, vinha
oferecendo essa modalidade de curso. O Liceu Piauiense teve um importante papel na
formao das moas dos segmentos mais abastados, principalmente, daquelas que cursaram o
segundo ciclo do ensino secundrio entre a segunda metade da dcada de 1940 e os anos
1950, como foram os casos de Clis Portella e Ceclia Mendes, que concluram o curso
cientfico em 1953 e 1958, respectivamente.
Na dcada de 1950, quando essas jovens estavam concluindo os seus cursos de nvel
mdio, a demanda por educao ia se expandindo. Consultando as fontes jornalsticas,
observamos que a maioria das matrias que versam sobre educao tinha por temtica a
crescente demanda por escolas nos nveis elementar e mdio. Em 1956, por exemplo, um
cronista escreve que
todo mundo tem o direito de se educar e de instruir. [...] A instruo deve ser, portanto
para todos os indivduos, sem distino de classes social, de situao econmica ou
de sexo. A aristocratizao do ensino no mais para a nossa poca. No s o filho
do burgus ou do potentado que deve freqentar escolas, colgios, academias ou
65
CARVALHO, Maria da Salete Brito de. Da serra da Ibiapaba ao campus da ininga. Teresina: [s.n., 1981]. v.
1. Mimeografado. p. 132.
66
67
de expandir o nmero de escolas, a procura por educao formal configurava-se para alm das
possibilidades de atendimento. Em 1958, a professora Cristina Leite argumentava:
torna-se cada vez mais angustiosa a situao dos pais de famlia em nossa bela cidade
que, como em todos os rinces do territrio brasileiro, enfrentam o problema do
crescimento: - As escolas existentes no bastam para atender ao nmero cada vez
maior dos que necessitam de instruo primria.
s vezes, nos grupos, vem-se cenas de splicas e lgrimas comoventes para que se
d um jeitinho do filho ser aceito.
Os colgios pagos no oferecem soluo, pois que de modo geral, todos enfrentam
grave crise financeira.
H erro bsico e fundamental, sim, no fato de no se criarem maior nmero de
escolas. Se no podem construir mais prdios, dem-se aulas em 3 turnos ou
construam barraces como j se fez e se faz em S. Paulo....68
No incio dos anos 1960, a crescente demanda por educao vinha produzindo um
quadro diferente daquele vivido por Irlane Abreu, que, como sabemos, iniciou o curso
primrio no final dos anos 1940, na Escola Modelo Artur Pedreira, tendo por professora sua
me, Ismarina Abreu.
[...] Uma das coisas que me espantou quando eu sa da Escola Modelo para o Colgio
das Irms, j fazia o ginsio, e a mame ficou l... Ento a gente sabia.... que no ano
seguinte, por exemplo, a turma do 2 ano seria fatalmente a turma do 3, no
aumentava nem diminua, um ou dois alunos. Um dia a mame chegou: - fila na
Escola. Eu digo: - fila? quer dizer a gente..., a populao era to limitada, voc sabia
at a clientela que ia freqentar a Escola Modelo, classe aps classe, tambm a escola
era uma escola boa, escola pblica, mas que tinha algumas coisas interessantes [...].69
68
69
LEITE, Cristina. A instruo em Teresina. O Dia, Teresina, ano VIII, n. 542, p. 2, 2 mar.1958.
ABREU, 2002.
urbanizao e dos fluxos migratrios desencadeados no Estado a partir dos anos 195070.
Nesses anos, a populao urbana do Piau passa a crescer em nveis superiores ao da
populao rural, sendo Teresina a regio que vai passando a ter a maior concentrao
urbana71. Alm de constituir-se em plo atrativo da populao rural e das cidades pequenas do
interior do Piau e do Maranho, por ser a capital do Estado e sede poltica e administrativa,
Teresina vai atraindo homens e mulheres que vm buscar melhores nveis de escolarizao.
Isso porque, no decorrer das dcadas de 1950 e 1960, embora seja um contexto de ampliao
da rede escolar e do nmero de matrculas em todos os nveis, a implantao do sistema de
ensino se processa, sobretudo, na zona urbana, de modo que no meio rural eram pouqussimas
as oportunidades de escolarizao. Acrescente-se, ainda, que a estrutura curricular da escola
rural no privilegiou a aprendizagem voltada para as prticas agrcolas, e sim, para o exerccio
de atividades urbanas.72
Ademais, no interior do Estado a maioria dos municpios oferecia apenas o ensino
primrio, de maneira que, para a populao feminina e masculina que buscava dar
continuidade aos estudos, Teresina figurava como a cidade que oferecia dentro do Estado as
maiores possibilidades de acesso escola em todos os nveis. Nesse sentido, considerando as
causas do processo migratrio piauiense, Bacellar e Lima acentuam que a busca de educao
escolar constitui o terceiro fator impulsionador da sada da populao do campo rumo zona
urbana, havendo dentre os adultos que deixam a zona rural uma parcela bem situada
economicamente, capaz de prosseguir no sistema escolar apoiada pela famlia, em busca de
melhor status.73
Buscar ascenso social mediante a escolarizao de nvel mdio e superior vai se
constituindo em investimento das classes mdias no Brasil nos anos 1950 e 1960, visto que a
intensificao da urbanizao e da industrializao vai criando maiores chances de acesso
escola, bem como instituindo meios de insero da populao feminina e masculina
escolarizada no mercado de trabalho. Em termos locais, importante pontuar que o Piau vai
se urbanizando, embora assuma posio perifrica no processo de industrializao, pois na
diviso nacional do trabalho vai se constituindo em plo consumidor de produtos
70
A respeito do processo migratrio piauiense, ver BACELLAR, Olavo Ivaho de B.; LIMA, Gerson Portela.
Causas e tendncias do processo migratrio piauiense. Teresina: Fundao CEPRO, 1990. (Relatrio de
Pesquisa, 12).
71
Cf. FUNDAO CEPRO. Anlise do processo de urbanizao no Piau. Teresina, 1985. (Estudos Diversos,
26). p. 38-61.
72
BACELLAR; LIMA, op. cit., p. 127.
73
Ibid., p. 149.
Mas no era somente a populao estudantil feminina e masculina absorvida pela escola
que vinha crescendo, como acentua o cronista, ultrapassando o universo dos que tinham
acesso escola, ampliava-se o segmento que pressionava o sistema escolar. O Liceu Piauiense
e a Escola Normal Antonino Freire no vinham propiciando acesso a todas as moas e rapazes
que desejavam continuar os estudos ao trmino do ensino primrio. Em 1960, folheando o
jornal O Dia, lemos:
A respeito das transformaes econmicas ocorridas no Piau em virtude do declnio do extrativismo vegetal e
da integrao do Estado na diviso nacional do trabalho ver MEDEIROS, Antonio Jos. Movimentos sociais e
participao poltica. Teresina: CEPAC, 1996. p. 15-52; FUNDAO CEPRO, op. cit.
75
COLGIO Estadual do Piau. O Dia, Teresina, ano V, n. 316, p. 1, 1955.
76
CUNHA E SILVA. Novas modalidades instruo. O Dia, Teresina, ano X, n. 836, p. 4, 25 dez. 1960.
realizao do exame de admisso nos ginsios particulares, onde cursavam o primeiro ano e,
no ano seguinte, pediam transferncia para as escolas estaduais. Sobre este acontecimento
refletia um cronista em 1967:
Essa expanso da demanda por educao, embora seja uma das questes emergentes em
termos educacionais nas dcadas de 1950 e 1960, no toca diretamente a vida escolar das
mulheres entrevistadas, tendo em vista que, por pertencerem aos setores sociais mais
abastados, tinham condies para prosseguir no sistema escolar, pois, se por um lado no
conseguissem ingressar nas escolas pblicas; por outro, podiam arcar com as mensalidades
das escolas particulares. Nesse sentido, importante dar visibilidade existncia de homens e
mulheres que encerram suas trajetrias escolares, ainda na escola primria, por falta de meios
para continuar estudando, para que se possa realar a diferena da trajetria das nossas
entrevistadas no sistema escolar, tendo em vista que elas se inserem na pequena parcela da
populao feminina e masculina que permanecem na escola, logrando obter os mais altos
nveis de escolarizao.
Todavia, Fides Anglica e Glria Sandes, que cursaram o ensino mdio na dcada de
1960, foram contemporneas de aes governamentais com vistas expanso da rede escolar
de nvel mdio. Na administrao de Chagas Rodrigues (1959-1962), atravs de convnios
com o INEP e o Ministrio da Educao e Cultura (MEC), foram construdos ginsios no
interior do Estado, com o intuito de ampliar os nveis de escolarizao das moas e dos
rapazes que concluam o ensino primrio e que, por no terem condies financeiras de
ingressar nas escolas particulares, perdiam a chance de expandir seus nveis educacionais.
Alm da criao dos ginsios, o governo estadual transferiu recursos para a iniciativa privada,
77
EXPANSO do Ensino Mdio. O Dia, Teresina, ano XV, n. 2076, p. 1/8, 7 mar. 1967.
atravs da concesso de bolsas de estudo para alunos e alunas cursarem o ensino mdio nos
estabelecimentos particulares em Teresina e no interior do Estado.78
Em 1965, no governo de Petrnio Portela (1963-1966), foram construdos os prdios do
Ginsio lvaro Ferreira em Teresina e dos Ginsios Estaduais de Jos de Freitas, Floriano,
Esperantina, Luzilndia, Pio IX e Uruui. O nmero de estabelecimentos de ensino mdio
estaduais elevou-se de 8 em 1963, para 27 em 1965, havendo um crescimento substancial da
rede escolar de nvel mdio e do nmero de matrculas, que em 1963 era 2750 alunos e
alunas, passando a ser 20218 alunos e alunas, em 1965.79
Em Teresina, em 1966, foram criadas, anexas ao Liceu Piauiense, as unidades
Conselheiro Saraiva, Paulo Ferraz, Joel Costa, Duque de Caxias e Ansio de Abreu e So
Francisco de Assis, que possibilitaram um aumento significativo da quantidade de vagas e de
matrculas no ensino mdio. Conforme Jos Olimpio, somadas as matrculas do Liceu
Piauiense e das unidades anexas chegou-se cifra de mais de 5 mil alunos e alunas
matriculadas.80
Com efeito, esses investimentos possibilitaram aumentar os nveis de escolarizao
feminina e masculina, pois, em 1960, cerca de 26% do total da populao de Teresina que
estudaram o correspondente ao ensino primrio concluram o primeiro ciclo do ensino mdio,
dos quais cerca de 60% cursaram o segundo ciclo desse nvel de ensino; enquanto que em
1970, 28,81% dos que concluram o curso primrio, chegaram ao primeiro ciclo do ensino
mdio, sendo que, 65% desses concluram o segundo ciclo. No que refere s trajetrias
femininas, conforme o censo demogrfico de 1960, as mulheres predominam em todos os
nveis de ensino, exceto no ensino de terceiro grau e, em 1970, essa tendncia se mantm,
pois a participao feminina alm de ser mais ampla do que a masculina, exceo do
superior, se expande em relao ao decnio anterior.81
Contudo, esse crescimento da rede escolar no possibilitou o acesso escola de todas
aquelas e aqueles que buscavam se escolarizar, uma vez que, parte considervel da populao
escolarizvel continuou fora da escola. O que no se constitui apangio local, mas
78
analfabetismo era de 67,59%, ao tempo em que, dentre os que tiveram acesso escola,
predominavam os que detinham o nvel de escolarizao elementar. Em 1970, em Teresina,
quase 70% da populao que havia concludo algum curso tinham diploma de concluso do
curso primrio, ainda que a cidade concentrasse a populao com o nvel de escolarizao
mais elevado do Estado.83
No que se refere s mulheres entrevistadas, importante pontuar, que alm de se
inserirem dentre os que concluem o ensino mdio, a despeito da seletividade do sistema
escolar, ingressam no espao de escolarizao que continuava a ser predominantemente
masculino, o ensino superior. E nesse ponto reside a singularidade de suas trajetrias, uma vez
que o diferencial em termos de escolarizao feminina entre 1950 e 1970 a ampliao da
presena feminina no ensino superior, pois nos nveis elementar e primeiro ciclo do ensino
mdio, as mulheres so maioria desde a dcada de 1940, enquanto que no segundo ciclo
passam a predominar nos anos 1960. Desse modo, significativo enfatizar que em 1950 as
mulheres correspondiam a menos de 4% (12) do total de pessoas que concluram algum curso
superior e, em 1970, esse percentual passou a ser de 26,6% (399).84 As questes que se
colocam, portanto, so: por que um nmero crescente de mulheres estaria ingressando no
ensino superior? E ainda: por que a maioria das mulheres que chega ao ensino mdio encerra
nesse nvel as suas trajetrias escolares?
Certamente essas trajetrias escolares femininas relacionam-se ao fato de coexistirem
perspectivas diferenciadas quanto formao das mulheres, pois, de um lado, parte das jovens
dos setores sociais mais abastados est investindo na educao, com vistas ao ensino superior,
deslocando fronteiras de gnero, na medida em que esse ainda um tipo de investimento
voltado, sobretudo, para a formao dos rapazes. De outro lado, porm, o mesmo grupo
social, s vezes a mesma famlia, apresenta nveis de escolarizao das filhas variados, devido
ao casamento em tenra idade, ou ainda, por considerar que as mulheres devem adquirir apenas
82
A respeito da demanda por instruo e da ampliao da rede escolar pblica no Brasil ver ROMANELLI, op.
cit., 69-80; BEISEIEGEL, Celso de Rui. Educao e sociedade no Brasil aps 1930. In: PIERUCCI, Antnio
Flvio de O. et al. O Brasil republicano: economia e cultura. 3. ed. Rio de Janeiro, 1995. Tomo 3, v. 4, p. 381416.
83
Cf. Censo demogrfico de 1970.
84
Cf. Censo demogrfico de 1940; Censos demogrfico e econmico de 1950; censo demogrfico de 1960;
censo demogrfico de 1970.
inteligentes tinham menores chances de ser felizes no casamento. Certamente, essa idia
funcionava como elemento que cerceava o ingresso feminino no ensino superior, contribuindo
para que os homens continuassem predominando nesse nvel de ensino.
85
86
DIAS, Claudete Maria Miranda. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
ESTUDANTES e problemas de educao. O Dia, Teresina, ano XVII, n. 2327, p. 3 e 7, 12 jan. 1968.
A Lei 4024, de 20 de dezembro de 1961. A respeito dessa legislao ver ROMANELLI, op. cit., p. 179-87.
Em 1950, tinham diploma de concluso do curso secundrio (clssico e cientfico) de segundo ciclo 288
rapazes e 76 moas. Em 1960, passaram a ter diploma de concluso nessa modalidade de ensino 825 rapazes e
537 moas. Em 1970, 2767 era o nmero de rapazes que tinham diploma de concluso desses cursos,
enquanto que 1232 era o nmero de moas. Cf. Censos demogrfico e econmico de 1950; censo demogrfico
de 1960; censo demogrfico de 1970.
89
FACULDADE CATLICA DE FILOSOFIA. Histricos escolares. Teresina, jun. 2002.
88
poder pblico tenha procurado nas dcadas de 1950 e 1960 ampliar as possibilidades de
escolarizao feminina e masculina, o sistema escolar continuava sendo seletivo, pois, nas
escolas pblicas de maior prestgio predominavam os setores altos e mdios.
Assim, as trajetrias escolares das mulheres entrevistadas, embora fosse cada vez mais
corrente, no eram caminhos padres, ainda que, entre 1940 e 1970 tenha se expandido os
nveis de escolarizao em ritmo mais acelerado que o masculino nos nveis fundamental e
mdio, persistem diferenciaes quanto distribuio feminina e masculina pelo segundo
ciclo do ensino mdio, de maneira que essas mulheres vo adentrando em ramos de
predominncia masculina, configurando caminhos singulares, embora recorrentes.
Mas a escolarizao feminina e masculina no vinha produzindo apenas distines
quanto aos nveis de escolaridade e modalidades de cursos. Mediante uma dimenso mais
refinada, a escolarizao incide sobre o corpo, produzindo diferenciaes de gnero, de
classe, de etnia, gerando sujeitos distintos, mediante os seus mecanismos de classificao,
ordenamento e hierarquia.90
Ao longo da escolarizao das entrevistadas, algumas tiveram acesso tanto ao ensino
ministrado em escolas de carter leigo quanto confessional, visto que uma das trajetrias
regulares dessas mulheres e de outras de suas geraes, como vimos, era cursar o primrio na
rede pblica, o ginsio nas escolas particulares e o clssico ou cientfico no Liceu Piauiense.
Dentre as escolas pblicas primrias, a preferida era a Escola Modelo Artur Pedreira, na qual
estudaram Clis Portella e Irlane Abreu. O ginsio preferido era o Colgio das Irms, pois a
maioria das mulheres que estudou o ginsio em estabelecimentos particulares, conforme a
anlise dos histricos escolares referidos, foram alunas dessa escola. Nerina Castelo Branco,
Irlane Abreu, Ceclia Mendes e Fides Anglica Mendes, por exemplo, estudaram o ginsio
nessa escola.
Parece-nos que um aspecto fundamental para compreendermos porque os pais e as
mes preferiam que suas filhas estudassem no Colgio das Irms era fato de a escola ser
confessional e buscar formar o carter das ento meninas/moas, conforme a moral catlica.
O que significa dizer que a escola procurava produzir moas de esmerada formao religiosa,
defensoras dos valores religiosos e morais propalados pela Igreja Catlica. Com efeito,
atuavam, no cotidiano escolar, mecanismos disciplinares91, assim incidindo separaes e
classificaes, bem como a busca de controle da sexualidade feminina. A princpio,
90
91
separavam-se meninos de meninas, visto que, como sabemos, no se admitia nas escolas
confessionais de Teresina a co-educao; em seguida, internas de externas. o que nos diz
Irlane Abreu:
[...] eu senti uma diferena muito grande quando eu fui para o Colgio das Irms;
primeiro, de disciplina rgida, idiota, [...] senti muito quando fui para o Colgio das
Irms, a j mocinha, comeou s com menina, a gente j estava querendo namorar e
as freiras faziam um inferno, no admitiam, a os meninos comeavam a passear na
porta do Colgio, as freiras se zangavam, tinha uma histrica l que dava show de todo
jeito, sabe? no rigor, isso foi marcante para mim. O rigor, aquela coisa, sabe? Parecia
realmente que voc estava num claustro, rezava missa de manh, rezava tero de
manh, rezava no sei o qu quando saa [...] a gente no estava acostumada com isso,
eu vinha de um colgio liberalsimo, l com a minha me. Ento a escola era aquela
formal mesmo. Todo mundo sentado, ali cada um na sua carteira, [no podia] falar
com ningum e, internas separadas do externo, era como se a gente de fora trouxesse
alguma... Acho que na concepo das freiras, as meninas que vinham do internato elas
estavam sob a guarda delas e elas no permitiam nada, nem um contato com a gente na
sala de aula. As meninas tinham uma fardinha diferente, a gente tinha, nem lembro,
acho que era uma blusa branca a das meninas, era uma blusa xadrezinha para
identificar e separar. Ento ficava nem misturava na sala de aula, externa para um lado
e interna para outro, extremamente rgido, no brincava com a gente, terminava ali
elas eram segregadas iam de fileira para os seus quartos, alojamentos, sei l o qu, que
era, era muito severo! Entrava tinha que rezar. Imagina uma menina com 12, 13 anos
no t nem a para rezar, obrigada a rezar tero! [...]. 92
ABREU, 2002.
A respeito da atuao do poder disciplinar sobre o corpo ver FOUCAULT, 2000, p. 117-42.
Era necessrio, portanto, mostrar que a escola e o seu entorno no eram lugares para essas
prticas.
Com efeito, uma das funes escolares era usar mecanismos disciplinares para que os
valores morais dominantes fossem internalizados. Era fundamental que as jovens se
subjetivassem como meninas direitas, moas de famlia, aprendendo que no deveriam se
misturar aos meninos/rapazes e que no eram os pais ou as professoras que deveriam
control-las, eram elas que deveriam ter autocontrole.
Mas a interdio explcita de certos comportamentos tambm ajudava a formar moas
de famlia. As freiras, por exemplo, afastavam os meninos que freqentavam as caladas do
Colgio das Irms, procurando evitar que, atravs de cdigos, mmicas e olhares, paqueras e
namoros frutificassem, uma vez que a manuteno da educao feminina e masculina em
separado, no evitava o contato entre meninos/rapazes e meninas/moas, pois eram
desenvolvidas estratgias alternativas para burlar o controle.
Essa preocupao em evitar paqueras namoros no mbito escolar no era exclusiva do
Colgio das Irms. Nos ginsios particulares mistos alguns cuidados tambm eram tomados.
No Ginsio Leo XIII, por exemplo, o recreio era em horrios distintos, um para os meninos,
outro para as meninas, a fim de evitar contato de meninos e meninas longe dos olhos da
professora.94
No caso do Colgio das Irms, a preocupao com o controle da sexualidade feminina
se processava para alm da simples interdio de paqueras e namoros, discursos que
veiculavam a sexualidade, buscavam objetiv-la como mal e como pecado, com o intuito de
produzir jovens que mantivesse a pureza e a castidade.
[...] Nunca esqueo um padre que tinha aqui em Teresina, padre Izidoro [...] ele
pregava os males do sexo, ele no usava a palavra sexo, no sei nem, nem me lembro
o qu que era, s que a gente intua, todo mundo adolescente com os hormnios
subindo! Ento ele falava aquilo, eu ficava revoltadssima! no admitia, no tinha com
quem externar aquilo, mas eu no aceitava. Eu toda vida rejeitei esse tipo de coisa, de
algum me pregando, me dizendo o que eu devo fazer [...].95
94
95
MENDES, 2002.
ABREU, 2002.
[...] A nossa farda era de mangas compridas, no podia usar pinturas as moas, a saia
era um palmo abaixo do joelho, no se podia andar nem com um irmo quando se
estava de farda do colgio das irms, para voc ter uma idia da rigidez, este quadro
da mentalidade da rigidez dos costumes da minha poca na dcada de 50, que eu
estudei no Colgio das Irms, ento era isso; me lembro que uma vez fui chamada
ateno das freiras porque meu irmo vinha da escola e eu ia saindo do Colgio das
Irms, ele vinha do Colgio Leo XIII e foi comigo conversando, no outro dia, eu fui
chamada ateno l, pras feiras me dizer que eu estava acompanhada de um rapaz - era
meu irmo! mas ningum sabe que era seu irmo, ento no fica bem pra uma moa de
farda, [...] ento s pra voc ter idia de como era os costumes daquela poca, parece
at mentira por to pouco tempo, no ? 97
Fides Anglica acrescenta ainda que esse tipo de formao deixava marcas no corpo,
produzindo gestos, jeitos e trejeitos.
[...] No Liceu, voc sabe como eu cheguei no Liceu, eu tinha essa dificuldade, no
Liceu eu arrumei meu primeiro namorado e l eu no queria que ele andasse comigo
quando eu estivesse de farda, eu j moa, eu levei, a gente leva os valores, o modelo
96
mesmo quando no se est, mas sob aquela orientao, voc acaba aceitando o
modelo, as regras, e eu transportei, essas regras pro Liceu, isso me causava um
mal-estar enorme, se ele viesse conversar comigo e eu estivesse de farda eu no queria
que ele andasse comigo, quando eu estivesse de farda, ainda lembrando da regra do
Colgio das Irms. marca da formao inicial, uma formao que marca voc e s
vezes voc se surpreende com determinadas atitudes que toma, a voc vai ver, fica
pagando o preo de lies no , que voc recebeu na infncia e que marca a gente
pela vida toda.98
102
A produo de significados distintos para alm dos oficiais era estendida Escola
Normal e ao Liceu Piauiense ou s suas imediaes, pois tambm eram espaos onde
meninas/moas e meninos/rapazes vivenciavam prticas educativas nada oficiais!. A esse
respeito Clis Portella nos conta que no tempo em que estudava na Escola Normal
[...] a gente ficava muito na Igreja do Amparo, ficava muito na Igreja do Amparo,
no! ficava do lado de fora... conversas, eu acho que at gazeava aula de tanta
conversa, mas depois entrava, [tinham os] professores mais pesados e no dava, mas a
gente paquerava muito. [...] l era aquela histria, ns no ramos, no dvamos conta
em casa do que acontecia na escola, porque eu, por exemplo, era irm de tanta gente
que os pais nem davam conta do que a gente passava na escola; tanto na Escola
Normal como no Liceu por ser colgio pblico. O Liceu porque era misto, ento, ns
saamos muito, fugia da escola tambm ou ficava ali por aquelas pedras, conversava
muito, havia muita paquera, mas na Escola Normal ns no subamos, porque se
subssemos ficvamos presas, ento ns ficvamos logo do lado de fora e tinha j os
meninos do Leo XIII que [iam] at l. Os meninos que vinham de bicicleta do
Diocesano, j sabiam com quem contava na porta. [...] Quando a gente encontrava
outra que tinha..., era tudo de cdigo para poder demonstrar isso. Os cdigos eram
mais mmicas, para dizer que foi timo o encontro, outros similares, ou que realmente
acabou tudo, baixava o dedo e por a ia [...].103
Essa memria de Clis Portella mostra que, a despeito da Escola Normal Antonino
Freire ter uma clientela feminina, o seu entorno era um espao de sociabilidade feminina e
masculina, onde se experienciava paqueras, flertes e namoros. A possibilidade de vivncia
dessas experincias, aparentemente, que tornava as escolas pblicas sedutoras,
principalmente o Liceu Piauiense por ser uma escola mista.
Em fins dos anos 1950, quando Irlane Abreu ingressa no Liceu Piauiense, o que
continuava tornando aquele colgio sedutor, alm dos bons professores e professoras que l
atuavam, eram as prticas vivenciadas na e em torno da tradicional escola, como relembra
Irlane Abreu:
[eu] saa para o Liceu passava a tarde toda l, a eu saa para dar umas voltinhas na
praa do Liceu, estava recm-reformada [...] e ali era um ponto de encontro mesmo, o
103
Liceu era misto e j estava todo mundo adulto praticamente 16, 17 anos. Ento l
liberdade total! no tinha represso, no tinha nada, controle muito pouco, disciplina
zero. Agora professores bons, muito bons professores a elite de Teresina lecionava no
Liceu.104 [...] Mas o que distinguia mesmo a comunidade do Liceu era uma certa
aura de independncia e modernidade que nos fazia olhar os estudantes dos outros
colgios de Teresina como vis mortais, privados que eram do que ali se vivia...Por
exemplo, faltar aulas sem culpas, quando namorar fosse mais importante, ou mesmo
ficar s na conversa, na praa, ou circular pelas ruas prximas vendo novidades e
principalmente os discos novos que a loja A Madariaga uma das primeiras lojas de
discos de Teresina apresentava. Era tempo de rock e de boleros romnticos...Ou
comprar po quentinho na Padaria St Teresinha e sabore-lo com caldo de cana. E,
principalmente, participar das festas do 4 de outubro, data do aniversrio do
Colgio.105
[...] Tinha um grupo meu que eram trs irms, alis na minha rua ali era um negcio
interessante, eu morava aqui na Eliseu Martins e aqui a rua Areolino de Abreu.
Ento bem aqui morava o dr. Ribamar de Castro Lima na rua Areolino de Abreu e
bem aqui morava seu Clvis Melo [...] ele tinha trs filhas uma delas que a mulher
do tila Lira. Aqui o dr. Vilmar tinha 3 e aqui tinha a Teresinha. Ento a gente
juntava e mais aqui para trs morava a Graa Mota, [...] todo mundo se juntava na casa
104
105
ABREU, 2002.
ABREU, Irlane Gonalves de. Lembranas de Teresina. Cadernos de Teresina, Teresina, ano X, n. 23, p. 59,
ago. 1996.
do dr. Ribamar para conversar. Eu saa de casa e ia para l. Juntava esse povo aqui, a
conversar a noite toda, passava o dia todo mundo nas escolas, srie diferente e de noite
era conversa. Isso era a rotina, conversa, e conversa, e conversa. Sei que quando foi no
terceiro ano cientfico comearam os casamentos a se delinear; algumas, as duas do dr.
Vilmar, comearam, uma casou mais cedo, que era mais velha. As duas do dr.
Ribamar, casou para c. A Teresinha no casou, nem eu nem a Teresinha. A Teresinha
casou depois, eu no casei. Ento, mas nenhuma delas estudou, alis, a Norma se
formou.106
[...] tinha muitos casos de colegas que fizeram do primeiro ao ltimo ano namorando
juntos, depois, s vezes, acabavam, s vezes, acabavam. Eu me lembro uns trs que
namoravam o cientfico todinho e depois um foi estudar para um lado, o outro foi
estudar para outro e acabavam. Eles pensavam que iam casar e, de repente, no dava
certo. Eu tinha uma colega que ela foi namorada do menino, que foi meu colega
tambm, que hoje professor, reitor da Universidade do Cear, ele namorou com ela o
ginsio todinho e cientfico, e todo dia eles iam, assistiam aula juntos, sabe? De
mozinha dada, aquele namorinho e tal, depois eles acabaram. Ele casou com uma, ela
casou com outro [...]. A tinha outro que namoravam o ano todinho depois ela foi
estudar Medicina na Bahia, ele fez Direito aqui, ele casou com outra [...].107
Assim como Ceclia Mendes, essas suas contemporneas que desejavam seguir uma
carreira estavam se tornando aspirantes-a-acadmicas, enquanto outras se tornavam
aspirantes-a-noivinhas-que-vingavam, para usar uma expresso de Suely Rolnik108,
investindo no casamento. E nesse ponto a trajetria de moas que estudaram no Liceu
106
ABREU, 2002.
MENDES, 2002.
108
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformaes contemporneas do desejo. So Paulo: Estao
Liberdade, 1989.
107
Piauiense entre as dcadas de 1950 e de 1960 se bifurcava, pois umas, alm do casamento,
passavam a investir no ensino superior, j outras encerravam suas trajetrias escolares e
comeavam a vivenciar os papis tradicionais femininos, tendo em vista que, para muitas
mulheres que viveram a juventude nesse perodo, o casamento e a maternidade continuam
figurando como os caminhos femininos ideais. A questo nova que emerge o motivo por
que um nmero crescente de mulheres dessas geraes estava comeando a ampliar os
horizontes femininos passando a almejar o ensino superior. Buscando tecer uma resposta para
essa questo abordaremos no captulo seguinte a relao entre investimentos familiares e
individuais na educao feminina.
Nos anos 1950 e 1960, ingressar nas instituies de ensino de terceiro grau aspirando a
uma futura profissionalizao ia se tornando uma prtica feminina recorrente109 . Na imprensa
constantemente publicavam-se notas em que pais, mes
e familiares parabenizam as
No decorrer desses anos, a escolarizao feminina de terceiro grau ganha cada vez mais
visibilidade, embora no emergindo nos discursos veiculados pela imprensa como objeto de
embates. No se constituindo, portanto, em fato muito problematizado como parece ter sido
nas dcadas iniciais do sculo.111 Possivelmente, por no se tratar de uma prtica nova, uma
109
Em 1940, havia no Piau 432 homens formados e 14 mulheres; em 1950, 567 homens e 24 mulheres; em
1960, 1043 homens, 105 mulheres; em 1970, 1523 homens; 495 mulheres. Cf. Censo demogrfico de 1940;
censos demogrfico e econmico de 1950; censo demogrfico de 1960; censo demogrfico de 1970.
110
SRTA Fidalma de Oliveira. O Dia, Teresina, ano V, n. 316, p. 4, 18 dez. 1955.
111
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Nordestino: uma inveno do falo: uma histria do gnero
masculino no Brasil. Campina Grande, abr. 2000. Digitado. p. 72.
vez que, desde o final do sculo XIX, algumas poucas moas iam tendo acesso a esse nvel de
ensino.112
A educao feminina superior aparece na documentao estudada como uma expectativa
e um investimento familiar no futuro das filhas. importante ressaltar, todavia, que, em
termos educacionais, a maioria das fontes que versam sobre essa temtica diz respeito
crescente demanda por educao em todos os nveis.
Parece-nos que uma das questes que vai se tornando problemtica a intensificao da
presena das mulheres no mercado de trabalho e sua relao com o exerccio dos papis
femininos tradicionais (me, esposa e dona de casa). Por emergirem discursos que ora
expressam que as moas devem ser, sobretudo, mes, esposas e donas de casa; ora
profissionais ou ainda inscrevem posies conciliatrias, em que casamento, maternidade e
carreira figuram como possibilidades em relao ao futuro.
Nessa discusso, a escolarizao feminina superior tangencialmente relacionada a essa
problemtica, vai sendo significada como prtica e investimento positivo. A presena
feminina nas faculdades/universidades instaladas em Teresina e em outras cidades vai
ganhando rosto, na imprensa, como uma expectativa desejada em relao ao futuro das
moas, como j era em relao aos rapazes das famlias dos segmentos sociais mais
abastados.
Nesse sentido, o acesso feminino ao ensino superior emerge como resultado do esforo
pessoal das jovens, assim como dos investimentos feitos pelos pais. Com efeito, a presena
feminina no universo acadmico significada como prtica que no punha em xeque os
valores morais hegemnicos na poca. Assim, moas de esmerada formao religiosa, fina
flor da sociedade, senhorita inteligente, boas moas eram algumas imagens das jovens que
estavam investindo em um curso superior.
Atravs dessas imagens procurava-se dizer que as jovens acadmicas que estavam
circulando cada vez mais em Teresina, no Rio de Janeiro, em Fortaleza, em Salvador, em So
Luis, em Recife, em Belo Horizonte113..., eram moas de famlia que tanto ao transitarem por
Teresina noite quanto ao sair para outras cidades, o faziam por um motivo que no
desabonava a moral e os bons costumes, ou seja, estavam estudando, ao que legitimava tais
prticas.
112
SAFFIOTI, Helieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 2000.
p. 203.
113
PERFIL das estudantes universitrias do Piau. Teresina, fev. 2002.
Na Coluna Universitria, escrita por Jos Lus Martins, veiculada no jornal O Dia,
outras faces dessas jovens emergem entre o que se atribua ao feminino e ao masculino nesse
contexto. Eram ditas ora como as representantes do bello sexo, belas, meigas, graciosas,
dceis, amveis, brotos a enfeitarem a academia; ora como moas inteligentes, competentes,
pioneiras e atuantes no universo cultural e estudantil. Qualificaes bastante sintomticas do
momento vivido por essa gerao, que adentrava nas instituies de ensino de terceiro grau,
universo pblico, sendo afetadas por idias que o delineiam, tais como: competncia,
competio, inteligncia, intelectualidade e profissionalismo; ao tempo em que sobre elas
tambm imperava uma carga discursiva relativa aos espaos e aos atributos tradicionais
femininos: pureza, doura, beleza, meiguice e graciosidade.
Ao considerarmos outros discursos, possvel acentuar algumas fissuras nas imagens
que vinham sendo produzidas pela imprensa. Trata-se de fragmentos das histrias de vida das
ento aspirantes-a-acadmicas Ceclia Mendes, Clis Portella, Claudete Dias, Fides Anglica,
Glria Sandes, Nerina Castelo Branco, Rosa Amlia Tajra, mediante as quais podemos tornar
o quadro um pouco mais complexo ao destacarmos as relaes de poder entre essas jovens e
suas famlias, acentuando os investimentos e as expectativas dos pais e mes em relao
educao.
Nesse sentido, se nos discursos veiculados na imprensa, o ingresso das mulheres no
ensino superior inscrito como prtica valorizada e mesmo impulsionada pelos pais e
familiares, ao penetrarmos no campo da memria e abordamos as relaes de poder entre as
filhas e os seus pais e mes, outras nuanas vo mudando a tonalidade do cenrio, na medida
em que aparecem elementos descontnuos que fragmentam o rosto composto pelos discursos
difundidos na imprensa.
Rosa Amlia Tajra, a filha mais velha de uma famlia de imigrantes srios e libaneses,
nos conta que a sua me no chegou a concluir o primrio, casando-se em tenra idade,
enquanto o pai no pudera estudar, sendo autodidata.
Relembra Rosa Amlia Tajra que seu pai valorizava muito a educao formal
projetando-a para os seus filhos e filhas. Na sua famlia, excetuando duas de suas irms que
cursarem o normal, as demais se formaram, estudando uma parte de seus irmos e irms em
Teresina e outra, no Rio de Janeiro.
Acentua
desestimulasse. J o pai, diante do seu desejo de prosseguir sua escolarizao, deixou que
fosse sozinha para o Rio de Janeiro nos anos 1930 e custeou os seus estudos.
Sa daqui sozinha para ir estudar no Rio de Janeiro e ele no tinha essas coisas de
recomendar, confiava na cabea da gente, eu vou para l e vou estudar e vou fazer o
curso de Farmcia, foi como eu te disse, mudei para Medicina por influncia de meus
colegas e fiz um curso bonito.114
Clis Portella, que ingressa na Faculdade Catlica de Filosofia em 1960, era a dcima
segunda filha, a caula, de pais que estudaram no interior do Estado, onde adquiriram
rudimentos de leitura e de escrita. A me de Clis Portella no teve acesso escola, aprendeu
a ler e a escrever em casa, como era corrente entre as famlias do interior da Provncia/Estado
no final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX, onde a educao formal
coexistia com a ministrada no mbito familiar.115
Os pais de Clis Portella, notadamente a me, valorizavam a educao e, esgotadas as
possibilidades de escolarizao dos filhos mais velhos na cidade de Valena, migram para
Teresina com o intuito de educar os filhos e as filhas.
[...] Na minha famlia eu fui a dcima segunda, porque morreram dois, dcima
segunda filha, famlia pobre que veio de Valena para educar os filhos e essa
quantidade doze filhos no brincadeira, pra assim meu pai era comerciante, mas
comerciante de pouca condio, ento a gente teve toda vida uma vida muito apertada,
muito com o p no cho, sabe porque o lema era educar, era que a gente estudasse,
ento no tinha assim muita sada no, sabe? Era esse, ento felizmente a gente alm
de ser doze, a gente tinha um espao de um para o outro de 2 anos, mais ou menos,
ento eu conheci, por exemplo, meu irmo mais velho que foi para o Rio, a eu s
conheci depois que estava formado, que voltou para c, at o outro o segundo tambm,
que foi para o Rio, eu s...tinha 14 anos quando ele chegou, ento essa coisa que
distancia, ao mesmo tempo era todo um investimento na educao...116
Na famlia de Clis Portella, havia preocupao com a educao das filhas, embora
algumas diferenciaes tambm fossem salientes. Todos os seus irmos formaram-se no Rio
de Janeiro, enquanto suas irms, somente algumas cursaram o ensino superior, a maioria
114
115
116
FRANA, Rosa Amlia. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
A respeito das relaes entre educao formal e informal entre o final do sculo XIX e as primeiras dcadas
do sculo XX ver FERRO, Maria do Amparo Borges. Educao e sociedade no Piau republicano.
Teresina: F.C.M.C., 1996.
NUNES, Clis Portella. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, abr. 2002.
concluiu o curso cientfico, casando-se em seguida. E dentre as que chegaram a esse nvel de
ensino, somente uma estudou fora do Estado.
[...] O Petrnio foi, mas j era, ele j trabalhava j era funcionrio dos Correios,
arrumou tambm l outro emprego l no Rio, estudava e trabalhava, quer dizer quando
acabava um era que custeava a formatura do outro e ento foi assim at o final e ns
aqui tivemos acesso s aos cursos daqui, as mulheres at porque a mulher criada
diferente a era mais...As mulheres tm uma formada em Servio Social, tinha uma
formada em Cincias Contbeis e as outras casaram e no continuaram os estudos,
todo mundo com 2 grau, com o cientfico, essa coisa que dava. A minha irm estudou
em Joo Pessoa fez o curso de Servio Social em Joo Pessoa e eu estudei aqui e a
outra tambm estudou aqui, agora os homens que estudaram fora...117
Primos e primas de Clis Portella, que vinham do interior para dar continuidade aos
estudos, hospedavam-se em sua casa, visto que muitos rapazes e moas que residiam no
interior do Estado e desejavam aumentar o nvel educacional tinham que se deslocar para
Teresina, posto que, na maioria das cidades do interior, s havia nesses anos escolas de nvel
primrio. E chegando a Teresina, uma das formas de permanncia era se instalar na casa de
parentes. Dentre os primos e primas de Clis Portella, as distines quanto aos nveis de
escolarizao feminina e masculina na famlia, presentes nas trajetrias escolares das suas
irms e irmos, igualmente emergem.
[...] Porque ns vimos primeiro de Valena para c e muitas das minhas primas
estudaram aqui em casa, na minha casa. Minha casa tinha geralmente 28, 30 pessoas,
essas estudantes que vinham para c para fazer os cursos porque no tinha colgio em
todo interior, tinham que vir estudar a, [...] mas estas pessoas que viveram l em casa,
estudaram l em casa, s fizeram mesmo at o colegial, o que tinha aqui, agora depois
que as famlias comearam a vir do interior tiveram mais acesso, sobretudo, a
Faculdade de Filosofia onde...., a Faculdade de Direito, agora persiste a coisa, os
homens, os primos homens, em nmero muito mais, em nmero muito maior; outra
coisa tambm acho que por isso eu me rebelei, tambm casavam muito cedo, minhas
primas, tem prima que casava com 16 anos ou tem 10 filhos, outra com 17 filhos,
tudo...olha a gerao que era a minha...todo mundo casou e assim com 10 ou 11 filhos
117
esto era novamente aquele monte de gente, agora j moravam aqui, ... Uma inclusive
umas tinham at morado l em casa [...].118
Ao refletir a respeito dos diferentes caminhos seguidos por seus irmos e irms, em
outro trecho de sua entrevista, Clis Portella permite vislumbrar para alm das prticas,
investimentos no que se refere escolarizao feminina, que, por sua vez, esto relacionados
s concepes que se tinha de feminino e de masculino no perodo.
Este trecho da entrevista de Clis Portella possibilita pontuar outras nuanas do processo
de escolarizao feminina e masculina, na medida em que d visibilidade a diferenciaes de
investimentos. Se o ingressar no ensino superior no se configura como uma prtica cerceada,
o estmulo dado aos homens e s mulheres no o mesmo, de maneira que a educao
masculina tem primazia sobre a feminina, visto que a significao da presena feminina e
masculina no ensino superior vai se configurando de forma relacional. Em outros termos, as
concepes de feminino e de masculino constantes no perodo vo incidindo na forma como
se configuram as trajetrias escolares de moas e rapazes.
118
119
Incentivar e propiciar aos rapazes escolarizao em nvel de terceiro grau uma das
prticas que configuram a masculinidade burguesa, que prima pelo estudo e pelo trabalho.120
Os investimentos na carreira por parte dos rapazes vo sedimentando territrios masculinos
institudos, uma vez que esses jovens estavam se preparando para atuar no espao pblico,
bem como para exercerem os papis de pai e provedores familiares.
Enquanto aquelas jovens, que assim com Clis Portella, e algumas de suas irms
ingressavam em faculdades e universidades tanto em Teresina quanto em outros Estados,
estavam deslocando fronteiras de gnero, na medida em que a trajetria regular em termos
educacionais das jovens dos anos 1950 era cursar o normal ou cientfico e casar-se. Desse
modo, algumas passavam a exercer o magistrio primrio, outras iam vivenciar o casamento,
a maternidade.
Nesse sentido, a continuidade dos estudos por parte das moas e o investimento em um
curso universitrio ia desterritorializando os territrios existenciais femininos construdos em
torno da maternidade e do casamento. Para os rapazes, o ato de serem estimulados a estudar
fora do Estado era ao que os dotava de maior status e prestgio social. Para as moas, o ato
poderia funcionar em outro sentido, podendo mesmo
120
no entanto, que no invalida o que vimos ressaltando, ao destacar a relao entre a educao
feminina e masculina e as concepes de gnero, uma vez que, como acentua Joan Scott121,
homem e mulher so duas categorias vazias e transbordantes, na medida em que so
construes sociais e histricas, em que cada momento histrico as compe de forma
mltipla, pois no so categorias fixas. Desse modo, investimentos considerados masculinos
em um dado perodo, podem incidir sobre as mulheres e vice-versa. Nesse sentido, era
possvel, ainda nos anos 1930, projetar para as filhas expectativas em relao ao futuro que no
geral eram aquelas voltadas para os filhos, embora no fosse a regra.
Se formem, vocs estudem, atravs do estudo [] que a pessoa se faz e atravs do
estudo [] que a pessoa consegue as posies na vida realmente assim.122 Eram esses os
incentivos dados pelos pais de uma contempornea de Clis Portella, Nerina Castelo Branco,
a filha mais nova de uma famlia tradicional; cujo pai era bacharel em Direito, funcionrio
pblico e a me, dona de casa.
Nerina Castelo Branco ingressou na Faculdade de Direito na segunda metade dos anos
1950 e, posteriormente, na Faculdade Catlica de Filosofia, formando-se, assim como os seus
dois irmos. Tal como Clis Portella, Nerina Castelo Branco acentua a predominncia de
nveis escolares mais baixos entre as moas de sua gerao, bem como a configurao da
identidade da maioria das jovens de sua gerao em torno do casamento e da maternidade.
121
SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til de anlise histrica. Educao & Realidade, n. 20, v. 2, p. 93,
jul./dez. 1995.
122
CASTELO BRANCO, Nerina. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
Esse fragmento da entrevista de Nerina Castelo Branco nos ajuda a compreender que a
vivncia feminina em torno do casamento e da maternidade era ainda uma forma de existncia
que satisfazia a muitas mulheres, embora no seduzisse a todas. Ao mesmo tempo d
visibilidade incipincia dos projetos que divergiam desse modelo de existncia feminina,
centrado no ser me, esposa e dona de casa, o que nos permite afirmar que, no contexto dos
anos 1950 e incio dos anos 1960, a despeito do crescimento da presena feminina nas
instituies de ensino de terceiro grau e no mercado de trabalho esta era ainda uma trajetria
singular, mesmo entre as jovens mais abastadas.
Ceclia Mendes, filha de uma professora primria e de um mdico, por sua vez,
ingressara na Faculdade de Filosofia em 1959, assim como Nerina Castelo Branco, foi
estimulada pelos pais a estudar.
[...] Na minha casa, no, ns no tivemos essa educao tradicional, voltada pra coisa
domstica, [...] ns ramos orientados para ir pra escola, fazer ginsio, primrio,
cientfico e curso superior, l em casa era assim. E tambm os parentes prximos.
Embora houvesse pessoas na famlia que preparasse a filha para ser dona de casa, ns
temos primas tambm que no fizeram nada a no ser se preparar para casar e ter
filhos, mas l na minha casa no era, a mesma gerao. Agora na minha casa, ns
ramos encaminhados para ter uma profisso e participar da sociedade com
responsabilidades. [...] Ento, a gente se formou no que a gente quis. E agora meus
pais sempre estimularam que a gente estudasse e que cada um escolhesse e tivesse as
mulheres mesmo sua profisso, desde cedo a gente trabalha.124
Esse trecho da entrevista de Ceclia Mendes demonstra alm dos incentivos recebidos
pelos pais para que prosseguisse os estudos, a recorrncia de diferentes nveis e significados
da escolaridade feminina no seu segmento social, fato que nos ajuda a compreender em parte
porque a maioria das jovens que viveram a juventude nas dcadas de 1950 e 1960 continuava
configurando as suas identidades mediante o exerccio dos papis femininos tradicionais. Haja
vista que iam coexistindo investimentos diversos. Se existiam famlias que impulsionavam as
123
124
filhas a seguir outros caminhos, como as de Nerina Castelo Branco e Ceclia Mendes,
igualmente permanecia a concepo de que as moas deveriam ser formadas para se tornarem
boas esposas, mes e donas de casa.
Educao para casar e educao para seguir uma carreira so investimentos que
atravessam o perodo em estudo, onde o tipo de formao dada pela famlia tanto poderia
corresponder aos anseios das filhas, como poderia divergir. Nesse sentido, outra situao ia se
tornando recorrente nesses anos, o fato de os pais e mes procurarem educar as filhas para o
casamento, enquanto as jovens desejavam investir na continuidade dos estudos. que nos
conta, por exemplo, Fides Anglica.
Essa jovem que ingressou na Faculdade de Direito na segunda metade da dcada de
1960, era dcima terceira filha de uma famlia de classe mdia, em que o pai era funcionrio
pblico e a me dona de casa. Relembra Fides Anglica que seus irmos, excetuando o mais
velho, militar; todos foram incentivados a se formar, enquanto entre as mulheres, somente ela
e a irm mais jovem se formaram.
Fragmentos da histria de Fides Anglica demonstram o desenvolvimento de interesses
e expectativas pessoais que iam se distinguindo daquelas que os pais consideravam ideais, em
se tratando da educao feminina. Para os seus pais, as mulheres tinham que possuir um certo
nvel de escolarizao para casarem-se, visto que o papel que deveriam desempenhar era o de
me, esposa e dona de casa. A passagem pelo ensino de terceiro grau era um pr-requisito
para a formao dos filhos, pois esses seriam futuros pais e provedores familiares. E
lembremos, no mercado sentimental, ser formado, principalmente fora do Estado, era um dos
requisitos que tornavam um rapaz um bom partido; enquanto para as mulheres o fato de ser
formada poderia inclusive criar empecilhos para o casamento, uma vez que uma moa
casadoura, no deveria ser muito sabida no!.
[...] Das mulheres havia uma criao muito machista na minha casa e as mulheres
geralmente eram direcionadas a no ter muita instruo, pararam no segundo grau, no
mximo, minha irm mais velha era muito estudiosa, mas parou num curso clssico,
minha outra irm casou cedo s tem o ginsio, a outra... as irms mais velhas....s
quem tm curso superior l so as duas mais novas, sou eu e a minha irm mais nova,
que economista [...] agora todos os homens se formaram, a no ser o mais velho que
era militar, era piloto da aeronutica, mas os outros formados, mdicos, engenheiros,
farmacuticos, todos so formados.125
De modo que, a continuidade dos estudos de Fides Anglica vai se processar atravs de
negociaes, visto que este no era o anseio dos pais, principalmente da me.
[....] Mulher no era pra ser muito sabida no, mulher tinha que saber ler e escrever
saber mais ou menos alguma coisa, no mximo o ginasial estava muito bom, tanto que
eu tive muita dificuldade de dar continuidade aos meus estudos, porque me botaram
presso pra no, principalmente minha me. Minha me no queria porque achava que
o caminho natural das mulheres era o casamento ento no havia necessidade da
mulher saber tanto pra casar, porque ela tinha a experincia dela, ento ela passava a
experincia dela, que era o modelo correto pra passar pras filhas, s que as filhas mais
velhas de certa maneira no gostaram, mas de certa maneira se acomodaram, e eu no
aceitei, tambm j meus irmos, j eram formados que tambm fizeram presso para
que no acontecesse isso, eu terminei o ginsio eu tinha o qu? 14, fui fazer 15 anos
pra ficar de cara pra cima, ia ser horrvel e eu que gostava de estudar, graas a Deus
consegui ir em frente!126
Essa memria de Fides Anglica nos possibilita tornar o cenrio no qual as jovens vo
ingressando no ensino de terceiro grau mais complexo, na medida em que possvel pontuar
que a relao entre os anseios individuais e as expectativas dos pais nem sempre era
harmnica, e dentre aquelas que foram construindo a identidade em torno do casamento, do
lar e da maternidade, nem todas o faziam por serem esses os seus desejos. Logo, lcito
destacar que, nos anos 1960, algumas jovens vo tendo maiores condies para argumentar
ora com o pai, ora com a me, no sentido de fazer prevalecer os seus projetos individuais em
relao ao futuro, que ia passando a incluir o desenvolvimento de uma carreira, uma vez que
nesses anos o ingresso das mulheres no ensino superior ia se tornando cada vez mais intenso,
ao tempo que ia prevalecendo nos setores sociais mais abastados a idia de que as moas
tambm deveriam estudar, chegando mesmo ao ensino superior, assim como os rapazes.
125
[...] So Raimundo Nonato, sempre foi uma cidade que sempre foi bem provida de
escolas, ento, apesar dos meus pais no terem uma formao escolar elevada, eles
sempre deram para gente esse valor, todos dois passaram para a gente esse valor, e,
apesar de no serem pessoas ricas, mas minha me, por exemplo, trabalhava como
costureira [...] e nos educou costurando, era uma pessoa... [...] formou todos os
filhos.127
Claudete Dias tinha duas irms e um irmo e, como vemos mediante esse trecho de sua
entrevista, todos foram estimulados a estudar, observamos ainda que os pais procuraram
propiciar condies para que estudassem. Contudo, medida que os anos foram passando, o
tipo de educao a ser ministrada para as filhas ia divergindo da modalidade de formao
esperada para o filho.
Ao trmino do ginsio, o irmo mais velho, nico homem da famlia, veio estudar em
Teresina, uma vez que, no incio dos anos 1960, no havia em So Raimundo Nonato nem o
curso cientfico nem o clssico, de modo que, aps concluir o primeiro ciclo do ensino
mdio, os rapazes e as moas que aspirassem seguir essa modalidade de ensino tinham que se
dirigir ou para Teresina ou para capitais de outros estados.
Chegando a Teresina, seu irmo concluiu o segundo ciclo do ensino mdio e ingressou
na Faculdade de Direito, tendo os estudos custeados pelo pai. Enquanto a jovem Claudete
Dias e sua irm, ao terminarem o ginsio, do prosseguimento aos seus estudos em So
Raimundo Nonato, cursando o normal.
Cursar o normal, tornar-se professora primria e casar-se era a trajetria da maioria das
moas de So Raimundo Nonato dos segmentos mdios. Era esta a expectativa que o pai de
Claudete Dias tinha em relao ao futuro da filha, embora esse no tenha sido o projeto da
jovem. Novamente, vo se delineando anseios individuais que divergem daqueles esperados
pelos pais:
127
DIAS, Claudete Maria Miranda. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
[...] porque as mulheres em So Raimundo, em geral esse modelo mesmo de... foi
criado o curso pedaggico muito cedo l, ento todas as mulheres eram professoras,
casavam, tinham filhos e moravam em So Raimundo. Esse era o modelo que meu pai
queria para mim, quando terminei o pedaggico em 70. Ele queria que eu ficasse em
So Raimundo, ia ser diretora de um Colgio, ainda hoje me lembro: voc no vai
estudar fora no! porque eu tinha ido passar frias em So Paulo e ento voltei
querendo fazer Jornalismo, ele disse que eu no ia e que eu ia estudar em So
Raimundo, fazer o normal, depois ser diretora de uma escola, ia casar e ter filhos; eu
fiquei apavorada quando eu vi o modelo que meu pai queria para mim e era o que
todas as mulheres de So Raimundo seguiam [...] o modelo era esse de ficar em So
Raimundo Nonato casar, ter filhos, ser professora; ser professora, casar e ter filhos era
o modelo ideal e, para mim no era!. Quando meu pai me disse que ia ser professora,
continuar em So Raimundo [...] fiquei louca, apavorada e quanto eu terminei o
pedaggico meu tio, irmo do meu pai, que mora aqui em Teresina, que advogado,
tio Antonio Dias, foi para So Raimundo me buscar, porque eu pedi pelo amor de
Deus!128
[...] Ele disse isso: no, Clau, voc, agora que a gente vai ficar noivo, ns vamos
casar a, voc...Ele ficava sonhando assim aquela coisa sonhadora! voc j terminou o
pedaggico, j formada, no precisa trabalhar, porque eu vou trabalhar, eu que vou
ganhar dinheiro, ns vamos comprar nossa casa e todo dia voc vai estar cheirosa,
bonitinha me esperando em casa, depois vamos ter nossos filhos e vamos viajar [...]
Eu disse: [...] mas eu no quero isso, eu no quero! no faz parte, tudo bem, a gente
[pode] se casar, mais depois que eu me formar, depois que eu fizer universidade, mas
eu vou trabalhar tambm, eu vou ter meu dinheiro... [...] Depois ele veio para Teresina
128
a ele disse: ento a gente vai ficar noivo e a gente vai casar, me lembro como hoje,
ele sentado e me dizendo...No de jeito nenhum, no! Voc pode cancelar sua
matrcula e a gente vai casar e pronto, eu disse no!. J tinha passado no vestibular,
tava no primeiro ano da FAFI...129
Embora as jovens que estavam ingressando nas instituies de ensino de terceiro grau
figurassem como as atrizes principais desse processo de singularizao feminina130, s vezes,
tambm assumiam o lugar de coadjuvantes, cedendo o papel principal ora para o pai ora, para
a me.
[...] E minha me tinha essa coisa de empurrar para estudar, no, no era muito
exigente, a gente era estudiosa, no assim muito, mas minha irm, no queria fazer
vestibular em [Servio] Social, basicamente, ela [a minha me ] que escolheu Servio
Social, botou a minha irm. Ela estava apaixonada e o rapaz era muito bomio e a
mame botou pra estudar em Fortaleza. Arranjou um pensionato, ela ficou l. Minha
me ficava lendo para ela as apostilhas, os livros e assim ela fez e hoje [] Assistente
Social. [...] Com relao a mim, no precisou muito no! Meu pai tinha muita
afinidade intelectual comigo, ele me respeitava muito intelectualmente. Tinha muito
respeito por mim, porque eu fui mais estimulada que as outras. Mas eu gostava muito
de portugus e fazia poesia. Ainda fao e ele gostava muito, dizia que eu escrevia
melhor que o Carlos Drummond de Andrade. Dizia ele! [...] Meu pai tinha muito essa
coisa por mim!131
o que nos diz Glria Sandes, que ingressou na Faculdade Federal do Cear, em 1968
no curso de Jornalismo.
O pai de Glria Sandes era professor e a me dona de casa. Na famlia de Glria
Sandes, a me tivera um papel fundamental na escolarizao das filhas, incentivando-as para
estudar e para seguir uma profisso, mesmo quando no era esse o desejo imediato das filhas.
Glria Sandes ressalta que um dos argumentos comumente repetido por sua me era: o
objetivo se formar, depois, se quiser, namoro, essas coisas para depois.132
129
Ainda ressaltando a atuao de sua me como incentivadora das filhas, expressa Glria
Sandes que
meu pai no fazia questo assim, que a gente estudasse fora, sempre foi uma luta da
minha me, embora ele no fosse aquela pessoa, .... Ele achava o estudo importante,
mas j meu irmo, que foi o penltimo, ele fez tudo! [...] Meu irmo que nem era
assim muito ligado a estudo. Hoje ele professor e tudo, mas no comeo meu pai fez
tudo por ele, tudo que podia fazer por um filho, universidade particular l no Par, no
sei aonde viu e a gente no, universidade pblica, a gente foi pblica, porque ele no
podia custear e nem, no havia grandes , se bem que as federais eram melhores na
nossa poca mesmo.133
Mas no eram somente os pais, as mes, os tios, os noivos e namorados que figuravam
na cena em que o ingresso feminino nas instituies de ensino de terceiro grau ia emergindo
com mais nitidez, as tias e as irms que j haviam trilhado caminhos semelhantes atuavam no
cenrio, se constituindo em referenciais para as que iam tambm significando a vida mediante
a educao superior, tendo em vista a profissionalizao. Nesse sentido, expressa Claudete
Dias:
133
134
Glria Sandes tambm ressalta a influncia exercida por uma das irms de sua me, que
estudara Servio Social no Rio de Janeiro.
Minha tia Mundica, Raimunda Veras foi a nica que se formou, morava no Rio de
Janeiro [...] eu admirava muito minha tia, achava o mximo, estar no Rio de Janeiro,
voc chegava do Rio cidade muito bonita muito desenvolvida, independente, achava
muito interessante ...135
Rosa Amlia Tajra, uma das primeiras mulheres a se formar acentua que a irm mais
nova:
[...] essa menina se mirou em mim e foi fazer Medicina na mesma escola que eu fiz,
fez os 2 anos de ....j era o que era? Sim era o vestibular mas depois teve outro nome,
fez o curso de Medicina brilhante tambm, nunca foi reprovada em matria nenhuma,
tambm gostava de estudar. A Teresa tinha uma afinidade comigo que ela quando se
formou no comprou o anel de Medicina, ela chegou aqui em Teresina, disse assim: eu
quero ver o teu anel para mim fazer igual [...].136
Como a maior parte das jovens que ia passando pelo ensino superior ingressava no
mercado de trabalho, algumas passando a atuar no magistrio de terceiro grau. As professoras
iam contribuindo para a formao das novas geraes, tanto transmitindo conhecimentos
relativos rea de conhecimento em que atuavam, quanto construindo modelos de feminino,
uma vez que iam constituindo identidades alternativas. o que nos sugere Claudete Dias no
seguinte trecho de sua entrevista:
ento a Clis era assim nosso mito, nosso dolo, nossa dola, era ela! at hoje, quer
dizer, ela, acho que ela dola de muita gente, muitas mulheres no Piau, porque ela
o exemplo. [...] Ela formou uma gerao. Eu fao parte de uma gerao que ela ajudou
a formar, que ela ajudou a quebrar preconceito, principalmente na poca dos anos 70,
no se falava em Karl Marx, Lnin, no se podia ler, mas ela falava escondido para a
gente...137
135
Jovens moas, pais, mes, irmos, irms, tios, tias, noivos, namorados e instituies so
atrizes e atores nessa trama que vai delineando o ensino superior como espao feminino.
Nesse bojo, coexistem diferentes investimentos e concepes em relao formao
feminina e masculina, onde o significado atribudo educao de moas e rapazes
produzido de forma relacional. Assim, os investimentos que buscam produzir mes, esposas e
donas de casa no tocam unicamente quelas jovens,
existenciais a partir da vivncia desses lugares de sujeito. Mesmo nas trajetrias de algumas
moas que iam vislumbrando trilhas diferenciadas, conceber o casamento e a maternidade
como os caminhos femininos, por excelncia, atuava ainda como produtor de diferenas
quanto aos estmulos e expectativas referentes educao masculina e feminina, visto que, em
alguns casos, como na famlia de Fides Anglica, os pais investiram, sobretudo, na formao
dos filhos, valorizando o ingresso no ensino superior, por serem os homens considerados
provedores familiares; enquanto a educao das filhas era voltada para o casamento.
Igualmente, na histria de Claudete Dias, essas concepes referenciavam os distintos
investimentos voltados para a sua educao e a de seu irmo.
Dentre famlias que a princpio no cercearam o ingresso das filhas nas instituies de
ensino de terceiro grau podiam figurar diferenciaes mais sutis, como nos conta Clis
Portella, ao destacar o maior estmulo dado aos seus irmos em detrimento das irms.
Mas os investimentos familiares no perodo em estudo so plurais, pois os pais e as
mes de algumas jovens iam impulsionando as filhas a descentrarem a formao da identidade
dos papis tradicionais femininos, ou a constru-la para alm deles, como expressam Ceclia
Mendes, Nerina Castelo Branco e Glria Sandes.
Nas relaes entre pais, mes e filhas iam prevalecendo, mesmo nas famlias que no
valorizavam a formao superior para as mulheres, os projetos desenvolvidos pelas jovens,
pois mediante negociaes e embates, elas iam ingressando nas instituies de ensino de
terceiro grau, como foram os casos de Fides Anglica e de Claudete Dias.
Nessa trama, as moas figuram como as principais atrizes, desterritorializando a
identidade feminina centrada no casamento e na maternidade, atravs da valorizao de uma
possvel carreira; contudo, s vezes, as mes assumiam o lugar de protagonistas estimulando
suas filhas a alarem novos vos, como ocorreu com a me de Glria Sandes.
Essas possibilidades de arranjos de investimentos familiares e individuais, na formao
feminina de terceiro grau, parecem ser a configurao que vai emergindo no perodo, uma vez
que se trata de um momento em que esto sendo deslocadas fronteiras de gnero, na medida
que algumas mulheres dessas geraes iam se singularizando ao desenvolverem projetos
pessoais e ao buscarem autonomia, onde o ingresso no ensino superior funcionava como uma
das bases desse processo de singularizao.
Nesse movimento, iam se descentrando sentidos atribudos formao feminina, pois,
se entre o final do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo XX, quando a educao
feminina vai sendo problematizada e o movimento feminista emergente no perodo considera
a educao uma das principais bandeiras de luta. A educao da mulher vai sendo significada
a partir dos papis femininos tradicionais, na medida em que um dos principais argumentos
enfocados o fato das mulheres precisarem se instruir para melhor desempenharem os papis
de me e de esposa.138
Vale lembrar que, entre o final do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo XX, as
mulheres vo aumentando os nveis de escolarizao, atravs do ingresso nas escolas normais,
que vinham se difundindo no Brasil desde a segunda metade do sculo XIX. Da mesma
forma, magistrio primrio vai se transformando em profisso feminina, passando a ser visto
como sacerdcio e atividade de amor e doao.139
Desse modo, a educao feminina foi sendo instituda
centrando-se no outro, na medida em que ela visava instruir a mulher para melhor
desempenhar os seus papis familiares; ou no caso, daquelas que ingressavam nas escolas
normais e no mercado de trabalho, o significado atribudo era o de que a professora seria uma
segunda me dos alunos e alunas.
Nos anos 1950 e 1960, seja mediante estmulo familiar, seja atravs de investimentos
pessoais, a educao comea a se centrar nas mulheres, da mesma forma que tal perspectiva
vai passando a ter efeito de verdade, para usar uma expresso de Michel Foucault.140
Contudo, importante destacar a descontinuidade temporal no que se refere aos
estmulos dados s jovens para que ingressassem no ensino superior, uma vez que Rosa
Amlia Tajra, na dcada de 1930, ingressa na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com o
apoio do pai, enquanto que, entre o final dos anos 1960 e o incio dos anos 1970, Fides
Anglica e Claudete Dias tiveram que negociar com os pais a continuidade dos estudos, tendo
em vista que, nas duas histrias, ainda que os pais valorizassem a educao das filhas, o
significado a ela atribudo ia divergindo daqueles desenvolvidos pelas ento aspirantes-aacadmicas, que desejavam se investir de um ttulo de nvel superior. Assim, os incentivos
138
familiares no seguem uma linha contnua e nem progressiva, na medida em que h avanos e
recuos, embora, no decorrer dos anos 1950 e 1970, seja cada vez mais constante o ingresso
feminino nas instituies de ensino de terceiro grau mediante a aprovao e estmulo, ora dos
pais, ora das mes ou de ambos.
urgia-lhe a criao da Faculdade, que viria satisfazer a duplo fim: facilitar aos seus
filhos, em regra desprovidos de recursos pecunirios, para buscarem outros e mais
alentados centros, a obteno de diploma de bacharel em direito, e incentivar,
melhorando, desenvolvendo e aperfeioando, a cultura jurdica entre ns. De outro
lado, e como de grande relevncia, avulta a certeza de que se poderiam preencher,
mais facilmente, os cargos da judicatura piauiense.142
SANTOS NETO, Antnio Fonseca dos. A organizao universitria e suas interfaces com a estrutura de
poder local. 1998. Dissertao (Mestrado em Gesto Universitria) - Universidade Federal do Piau,
Teresina, 1998. p. 110.
142
Trecho apresentado por Higino Cunha em Memria Histrica da Faculdade de Direito do Piahy, citado por
SANTOS NETO, op. cit., p. 105.
143
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU. Centro de Cincias Humanas e Letras. Departamento de Cincias
Jurdicas. Bacharis em Direito. [Teresina, 2002].
nesse contexto, que se inicia a luta pela equiparao da instituio s suas congneres,
cujo xito obtido em 1936, mediante Decreto Federal n 864, de 1 de julho de 1936. Nesse
ano, diplomada a primeira turma, que conclura o curso em 1935 e em decorrncia da no
equiparao da instituio, no havia recebido os diplomas de concluso do curso, exceo
de 2 bacharis que recorreram Justia.144
Por esses anos, era pequena a clientela atendida, uma vez que aqueles e aquelas mais
abastados, mesmo almejando o curso de Direito dirigiam-se para outras cidades. Desse modo,
no decorrer dos anos 1950, que a escola vai passando a formar um nmero maior de rapazes
e moas, se intensificando a presena feminina, pois, na dcada de 1930, apenas uma mulher
concluiu o curso de Direito; nos anos 1940, duas o fizeram; nos 1950, trinta e seis se
formaram e nos anos 1960, cinqenta e duas concluram o referido curso.145
Como a FADI dominou o universo cultural da cidade por mais de 20 anos, aqueles e
aquelas que no podiam ou no desejam sair de Teresina para cursar o ensino de terceiro grau
tinham como nica opo aquela escola. Nesse sentido, relembra Manoel Paulo Nunes que
no Piau a nossa vocao natural era estudar Direito porque era a nica escola existente 146.
Desta forma, a maioria das jovens que passava a almejar o ensino de terceiro grau mesmo que
Direito no fosse o curso desejado iam ingressando na faculdade, como foi, por exemplo, o
caso de Nerina Castelo Branco, que assim se expressa:
[eu] tinha vontade de fazer o curso de Jornalismo, mas no tinha na minha poca, s
existia o curso de Jornalismo no Rio de Janeiro, para eu ir para l era meio difcil, no
tinha condies de ir para o Rio de Janeiro, era um fim de mundo naquele tempo! voc
sabe que as comunicaes, os transportes eram difceis, ento, eu no tive muita
opo, tive que fazer Direito, no me arrependi, no! o Direito uma carreira bonita,
mas eu no me dediquei no, a Direito, nunca exerci nada relativamente a Direito, no
me atraiu muito, eu tambm no tive muita oportunidade [...] fiz Filosofia, quando eu
fiz licenciatura me... como se diz me qualifiquei para ser professora, a grande
realizao, a grande mesmo realizao pessoal foi no magistrio e eu no sa do
magistrio at me aposentar....147
144
BEZERRA, Joaquim de Alencar. Histria da Faculdade de Direito do Piau. Teresina, mar. 2001. Digitado.
No paginado.
145
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU, 2002.
146
NUNES, Manoel Paulo. As solides justapostas. Teresina: APL, 1992. p. 25.
147
CASTELO BRANCO, Nerina. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev., 2002.
Nos anos 1950, quando Nerina Castelo Branco estudou na FADI, esta j gozava de
grande respaldo local, pois nessa poca j se encontrava definitivamente reconhecida (Lei n
17551, de 9 de janeiro de 1945) e federalizada, em 1955 (Lei n 1254, de 4 de fevereiro de
1955). Manoel Paulo Nunes nos diz mesmo que a escola se inscrevia, por esses anos, como
lugar da tradio, ao relembrar que a Faculdade de Direito era uma Faculdade conservadora,
uma Faculdade tradicionalista e estudavam na Faculdade de Direito as pessoas que j estavam
instaladas na vida, eram bancrios, eram pessoas j realizadas. Era uma maneira de legitimar
o status que j possuam
148
[...] Eu queria realmente fazer era Engenharia, eu gostava era de matemtica, de fsica,
era nessa rea l, e meus irmos, tinha muitos irmos perto de mim, e meus irmos
mais prximos de mim fizeram Engenharia, e eles gostavam muito de matemtica,
formas matemticas, e eu fazia exerccios de matemtica para me divertir, ento eu
gostava de me divertir com matemtica, e queria fazer Engenharia, mas como eu no
podia sair daqui pro Rio de Janeiro, onde tinha o curso, eu fiz Direito, depois eu achei
que estava bem em Direito, no precisava continuar para fazer Engenharia.151
148
estou me preparando para seguir a carreira de advogada, carreira que admiro muito e
que meu ideal. Muitas e muitas coisas poderia falar a respeito da minha escolha, as
mais importantes, porm foram o interesse que me despertou este estudo e a influncia
de parentes e amigos [...] muito ajudaram nesta escolha. A comear pela minha
famlia, vrios parentes advogados, em seguida, amigos meus e de meus pais, desde
cedo, contriburam para que fortalecesse em mim a vontade de estudar mais
arduamente, a fim de ultrapassar os obstculos e preparar-me para chegar faculdade,
que lgico, no poderia ser outra seno a Faculdade de Direito que o meu sonho , o
meu ideal que j atingi em parte.152
Como observamos, tanto Nerina Castelo Branco quanto Fides Anglica ingressaram na
FADI por no terem meios para estudar os cursos que desejavam, uma vez que ambas
precisariam se deslocar para o Rio de Janeiro. J Nazar escolheu a carreira jurdica por ser
esta a que aspirava seguir. , ento, importante pontuar que tanto a carreira jurdica ia se
tornando em si uma aspirao feminina, como tambm se constitua em formao possvel
para as que no tinham condies de alar outros caminhos.
Mas, no perodo em que Nazar comeou a cursar Direito, j existiam maiores
condies de escolha em termos de cursos, pois estavam funcionando, alm da FADI, as
Faculdades de Filosofia, de Odontologia e de Medicina.
A Faculdade Catlica de Filosofia foi criada, em 1957, e inicia as suas atividades em
1958, aps a autorizao para funcionamento, oferecendo os cursos de Bacharelado em
Filosofia, em Geografia e Histria e ainda em Letras Neolatinas. Assim, como a FADI, a
escola emergiu como instituio privada, cuja mantenedora era a Sociedade Piauiense de
Cultura, tendo como idealizador D. Avelar Brando Vilela, chegado a Teresina, no ano 1955,
e que marcou, sobremaneira, o universo religioso e educacional piauiense.153
A Faculdade de Odontologia que comeou a funcionar em 1961 era fruto do esforo de
um grupo de profissionais da rea de sade, que desde alguns anos desejavam instalar uma
escola dessa natureza. Nesse sentido, a instituio dessa Faculdade era a consolidao de um
sonho acalentado desde 1947, quando o Pe. Alberto de Freitas Santos reuniu profissionais da
rea de sade, desafiando-os a criar uma Faculdade de Odontologia, surgindo como fruto da
provocao o Movimento pr-Faculdade de Odontologia do Piau, que, mais de uma dcada
depois, em 1959, sob a presidncia do Professor Oscar Olmpio Cavalcanti,
152
153
ganha
COLUNA universitria focalizando Nazar Castelo Branco. O Dia, Teresina, ano XIX, p. 11, 20 fev. 1969.
SANTOS NETO, op.cit.
156
157
BRANDO, Wilson. Universidade do Piau. O Dia, Teresina, ano XII, n. 1141, p. 4, 14 nov. 1963.
CRIADA a Universidade. O Dia, Teresina, ano XIV, n. 1153, p. 3, 21 jan. 1964.
seguida, foi encaminhada pelo Governador Petrnio Portella ao Marechal Presidente Castelo
Branco.158
No ano seguinte, a proposta, em forma de anteprojeto de lei, foi enviada ao Ministrio
da Educao e Cultura (MEC), mediante ofcio expedido pelo governador Petrnio Portella,
em dezembro de 1965, do qual extramos o seguinte trecho:
Senhor Ministro:
Na conformidade do entendimento que tive a honra de manter com V. Excia., cabe-me
enviar considerao desse Ministrio, o anexo anteprojeto de lei, emanado do
Conselho Estadual da Educao, que trata da criao da Universidade do Piau.
Hoje, com as vrias providncias tomadas pela Unio Federal, visando ao ingresso do
nosso Estado na era industrial, avulta a idia da Universidade como a
superestrutura.[...]
O Piau est amadurecido para a Universidade. [...]
Certo de que V. Excia., identificado conosco e fiel palavra j empenhada, saber
acudir ao nosso apelo, aproveito a oportunidade para apresentar-lhe os meus protestos
de elevada estima e distinta considerao.159
Os efeitos desse ofcio foram lentos, embora positivos, segundo acentua Luiz Bello, uma
vez que o anteprojeto de lei, sobre a criao da Universidade do Piau, juntamente aos
pareceres do Conselho Federal de Educao (CFE) foram enviados ao presidente da
Repblica em maro de 1967, por meio de ofcio do Ministro da Educao e Cultura,
Raimundo Moniz de Arago, isto s vsperas do trmino do mandato de Castelo Branco.
Assim, o encaminhamento do anteprojeto obedecera, ao que parece, to-somente aos
influxos daquele final de governo. Mas o fato que o mesmo se materializa, s pressas, em
Projeto de Lei do Poder Executivo enviado ao Congresso Nacional.160 No entanto, no
governo subseqente, sob comando de Costa e Silva, o Projeto de Lei no s fora retirado do
Congresso, quanto devolvido ao MEC para re-exame, por se tratar de expediente recebido
na administrao anterior. 161
Nesse nterim, em mbito local, outras medidas vo sendo tomadas em prol da
implantao de uma universidade no Piau, visto que em 1966 comeam a se articular a partir
158
159
160
161
SILVEIRA FILHO, Jos Camillo da. Depoimento. In: BELLO, Luiz. Da serra da Ibiapaba ao campus da
ininga. [Teresina: s.n., 1981.]. v.2. Mimeografado. p. 533.
NUNES, Petrnio Portella. Ofcio. Teresina, 17 dez. 1965. In: BELLO, op. cit., p. 362.
SANTOS NETO, op. cit., p. 164.
BELLO, op. cit., p. 365.
do governo estadual, como j vimos, as aes com vistas implantao de uma Faculdade de
Medicina no Estado, o que, de fato, ocorre em maro de 1968. A criao dessa instituio
tinha por objetivo, para alm de instituir uma escola de medicina, criar meios para a instalao
da universidade, pois, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educao, para que se
institusse uma organizao tipo universidade era necessrio que houvesse um mnimo de 5
escolas isoladas.
Nesse sentido, procurava-se criar as condies para que o projeto deslanchasse. Logo,
com o mesmo intuito, concomitante criao da Faculdade de Medicina instituda a
Fundao de Ensino Superior do Piau, mediante a Lei estadual n 2745 de 10 de agosto de
1966, cujo objetivo era coordenar o sistema estadual de ensino superior nascente, nesse
sentido, foram incorporadas Fundao as escolas de Servio Social e Enfermagem, criadas
na administrao de Chagas Rodrigues (1959-1962), embora no tivessem sido ainda
implantadas, bem como se integraram as Faculdades de Medicina e de Odontologia, esta
estadualizada, em 1965.162
Com efeito, em 1968, o Estado j tinha meios para satisfazer requisito exigido pela Lei
de Diretrizes e Bases da Educao, pois j dispunha de 5 escolas institudas, sendo que 2 delas
encontravam-se somente no papel, como nos referimos. Assim, nesse mesmo ano, o CFE
apresenta parecer conclusivo e favorvel criao de uma universidade no Piau, sendo o
processo encaminhado para o Congresso Nacional.
Confluram em torno do projeto tanto os interesses da elite poltica local, quanto os
segmentos intelectuais, notadamente, aqueles vinculados s instituies de ensino superior
existentes.163 Desse modo, os ento parlamentares, ex-governadores, Petrnio Portella Nunes
e Chagas Rodrigues, adversrios polticos, o primeiro da ARENA, mais ajustado aos
desgnios da Ditadura Militar; o segundo do MDB, de oposio, assumindo um lugar que se
poderia chamar de centro-esquerda, eram respectivamente o presidente e o relator do projeto
da universidade do Piau.164
Nessas condies, aps acordos entre a bancada piauiense e os demais congressistas,
bem como o exame das emendas apresentadas ao Projeto de Lei do Poder Executivo, foi
aprovada, sancionada e promulgada a Lei n 5528, de 12 novembro de 1968, que institui a
Universidade Federal do Piau, sob a forma de fundao, de modo que eram integradas
Fundao Universidade Federal do Piau as faculdades existentes, bem como as escolas de
162
Irlane Abreu, por sua vez, se tornou aluna da FAFI em 1964, ao ingressar no curso de
Geografia. Contudo, estudar em Teresina no fazia parte dos planos da jovem, pois queria
cursar Servio Social, em Fortaleza.
[...] Eu queria estudar fora, eu queria ir fazer Servio Social, at no sabia nem o que
diabo era Servio Social, a gente no sabia! [...] na dcada de 1960 esses cursos
tradicionais era aqueles que existiam aqui, mas eu queria era sair de Teresina! ele no
deixou, por conta disso, eu passei quatro anos sem estudar. Mas eu comecei a
trabalhar, olha a a contradio, muito cedo, com 18 anos eu comecei a trabalhar,
168
comecei a trabalhar e num dia qualquer resolvi fazer o vestibular na FAFI, eu resolvi
fazer por meu prprio risco, resolvi, eu digo vou me inscrever, no vou dizer para
ningum, me inscrevi, era vestibular, ainda aquele como o que a gente chama... s a
rea de Geografia e Histria. [...] Ento eu disse, eu vou fazer Geografia.170
Mas, se estudar na FAFI no era a primeira aspirao de Irlane Abreu, era para Ceclia
Mendes, que desejando ser professora ingressa no curso de Letras Neolatinas e nos diz que
eu sou professora por vocao e profisso. Acho que recebi muita influncia de minha
famlia porque eu fui criada na casa de uma professora, minha me foi professora
primria, desde que me entendo ela era professora do Jardim de Infncia Llia
Avelino. [...] Bem, ento minha me foi professora e meu pai apesar de ser mdico
tambm foi professor. [...] Quer dizer que eu nasci em uma famlia de professores e ao
lado da minha casa era meu av e minha av professores e tinha a tia Lourdes Rebelo
tambm professora. Eu acho que eu recebi influncias deles, embora nunca ningum
tinha assim como pai e me a gente observa hoje os pais dizem quero que meu filho
seja isso, aquilo, nunca vi meu pai indicar nada sempre deixou a gente em plena
liberdade de escolher. Mas eu acho que mesmo assim sem sentir eu fui influenciada
por eles. [...] Ento sem falar num vizinho, esse sim na minha adolescncia, me
influenciou muito pra escolha da rea que eu ia lecionar, que foi o Dr. Joo Marcos,
ele era mdico, professor de francs e era pai de uma amiga de infncia, minha vizinha
Amlia, era minha contempornea do colgio, era da minha idade e a gente era muito
amiga e vizinha e ele resolveu dar aula de francs pra gente. [...] De modo que quando
eu resolvi que ia ser professora eu disse sempre que ia ser professora de Francs e fui.
[...] Dentro da escola, j no ltimo ano de graduao, foi que uma professora me
influenciou Magda Soares, grande professora de portugus, didtica e portugus. Ela
me empolgou pelo portugus e eu comecei tambm quando eu voltei da graduao que
eu conclui em Minas Gerais, que aqui no tinha professores para todas as disciplinas
do ltimo ano a eu fui fazer em Minas Gerais, a eu j voltei querendo lecionar
portugus, mas minha paixo foi sempre ser professora de francs.171
Claudete Dias, que se torna aluna da escola em 1970, por sua vez, almejava cursar
Jornalismo no Rio de Janeiro e, dada impossibilidade de realizar o anseio, tem por nica
170
171
ABREU, Irlane Gonalves de. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, abr. 2002.
MENDES, Maria Ceclia da Costa Arajo. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina,
maio, 2002.
opo as escolas instaladas em Teresina, escolhendo a FAFI, onde presta vestibular para o
curso de Histria.
Eu queria fazer Jornalismo, eu tinha ido passar frias em So Paulo, mas meu pai
disse que eu no ia para So Paulo, porque era muito longe e eu era muito nova, a eu
tinha outra madrinha que morava em Braslia, que disse que me levava para morar
com ela, ele disse que no deixava e eu ia ficar em So Raimundo, ento eu fiquei
desesperada e pedi meu tio para vir me buscar, meu tio foi me buscar em So
Raimundo Nonato para eu vir fazer faculdade aqui em Teresina, ento, o que ia fazer
em Teresina? Nos anos 70 s tinha FAFI, que era Histria, Geografia, Filosofia e tinha
Escola de Direito e a de Odontologia e Medicina; eu no queria Odontologia.... queria
Direito, mas meu tio que advogado, disse que no era profisso para mulher [...] ele
dizia que no era profisso para mulher! Ento, qual era a profisso que eu ia fazer?
Fui na FAFI e disse: vou fazer Histria e fiz vestibular em 1970 ...172
172
DIAS, Claudete Maria Miranda. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
FACULDADE CATLICA DE FILOSOFIA. Histricos escolares. Teresina, jun. 2002.
174
Ibid.
173
uma faculdade feminina175, uma vez que essas escolas e, posteriormente, os cursos ofertadas
nelas, a princpio, iam passando a receber a maior parte das jovens que ingressavam no ensino
de terceiro grau.
Essa trilha explicada, por um lado, pelo objetivo dessas escolas, que era formar
professores e professoras para o ensino mdio, propiciando, assim, formao em uma rea
em que as mulheres j dominavam, que era a do ensino em nvel primrio; por outro, a no
equivalncia dos diversos cursos de nvel mdio, o que perdurou at 1961, quando da
promulgao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, tendo em vista que as
concludentes do normal s tinham acesso a alguns cursos ministrados nas Faculdades de
Filosofia. Como grande parte das jovens que chegavam ao ensino mdio estudava essa
modalidade de curso, o prosseguimento dos estudos em nvel superior, de certa forma, j
estava condicionado at o incio dos anos 1960 pelo tipo de escolarizao feminina
predominante no ensino mdio.176
Nesse particular, nos parece que a clientela da FAFI se diferenciava, pois considerando
a anlise de histricos escolares de ex-alunas da escola, ingressas entre 1958 e 1966,
prevalecem as que estudaram o curso cientfico, embora muitas normalistas tambm tenham
tido acesso FAFI.177
Possivelmente, essa configurao decorre de alguns fatores; 1 - o fato do curso normal
ter carter terminal para muitas jovens, na medida em que propiciava o ingresso no mercado
de trabalho, sendo vlido ressaltar que, nos anos 1960, estava se processando a ampliao dos
empregos no magistrio primrio. Assim, ao conclurem o curso normal tinham condies
propcias ao ingresso no mercado. 2 - em virtude do acesso ao ensino superior ser ainda uma
aspirao de poucas mulheres, embora cada vez mais freqente no perodo. 3 aparentemente as que concluram o cientfico foram mais agressivas no sentido de entrar para
o ensino de terceiro grau pelo fato do curso normal ir deixando de ser o tipo de formao das
mulheres dos segmentos mdios e altos, que passavam a aspirar ao ensino superior, ao tempo
em que o curso normal estava se tornando um tipo de formao das jovens das classes mdias
baixas. Embora caiba ressaltar que essa afirmativa no deve ser lida em perspectiva
globalizante, visto que moas dos setores mais abastados continuavam a cursar o normal.
175
Trata-se do Instituto Superior de Pedagogia, Cincias e Letras Sedes Sapientiae fundado pelas Cnegas de
Santo Agostinho, em 1933. Cf. SAFFIOTI, Helieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade.
2. ed. Petroplis: Vozes, 1979. p. 229.
176
As normalistas passaram a ter direito a ingressar em alguns cursos ministrados nas Faculdades de Filosofia,
em 1939, por meio do Decreto-Lei n 1190 de 4-4-1939. Cf. SAFFIOTI, op. cit., p. 227.
177
FACULDADE CATLICA DE FILOSOFIA, 2002.
interessante lembrar que o Colgio das Irms, tradicional formador das moas dos setores
mais abastados, continuava nos anos 1960 a oferecer essa modalidade de curso.
No que se refere presena feminina na FADI, houve expanso no perodo em estudo,
no entanto a escola continuou a ser um espao predominantemente masculino. O que no se
constitui apangio local, uma vez que o curso de Direito nesses anos se configura como o
mais procurado no ensino superior do Brasil178. Assim, ainda vlido lembrar que a carreira
jurdica uma das mais cotadas para os homens. Em fins de 1950, por exemplo, moradores
da cidade de So Paulo179 levados a classificarem um conjunto de profisses, situam as
profisses de mdico e de advogado em primeiro e segundo lugar, respectivamente, o que
possibilita afirmar que a carreira jurdica continua sendo bastante privilegiada, ocupando o
topo da escala social. Manuel Paulo Nunes, nesse sentido, tambm acentua que muitos se
dirigiam para a Faculdade de Direito do Piau para legitimar o status que j possuam.180
Quanto presena feminina e masculina na FOPI e na FAMEPI, as informaes no
perodo em estudo so bastante lacunares. Assim h indcios de predominncia masculina em
ambas, nos anos 1960. Durante a dcada de 1970, quando a presena feminina no ensino
superior se expande em diversos ramos do saber, os cursos de Medicina e de Odontologia, j
sob incorporao da UFPI, apresentam predominncia masculina, sendo esta mais intensa no
curso de Medicina.
somente na dcada de 1980 que as acadmicas passam a predominar no curso de
Odontologia, enquanto que no curso de Medicina dos anos 1970 ao incio dos anos 1990, a
participao feminina nessa rea gira em torno de 35%.181
Cabe ressaltar que a FOPI em face das grandes dificuldades por que passou, em virtude
dos altos investimentos necessrios para implantao e manuteno de um curso de
Odontologia, tinha a princpio poucos alunos e alunas concorrendo s vagas oferecidas. o
que nos diz Mariano Gayoso Castelo Branco, um dos fundadores da escola, ao argumentar
que
BARROSO, Carmen de Melo; MELLO, Guiomar Namo de. O acesso da mulher ao ensino superior brasileiro.
Cadernos de Pesquisa, n. 15, p. 55, 1975.
179
NOVAIS, Fernando A.; MELLO, Joo Manuel Cardoso de. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Histria da vida privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.
p. 587.
180
NUNES, Manoel Paulo, 1992, p. 27.
181
CARDOSO, op. cit., p. 52;59.
alunos no acreditavam que ela fosse frente. No acreditavam que fosse reconhecida
e que seus cursos vigorassem. E assim ns tnhamos vestibulares em que se
apresentavam dez, vinte alunos. E ns ficvamos na impossibilidade, at, de reprovar
esses alunos, porque, se o fizssemos, no teramos condio de ensinar. Mas j com
trs anos de funcionamento, estvamos com uma turma de 30 a 40 vestibulandos. A
procura de vagas na escola j era maior.182
182
CASTELO BRANCO, Mariano Gayoso. Depoimento. In: BELLO, op. cit., p. 297.
VESTIBULAR de odontologia. O Dia, Teresina, ano XIV, n. 1175, p. 1, 22 fev. 1964.
184
FATOS e notcias. O Dia, Teresina, ano XV, n. 2066, p. 8, 23 fev. 1967.
185
VESTIBULAR odontologia. O Dia, Teresina, ano XV, n. 2328, p. 1, 13 jan. 1968.
186
SANTOS NETO, op. cit., p.132.
187
AVANTE faculdade. O Dia, Teresina, ano XV, n. 2364, p. 8, 25/26 fev. 1968.
188
COLUNA de Pomplio Santos. Medicina. O Dia, Teresina, ano XIX, p. 3, 19/20 jan. 1969; RESULTADO
final do vestibular de medicina. O Dia, Teresina, ano XIX, p. 7, 1 fev. 1969.
183
189
est confirmada para s 8:00 horas do prximo dia vinte e quatro a realizao, em
segunda poca, do vestibular da Faculdade Catlica de Filosofia do Piau. Segundo
informaes da Secretaria, apenas cinqenta e cinco candidatos esto inscritos quando
noventa e nove so as vagas ainda existentes. Considerando-se tal estatstica pode-se
afirmar a falta de estmulo aos nossos jovens no setor educao.191
Parece-nos, ento, que a demanda por instruo em nvel de terceiro grau ainda era
aqum das possibilidades de absoro das escolas locais, mesmo com o crescimento do
nmero de moas e de rapazes que concluram o ensino mdio, nas dcadas de 1950 e 1960,
desse modo era constante o no preenchimento de todas as vagas oferecidas, inclusive, no
final dos anos 1960, o que levou o diretor da FADI a traar alternativas para que fossem
preenchidas as vagas existentes no primeiro ano do curso de Direito.
189
A despeito de ocorrer o no preenchimento das vagas nas escolas locais, havia a sada
de aspirantes-a-acadmicas para outras cidades com o fim de ingressar no ensino superior,
tanto em cursos no oferecidos pelas Faculdades de Teresina, quanto naqueles congneres aos
que aqui funcionavam. Com efeito, a este fato est relacionado o maior prestgio que a
formao em outra cidade propiciava, assim como a possibilidade de desfrutar de maior
liberdade, tendo em vista que, ao estudar fora, poderiam ser criados mecanismos para burlar a
vigilncia familiar. Desse modo, algumas jovens, por esses anos, estavam estudando em
cidades como Rio de Janeiro, Recife, So Lus, Fortaleza, Belo Horizonte e Braslia193. Glria
Sandes, por exemplo, se dirige para Fortaleza para cursar Jornalismo, embora o pai desejasse
que a aspirante-a-acadmica prestasse vestibular para Medicina na recm instalada Faculdade
de Medicina do Piau.
[...] Eu queria fazer Instituto Rio Branco, mas eu, eu no me comunicava muito, me
lembro hoje que eu no me comunicava muito, acho que eu tinha muito medo dos
adultos, das coisas, [...] eu acho que eu nem sabia onde buscar informao no sabia.
Eu sabia vagamente, eu quero fazer o Instituto Rio Branco, eu queria ser diplomata,
mas eu no sabia [no] tinha nenhuma influncia de diplomata na minha vida, no sei
onde eu busquei isso a, depois no cientfico eu j queria fazer Jornalismo, porque eu
vi numa revista, at por correspondncia eu comecei a fazer, vi aquelas fotos. [...] Um
dia l em Fortaleza e vi l Jornalismo, fazia um cursinho aqui, fui passear l. Quando
eu voltei foi uma semana do Piau, no Cear, e uma semana que houve l do Piau, na
Universidade e fui e vi Faculdade curso de Jornalismo. A eu me informei, eu quero
fazer jornalismo. Foi um escndalo na minha famlia! O meu pai chegou a ..., porque
ele queria que eu fizesse Medicina, ele j, ele me botou para fora de casa, no para
mim, mas de madrugada eu vi ele conversando com minha me, dizendo assim ou essa
menina ou eu, sabia? chegou a dizer isso, eu fiz de conta que no ouvi e nunca disse
para ele que eu ouvi, a a minha me me mandou para Piripiri, para a casa de uns
parentes [...] mas ele vibrou porque eu fiz Jornalismo, passei muito bem e ele vibrava
[...] mas no fundo ficou aquela frustrao de meu pai, porque eu no tinha feito...194
Teresina. Isso se justifica pelo fato de os maiores recursos familiares serem voltados para a
formao dos filhos, seja porque alguns pais e mes concebiam que as filhas deveriam estar
sob vigilncia familiar, seja porque os cursos aqui instalados correspondiam s expectativas
de parte das jovens que estavam ingressando no ensino superior. De qualquer modo, o
adentrar das mulheres no ensino de terceiro grau vai deslocando fronteiras de gnero, na
medida em que as jovens se fazem cada vez mais presentes em um reduto que era quase que,
exclusivamente, masculino. Em 1950, conforme dados censitrios, pode-se dizer que a
presena feminina, no Piau, correspondia a 4,23% do total de pessoas que haviam concludo
algum curso superior, enquanto que, em 1970, esse percentual passa a ser de 24,53%195, j
durante a dcada de 1970, a presena feminina na UFPI perfez mais de 45% do total de
alunos ingressos.196
No entanto, embora a tendncia seja de crescimento da presena feminina em diversos
ramos do saber, h a concentrao das mulheres em determinados ramos, o que, por sua vez,
relaciona-se maneira como foi se expandindo o ensino superior, bem como s concepes
relativas formao feminina e masculina.
Em 1950, das 24 mulheres formadas em todo o Estado, a maioria havia concludo o
curso de Farmcia (10), seguidas respectivamente, pelas que concluram os cursos de Direito
(4), Medicina (1), Educao Fsica (2), cursos formadores de professores (4) e outras
modalidades de curso (3). Lembremos, ento, que quando as mulheres comeam a ter acesso
ao ensino de terceiro grau, a rea de maior concentrao feminina era justamente o curso de
Farmcia, enquanto que o curso de Direito era ainda um curso majoritariamente masculino.
Nesse mesmo ano, as escolhas masculinas incidiam respectivamente sobre os cursos de
Direito (191), Medicina (105), Odontologia (63), Farmcia (51), Engenharia (31) e
Agronomia (28). Como vemos, a maioria dos homens escolheram ramos tradicionais, em que
as reas mais procuradas eram as de Direito e de Medicina, configurao que se mantm nos
dois decnios seguintes.197
J a distribuio das mulheres que concluram o ensino superior, conforme o Censo
Demogrfico de 1960, a seguinte: das 105 formadas, a maioria havia concludo os cursos de
Direito (32), seguidas das que optaram pelos cursos de Farmcia (22), de Letras (16) e de
Odontologia (12), de maneira que possvel pontuar deslocamentos em relao ao decnio
anterior, visto que, nesse ano, a maioria das jovens se concentra na rea jurdica,
195
tradicionalmente, masculina. Em 1970, outra mutao emerge, pois das 495 jovens formadas,
a maioria se concentra respectivamente nos cursos formadores de professoras (218), no curso
de Direito (80), no curso de Odontologia (49), no curso de Farmcia (37) e no curso de
Enfermagem (32).198
Desse modo, durante a dcada de 1960, observamos que as trs reas onde a presena
feminina mais ampla so respectivamente os cursos formadores de professoras, de Direito e
de Odontologia, delineamento que, em grande medida, decorrente da maneira como se
expandiu o ensino superior em Teresina nesses anos, em que a FAFI foi a escola que absorveu
a maior parte das aspirantes-a-acadmicas. Contudo, esse ponto no constitui caracterstica
especfica, e sim geral, uma vez que, por esses anos, o acesso feminino ao ensino superior no
Brasil ocorre notadamente nos cursos formadores de professoras, tanto nas Faculdades de
Filosofia, quanto nas universidades199, visto que na dcada de 1960 predomina o sistema
universitrio na organizao do ensino superior no Brasil.200
Carmen Barroso e Guiomar Mello, ao estudarem o acesso feminino ao ensino superior
no Brasil com base em dados relativos aos anos de 1956 e 1971, acentuam que a concentrao
feminina em algumas reas, em especial, nos cursos formadores de professoras, decorre de
duas tendncias paralelas, de um lado o fato de que essas carreiras estavam se feminizando;
de outro, o crescimento relativamente maior dessas reas.201 Desse modo, a intensificao do
acesso feminino ao ensino superior no Brasil no teria desencadeado uma distribuio
homognea masculina e feminina pelos diversos ramos do saber, nesse perodo, se
consubstanciando guetos femininos e masculinos.202 O que no significa dizer que o ingresso
feminino nos cursos formadores de professoras no tenha produzido deslocamentos na
vivncia dessas mulheres, uma vez que, conforme argumenta Jeni Vaitsman, a entrada [das
mulheres] para o mundo da universidade plantou as bases para projetos de individuao que
reconstruam os significados do feminino e masculino predominantes at ento.203
Assim, a passagem pelo ensino superior tornou possvel a vivncia de novas
experincias, como podemos observar mediante trechos dos depoimentos de Clis Portella,
Ceclia Mendes, Claudete Dias, Fides Anglica, Irlane Abreu e Glria Sandes. A propsito,
a respeito dessas experincias que passaremos a discorrer.
198
[...] a vida, a poltica estudantil era muito acesa, voc realizava [havia] toda liberdade,
os partidos que se candidatavam, as chapas que concorreram ao diretrio acadmico,
depois a disputa da Faculdade de Direito at de natureza esportiva, ns tnhamos plena
liberdade de dizer o que ns queramos at certo ponto, at a revoluo, a depois da
revoluo comeou a represso, mas a eu j estava fora, mas soube que houve. Agora
h... enquanto eu estive l, ns tnhamos liberdade, me lembro que eu fiz parte do
Diretrio Acadmico, eram duas chapas uma liderada pela professora Iracema Santos
Rocha, que era aluna de Filosofia, e a outra liderada pelo Agnaldo Silveira, eu fazia
parte dessa chapa, no sei se era Diretoria Cultural, no sei o qu, ns montamos a
primeira biblioteca, no sei se ainda existe no Diretrio acadmico [...] Ento havia
mulheres, tudo se fazia, poltica, participao poltica. No havia essa discriminao,
podia conversar, podia namorar, podia conversar...tinha plena liberdade. Muito aberta
a FAFI, Dom Avelar que foi o criador, ele dava assistncia, fortalecia as festas,
estimulava, ns temos pessoas que sempre estimularam muito a questo do esprito
crtico, como o Padre Raimundo Jos, esprito crtico e criativo e a gente tinha plena
liberdade total de dizer e fazer o que quiser, do jeito que pensasse [...].206
Ver MEDEIROS, Antonio Jos. Movimentos sociais e participao poltica. Teresina: CEPAC, 1996. p. 2204; PEREIRA, Jos Reis. FAFI: anos de inquietude. In: REGO, Maria do P. S. N. N. do; MAGALHES,
Maria do Socorro Rios. O curso de Letras da UFPI: um fio da FAFI. Teresina: EDUFPI, 1991. p. 33-5;
COELHO, Celso Barros. Depoimento. In: BELLO, op. cit., p. 250-4; SOARES, Raimundo Jos Airemorais
(Pe). Depoimento. In: BELLO, op. cit., p. 258-75.
205
SOARES, op. cit., p. 272.
206
MENDES, 2002.
eu me libertei para a vida porque eu tinha mais conscincia do que eu queria, ento eu
passei a considerar que a vida era para se viver e viver bem, ento buscava tudo aquilo
que na realidade eu achava que ia integrar uma composio melhor de vida, eu
buscava tarefa, e ia atrs, ento, foi uma coisa muito importante, claro que os estudos
ajudavam, histria sempre ajudou a gente a fazer esse tipo de coisa, mas no credito
histria, propriamente, credito ao ambiente escolar que ns vivamos na FAFI, era
muito de crescimento, todo mundo estava ali, eu digo todo mundo, claro tem as suas
excees, eu lembro da minha turma, era uma turma que gostava de aprender, de falar,
de conversar, tinha umas noites culturais, todos os sbados, porque era
importantssimo! ns nos preparvamos para expor um assunto: o ano 2000 ia crescer
milhes de brasileiros, ento ns ficamos fazendo todo estudo antes para poder falar
para o pessoal, quer dizer, eram vrias temticas falando sobre mulher, falamos muito
sobre mulher, falamos muito, muito mesmo. Eram discusses ainda elementares, no
sentido de necessidade de romper, de buscar um lugar ao sol, mulher..., ns estvamos
naquela faixa de desabrochar, de busca do lugar, que ns tnhamos certeza que existia
e que no estavam ocupados, ento, isso facilitou muito, est ligado a essa frase que eu
disse mesmo: busca para a vida, porque eu via que eu poderia ser qualquer coisa que
eu quisesse e dar conta, o que no acontecia, a FAFI me deu um sentimento muito
grande, no somente de eu me aceitar, como tambm de levantar meu astral, saber que
eu era capaz, aos trancos e barrancos no era nada fcil, porque a gente..., no dia
seguinte, que acabava isso era pega na escola, sem saber nada na sala de aula, mas o
que eu quero dizer, era que havia essa vontade de crescimento, eram muito..., mas ns
conseguamos, por exemplo, nessa poca levar, essa poca era fechada, ns levvamos
gente da cpula da administrao tanto de Teresina como de..., quando ns levamos o
Petrnio l, no porque eu era irm dele, era porque na realidade era buscado pelo
Centro Acadmico que ia l convidar, chegava l metia o pau, quer dizer, so coisas
assim que ns vivamos intensamente, no era prprio da poca de outros lugares,
viver isso, esse momento questionador [...].207
207
As vivncias dos tempos de FAFI transcendiam aos muros escolares e, por vezes, era
esse deslocar de fronteira que tornava a escola atraente, pois, para algumas jovens
acadmicas, o fato de estudar na FAFI, alm de possibilitar uma expanso dos horizontes
mediante aquisio de novos conhecimentos, criava condies para intensificar a presena
nos espaos de lazer, onde podiam vivenciar prticas no oficializadas.
Agora a Faculdade foi tima, porque estava no auge da Praa Pedro II, eu no queria
nem conversa. Olha s a loucura, no to perto. A FAFI no era to perto era o qu?
umas seis quadras, [...] pois no intervalo, tinha um intervalo grande, eu no me lembro
qual era o horrio, voc acredita que ia todo mundo para a praa Pedro II? pois ia todo
mundo para l, para namorar, enfim viver! e voltava de novo para as aulas, olha que
cidade como , medo de nada, eu ia e voltava, depois no fim a gente teve carro, mas
tudo era a p aqui, carro era fico cientfica. Ento, todo mundo ia era a p, eu digo: meu Deus, coisa boa a gente ser novo! eu no me cansava, eu no ficava suada,
andava para l e para c, sem me desgastar, pois ainda tinha este passeio na praa no
meio da aula. A aula era aquela de copiar, no existia xerox, livros eram
pouqussimos, no era? No existia livraria para voc comprar, no existia livraria.208
No incio dos anos 1970, quando a ditadura endurecia aps a decretao, em 1968, do
Ato Institucional n 5 (AI5), a FAFI tambm se consubstanciava em um espao de resistncia
ditadura militar, levando mesmo as suas alunas, mediante vivncia na escola, a produzirem
novas verses para os acontecimentos polticos que ocorreram e ocorriam no pas.
[...] A FAFI um marco na minha vida, quer dizer, eu acho que a universidade um
marco na vida de qualquer pessoa. Imagine de uma menina de 18 anos, saindo de So
Raimundo Nonato, de uma famlia, com um pai que eu tenho, que eu tinha, que agora
meu pai mudou muito, mas minha me, uma pessoa abertssima, super-inteligente,
perspicaz, [...], mas meu pai altamente autoritrio, macho, repressor e tudo!. Vim
para Teresina, o reduto da esquerda no Piau, desde os professores Padre Raimundo
Jos ao Diogo, ao professor Celso Barros e a alunos como Jos Medeiros, , no estou
lembrando outros, mas h cinco pessoas que me marcaram, foi quando eu comecei a
ver o outro lado da vida, realmente, foi a FAFI que me abriu a cabea, porque eu j
tinha a cabea aberta, em termo de inteligncia, mas, politicamente, eu no tinha
208
ABREU, 2002.
conhecimento, quer dizer, [...] a gente apoiou os militares, porque achava que os
militares, realmente tava salvando o Brasil dos comunistas. [...] Mas quando eu entrei
na FAFI, em 70, foi que realmente... uma revoluo na minha cabea, uma revoluo
como assim completa [...].209
No incio dos anos 1970, a FAFI funcionava ainda como pretexto para a burla das
normas institudas, uma vez que as aulas eram ministradas noite e as acadmicas, em geral,
como moas de famlia, tinham horrio estabelecido para voltar para suas casas, de maneira
que o experienciar de programas alternativos, como ir ao teatro, por exemplo, levava decerto,
algumas jovens estudantes a transgredirem as normas, embora o efeito produzido nem sempre
fosse o esperado. A esse respeito, vejamos o seguinte trecho da entrevista de Claudete Dias:
[...] eu andava mais com os meninos e com pessoas mais velhas, ento tinha um primo
de So Joo do Piau, Ubirajara Dias, que se tornou uma bicha famosa, l na cidade.
[...] Ento a Biroca me levou para o teatro, teatro do Ari Sherlok, que era assim um
nome do teatro piauiense, ento da FAFI para o teatro era um pulo, ento, a FAFI era
de noite, de 6h s 10h da noite, s que 10:30h, se eu no chegasse em casa, eu ia ser
castigada, porque meu tio, foi me buscar em So Raimundo Nonato, mas ele se tornou
meu repressor, mais do que meu pai, porque meu pai era meu pai, porque ele era meu
tio e meu pai, ento, era assim, eu tinha hora para sair e para chegar, ia ter uma pea
do Ari Sherlok, sobre a paixo de Cristo, a o [Biroca]: - Clau, tu hoje no vai para
aula, a gente vai, na hora da aula, a gente vai pro teatro, quando acabar a aula, acabou
o teatro, a assim tu chega l 10:30h. E minha filha, para variar, a pea no comeou
na hora! acabou tarde, eu nem me toquei que as aulas, que a hora tinha passado e,
ento, quando eu cheguei em casa estava meu tio, meu irmo, minha tia j tinha
botado a polcia atrs de mim! porque era 10:30h da noite, eu no tinha chegado ainda,
s no apanhei porque era jovenzinha de 18 anos, no ia apanhar! mas esse negcio,
quando o Bira chegou comigo toda contente, eles assim no jardim, toda contente, ou
mas, foi ento eu fui pro teatro hoje com o Bira. Entre! voc est confundindo
liberdade com libertinagem! nunca esqueci! e voc est proibida de sair com este
rapaz, nunca mais vai sair com este rapaz, olha isso foi um drama to grande [...] eu
fui altamente reprimida por meu tio, meu irmo, fui chamada de vagabunda, de
libertina [...].210
209
210
[...] Logo depois, no ano seguinte eu fui ser professora no Colgio Pedro II, foi
quando eu conheci Torquato Neto, a a vida comeou a dar outro rumo [...] o Noronha
na FAFI me convidou, perguntando se eu no queria fazer um filme, ele disse que
queria me apresentar a Torquato, que Torquato queria uma menina para fazer a Eva e
o Noronha me disse: - Clau voc a Eva que Torquato descreveu. , e o que ele
descreveu? - Torquato descreveu uma menina assim, assim, voc. Mas eu no vou
fazer filme nua! ento, vou levar isso para Torquato, para ver o que acha, a ele disse
no outro dia: - eu falei, Torquato disse que tinha conhecido voc tal, mas voc no
quer fazer o filme nua, ele quer conhecer voc, voc quer conhecer ele? claro! Quando
Torquato me viu, gente foi uma sensao, to incrvel que eu tava diante de um dolo
de verdade e ele tava diante a Eva que ele tinha idealizado, ele idealizou uma pessoa e
eu era a pessoa que ele tinha idealizado, ento deu emoo porque estava com ele,
ento, a gente no vai fazer o filme nua, porque ele j tinha conhecido outras meninas
[...] as meninas de nossa gerao, mas ele no queria, ele queria uma pessoa de
cabelos castanhos, olhos pretos, que fosse morena, estatura mediana, a boca grande.
Era eu! voc que vai ser a Eva! a eu fiz literalmente a minha cabea, que eu entrei
no mundo que eu sempre quis, e conviver com o mito que Torquato era, nosso dolo
na gerao de 70, viu minha..., o Torquato era o modelo e eu uma menina recm sada
de So Raimundo Nonato, altamente reprimida, tava fazendo um filme com Torquato
Neto, foi uma reviravolta na minha vida, fiz o filme escondida, porque ningum sabia
que eu tinha feito e, logo depois do filme, o filme no, histria parte, o filme
histria parte, abriu minha cabea, assim, mais porque eu tinha chegado de So
Raimundo Nonato, achando que o golpe de 1964 era a revoluo arrebatadora e dei
conta no curso na FAFI que no era, foi um choque, um choque, quando eu vi o
discurso do Antnio Jos Medeiros nos bancos da FAFI, falando e eu no entendia e o
Ermando, esse meu namorado, comeou a me d coisas para eu ler, [...] no era nada
do que tinha pensado, ento comeou a dar reviravolta na minha cabea e trabalhar
com Torquato, fazer o filme de Torquato, freqentar redao de jornal, foi assim uma
revoluo total, ento eu pensei agora vou seguir minha carreira de atriz, que era o que
eu queria fazer, na verdade, era um sonho, quem que no sonha ser atriz!211
211
No era somente na FAFI que as jovens vinham passando por novas experincias, na
FADI, espao que nos 1960 ainda era, predominantemente masculino, as acadmicas tambm
participavam da poltica estudantil. o que nos diz Fides Anglica.
O fato do ensino superior ter passado a ser um dos investimentos de jovens dos
segmentos sociais altos e mdios, alm de possibilitar que algumas estudantes universitrias
em Teresina pudessem construir o cotidiano de outras formas, ampliando os espaos de lazer,
participando do movimento estudantil, escrevendo, refletindo, participando de movimentos
culturais e mesmo criando condies para que as jovens se pensassem enquanto mulheres,
como vimos destacando atravs de trechos dos seus depoimentos. Esse tipo de investimento,
como j sabemos, levava algumas jovens a sarem de Teresina em busca de outras cidades, ato
que por sua vez, tambm criava condies para a vivncia de novas experincias. Glria
Sandes, por exemplo, sai de Teresina em 1968 para cursar Jornalismo no Cear e no ano
seguinte se transfere para Braslia, participa do movimento estudantil em Fortaleza se torna
militante, bem como comea a problematizar as relaes de gnero, se pensando enquanto
mulher.
A respeito da sua participao no movimento estudantil em Fortaleza, em 1968, Glria
Sandes nos conta que
[...] eu vivia o perigo muito assim muito de perto, eu era muito atrevida, de estar no
meio da questo e meu namorado e depois meu marido ficava me puxando, porque eu
tinha que ser mais disfarada na parada de nibus, fazer de conta que no tava fazendo
212
nada, na hora que estourasse a gente subia e entrava na passeata e depois, se a polcia
entrasse a gente disfarava.
brigando. No faa isso! voc vai morrer o que adianta, voc vai morrer e pronto, no
adianta no! Ele era meu equilbrio!. Mas uma coisa eu fui descobrindo que por trs de
cada movimento daquele, existia um partido poltico e isso me arrasou sabia! Meu
Deus! Estamos sendo manipulados, ficava indignada esto me manipulando algum
no sei quem [...].213
Alm das passeatas, quando Glria Sandes estudava em Fortaleza, participava tambm
dos eventos promovidos pelo Ncleo de Estudantes Universitrios do Piau no Cear
(NEUPI), que organizava palestras, seminrios e atividades culturais. Em trecho de sua
entrevista, Glria Sandes nos mostra que as atividades acadmicas faziam parte do cotidiano
feminino, sendo vistas como prticas legtimas, embora nesse espao continuassem a existir
zonas interditas para jovens, que, iguais a ela se viam como meninas direitas, por considerar
certas prticas e comportamentos como inaceitveis. Assim, neste momento de sua trajetria,
a jovem estava se singularizando, contudo ia mantendo os valores morais.
[...] O Gilberto Gil em 67, Gilberto Gil e Capinan, que poeta, foram todos para l...
palestras, uma semana de palestras, comemoraes promovido pelo NEUPI, que era
o Ncleo dos Estudantes do Piau no Cear (NEUPI), meu ex-marido era Secretrio
Geral do NEUPE, eu me lembro que noite saram, durante o dia na Faculdade de
Direito tinha palestras, tinha tudo. O Torquato Neto foi falar sobre tropiclia, sobre
tropicalistas. O pessoal... mas noite eles saram e ns no samos, porque eles saiam
pra todo lugar, era liberado pra os homens sarem para todo lugar e ns no, eles
queriam sair sozinhos os homens e depois... Hoje eu entendo que eles queriam as
meninas de programa, eles queriam sair com as meninas. Ns ramos direitas entre
aspas tinha que ser pra namorar!. Eu entendo hoje! a gente era to conformada! a
gente achava que tudo bem!. Eu me lembro uma flamulazinha que eu dei para ele [e
disse] me arranja aqui um autgrafo do Capinan, deles todos. Ele trouxe um autgrafo
para mim, foi contar as coisas que noite tinha uma menina l que eles paqueravam, o
Gilberto Gil, o Capinan. O Capinan saiu com a menina foi beijar ali, foi contar pra
mim, foi contar para mim, para mim era inteiramente livre, porque aquela menina era
fcil !, eu no! no podia estar l no meio, quer dizer, ainda tinha essa coisa.214
213
214
Contudo, Glria Sandes acrescenta que, no decorrer ainda de sua vivncia universitria
em Braslia, esta viso dicotmica em relao s moas de sua poca meninas direitas x
meninas fceis foi se transformando, na medida em que vai entrando em contato com outras
jovens que comeam a desconstruir os valores recebidos em relao sexualidade e ao corpo.
Nesse ponto, importante salientar que, quando Glria Sandes se transfere para a
Universidade de Braslia, a sexualidade parece estar emergindo como um problema, visto que
a questo passa a ter visibilidade. Zuenir Ventura215 nos diz, mesmo, que, conforme uma
pesquisa veiculada em 1968, de cada 3 livros lanados, pelo menos 1 dizia respeito
sexualidade.
Em Teresina, no final da dcada de 1960, a questo tambm comeava a emergir nos
jornais locais.
sexualidade feminina passava a ser vista e vivenciada de outra forma por algumas estudantes.
[...] Esta minha viso mudou, pra tu ver, de um ano pra outro a revoluo que
houve. No ano seguinte, eu j no achava... via meninas grvidas na Universidade,
meninas solteiras grvidas, j muita coisa, j dormia com meu namorado no
apartamento, mas o seguinte minhas amigas no deixavam, ele ficava na sala [...].
Eu me lembro que me casei mais por causa disso, me casei sem nada, vamos casar
porque antes dele se formar, eu tinha me formado mas ele no porque... eu no
podia alugar o apartamento mas eu dividia com minhas amigas elas no deixavam
ele dormir s se fosse na sala, seno [se] fosse casado. Engraado em 69! a me
casei diz!. Eu j era um pouco atrasada com relao s meninas que ficavam
grvidas. Eu me lembro j tinha relao com meu marido, j tinha relao com ele,
nisso eu era avanada [...].216
A ida de Glria Sandes para Braslia, alm de possibilitar condies para problematizar
os valores em torno da sexualidade foi fruto do desenvolvimento de projetos individuais em
que o namoro e o estudo serviram para legitimar a sua transferncia de Fortaleza para
Braslia. Chegando em Braslia, Glria Sandes vai morar na casa de parentes. Contudo, aps
um ms decide ir morar na Universidade por conta prpria. Nesse processo, a jovem vai
intensificando a vivncia da autonomia.
215
VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que no terminou: a aventura de uma gerao. 38. imp. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988. p. 33.
216
SANDES, op. cit.
[...] Eu achava que era moderno, por exemplo, desafiar os pais, dizer que vai, por
exemplo, quando ele [o meu namorado] foi pra Braslia, ele queria fazer o curso... ele
fazia Fsica, mas ele queria mudar pra Braslia, ele foi primeiro, a me escreveu eu
estava aqui em Teresina, que eu fosse de avio porque a viagem era muito ruim de
nibus! muito ruim que eu fosse de avio, j pensou uma pessoa naquela poca voc ir
sem depender dos pais, resolver se encontrar com o namorado! para morar em Braslia
era coisa muito difcil, mas mame eu gosto dele, ento tenho que ficar perto dele,
depois porque l era Comunicao, em Fortaleza era Jornalismo, s que eu queria o
mais amplo [...]. Eu fui morar com parentes, a me deram uma beliche apertada,
botaram os meninos pra dormir de dois pra mim ficar. Olha o passo: por minha conta
eu resolvo ir morar na Universidade, a eu tive muito medo de ser estuprada! assim da
pessoa... a gente era muito cuidadosa sabia dos perigos! primeiramente fui morar no
quiosque, que o cara alugava, morava dentro da Universidade, o funcionrio alugava,
era tipo um quiosque, no sei se era funcionrio de Servios Gerais marceneiro,
alguma coisa assim o cara, ele alugava o quarto. Achei engraado a mesma porta que
fechava o banheiro abria o quarto, fechava o quarto, abria o banheiro, quando o
banheiro tava fechado o quarto abria, fechava o quarto abria o banheiro. Ns
dormamos com uma faca, uma amiga minha de Fortaleza foi pra l junto estudava
Fsica e a gente botava a faca debaixo, a faca ficava revezando, eu durmo depois tu
dorme com medo do homem atacar a gente! foi uma semana assim de resistncia,
depois no! a gente tem que dar um jeito! a conseguimos... Eu me lembro que era
determinada ia atrs das coisas igual minha me fazia, assim e l atrs e conseguir na
Universidade o alojamento [...]. Na hora de arranjar o alojamento eu me lembro que eu
dizia assim... o cara no tem vaga! t vendo que no h vaga , eu chorava, chorava...
no chore no! eu... [o] assistente social, o homem dizia no chore, no gosto de ver
mulher chorar. Sempre tinha uma vaga eu sei, vai se formar [algum] agora, pois tem
esta vaga, voc sabe onde tem, pois t bom eu autorizo a autorizou. Eu levei a
autorizao eu e uma amiga minha, a mudamos ento.217
217
6 DE ASPIRANTES-A-ACADMICAS A PROFISSIONAIS
singularizao dessas jovens, alm de ir se processando por meio dos estudos, ocorria atravs
do desenvolvimento de atividades produtivas, uma vez que os seus investimentos estavam se
voltando para estas dimenses da esfera pblica.
Assim, o cotidiano dessas jovens era vivenciado mais no espao pblico que no mbito
privado. Nesse ponto distanciando-se das vivncias da maioria das mulheres dos setores mais
abastados da gerao anterior, que investiram sobretudo no desempenho dos papis de me,
esposa e dona de casa. Ceclia Mendes, por exemplo, nos conta que
[...] eu comecei a lecionar aqui quando ainda era estudante da Faculdade de Filosofia,
eu fiz curso de CADES de Francs, os professores vinham de fora, eram professores
pra dar lngua francesa e outro que dava metodologia, didtica. Eu fiz curso de
CADES e logo fui contratada pelos colgios, primeiro eu fui contratada pelo Colgio
das Irms, no mesmo ano eu fiquei sobrecarregada de aulas, logo tinha vinte anos, tive
at que... na licenciatura excepcional havia uma lei que obrigava a fazer um exame de
suficincia com vinte e um anos, eu no tinha ainda, eles deram uma autorizao
provisria pra lecionar que eu no podia fazer exame de suficincia. Ento fiz com
essa autorizao depois de ter cursado a CADES que no tinha concludo ainda a
Faculdade, eu comecei a dar aulas no Colgio das Irms, no Colgio Leo XIII, no
Colgio Diocesano. Depois fui substituir o professor Paulo Nunes no Liceu, ele
precisou se ausentar e a me indicou para dar aula de Literatura Portuguesa no Liceu.
Depois substitu tambm o professor Afrnio Nunes por motivo de doena [...] e eu
substitui algumas vezes na Escola Normal. Isso ai foi por volta dos 19, 20 anos que eu
comecei a dar aulas nos colgios, mas antes com 16 anos eu j dava aulas particulares
na minha casa.218
para a disciplina
Portugus221, passando a funcionar com regularidade at o incio dos anos 1970, criando
oportunidades de qualificao tanto para os professores e professoras que j trabalhavam,
quanto para jovens, que, assim como Ceclia Mendes, desejavam ingressar no mercado de
trabalho.
Todavia, nem todas as jovens que iam ingressando no magistrio de nvel mdio tinham
necessariamente cursado a licenciatura excepcional, ministrada pela CADES. Fides Anglica,
por exemplo, passa a ser professora antes de ingressar no ensino superior e, ao se tornar
acadmica do curso de Direito, passa a ministrar aulas de Portugus no curso tcnico de
contabilidade, na Escola Tcnica de Comrcio do Piau.
218
MENDES, Maria Ceclia da Costa Arajo. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina,
maio, 2002.
219
PROJETO Memria viva: Moacir Madeira Campos. Teresina: EDUFPI, 1996. p. 42-3; MENDES, 2002.
220
NUNES, Manoel Paulo. O discurso imperfeito: notas para a histria da educao brasileira. Teresina: APL,
1988. p. 33; RIBEIRO, Maria Luisa Santos Ribeiro. Histria da educao brasileira: a organizao escolar.
15. ed. rev. amp. Campinas, SP: Autores Associados, 1998. p. 145.
221
BRITO, Itamar Sousa. Memria histrica da Secretaria de Educao. Teresina: Secretaria de Educao,
1985. p. 64.
Direito....222
222
insero no mercado de trabalho para algumas jovens, que, a exemplo de Fides Anglica,
estavam investindo no estudo e no trabalho.224
Esse crescimento da mquina burocrtica que ganha expresso no final dos anos 1950 e
atravessa a dcada de 1960, ao que parece, cria oportunidades, sobretudo, para as jovens que
estavam cursando ou haviam concludo o curso de Direito. o que conclumos ao
analisarmos as informaes difundidas na imprensa, nas dcadas de 1950 e 1960. Em geral, as
estudantes e aquelas j formadas na rea jurdica exerciam atividades no servio pblico
estadual, municipal e federal, enquanto as alunas da FAFI, na sua maioria, iam se inserindo
no magistrio primrio e mdio, embora houvesse muitas funcionrias pblicas.225
Esta configurao da atuao das acadmicas no mercado de trabalho, por um lado,
pode ser explicada pelo tipo de investimento que vinham fazendo no trabalho, pois este ia
passando a ter centralidade nas suas vidas. Por outro, porm, se justifica pela emergncia de
transformaes econmicas e sociais, que tornavam propcio o ingresso feminino no mercado
de trabalho.
Nas dcadas de 1950 e 1960, intensifica-se a urbanizao de Teresina, emergindo uma
crescente demanda por servios bsicos, notadamente nas reas de educao, sade,
abastecimento de gua, de energia, modernizao das comunicaes e construo de estradas.
Em contrapartida, os recursos governamentais privilegiam essas reas. Conseqentemente, o
Estado vai se tornando o maior prestador de servios e se expandem os empregos em setores
propensos ao ingresso da mo-de-obra feminina, a sade e a educao.226 Desse modo, a
ampliao das redes de ensino primrio e secundrio vai criando meios para que tanto as
estudantes
da
FAFI,
mercado de trabalho.
O crescimento do nmero de empregos no magistrio secundrio possibilitava ascenso
profissional, pois muitas professoras primrias j inseridas no mercado de trabalho se
tornaram professoras do ensino secundrio, aps se licenciarem na FAFI.
Para aquelas jovens que eram funcionrias pblicas na esfera burocrtica, a concluso
de um curso superior tambm propiciava novas formas de insero no mercado, na medida
em que a condio de mulher formada ampliava a mobilidade em termos de emprego. Com
224
Em 1960, nos servios administrativos governamentais, legislativo e justia atuavam 773 mulheres; no ano
de 1970, o nmero de mulheres que trabalhavam nesse ramo passou a ser de 1.462. Cf. Censo demogrfico
de 1960; censo demogrfico de 1970.
225
PERFIL das estudantes universitrias do Piau. Teresina, fev. 2002.
226
Em 1960, 2650 era o nmero de professoras primrias e 124 as de ensino secundrio; no ano 1970, as
professoras primrias passam a ser 6538 e as que ministravam o ensino secundrio 414. Cf. Censo
demogrfico de 1960; censo demogrfico de 1970.
efeito, o saber que passavam a deter as tornava mais aptas para competir no mercado, assim
como para buscar o desempenho de atividades que as satisfizessem.
Nesse sentido, a trajetria de Clis Portella emblemtica. Clis Portella comeou a
trabalhar no Instituto de Previdncia e Assistncia dos Servidores Estaduais (IPASE), ainda
quando era estudante da FAFI. Na dcada de 1970, j formada se torna funcionria da Justia
Federal, mas, no decorrer de sua trajetria profissional, deixa ambos os empregos, por no ser
o servio burocrtico aquele em que gostaria de se firmar.
Esse trecho da entrevista de Clis Portella nos permite destacar que sua experincia de
trabalho a levou a produzir um saber, na medida em que no cotidiano foi inventando
estratgias de sobrevivncia no servio pblico, que tambm funcionavam como meio para
ascender profissionalmente. O desenvolvimento desse saber ia fazendo parte da
singularizao da jovem, tendo em vista que ia aprendendo a lidar e a fazer escolhas no
universo do trabalho.
Na seguinte memria de Nerina Castelo Branco tambm emerge a mobilidade que a
situao de mulher formada propiciava. Vejamos, ento, o que ela nos conta:
NUNES, Clis Portella. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina: abr., 2002.
realmente. Fiz Filosofia, quando eu fiz Licenciatura me..., como se diz, me qualifiquei
pra ser professora, a grande realizao, a grande mesmo realizao pessoal foi no
magistrio e eu no sa do magistrio at me aposentar, entendeu? Agora, durante este
perodo, eu fui assessora de governos. Os governos me convidam. Atualmente, eu sou
assessora da FUNDEC, fui convidada, estou l com a Aldenora Mesquita, estou
fazendo um trabalho dentro da rea da cultura, eu sempre gostei..., sempre estive nesta
rea, mas na realidade na minha vida foi o magistrio, a vida realmente de
realizao.228
Em 1961, assim como Clis Portella e Nerina Castelo Branco, Irlane Abreu inicia sua
trajetria no servio pblico ingressando no Tribunal de Contas do Estado (TCE). Na vida de
Irlane Abreu, as primeiras experincias no mercado de trabalho ocorreram antes da jovem
ingressar no ensino superior. Quando terminou o curso clssico no Liceu, Irlane Abreu queria
ir para Fortaleza para estudar Servio Social, mas o pai no permitiu que a jovem sasse de
Teresina. Irlane, ento, resolve parar de estudar, comeando a trabalhar no Tribunal de Contas
do Estado.
Essa situao vivida por Irlane Abreu era comum s suas contemporneas, pois parte
delas ao concluir o ensino mdio ingressava no mercado e no voltava a estudar. Contudo,
nesse ponto sua trajetria se diferenciou, uma vez que, 4 anos depois, presta vestibular na
FAFI e inicia o curso de Geografia, passando a estudar e a trabalhar.
CASTELO BRANCO, Nerina. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
ABREU, Irlane Gonalves de. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, abr. 2002.
Contudo, medida que Irlane Abreu vai passando a atuar no magistrio, surge a
dificuldade de conciliar essa atividade com aquela que a jovem desempenhava na
Campanha de Erradicao da Malria, uma vez que, nessa instituio, trabalhava 8 horas
por dia. Diante da situao, Irlane Abreu decide-se pelo magistrio, pedindo exonerao da
CEM, conforme nos conta no seguinte trecho de sua entrevista:
[...] eu comecei a entrar em conflito com a CEM, que l era muito rigoroso, era uma
repartio que... eles tinham padro americano. [...] Ento eles tinham uma filosofia
assim, muito rgida de trabalho. Ento..., eu queria j, estava pedindo folga para sair
algumas horas, no deixaram, claro! eu comecei a me desinteressar pela SUCAM e
pedi...., era CEM ainda, depois foi que foi SUCAM, pedi demisso, uma loucura,
porque eu era efetiva no Estado e estava disposio da SUCAM. Eu era do Tribunal
de Contas, efetiva, fui para a SUCAM com contrato provisrio e disposio. A me
zanguei, disse que no voltava mais e o papai ficou brigando comigo, eu disse no
volto que eu quero lecionar e fiquei mesmo, assumi a escola Helvdio Nunes no sei
qu, eu lecionei adoidado, s no lecionei hoje ensino fundamental 1 e 2 ciclos
porque eu no tenho formao bsica, tenho clssico. Eu lecionei no prprio So
Francisco com os pequenininhos, tipo 5 srie que eram bem pequenininhos e a vida
continuou foi no magistrio, mesmo depois foi a Secretaria de Educao implantar o
ensino de 2 grau, fui para l, em 74 eu vim para c FAFI, FAFI? .231
230
231
ABREU, 2002.
Ibid.
teve, como ensinar isso? como encontrar..., quando eu fui lecionar no Helvdio Nunes
eram meninos de periferia, hoje no so mais, mas eram meninos que me davam o
maior trabalho, quando eu chegava l eles botavam lagarta dentro do carro.
Conseguiam abrir o vidro, botavam lagarta dentro do carro, furar pneu de carro.
Meninos que hoje eu encontro, teve um menino que eu encontrei, ele trabalha l no
Detran. Professora! eu digo: voc eh! fazia as danaes miserveis e eu bem novinha.
Quer dizer os padres, voc novinha, chegava l com o mapa debaixo do brao, eles
nunca tinham visto mapa, quer dizer, foi realmente intuitivo, que eu comecei a
trabalhar nesse nvel de procurar interessar o aluno no contedo, mudar, fazer texto
pra ensinar nunca ningum..., a procurar coordenao de cursos e a incentivar, que
tivesse coordenao de curso nos lugares, eu no sabia nem como era o nome, mas
tem que ter algum que seja responsvel por isso, a eu comecei a chatear o povo, isso
eu a fiz muito!. L no So Francisco de Assis a gente comeou uma coordenao de
curso, de geografia, ento foi por ai, foi buscando mesmo, foi sozinha sem... a Emlia
me ajudou muito a gente trabalhou muito juntas l. [...] Realmente no ensaio e
erro[...].232
Algumas jovens que concluram licenciaturas entre final dos anos 1950 e os anos 1960,
alm de enfrentarem desafios no magistrio de nvel mdio, passaram a vivenci-los no
magistrio superior, pois nesse perodo que se firmam as primeiras professoras nesse nvel
de ensino. Com o funcionamento da FAFI em 1958, o magistrio de terceiro grau, at ento
de domnio exclusivo masculino, assiste ao ingresso das primeiras mulheres, como foi o caso
de Teresinha Leal Nunes formada em Letras Neolatinas pela Faculdade Catlica de Filosofia
do Cear.233
Ao longo dos anos 1960, ex-alunas da FAFI vo se tornando professoras da instituio.
Assim, as jovens egressas da escola no s passaram a compor o quadro do magistrio de
nvel mdio, mas tambm vo alterando a composio do corpo docente da prpria escola,
que a princpio era composto majoritariamente por professores da FADI, por intelectuais e
clrigos. Mais tarde, passam a constituir parte do corpo docente da Universidade Federal do
Piau, que, como sabemos, incorporou a FAFI e as demais faculdades existentes no incio dos
anos 1970.
Dentre as ex-alunas da FAFI que se tornaram professoras da instituio e,
posteriormente da UFPI, esto Clis Portella, Nerina Castelo Branco, Ceclia Mendes e Irlane
232
233
ABREU, 2002.
FACULDADE CATLICA DE FILOSOFIA. Declarao. Teresina, 12 dez. 1972.
Abreu. As trs primeiras ingressaram no final dos anos 1960 e a ltima, em 1974. Nesse
perodo, essas mulheres iam verticalizando a presena feminina no magistrio, ao passarem a
atuar no ensino superior, num contexto formado quase que exclusivamente por homens.
A respeito do seu ingresso na FAFI no curso de Letras Neolatinas, nos conta Ceclia que
[...] entrei em 69 como professora, foi realmente uma coisa tambm... outro lado meu
muito forte, porque eu no me achava preparada pra dar aula e esse desafio, mas eu
no sou muito bem de perder desafio, quando me do a chance eu mergulho e depois
que eu vejo as conseqncias, mas quando a gente mais nova obviamente que isso
mais fcil, no a gente sair, fracassar e aceitar os fracassos, eu fui e pra te dizer que
234
235
MENDES, 2002.
PIERUCCI, Antnio F. de O.; SOUZA, Beatriz M. de; CAMARGO, Cndido P. F. de. Igreja Catlica: 19451970. In: PIERUCCI, Antnio F. de O. et al. O Brasil republicano: economia e cultura (1930-1964). 3. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 368.
nessa poca ningum escolhia nada. Uma das primeiras disciplinas que me deram foi
Doutrina Social da Igreja, no tinha muito a ver com minha disciplina com o meu
estudo, mas como eu tinha passado esses anos no Rio e na Ao Catlica e como a
gente na ltima fase preparou muito o Conclio Vaticano [...] , essa coisa me levou a
ter uma noo bsica que a Igreja realmente queria uma Igreja mais aberta, queria da
vida dos seus membros, uma Igreja mais independente, membros mais soltos, mais
independentes, mais engajados e eu fui dar. [...] O padre Raimundo Jos foi muito
legal comigo, porque se no fora ele, [...] eu estava vendo a hora me internarem num
meduna, porque quem vai dar a Doutrina Social da Igreja pra ltima fase de um curso
porque est precisando se internar, ou ento aceitar esse desafio. [...] Mas foi outra
fase tambm que eu no impus nada aos alunos, eu conversava com eles e dizia das
minhas dificuldades, ento essa linha de contato inicial me fez tambm programar a
minha vida como professora de forma, [que] eu achava que eu estava criando uma
metodologia de ensino, porque eu no queria coisas, lies dadas, eu queria que as
pessoas refletissem o momento, ento isso foi realmente bsico na minha vida
acadmica.236
Essa memria de Clis Portella nos mostra que a possibilidade de ministrar aulas no
ensino superior foi significada como sedutora e desafiadora, sendo que ela optou por enfrentar
o desafio. Com efeito, o conhecimento que acumulara no perodo em que militou na Ao
Catlica a ajudou se firmar inicialmente no magistrio.
Durante essa experincia, Clis Portella foi aprendendo a lidar com a nova situao,
produzindo um saber a partir do lugar de sujeito que passava a ocupar. Assim, foi
desenvolvendo uma metodologia de ensino em que a relao professora/aluna se pautava no
dilogo e na busca de problematizao do conhecimento transmitido. Isso em um momento
em que a ditadura militar endurecia em decorrncia da decretao do Ato Institucional n 5,
em 1968. Cerceando, portanto, o desenvolvimento da reflexo a respeito do contexto
brasileiro no mbito universitrio. Desse modo, Clis Portella foi uma das professoras que no
cotidiano de sala-de-aula procurou driblar a represso, propiciando aos alunos e alunas
momentos de elaborao crtica.
Ainda sob a ditadura militar, no incio dos anos 1970, o ingresso feminino no magistrio
superior transcendeu FAFI, pois, em 1972, Fides Anglica se torna a primeira professora
236
do curso de Direito da UFPI. Nesse perodo, a UFPI estava em processo de instalao, tendo
por reitor o Professor Hlcio Ulhoa Saraiva.
Fides Anglica ingressa nessa instituio sob convite do Professor Jos Camillo da
Silveira Filho, que, poca, era Chefe da Assessoria Jurdica da UFPI. A respeito desse
acontecimento Fides Anglica nos conta que
[...] eu recebi o convite de ir pra Universidade Federal, era reitor professor Hlcio e eu
me lembro muito o Prof. Camillo e ele me chamava de Anglica e ele disse: Anglica prepare o seu currculo pra voc dar aula na Federal. Eu me surpreendi
porque no estava nos meus planos dar aula logo, porque eu estava planejando fazer
meu curso de Letras, ou de Filosofia, ou uma licenciatura. Eu tinha muita experincia
no magistrio, mas no tinha uma formao dentro do magistrio e aquilo me
preocupava por no ter todos instrumentos tericos, conhecimento realmente pra isso e
eu realmente no aceitei no primeiro momento, no aceitei, mas depois de muito
meditar, depois que ele conversou muito comigo, eu resolvi aceitar essa experincia.237
Quando Fides Anglica decidiu aceitar o convite para ministrar aulas no curso de
Direito, a questo que passou a preocup-la foi o nvel das aulas a serem ministradas, uma
vez que se tratava de uma experincia nova para a qual a jovem professora no dispunha de
muitos parmetros. E essa preocupao se agravou pelo fato da primeira turma na qual Fides
Anglica ministrou aulas ser composta de alunos e alunas que estavam concluindo o curso de
Direito. A esse respeito vejamos o que ela nos conta:
237
porque, se no, tinha sido um desastre pegar logo uma turma de concludente
professora iniciante, nova e iniciante.238
238
desejava continuar trabalhando com arte. Segundo, queria trabalhar na sua rea de formao.
Sobre esse momento de sua trajetria de vida, vejamos o que nos conta:
[...] ento, quando eu fui para o Rio, o Torquato tinha morrido, eu queria no Rio
passar isso tambm, trabalhar no Teatro com arte, mas, tambm trabalhar com histria.
[Eu] estava fazendo um curso de teatro num dos melhores teatros do Rio, o teatro
Ipanema do Ivan Albuquerque [...] fiz um curso de Teatro por trs meses no teatro
duas vezes por semana que foi assim uma experincia teatral, mas incrvel que eu tive,
porque eu tive bons professores, colegas, atores e atrizes que continuaram a profisso
e ficaram famosos e conhecidos e tal, mas nessa poca que eu estava fazendo o curso
eu fiz o concurso da UFRJ, quer dizer, eu fazia as duas coisas, estudava pra fazer
concurso e passei nos dois concursos e a a carreira de atriz parou, porque eu fui
trabalhar na Federal e estudar na UFF, no tinha como fazer outra coisa, eu fui
trabalhar na Federal como professora e imagina entrar na Federal do Rio de Janeiro
como professora, voc dar aula para 35, 45 e 50 alunos tinha 25 anos, no em 78, tinha
27 anos. [...] Foi 78, quando a gente entrou na Universidade, l como professor, eu e
mais assim 70% foi renovado em 78 na Federal do Rio, ento assim, a grande maioria
da gente era concurso de professor colaborador.239
Desse modo, diante das contingncias e das oportunidades que Claudete Dias
experienciou no Rio de Janeiro, sua vida foi fluindo em torno da continuidade dos estudos e
da atuao no magistrio superior. Haja vista que, em 1978, ingressa no curso de mestrado em
histria da Universidade Federal Fluminense (UFF) e passa a trabalhar como professora
colaboradora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesse perodo, ainda sob a
ditadura militar, diante do fato de a maioria dos professores dessa instituio terem sido
exilados, perseguidos e demitidos, abriam-se possibilidades para que jovens como Claudete
Dias conseguissem ingressar no magistrio superior nessa instituio, em fins dos anos 1970.
Claudete Dias trabalhou por 10 anos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no
Instituto de Filosofia e Cincias Sociais. Sobre essa experincia acentua que
DIAS, Claudete Maria Miranda. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
mais de 10 anos pro IFCS voltar a ser, nem voltou a ser, que j tinha sido destrudo
naquela poca, a professora Ieda voltou, Darci Ribeiro voltou, ainda convivi com o
Darci Ribeiro nos corredores do Instituto. [...] Essa fase do Instituto de Filosofia,
Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi a fase mais importante
profissionalmente da minha vida. A outra fase importante que eu acho foi ter voltado
para o Piau, no me arrependi de jeito nenhum [...].240
Em 1973, quando Claudete Dias conclua o curso de Histria na FAFI, Glria Sandes
que havia se formado em Jornalismo e Comunicao Social em Braslia resolve retornar para
Teresina. O objetivo de Glria Sandes nesse perodo era fazer parte da equipe da Fundao
Projeto Piau.
Glria Sandes, no perodo em que estudava em Braslia, viveu suas primeiras
experincias no mercado de trabalho. E embora poca cursasse Jornalismo e Comunicao
Social, ingressou no mercado de trabalho na rea de educao. Ao chegar em Braslia,
primeiramente, comeou a trabalhar como secretria em uma escola da rede privada Sacr
Coeur de Marie. Logo em seguida, prestou concurso para a Fundao Educacional de Braslia,
e foi aprovada. Passando, portanto, a ser professora da rede escolar oficial. A respeito de sua
trajetria profissional Glria Sandes relembra que
[...] eu fui para Braslia, cheguei l eu fiz um concurso para a Fundao Educacional,
l o estudante com disciplina suficiente, carga horria para fazer o concurso podia
fazer para aquela disciplina, eu tinha muita carga horria no Cear, carga horria
pesada [...]. Eu fiz, terminei passando, foi uma novela! uma luta para conseguir, mas
eu tinha...eu era determinada demais, ia l, falava com a comisso, defendia os
direitos... [...] Fui l briguei, fiz tudo, terminei entrando porque tinha sido eliminada,
porque era Jornalismo tinha que ser de Letras, terminei entrando, porque fiz o
concurso e passei. Dizia s os crditos, no dizia qual era a matria qual era a
profisso, terminei fazendo Jornalismo sendo professora de portugus na rede oficial,
a dei aula, mas quem no tinha o registro F, o registro de licenciatura ia para
periferia, cidade satlite, eu ia [era uma] aventura... aventura de carona [...] Antes
desse emprego, eu fui... uma amiga minha trabalhava na escola Sacr Coeur de Marie,
colgio burgus. E olha tem uma vaga, que eu vou sair, eu fui me apresentar para ser
secretria, antes desse concurso, eles disseram voc sabe fazer o qu? Sei redigir, t
bom ento se precisar voc fica, viu? lhe chamo, tem duas candidatas. Uma semana
240
depois me chamaram que a pessoa no quis ficar, a outra, eu fiquei, eu era to arrojada
que eu no sabia datilografia, no sabia, no ? S assim catilografia, eles botavam
apostila de histria pra mim fazer eu fazia l na Faculdade, passava a noite todinha
catilografando t, t, a noite todinha, quando trazia era pronta e a irm nunca
descobriu que eu no sabia e com oito meses que eu passei l eu era tima, ainda hoje
eu sou muito rpida. [...] Apareceu [ento] uma proposta da Fundao Projeto Piau,
aqui. Eu fiquei...quando eu vi o projeto fiquei louca, digo vou voltar para o Piau , a
voltei para c. [...] Eu resolvi comprar um carro, um chevete, me lembro, eu tinha um
fusca, eu queria [comprar] com o fundo de garantia, eu pedi demisso do emprego
para receber e fui recebi um convite para a Fundao CEPRO, SEPLAN.241
Ao voltar para Teresina com o intuito de fazer parte do quadro de pessoal da Fundao
Projeto Piau, Glria Sandes vivencia uma conjuntura favorvel ao ingresso no mercado de
trabalho. Nesse perodo, o governo intensifica a preocupao com o planejamento e o
desenvolvimento econmico. Entre 1971 e 1972, a CODESE transformada em Secretaria
de Planejamento (SEPLAN), assim como criada a Fundao Centro de Pesquisas
Econmicas e Sociais do Piau (CEPRO), vinculada ao sistema estadual de planejamento.242
O objetivo dessa instituio era dotar o planejamento central de uma estrutura tcnica com
grau de qualificao relativamente elevado, implementar as funes de planejamento e carrear
para o Estado uma maior soma de recursos financeiros, atravs da gerao de bons
projetos.243 Assim, a fundao CEPRO foi absorvendo homens e mulheres formadas em
diversas reas, dentre elas, Glria Sandes.
No incio dos anos 1970, embora a maioria dos homens e das mulheres que haviam
concludo o ensino superior fosse constituda de funcionrios do governo estadual e federal244,
a escassez de pessoal qualificado no quadro de funcionrios do Estado era vista como
empecilho ao desenvolvimento.245 Desse modo, os homens e as mulheres que tinham
formao universitria geralmente conseguiam emprego, uma vez que o Estado desenvolvia
uma poltica de aproveitamento de pessoal. Sobre essa questo relembra Glria Sandes que
241
SANDES, Glria. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
MACHADO, Marclio de Sousa. Acompanhamento e avaliao do plano de governo do Estado do Piau.
Carta CEPRO, Teresina, v.4, n.1, p. 5, jan/abr. 1977.
243
MACHADO, op. cit., p. 5.
244
Censo demogrfico de 1960; censo demogrfico de 1970.
245
MACHADO, op. cit., p. 5.
242
eles tinham aqui uma poltica interessante na poca [...] quem tivesse curso superior
conseguia emprego [...] essa poltica de voltar e ter emprego tinha aqui. , porque
aqui ns tnhamos orgulho de quem tinha curso superior e muita carncia, ento quem
viesse com curso superior tinha emprego, no ficava desempregado [...] Ento tinha
essa coisa nunca deixava dizer no, qualquer pessoa formada que viesse, tinha que dar
um jeito, no tinha concurso, a gente fazia currculo. E era estudado o currculo,
enquadrado conforme as normas, tinha as normas de admisso, assim, como voc se
enquadraria, quem tem curso tal, mas tinha todos os critrios. Quem tem curso de
especializao, quem tiver ia enquadrado. A CEPRO era assim... uma fonte, uma
indstria de formao de jovens, de aperfeioamento de tcnico. Olha naquela poca
eu me lembro que o pessoal ia para a Frana, Inglaterra fazer mestrado. Eu nunca fui
porque eu sempre fui do batente...246
Esta poltica empregatcia estadual parece esta relacionada a dois fatores. Por um lado, a
necessidade de
desenvolvimento de projetos, pois no incio dos anos 1970, a situao do Piau diante do
governo central era de dependncia. Os recursos prprios no eram suficientes nem sequer
para arcar com a folha de pagamento, uma vez que, em face da expanso da burocracia estatal
nos anos 1950 e 1960, o governo estadual se tornou cada vez mais dependente do governo
federal. Os recursos voltados para investimentos dependiam, portanto, da liberao do
governo federal.247
Por outro,
246
se
constituindo em um dos grandes empregadores, tanto em face das necessidades geradas pela
ampliao de suas funes, quanto em decorrncia das presses por emprego, tendo em vista
que o setor secundrio, por no se desenvolver, emprega um nmero reduzido da populao
economicamente ativa. Dessa maneira, o nmero de funcionrios pblicos se amplia, para
alm das necessidades, a fim de fazer frente crescente demanda por emprego. Nesse ponto,
o governo estadual auxiliado pelo federal, que, atravs dos servios prestados, tambm se
torna um grande empregador.
Quanto rede de comercializao, importante ressaltar que na primeira metade do
sculo XX, quando o extrativismo vegetal constitua o setor dinmico da economia, havia
uma maior preocupao com a armazenagem e a exportao de produtos extrativos. Com a
insero do Piau no processo de integrao nacional, que comea a se delinear nos anos 1950
e intensifica-se nas duas dcadas seguintes, passaram-se a expandir os meios para a
distribuio interna dos bens e servios gerados em outros estados. Isso se deu pelo fato de a
249
250
251
FUNDAO CEPRO. Anlise do processo de urbanizao no Piau. Teresina, 1985. (Estudos Diversos,
26). p. 36.
MARTINS, Agenor de Sousa, 1982a, p. 95-103; MARTINS, Agenor de Sousa, 1982b, p. 127.
Censos demogrfico e econmico de 1950; censo demogrfico de 1960; censo demogrfico de 1970.
dos setores
252
Em 1970, as mulheres com formao superior atuam nos setores secundrio e tercirio,
sendo que o segundo emprega a maior parte. No mbito do tercirio, os subsetores em que
essas mulheres se concentram so as atividades sociais e a administrao pblica. J os
homens com esse tipo de formao distribuem-se pelos trs setores, ainda que a maior parte
se empregue nos ramos atividades sociais e administrao pblica258 do setor tercirio.
A despeito de mulheres e homens predominarem nos mesmos ramos, possivelmente as
posies ocupadas na estrutura ocupacional sejam diferenciadas. Haja vista que, ao
considerarmos a relao entre escolarizao e salrio, observa-se que os homens, em geral,
recebem remunerao melhor que as mulheres, mesmo quando possuem o mesmo tipo de
formao. Muito provavelmente, isso se d em decorrncia de pouqussimas mulheres
ocuparem cargos de chefia nesse perodo, sendo os altos escales do servio pblico ocupados
majoritariamente por homens.259
Mas, se as mulheres com formao superior esto em geral em desvantagem em relao
aos homens, quando comparadas maioria das mulheres economicamente ativas, percebemos
que a situao diferente, na medida em que as mulheres com formao superior so as que
recebem melhor remunerao, assim como se empregam no setor formal do mercado. J que a
maioria das mulheres ativas, tanto em 1950 quanto em 1970, trabalha no setor informal
atuando nos servios domsticos e de confeco, recebendo, portanto, baixa remunerao.260
As mulheres formadas so aquelas que detm maiores chances de ingresso e de
permanncia no mercado de trabalho, tanto pela condio de classe quanto pelo nvel de
escolarizao, que as torna mais competitivas no mercado, e ainda por terem um maior acesso
burocracia estatal. Sobre este aspecto vlido salientar que, embora haja concursos para o
preenchimento das vagas surgidas no setor pblico, a forma de recrutamento que
aparentemente prevalece aquela baseada nas relaes pessoais e polticas, de maneira que
ambas contribuem para a presena dessas mulheres no mercado.
Um outro fator que diferencia as mulheres que concluram cursos universitrios o fato
de a maioria ingressar e permanecer no mercado de trabalho. Lembremos que Ceclia Mendes,
Clis Portella, Claudete Dias, Fides Anglica, Irlane Abreu, Glria Sandes, Nerina Castelo
Branco desenvolveram vidas profissionais intensas. Nas dcadas de 1960 e 1970, quando elas
esto se firmando no mercado de trabalho, a maioria das mulheres que desempenhavam
trabalhos produtivos se encontrava nas faixas etrias mais jovens, quer pelo contexto em
258
Censos demogrfico e econmico de 1950; censo demogrfico de 1960; censo demogrfico de 1970.
Censos demogrfico e econmico de 1950; censo demogrfico de 1960; censo demogrfico de 1970.
260
Censos demogrfico e econmico de 1950; censo demogrfico de 1960; censo demogrfico de 1970.
259
estudo ser marcado pela ampliao da presena feminina no mercado de trabalho, quer pelo
fato de muitas jovens deixarem o trabalho aps o casamento ou ao se tornarem mes.
Deixar o trabalho aps o casamento ou a maternidade uma postura que atualiza a
concepo do trabalho feminino como atividade transitria e secundria. Nesse sentido,
oportuno salientar que esta viso acerca do trabalho feminino foi se instituindo entre o final
do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo XX, posto que, nesse perodo, as relaes
senhoriais vo cedendo lugar para as capitalistas, intensificando-se a industrializao e a
urbanizao nos centros mais desenvolvidos. Com efeito, os papis sociais femininos e
masculinos vo se redefinindo.261
Assim, de um lado, emerge uma srie de discursos valorizando a maternidade, a infncia
e a domesticidade, em que a estratgia discursiva era reforar os papis femininos de me,
esposa e dona de casa, circunscrevendo as mulheres na esfera privada. De outro, o trabalho
vai se transformando em prtica que prestigia os homens de elite, pois, de acordo com os
preceitos da famlia burguesa, que vai se firmando nesse contexto, ao homem caberia o papel
de pai e de provedor familiar e mulher o de me, esposa e dona de casa. Assim, segundo
acentua Margareth Rago, o espao pblico moderno foi definido como esfera essencialmente
masculina, do qual as mulheres participavam apenas como coadjuvantes, na condio de
auxiliares [...].262
nesse quadro, portanto, como argumenta Guacira Lopes Louro, que o trabalho
feminino fora de casa se construiu
como ocupao transitria, a qual deveria ser abandonada sempre que se impusesse a
verdadeira misso feminina de esposa e me. O trabalho fora seria aceitvel para as
moas solteiras at o momento do casamento, ou para as mulheres que ficassem ss
solteironas e vivas.263
Nesse sentido, as mulheres que esto investindo na carreira, entre a dcada de 1960 e o
comeo dos anos 1970, vo construindo o trabalho como atividade permanente, que passa a
ter centralidade na identificao feminina. Isto se processa porque o lugar dessas mulheres na
261
Sobre a redefinio dos papis femininos e masculinos nesse contexto ver DINCAO, Maria ngela. Mulher
e famlia burguesa. In: PRIORE, Mary Del (Org.). Histria das mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto,
1997. p. 223-40; ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Nordestino: uma inveno do falo: uma histria
do gnero masculino no Brasil. Campina Grande, abr. 2000; RAGO, Margareth. Os prazeres da noite:
prostituio e cdigos de sexualidade feminina em So Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
262
RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, op. cit., p. 603.
263
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, op. cit., p. 452.
esfera produtiva est sendo redefinido, visto que esto se tornando trabalhadoras integradas ao
sistema capitalista.
Esse acontecimento, por sua vez, vai ser problematizado por contemporneos e
contemporneas. Assim, ao estudarmos os discursos divulgados na imprensa nas dcadas de
1950 e 1960, observamos que se polemiza a relao entre os papis femininos tradicionais e o
de profissional que ia emergindo, de maneira que homens e mulheres que estavam escrevendo
na imprensa iriam delinear esse novo papel feminino, como veremos no prximo captulo.
Contudo, o trabalho como atividade permanente no apangio da vida das mulheres
com formao universitria que iam ingressando no mercado de trabalho entre o final dos
anos 1950 e a dcada de 1960, uma vez que parte das primeiras mulheres que cursaram o
ensino superior na primeira metade do sculo XX desempenhou intensa vida profissional. A
diferena reside no fato de que, nesse perodo, investir em uma carreira era uma prtica
bastante singular, enquanto que, entre o final da dcada de 1950 e o incio dos anos 1970,
esse tipo de investimento ia se consubstanciando em um modelo alternativo para a vida
feminina, na medida em que as mulheres iam deixando de se inserir na esfera pblica, de
forma secundria, para assumirem um lugar central.
Rosa Amlia Tajra foi uma dessas mulheres que tiveram uma trajetria de vida bastante
diferenciada da maioria das mulheres de sua gerao e de seu setor social. Rosa Amlia
iniciou sua vida profissional quando era estudante de Medicina no Rio de Janeiro, ao comear
a trabalhar como auxiliar acadmica no Hospital Jesus.264
Em 1944, Rosa Amlia Tajra retorna para Teresina, casa-se e comea a trabalhar no
Departamento Estadual da Criana e como profissional liberal. Vejamos o que ela nos diz a
respeito de sua trajetria profissional.
[...] Chegando em Teresina em maio casamos e fomos ento botar clnica particular.
Eu na clnica Pediatra e o Dr. Frana na Clnica Geral, Geral e Cirrgica. Aqui minhas
funes: nomeada para o cargo de Mdica Especialista do Departamento Estadual da
Criana em 18 de abril de 1944, trabalhando ao lado do Pediatra Dr. Antonio Noronha
no Hospital Getlio Vargas. Depois de extinto o Departamento Estadual da Criana
ento eu fiquei lotada no Departamento de Sade do Estado. Administrei um curso de
Treinamento de Auxiliar de Puericultura sob o auxlio do Departamento Nacional da
Criana, do Fundo Internacional de Socorro Infncia. Fui nomeada em 51 para
exercer o cargo sem comisso de Diretora da Maternidade e Assistncia Infncia.
264
FRANA, Rosa Amlia Tajra. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
Nos anos 1940, a singularidade da trajetria de Rosa Amlia Tajra reside tanto no fato
de serem pouqussimas as mulheres formadas e ingressas no mercado de trabalho, quanto por
ser o campo da medicina domnio exclusivamente masculino. Rosa Amlia Tajra a primeira
mulher a se formar e atuar na rea mdica, no Piau.
Quando Rosa Amlia Tajra comea a trabalhar, a presena feminina na rea de sade se
dava nos ramos auxiliares. As mulheres que atuavam nesse campo eram, sobretudo,
detentoras de um saber prtico. , inclusive, entre o final dos anos 1930 e o incio dos anos
1940, em face do processo de modernizao do sistema de sade, que surgem as primeiras
tentativas de insero da enfermeira diplomada no sistema de sade do Piau.266
Durante os anos 1950 e 1960, Rosa Amlia Tajra vai ganhando outras companheiras de
profisso, pois, em 1960, nove mdicas estavam trabalhando, no Piau e, em 1970, passaram
a ser dezesseis em todo o Estado.267 Contudo, as companheiras de profisso de Rosa Amlia
Tajra, que iniciaram a vida profissional durante os anos 1960 so contemporneas e atrizes
do processo de intensificao da presena das mulheres formadas no mercado de trabalho.
265
Nessas condies, fica-se pasmo de ver que s no possa haver mulheres na Academia
de Letras, quando, entretanto, podem concorrer aos seus prmios literrios.268
MEDEIROS, de Maurcio. Mulheres na Academia. O Dia, Teresina, ano I, n. 35, p. 3-4, 30 set. 1951.
ROCHA-COUTINHO, Maria Lcia. Tecendo por trs dos panos: a mulher brasileira nas relaes familiares.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 93-111.
270
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORI, Mary Del (Org.). Histria das mulheres no
Brasil. So Paulo: Contexto,1997. p. 609.
269
Nas duas escritas possvel demarcar zonas de convergncia e de tenso, ainda que os
cronistas procurem reforar as funes femininas no lar. O primeiro argumenta que a sada
das mulheres da casa e a presena feminina no espao pblico e no mercado de trabalho eram
os principais responsveis pela decadncia familiar e, por extenso, social. como se
dissesse: as mulheres mudaram, contudo a mutao teve efeito deletrio, pois, ao
transformarem seus papis, geraram a desestruturao familiar e coletiva.
O segundo cronista, a despeito de sugerir uma certa conciliao entre o desenvolvimento
intelectual, o acesso ao mercado de trabalho e o ser me, esposa e dona-de-casa, instituiu uma
hierarquia entre velhos e novos papis femininos, na medida em que inscreve como principal
o trabalho da mulher no lar e como secundrio o trabalho no mbito pblico. Nas
entrelinhas, diz: as mulheres ingressaram no mercado de trabalho e nas universidades e so
271
272
TITO FILHO, A. Captulos da vida. O Dia, Teresina, ano X, n. 780, p. 1, 12 jun. 1960.
M.M. A mulher na famlia. O Dia, Teresina, ano XIV, n. 1383, p. 3, 11 nov. 1964.
273
274
busca de encaminhamento das mulheres para o espao privado. Procurando, assim, assegurar
aos homens o domnio no espao pblico, ao tentar neutralizar a concorrncia feminina no
mercado de trabalho. Em 1969, por exemplo, escrevia um cronista do jornal O Dia:
Por que as mulheres se empenham em trabalhar? Por que no ficam em casa? Esta
uma das perguntas mais comuns das polmicas que tm como tema central a invaso
das mulheres no setor de trabalho. Recentemente, um escritor italiano, Beneditte
Veca, docente da Universidade de Roma, publicou um livro que volta a expor a
questo [...] A mulher parece possuir dotes que a colocam num plano superior ao
homem no momento dos concursos, quando se trata de aprender rpido, estudar e
expor. Esta situao estabelece uma concorrncia desleal da mulher em relao ao
homem. Se as correntes feministas avanam, o homem dever necessariamente se
preocupar com sua prpria situao [Grifo nosso].275
275
276
Castelo Branco, a redatora perguntou-lhe: que carreira pretende seguir? e a resposta dada,
bem representativa, foi: Arquiteta e mame.277
Em face da importncia atribuda profisso na vida das mulheres dos setores mais
abastados um deslocamento ia sendo produzido, uma vez que o casamento para as jovens que
estavam investindo em uma carreira ia deixando de ser o colonizador do mundo feminino, o
ideal feminino nmero um, para ser um caminho possvel. Fides Anglica, por exemplo,
considera que, quando jovem, o seu projeto de vida centralizava-se no estudo e no trabalho,
enquanto o casamento e a maternidade eram uma possibilidade.
[...] Eu sempre tive um projeto de ter minha vida independente, da porque o meu
projeto era ser independente, era ter o meu espao, agora se nesse espao houvesse
tambm uma dimenso de famlia, da minha famlia, de eu constituir famlia, a sim,
mas se no, eu preferia o meu espao, minha opo maior a minha profisso, ento
deu certo para eu me casar e fui feliz e tudo. Adoro os meus filhos, agora, quando eu
era jovem, a minha prioridade era a minha profisso. [...] Era o meu projeto de vida
estudar e trabalhar.278
[...] Sempre pensei em primeiro me formar, tanto que eu casei com 24 anos e j tinha
me formado com 22. Quando eu comecei a namorar com esse rapaz que eu me casei,
ele estava no 3 ano de Medicina e eu j era formada, porque Medicina era um curso
mais longo. [...] Era assim, l em casa no havia essa questo no, ns queramos era a
profisso, mas se acontecesse de namorar e gostar e casar, tudo bem, mas havia
pessoas que no foram adiante, casaram cedo e a no puderam, a maioria quando
casava cedo, depois no ia fazer, no ia estudar no, a maioria, era rara a moa que
depois de casada voltava a estudar. Era muito raro.279
277
ANA PAULA. Dizendo o que penso: ficha de identidade. O Dia, Teresina, ano, XIV, n. 1152, p. 7, 16 jan.
1964.
278
OMMATI, Fides Anglica de C. V. Mendes. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso.Teresina,
abr. 2002.
279
MENDES, Maria Ceclia da Costa Arajo. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina,
maio 2002.
[...] Minha me dizia para minhas irms: - vocs devem casar com o emprego de
vocs, a melhor coisa do mundo o emprego, o melhor marido do mundo o
emprego, o emprego que a gente fica livre de pedir dinheiro a homem, essa coisa;
ento isso era um pouco incutido na cabea das pessoas [...].280
280
NUNES, Clis Portella. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, abr. 2002.
saudvel, afetivo e agradvel, ser amorosa e saber investir na relao conjugal. Na abertura
da Coluna Feminina, dizia a articulista:
281
282
MARGOT. Coluna feminina. O Dia, Teresina, ano XV, n. 1858, p. 4, 29/30 maio 1966.
MARGOT. Coluna feminina. O Dia, Teresina, ano XV, n. 1910, p. 4, 24/25 jul. 1966.
A amiga leitora sabia que casamento nesses anos requeria investimentos, dentre os
quais: ter freqentado os espaos de lazer da cidade - a Praa Pedro II, o Clube dos Dirios, o
Jockey Club, os cinemas; ter tido todo cuidado necessrio para no se tornar uma moa
falada, respeitando os horrios estabelecidos, tendo poucos namorados e no permitindo
intimidades; ter escolhido um rapaz que fosse aceito pela famlia; ter estudado jeitos, gestos e
trejeitos para conquist-lo. Contudo, para manter a felicidade conjugal, o esforo deveria ser
redobrado e, se os conselhos mais gerais no estivessem surtindo o efeito necessrio, a cara
leitora poderia encontrar na pgina voltada para o pblico feminino outras dicas apresentadas
em tom bastante didtico, como as que seguem:
283
MARGOT. Coluna feminina. O Dia, Teresina, ano XV, n. 1910, p. 4, 31/1 ago. 1966.
12) Ser sempre paciente e afvel, calar-se quando ele reclamar por algo errado de sua
parte.284
Mas, se alguma jovem senhora alm de desconfiar que seu marido poderia estar
interessado em outras mulheres, percebesse certos gestos suspeitos, como olhares vvidos e
insinuantes lanados para outras mulheres, o seguinte conselho tambm poderia ser til:
[o seu marido] volta-se para olhar uma outra moa: no lhe falta espontaneidade, ele
demonstra ser um sujeito sincero. De sua parte, por outro lado, pode-se dizer que lhe
falta um pouco de experincia psicolgica e o senso de humor necessrio. Voc est
convencida de que ele no deve olhar para mais ningum, s para voc. Cuidado,
minha amiga: voc vive totalmente fora da realidade.285
Nas crnicas de Orlane Magalhes, aparentemente uma mulher solteira que alm de ser
cronista, era funcionria pblica estadual, tambm se delineia a identidade feminina a partir
do casamento e da maternidade. Os textos dessa articulista geralmente narravam histrias de
amor, onde emergiam jovens aspirantes-a-noivinhas, que buscavam no amor, no casamento e
na maternidade a receita para a felicidade.
O perfil das aspirantes-a-noivinhas era o de uma moa branca, doce, ingnua, em estado
virginal, que na formosura dos seus 18 anos buscava um belo rapaz, de boa famlia,
preferencialmente, formado em
incompreensivas, arengueiras, autoritrias, ambiciosas, questionadoras eram os contramodelos, ou seja, as que no casavam. A no ser que mudassem ou aprendessem a dissimular
o jeito de ser! Roslia, uma das personagens de Orlane Magalhes era um exemplo de moa
que, embora atrasse pela beleza, afastava os pretendentes a marido em decorrncia de sua
postura. Vejamos o seguinte trecho de sua histria:
era alta, morena, cintura fina, bem proporcionada, de curvas perfeitas. Olhos negros,
acariciantes, sedutores, iluminavam-lhe o rosto rseo e encantador, onde a boca rubra
e pequena da moa atraa. [Mas o] seu gnio forte, irritadio, sua maneira autoritria,
desencantavam no somente os amigos como, e principalmente, os candidatos a uma
284
ABREU, Teresinha. Princpios para ser uma boa esposa. O Dia, Teresina, ano XV, n. 1622, p. 9, 18 ago.
1965.
285
O DIA feminino. O Dia, Teresina, ano XIX, p. 6, 3 e 4 ago. 1969.
demonstrasse esse sentimento egosta antes do casamento. Amo voc Roslia, porm
adoro minha profisso. [...] Decida, pois, se quer ser a esposa do homem e, acima de
tudo, a companheira de um mdico.286
286
287
MAGALHES, Orlane. O dilema. O Dia, Teresina, ano XIV, n. 1180, p. 7, 11 maio 1964.
MAGALHES, Orlane. A carta. O Dia, Teresina, ano X, n. 1161, p. 7, 4 fev. 1960.
288
CECY Hortncio concede entrevista. O Dia, Teresina, ano XV, n. 1484, p. 8, 17 maio 1966.
Nesse caminho, Rosa Amlia Tajra relembra que contara com o apoio de sua me que,
basicamente, cuidou dos seus filhos nos primeiros anos de vida, uma vez que, Rosa Amlia,
mesmo aps ter se casado, morou na casa dos pais por 10 anos.
[...] Eu casei e fiquei na casa da mame, na casa de meus pais, passou um ano,
passaram-se dois, trs, quatro, cinco, terminei ficando 10 anos l na casa da mame.
Meus trs filhos foram criados praticamente pela mame, tambm todos trs nasceram
fora de tempo, quando eu pensava que no, j tava os meninos saindo. O trabalho de
casa, quando em vim pra c o mais novo tinha 6, 7 anos j estavam indo pra escola, os
primeiros anos eram os que eram mais difceis mesmo para conciliar menino pequeno
pr-escolar, escola com a minha profisso de medicina era meio difcil mesmo.289
Na segunda metade da dcada de 1960, vinte anos aps Rosa Amlia Tajra ter iniciado
sua travessia entre as esferas pblica e privada, esse tipo de experincia feminina vai se
tornando mais visvel, na medida em que se amplia, como j sabemos, o nmero de mulheres
com formao superior que vai conciliando carreira, casamento e filhos. ento no ano de
1966, que Ceclia Mendes, aps 2 anos de formada, casa-se, e um ano aps o casamento, se
torna me.
[...] Eu casei, eu queria ter filho logo, porque eu tinha medo de no ter filhos. Eu tinha
duas irms do meu pai que casaram e que no tiveram filho. [...] Ento eu tinha...
como eu no sabia dos motivos, eu tinha medo de casar e no ter filhos por causa das
minhas tias, tinha dois casos na famlia. Eu tinha medo, ento eu cuidei de engravidar
logo, que eu queria saber se eu podia ter ou no, ento com um ano eu tive o meu
filho, primeiro filho. Tive 4 filhos, uma, 1 ano e 8 meses depois fiz uma pausa de 4
anos, outro, a fiz uma pausa de quase 8 anos, pra ter o outro. eu ainda pensava em
ter s 3 filhos, ento depois veio o rapaz, j temporo, o temporo ele veio, a caula j
tinha quase 8 anos. Eu pensava em no ter mais filhos. A gente evitava com plula
quando queria dar um intervalo.290
289
290
FRANA,Rosa Amlia Tajra. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
MENDES, 2002.
[...] era uma correria muito grande, mesmo porque eu sou dessas pessoas que quando
me apaixono por meu trabalho, at sentia um pouco de culpa, sabe? De deixar em
casa, filho e tal, porque a gente, por exemplo, na Universidade a gente no tinha
tempo, s vezes pegava disciplina de manh, disciplina de tarde, disciplina de noite, se
acabava se trabalhando nos 3 turnos, embora no fosse assim os trs turnos direito.
Mas eu mesma sofria de estar assim ausente [Grifo nosso].291
MENDES, 2002.
[...] mas a gente tinha uma certa estrutura, porque ns ainda tnhamos com facilidade a
empregada, a bab. Minha me me ajudava muito, se eu precisasse viajar a servio,
participar de um congresso, de um seminrio, ela tomava conta dos meninos. Pelo
menos o pequenininho, o mais novo ficava com ela, ou ento ficava
supervisionando.[...] Mas a gente tentava conciliar, assim, porque a gente tinha a sorte
de ter empregadas que dormiam em casa e sempre tinha cozinheira, mas tinha uma
bab para olhar as crianas at 2 anos, tinha bab em geral, era assim com o apoio da
mame, a mame ajudou muitos os filhos que precisavam. 292
292
MENDES, 2002.
Nesse processo de redefinio dos lugares sociais de parte das mulheres dos setores
mais abastados, a condio de classe tambm era um fator fundamental, para que mulheres,
como Ceclia Mendes, Fides Anglica e Glria Sandes se firmassem no universo pblico, sem
abrir mo dos papis familiares. Por terem condies de insero mais vantajosa no mercado
de trabalho, recebendo em geral os melhores salrios pagos s mulheres, essas profissionais
podiam contratar outras mulheres dos setores populares para desempenhar a maior parte das
atividades domsticas. Assim, na prtica, essas donas de casa se tornavam responsveis pela
superviso dos servios domsticos. Nesse sentido, vlido lembrar que, nos anos 1960,
grande parte das mulheres economicamente ativas eram empregadas domsticas.293
No bojo dessa experincia feminina de vivncia de mltiplos papis, iam igualmente
acontecendo deslocamentos nas relaes familiares, tendo em vista que alguns maridos
passavam a dividir as tarefas domsticas com suas esposas e a cuidar dos filhos. o que nos
diz Fides Anglica:
eu acho que por causa disso que eu tinha a minha profisso, j dividia as tarefas
domsticas, o marido j dividia as tarefas domsticas comigo, ele fazia as compras, ele
cuidava dos meus filhos, quando eu no podia, quando eu tinha um compromisso,
ento, quer dizer, a gente j comeou a fazer o que hoje j est se exigindo, naquela
poca eu j precisava contar com ele, ento na minha casa j havia uma diviso de
tarefas domsticas, ento isso facilitou muito a minha vida, alm de eu ter tido sorte de
ter conseguido pessoas de base que me davam tranqilidade, mas eu contei tambm
com essa diviso de tarefa com o marido.294
mulheres estarem
investindo em uma carreira e quebrando a dicotomia entre os papis pblicos e privados, elas
foram socializadas, a partir de valores que ressaltavam a importncia da maternidade e do
293
294
casamento na vida feminina. Desde meninas, portanto, ouviram discursos que diziam que a
realizao mxima da mulher se dava mediante a maternidade e o casamento. Desse modo,
essas mulheres foram internalizando esses valores, mesmo quando na juventude elegeram
como opo nmero um a profisso, como foi o caso de Fides Anglica.
no momento em que voc tem uma profisso e essa profisso lhe d independncia,
muito diferente, o relacionamento muito mais de companheirismo do que uma
submisso, que era o estilo da famlia, que o estilo da famlia at a dcada de 60, 70
era uma famlia que o homem era o chefe da famlia e que todos os membros da
famlia se submetiam a ele formando uma hierarquia familiar, no momento, em que
voc uma mulher, que tem uma profisso, bem sucedida, isso implicando bem
sucedida no s o nome profissional, mas uma independncia financeira e ter um
nome tambm muito importante pelo seu prprio espao dentro da sociedade ento
isso d uma dimenso nova ao relacionamento familiar, antes da lei dizer que ambos
so companheiros e que ambos dirigem a famlia, eu j vivenciei uma famlia que ns
ramos companheiros e que ambos dirigamos a famlia, ento no havia aquela
hierarquia.296
Outro deslocamento das relaes de gnero que essas mulheres iam forjando era o fato
de passarem a ter status social a partir do lugar de profissional. Isto se dava porque essas
mulheres iam se inserindo no universo pblico e conseguindo legitimidade e status social a
partir de um nome prprio, a partir do lugar de mulheres pblicas. E no em funo dos
espaos ocupados por seus maridos ou pelos filhos, como era o ideal no modelo de mulher
me, esposa e dona de casa.297 A respeito dessa experincia nos conta Fides Anglica que
[...] no momento em que h uma mulher que tem seu prprio nome, sem precisar do
marido, j tem sua presena social, ento isso significou muito pra mim, significou
bastante porque eu sempre fui uma pessoa como eu lhe disse, eu sempre quis ter o meu
espao, eu sempre quis ser eu mesma, procurar viver com minha prpria luz e isto pra
mim foi fundamental pra me sentir bem, me sentir realizada, at como eu lhe disse me
sentir at dentro da minha famlia esse projetor at pros meus filhos, pro meu marido,
296
297
isso me fez muito feliz na minha relao com o ... porque quando eu me casei eu j
tinha a minha conquista pessoal, eu j era algum socialmente e isto foi muito bom
pra mim, foi muito bom na minha relao e foi muito bom quando aconteceu de eu ter
ficado viva, depois foi muito bom para os meus filhos.298
Com efeito, as mulheres que, assim como Fides Anglica, inseriam-se no espao
pblico, a partir do prprio nome, iam redefinindo o sentido do termo mulher pblica, que at
a dcada de 1960 era associado imagem da prostituta.299 Haja vista que a atuao dessas
mulheres enquanto profissionais dava base para que a figura da mulher pblica fosse
pensada sob os mesmos parmetros pelos quais se pensa o homem pblico, isto , enquanto
ser racional dotado de capacidade intelectual e moral para a direo dos negcios da
cidade.300
vlido ressaltar, todavia, que a configurao dessas mulheres enquanto profissionais
no ocorreu mediante um movimento suave, mas convulsionado, na medida em que elas
tiveram que criar cdigos, articular condutas, delinear comportamentos em um terreno em que
o feminino vinha figurando como coadjuvante. Os atores principais nesse espao, at ento,
eram os homens e, de repente, elas tambm assumiram o lugar de protagonistas, tendo que
compor rapidamente a personagem mulher pblica, a partir de referncias ambguas. De um
lado, os valores relativos esfera pblica como inteligncia, iniciativa, competitividade,
profissionalismo e competncia; de outro lado, a partir daqueles que caracterizavam a esfera
privada, como sentimentalidade, sensibilidade e intimidade. Ao tempo em que aprendiam de
diferentes formas a lidarem com um eu que se tornava mltiplo e se expressava em esferas
marcadas por lgicas distintas. Sobre esse movimento Glria Sandes pontua a dificuldade por
ela sentida, ao dizer que
[...] a gente no trabalho mesmo a gente leva a vida domstica para o trabalho, porque a
gente ainda mistura a vida domstica com a vida pblica [...] eu no sei se bom ou se
ruim, se coincide sensibilidade e trabalho e tambm faz o lado bom... [A gente]
expe mais do que os homens nossa vida pessoal, isso bom ou ruim no sei, tem
muita coisa hoje que eu no tenho certeza, a nica certeza que eu tinha, no tenho! eu
achava assim: sou uma mulher pblica, tudo meu todo mundo tem que conhecer, eu
298
sou transparente, que eu sempre achava que tudo tinha que ser dito e pensava [...] eu
achava que tinha que ser dito tudo, que depois que eu morresse no poderia dizer nada,
tudo o que eu tenho que dizer tem que ser agora, porque depois eu morro [...].301
[...] a profisso muito importante uma das dimenses muito importante na vida de
qualquer pessoa, porque principalmente no caso da mulher, a profisso feminina ela d
a mulher segurana sobre muitos medos que a mulher sempre tem e d uma
autoconfiana muito grande, segurana e autoconfiana, particularmente, a minha
profisso fez com que eu tivesse um equilbrio muito grande na minha vida em todos
os aspectos, at no meu casamento [...].302
[...] acho que o casamento uma realizao de uma parte da mulher. Eu sempre
encarei com muita naturalidade, como uma coisa que a gente realiza, que a gente
concretiza junto profisso. Senti que, como eu me dedicava muito a minha profisso,
trabalhava muito de manh, de tarde, de noite, acho que eu poderia ter sido melhor
me, melhor dona de casa. Mas meu casamento j dura... ontem ns fizemos 36 anos
de casados. No acho que foi muito sacrifcio manter o casamento, no. Claro que
vai... cada um cede um pouco.303
301
SANDES, Glria. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
OMMATI, op. cit.
303
MENDES, 2002.
302
Nesse sentido, importa acentuar que, entre a dcada de 1960 e o incio dos anos 1970,
tempo em que Fides Anglica e Ceclia Mendes estavam investindo na profisso, os valores
dominantes consideravam casamento, profisso e filhos projetos incompatveis. Desse modo,
essas mulheres contriburam para que se constitussem concepes alternativas, na medida em
que buscaram no decorrer de suas vidas a conciliao desses projetos.
A travessia feminina para o espao pblico, todavia, tambm se constituiu mediante o
afastamento dos papis tradicionais femininos, na medida em que parte das mulheres que
investiram em uma carreira continuou solteira.
No discurso de Nerina Castelo Branco o fato de ser solteira significado como opo
de vida, como escolha prpria, onde teria prevalecido o desejo de manter a independncia e a
autonomia vivenciadas.
Eu sou solteira, nunca me casei [...] eu sempre gostei da minha liberdade, eu sou uma
pessoa que gosta de...., quando eu quero viajo, quando eu quero fazer minhas coisas
no tenho que dar satisfao a ningum, sempre fui muito independente, olha que eu j
viajei muito, conheci quase o mundo inteiro e, eu fao minhas viagens, no tenho que
dar satisfao a fulano, eu sou, eu sempre fui livre e independente. Meus pais eram
pessoas compreensivas, pessoas amveis, tolerantes, que me davam essa liberdade, eu
nunca fui libertina, no isto nunca!. Liberdade quer dizer, fazer o que eu quero, sem
ter que andar prestando conta e tal, compreende? [...] Eu sempre fui independente, eu
optei pelo melhor, pela minha liberdade! pela minha realizao pessoal de fazer
poesia. Casamento para mim seria um acidente, no uma coisa normal, um
acidente, eu no tinha formao e nem pensamento direcionado pra isso no... 304
Nessa memria de Nerina Castelo Branco o fato de ser solteira compreendido como
uma condio que permite a manuteno da autonomia, da independncia e da liberdade
feminina. Tornar-se solteira, portanto, conforme o discurso de Nerina Castelo Branco fez
parte do seu processo de individualizao, na medida em que essa situao teria propiciado
condies para o desenvolvimento de seus interesses individuais.
Contudo, essa no era a concepo predominante na dcada de 1950, quando Nerina
Castelo Branco ingressou no ensino superior e no mercado de trabalho. Nesse perodo, a
condio de mulher solteira era vista em relao da mulher casada. A mulher que ficava
solteira era, portanto, conforme os valores dominantes, aquela que no havia conseguido
304
CASTELO BRANCO, Nerina. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
em que a
[...] Quando eu comecei a estudar mais o papel da mulher, toda vivncia dela, o que
ela podia ser e tudo, quer dizer, eu tive muita dificuldade com os namorados, com as
pessoas que eu cheguei a gostar porque, a tambm foi falta de um pouco, acho que eu
no gostava o suficiente, no tinha vocao tambm ou ento eu j esperava que eles
j estivessem prontos, eu fui questionadora demais, me zangava por tudo, era
arenguenta, no sentido de querer perfeio, porque as pessoas no tm perfeio [...]
Mas, sobretudo, era por conta disso, eu achava que mulher tinha que ter um papel
fundamental, eu pessoalmente acho que mulher o ncleo da famlia [...].305
Essa experincia por que foi passando Clis Portella no era uma situao isolada, pois
no perodo em que militava na Ao Catlica
[...] as prprias meninas de... escolhiam seus noivos mudaram totalmente, quantos e
quantos desmancharam o noivado porque o noivo j no tinha os padres queridos
por elas, eu, por exemplo, mudei totalmente, arrebentei no sei quantos de noivados,
no queria mais saber porque a gente entrou num movimento com a cabea e depois
viu que a vida se gratificava muito mais com outras coisas. E a os prprios que
acompanhavam no se enquadravam mais e tinham muita dificuldade, depois a gente
tem um pouco a tendncia tambm desses movimentos de... at por ser de pessoas
muito... no diria muito jovem, mas muito idealista de querer o mundo perfeito, querer
as coisas como a gente pensa [...].306
Esse processo vivido por Clis Portella e por suas contemporneas, conforme expressa
Suely Rolnik307, ia alterando afetivamente as relaes homem/mulher, pois, se um rapaz
pretendente-a-marido e uma moa aspirante-a-noivinha conseguiam se atrair e se identificar,
mediante gestos, jeitos e trejeitos, uma moa que estava desterritorializando a mscara de
noivinha, diante de um pretendente-a-marido, ia tendo uma relao de estranhamento e viceversa. A jovem se distanciava do padro de moa casadoura, enquanto que o rapaz, ao manter
as posturas de um pretendente-a-marido, no acompanhava o movimento vivenciado por
essas mulheres, deixando de constituir o modelo desejado por elas.
Na gerao de Claudete Dias, que nasceu na dcada de 1950, essa experincia vivida por
algumas mulheres na gerao de Clis Portella continuava a marcar a subjetividade feminina.
Isso porque se intensificava, nas dcadas de 1960 e 1970, a desterritorializao do territrio
feminino construdo a partir do casamento e da maternidade.
No discurso de Claudete Dias observa-se o questionamento do casamento enquanto
espao de realizao afetiva. Assim, Claudete Dias j no problematiza o modelo de
305
casamento moldado em relaes hierrquicas, como fazia Clis Portella, mas a prprio
casamento enquanto instituio.
Com efeito, Claudete Dias vai se significando como mulher independente e livre e ao
mesmo tempo mltipla, na medida em que teve que aprender a se desdobrar entre os espaos
pblico e privado, situando-se sozinha nas duas esferas.
[...] Como eu sou solteira, no tenho marido, no tenho filho, eu sou o homem, a
mulher, o filho, o genro, a nora, eu sou tudo, eu que sou tudo e a vida toda eu
desempenhei esse papel de ser mulher livre e independente, mas ser amigo, amiga,
irmo, me, pai, namorado, namorada.309
308
309
DIAS, Claudete Maria Miranda. Depoimento concedido a Eliangela Barbosa Cardoso. Teresina, fev. 2002.
Ibid.
[...] Hoje eu j convivo com mais tranqilidade com o fato de eu ser solteira, porque
eu sempre fui muito cobrada pela minha famlia o fato de eu no ter um marido, viver
viajando, pegar minha mala e ir pelo mundo e no ter uma pessoa fixa na minha
vida.310
Uma outra dimenso que nos ajuda a compreender, tanto as trajetrias de vida das
mulheres que se tornaram solteiras, quanto das que se casaram, o enfoque dos valores
morais que prevaleciam em Teresina, entre os anos 1950 e o incios dos anos 1970, mediante
os quais podemos delinear uma das fronteiras da singularizao feminina nesses anos - a
manuteno dos valores relativos ao corpo e sexualidade.
Em Teresina, nesse perodo, a virgindade feminina era tida como um valor fundamental.
Por ser considerada um selo de garantia da honra e da pureza das mulheres, esperava-se a
pureza virginal, tanto das moas casadouras, quanto das que ficassem solteiras, uma vez que a
sexualidade feminina deveria ser vivenciada somente no mbito conjugal. Enquanto que os
rapazes poderiam ter experincias sexuais, sendo estas, inclusive, incentivadas, pois potncia
sexual era e considerada uma das bases da masculinidade hegemnica.311 Sobre essa questo
Clis Portella relembra que
[...] nessa poca que eu vivi, tinha muito tabu, muito cerceamento da prpria Igreja
Catlica, levava as coisas muito rigidamente, e as famlias por serem catlicas
religiosas tambm impunham muito isso, sobretudo s mulheres, volto a dizer que aos
homens era dada toda liberdade e s mulheres muita punio, punio eu digo no
sentido de experincia mesmo sexual, era muito... para fazermos alguma coisa tinha
que sair de casa, no tinha como trabalhar isso ao mesmo tempo, famlia nenhuma era
assim, as coisas eram muito cheias de tabu [...]. 312
[...] a questo da virgindade ela era estimulada, sim, naquela poca e os pais gostavam
de dizer que os rapazes eles mesmos no queriam saber das moas que no eram
virgens. Ento, as moas s vezes temiam de se entregar, eu acho por conta desse
310
medo, depois no serem aceitas. Porque realmente a virgindade era um ponto que era
valorizado.313
A articulista, h poucos dias, mais ou menos pelas sete da noite, ao passar pela Praa
do Liceu, na travessa
MENDES, 2002.
[...] Havemos de advertir os pais e tutores que evidentemente zelem pelo bem-estar de
suas famlias, no consintam que suas filhas e tuteladas andem a namorar pelas praas
e esquinas, bem como no lhes dando permisso para sarem a ss com namorados em
carros ou mesmo desacompanhadas, porquanto os homens de hoje desejam levar ao
detrimento a reputao das filhas alheias.314
[...] Eu li muito, lia tudo que passava na minha mo, mas as leituras l em casa, como
eu digo, a gerao, os homens podiam ler o que quisessem, [...] os meninos tinham
acesso a tudo, quanto a ns..., todos os romances tinham que passar antes pelo papai,
[...] tendo cama no havia possibilidade de poder ler, [...] s que os que passavam por
ele uns, uns... eu lia tambm eram eles e mais outros, eles para dar conta do..., se ele
me perguntasse alguma coisa porque eu lia muito noite, ele mandava: tal hora tinha
que deixar de estudar e, eu colocava minha roupa na fresta da porta para ele no v e
lia os que eu queria depois, li tudo quanto era de Jorge Amado, essas coisas todas. [...]
Ento essas coisas eram cerceadas, mas aquela coisa, a criatividade da gente que
leva a algumas coisas eu botava os romances dentro dos livros, lia quase na presena
dos outros tambm e ningum desconfiava de nada, ento ns tnhamos que nos
virar.315
Alm de tomar certos cuidados para que as filhas no fizessem leituras tidas como
imprprias, os pais tambm deveriam conceder uma certa liberdade s jovens, pois moas
314
315
Nem todos os espaos de lazer, contudo, eram considerados adequados para uma boa
moa, os banhos na coroa do rio Parnaba, por exemplo, eram proibidos a Clis Portella.
Igualmente, Clis Portella deveria observar certos padres de comportamento como no vestir
roupas ousadas e nas tertlias e bailes saber manter a devida distncia dos rapazes na hora da
dana. Essas determinaes de seus pais tinham por objetivo evitar comentrios maliciosos a
seu respeito, uma vez que, em Teresina, nas dcadas de 1950 e 1960, comumente as pessoas
se sentavam porta das casas para conversarem e, naturalmente, um dos assuntos preferidos
era os comportamentos inadequados das filhas alheias.
[...] A presso era muito grande, muita coisa era pecado, pecado no pode fazer, no
pode se vestir mal, no pode at ... at cerceavam dana, porque a dana era juntinha
naquela poca, cerceavam quer dizer outra coisa assim muito, banho no rio Parnaba,
piscinas tinham muito poucas aqui em Teresina, no era assim uma coisa que a gente
316
MENDES, 2002.
pudesse estar e s vezes piscinas particulares eram mais livres porque a gente ia no
local onde podia estar sozinha.317
Mas, a despeito da vigilncia social e familiar, algumas jovens criavam meios para
satisfazer os seus desejos, danando as normas. A esse respeito, Irlane Abreu nos conta que
[...] eu saa daqui toda noite dizendo que ia para a casa do seu Ribamar, ia l para a
praa do Liceu namorar, eu era terrvel, terrivelzinha! Ele descobriu, a mandava, olha
s! a empregada me levar para a casa do Dr. Ribamar, como se fosse muita segurana,
ele tinha certeza que eu no estava l [...] ele mandava a moa me levar a uma quadra
de distncia. Ela me levava, chegava l ia embora, quando eu via que estava na hora
de voltar, voltava para casa e pegava, no ? Ele achava que estava.... ali, no achava
no, ele sabia que eu estava...., ele no era bobo! Era uma vida boa! 318
Contudo, as burlas femininas deveriam acontecer dentro de certos limites, pois as jovens
que, assim como Irlane Abreu, desafiavam certas imposies familiares tinham que ter
bastante tato para no se tornarem moas mal faladas. Essas eram objeto de reprovao e
segregao social, uma vez que, conforme a moral dominante, as boas moas deveriam se
afastar das moas consideradas fceis, faladas, a fim de que a m fama dessas no as
atingisse.
Ademais, as moas fceis eram tidas como aquelas que os rapazes queriam para
namorar, mas no casavam!. Os rapazes desejavam somente ter intimidades que supostamente
essas moas permitiam, como advertiam alguns pais.
317
318
casamento, enquanto que aquelas que se permitiam essas experincias, em geral, se negava
possibilidade de casamento e de prestgio social.
Nos anos 1950 e 1960, contudo, nem todas as moas se mantiveram virgens at o
matrimnio, algumas ousaram desrespeitar essas normas; umas casaram, outras, no. As que
no casaram para conservar o prestgio social tinham que manter sua condio em segredo,
procurando preservar a imagem de moa de famlia.
[...] Muitas pessoas casavam sem ser virgem, casavam grvidas, eram pouqussimos
os casos na minha poca, mas havia. Quando acontecia era um escndalo. Quando o
rapaz no assumia ou a famlia dele no queria, ia pra fora, a mandava para ter o filho
longe, era assim. Uma vez ou outra aparecia e a gente sabia. Quando a famlia dele do
rapaz no queria que o filho assumisse e ela ficava me solteira, ou era s vezes o
rapaz que passava aqui e no era daqui, no ? Ela acabava indo ter o filho em
Fortaleza, ter filho em Parnaba, s vezes voltava aqui como se fosse de outra irm, de
outra pessoa da famlia, no dela e a pronto ela no casava mais nunca. [...] Esses
casos eram vistos assim com muito segredo, no era comum no, mas sempre tinha as
moas danadinhas.319
Como vemos nessa memria de Ceclia Mendes, as que no casavam com os namorados
ou noivos com quem tinham vivido as primeiras experincias sexuais, em geral, no casavam
mais. Isto se dava porque eram raros os homens que aceitavam se casar com moas que se
iniciaram sexualmente com outro homem. Alm disso, as que engravidaram no podiam
assumir publicamente a maternidade, sob pena de intensificar o estigma social que caa sobre
elas.
Nesse sentido, as moas no virgens para continuarem a ser respeitadas no podiam
namorar os rapazes da cidade, pois poderia tornar sua situao explcita, perdendo a boa
reputao. Portanto, namoravam geralmente rapazes de fora, a fim de conservarem uma
imagem ilibada.
Mas no era somente a perda da virgindade que maculava a imagem de uma moa.
Glria Sandes nos diz que, na segunda metade da dcada de 1960, ter muitos namorados,
namorar em locais que pudessem sugerir intimidades entre os enamorados, beijar em pblico
e no observar os horrios estabelecidos tambm eram prticas que arranhavam a reputao
feminina.
319
MENDES, 2002.
[...] As moas at os horrios eram comandados. Depois das 9 horas [da noite] as
moas direitas, consideradas direitas no ficavam na Praa, na Pedro II. As que
ficavam j eram marcadas, como moas fceis, de programa certo, consideradas de
programa. [...] Podia ir pro cinema certo! ento, no podia se beijar em todo lugar, mas
no cinema podia dar uns beijinhos no escuro, no escurinho do cinema, inclusive, meu
namorado, meu namorado, muito mais aberto do que eu, estudava Direito e ele, ele
queria s botar a mo aqui no meu ombro eu no, papai fiscalizava, aparecia aquela
tosse, era ele tossindo l pra avisar a gente que tava por l, eu morria de medo!
comeava a tossir meu pai! pode tirar a mo! [ele dizia]: - olha eu vou botar a mo
bem aqui se voc tirar a mo eu lhe deixo sozinha. Trs vezes ele me deixou sozinha,
eu no deixava botar a mo no escuro, morria de medo de meu pai me pegar! 320
conservasse a virgindade, no escapou pecha de moa falada, como nos diz no seguinte
trecho de sua entrevista:
[...] quer dizer as meninas da minha gerao, que contraditoriamente..., que fizeram
um pouco a revoluo sexual, eu no fiz revoluo sexual, eu fiz outra revoluo:
revoluo social, revoluo de comportamento, de participao e tudo, mas sexual,
apesar de eu ter muito essa imagem, porque eu namorava muito, namorava assim:
comeava a namorar, a queria mandar em mim ou queria casar, eu acabava; comeava
namorar outro, queria mandar em mim, dizer como que eu tinha que me vestir, como
era que eu [tinha que] me comportar, ento eu terminava. Isso criava uma imagem em
So Raimundo Nonato que eu era namoradeira, era liberada, era rapariga, era falada,
mas eu era pura, virgem, imaculada, s que eu gostava de namorar e beijar na boca.321
No incio dos anos 1970, em Teresina, ainda que alguns questionamentos em torno da
sexualidade tivessem eclodido no final dos anos 1960, como demonstra a emergncia de
matrias na imprensa sobre essa temtica, continuavam prevalecendo rgidos valores morais.
Assim, aquelas jovens que iam alterando os padres de comportamento, mesmo mantendo os
valores relativos sexualidade, poderiam se tornar moas faladas. Novamente isto aconteceu
320
321
a Claudete Dias, quando ela veio morar em Teresina, uma vez que ela ousou experienciar
prticas pouco comuns entre as moas do perodo como, por exemplo, se tornar atriz de
alguns filmes de Torquato Neto, pilotar motocicleta e morar sozinha, com seu irmo. A esse
respeito Claudete Dias nos conta que, quando foi embora para o Rio de Janeiro
[...] eu fui [...] odiando Teresina, porque eu em Teresina eu era maconheira, eu era
rapariga, eu era... o que voc imaginasse eu era aqui, porque eu fazia teatro, porque eu
namorava Torquato Neto, porque eu dava mais do que chuchu na serra, porque na
minha casa tinha uma chamin pra sair a fumaa da maconha, porque enfim... e eu no
era nada disso, eu era virgem, pura e imaculada [...] meu prprio namorado com quem
eu, quem eu amava, eu no transava com ele, quer dizer, fui me embora de Teresina
pura, virgem e imaculada, mas assim na boca da sociedade de Teresina eu era, porque
eu tinha uma moto, eu ia dar aula, pois eu ia dar aula com minha moto, porque eu sa
da casa de meu tio e fui morar com meu irmo [...].322
Mediante essa memria de Claudete Dias, podemos perceber que sua subjetividade foi
marcada por esses discursos que a construram socialmente como moa falada. poca, os
comentrios a seu respeito a impulsionaram, inclusive, a ir embora para o Rio de Janeiro.
Contudo, a despeito das dores que essa produo imagtica causou a Claudete Dias, a sua
imagem social contribuiu para a desconstruo dos valores dominantes em torno da
sexualidade, pois era vista tanto como moa falada quanto como liberada, ou seja, como
aquela que estava pondo em xeque o valor da virgindade e do casamento na vida feminina.
Claudete Dias, portanto, foi semiotizando uma identidade alternativa em relao
sexualidade, ainda que fosse virgem, pura e imaculada nesse momento de sua trajetria de
vida.
salutar, portanto, destacar a importncia da imagem na vida das mulheres que viveram
a juventude no perodo em estudo. Por um lado, era fundamental que parecessem ser virgens,
ainda que no fossem; por outro, mesmo se conservassem os valores em torno da sexualidade,
mas tivessem uma imagem social que negasse esse fato, seriam certamente execradas
socialmente.
Desse modo, se as mulheres dessas geraes eram incentivadas pela famlia a estudar e a
trabalhar, no que se refere ao corpo e sexualidade, esperava-se que mantivessem os valores
322
morais a qualquer custo. E, de fato, parece que a maioria os conservou, seja mediante a
imagem forjada socialmente, seja na vivncia afetivo-sexual.
Nesse sentido, vlido ressaltar que, tanto para as jovens que cursaram o ensino
superior em Teresina, quanto para as que saram para estudar em outras cidades, o fato de
serem vistas pelos pais e familiares como moas direitas, foi um elemento que contribuiu
para que dessem continuidade aos estudos. Por serem, portanto, no seio familiar merecedoras
de um voto de confiana, quer para estudar noite, quer para ir estudar em outras cidades. A
preocupao com a defesa da honra feminina no s dificultava, mas impedia, mesmo, que
muitas jovens fossem estudar fora, pois muitos pais concebiam que as filhas deveriam estar
constantemente sob vigilncia familiar.
E de fato algumas das jovens que saram para estudar fora puderam problematizar os
valores a partir dos quais foram socializadas. Este foi o caso de Glria Sandes, que estudou
em Braslia, entre fins dos anos 1960 e incio dos anos 1970, momento em que algumas
estudantes universitrias dessa cidade, assim como de outros grandes centros,
estavam
8 CONSIDERAES FINAIS
A primeira concluso deste trabalho que as mulheres que foram ingressando no ensino
superior no perodo em estudo foram tornando esse espao um lugar feminino, ou seja, foram
legitimando a participao das mulheres nesse nvel de ensino.
Contudo, as mulheres com formao superior no compem um sujeito contnuo ao
longo do tempo. o que conclumos ao estudarmos as histrias de vida das entrevistadas. Isso
porque, ainda que haja traos de continuidade em suas histrias, como os investimentos no
ensino superior e na carreira, elas so marcadas pelo seu tempo, emergindo, assim,
descontinuidades entre suas vivncias.
Rosa Amlia Tajra possui uma experincia de vida que tanto a diferencia das mulheres
de sua gerao e do seu segmento social como daquelas que passaram a investir no ensino
superior e no trabalho, entre final dos anos 1950 e o incio dos anos 1970. As mulheres de sua
gerao e de sua classe social, em termos de escolarizao, em geral, cursavam o normal ou o
ginsio e, no que se refere ao trabalho, normalmente eram professoras primrias. J Rosa
Amlia foi uma das pouqussimas mulheres que ingressaram no ensino superior nesse perodo
e em uma rea de domnio masculino. Dessa maneira sua experincia era bastante singular e
distanciava-se da vivncia das mulheres que foram se formando e ingressando no mercado de
trabalho entre o final dos anos 1950 e o incio dos anos 1970, posto que, no perodo, embora
esse fosse ainda um caminho singular, ia se tornando um modelo de vivncia feminina dentre
as mulheres dos setores sociais mais abastados.
Ao estudarmos a trajetria escolar de Clis Portella, Nerina Castelo Branco, Irlane
Abreu, Ceclia Mendes, Glria Sandes e Claudete Dias e o contexto no qual se escolarizaram
vimos que, entre as dcadas de 1940 e 1970, a presena feminina na escola vai se expandindo.
Nos anos 1940, as mulheres so a maioria dentre os que concluram o primrio e o ginsio.
Durante os anos 1950, a mesma tendncia mantida e, nos anos 1960, as mulheres passam a
predominar entre os que concluram alguma modalidade de curso de segundo ciclo do ensino
mdio. Com efeito, ao consultarmos os discursos relativos educao veiculados na
imprensa, nas dcadas de 1950 e 1960, vimos que a educao feminina j no emerge como
problema, na verdade, ela ganha visibilidade, nesse discurso, como expectativa e investimento
no futuro feminino.
As dcadas de 1940 a 1970 so marcadas pela expanso da presena feminina e
masculina na escola, como tambm se verificam esforos governamentais, no sentido de
expandir a rede escolar pblica. Contudo, o acesso escola continua sendo um apangio de
poucos. Dessa maneira, muitos homens e mulheres encerram suas trajetrias escolares no
nvel primrio, sendo que uma pequena parcela d prosseguimento aos estudos.
Conseqentemente, o nvel de escolarizao continua sendo um elemento que denota a
condio de classe. As mulheres entrevistadas, portanto, por pertencerem aos setores mais
abastados, tiveram meios para dar continuidade aos estudos.
No obstante o crescimento da presena feminina no ensino mdio, persistiram
diferenciaes de gnero, uma vez que os homens se concentravam, conforme o censo de
1970, no curso secundrio e comercial; enquanto as mulheres, no curso normal, no secundrio
e no comercial. Desse modo, os homens predominavam no ramo preparatrio para o exame
vestibular, enquanto as mulheres nos cursos de carter profissionalizante e terminal.
A despeito da expanso da presena feminina no ensino superior, notria a
diferenciao entre o nmero das que ingressam no ensino de terceiro grau e o das que
encerram no ensino mdio suas trajetrias escolares. Este fato est relacionado a quatro
fatores, a saber: 1 - ao fato de as mulheres se concentrarem no ensino mdio nos cursos de
carter terminal, o que diminuiu as chances de ingresso no ensino superior; 2 ao ingresso
feminino no mercado de trabalho logo aps a concluso do ensino mdio, haja vista que,
durante as dcadas de 1950 e 1960, esto se expandindo os empregos, tanto na rea do
magistrio quanto na rea da burocracia estatal, possibilitando, assim, o ingresso de mulheres
com esse nvel de escolarizao no mercado de trabalho; 3 coexistncia de diferentes
vises a respeito da educao feminina, pois, acreditava-se, por um lado, que as mulheres
deveriam ter um certo nvel de educao para casar ou para exercer o magistrio primrio; por
outro lado, figuravam as expectativas em relao presena feminina no ensino superior; 4
ao casamento feminino em tenra idade, por cercear a continuidade dos estudos.
Considerando as trajetrias de vida das entrevistadas, vimos que o ingresso no ensino
superior compreendido a partir da convergncia de trs fatores, o desenvolvimento de
projetos pessoais, que passam a englobar o investimento no ensino superior, tendo em vista
uma carreira; os investimentos familiares na formao das filhas e a institucionalizao do
ensino superior em Teresina.
perspectiva globalizante, visto que algumas mulheres tambm cursavam o ensino superior em
outras cidades, morando em pensionatos, na casa de parentes ou nas residncias universitrias.
Os investimentos no ensino superior vinham acompanhados daqueles voltados para o
ingresso feminino no mercado de trabalho. Assim, as primeiras experincias das entrevistadas
no mundo do trabalho ocorriam, logo aps iniciaram seus cursos superiores, ou mesmo antes.
Dessa maneira, as mulheres das geraes estudadas ampliaram a presena no espao pblico e
passaram a ter o cotidiano vivido, sobretudo, na esfera pblica, diferenciando-se daqueles
vividos por suas mes, que investiram, principalmente, nos papis tradicionais femininos.
As transformaes econmicas e sociais por que foi passando Teresina, nas dcadas de
1950 e 1960, criou condies para que as mulheres com formao superior ingressassem no
mercado de trabalho. Nesse perodo, expande-se a rede escolar pblica de ensino mdio,
gerando empregos nessa rea, como tambm a modernizao da burocracia estatal cria
oportunidades de emprego nessa esfera. Desse modo, o setor pblico amplia o nmero de
empregos e se torna o grande empregador das mulheres com formao universitria, assim
como dos homens. Sobre esse aspecto, importa pontuar, no entanto, que, embora o setor
pblico seja o maior empregador das mulheres e dos homens com formao superior,
persistem diferenciaes de gnero, pois os cargos de chefia continuavam sendo ocupados
majoritariamente pelos homens, como tambm os salrios mais elevados
so a eles
reservados.
A profissionalizao feminina comea a ser problematizada, no discurso expresso na
imprensa, sobretudo, nos anos 1960. Assim, se a presena feminina no ensino superior era
vista de forma positiva, o ingresso das mulheres no mercado de trabalho nem tanto, pois, ora
era delineado de forma positiva, ora negativa.
Uma parte dos discursos masculinos argumentava que as mulheres que trabalhavam fora
no vinham desempenhando a contento os seus papis familiares, conseqentemente, eram as
culpadas pelos desarranjos familiares, pelos problemas conjugais e pelas separaes. A
estratgia desses discursos era circunscrever a presena feminina ao espao privado,
reservando aos homens a esfera pblica.
Outra parte dos discursos veiculados pelos homens na imprensa procurava delinear a
conciliao entre os papis femininos tradicionais e o de profissional. Nessas escritas,
argumentava-se que as mulheres poderiam ingressar no mercado de trabalho e se
profissionalizarem, desde que as atividades profissionais fossem secundrias. Isso porque, os
papis femininos, por excelncia, eram os de me, esposa e dona de casa. Com efeito, esse
argumento procura demarcar diferenas entre a profissionalizao feminina e a masculina, ao
afirmar que, no caso das mulheres, a profisso no deveria figurar em primeiro plano. Assim,
a profissionalizao feminina ia sendo significada como atividade complementar e secundria.
No discurso feminino, a participao das mulheres no mundo do trabalho emerge
relacionada aos papis femininos tradicionais. Em algumas escritas, o casamento, a
maternidade e a profisso so delineados como expectativas femininas em relao ao futuro,
onde se enseja a conciliao desses projetos. Essas escritas demonstram o descentrar da
identidade feminina do casamento e da maternidade, tendo em vista que deixam de constituir,
para algumas mulheres, a meta central feminina, passando a ser um projeto possvel.
Contudo, as imagens femininas produzidas pelo discurso da imprensa no do
visibilidade apenas s mulheres que passavam a seguir outras trilhas, investindo no estudo e
no trabalho, uma vez que se configuram faces femininas construdas a partir dos papis
femininos tradicionais. Esses discursos demonstram que muitas mulheres continuavam a
significar suas vidas a partir do casamento e da maternidade.
As mulheres entrevistadas, portanto, assim como aquelas que seguiam caminhos
semelhantes, iam compondo um modelo alternativo de vivncia feminina. Entretanto,
importante ressaltar que essas mulheres foram fazendo suas escolhas, estabelecendo seus
projetos em uma zona de tenso e de ambigidade, pois, de um lado, situavam-se os seus
anseios individuais, que vislumbravam o estudo e o trabalho, de outro lado, foram
socializadas para serem mes, esposas e donas de casa. Assim como no momento em que
investiam no estudo e no trabalho as imagens femininas predominantes eram delineadas a
partir dos papis femininos tradicionais.
Dessa maneira, os caminhos seguidos pelas mulheres entrevistadas so plurais, pois
enquanto umas forjaram os seus territrios existenciais a partir do casamento, da maternidade
e da profisso, outras foram se distanciando desses papis e significando suas vidas a partir da
profisso, da valorizao da autonomia e da independncia.
Ao passarem a investir em uma carreira, o trabalho passou a figurar como uma vivncia
central em suas vidas, significada como forma de realizao pessoal. Nesse processo, essas
mulheres criam outra concepo do trabalho feminino, na medida em que o trabalho passa a
ser visto como atividade permanente e que tem centralidade na identidade feminina, pois elas
passam a inscrever-se como profissionais. Desse modo, outro deslocamento efetivado por
nossas entrevistadas o de terem tornado a profisso um investimento feminino. Isso porque
foram atrizes da redefinio do lugar das mulheres no sistema capitalista, na medida em que
se tornam trabalhadoras integradas ao mercado, inserindo-se na esfera produtiva, a partir de
seus prprios nomes.
Nesse processo, nos parece que a maioria das mulheres das geraes estudadas,
procurou conciliar casamento, maternidade e profisso. Esse fato, por sua vez, constitui uma
forma de lidar com as mudanas por que estavam passando, por possibilitar a articulao de
desejos e investimentos ambguos, pois o trabalho passava a ter importncia em suas vidas,
mas foram formadas, desde meninas, para ser mes, esposa e donas de casa.
Nesse sentido, importante ressaltar que a singularizao feminina ia sendo marcada, de
um lado, por perspectivas englobadoras, como a famlia, o casamento e a maternidade, uma
vez que predominam, nas geraes estudadas, mulheres que criaram seus territrios
existenciais, a partir dessas referncias. De outro lado, era limitada pela manuteno dos
valores morais predominantes, na medida em que, se, de um lado, algumas mulheres foram
incentivadas por suas famlias a se formarem e a seguir uma carreira; de outro lado, esperavase que mantivessem os valores relativos ao corpo e a sexualidade. Desse modo, atuavam, no
cotidiano dessas mulheres, mecanismos disciplinares, que buscavam manter a sexualidade
feminina sob controle.
Assim, essas mulheres tiveram que aprender a se tornarem mulheres mltiplas e
desdobrveis, na medida em que, ao quebrar a dicotomia entre os papis pblicos e privados,
passaram a vivenciar atribuies, tanto da esfera privada, quanto da pblica. Passaram,
portanto, a circular entre a casa, a rua e os afetos. E nesse movimento, foram criando
identidades femininas alternativas e singulares, a partir da valorizao da formao superior,
da carreira, da autonomia e da independncia.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
INSTITUIES DE PESQUISA:
1. FONTES
JORNAL:
O Dia, de 1951 a 1969, circulao diria.
DEPOIMENTOS:
ABREU, Irlane Gonalves de. Depoimento concedido a Elizangela Barbosa Cardoso.
Teresina, abr. 2002.
DADOS CENSITRIOS:
DOCUMENTOS OFICIAIS:
MEMRIAS:
FERRAZ, Raimundo Wall. 45 anos depois: tudo que vi, li e ouvi. Teresina: [s.n.], 1992.
NUNES, Manoel Paulo. As solides justapostas. Teresina: APL, 1992.
2. BIBLIOGRAFIA
ABREU, Irlane Gonalves de. Lembranas de Teresina. Cadernos de Teresina, Teresina, ano
X, n. 23, p. 55-61, ago. 1996.
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. De armazm campo cultivvel: a instruo e a
formao como diferentes formas de aprendizagem e como diferentes relaes com o saber e
com a leitura, produzindo subjetividades e sujeitos outros. [Barcelona, 2002]. Digitado. 18 p.
______.Violar memrias e gestar histria: a abordagem de uma problemtica fecunda que
torna a tarefa do historiador um parto difcil. CLIO - Revista de Pesquisa da Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, n. 15, p. 39-52, 1994.
ALMEIDA, Maria Hermnia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano
da oposio de classe mdia ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Histria da
vida privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 319-409.
BANDEIRA, William Jorge. Questes sobre emprego e ocupao no Piau: notas
preliminares. Carta CEPRO, Teresina, v.8, n.1, p.4-33, jan./jun., 1982.
BARROSO, Carmen de Melo; MELLO, Guiomar Namo de. O acesso da mulher ao ensino
superior brasileiro. Cadernos de Pesquisa, n. 15, p. 47-77, 1975.
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: PRIORE, Mary Del. (Org.). Histria
das mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto, 1997. p.607-39.
BEISEIEGEL, Celso de Rui. Educao e Sociedade no Brasil aps 1930. In: PIERUCCI,
Antnio Flvio O. de et al. O Brasil republicano: economia e cultura. 3. ed. Rio de Janeiro,
1995. Tomo 3, v. 4, p. 381-416.
BENJAMIM, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______.
Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. 7. ed. So Paulo:
Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1). p. 197-221.
BEZERRA, Joaquim de Alencar. Histria da Faculdade de Direito do Piau. Teresina, mar.
2001. Digitado. No paginado.
CUNHA, Maria de Ftima da. Homens e mulheres nos anos 1960/1970: um modelo
definido?. Histria: questes & debates, Curitiba, ano 18, n. 34, p. 201-24, jan./jun. 2001.
DINCAO, Maria ngela. Mulher e famlia burguesa. In: PRIORE, Mary Del. Histria das
mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto, 1996. p. 223-40.
FERREIRA, Marieta de Moraes. Histria oral: um inventrio das diferenas. In: ______
(Coord.).; ABREU, Alzira Alves (Coord.). Entrevistas: abordagens e usos da histria oral.
Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1994. p. 1-13.
LOPES, Eliane Marta Teixeira Lopes. Pensar categorias em histria da educao e gnero.
Projeto Histria, n. 11, p. 19-30, nov. 1994.
LOURO, Guacira Lopes. A construo escolar das diferenas. In:______. Gnero,
sexualidade e educao: uma perspectiva ps-estruturalista. Petrpolis: Vozes, 1997. p. 5787.
______. Gnero, histria e educao: construo e desconstruo. Educao & Realidade, n.
20, v. 2, p. 101-32, jul./dez. 1995.
______. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del. (Org.). Histria das mulheres no
Brasil. So Paulo: Contexto, 1997. p. 443-81.
______. Uma leitura da histria da educao sob a perspectiva de gnero. Projeto Histria, n.
11, p. 31-46, nov. 1994.
MACHADO, Marclio de Sousa. Acompanhamento e avaliao do plano de governo do
Estado do Piau. Carta CEPRO, Teresina, v.4, n.1, p. 5-9, jan./abr. 1977.
MARTINS, Agenor de Sousa et al. Anlise estrutural do Piau: indstria, comrcio e setor
externo. Carta CEPRO, Teresina, v. 8, n.1, p. 70-103, jan./jun. 1982b.
______. O Piau na economia nacional. Carta CEPRO, Teresina, v. 8, n. 2, p. 91-142,
jan./jun. 1982a.
MARTINS, Ana Paula Vosne. Um lar em terra estranha: a experincia da individualizao
feminina. Ps-Histria, Assis-SP, n. 3, p. 77-91, 1995.
MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom. Histria oral de vida. In: ______. Manual de histria oral.
So Paulo: Loyola, 1996. p. 35-9.
MIRANDA, Glaura Vasques de. A educao da mulher brasileira e sua participao nas
atividades econmicas, em 1970. Cadernos de Pesquisa, n. 15, p. 21-36, 1975.
NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria , n. 14,
p. 7-28, 1981.
NOVAIS, Fernando A.; MELLO, Joo Manuel Cardoso de. Capitalismo tardio e sociabilidade
moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Histria da vida privada no Brasil. So Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 559-658.
PERROT, Michelle. Prticas da memria feminina. Revista Brasileira de Histria, v. 9, n. 18,
p. 9-18, ago./set. 1989.
PIERUCCI, Antnio F. de O.; SOUZA, Beatriz M. de; CAMARGO, Cndido P. F. de. Igreja
Catlica: 1945-1970. In: ______ et al. O Brasil republicano: economia e cultura (1930-1964).
3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 343-80.
RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, Mary Del. Histria das
mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto, 1997. p. 578-606.
ROSEMBERG, Flvia. Educao e gnero no Brasil. Projeto Histria, n. 11, p. 7-18, nov.
1994.
ROSEMBERG, Flvia; AMADO, Tina. Mulheres na escola. Cadernos de Pesquisa, n. 80, p.
62-74, fev. 1992.
ARAJO, Rosa Maria Barbosa. Vocao do prazer: a cidade e a famlia no Rio de Janeiro
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
ASSOCIAO BRASILEIRA DE NORMAS TCNICAS. NBR 6023: informao e
documentao: referncias: elaborao. Rio de Janeiro, 2002.
BACELLAR, Olavo Ivaho de B.; LIMA, Gerson Portela. Causas e tendncias do processo
migratrio piauiense. Teresina: Fundao CEPRO, 1990. (Relatrio de Pesquisa, 12).
BARBOSA, Edison Gayoso Castelo Branco. Therezina, Teresina. Teresina: F.C.M.C., [199?]
BORIS, Fausto. Histria do Brasil. 6. ed. So Paulo: EDUSP, 1998.
BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. 2. ed. So Paulo: T. A .Queiroz,
1987.
BRITO, Itamar Sousa. Histria da educao no Piau. Teresina: EDUFPI, 1996.
______. Memria histrica da Secretaria de Educao. Teresina: Secretaria de Educao,
1985.
BUITONI, Dulclia Helena S. Mulher de papel. So Paulo: Edies Loyola, 1981.
CARDOSO, Elizangela Barbosa. Mulheres, escolarizao feminina de terceiro grau e
mercado de trabalho em Teresina. 1998. Monografia (Trabalho de Concluso de Curso
Licenciatura em Histria) - Universidade Federal do Piau, Teresina, 1998.
CARVALHO, Maria da Salete Brito de. Da serra da Ibiapaba ao campus da ininga.
Teresina: [s.n., 1981]. v. 1. Mimeografado.
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres plurais: a condio feminina em Teresina
na Primeira Repblica. Teresina: F.C.M.C., 1996.
CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a histria e as histrias da bossa nova. So Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
______. O anjo pornogrfico: a vida de Nelson Rodrigues. So Paulo: Companhia das Letras,
1992.
CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria,
2000.
______. A inveno do cotidiano: artes de fazer. 5. ed. Petrpolis: Vozes, 2000.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem mdica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
DOBAL, H. Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina. Teresina: F.C.M.C., 1993.
FERRO, Maria do Amparo Borges. Educao e sociedade no Piau republicano. Teresina:
F.C.M.C., 1996.
FOCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______. A arqueologia do saber. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997.
______. A ordem do discurso. So Paulo: Edies Loyola, 1996.
______. Histria da sexualidade 1: a vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
______. Vigiar e punir. 23. ed. Petrpolis: Vozes, 2000.
FUNDAO CEPRO. Anlise do processo de urbanizao no Piau. Teresina, 1985.
(Estudos Diversos, 26).
GUATARRI, Flix; ROLNIK, Suely. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis:
Vozes, 1986.
HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990.
HOLLANDA, Helosa Buarque de; GONALVES, Marcos Augusto. Cultura e participao
nos anos 60. So Paulo: Brasiliense, 1999.