Sociedade Secreta Dos Pichadores e Grafiteiros de Campina Grande

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA


CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

ANGELINA MARIA LUNA TAVARES DUARTE

A SOCIEDADE SECRETA DE PICHADORES/AS E


GRAFITEIROS/AS EM CAMPINA GRANDE PB

JOO PESSOA PB
2010

ANGELINA MARIA LUNA TAVARES DUARTE

A SOCIEDADE SECRETA DE PICHADORES/AS E


GRAFITEIROS/AS EM CAMPINA GRANDE PB

Tese apresentada Universidade Federal da Paraba


UFPB, em cumprimento dos requisitos necessrios
para obteno do grau de doutora em Sociologia.
rea de Concentrao: Estudos Culturais, Linha de
Pesquisa: Sociologia da cultura.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Ayala

D812s

Duarte, Angelina Maria Luna Tavares.


A sociedade secreta de pichadores/as e grafiteiros/as em
Campina Grande-PB / Angelina Maria Luna Tavares Duarte - Joo
Pessoa : [s.n.], 2010.

230f. : il
Orientador: Marcos Ayala.
Tese(Doutorado) UFPB/CCHLA.

1.Sociologia. 2.Sociedade secreta. 3.Cultura urbana-Pichao.


4.Cultura urbana-Grafite. 5. Anlise do discurso.

UFPB/BC

CDU: 316(043)

MEGA PRODUTO DO GUETO ATTACK BOMB


http//www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=10162845907402648153

Fotografia Angelina Duarte

REAO DA PERIFERIA GORPO


(DUARTE, 2006)

Para os/as narradores/as da sociedade secreta.

AGRADECIMENTOS
Na tessitura desta tese, entre fios e segredos, recebi tanto que, para agradecer,
apenas palavras no seriam suficientes. Talvez precisasse de um imenso painel grafitado que
versasse sobre os mais distintos temas, dentre eles: trabalho, estudo, superao, determinao,
parceria, companheirismo, incentivo, espera, compreenso, confiana, amor, enfim.
Os/as que acompanharam esse meu momento acadmico sabem quantos muros
precisei ultrapassar, mas esse um segredo guardado apenas pelos que compartilham, mais
intimamente, da minha vida.
Agora hora de arrematar os fios acadmicos, com os fios da gratido...
a Deus, pela bno da vida, da sade e da proteo espiritual. Obrigada,
Senhor, pelo pensamento que me haveis inspirado e pela fora que me haveis
dado;
a Marta, anjo protetor;
a minha famlia, linda famlia, pelo apoio e por compreender as minhas
ausncias, embora eu tenha me esforado para que ela nem as notasse; Nos
nomes de Eulampio, Slvia e Tula, represento todos os meus familiares;
a Iasmin delicada como uma flor, fonte de renovao da vida e da esperana
, por me fazer sentir, duplamente, o sentimento materno;
aos/s meus/minhas inestimveis amigos/as, cujos nomes sequer cabem nesta
pgina. No nome de Sandra Simone, represento todos/as os/as demais.
a Tula Duarte, Tiago Silva e Euda Cordeiro, pelo carinho e presteza em me
ajudar no arremate dos ltimos fios desta tese;
aos/s meus/minhas colegas de doutorado, especialmente, s amigas-irms M
Jackeline F. Carvalho e Rejane G. Carvalho, pelo compartilhar dos segredos
e pelo estmulo para que eu seguisse confiante;
aos/s professores/as, pelo profissionalismo acadmico, mas tambm pelas
questes humanas que suscitaram no nosso convvio. No nome de Eliana
Moreira, represento os/as demais.
a Nancy, secretria do PPGS, pela ateno e presteza na resoluo de
problemas;
ao Ncleo Hip Hop Campina, por ter aberto as portas para que eu chegasse
sociedade secreta. No nome de Thiago Joh, represento os demais membros
do NH2C;
a GORPO, pelo convite para participar do NH2C, mas, sobretudo, pela ateno
e colaborao que, sempre, dispensou a mim;
aos/s narradores/as da sociedade secreta: ZECA, INSANA, PAGO,
NAAH e ZNOCK MORB, pela generosidade e solicitude, sem a qual esta tese
no teria sido possvel;

a MEGA, pelos dilogos atravs do Orkut;


aos membros da banca de qualificao prof Tereza Queirz e prof.
Elizabeth Christina Lima, pelas contribuies indispensveis otimizao do
meu trabalho;
aos membros da banca de defesa prof. Elizabeth Christina Lima, prof
Simone Maldonado, prof. Luciana de Oliveira Chianca e prof. Geralda
Medeiros Nbrega , pela disponibilidade e pela colaborao para que meu
trabalho venha a se constituir numa efetiva contribuio sociologia.
ao meu orientador, prof. Marcos Ayala, pela ateno e pela discusso fecunda
da responsabilidade e da competncia no acompanhamento deste trabalho.
a Mirian, pela gentileza e por ser a ponte entre mim e o meu orientador;
A todos/as, minha gratido.

DUARTE, Angelina Maria Luna Tavares. A SOCIEDADE SECRETA DE


PICHADORES/AS E GRAFITEIROS/AS EM CAMPINA GRANDE PB. 230 p, 2010.
Tese (Doutorado). Universidade Federal da Paraba, Doutorado em Sociologia.

RESUMO

Esta tese resultou de uma investigao sobre a sociedade secreta de pichadores/as e


grafiteiros/as, em Campina Grande PB. Em busca do segredo guardado por esses/as
jovens, estabelecemos, como objetivo, identificar, descrever e analisar a estrutura
organizacional, o funcionamento, as relaes, as regras e as caractersticas dessa
sociedade. Para tanto, entrecruzamos trs fios terico-metodolgicos: Etnografia,
Histria Oral e Teoria Social do Discurso (FAIRCLOUGH, 2001). Construmos o
corpus analtico com dois verbos: OBSERVAR e OUVIR observao participante e
histrias de vida. Observamos sujeitos. Ouvimos cinco deles trs meninos e duas
meninas. Observamos tambm textos e contextos reais e virtuais. Observamos ainda
imagens. No que diz respeito ao discurso produzido por eles/as sobre essa sociedade
secreta, utilizamos o procedimento metodolgico da observao de excertos
lingusticos desse discurso (escrito e oral, respectivamente, alguns textos da pichao e
do grafite, e cinco narrativas das histrias de vida), para, a partir deles,
desenvolvermos o processo analtico. Recorremos, ainda, algumas vezes, a textos
presentes nas pginas do site de relacionamento ORKUT, de pichadores/as e
grafiteiros/as, como tambm a outros eventos lingusticos constantes nas pginas de
comunidades e blogs de grupos ou crews, alm das anotaes no dirio de campo. O
conceito de experincia (THOMPSON, 1981) foi fundamental s nossas anlises. Os
resultados sugerem que a sociedade secreta representada, por esses/as jovens,
como um locus identitrio que lhes permite, paradoxalmente, uma visibilidade
annima, j que, na periferia, eles no conseguem projeo. Nesse espao
estruturalmente organizado, hierarquicamente dividido, em que o coletivo assume o
papel principal, vivenciam experincias simblicas e materiais de sociabilidade,
organizam-se, exercem um controle, estabelecem regras, comandam, fundam uma
sociedade fechada, para cuja existncia o segredo uma ferramenta indispensvel.
Assim, a partir dela, brincam, disputam, protestam, agenciam, mas tambm
reivindicam a incluso de suas prticas culturais na cena da cultura urbana
contempornea.

Palavras-chave: sociedade secreta, pichao, grafite, experincia, discurso.

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DUARTE, Angelina Maria Luna Tavares. The secret society of taggers and graffiti artists in
Campina Grande, Paraba, Brazil. 230 p, 2010. Doctoral thesis. Universidade Federal da
Paraba, Doctorate in Sociology.

ABSTRACT
This thesis is the result of an investigation about the secret society of taggers and graffiti
artists, in Campina Grande, State of Paraba, Brazil. Trying to find the secret kept by the
young people involved, our aim was to identify, describe, and analyze its organizational
structure, its functioning, its relations, its rules and characteristics. In order to do so, we
intercrossed three theoretical and methodological fields: Ethnography; Oral History, and
Social Theory of Discourse (FAIRCLOUGH, 2001). The analytical corpus was built upon
two verbs: to observe and to listen participative observation and life histories. We observed
individuals. We listened to five of them three boys and two girls. We also observed texts
and real and virtual contexts. Regarding their discourse about the secret society, we
observed linguistic extracts (written and oral texts from taggers and others from graffiti
artists, and five narratives of their life histories), so that we could develop the analytical
process. We sometimes inquired into texts available on online social networks such as Orkut,
written by taggers and graffiti artists, as well as other linguistic events available on group or
crew blogs and notes taken on field diary. Within the hierarchically divided and structurally
organized space, in which the group plays the main role, individuals live symbolic and
material experiences of sociability. They organize themselves, exercise control, set rules, lead,
and fund a closed society, whose existence lies on the secrecy. From this society, they play,
dispute, protest, negotiate, and claim the inclusion of their cultural practices in the urban
contemporary cultural scene. The concept of experience (THOMPSON, 1981) was
fundamental to our analysis. The results suggest that the taggers and graffiti artists see the
secret society as an identity locus which allows them to have a paradoxical anonymous
visibility, once they do not have social projection in peripheries.
Key-words: secret society, pichao or tagging, graffiti, experience and discourse.

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DUARTE, Angelina Maria Luna Tavares. La socit secrte dutilisateurs/trices de goudron


et dutilisateurs/trices de graphite Campina Grande PB. 2010. 230 p.
Thse (Doctorat). Universit Fdrale de la Paraba, Doctorat en Sociologie.

RSUM
Cette thse a result dune enqute sur la socit secrte dutilisateurs/trices de goudron et
dutilisateurs/trices de graphite, Campina Grande PB. la recherche du secret retenu par
ces jeunes gens, nous avons tabli comme but didentifier, de dcrire et danalyser la structure
de lorganisation, le fonctionnement, les rapports, les rgles et les caractristiques de cette
socit-l. Pour autant, nous avons entrecrois trois fils thoriques-mthodologiques:
Ethnographie, Histoire Orale et Thorie Sociale du Discours (FAIRCLOUGH, 2001). Le
corpus analytique a t fait avec deux verbes: OBSERVER et COUTER observation
participante et histoires de vie. Nous avons observer des sujets. Nous en avons cout cinq
trois garons et deux filles. Nous avons galement observ des textes et des contextes rels et
virtuels. Nous avons encore remarqu des gravures. En ce qui concerne le discours produit par
eux/elles sur cette socit secrte , nous nous sommes servis du procd mtholologique de
lobservation dextraits linguistiques de ce discours (crit et oral, respectivement, quelques
textes issus de lutilisation du goudron et du graphite, et cinq rcits de leurs histoires de vie),
en envisageant, partir de ceux-ci, de dvelopper le processus analytique. Quelquefois, nous
avons encore recours des textes des pages du site de rapports ORKUT, dutilisateurs/trices
de goudron et dutilisateurs/trices de graphite, ainsi qu dautres vnements linguistiques
trouvs dans les pages de communauts et blogs de groupes ou crews, outre les annotations
sur le journal de champ. Le concept dexprience (THOMPSON, 1981) a t essentiel nos
analyses. Les resultats suggrent que la socit secrte est reprsente, par ces jeunes
gens, comme un locus didentit leur permettant, paradoxalement, une visibilit anonyme,
puisque, en banlieue, ils nont pas de projection. Sur cette place structurellement organise,
hirarchiquement partage o le collectif a le rle principal, ils ont des expriences
symboliques et matrielles de sociabilit, sorganisent, exercent un contrle, tablissent des
rgles, commandent, fondent une socit ferme, dont loutil indispensable pour son existence
cest le secret. De cette faon, partir de celtte socit, ils jouent, ils disputent, ils protestent,
ils ngocient. Toutefois, ils revendiquent linclusion de leurs pratiques culturelles dans la
scne de la culture urbaine contemporaine.
Mots-cls : socit secrte, utilisation de goudron, graphite, exprience, discours.

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SUMRIO
INTRODUO DOS MUROS PARA A SOCIEDADE SECRETA: UMA
ETNOGRAFIA DA PESQUISA............................................................................................. 13
CAPTULO I ABRINDO A CORTINA PARA A SOCIEDADE SECRETA
.................................................................................................................................................. 27
1.1 A rua e a noite: guardis do segredo de pichadores/as e grafiteiros/as
...................................................................................................................................................27
1.2 O segredo nas redes de sociabilidade ............................................................................... 30
1.3 O
segredo
como
dinmica
comunicativa
da
sociedade
secreta
.................................................................................................................................................. 33
1.4 O segredo das redes na rede ............................................................................................. 47
1.4.1 A sociedade em rede .................................................................................................. 47
1.5 A sociedade secreta virtual ............................................................................................48
CAPTULO II CULTURA, JUVENTUDE URBANA E EXPERINCIA NO CONTEXTO
SCIO-HISTRICO
DA
SOCIEDADE
SECRETA
...................................................................................................................................................63
2.1 Cultura(s): singular ou plural?............................................................................................63
2.2 Circuitos juvenis urbanos ..................................................................................................66
2.3 Hip hop salva: o discurso da periferia pela afirmao de novos valores
..................................................................................................................................................69
2.4 Do ser pichador/a ou ser grafiteiro/a: o que a ideologia tem a ver com essa questo
..................................................................................................................................................72
2.4.1 Pichao, grafite, grapicho .....................................................................................72
2.4.2 Pichao e grafite em duas verses discursivas .......................................................73
2.4.3 O olhar da pesquisa contrapondo as verses discursivas................................. 81
2.5 A agncia do sujeito nos muros da pichao e do grafite..................................................88
2.5.1 A permanncia material da cultura............................................................................88
2.5.2 Marcas da experincia nas prticas discursiva e social dos/as pichadores/as e
grafiteiros/as .......................................................................................................................89
2.5.3 E. P. Thompson, seu contexto e sua crtica ao paradigma estruturalista ...............90
2.5.4 A experincia devolvendo o sujeito ao processo ......................................................93
2.5.5 O dilogo da experincia dos/as pichadores/as e grafiteiros/as com o contexto
histrico contemporneo ....................................................................................................95
CAPTULO III A PORTA DE ACESSO SOCIEDADE SECRETA: A EXPERINCIA
ETNOGRFICA
NO
NCLEO
HIP
HOP
CAMPINA..............................................................................................................................100
3.1 Histrico do NH2C ..........................................................................................................101
3.2 Gnese da experincia etnogrfica ..................................................................................105
3.3 A paisagem e o campo .....................................................................................................110
3.4 Repertrios e implcitos na interao do NH2C: o espao de controle e disputas que a
cortina esconde ....................................................................................................................114
3.5 O NH2C como tema nas histrias de vida ......................................................................126

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CAPTULO IV AS PRTICAS SIMBLICAS DA SOCIEDADE SECRETA NAS


RELAES COM A SOCIEDADE, O MERCADO E A MDIA .......................................131
4.1 Prticas simblicas da pichao e do grafite ................................................................... 132
4.2 A mdia da pichao e do grafite na mdia da sociedade do espetculo ......................... 137
4.3 Repercusses da globalizao no discurso da pichao e do grafite em Campina Grande
................................................................................................................................................151
4.3.1 A pichao e o grafite e nas relaes entre o local e o global ............................... 152
4.3.2 A globalizao no discurso da pichao e do grafite ............................................. 156
CAPTULO V O ESPAO QUE A CORTINA ESCONDE NA SOCIEDADE
SECRETA ....................................................................................................................... 167
5.1 Processo de formao do grupo ..................................................................................... 175
5.2 Estrutura organizacional ............................................................................................... 183
5.3 Funcionamento .............................................................................................................. 185
5.4
Regras
para
funcionamento
do
grupo
e
admisso
de
membros
............................................................................................................................................. 187
5.5 As minas na sociedade secreta .............................................................................. 191
CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 198
REFERNCIAS .................................................................................................................. 205
ANEXOS ............................................................................................................................. 216
LISTA DE ANEXOS .......................................................................................................... 216
ANEXO A Registro das tags de pichadores/as e grafiteiros/as (DUARTE, 2006)
............................................................................................................................................... 217
ANEXO B Registro das siglas dos grupos a que se vinculam os/as pichadores/as e
grafiteiros/as, com as respectivas tradues e referncias espaciais (DUARTE, 2006)
................................................................................................................................................ 221
ANEXO C Registro dos grupos de pichadores/as e grafiteiros/as por zona em Campina
Grande (DUARTE 2006) ...................................................................................................... 224
ANEXO D Mapa urbano de Campina Grande, com a localizao das crews por zona
(DUARTE 2006) ................................................................................................................... 225
ANEXO E Informativo sobre o Ncleo Hip Hop Campina ............................................... 226
ANEXO F Modelo de ficha/ cadastro do NH2C ............................................................... 228
ANEXO G Desenhos produzidos por ZECA, durante a narrativa de sua histria de vida
............................................................................................................................................... 229

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INTRODUO DOS MUROS PARA A SOCIEDADE SECRETA: UMA


ETNOGRAFIA DA PESQUISA
___________________________________________________________________________

Na madrugada, quando voc coloca, no tem ningum, o movimento


t reduzido, e tal, voc coloca da forma mais rpida e discreta que
voc puder pra ningum lhe ver, n? Um, dois, ningum me viu, j
sumi na neblina. S ficou o nome, a no outro dia as pessoas vo
olhar e: que horas foi isso? Como foi isso? Quem colocou isso? Que
nome esse? (Histria de vida NAAH)

As palavras e as imagens sempre exerceram fascnio sobre ns, influenciando at a


escolha pelo nosso ofcio de professora de lngua materna. Temos convivido com elas,
encantando-nos pelos sentidos que assumem e pelos suportes em que se instalam para dizer o
mundo. Por isso, no satisfeitos apenas com a leitura no papel, comeamos a ler tambm os
muros, e isso teve incio, em 2003, quando, numa rua de Campina, vimos um muro pichado
com a frase: nis na fita e os playboy no DVD.
Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 01 nis na fita e os playboy no DVD (Crash LPE) Rua Aprgio Nepomuceno. Cruzeiro abril de
2003.

Nesse dia, comeamos a refletir sobre que segredo o qu e quem estaria por trs
desse texto, sobre o discurso que o envolvia e, consequentemente, sobre o contexto
sociocultural que subjazia a essa construo discursiva. Na tentativa de encontrar respostas,
investigamos. Atravs da fotografia, registramos textos e imagens impressos nos muros de
trs bairros campinenses, nos quais a pichao e o grafite disputavam espao. O resultado
dessa curiosidade resultou, em 2006, na nossa dissertao de mestrado SE ESSA RUA

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FOSSE MINHA, EU MANDAVA GRAFITAR!!!: a construo discursiva do grafite de


muro em Campina Grande PB.
Concluda essa etapa, o segredo ainda persistia, agora, em relao ao como: Como se
organizaria e funcionaria a sociedade secreta de pichao e grafite? Quais seriam suas
regras e caractersticas? Que relaes se estabeleceriam nessa sociedade? Seria possvel
acessar o segredo desses grupos? O que motivaria esse aspecto secreto?
Para desvend-lo, precisvamos trazer pichadores/as e grafiteiros/as para o centro do
nosso debate, e ouvi-los para recuperar sentidos que eles atribuem a si, sua cultura, ao seu
grupo, ao seu mundo. Decidimos, ento, por outra investigao a qual resultou nesta tese,
emoldurada pelos Estudos Culturais e pela Sociologia da Cultura.
Perseguindo o segredo, objetivamos identificar, descrever e analisar a estrutura
organizacional, o funcionamento, as relaes, as regras e as caractersticas da sociedade
secreta de pichadores/as e grafiteiros/as em Campina Grande PB. Para compreend-lo,
entrecruzamos trs fios terico-metodolgicos Etnografia, Histria Oral e Teoria Social do
Discurso a fim de produzir nosso discurso sobre essa sociedade secreta.
Construmos o corpus analtico com dois verbos: OBSERVAR e OUVIR observao
participante e histrias de vida. Observamos sujeitos. Ouvimos cinco deles. Observamos
tambm textos e contextos reais e virtuais. Observamos ainda imagens.
O prprio desenrolar da pesquisa convidou-nos a seguir por essa perspectiva mltipla
e dialgica, por nos termos deparado com lacunas que no poderiam ser preenchidas por um
nico caminho. Necessitvamos, ento, de uma abordagem que, primeiramente, nos
permitisse descrever o campo de estudo e as interaes que nele se efetivavam; de uma que
tratasse da subjetividade, da trajetria e da memria, o fascnio do vivido (ALBERTI, 2004,
p. 22) dos sujeitos investigados; alm de uma outra que, complementarmente, propiciasse o
desvendamento das agendas ocultas de toda uma construo scio-histrica subjacente ao
discurso produzido por eles. No nos esquecendo de que, tambm, E. P. Thompson participou
desse dilogo, quanto ao o agenciamento sociodicursivo desses sujeitos na construo da
realidade histrica.
Optamos, ento, no mtodo etnogrfico, pela tcnica da observao participante em
reunies do NH2C Ncleo Hip Hop Campina , cujos detalhes foram registrados num dirio
de campo; na metodologia da Histria oral, pela coleta de narrativas das histrias de vida de
pichadores/as e grafiteiros/as, no entrecruzamento com a Teoria Social do Discurso
(FAIRCLOUGH, 2001), uma vertente da Anlise de Discurso Crtica.

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Sobre a etnografia, Geertz nos lembra que esta no se limitaria a uma questo de
mtodo, mas se definiria pelo tipo de esforo intelectual empreendido pelo/a pesquisador/a
para desenvolver uma descrio densa que exigiria do etngrafo o enfrentamento de uma
multiplicidade de estruturas complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas s
outras, que so simultaneamente estranhas, irregulares e inexplcitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (GEERTZ, 1978, p. 20).
Para esse etngrafo, os que optam pela pesquisa de natureza etnogrfica tm uma
dupla tarefa. A primeira seria a de descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos
dos sujeitos de nossa investigao; a segunda seria a de construir um sistema de anlise no
qual o que genrico a essas estruturas se destaque frente a outros determinantes do
comportamento humano. Em etnografia, o dever da teoria fornecer um vocabulrio no qual
possa ser expresso o que o ato simblico tem a dizer sobre ele mesmo isto , sobre o papel
da cultura na vida humana (GEERTZ, 1978, p. 38). Assim, pelos objetivos delimitados,
consideramos que a etnografia apresentou-se-nos como um caminho indispensvel para a
realizao desta pesquisa.
Assim sendo, atravs da observao participante, com um dirio de campo nas mos,
inserimo-nos em um contexto cultural distinto do nosso, com o objetivo de "apreender o
ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua viso de seu mundo.
(MALINOWSKI, 1998, pp. 33-34). Essa convivncia se constituiu para ns numa experincia
de grande valor cientfico, mas tambm humano, que implicou numa dupla atividade de
trabalho construtivo e de observao , sem o qual a investigao teria sido prejudicada, se
no impossibilitada. Dessa forma, observar os fenmenos em sua plena realidade os
imponderveis da vida real (MALINOWSKI, 1998, p. 29) , no NH2C, contribuiu,
sobremaneira, para a consecuo de nossas metas investigativas, uma vez que, alm de ter nos
propiciado um convvio mais prximo aos sujeitos pesquisados, tivemos a oportunidade de
observar as distintas nuanas que se instauram na formatao das relaes vivenciadas nesse
campo de pesquisa, e, mais especificamente, no que designamos sociedade secreta.
Assim, como a realidade social o prprio dinamismo da vida individual e coletiva
com toda a riqueza de significados dela transbordante (MINAYO, 2000, p. 15), buscamos
responder questes referentes subjetividade desses sujeitos, bem como outras que dizem
respeito ao grupo e suas articulaes com a realidade social.
Quanto observao participante, no NH2C, cabe esclarecer que, embora esse
ambiente no corresponda, especificamente, sociedade secreta, foi atravs dela que
pudemos estabelecer contato com os grupos campinenses de pichao e grafite, tendo essa se

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constitudo como uma relevante estratgia metodolgica para nosso processo investigativo.
Ressaltamos ainda que no resta dvida de que a experincia etnogrfica ampliou-nos a
compreenso sobre as relaes cooperativas e competitivas, intra e extragrupais, tanto no que
diz respeito ao movimento hip hop, quanto sociedade de pichadores/as e grafiteiros,
merecendo, portanto, um captulo dedicado a ela.
Quanto ao procedimento metodolgico, optamos por uma abordagem de natureza
qualitativa, j que nossa proposta implica em identificar elementos concernentes esfera
subjetiva da vida social. Resende (2006, p. 57) afirma que essa uma forma de pesquisa
potencialmente crtica. Por meio da PQ, as cincias sociais identificam estruturas de poder
naturalizadas em um contexto scio-histrico definido, sendo, portanto, segundo ela,
fundamental aos estudos cujo foco so representaes de mundo, relaes sociais,
identidades, opinies, atitudes e crenas ligadas a um meio social. Tambm, de acordo com
Minayo e Sanches, a abordagem qualitativa empregada, para a compreenso de fenmenos
caracterizados por um alto grau de complexidade interna, servindo para aprofundar a
complexidade de fatos e processos particulares e especficos a indivduos e grupos
(MINAYO; SANCHES, 1993, p. 239)
Referindo-se a esse tipo de abordagem, Goldemberg, por sua vez, considera que os
dados da pesquisa qualitativa objetivam a compreenso profunda de certos fenmenos sociais
apoiados no pressuposto da maior relevncia do aspecto subjetivo da ao social
(GOLDEMBERG, 1999, p. 49-50).
Nosso estudo teve, pois, um carter descritivo/interpretativo/analtico, por se deter na
compreenso das diversas relaes que permeiam o processo social de construo e
configurao da sociedade investigada, como tambm dos sujeitos e discursos que a ela esto
vinculados.
Embora tenhamos recorrido, complementarmente, a dados e resultados constantes na
nossa pesquisa de Mestrado (DUARTE, 2006), geramos um corpus analtico especfico para
esta pesquisa, a partir da observao participante e da histria de vida. Na escolha dessas
ferramentas, inspiramo-nos em Malinowski (1998), o qual defendia a integrao entre a
primeira e a segunda, a fim de que fosse possvel a identificao de aspectos da viso de
mundo dos nativos, no explicitadas em suas falas.
Nesse ponto, esclarecemos que, na afirmao de que geramos os dados analticos,
concordamos com a distino epistemolgica entre coleta de dados e gerao de dados,
proposta por Resende, quando afirma:

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Entendo que em pesquisa de campo de natureza etnogrfica a maior parte


dos dados no simplesmente coletada como se j estivesse disponvel
independente do trabalho do/a pesquisador/a , e sim gerada para fins
especficos da pesquisa. [] Investigamos problemas sociais sem dvida
pr-existentes pesquisa, mas criamos situaes sociais teis para sua
investigao. (RESENDE, 2006, p. 58)

No que diz respeito, mais particularmente, ao discurso produzido por pichadores/as e


grafiteiros/as sobre essa sociedade secreta, utilizamos o procedimento metodolgico da
observao de excertos lingusticos desse discurso (escrito e oral, respectivamente, alguns
textos da pichao e do grafite, e cinco narrativas das histrias de vida de pichadores/as e
grafiteiros/as), para, a partir deles, desenvolvermos a descrio, a interpretao e a anlise
dessas ocorrncias, subsidiando-nos, tambm, pela teoria faircloughiana. Recorremos, ainda,
algumas vezes, a textos presentes nas pginas do site de relacionamento ORKUT, de
pichadores/as e grafiteiros/as, como tambm outros eventos lingusticos constantes nas
pginas de comunidades e blogs de grupos ou crews. Em vrios pontos da nossa abordagem,
recorremos, como ilustrao, a fotografias ao todo 36 , relacionadas temtica discutida
em cada captulo.
Quanto ao recorte espao-temporal da investigao etnogrfica correspondeu ao
perodo de um ano 30/05/07 a 28/05/08 , nas reunies do Ncleo Hip Hop Campina
(NH2C), realizadas no espao fsico do Centro Universitrio de Cultura e Arte (CUCA), na
Rua Paulo de Frontin, no Centro desta cidade. Esses encontros, a princpio, ocorriam nas
tardes de domingo, das 15h 30min. s 17h 30min. Posteriormente, o dia e horrio foram
modificados quartas-feiras, das 19h 30min. s 21h. No captulo III, desta tese,
apresentaremos um exerccio etnogrfico sobre tais reunies, quando enfocaremos detalhes
sobre esse campo que nos possibilitou o contato com a sociedade secreta, mas tambm
sobre a forma de acesso desta pesquisadora a esse Ncleo.
Quanto ao recorte espao-temporal, da metodologia da Histria Oral, realizamos cinco
entrevistas de histria de vida, sendo que quatro delas se efetivaram no ano de 2008 ZECA
(14/08/2008), PAGO (27/08/2008), ZNOCK MORB (11/09/2008), INSANA (26/09/2008),
tendo a ltima se realizado em 2010 NAAH (23/03/2010), todas no Centro de Educao
CEDUC, da Universidade Estadual da Paraba UEPB, situado na Rua Antnio Guedes de
Andrade, no bairro do Catol, nesta cidade. A escolha desse local foi feita em comum acordo
com os sujeitos entrevistados. Nesse ponto, deixamos claro que, em respeito tica na
pesquisa, eles estariam livres para delimitar o territrio no qual desejavam ser ouvidos. Foi
escolhido tambm o turno da tarde para a gravao das narrativas, uma vez que, nesse horrio,

19

havia muitas salas desocupadas, em virtude de as aulas, ali ministradas, se efetivarem,


prioritariamente, nos turnos da manh e noite. Assim sendo, com menos movimento de
pessoas e, consequentemente, mais silncio, tornou-se mais tranquila a gravao das falas
dos/as entrevistados/as.
A metodologia da histria oral pode ser considerada como uma prtica de apreenso
de narrativas feita atravs do uso de meios eletrnicos e destinada a recolher testemunhos,
promover anlises de processos sociais do presente e facilitar o conhecimento do meio
imediato (MEIHY, 2006, p. 134). Consiste, pois, em um mtodo de pesquisa (histrica,
antropolgica e sociolgica etc.) que privilegia a realizao de entrevistas com pessoas que
participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, vises de mundo, como
forma de se aproximar do objeto de estudo (ALBERTI, 2004, p. 18).
A partir dela, o sujeito que se v na iminncia de traar a sua trajetria e de seu grupo
revela sua intimidade, recria imagens do passado, buscando recuperar, nos meandros
infinitos da memria (WHITAKER; VELSO, 2005), marcas significativas que, embora
escondidas, vo emergindo na construo narrativa que se processa. Dessa forma, as palavras
fluem reconstruindo uma trajetria de um sujeito a partir das lembranas que ele guardou das
experincias que viveu ou que foram narradas, compartilhadas pelo grupo; o ontem se torna
hoje, o passado tropea no presente, e vice-versa, para resultar numa narrativa cujos sentidos
esto plenos de historicidade.
Competiu exatamente histria oral permitir esse acesso aos recnditos mais
profundos da memria, que mesmo ressignificada pelos distintos narradores, representou
aquilo que para eles significou, ou seja, se constituiu na experincia significativa desses
sujeitos.
Recorrer histria oral significa, ento, apresentar uma nova possibilidade de fazer
voltar cena a voz do narrador em unio com a alma, o olhar e a mo, tpicas do arteso
segundo Valry (apud BENJAMIN, 1987, p. 221), na tessitura da narrativa.
Ou ainda, como afirma Albuquerque Jr. (2007):
Indefinida entre uma tcnica, um mtodo, uma postura terica no campo da
historiografia, a histria oral faz de sua (in)definio ou de sua
(im)possibilidade o seu charme, o seu encanto, a sua produtividade.
Contribuindo de forma inequvoca para que novas falas fossem encenadas
pelos historiadores e seus personagens, para que novos olhares sobre o
passado fossem possveis, dentro da Universidade e das instituies que
agrupam historiadores, a histria oral sem dvida vitoriosa.

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Na contemporaneidade, em lugar do narrador que, manufatureiramente, tecia os fios


narrativos de artesanais da oralidade, ressuscita um narrador que faz uso de fios s vezes
desconhecidos pela tradio, plenos de significados da vivncia benjaminiana e da
experincia thompsoniana. (SILVA; MENEZES, 2005, p. 17)
Um outro aspecto que merece nfase, diz respeito contribuio da histria oral
investigao da sociedade secreta de pichadores/as e grafiteiros/as, conforme podemos ver
nas palavras de Aspzia Camargo, na apresentao da primeira edio do Manual de Histria
Oral:
O importante no esquecer que a contribuio da histria oral sempre
maior naquelas reas pouco estudadas da vida social em que predominam
zonas de obscuridade, seja no estudo das elites, seja das grandes massas. []
No segundo caso, a obscuridade resulta do desinteresse das fontes oficiais
pela experincia popular, da ausncia de documentos, da teia protetora e
autodefensiva que se cria naturalmente em torno dos movimentos populares
a partir de suas prprias lideranas. [] Cabe ao pesquisador desvendar as
mltiplas experincias e verses, buscando a palavra final, sempre
provisria, para temas relegados ou submetidos ao fogo cruzado dos
interesses e das ideologias. (ALBERTI, 2005, p. 15) (grifo da autora)

Utilizando esse caminho metodolgico, recorremos s narrativas de histria de vida


como fonte informativa, mas, sobretudo, como ferramenta para o entendimento do significado
do discurso e da ao de pichadores/as e grafiteiros/as, das interfaces que se estabelecem entre
eles/as e a sociedade, da instaurao de suas redes de sociabilidade, enfim, das relaes que se
delineiam entre eles/as e o contexto scio-histrico contemporneo. Construir essas fontes
documentais no foi um empreendimento dos mais fceis, em virtude da dificuldade de acesso
a esses representantes da cultura de rua, motivada pelo carter de ilicitude das prticas da
pichao e do grafite, como tambm pelo prprio estigma que ainda ronda tais prticas.
O foco principal desse tipo de entrevista a trajetria do indivduo na histria, sendo
ento contemplada a trajetria que ele percorreu desde a infncia at o momento em que fala,
passando pelos diversos acontecimentos e conjunturas que presenciou, vivenciou ou de que se
inteirou (ALBERTI, 2005, p. 37-38).
Meksenas define a histria de vida afirmando que
Trata-se de colher, por meio de gravao sonora ou filmagem, a narrativa do
sujeito pesquisado: o modo como ele reinterpreta seu passado por recortes
mediados pelo acmulo de experincias adquiridas, por sua viso de mundo,
por seus valores/projetos, tudo isso orientado pelas vivncias do presente.
[...] Uma vez definido o tema geral de pesquisa e suas hipteses, preciso
localizar depoentes que sejam pessoas significativas. (MEKSENAS, 2002,
p.125).

21

A escolha dos/as entrevistados/as se definiu, durante a experincia etnogrfica, junto


ao NH2C, escolha essa que se deu obedecendo ao critrio de antiguidade, j que sendo eles/as
muito jovens, os/as mais antigos/as nas prticas da pichao e do grafite teriam uma maior
contribuio a nos dar, a fim de que os objetivos de nossa pesquisa pudessem ser atingidos.
Sobre essa escolha, Verena Alberti enfatiza:
[] convm selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram,
viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrncias ou situaes ligadas
ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos. O processo de
seleo de entrevistados em uma pesquisa de histria oral se aproxima,
assim, da escolha dos informantes em antropologia, tomados no como
unidades estatsticas, e sim como unidades qualitativas em funo de sua
relao com o tema estudado , seu papel estratgico, sua posio no grupo
etc. (ALBERTI, 2005, p. 31-32) (grifo da autora)

As narrativas foram fundamentais para a evidenciao do contexto, das subjetividades


e das identidades dos/as pichadores/as e grafiteiros/as, a partir de seus discursos, permitindonos, portanto, o acesso aos sentidos que eles/as atribuem tanto a si prprios quanto aos
contextos micro e macro, local e global , como tambm s pessoas nele inscritas.
A princpio, propusemo-nos a registrar as narrativas da experincia de vida de seis
jovens que h mais tempo estivessem envolvidos com as prticas do grafite e/ou da pichao
trs do sexo masculino e trs do sexo feminino. No registro dessas narrativas, o
entrevistador se mantm em uma situao flutuante que permite estimular o entrevistado a
explorar o seu universo cultural, sem questionamento forado (THIOLLENT, 1982, p. 86)
(grifo do autor).
Conseguimos entrevistar trs meninos ZECA, PAGO e ZNOCK MORB , mas,
somente, duas meninas INSANA e NAAH. Essa reduo, no que diz respeito ao feminino
se deveu a que, apesar do nosso convite a outras meninas ZEN e LUA , essas no terem
podido nos conceder uma entrevista. Apesar de marcarem o conosco, sempre ocorria algum
imprevisto que as impossibilitava de vir ao nosso encontro. Quando falava com elas sobre
uma nova possibilidade, a postura era sempre de solicitude, simpatia e colaborao, mas,
infelizmente, nosso encontro no foi possvel. Chegou a um ponto de nos sentirmos sem jeito
de insistir. Passado um tempo, algumas vezes, nos deparamos com elas em alguns locais da
cidade, mas nenhuma de ns chegou a tocar no assunto, apesar de continuarmos a nos
cumprimentar amistosamente. Esse fato tambm passou a se constituir num imprescindvel
dado analtico para esta pesquisa. Como cada detalhe valioso para a investigao, essa
dificuldade teve toda uma influncia no processo de anlise que desenvolvemos.

22

Quanto a termos entrevistado mais meninos do que meninas, gostaramos de ressaltar


que, no universo da cultura de rua, semelhantemente ao que ocorre na sociedade como um
todo, h uma predominncia do masculino. O nmero de pichadores e grafiteiros
consideravelmente maior que de pichadoras e grafiteiras. Em nossa pesquisa anterior
(DUARTE, 2006), detectamos que, em Campina Grande, os sujeitos que produzem pichao
e grafite so, em sua maioria, do sexo masculino. Das 146 tags registradas, h apenas 5 do
sexo feminino (NINA, LUA, BRISA, INSANA E ROSE) (vide ANEXO A). O mesmo ocorre
com relao aos grupos aos quais eles/as se vinculam. Das 41 siglas de grupos registradas e
traduzidas, encontramos apenas 2 crews femininas (MUS e MMS ou MMP) (vide ANEXO
B). Assim sendo, consideramos que, em virtude dessa disparidade, termos entrevistado duas
meninas, j consistiu num xito.
Antes de cada entrevista, solicitamos a cada entrevistado/a, a leitura e assinatura o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a fim de que no restasse dvida quanto
seriedade desta pesquisa.
Quanto conduo da entrevista, decidimos por, aps ligado o aparelho de MP3 para a
gravao, deixar o/a entrevistado/a produzir sua narrativa, vontade, intervindo o mnimo
possvel, apenas em casos em que houve uma grande pausa ou em que foi necessrio o
esclarecimento de algum aspecto relevante pesquisa. Decidimos, tambm, no fazer
anotaes para que a entrevista ocorresse da maneira mais espontnea possvel, no formato de
uma conversa, deixando os registros escritos para depois de concludo esse momento de
interao. Importante ressaltar que, mesmo aps desligada a MP3, todos os cinco
entrevistados continuaram conversando mais um pouco conosco, tendo esse momento sido
tambm de grande valia para a pesquisa.
Um dos entrevistados, a certa altura de sua fala, pediu que encerrssemos a gravao,
acrescentando, em off, detalhes a respeito do tema sobre o qual ele discorria, fato esse
fundamental para a compreenso dos tensionamentos que envolvem a sociedade secreta de
pichadores/as e grafiteiros/as.
O encerramento das entrevistas se deu, naturalmente, no momento em que os/as
entrevistados/as consideraram que no havia mais nada a acrescentar, embora todos tenham se
disponibilizado a nos conceder, posteriormente, uma entrevista complementar, caso fosse
necessrio. Fizemos questo de deixar bem claro a eles/as que recebemos deles/as uma
valiosa contribuio, pela qual agradecemos enfaticamente.
Aps realizada cada entrevista, transpusemos o udio para o computador, procedendo,
em seguida, a transcrio (ou transcriao), a fim de no perdermos detalhes importantes

23

gestos, expresses faciais, nfases, silncios, por exemplo os quais ainda estivessem vivos
em nossa mente. Os textos resultantes dessa transcrio cada qual com no mnimo vinte
pginas foram diludos nas discusses de cada captulo desta tese. Importante ressaltar que
tal processo demorado, trabalhoso e exige perseverana e muita disciplina. Acrescentamos
ainda que o ideal que esse trabalho no seja terceirizado, pois, em nossa opinio, s quem
presenciou as narrativas possui a capacidade de coloc-las no papel para deixar o texto final o
mais prximo da fala dos/as entrevistados/as.
A fim de preservarmos a identidade dos/as entrevistados/as, optamos por nos referir a
eles/as, utilizando seus pseudnimos. Em alguns momentos, porm, a fim de evitarmos
constrangimentos, necessitamos omitir, mesmo seus pseudnimos, quando o discurso
sinalizava para questes delicadas que envolvem a rivalidade entre grupos.
Findo o processo de textualizao das narrativas orais, sabamos que o texto produzido
por ns no era definitivo ou limitado. A teoria do pesquisador ser somente uma das
possveis perspectivas abertas pelo texto (CALDAS, 1999, p. 77). O texto final resultante
dessas entrevistas um texto dialgico, de muitas vozes e mltiplas interpretaes
(PORTELLI, 1997, p. 27).
Conforme complementa aquele autor, acerca do texto final:
Em sua rede ficcional, em sua fora viva, exige o que envolve uma releitura,
reinterpretaes. Por ser um corpus vivo no se esgotou nem no projeto que
o iniciou, nem no longo trajeto transcriativo e muito menos nas
interpretaes que, formalmente, o transformaram atravs do pesquisador
numa leitura especfica e singular. (CALDAS, 1999, p. 77)

Consideramos que obtivemos xito nessa empreitada, porque, se j no fcil o acesso


a esses sujeitos, muito mais difcil o acesso s suas histrias de vida, embora saibamos que a
narrativa produzida por eles no a realidade, mas uma representao dela. Esse xito foi
devido, portanto, a todo um processo de construo de confiana entre pesquisadora e sujeitos
da pesquisa, o qual teve incio na primeira investigao que desenvolvemos (DUARTE,
2006), e que teve continuidade neste novo trabalho cientfico.
Aqui abrimos um parntese para declarar que o momento de cada entrevista foi,
sobremaneira, prazeroso para ns. Ouvimos atentamente cada cena narrada, at sorrimos,
emocionamo-nos e surpreendemo-nos com elas. Em virtude do tempo de convivncia anterior
no NH2C, percebemos que os/as entrevistados/as depositaram confiana em ns, chegando
alguns deles a revelar detalhes sobre sua vida ou sobre a vida do grupo que, na verdade, no
espervamos que viessem tona. Uma das entrevistadas, por exemplo, tratando da temtica
das drogas em sua trajetria, afirmou que aquilo que ela estava nos narrando s tinha sido

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contado a um mdico, que ns ramos a segunda pessoa que tinha acesso a esse momento de
sua vida. Disse, ainda, que sabia que no texto final, haveria alguns cortes, o que implica em
que ela desejasse que sua identidade se mantivesse em segredo. Assim, procedemos. Dessa
forma, o aspecto secreto dessa sociedade influenciou a nossa produo final. Percebemos,
nesse instante, a responsabilidade e o compromisso tico que devem compor os instrumentos
de qualquer pesquisador, a fim de que o resultado do seu trabalho no venha a comprometer
seus/as entrevistados/as.
Sobre essa responsabilidade que nos cabe, necessrio dizer que, especificamente em
relao a esta pesquisa, alguns aspectos precisam ficar bem claros. O primeiro deles que o
objeto de nossa investigao, historicamente, tem sido associado a um estigma de
criminalidade, o que reforado pela prpria legislao, motivo pelo qual envidamos todos os
esforos para que nossas anlises no reforassem esse estigma; o segundo deles a
rivalidade que inspira suas prticas socioculturais, o que implica no nosso cuidado em no
contribuir para a acentuao das rixas; o terceiro deles que entrevistamos membros de dois
grupos OPZ e UZS , entre os quais h essa rivalidade, e no podemos expor os/as
entrevistados/as, nem gerar constrangimentos entre eles/as; o quarto deles que esta
pesquisadora cnjuge do curador do meio ambiente de Campina Grande e isso foi
informado aos sujeitos desta investigao , motivo pelo qual a precauo teve de ser
redobrada, a fim de que essa condio no seja associada ao nosso interesse por investigar
essa sociedade. Esse tambm foi o motivo pelo qual no pudemos acompanhar nenhuma
interveno noturna de pichao rol juntamente com os sujeitos pesquisados.
(Imaginemos a manchete que isso daria!). As nicas intervenes que presenciamos foram de
grafite, durante o dia.
O quinto deles que precisamos manter a imparcialidade, pois foram nossos objetivos
descrever e analisar a sociedade secreta, e no, exercer juzos de valor sobre ela. Tambm
no foi objetivo nosso discutir as implicaes dessas prticas com respeito violao dos
espaos privado e pblico.
O sexto deles diz respeito s noes de linguagem, sujeito e discurso com as quais
trabalhamos. Para a Teoria Social do Discurso (FAICLOUGH, 2001), que tem por princpio a
linguagem como espao de luta hegemnica, a linguagem considerada como parte
irredutvel da vida social dialeticamente interconectada a outros elementos sociais
(RESENDE, 2006, p. 11). Os sujeitos no so meramente posicionados de modo passivo,
mas capazes de agir, de negociar seu relacionamento com os tipos de discurso a que eles
recorrem (FAIRCLOUGH, 2001, p. 87). Os agentes sociais so dotados de relativa

25

liberdade para estabelecer relaes inovadoras na (inter)ao, exercendo sua criatividade e


modificando prticas estabelecidas. Desse modo a importncia do discurso na vida social
transita entre a regulao e a transformao (RESENDE, 2006, p. 46). O discurso
entendido como pratica poltica e ideolgica, e como modo de ao historicamente situado,
(RESENDE, 2006, P. 25) que deve ser investigado em sua trplice dimenso: texto, prtica
discursiva e prtica social (FAIRCLOUGH, 2001, p.101)
O stimo deles que o trabalho com a Anlise de Discurso Crtica requer o
engajamento pessoal do/a pesquisador/a com o problema pesquisado. Admitimos que a
suposio de neutralidade em cincia no seno um posicionamento ideolgico e, assim
sendo, no nos pretendemos neutros sabemos que no podemos s-lo e, mais que isso, no
queremos s-los. (RESENDE, 2006, p. 140) (grifo da autora). Todo o percurso da pesquisa
desde a escolha do objeto e dos objetivos at a anlise resultam de escolhas particulares.
Para Rajagopalan (2003, p. 12 apud RESENDE, 2006, p. 150), a distino entre a
teoria tradicional e a teoria crtica consiste em que
esta ltima no se contenta em descrever e teorizar os problemas sociais,
objetiva participar ativamente dos processos de mudana. E a linguagem
constitui um foco inescapvel na persecuo desse objetivo, visto que
palco de interveno poltica, em que se travam disputas pela estruturao,
desestruturao e reestruturao de hegemonias, em que se constroem
identidades, se veiculam ideologias. (grifo do autor)

Concordamos, assim, com a afirmao de Fairclough (2003, apud RESENDE, 2006, p.


141) acerca da no objetividade da anlise, visto que no possvel descrever e analisar o que
se representa em um texto, sem a presena da subjetividade.
Esforamo-nos para que a nossa construo discursiva, nesta tese, permitisse que a voz
dos sujeitos da pesquisa e suas histrias de vida pudessem dizer sobre eles e sobre pichao e
grafite, independentemente, da revelao do segredo que constitui sua sociedade. Mas como
tudo o que secreto exerce atrao, deixemos a deciso para o final.
Consideramos, tambm, que certos detalhes sobre essa sociedade precisaram ser
cuidadosamente tratados, a fim de que os resultados desta investigao no ocasionassem,
conforme j dissemos, situaes constrangedoras aos sujeitos pesquisados. Essa vigilncia
metodolgica se constituiu numa enorme dificuldade para ns. Redobramos, ento, o esforo
para cumprir nossos propsitos investigativos, com muito jogo de cintura para no
trazermos prejuzos ao campo e aos sujeitos que nos permitiram essa experincia. Nossa
atitude talvez possa at ser confundida com paixo ou, at, com temor, mas como diz o
ditado, cada um sabe onde o sapato aperta. Dispnhamos dos dados, mas nem todos

26

poderiam ser publicizados. As xerox das fichas de cadastro dos membros do NH2C, com seus
dados pessoais, as listas de presena das reunies do NH2C, o dirio de campo, contendo,
inclusive os nmeros de telefone de pichadores/as e grafiteiros/as, a transcrio das histrias
de vida e o vdeo sobre o Ncleo sequer puderam ser utilizados como anexos. Nesse aspecto,
o segredo continuou a compor, desde o planejamento, esta tese que resultou em cinco
captulos.
Sabendo que ela no se limitaria aos muros da Academia, optamos por no produzir
um captulo, exclusivamente, terico, a fim de que nosso texto flusse e a sua leitura se
tornasse prazerosa para qualquer leitor, sobretudo, para pichadores/as e grafiteiros/as, os/as
quais tero, de nossa parte, o compromisso de voltar ao campo para apresentar os resultados a
que chegamos. Assim sendo, procuramos diluir a teoria no processo analtico, em dilogo
com as prprias falas dos/as entrevistados/as.
O primeiro captulo abre as cortinas para a apresentao da sociedade secreta,
enfocando o aspecto do segredo como dinmica comunicativa dessa rede de sociabilidade,
desde a esfera real at a esfera virtual da sociedade em rede.
No segundo captulo, subsidiando-nos pelas perspectivas dos Estudos Culturais, da
literatura sobre juventude e da Teoria Social do Discurso, abordamos as relaes entre o
panorama da cultura contempornea, os circuitos juvenis urbanos movimento hip hop,
pichao e grafite e a experincia dos sujeitos que interatuam nesses contextos (Thompson,
1978). Tambm compuseram esse captulo reflexes acerca das (in)definies das identidades
de pichador/a e grafiteiro/a, como tambm acerca do agenciamento sociodiscursivo dos
sujeitos produtores dessas duas expresses da cultura de rua.
O terceiro captulo, no apenas descreve nossa experincia etnogrfica, no NH2C, mas
tambm apresenta momentos analticos, a partir das histrias de vida de pichadores/as e
grafiteiros/as entrevistados/as, sobre o contexto, os sujeitos e os discursos que se instauram
nesse campo de observao permeado por controle e disputas.
No quarto captulo, considerando que as expresses culturais contemporneas se
instauram num contexto social, mais amplo, de articulao entre o local ao global;
considerando tambm que esta uma tese de doutorado em Sociologia, e que, de acordo com
o inciso III, do Art. 12, da resoluo n 62/1999, precisa representar um trabalho de pesquisa
original em que demonstre capacidade crtica e domnio terico-metodolgico em
Sociologia, apresentamos uma discusso sobre as relaes estabelecidas entre as prticas
simblicas da pichao e do grafite, e a sociedade, o mercado e a mdia, no contexto da
globalizao, discusso essa que julgamos indispensvel anlise de qualquer fenmeno

27

contemporneo. Tambm verificamos, a partir da Teoria Social do Discurso, quais as


ressonncias desse novo processo civilizatrio no discurso da pichao e do grafite.
No quinto captulo, dedicamo-nos a apresentar e analisar de que forma essa sociedade
representada no discurso das narrativas de pichadores/as e grafiteiros/as entrevistados.
Nessa discusso, procuramos abordar o processo de formao, a estrutura organizacional, o
funcionamento, as regras de admisso dos membros, alm de contemplar a participao
feminina nesse grupo, subsidiando-nos pela perspectiva faircloughiana.
Sigamos, ento, em busca do segredo, leitura dos captulos.

28

CAPTULO I ABRINDO A CORTINA PARA A SOCIEDADE SECRETA


___________________________________________________________________________

[...] Ele: bora, pichador, no sei o qu! Por que tu pichou ali? Eu:
caramba, eu no pichei nada! E eu sa pra dialogar com o cara, e
nisso, o segurana saiu assim em direo quela praa que tem. Eu:
No, eu no fiz isso! E num momento de descuido, eu, fuc, disparei, a
subi na contramo, em direo feira. Quando eu cheguei na
esquina, o vigia me enquadrou, eu sem sandlia, que na correria, eu
deixei a sandlia. Eu: Calma, eu no fiz nada, no, eu fui roubado, eu
fui roubado! A quando ele foi baixando a arma, o cara aparece na
esquina de baixo: segura ele, segura ele! A o vigia: Para! O cara, um
senhor j, e eu, um maloqueiro, de bon, correndo na rua descalo! O
vigia: Para! Eu no fiz nada, no! Quando eu disse a segunda vez:
eu no fiz nada! Ele, p! Sem exagero, a bala, o tiro que ele deu
tava como daqui a nessa parede. Ele apontou a arma assim pra
mim, p! Eu s vi o fogo! Eita, eu s fiz virar a cara e sair
desabando. Caramba, Angelina, eu acho que eu nunca corri tanto
na minha vida, no.1

1.1 A rua e a noite guardis do segredo de pichadores/as e grafiteiros/as


Tudo tem incio numa rua, numa esquina, numa praa, numa Arca2, numa pista de
skate... Jovens se encontram para tocar ideias, para experienciar, com seus pares, o
pertencimento... Oito e pouco, cedo ainda, a gente tava ali, na Arca Tito, de frente onde era
a Decom, era um point3 l, at um tempo. N figuras chegavam por l pra trocar ideias e de l
sair pra os seus rols. (PAGO).
Porque eu frequentava uma parte do Centro que era a Arca e boa parte
das pessoas que tavam ali faziam. E a eu fiquei curiosa, sabe? Todo
mundo ia, todo mundo gostava. Tava aumentando o nmero de pessoas.
E at ento, eu nem ia nesse rol mesmo, assim, de pichar. Eu s encontrava
com eles, antes deles sarem pra isso, ou quando eles voltavam. A eu
escutava todas as histrias e achava massa, n? A, de participar, foi porque
eu j sabia tudo, sabia como acontecia, sabia tudo, eu s no tinha ido. A eu
disse: eu vou. Eu tinha um spray, eu disse: eu vou. A a gente combinou,
a eu j, no precisava nem me explicar nada, eu j sabia como
acontecia tudo.
[...] No domingo, todo mundo se encontrava pra andar de skate. [...] a
conheci SAGAZ, atravs tambm de skate, tambm, conheci o pessoal da
zona sul atravs do skate. [] Em 2002, mais ou menos, fomos pro Centro,
1

Os grifos em todos os fragmentos das histrias de vida, daqui em diante, so desta pesquisadora.

ARCA um espao no Centro da cidade, construdo pelo Poder Pblico Municipal, destinado a acomodar os
camels que, anteriormente, se instalavam nas caladas do centro comercial de Campina Grande.
3

Ponto de encontro para estabelecimento de trocas e planejamento e avaliao dos rols.

29

aquela velha pirmide4. Tinha um movimento de skatistas muito forte, a


conhecemos o STIMPS, que foi um menino que entrou pra LPE, e botou
ele pra pichar. (ZNOCK MORB)

A rua se constri pelos sujeitos que, em suas movncias, a praticam e significam. No


se constitui, pois, numa realidade fsica determinada a priori. Ela corpo, eles, esprito. Nela,
eles imprimem a marca das suas experincias, a partir de lgicas urbanas alternativas e, muitas
vezes, inesperadas.
No tecido cultural da cidade, eles expem subjetividades, constroem identidades, a
partir de uma brincadeira, de um olhar em comum, de um sonho, de uma ideologia que os
mantenha em segurana, diante da instabilidade que vivenciam nos contextos com os quais
interatuam.
Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 02 A vida. Todos unidos na mesma ideologia! Sem crise. (Ovni UZS) Rua Paulo de Frontin.
Centro. CUCA. Janeiro de 2005.

A rua os acolhe. A noite tambm. Elas conhecem bem o segredo. Ns desejamos


conhec-lo.
[...] A foi que a gente descobriu que na vida noturna, no s a gente que
tava l, no. Do mesmo jeito que a gente, enquanto uma pichava, ficava duas
ou trs olhando o movimento da rua, cada uma numa esquina olhando pra
uma direo, todo mundo fazia isso. (INSANA)

A teoria antropolgica buscou compreender o papel do segredo associado s religies


que dispunham de conhecimentos secretos, tentando explicar o funcionamento destes em
sociedades secretas e rituais iniciatrios. Pretendemos seguir esse caminho, enfocando os
grupos de pichao e grafite. Sabemos que o segredo se configura a partir de um
conhecimento compartilhado em um contexto, em detrimento de outros, resultando num
processo de diferenciao que cria um mundo parte, uma realidade social particular,
4

Pirmide do Parque do Povo logradouro pblico no centro de Campina Grande.

30

interdependente dessa ocultao. Nesse mundo, identidades vo recebendo os primeiros


contornos.
O controle quando orientado pela existncia do segredo, entendido tal como
Scheppele (1988) o definiu, como a parte da informao que
intencionalmente sonegada por um ou mais atores sociais dos demais,
transforma o segredo em um mecanismo que, devido sua significao
simblica, serve de base para a construo de identidades pessoais e/ou
coletivas. (MIRANDA, 2001, p. 99)

Assim, esses/as jovens obtm o domnio sobre um cdigo a que apenas eles tm
acesso, fazendo surgir um mundo distinto do aparente, o que resulta em ambiguidades e
interpretaes conflitivas sobre a realidade, forando a negociao das posies sociais.
(MIRANDA, 2001, p. 100)
Mesmo sendo segredo, este, paradoxalmente, se espalha nas redes reais, mas tambm,
nas virtuais. Atrai, excita, encanta, transgride, camufla... Traz risco, adrenalina, rixa, projeo,
punio, profisso... Assume sentidos, torna-se smbolo. , simultaneamente, arte e crime,
essncia e mercado, local e global, periferia e centro, anonimato e visibilidade, estrutura e
ao, identidade e diferena, subverso e negociao, pureza e hibridismo, pichao, grafite, e
grapicho...
Subverte, assim, a delimitao conceitual. Move as fronteiras que separam as duas
prticas, se que elas existam. Grapixo nis (LPE/UZS), diz uma escrita num muro de
Campina.
Fotografia Angelina Duarte

FOTO 03 Grapixo nis (LPE/UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro. CUCA. Janeiro de 2005.

Subverte-se a prpria lngua, pela criao do neologismo Grapicho: palavra-chave


para a construo discursiva desse nicho. Ela muito mais que um vocbulo. Representa uma
ideologia. Representa a periferia, no apenas como localizao espacial, mas tambm como

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marca identitria. Representa tambm uma sociedade, uma sociedade secreta. Resume a
mestiagem entre as duas prticas, mas tambm o hibridismo entre a zona e o mundo.
Representa, ainda, o sentimento de pertena a esse contexto profundamente marcado por
criatividade, tenso e contradio.
Subverte-se, em segredo, a determinao estrutural da lngua, da lei e da sociedade.
Proibido pichar ou pixar (OPZ), diz, ironicamente, outra escrita no muro.
Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 04 Proibido pichar ou pixar (Hits OPZ) Rua Prof. Francisco Carlos Medeiros. Prata.
Fevereiro de 2005

Assim, mltiplo e paradoxal, como tambm so a juventude e os contextos sociais que


a envolvem, desafiando a normatividade, o segredo tece seus fios por entre uma rede e outra,
at formar uma sociedade, uma sociedade secreta.

1.2 O segredo nas redes de sociabilidade

A tessitura dessa sociedade se instaura no ambiente propcio da cidade contempornea,


quando grupos juvenis, estruturados a partir de galeras, bandos, gangues, grupos de
orientao tnica, racista, musical, religiosa ou torcidas de futebol, emergem, numa nova
apropriao do espao urbano, que desafia o entendimento e exige uma aproximao mais
sistemtica para sua compreenso (SPOSITO, 1993, P. 162).
Movendo-se da periferia ao centro urbano eu morava na Zona Sul, perto do
Amigo, mais ou menos 2 km do Centro. Eu sa andando pro Centro e fui l pra pirmide, n,
e, assim, n [...] A eu digo: bom, nunca fiz isso, vou fazer a primeira vez na pirmide, onde
todo mundo anda de skate e vai ver (ZNOCK MORB) , motivados por certos impulsos e
em funo de certos propsitos essa juventude gesta suas redes de sociabilidade, as quais
resultam numa sociedade. Seus fluxos interacionais se caracterizam tambm por um

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sentimento, entre seus membros, de estarem sociados, e pela satisfao derivada disso
(SIMMEL, 1983, p. 169), constituindo-se, assim, numa relao social pura, numa forma
ldica da sociao (SIMMEL, 2006, p. 65).
Periferia, no discurso da sociedade secreta, assume sentidos muito mais amplos que
os convencionais, constituindo-se no apenas como uma referncia espacial, como j
dissemos, mas representando um contexto no qual essas identidades juvenis se formam, se
comportam e interagem. O universo das crews organizado a partir do discurso sobre
pertencer periferia.
[...] Periferia passa no apenas a ser uma categoria espacial, como tambm
uma categoria identitria que faz referncia pertena de classe, mas que
no se restringe a esse fator. Categoria que tambm traz consigo modos
particulares de se portar e de se relacionar com os pares da periferia.
(PEREIRA, 2010, P. 158)
Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 05 Reao da periferia (Gorpo) Rua Paulo de Frontin. Centro. (CUCA) setembro de 2004

Assim, esses novos agrupamentos, tribos urbanas, no dizer de Mafesolli, passam a


funcionar como elemento de identificao e de referncia comportamental desses jovens, na
passagem para a adolescncia, perodo em que buscam uma maior autonomia em relao ao
mundo adulto. Segundo ele, tribos urbanas como agrupamentos semi-estruturados,
constitudos predominantemente de pessoas que se aproximam pela identificao comum a
rituais e elementos da cultura que expressam valores e estilos de vida, moda, msica e lazer
tpicos de um espao-tempo (MAFFESOLI, 1998, p. 201).

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(...) os espaos e tempos de lazer aparecem, de certo modo, sobrevalorizados


pelos jovens porque reconhecem a desfrutar de uma certa autonomia, em
contraste com outros domnios (famlia, escola, trabalho) onde
predominante a autoridade adulta. (PAIS, 1993, p. 111)

As caractersticas singulares a cada grupo imagem, estilo, discurso e comportamento


favorecem sua insero social, ao mesmo tempo em que sugerem as interferncias das
transformaes socioeconmicas e culturais da sociedade contempornea na constituio
dessas caractersticas.
Nessa paisagem e apresentando tais caractersticas, brota a sociedade secreta de
pichadores/as e grafiteiros/as. A gente criou a MMS, e foi bem legal porque a gente achava
que esse negcio de pichao era totalmente secreto. [...] A gente fez a MMS, criou. Melou
a cidade todinha (INSANA).
Eu tinha uns quatorze anos. Era de menor, mas j era mais confiante nisso.
[...] Os meninos que eram de maior no queriam dar rol com a gente que
era de menor. At porque se caso fosse preso, um agravante a mais t com
companhia de menor, eles iam responder tambm por aliciamento. A j que
a gente no podia andar com os meninos de maior, a gente juntou as
meninas e, teve uma poca, assim, que era s menina. (INSANA)

Embora conectada ao movimento hip hop, e por isso, estabelecendo fronteiras internas
com os demais elementos que o compem, essa sociedade traa um perfil para se articular aos
contextos micro e macro, delimitando suas especificidades e suas identidades, cujos vnculos
se pautam tanto pela unidade de impulsos e propsitos em torno dos valores defendidos pelo
movimento, quanto pela satisfao de pertencerem a um grupo que lhes permite unir o til ao
agradvel: crtica, contestao, projeo, rivalidade, planejamento de intervenes,
compartilhamento de experincias, lazer, afetividade, religiosidade, e tambm trabalho.
Por outro lado, seus estilos actuam frequentemente como mscaras, da mesma forma que as

culturas juvenis podem representar solues a problemas e contradies relativamente s


circunstncias que os jovens vivem (PAIS, 2007, p.22) (grifo do autor).
O aspecto do segredo, que se esconde sob tais mscaras, indispensvel ao
funcionamento do grupo, e subjaz a sua prtica sociocultural na qual o coletivo, tambm,
assume um papel relevante. Os ns que arrematam tais laos s se tornam possveis a partir do
ns, do sentimento gregrio que inspira a emergncia dessas crews. O piche, ele muito
coletivo, ele funciona atravs de crews, de coletivos (NAAH).
Essa idia de comunidade, de estar junto, expressa-se, tambm, no nvel vocabular do
discurso desses sujeitos: organizao, grupo, unio, galera, mfia, faco, torcida, primeiro
comando, crew (Organizao dos Pichadores do Zepa, Unio Zona Sul, Grupo de

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Pichadores do Zepa, Torcida Jovem do Galo, Primeiro Comando do Catol, Mfia


Zona Leste). Primeiro Comando e Mfia, particularmente, dizem respeito a formas
especficas de organizao, faces criminosas organizadas, cuja ao comprova o poder
desses grupos, como o caso, em So Paulo, do PCC (Primeiro Comando da Capital). Com o
uso dessas expresses, esses/as jovens parecem querer chocar a sociedade.
Assim, a matria modeladora da sua esfera social retroalimentada por essa
multiplicidade de elementos e provavelmente por muitos outros cujo domnio pertence
unicamente ao grupo, e que permanecero secretos para ns , a partir dos quais os vnculos
comunitrios

se

constituem

se

instalam.

Mas

que

seria

sociedade secreta de pichadores/as e grafiteiros/as? Por que e para que ela existiria?
Haveria, de fato, um segredo? Em que ele consistiria e como se manteria? Seria possvel
desvend-lo? E, em sendo desvendado, no deixaria de ser segredo? Essa sociedade se abriria
para a pesquisadora, ou representaria para garantir a manuteno do segredo?
sobre ela que iremos nos debruar agora.
1.3 O segredo como dinmica comunicativa da sociedade secreta
Os grupos de pichao e grafite, em Campina, nascem da curiosidade, da brincadeira,
da experimentao, da influncia dos amigos, no contexto mais imediato a rua, o bairro, a
zona , e vo se ampliando para as reas centrais da cidade, onde o fluxo de transeuntes e,
consequentemente, de pichadores/as e grafiteiros/as bem maior do que na periferia, uma
vez que a motivao para essas duas prticas colocar seu nome pra todo mundo ver. Para
eles, inclusive, no momento em que deixam de atuar apenas na quebrada onde moram e
saem para pixar em outras quebradas, ou mesmo no centro da cidade, que se tornam pixadores
de verdade (PEREIRA, 2010, p. 160).
O interesse pela pichao foi s as circunstncias dos lugares, das
pessoas com quem eu andava, e por curiosidade, eu cheguei a
acompanhar rol durante a madrugada, pra pichao, n? (NAAH)
At ento, eu no tinha ido pra rua mesmo. J era rua, mas no era rua
mesmo, era dentro do condomnio. A um certo dia a gente se encontrou
na divisa do Catol com a Liberdade, e eu encontrei com SAGAZ e
SVO. A rolou uma grande amizade. Terminou nesse mesmo dia a gente
saindo pro Centro, e pichando tudo. (ZNOCK MORB)
Eu morava aqui. Moleque, a sempre ia de frias l pra Recife. E tinha
alguns conhecidos da minha irm que pichavam e eu era curioso pra
saber como era realmente. A no final de 94, eu fui morar de verdade l. A
nisso, eu conheci umas pessoas que j tinham um movimento, mas que era
tudo molecote tambm, no era pichador, no. A vez ou outra, tipo,

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arrumava uma lata aqui, a saa, fazia uma besteira aqui, pegava um giz
de cera fazia uma coisa ali, e nisso eu tambm peguei os embalos e
comecei nessas brincadeiras de moleque. (PAGO)

Dessa brincadeira, emergem o compromisso, a defesa dos valores caros ao grupo e a


fidelidade a eles A caramba, por j ser uma cultura de rua, de certa forma tem uma
ideologia que vinga ali dentro (PAGO). Tudo isso sob o manto do segredo, j que so
ocultadas a identidade dos seus membros, as suas motivaes e formas de atuao, s tendo
acesso a essa esfera os que compartilham seus cdigos e experincias.
Seu segredo adquire o estatuto de smbolo cuja interpretao s pode se realizar a
partir da vivncia cotidiana desses/as jovens. Por outro lado, pode ser que esse significado
oculto jamais se permita revelar. quotidianamente, isto , no curso das suas interaces,
que os jovens constrem formas sociais de compreenso e entendimento que se articulam com
formas especficas de conscincia, de pensamento, de percepo e aco (PAIS, 1990, p.
164).
Segundo esse socilogo, a descoberta dos significados dos smbolos passa pela
compreenso dos significados que esses smbolos tm para os jovens, mas vai mais longe do
que isso: passa tambm pela compreenso do uso que eles fazem desses smbolos (PAIS,
2007, p. 19). Mas nem esses smbolos so transparentes, como tambm no o so os estilos
juvenis, os discursos e as relaes sociais que deles emanam. Seus significados mobilizam-se
entre a molecagem, o fascnio pela prtica, o feeling, o status e a sensao de poder que ela
proporciona.
Talvez essa opo pelo secreto se vincule gnese das duas prticas, em sua condio
de anonimato e de clandestinidade, e diga respeito necessidade de camuflagem desses
sujeitos, sob pseudnimos, sobretudo, na prtica da pichao, j que esta, por ser mais
invasiva e transgressora5, alm de estar sob a mira da legislao vigente no pas, impossibilita
a exposio pblica de seus adeptos, temtica essa a ser abordada no item 2.4 do captulo II,
desta tese.
s vezes acontece, tipo, a polcia chegar e pegar o seu spray e passar em
voc pra que voc no faa mais isso, pode bater em voc...[...] legal,
sabe, voc afinal t entre amigos, ento no que voc t indo, voc t rindo,
voc t brincando, voc t tirando uma onda, e tudo, mas a tem o risco. E
quando a polcia chegar? Que que vai acontecer? Vai dar tempo
correr? Vai dar tempo se esconder? Voc vai presa. A, sua me vai l,
5

Eu digo: bom, galera, a gente LPE, mas se a gente t fazendo grafite, eu acho a pichao uma coisa, assim,
mais anarquista, mais, como que se diz, , mais secreta, assim, mais underground, mesmo, na essncia,
assim. (Histria de vida ZNOCK MORB) (grifos nossos)

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n? A tem gente que no liga, que a me j foi pegar dez vezes dentro
da delegacia.(NAAH)

Talvez seja apenas pelo fascnio que a aura enigmtica do segredo exerce sobre a
juventude, por proporcionar-lhe o trnsito por um territrio no acessvel a todos, cujo
controle passa a estar nas mos desses/as jovens, mas tambm por chamar a ateno da
sociedade para eles/as. Por outro lado, pode ser que o segredo, contraditoriamente ao seu
significado, exera o papel de publicizao dessa sociedade formada por eles/as e,
consequentemente, de suas prticas culturais, em razo da curiosidade que alimenta nos
indivduos. Mas tambm pode ser tudo isso e muito mais. Entretanto, em razo do segredo,
talvez no nos seja possvel penetrar as camadas mais profundas dessa sociedade.
O tempo ajuda a transformar a brincadeira na vera. Vendo a cidade limpa, e
trazendo a experincia com o piche, de Recife, em 1999, PAGO funda o primeiro grupo de
pichao nesta cidade, o primeiro comando.
Quando eu vim pra c, j com a cabea de uma metrpole, de cidade
grande, cheguei aqui, de certa forma, a cultura de interior diferente, a eu vi,
caramba, a cidade limpa, limpa, limpa, limpa. Tinha uma coisa aqui ou
outra perdida, mas no era um movimento de piche, muito menos de grafite.
A eu, caramba, vou fundar um comando aqui. A tive a atitude e chamei
uns colegas que imaginei que tinham coragem. Vamo? Vamo. Mostrei umas
letras pra eles, dei s umas ideias, por alto, do que que ia ser o camando, a
ideologia da histria. Pronto, a partir da, surgiu a OPZ6, o primeiro
comando, a primeira organizao de piche na cidade, que at ento no
tinha piche aqui. (Histria de vida PAGO)

Comando? Que palavra seria essa? Qual a sua representao para a sociedade
secreta? Apelarmos apenas para a questo lingustica seria limit-la demais em sua
multidimensionalidade semntico-ideolgica e sociocultural.
No nvel textual desse discurso, a escolha dessa palavra j sinaliza para a metfora da
guerra, do conflito, da batalha que so prprios das prticas dessa sociedade. Ao assim
procederem, esto escolhendo enunciados metafricos para emoldurar os conceitos
vinculados sua experincia.
Fairclough (2001, p.241) afirma que as metforas estruturam o modo como
pensamos e o modo como agimos, e nossos sistemas de conhecimento e de crena, de uma
forma penetrante e fundamental. Segundo ele, h fatores culturais, polticos e ideolgicos
que determinam a escolha da metfora pelos produtores dos textos, sendo, portanto,
necessrio considerar os efeitos desse recurso lingustico sobre o pensamento e a prtica
social.
6

Organizao Pixadora do ZEPA.

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Nas seguintes fotos, h textos em que ntida a metfora da guerra:


Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 06 Esta porra quem comanda Zona Leste!!! (PZL) / Nem PM, nem MP, nessa porra quem comanda
OPZ . (OPZ) Rua Otaclio Nepomuceno. Catol. Muro da Escola Normal. Maio de 2005.

Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 07 A guerra vai comear. (Zoi PPZ) Rua Dr. Severino Cruz. Centro. Parque do Povo. Maio de
2005

Nesse confronto, o comando serve para demarcar e dominar um territrio. Quem


comanda? Muita gente que mora l, que tem meio que uma moral naquele lugar, no pedao,
vamo dizer que quem manda no pedao so eles. Quem vai pro prdio mais alto, s quem vai
poder ir so eles (INSANA). Serve tambm para representar o perodo em que o jovem
deseja assumir o comando da sua vida, ter uma autonomia, e, para isso, cria um espao em
que esse desejo possa se efetivar.
Ponto espacial de referncia da OPZ: o ZEPA, bairro da Zona Leste. Integrantes:
jovens moradores dessa Zona. Atitude: coragem. Motivao: ver um tag bem

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encaixadozinho, um pico7, muito louca a ousadia da pessoa subir pra divulgar o seu nome, a
sua arte l em cima (PAGO). Cada um querer ser mais do que , at porque o conflito, na
pichao, uma coisa meio que essencial, porque cada um querendo fazer mais alto. E s
vezes at que , entre aspas, saudvel, at o momento que t s no, nas paredes. (INSANA).
Fundar um comando exigiria confiana, atitude e coragem. Confiana na
capacidade de agenciamento. Atitude de liderana para desafiar. Coragem para correr os
riscos e segurar a barra , de ser visto e preso, ou at mesmo de morrer numa queda, no
confronto com outros grupos, com a polcia ou com outros sujeitos que se contrapem a suas
prticas.
Eu acho que perigoso, sabe? Eu acho que arriscado. Eu acho que, do
ponto de vista social, assim, sabe? [] Outra coisa, assim, um ladro que
possa ver quatro ou cinco pessoas andando e queira roubar, porque hoje
em dia ainda tem mais esse risco, fora as autoridades, n? [] Mas j
teve muito amigos que um segurana puxou uma arma e atirou. No pegou,
no foram atingidos, mas voltaram a fazer. Isso no adrenalina? Mas voc
correr, e o orgulho de ter feito, n? Voltei, terminei. Se apagar, eu volto.
(NAAH)

Adrenalina outro fator determinante nessa prtica. Tratando da temtica sobre a


paixo pelo risco, Le Breton (2000) considera que essas prticas juvenis associadas aos riscos
inerentes transgresso, semelhantemente, aos esportes radicais, afrontam limites, produzindo
a exaltao da vida perigosa, emocionante, repleta de adrenalina. Essa forma de afrontamento
ao risco insere-se numa lgica do desafio e da provocao sociedade adulta.
Por outro lado, a fascnio pelo risco pode ser uma necessidade de reencantamento da
vida, j que eles/as manifestam forte ligao com o presente aqui e agora , certa
dificuldade em equacionar o passado nem sempre as lembranas so boas e alguma
relutncia em projetar o futuro h um tanto de vazio na espera (BORELLI; ROCHA,
2008, p. 31). Como vivenciam instabilidade e insegurana, agarram-se com todas as foras ao
presente, arriscando-se, desafiando, enquanto podem ter um certo controle sobre esse efmero
presente.
Coragem implica tambm em liderana. PAGO, em sua histria de vida tematiza a
sua liderana, narrando que, desde moleque, tinha ideias e convocava a molecada para plas em prtica. Diz que, quando estudava no CEPUC8, todo final de ano tinha um destaque:
destaque esportivo, destaque amizade, pra estimular os alunos. E teve uma histria de
destaque liderana. At ento, eu no me tocava disso, eu moleque, quando eu olho, foi

7
8

Pichar no lugar mais alto possvel.


Instituio de ensino frequentada pela classe mdia.

39

unnime, a classe todinha botou destaque liderana pra mim. A partir da, eu me toquei. E fui
ganhando em cima disso.
Num grupo que uma das mximas de haver cobrana quando h
necessidade, esse grupo vai respeitar, ter como figura de autoridade quem
coloca aquilo em prtica, quem faz aquilo bem feito. Resultado desse meu
comportamento, dessa parte da minha personalidade, do meu
temperamento, isso, contribuiu pra eu ter uma espcie de liderana
nesse subgrupo social. (PAGO)

A liderana, o papel de autoridade, dentro do grupo, representa para esses/as jovens


uma autoafirmao, e isso se reflete na construo da sua identidade, j que, no convvio
extragrupal, as figuras de autoridade so outras. Esse aspecto da liderana foi citado no
fragmento da histria de vida de INSANA, sobre a criao da MMS crew, aparecendo,
tambm, na histria de vida de ZNOCK MORB sobre a criao do outro grupo de pichao
mais expressivo em Campina: LPE, rival da OPZ, de PAGO.
O SAGAZ pichava e colocava LP9. E isso me deu um incentivo. E eu
encontrei com SAGAZ e SVO que tambm colocava LP. A, por
considerao, eles pediram: bota LP, a eu fui e botei LP. No final de 98,
assim, mais ou menos, a eu disse: bom, galera, acho muito vazio, assim, LP.
Vamo colocar o E, de escaladores, acho que fica legal. Escaladores vai
dar um lance massa, assim, pra gente, a galera que escala, e tal. At
ento eu no me interessei muito, no coloquei LPE, tambm tava um pouco
afastado desse lance de grafite. A veio o ano de 1999, n. A continuou
aquela coisa de LPE, LPE, a eu coloquei alguns pelo bairro, assim, a
comeou a surgir na cidade. (ZNOCK MORB)

Alm do segredo, dos laos comunitrios, da atitude, da coragem, da liderana, h


outro aspecto muito relevante a ser contemplado: Em Campina, o piche, ele no s piche.
Os bondes, como a gente chama, a galera, sabe, tem o envolvimento com torcidas
organizadas, com todo um contexto mais pesado. Isso te acarreta uma consequncia. Se voc
da OPZ, voc t ali sujeita a toda a histria que a OPZ t, entendeu? (NAAH).
Porque a questo de torcida organizada uma coisa que meio irracional.
meio irracional, no, totalmente irracional, porque prega o dio a uma
outra pessoa porque ela est usando uma camisa de uma cor diferente da sua,
ento isso totalmente sem sentido. , e voc v que so pessoas que
matam ou morrem por aquilo. Isso admirvel, eles tm um ideal, um
objetivo e eles matam ou morrem por aquilo, s que qual esse objetivo?
Matar ou destruir a outra torcida, mas eles matam. (ZECA)

Disso resultam os conflitos simblicos ou reais, vivenciados pelos comandos


gangues, nas palavras dos entrevistados que batalham pelo predomnio numa dramatizao
das preocupaes de status. E dessas tenses resulta a violncia, que por sua vez pode tambm
ser uma das causas da manuteno do segredo.
9

Sigla dos Loucos Pichadores.

40

O fato de eu estar me encarando como eu no sendo mais integrante de uma


gangue, querendo ou no, a parte, o comando que eu fazia parte era uma
gangue. [...] A negada todinha l da Leste: ladro, traficante, e a molecada
que anda comigo, me respeita por causa disso. Via que quando era de ter
atitude, eu, p, tinha, fazia mesmo, chegava na caruda e, p, fazia.
(PAGO)
Segundo PAGO, a OPZ o comando. Segundo ele, a OPZ tem grafiteiro,
pichador e ladro, entendeu? Acho que ele quer ser tipo o Marcola e a
OPZ ser o PCC, entendeu? Mas na verdade um monte de guri, entendeu?
Querendo brincar, brincando ser perigoso. (ZECA)

Nos confrontos simblicos, um grupo queima10 a tag do outro, semelhantemente ao


jogo da velha. Nos confrontos reais, a queima da tag resulta em agresses e todas as
consequncias delas decorrentes. E se quiser se desmoralizar, se quiser arrumar uma
confuso com voc, vai queimar sua tag (PAGO). No meio da brincadeira, exacerba-se,
ento, a metfora da guerra, passando, no contexto real, a se tornar menos metafrica.
Exemplo disso a rivalidade histrica entre as crews OPZ e LPE/UZS, tematizada em
quase todas as histrias de vida, e que ser abordada mais adiante. , porque tem aquela
coisa de queimar, t ligado? T aqui o tag, o cara chega e p. Isso um desrespeito terrvel,
mortal, voc queimar o grafite, queimar um tag, no nem um grafite, mas um tag de outro.
[] Queimar voc fazer um X por cima, entendeu? Fazer uma coisa por cima, entendeu?
Vejamos um exemplo disso na fotografia abaixo:
Fotografia Angelina Duarte

FOTO 08 LPE => os + loucos! (LPE) XPichadores Psicopatas do Zepa (PPZ) Rua Jos Dantas de Aguiar.
Catol. fevereiro de 2005

A escolha da palavra queimar, que referencialmente remete combusto, por sua


vez, tambm remete a uma rea semntica vinculada guerra, conflito, disputa (queima do
inimigo, queima de arquivo, queima de cadver), mas tambm a ficar queimado, no sentido
10

Coloca um X sobre a tag do rival.

41

de ser excludo, desprestigiado, estigmatizado. A aparncia de que esse uso sugere uma
combusto social.
Haveria uma simbiose entre o discursivo e o social? Embora saibamos que nem todo
discurso se torna uma prtica, a primeira impresso que temos a de que no contexto da
sociedade secreta, a linha que separa essas duas esferas tnue. A Teoria Social do
Discurso nos ajudar a desvendar esse segredo.
Nesse ponto, o risco se acentua, pois alm de ele j existir, em razo da natureza dessa
prtica, entra a a represso policial, a servio da lei. Inclusive fui pro presdio, duas vezes,
fazer umas visitas l, comer sopa do governo (PAGO). A prpria relao desses/as jovens
com a polcia, que para eles/as uma inimiga mortal, tambm sugere uma guerra.

FOTO 09 Fotografia copiada do orkut de MEGA outubro 2010


http://www.orkut.com.br/Main#AlbumZoom?uid

O risco est, intrinsecamente, vinculado transgresso. Pereira (2010, p. 155) afirma


que a conduta de risco constitui tambm outra maneira de transgredir uma vez que desejam
ultrapassar as barreiras impostas pelas determinaes sociais, parecendo ser o risco a
principal transgresso que esses jovens procuram. Essa dinmica de criao dos riscos, em
lugar de inibir, excita, produz adrenalina, e vai conceder o reconhecimento ao pichador que
melhor conseguir superar os desafios.
Eu, caramba, doido, se essa bala pega em mim, caramba, caramba,
caramba. Cheguei em casa, a primeira coisa que eu fiz foi ligar o chuveiro e
ficar debaixo do chuveiro. Caramba, que doideira, que doideira, que
doideira! Eu acho que passei uns quarenta minutos debaixo do chuveiro
refletindo. a minha mentalidade, s fiz sair de casa, fui l pegar o
spray, porque ainda no meio dessa correria eu ainda pensei em entucar o
spray, guardar o spray, passei por ali, e fuc, botei l e continuei nessa
correria. Passei, peguei o spray, passei no centro, entreguei pro ZNOCK.

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E a, o rol? a minha mentalidade! E continuou as histrias (risos!).


muita histria! muita histria mesmo! Essa eu me lembro, que marcou
mesmo o fogo da arma. Imagino pelo tamanho da arma, era um 38, um
revlver grande assim. Ele, p, eu s vi o fogo. Acho que foi Deus que fez
assim na bala na hora! Que ele tava mirando assim e deu o tiro. (PAGO)

Mas nem esse aspecto intimida o grupo. Eu admiro, assim, a adrenalina, a coragem,
mesmo, assim (NAAH). Apesar de toda a represso, repete-se a transgresso, mesmo que
esses sujeitos no saibam, exatamente, o que esto transgredindo, j que vrios fatores se
mesclam nas suas atitudes. No h, portanto, um motivo nico e determinado para isso. O que
h, mesmo, so contradies. As afiliaes culturais juvenis guardam, porm, contradies
internas, nuanas diversas, toda uma srie de dubiedades intrigantes (FREIRE FILHO, 2005,
p. 148).
Em lugar de conteno dessas prticas, h uma persistncia desses sujeitos na criao
de novos grupos.
Todo dia, no, mas sempre aparece uma sigla nova. assim, , da LPE,
apareceu LPA, LPP, LPL. Da OPZ, apareceu OPC, OPI, OPM. Tem sigla
que hoje em dia eu vejo, assim, no sei nem, algumas, o significado de
algumas nem conheo. Na minha poca eu conhecia todo mundo.Hoje em
dia tanta coisa nova que eu nem, no sei nem algumas, o significado de
algumas siglas. A foi criando depois da LPE, OPZ, e MMS, a criaram,
criou-se LPA, LPO, OPC, MUS, MUS tambm que s das meninas.
(INSANA)
Todo dia aparece um que d um rol ou outro e para, ou depois ele muda
de nome, ou depois ele desiste, enfim, vai e vem, n, pichadores. , alguns
continuam, mesmo, tm prazer em fazer. (NAAH)

Por que essa proliferao? Que sentido faria para esses/as jovens/as pertencer a essa
sociedade? Ser que as histrias de vida responderiam? A condio adolescente apontaria
para a primeira causa dessa escolha. Mas apenas ela no suficiente para explicar esse
fenmeno.
No comeo da minha adolescncia eu fui meio rebelde. Meio roqueira, e
nunca gostei, assim, dos padres de roupa que minha me e minha av
gostaram. [...] Teve uma poca na minha vida que eu s gostava de usar
camisa pintada por mim. Eu achava que era como se meu peito fosse um out
door pra o que eu pensava. [...] O comeo da minha adolescncia foi desse
jeito, meio revoltada com a vida. (INSANA)
Na adolescncia, fiquei encrenqueira, fiquei dando trabalho, fiquei
respondona, desobediente (risos!), fiquei realmente bem diferente do que eu
era quando pequena.Foi uma adolescncia bem complicada, daquela de
tirar o juzo de qualquer me. (NAAH)

Haveria tambm a influncia dos amigos para essa iniciao, mas tambm a admirao
desses jovens por outros que obtiveram notoriedade nesse contexto. De acordo com Rezende

43

(2002, p. 146), h uma contiguidade entre os valores da sociabilidade e da amizade, sendo a


primeira o alicerce para a constituio de vnculos afetivos. As amizades que eu consegui no
grafite e no movimento hip hop, eu no vendo de jeito nenhum (ZNOCK MORB).
Segundo as histrias de vida, tambm muito importante o aspecto do prazer que essa
prtica proporciona aos seus adeptos, sendo determinante para que ela se efetive. Tem outras
coisas envolvidas. Tem o prazer de fazer, tem aquela coisa de, p, sentimento. [...] uma
coisa... mais do que chegar e pintar, t certo? (ZNOCK MORB).
Assim, a experincia de pichadores/as e grafiteiros/as, mediada pelo segredo,
constitui-se a partir da mescla de muitos elementos, sugerindo a fora identitria da sociedade
secreta na autoafirmao desses jovens. O estar junto significa para eles a possibilidade de
se apresentar com mais autonomia, mesmo que essa se limite ao contexto intragrupal. Por
outro lado, esses laos comunitrios lhes permitem a visibilidade, j que, no contexto mais
macro, as assimetrias, em vrias esferas, os tornam invisveis (SOARES, 2004). O desejo de
notoriedade nada mais que o de inverter sua condio de anonimato social, mesmo que,
paradoxalmente, esse desejo se realize, em segredo, no anonimato.
A construo discursiva desses jovens suscita questes referentes identificao deles
com essa sociedade, mas tambm representao dela em seu sistema conceptual. Os
significados identificacional e representacional marcam muitos momentos de seu discurso. O
significado representacional enfatiza a representao de aspectos do mundo fsico, mental,
social em textos [...]; o significado identificacional, por sua vez, refere-se construo e
negociao de identidades no discurso, relacionando-se funo identitria (RESENDE,
2006, p. 53).
Essas podem ser identificadas, por exemplo, pela sua escolha vocabular. Palavras
como comando, queimar, periferia, grapicho, piche, point, rol, crew, tag, spray passam a ter
sentidos ampliados, profundamente vinculados ao sentimento de pertena e constituio
desses sujeitos no universo da cultura de rua.
Exemplo desse sentimento de pertena que alguns deles chegam a tatuar a marca do
seu grupo no corpo, como veremos na foto abaixo, coletada na pgina do orkut de MEGA,
que membro de outra crew campinense ATACK BOMB.

44

FOTO 10 Fotografia copiada do orkut de MEGA setembro de 2010


http//www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=10162845907402648153

A tatuagem uma marca registrada produto do gueto , e representa o orgulho desse


jovem por pertencer a essa sociedade, mas tambm seu compromisso com ela por toda a vida,
o que se confirma pela legenda que esse jovem escreveu abaixo dessa foto: t u fim.
Interessante que na prpria imagem vemos a tag MEGA repetida, de duas formas
pichao, a primeira, e bomb, a segunda , numa referncia s duas prticas pichao e
grafite. Tambm, no bomb, na primeira e na ltima letra da palavra MEGA, podemos
identificar o smbolo $, do cifro, o que sugere que o produto by gueto tem valor, inclusive,
para o mercado.
Entre prtica e discurso, porm, permanece o segredo, sendo mantido todo o
investimento de proteo a ele, para que sejam resguardadas as identidades de seus membros,
a sua esfera de intimidade, assim como alguns elementos de sua prtica. uma cultura que a
gente chama cultura de underground, muito esse foco underground, underground,
underground. [] Aquela coisa, mesmo, que veio dos pores, ela tava nos pores porque a
sociedade no aceita (ZNOCK MORB).
A noo do segredo tem sido relevante tanto para a Sociologia quanto para o estudo
das culturas (MALDONADO, 1999, p. 217), em razo de se constituir como um dos
fundamentos da vida em sociedade. De acordo com essa autora:
Os estudos sociolgicos do segredo se inauguram com os pressupostos e os
estudos de Georg Simmel e se estendem no mbito terico e na pesquisa
disciplinar. Tanto na sua vertente sociolgica como na antropolgica, os
estudiosos das diferentes formas e ritmos que assume a disseminao da
informao em quadraturas sociais diversas, partem do pressuposto bsico de
que a ocultao por meios considerados "positivos" ou "negativos" um

45

feito essencialmente humano, e um dos fundamentos da vida social. Sem o


segredo, pressupondo-se a possibilidade da transparncia absoluta nas
relaes interpessoais tanto ao nvel individual quanto ao nvel societrio,
estas seriam inviveis (SIMMEL, 1950 apud MALDONADO, 1999, p. 219)
(grifos da autora)
O segredo cria barreiras entre os homens, mas ao mesmo tempo traz baila o desafio

tentador de romp-lo por boataria ou por confisso e esse desafio o acompanha todo o
tempo (SIMMEL, 1999, p. 222). Em relao s crews de pichao e de grafite, alm de se
estabelecer como um elemento viabilizador do processo de interatividade social, passa a
compor a prpria dinmica comunicativa de tais grupos, assumindo assim significados
pertinentes cultura de rua.
Referindo-se ao segredo, Simone Maldonado assim se expressa:
Do ponto de vista sociolgico, a importncia e as tonalidades culturais que o
binmio ocultao-revelao assume em cada configurao histrica e local,
superam a valorao moral que delas se possa fazer. Sociologicamente, mais
do que um contedo, um objeto unicamente de ocultao que uma vez
revelado se esvaziasse e perdesse o sentido, o segredo toda uma dinmica
comunicativa, feita de retricas, de silncios, de transparncia, de opacidade
e tambm de certas formas de revelao, estando entre seus possveis
mecanismos, a mentira e a malversao. (MALDONADO, 1999, p. 3) (grifo
da autora)

Embora consistindo numa categoria de contedo universal, dependendo do contexto


cultural em que se encontra instaurado, assume conotaes especficas adaptadas quela
cultura. No que diz respeito, mais particularmente, s prticas das crews de pichadores e
grafiteiros, a funcionalidade e o simbolismo dessa ocultao remetem para o carter
subversivo que tem inspirado, desde o princpio, a constituio de tais grupos, mas tambm
para a garantia de seus interesses e valores coletivos. O uso do segredo como uma tcnica
sociolgica, como uma forma de ao sem a qual em termos do social no se poderiam
alcanar certos fins, parece bem claro (SIMMEL, 1999, p. 20).
Tendo, pois, o segredo no cerne de suas atividades, os/as jovens da sociedade secreta,
partindo de experincias no sentido thompsoniano , delimitam um conjunto de prticas,
regras, smbolos prprios, indumentria, comportamento, que os possam caracterizar e que
impliquem num sentimento de pertena, na construo de uma identidade coerente com os
valores defendidos pelo grupo cultural a que se vinculam.
Cada cultura se caracteriza [] por uma certa configurao, um certo estilo,
um certo modelo. O termo implica a idia de uma totalidade homognea e
coerente. Toda cultura coerente, pois est de acordo com os objetivos por
ela buscados, ligados a suas escolhas, no conjunto de escolhas culturais
possveis. (CUCHE, 1999, p. 77-78)

46

Uma outra vinculao ao segredo se estabelece a partir da funo poltica exercida por
alguns membros desses grupos, embora no anonimato. Nesse aspecto, no mais a brincadeira,
mas a denncia. Para exercer sua crtica sociedade, no podendo faz-lo abertamente, nem
tendo espao para tal, expressam-se em segredo.
Assim, por fora de posto de sade fechado, a pessoa colocava: Um absurdo!
Coisas assim, protestava com o geral, com o governo, com poltico, com
tudo o que me incomodava. [...] A fiz meus protestos, eu queria mais aquilo
ali, eu queria mostrar a todo mundo o que eu pensava, que tambm tinha um
monte de gente que concordava comigo, mas a gente, no sei como falar, a
gente no, no no, a televiso no aberta pra todo mundo, a gente no
tem meio nenhum de falar o que a gente tem vontade, ento foi o jeito
que eu encontrei. (INSANA)

At na campanha poltico-partidria, deste ano de 2010, para governador da Paraba,


alguns grupos se posicionaram em relao aos candidatos. Num muro da Rua Sebastio
Donato, no Centro desta cidade, encontramos a frase: operao X na cara. Vote nulo.
Encontramos ainda a propaganda de um dos candidatos a essa eleio queimada com um X
sobre a foto dele, semelhantemente ao procedimento desses jovens em relao aos grupos
rivais, alm da palavra capitalista, abaixo da referida foto. Tambm num muro interno do
CUCA, encontramos a frase: Coragem, dinheiro e bala. Essa pro prefeito 100 cultura, ao
lado de uma imagem de Lampio. Vimos, ainda, em algumas pginas do orkut, de alguns/mas
desses/as jovens, a declarao explcita de apoio a um candidato, inclusive com fotos ao lado
deste.
O discurso que eles/as constroem sinaliza para um descontentamento com questes
que a sociedade no lhes responde. Na atitude de exporem a periferia, de onde advm, como
tambm o produto que dela se origina, podemos identificar a crtica s esferas hegemnicas.
Essa crtica se instaura em um novo suporte miditico o muro ou qualquer espao
que lhe equivalha como um novo espao para a repolitizao, uma vez que na poca atual,
instauraram-se mudanas tambm no que diz respeito poltica.
Muitas dessas micropolticas originam-se em setores, at ento, perifricos que
interatuam com as mais distintas expresses e vivncias socioculturais. A novidade mais
importante da cultura brasileira na ltima dcada foi o aparecimento da voz direta da periferia
falando alto em todos os lugares do pas. A periferia se cansou de esperar a oportunidade que
nunca chegava, e que viria de fora, do centro. (VIANNA, 2007)
Em seu manifesto, publicado originalmente para o lanamento do programa Central da
Periferia e republicado na Revista Raiz, o socilogo Hermano Vianna defende que em lugar
de sumir, as periferias resistem - e falam cada vez mais alto, produzindo mundos culturais

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paralelos (para o espanto daqueles que esperavam que dali s surgisse mais misria sem
futuro), onde passa a viver a maioria da populao dos vrios pases, inclusive do Brasil
(VIANNA, 2007).
A fora reivindicatria de grupos de pichadores/as e grafiteiros/as evidencia novos
atores urbanos em cujas mos, o muro, que sempre teve como funo hifenizar, transmuta-se,
para servir, tambm, de ponte para a defesa de valores e para o questionamento do status quo,
difundindo novos contedos poltico-culturais. Assim, segundo Novaes (2007, p. 105),
vislumbra-se um novo e possvel caminho para a construo do espao pblico. E nele,
destaca-se a juventude. Completa, ainda, essa autora:
preciso atentar para novas apropriaes e linguagens que renovam a
poltica e (re)inventam possibilidades do(a) jovem de hoje estar e agir no
espaco pblico. [...] Ou seja, falar da participao juvenil significa
ultrapassar os lugares tradicionais da poltica. (NOVAES, 2007, p. 101)

Por outro lado, mesmo que esse espao venha servindo de palco para a denncia,
caracteriza-se, igualmente, pelo forte apelo de uma nova esttica de sociabilidade desse grupo
juvenil urbano. Segundo Vianna, (2007) as novidades nas produes dos mundos culturais
perifricos muitas vezes so mais interessantes tambm esteticamente.
De uma forma ou de outra, a essa funo poltica e/ou esttica, o segredo continua
subjacente, atravs do anonimato desses sujeitos. Conforme j afirmamos, suas reivindicaes
so expostas, mas os sujeitos que as produzem ocultam-se, sendo essa atitude parte
constitutiva do segredo que, por sua vez, interfere na formatao da prpria cartografia
urbana, contribuindo para a ressignificao de espaos e territrios ocupados por
pichadores/as e grafiteiros/as, embora mantendo como ponto de referncia a periferia,
representada pela sociedade secreta que constituem.
O segredo consiste, ainda, em muitos casos, num componente indispensvel escrita
da pichao e do grafite, uma vez que seus significados s podem ser decifrados pelos que
dominam os cdigos utilizados nessas produes. O efeito da leitura dessas escritas vai ecoar
mais profundamente nos sentidos construdos pelos praticantes da pichao e do grafite,
porque esse consumo se torna mais efetivo pelos conhecimentos compartilhados pelo grupo e
pela representao desses conhecimentos na viso de mundo desses sujeitos e na sua ao
sobre esse mundo. Para os leigos, no passam de meros rabiscos ininteligveis.
Isso se confirma em um fragmento da narrativa de histria de vida de NAAH, quando
ela afirma que a tag, ela feita de uma forma que a gente entende, mas nem todo mundo,
uma pessoa comum que no interage, no se interessa, vai olhar e no vai saber nunca, porque
que t ali, n?

48

Conforme constatamos, a esfera do segredo contempla tambm smbolos, discursos e


aes que se revelam apenas aos iniciados dessa sociedade secreta, constituindo-se,
provavelmente, na primeira regra para o funcionamento desses grupos.
O nico espao em que essa esfera do segredo se torna desestabilizada o
ciberespao, apesar de essa desestabilizao ser apenas aparente. Embora a sociedade em
rede (CASTELLS, 1999) tenha acrescentado ao contexto atual, novas prticas, e,
consequentemente, favorecido a implementao de redes virtuais de sociabilidade,
publicizadas para o mundo inteiro, no que diz respeito pichao e ao grafite, observamos
que essa condio no implica, necessariamente, na eliminao do carter secreto que subjaz
as suas manifestaes, temtica essa que abordaremos no item a seguir.
1.4 O segredo das redes na rede

1.41 A sociedade em rede


O paradigma contemporneo das tecnologias da informao tem favorecido e
ampliado, significativamente, as possibilidades interativas pela emergncia das formas
alternativas de redes de afinidades em toda a estrutura social. Essas, segundo Castells (1999,
p. 497), constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difuso da lgica de
redes modifica de maneira substancial a operao e os resultados dos processos produtivos e
de experincia, poder e cultura.
A tecnologia hoje uma das metforas mais potentes para compreender o
tecido redes e interfaces de construo da subjetividade [...] Os sujeitos
com os quais vivemos, especialmente entre as novas geraes, percebem e
assumem a relao social como uma experincia que passa fortemente pela
sensibilidade (MARTN-BARBERO, 2008, p. 20-21)

Assim sendo, em relao sociedade secreta, esse ambiente virtual tem expandido a
capacidade de comunicao e de criao desses jovens, j que as comunidades e sites de
relacionamento, nele instauradas, acabam por se constituir como uma espcie de extenso da
comunidade real, destinando-se, igualmente, persecuo de objetivos comuns aos membros
desses grupos, como tambm ao favorecimento de uma maior interatividade entre os que
aderem a essas redes sociais. Castells afirma que o que a Internet faz processar a
virtualidade e transform-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede, que a
sociedade em que vivemos (CASTELLS, 2003, p. 287).

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Pichadores/as e grafiteiros/as navegam na rede mundial de computadores, na qual


fronteiras espaciais, temporais, geogrficas, geracionais, socioculturais, dentre tantas outras
j no so to significativas, no apenas como uma simples forma de agregao eletrnica,
mas tambm como uma forma de fortalecimento dos vnculos de afinidade, os quais se
direcionam por uma experincia comum a eles/elas, como confirmam as frases escritas, num
muro campinense e no perfil do orkut de MEGA11 um dos atores da cultura de rua ,
respectivamente: A RUA ME ENSINOU A SER QUEM SOU e EU NUMKA TIVE
BICICLETA OU VIDEO GAME! HOJE EM DIA QUERO O MUNDO IGUAL CIDADAO
CANE...
No item a seguir, abordaremos a emergncia de redes de sociabilidade de
pichadores/as e grafiteiros/as na rede mundial de computadores, as quais tambm trazem o
segredo como elemento definidor dessas novas identidades.
1.5 A sociedade secreta virtual

Em virtude dessa potencializao de redes virtuais cumunitrias, as prticas culturais


da pichao e do grafite se conectam a uma infinidade de outras prticas locais/globais, num
processo dialgico simultneo e ininterrupto. Alm do mais, o ciberespao possibilita a esses
sujeitos a expressividade de suas experincias, atravs de um discurso profundamente
marcado por elementos da esfera social na qual interatuam.
Exemplo disso o site de relacionamento orkut que, de acordo com Mocellim (2007,
p. 103),
O Orkut uma social network (tambm conhecida como community
websites, e frequentemente traduzidos como rede sociais ou redes de
relacionamentos) na Internet filiada empresa Google Inc. O Orkut foi
criado por Orkut Buyukkokten, engenheiro turco atualmente residente nos
Estados Unidos, doutor em cincia da computao pela Universidade de
Stanford - em janeiro de 2004 com o objetivo de ajudar seus membros a criar
novas amizades e manter relacionamentos.

Durante o percurso da nossa pesquisa, conforme informado na introduo, desta tese,


algumas vezes, recorremos a textos presentes nas pginas do site de relacionamento ORKUT,
de pichadores/as e grafiteiros/as, como tambm outros eventos lingusticos constantes nas
pginas de comunidades e blogs de grupos ou crews, e constatamos que essas redes virtuais se
constituem numa extenso das redes de sociabilidade reais, constituindo-se como elemento

11 MEGA membro da crew ATACKBOMB/ZO, da Zona oeste de Campina Grande.

50

expansor da comunicao entre pichadores/as e grafiteiros/as de distintas zonas da cidade de


Campina Grande, como tambm de distintas esferas do globo.
Nesse ambiente, que funciona como espao complementar de produo, distribuio e
consumo das prticas da cultura de rua, h uma exposio do perfil de sujeitos e grupos,
atravs da indicao de dados e preferncias pessoais, de fotos, como tambm de textos que
representam as experincias desses sujeitos e grupos, e que evidenciam o discurso
contestatrio que tem inspirado e constitudo tais prticas.
As duas fotos abaixo, copiadas da pgina do orkut de MEGA, exemplificam o que
afirmamos no pargrafo anterior sobre o binmio ocultao/exposio. Em ambas, ntida a
contradio anonimato/publicizao, a ser discutida no item 2.1, do captulo II, desta tese.

FOTO 11 Fotografia copiada do orkut de MEGA


http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=1016284590740264815

FOTO 12 Fotografia copiada do orkut de MEGA


http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=10162845907402648153

51

Outro aspecto a ressaltar que, embora esse jovem exponha seu perfil na rede mundial
de computadores, inclusive adicionando suas fotos, em nenhum momento aparece seu nome
verdadeiro. Em lugar dele, utilizado seu pseudnimo MEGA.
Ainda quanto s fotos acima expostas, ambas esto coerentes com o prprio nome do
lbum em que se encontram inseridas: PROIBIDO. Essa palavra remete a toda uma histria
de prtica transgressora da pichao e do grafite. No proibido, guardado o segredo. Na
primeira foto, expe-se a prtica, considerada crime, pela legislao, mas os sujeitos
continuam secretos aos no iniciados na sociedade secreta. Na segunda, a mscara, o capuz
e o soco ingls simbolizam o binmio violncia/clandestinidade, mas o segredo sobre quem
os utiliza permanece.
De acordo com Fairclough (2001), no nvel textual do discurso, a escolha vocabular
revela a intrnseca relao entre materialidade lingustica e materialidade social. A carga
semntico-ideolgica que impregna o vocbulo que d nome ao lbum diz muito sobre as
relaes conflituosas entre pichao/grafite/sociedade, a serem discutidas no captulo II, desta
tese.
Aparentemente, a exposio dos perfis de pichadores/as e grafiteiros/as deveria
eliminar o carter secreto da sociedade constituda por eles/as, mas, na verdade, como essa
publicizao se d, virtualmente, o segredo a tambm se estabelece como elemento definidor,
como marca identitria desses sujeitos e dos grupos a que eles se vinculam. Alm do que a
prpria condio de virtualidade, se no impede, ao menos dificulta tal identificao.
A fim de melhor fundamentarmos, empiricamente, nossa constatao de que as
comunidades virtuais so uma extenso das materiais, apresentaremos exemplos de pginas
do site de relacionamento orkut, nas quais so publicizados perfis desses/as jovens, como
tambm de comunidades virtuais de crews que atuam na cidade de Campina Grande. Quanto
s crews, optamos por OPZ e UZS, em razo de serem as mais antigas e as mais expressivas
nessa atividade, no recorte espacial desta pesquisa, como tambm porque os trs meninos com
os quais realizamos as entrevistas de histria de vida pertencem a tais grupos.

Logomarca da OPZ
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=16927751725044848034

52

Logomarca da UZS
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=4689529564380136895

Optamos, ainda, por apresentar a pgina, no orkut, da comunidade ATACK BOMB


ZONA OESTE, uma das crews mais atuantes atualmente, nesta cidade, como tambm o
perfil de um dos seus membros MEGA.
Sobre a crew OPZ, identificamos o fotolog http://www.fotolog.com.br/opz, em cuja
abertura aparece o seguinte texto: 11 anos - Organizao Pixadora do Zepa "Seja pelo
comando. O comando ser por vc", alm de um arquivo de 131 fotos das intervenes da
OPZ nos muros desta e de outras cidades, publicadas nesse espao virtual, desde 6 de Maio de
2004 at esta data. Para cada foto foi escrita uma legenda explicativa, com identificao do
local e/ou data de produo, com palavras de ordem e estmulo s intervenes urbanas desse
grupo, e na maioria delas a referncia famlia OPZ, como por exemplo:
16/05/2010 - Ahaaaa.. parceiria confirmada.. ns mais uma vez. Moleque
Sinistro, parceiro de rol.. E o Intil, t.. nem se fala.. detonando a
madrugada .. Eu estava presente mas no desfrutei da tela.. Mas fazer o que?
Salve aos meus dois irmos aqui citado, e a toda a famlia OPZ!!!!
by: pSiCo'S12

Identificamos tambm a pgina da comunidade dessa organizao no orkut,


reproduzida a seguir:

EXEMPLO 01
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=4045074620007105442

Opz - *Org.Pixadora do Zepa*


Angelina > dj joh >
Opz -

** SEJA PELO COMANDO, O COMANDO SER POR VC **


Organizaao Pixadora Do Zepa....
Com Avassalador investimento nas areas do graffiti....
Nosso COMANDO foi criado no ano de 1999 pelos integrantes PAGAO, MALA, e RABOK

12

Segundo ZNOCK MORB, em sua narrativa de histria de vida, PSICO'S um coletivo da OPZ. Um coletivo
uma interveno feita por vrias pessoas, com uma nica tag, como se esta representasse uma nica pessoa.

53

no intuito de estabelecer o MAIOR grupo de pessoas que nao vem no pixe uma forma de ser
subversivo, mas sim uma forma de mostrar que arte pode estar no alcance de qualquer pessoa
que se interesse
Estamos de portas abertas Para qualquer pessoa que queira saber mais sobre nossa
ideologia...basta nos procurar na Zona Leste da cidade
Vou Ser Franco e direto...NAO ACEITAMOS NENHUMA PESSOA QUE NAO SE
IDENTIFIQUE COM NOSSAS METAS...entao bom avisar que aqueles que se
aproveitarem de nosso grupo para atividades ilicitas...SER PUNIDO das formas mais
severas que podemos alcanar...
REAFIRMANDO que nao estamos de forma alguma incitando NINGUEM a sair pichando a
cidade...vai quem quer e tem coragem...
Dito Isso...
pra Resumir...
*O COMANDO EH NOIS MAN*

Opz Copyright 1999 - 2008


All Rights Reserved

local: Campina Grande, Paraiba


Brasil

Ainda sobre essa crew, identificamos o que se afirma ser a sua comunidade
oficial,cuja pgina no orkut tambm se encontra reproduzida a seguir:

EXEMPLO 02
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=17122539

OPZ DA ZONA LESTE [OFICIAL]


Incio>Comunidades>Cidades e Bairros > OPZ DA ZONA LESTE OFICIAL
Descrio:

essa comunidade eh p kem eh ou jah foi da mais considerada, mais ativa,


mais respeitada e mais DOIDA galera de pixacao ki jah apareceu aki na
paraiba!
ah...e lembrando ki nossos fans ki sempre falamerda por meio de internet
pod tbm entrar e falar o q kiser, msm pq nos soh keremos de invjosos sua
raiva e vontade de ser OPZista!
simplismente o COMANDO!
aew galera....
racha da opz bombando geral...
km for xegado da galera eh soh falar ai q nois joga...
km kiser marcar amistoso eh nois tb meu vey..
soh dzr data e hora...
hehehehe.....
espero sua resposta....

54

OPZ - O COMANDO DA ZONA LESTE


idioma: Portugus (Brasil)
categoria: Cidades e Bairros
dono: Opz - *Org.Pixadora do Zepa*
moderadores: slash, WESLEY HENRY, LoReNna wesley
tipo: moderada
privacidade do contedo: aberta para no-membros
local: Zeppa City, NeW EngLanD, 51, Antgua e Barbuda
criado em: 15 de julho de 2006
membros: 56

Em relao s pginas do orkut sobre a OPZ, acima expostas, pudemos observar que
a primeira afirma ser essa uma crew de grafite (Com Avassalador investimento nas areas do
graffiti...), enquanto a segunda afirma ser essa uma crew de pichao (essa comunidade eh p
kem eh ou jah foi da mais considerada, mais ativa, mais respeitada e mais DOIDA galera de
pixacao13 ki jah apareceu aki na paraiba!). Nesses casos, fica ntida a indefinio sobre o que,
de fato, seja grafite e o que seja pichao, conforme discutiremos no item 2.4, do captulo II,
desta tese, motivo pelo qual afirmamos que deixaremos a palavra final com esses/as jovens
que usam os muros da cidade de Campina Grande como suporte para sua escrita. Persistindo
a dificuldade conceitual, reiteramos que a verso deles, portanto, ser a nossa verso.
J quanto UZS crew, em todos os dados coletados nas pginas do orkut sobre esse
grupo, encontramos a afirmao de que esta se trata de uma crew de grafite, como podemos
ver na sua home page http://www.uzscrew.hpg.com.br/acrew.html em cuja abertura se
encontra o seguinte texto:
A uzs uma crew de graffiteiros campinenses que vem fazendo um bonito
trabalho nas periferias de campina grande.A uzs foi criada em setembro de
2003 com o intuito de mostrar as diferenas entre a pixao e o graffiti e
mostrar a sociedade uma forma de arte moderna e contempornea. (grifos
nossos)

Tambm na pgina da comunidade da UZS no orkut reproduzida abaixo ,


ocorre o mesmo:
EXEMPLO 03
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=17574949

UZS crew
Incio>Comunidades>Artes e Entretenimento> UZS crew descrio:
13

O uso de pixao (e, s vezes, pixo/pixe), em lugar de pichao, tambm uma forma de transgredir at
mesmo a norma ortogrfica. Esse uso prprio dos textos de pichadores/as e grafiteiros/as.

55

COMUNIDADE OFICIAL
A uzs uma crew de graffiteiros campinenses que vem fazendo um bonito
trabalho nas periferias de campina grande.a uzs foi criada em setembro de
2XX3 com o intuito de mostrar as diferenas entre a pixao e o graffiti e
mostrar a sociedade uma forma de arte moderna e contempornea. (grifos
nossos)
idioma: Portugus (Brasil)
categoria: Artes e Entretenimento
dono: moderador #
moderadores: sagaz-uzs-, rene(z-nokmorb), Tudo Nosso!
Tipo: pblica
privacidade do contedo: aberta para no-membros
local: campina, paraiba, 581061, Brasil criado em: 23 de julho de 2006
membros: 90

Ainda, sobre a UZS, identificamos a pgina da diretoria da comunidade, reproduzida a


seguir:

EXEMPLO 04
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=4164057

UZS Crew - Diretoria


Incio>Comunidades>Artes e Entretenimento> UZS Crew - Diretoria
descrio:
"Respeito pra quem tem!"
Comunidade destinada aos membros integrantes oficiais da UZS Crew, com
a finalidade de comunicar sobre as produes e os rols.
Obs: S sero aceitos na comunidade, membros integrantes da UZS Crew.
Idioma: Portugus (Brasil)
categoria: Artes e Entretenimento
dono: Tudo Nosso! Hip Hop Wear
tipo: moderada
privacidade do contedo: apenas membros
local: Campina Grande, Paraba, Brasil
criado em: 13 de novembro de 2007
membros: 11

56

Na descrio dessa pgina da diretoria da UZS, o texto Comunidade destinada a


membros integrantes oficiais da UZS Crew, com a finalidade de comunicar sobre as
produes e os rols expressa, explicitamente, que o ambiente virtual se constitui como uma
ramificao da rede de sociabilidade real desse grupo, servindo a primeira aos mesmos
propsitos da segunda. Ocorre, pois, na cibercultura, o mesmo que na comunidade da cultura
de rua: esses sujeitos se renem para a troca de experincias e para a definio de suas
aes/intervenes no espao urbano.
Tratando, agora, da pgina do orkut de MEGA, chamaram-nos a ateno vrios
aspectos textuais adicionados no seu perfil os quais, por sua vez, revelam um nvel de
responsividade a discursos outros, anteriores aos que subjazem a tais textos: o primeiro deles
criao do neologismo bombcity para representar o local de atuao desse jovem, vocbulo
esse que justape a city (representao do territrio local/global) a palavra bomb.
Caso MEGA tivesse optado por definir seu local de ao como a cidade de Campina
Grande, o efeito de sua escolha no seria o mesmo que assumiu a opo bombcity. Essa ,
portanto, um diferencial, tambm uma marca identitria, reforada por toda a carga semntica
e ideolgica potencialmente inclusa nesse neologismo.
Segundo Castells (1999b, p. 22), a identidade consiste num processo de construo
de significado com base num atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais
inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. Para ele,
portanto, a noo de significado diz respeito identificao simblica, por parte de um ator
social, da ao praticada por esse ator. Assim, a escolha de MEGA assume todo um
simbolismo inspirado por sua experincia na cultura de rua, que interfere na sua construo
identitria.
Semelhantemente ocorre no exemplo 02, sobre a comunidade oficial da OPZ, em cuja
pgina aparece, como local, Zeppa City. Neste caso, o foco territorial o bairro Zepa (Jos
Pinheiro) que surge tambm como espao de pertencimento que assume um valor maior que
o espao urbano campinense. Em ambos, a identificao simblica da ao/escolha s pode
ser recuperada pelos sujeitos que compartilham experincias nesse contexto cultural
especfico.
Outro detalhe que merece comentrio a prpria grafia ZEPPA a qual remete tanto a
um estrangeirismo, quanto a uma marca de grife zapping , por exemplo, o que sugere a
interseo local/global propiciada pela sociedade em rede.
O segundo deles foram as duas frases que abrem a pgina, sugerindo, a inicial, a
assimetria social vivenciada por esses e tantos outros sujeitos, e a seguinte, uma apologia

57

transgresso s normas, to ntima das prticas da pichao e do grafite. Por outro lado, na
escolha da primeira, observamos a postura proativa do sujeito que expressa seu desejo de
mudana dessa situao desigual para um mundo igual cidado cane... 14!. Esse um verso
do rap Da ponte pra c, do grupo Racionais MC's com o contedo do qual MEGA
demonstra se identificar. Na escolha da segunda frase de autoria de Bob Marley15 ocorre a
mesma identificao.
Segundo Archard (1999, p. 11) A estruturao do discursivo vai constituir a
materialidade de uma certa memria social. Ambos os exemplos expressam contedos
polticos que se opem aos valores antidemocrticos impostos pela ideologia dominante. O
que os hip hoppers rappers, MC's, pichadores/as e grafiteiros/as dizem, hoje, resultado de
um construto discursivo que configura sua memria, e este se apresenta como uma resposta ao
discurso do sistema contra o qual o movimento hip hop lana sua denncia. Assim sendo, por
trs das escolhas desses textos, ecoam vozes distintas que, dialogicamente, se interseccionam
para que seu discurso possa ser produzido e distribudo a inmeros sujeitos e redes sociais on
line, e consumido por um nmero bem maior de outros sujeitos (possveis interlocutores).
Finalmente, o terceiro aspecto, tambm bastante significativo, foi a adio da letra
integral do rap Pirituba16, do grupo RZO (Rapaziada da Zona Oeste), de So Paulo, cuja letra
aborda temticas semelhantes s abordadas nas frases de abertura do perfil de MEGA, que,
sendo tambm da Zona Oeste, embora de outra cidade, identificou-se com o contedo
expresso no referido rap, em virtude da globalizao tambm dos problemas sociais
(IANNI, 1996, p. 78).
So muitos discursos construindo o discurso contestador da pichao e do grafite. O
interdiscurso, segundo Fairclough (2001, p. 95) a entidade estrutural que subjaz aos
eventos discursivos, na qual se identificam rearticulaes internas entre ordens de discurso
que representam elementos das ordens sociais, e que, por sua vez, configuram a formao
discursiva e ideolgica desses sujeitos.

14

15

16

Traduo do original: Agora eu quero o mundo igual cidado kane, . Referncia ao filme Cidado Kane,
dirigido por Orson Wells (EUA/1941) que trata da histria doempresrio da imprensa Charles Foster kane, o
qual viveu uma vida de luxo.
(http://www.webcine.com.br/filmessc/cidakane.htm)
Robert Nesta Marley foi o responsvel por levar o reggae da Jamaica para o mundo.
(http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u541.jhtm)
http://www.letras.com.br/rzo/pirituba-parte-II

58

A formao discursiva, por sua vez, no consiste numa expresso fechada e estvel
das concepes e valores de determinado grupo social, mas se estabelece como um espao de
entrecruzamento de vrios discursos, em cujo interior so incorporados elementos prconstrudos, formulados alhures prpria formao discursiva.
Observemos, ento, o exemplo seguinte, sobre o qual vnhamos discutindo nos
pargrafos acima, e que ilustra bem essa interdiscursividade:
EXEMPLO 05
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=10162845907402648153
MEGA ORKUT 10/05/09
idade: 19
aniversrio: 11 setembro
local: bombcity!, pb, Brasil
relacionamento: solteiro(a)
eu numka tive bicicleta ou video game! hoje em dia quero o mundo igual
cidadao cane.....!
Se voc obedecer a todas as regras, vai perder toda a diverso (31/05/09)
i nois na ativa... Vrios malucos novamente...
Pirituba assim que ainda a mesma coisa
Quem ouviu j boto f pois a zica t solta
Eu quero v quem vai recorre. Vai resolve
Melhor ento no da sopa. Pode crer
Humilde com a mente afoita. Lngua solta no Rap
Ento cresce. Alto estima na rima. No s a roupa.
Confere quem ensina. Jesus conduz e determina.
Igual aqui na vila. Vila mire ou mirante desde antes
dominantes.
Veraneio cinza a noite. Ou a Blazer de hoje a baratinha de
ontem.
No importa. Sempre incomoda. foda os home.
Se da conde no esconde. Se do Brooklin no se ilude.
Pirituba tem os mano e tem nois. Tem atitude.
Voc j t ligado. Policia no tem d. Voc vai ver que
aquilo.
P p... Em Pirituba na vila castiga sem do. E se nos pega s...
P P
Eu j cansei de ouvir morte aqui morte ali. Ta cada vez pior...
P P
Ento confira. Meu Rap assim. Sentimento na rima

59

Igual ali na ferradura a vida dura e insegura.


Me lembro do tempo da fartura. Que eu no entendo. Saudade me
perturba.
Cad os mano do role morreu porque? Voc vai ver no tem
porque.
Sempre o mesmo motivo. Porque governo que fod. Poder e
dinheiro
Bocada puteiro futebol. Cobre o direito dos homens como um
lenol
Novela das sete cobre o das mulheres. Sistema sabe onde investe
Confere confere. S tem vaga pra trampar na policia militar
Corrupo vai aumentar. Os mano vai arrebentar
Ento como esperar um bom lugar. Assim no d...
Os mano as mina skatista ladro unio
Esta sendo a chave do problema. Sem cime sem inveja sem
intriga
Enfrenta. A policia ensinou que a justia sem valor
Somente que te ama por voc tem amor. Nosso Senhor ento
assiste
Um filme triste. Periferia assim mesmo ainda resiste.
Periferia assim mesmo ainda resiste.
Em Pirituba na vila castiga sem do. E se nos pega s... P P
Eu j cansei de ouvir morte aqui morte ali. Ta cada vez pior...
P P (2x)
Vejo na rua assim que Vacilou no para em p.
Vrios manos vo na f. muita treta
E o mundo lindo e perigoso como um alapo.
Trago ou sinto a falta de vrios irmos
Se liga na misso coisa do corao. Sofrimento traz a razo.
No fim quem vai rir ri melhor Periferia segue ento.
E quem eu sou. Eu no sei no importa. O que importa o
respeito.
Voc chegou respeitou se fumou eu no sei mais eu respeito.
Eu admiro os ladro tudo irmo mais no crime eu no penso.
Ento vou seguir por ai sempre assim humildo daquele jeito.
Malandro e no ladro. Aqui Helio. Eu tenho a soluo
Bem melhor. Vou correr pelo certo. Vou correr pelo RZO.
Sandro Dj Cia. To contigo naquela idias moro Truta.
O direito dos irmo tem que ser respeitado.
O direito de ir e vir sem ser descriminado.
Mano eu queria um dia te trombar voc e sua mina sossegada.
Assim que . Pode crer. Mi que compra. Mi gosta ganha
dinhero.
Com nis mesmo como ser feliz. Mano Casco me diz:
Sabotage Rap num viaje.

60

Apenas a anlise dos discursos que permeiam esse rap j daria um captulo desta
tese. No discurso da sociedade secreta h o interdiscurso do rap suscitando a resistncia:
Periferia assim mesmo ainda resiste. Essa heterogeneidade discursiva renderia muitas teses,
mas como nossos objetivos investigativos so outros, gostaramos de frisar, unicamente, o
investimento sociodiscursivo do movimento hip hop, a ser discutido no item 2.3, do captulo
II, desta tese, tambm atravs das letras de rap, as quais mantm um olhar atento s
contradies polticas, sociais e tnicas, resultando numa proposta de agncia social, mas que
tambm incentiva, algumas vezes, a violncia. Assim sendo, os sujeitos que vivenciam as
experincias suscitadas por tais letras se identificam com elas e assumem os valores
defendidos por esse movimento como seus.
Retomando nossa exemplificao, tambm a descrio da comunidade ATACK
BOMB ZONA OESTE, de propriedade de MEGA, nesse site de relacionamento,
arremata as observaes feitas por ns at aqui, conforme poderemos observar abaixo:

EXEMPLO 06
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=33287433

ATACK BOMB ZONA OESTE


Incio>Comunidades>Artes e Entretenimento> atack bomb..zona
oeste
descrio: eh nois nessa poha sempre nois prevalesse
por q somos verdadeiros.....
fudendo o sistema eh nois!
as aliadas sao essas;[erros.natal][loukos.natal];representa!
Idioma: Portugus (Brasil)
categoria: Artes e Entretenimento
dono: M E G A 0 5 ! atackbomb!Z/O
tipo: pblica
privacidade do contedo: aberta para no-membros
local: cg, pb, 581070, Brasil
criado em: 31 de maio de 2007
membros:25

Conforme vimos, o prprio nome da comunidade consiste num enunciado metafrico


que remete a uma postura blica de acionamento de foras, para uma batalha social que se
efetiva na interao PICHAO/GRAFITE/SOCIEDADE. Por existir represso contra essa
prtica, os/as pichadores/as e grafiteiros/as, sentindo-se acuados/as, rebelam-se atravs do
discurso, como forma de protesto e de resistncia fudendo o sistema eh nois! Tambm a

61

citao das crews aliadas [erros.natal][loukos.natal]; representa! sugere uma estratgia de


guerra.
Em seu livro Metaphors we live by, Lakoff e Johnson (1980) defendem que as
metforas participam intensamente da vida humana, sendo no apenas lingusticas, mas
tambm atitudinais e posturais, ou seja, sendo uma forma de conceituao do mundo,
proveniente da cultura, da constituio biolgica e das experincias humanas. Se ocorrem
metforas lingusticas, naturalmente, essas j existiam no sistema conceptual do homem.
Fairclough (2001, p.241), por sua vez, afirma que as metforas estruturam o modo
como pensamos e o modo como agimos, e nossos sistemas de conhecimento e de crena, de
uma forma penetrante e fundamental.
No exemplo acima, evidencia-se, portanto, um enunciado metafrico que revela um
esquema mental construdo socioculturalmente. A memria que, subliminarmente, formata o
discurso e que est associada linearidade discursiva, constitui a interdiscursividade, sendo,
pois, os discursos configurados por diferentes tipos de discursos, e sendo essa configurao
de fundamental importncia para a anlise desse processo produtivo. No captulo V, desta
tese, voltaremos a tratar das metforas no discurso de pichadores/as e grafiteiros/as.
nas experincias sociais, que esses sujeitos introjetam o conceito de desigualdade, de
discriminao, reproduzindo-o atravs do jogo metafrico que, por sua vez, implica num
estmulo crtica direcionada regulao social e s desigualdades. Na frico sociocultural,
na experincia, eles interiorizam determinados conceitos originados das relaes conflituosas
na sociedade, exteriorizando-as, no seu discurso, sob a forma de metforas, como ocorre em
relao ao enunciado acima referido, no qual h todo um conjunto de implcitos e de
significaes, s recuperveis, em parte, a partir do contexto no qual ele se insere: uma
sociedade segregadora que no responde as principais questes desses jovens.
Maingueneau (1989, p. 115) afirma que de forma mais geral, a toda formao
discursiva associada uma memria discursiva, constituda de formulaes que repetem,
recusam e transformam outras formulaes. Memria no psicolgica que presumida pelo
enunciado enquanto escrito na histria. (grifos do autor). A memria que, subliminarmente,
formata o discurso e que est associada linearidade discursiva, constitui a
interdiscursividade a qual consiste na configurao de um discursos por diferentes tipos de
discursos.
Concluindo as observaes sobre o orkut de MEGA, apresentaremos, abaixo, fotos
copiadas do seu lbum ROL EM SO PAULO, contendo imagens de intervenes desse
jovem, fora desta cidade, no encontro da grafiteiros e pixadores dia 1 de AGOSTO!.

62

Conforme constataremos, tais intervenes no necessariamente acontecem na cidade de


Campina Grande, podendo ocorrer nos distintos locais para onde se dirige o/a pichador/a ou
grafiteiro/a sujeitos evocados no prprio nome do encontro paulistano. No item 2.4, do
captulo II, desta tese, trataremos da temtica do ser pichador/a ou ser grafiteiro/a.

FOTO 13 Fotografia copiada do orkut de MEGA


http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=10162845907402648153

FOTO 14 Fotografia copiada do orkut de MEGA


http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=10162845907402648153

Tudo indica que o segredo local se alia ao segredo global, havendo,


simultaneamente, uma cumplicidade entre os que o protegem, e uma hibridao das
experincias vivenciadas por esses jovens, embora cada um mantenha como ponto de
referncia a periferia, neste caso, representada por MEGA, PMO, ATTACK BOMB, Paraba,
C.G17.

17

Campina Grande.

63

Assim, sendo o ciberespao mais do que um fenmeno tcnico, um fenmeno social


(LEMOS, 2002, p. 138), tem sido uma ferramenta alternativa para a potencializao e

ampliao no apenas das redes de sociabilidade que resultam na sociedade secreta de


pichadores/as e grafiteiros/as, mas tambm para a manuteno da contradio
segredo/pulicizao, que permeia as prticas da cultura de rua.
Seja seu espao de exposio real ou virtual, pichao, bomb, grafite, grapicho:
experincias similares, resultados similares, similares segredos. O simbolismo, os laos
comunitrios, os discursos e os propsitos que subjazem a essa sociedade secreta se gestam
nos diversos espaos da materialidade histrica, expandindo-se no ciberespao, indo,
portanto, desde a sociedade de esquina de Foote White (2005) at a sociedade em rede de
Castells (1999).
No prximo captulo, trataremos das questes relativas cultura, juventude urbana e
experincia de pichadores/as e grafiteiros/as no contexto scio-histrico em que se instaura
a sociedade secreta.

64

CAPTULO II CULTURA, JUVENTUDE URBANA E EXPERINCIA NO


CONTEXTO SCIO-HISTRICO DA SOCIEDADE SECRETA
___________________________________________________________________________
L na Zona Leste, at um aspecto cultural, a formao da molecada
l bem diferente daqui da Liberdade, que por sua vez bem
diferente das Malvinas, que bem diferente do Alto Branco. Dentro
do social, tem a subcultura, no a cultura inferior, a subcultura, um
grupo, em particular, tipo, os skatistas. a subcultura de uma
cultura, que so os jovens. Olhando assim a subcultura Zona Leste
que faz parte de uma cultura, que Campina Grande. A molecada l
cresce vendo muito vizinho que t no presdio, tendo irmo que
tambm t no presdio. A molecada cresce tendo essa viso, diferente,
tipo, de um Alto Branco, uma Liberdade. O social em si no ensina
aquilo pra ele. (Histria de vida PAGO)

2.1 Cultura(s): singular ou plural?

O sculo XX assistiu, nos anos 80, emergncia do ps-colonialismo, um campo de


investigao cujas discusses reinserem o debate sobre a identidade nacional, da
representao, da etnicidade, da diferena e da subalternidade no centro da histria da cultura
contempornea (PRISTON, 2002, p. 140). As contribuies de Gayatri Spivak (1994), Homi
Bhabha (1998) e Edward Said (1993), por exemplo, abordam essa nova perspectiva de
revalorizao dos discursos marginalizados, evidenciando vozes perifricas, silenciadas pelo
colonizador. Tais contribuies, intrinsecamente ligadas aos Estudos Culturais corrente
fundada por Raymond Williams e Edward P. Thompson, os quais elegeram a cultura popular
como objeto merecedor de estudo e anlise acadmica , sinalizam para a abertura de espaos
fronteirios transculturais que favoream a evidenciao das margens e o consequente
reconhecimento de minorias e de suas representaes culturais.
De acordo com Santos (2003, p. 28), nesse perodo, a cultura passou a ser pensada
como um fenmeno associado a repertrios de sentido ou de significado partilhados pelos
membros de uma sociedade, mas tambm associado diferenciao e hierarquizao,
tornando-se um conceito estratgico central para definio de identidades e de alteridades no
mundo contemporneo, um recurso para afirmao da diferena e da exigncia do seu
reconhecimento (SPIVAK, 1999) e um campo de lutas e contradies (SANTOS, 2003, p.
28).
Nesse debate, puderam ser includas inovadoras formas de recriao e de resistncia
cultural de identidades proscritas que, estando no entre-lugar (BHABHA, 1998, p. 20),

65

elaborara promover uma articulao entre seu discurso e o discurso prevalecente, num
processo ininterrupto de interao/negociao com o contexto cultural em que se inserem.
Em virtude dessas mudanas, paradigmas considerados inamovveis, foram revistos e,
o padro que, at ento, era singular, precisou admitir o plural, j que foram expostos novos
umbrais de adscrio de identidade (ARCE, 1999, p. 79). Exemplo dessa ruptura
paradigmtica a redefinio do conceito de cultura hegemnica, como uma marca
registrada, o que favorece a abertura de espaos de convivncia nos quais prticas
socioculturais de grupos e indivduos minoritrios possam ser contempladas. Sabemos que
o desdobramento semntico do termo cultura, por si s, propicia uma extensa discusso.
Eagleton (2005), por exemplo, apresenta um amplo panorama conceitual da idia de cultura,
mostrando as transformaes histricas pelas quais passou o termo.
Nessa nova perspectiva, abre-se espao, tambm, para dois elementos da cultura de
rua pichao e grafite como fortes representantes da expresso subalterna. Suas
manifestaes redimensionam a condio de um simples muro, tornando-o espao de dilogo,
de ludicidade, de disputa, de denncia e de exposio de conflitos sociais e ideolgicos
gerados pelo convvio com o cenrio urbano hbrido, a partir da emergncia de um/a novo/a
ator/atriz social juvenil: o/a jovem das favelas, das zonas e dos bairros populares (ARCE,
1999, p. 79).
Stuart Hall, ao discutir questes relativas ao ps-colonialismo, afirma que a definio
de colonizao extrapola o sentido de dominao de potncias imperiais sobre certas regies
do mundo. Segundo ele, colonizao significa o processo inteiro de expanso, explorao,
conquista, colonizao e hegemonia imperial que constitui a face mais evidente, o exterior
constitutivo, da modernidade capitalista europia e depois, ocidental, aps 1942 (HALL,
2003, p.112) (grifo do autor).
Sob esse ponto de vista, identidades clssicas hegemnicas pensavam, no apenas o
social e o cultural a partir de viso e discursos nicos, que eram os seus, mas tambm o
poltico e o econmico. Entretanto, como os processos socioculturais so caracterizados pela
mobilidade e pela multiplicidade de interaes e trocas constantes e contnuas, no foi
possvel o confinamento dos fenmenos culturais em um continer que os limitasse em suas
movncia e criatividade. A dinmica de tais processos resultou em reinveno, cujo produto
se esvaiu por entre os dedos da to sonhada homogeneidade. O entrecruzar de olhares,
perspectivas, desejos e fazeres originou, na sociedade, uma tessitura plural na qual a marca da
multidimensionalidade j no pode mais ser desfeita.

66

Essa nova configurao contribuiu para que indivduos e grupos alternativos


utilizassem tticas e estratgias para a negociao dos seus espaos na sociedade, fazendo
surgir novas artes (maneiras) do fazer, no dizer de Certeau (1994, p. 136), para reinventar o
cotidiano. A ebulio de distintos fenmenos culturais, a polissemia dos discursos, as
ambiguidades e ambivalncias e o agenciamento sociodiscursivo dos sujeitos jamais poderiam
se admitir contidos por padres rgidos de uniformizao, uma vez que a pluralidade que os
caracteriza remete para caminhos alternativos e entrecruzamentos culturais. A pretenso
elitista do cnone, de abrigar em seu seio, nica e exclusivamente, expresses culturais
singulares, marcadas pela pureza e pelos gostos e caprichos do poder, foi sendo
desconstruda. Sua viso segregacionista e disciplinar, alimentada pelos binarismos modernos,
fragilizou-se ante a via de mo dupla dos processos de transculturao (IANNI, 2000, p. 95)
que revelam, continuamente, o outro.
Assim, o objetivo de acondicionar os fenmenos socioculturais numa redoma
hermeticamente fechada, cuja ambincia no pudesse ser infectada pelas representaes
populares, foi abalado pelos mpetos da dinmica cultural. Desfazendo-se, pois, a lgica de
perenizao do padro secular de classificao funcionalista, em lugar da oposio binria
centro/periferia, estabeleceram-se vrios centros nos quais certas minorias detentoras de
certos poderes comearam a reivindicar uma representao, conforme discutem os estudos
culturais e ps-coloniais. As sociedades modernas no possuem mais nenhum centro,
nenhum princpio articulador ou organizador nico, a resistncia das periferias ajudou a criar
uma pluralidade de centros de poder (LACLAU apud HALL, 2000, p. 16).
Sob esse ponto de vista, Homi Bhabha afirma:
H mesmo uma convico crescente de que a experincia afetiva da
marginalidade social como ela emerge em formas sociais no-cannicas
transforma nossas estratgias crticas. Ela nos fora a encarar o conceito de
cultura exteriormente aos objets d'art ou para alm da canonizao da idia
de esttica, a lidar com a cultura como produo irregular e incompleta de
sentido e de valor, freqentemente composta de demandas e prticas
incomensurveis, produzidas no ato de sobrevivncia social (BHABHA,
1998, p. 40)

Terry Eagleton, ao discutir, por exemplo, a grande tradio literria, mostra que o
valor se relaciona s transformaes histricas. Afirma ele que mudanas sociais profundas
poderiam inverter valores, como, por exemplo, em uma determinada poca, o pensamento de
Shakespeare ser considerado limitado ou irrelevante. Em tal situao Shakespeare no teria
mais valor do que muitos grafitos de hoje (EAGLETON, 2003, p.16) (grifo nosso).

67

Essa

inverso

de

valores

evidenciou

experincia,

criatividade,

as

descontinuidades, os dilogos, as mestiagens e o jogo de cintura das expresses culturais


perifricas, cuja fora criativa passou a compor a cena urbana, driblando a fixidez das
prticas de dominao.
Conforme afirma Sbastien Joachim:
J estamos no caminho de uma revoluo cultural que desbanca de seu pedestal
certas elites que tendiam a confiscar a Cultura, a lhe dar por um privilgio
reservado a poucos, aos que so possuidores de rica biblioteca, de competncia na
apreciao das Belas Artes, - e isso, em nome de uma racionalidade voltada
unicamente para a abstrao e pelo refinamento das linguagens. (JOACHIM,
2005, p.1)

Dessa forma, a tradio cannica, assumindo uma nova posio discursiva, cedendo
lugar a abordagens flexveis e alternativas que enfocam as negociaes dos produtos de uma
cultura com outras, particularmente daquelas entre as quais existiam relaes assimtricas
(cnone versus perifrico), abre espao para o redimensionamento desse cnone e enseja,
assim, o acesso da pichao e do grafite a um lugar nos debates sobre a cultura urbana
contempornea.
Essas e outras questes, sobretudo, as que dizem respeito ao esgotamento heurstico
da teoria sociolgica clssica, tm resultado numa maior ateno ao tema da cultura, por parte
das investigaes em cincias sociais, tendo em vista a centralidade assumida por ele, como
possibilidade terico-epistemolgica que contemple a amplitude dos processos socioculturais.
Dentre eles, os circuitos juvenis urbanos tm se instaurado como um valioso fenmeno a ser
investigado para a compreenso da realidade social.

2.2 Circuitos juvenis urbanos

Os processos que resultam das prticas culturais da juventude urbana tm merecido


um olhar da teoria social, j que a juventude assumiu a posio de uma categoria
caracterizada no apenas pelo aspecto etrio, mas, sobretudo, pelas questes suscitadas pelo
comportamento, pelas formas de sociabilidade, pelos gostos e estilos, enfim, pelo perfil do/a
jovem das cidades contemporneas.
A noo mais geral e usual do termo juventude refere-se a desenvolvimento
fsico do indivduo e uma srie de mudanas psicolgicas e sociais ocorre,
quando este abandona a infncia para processar a sua entrada no mundo
adulto. No entanto, a noo de juventude socialmente varivel. A definio
do tempo de durao, dos contedos e significados sociais desses processos
modificam-se de sociedade para sociedade e, na mesma sociedade, ao longo
do tempo e atravs das suas divises internas. Alm disso, somente em

68

algumas formaes sociais que a juventude se configura como um perodo


destacado, ou seja, aparece como uma categoria com visibilidades social.
(ABRAMO, 1994, p. 1)

Karl Mannheim, pioneiro da sociologia da juventude, j apontava para a discusso


acerca do significado e do papel exercido pelos jovens na realidade social, a partir da insero
desses sujeitos no contexto histrico, poltico e social da sua poca (MANNHEIM,1961, p.
36). Para ele, a categoria juventude se constitui a partir de sua funo como agente
revitalizador das mudanas previstas pelas geraes anteriores (MANNHEIM, 1976, p. 9293).
Na contemporaneidade, falar sobre juventude significa contemplar uma gama de
singularidades que se expressam nas diversidades que caracterizam a condio juvenil. Falar
sobre juventude implica em partirmos da premissa de que ser jovem significa
responder por inseres singulares e experimentar, de forma conflituosa: a
hierarquia de classes; as desigualdades sociais; a maior ou menor exposio
violncia e os limites entre vida e morte; as condies de gnero, etnia,
nvel de escolaridade, qualidade de moradia, pertena familiar; a diversidade
cultural; o acesso ou a excluso ao consumo; a participao poltica, cultural,
comunitria; o protagonismo juvenil. (BORELLI; ROCHA & OLIVEIRA,
2007 apud BORELLI; ROCHA, 2008, p. 30)

Assim sendo, semelhantemente ao redimensionamento do conceito de cultura,


redefiniu-se tambm o conceito de juventude representada como fazendo parte de uma
cultura juvenil unitria (PAIS, 1990, p. 140) (grifo do autor), estabelecendo-se como
questo central para a sociologia da juventude, no apenas as similitudes, mas tambm as
diferenas sociais entre esses jovens e os grupos a que se vinculam. Servir, portanto, de
aporte nossa discusso a tendncia terica que considera a heterogeneidade dessa categoria,
sendo a juventude considerada
como um conjunto social necessariamente diversificado, perfilando-se
diferentes culturas juvenis, em funo de diferentes pertenas de classe,
diferentes situaes econmicas, diferentes parcelas de poder, diferentes
interesses, diferentes oportunidades ocupacionais, etc. Nestoutro sentido,
seria, de facto, um abuso de linguagem subsumir sob o mesmo conceito de
juventude universos sociais que no tm entre si praticamente nada de
comum. (PAIS, 1990, p. 140)

Tambm em razo dos caminhos terico-metodolgicos desta investigao,


convergimos para a proposta de Pais, no que se refere a uma utilizao mais dinmica do
conceito de cultura juvenil, explorando, no somente questes propostas pelas correntes
geracional e classista sobre a juventude, mas tambm o seu sentido antropolgico, quanto
aos modos de vida e prticas cotidianas cujos significados e valores no se definem apenas ao

69

nvel das instituies, mas tambm ao nvel da prpria vida cotidiana. (PAIS, 1999, p. 163164)
Ainda, nesse contexto, redimensiona-se o conceito de identidade, uma vez que, em
lugar da homogeneidade, contemplam-se a heterogeneidade, a diversidade cultural e a
existncia de mltiplas juventudes particulares.
As identidades tm a ver, entretanto, com a questo da utilizao dos
recursos da histria, da linguagem e da cultura para a produo no daquilo
que ns somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tm a ver no tanto com
as questes quem ns somos ou de onde viemos, mas muito mais com as
questes quem ns podemos nos tornar, como ns temos sido
representados e como essa representao afeta a forma como ns podemos
representar a ns prprios (HALL, 2000, p. 109).

Dessa forma, a vivncia instaurada no panorama urbano atual sugere que a juventude
continua se destacando por apresentar um perfil caracterizado pela inovao, pela revoluo,
semelhantemente ao perfil constitutivo da prpria atualizao da sociedade, estabelecendo-se
a partir de processos de identificao, neotribalismos, nos quais os sujeitos interagem com os
pares e com o grupo (MAFFESOLI, 1998, 2004, 2005).
Muitas so as redes de sociabilidade que se tornam evidenciadas, conforme abordamos
no captulo I, desta tese, cada qual com suas particularidades, mas prioritariamente, marcadas
por laos comunitrios, nos mais diversos circuitos18 juvenis urbanos que, continuamente,
formatam a cidade pela inscrio das mltiplas formas atravs das quais esses sujeitos
vivenciam sua experincia na cultura e na histria. De acordo com Simmel, toda a
organizao interna da interao urbana baseada em uma complexa hierarquia de simpatias,
indiferenas, e averses tanto do tipo mais efmero como do mais duradouro (MORAES,
1983, p. 128)
A partir dessas evidncias, a prpria noo primeira de cidade como espao territorial
ultrapassada, na medida em que tais formas do uma amplitude e um contorno paisagem
urbana, o que implica tambm numa geografia cultural resultante desse mundo da
heterogeneidade criadora (SANTOS, 2000, p.127). Assim sendo, a cidade deixa de ser vista
apenas como um lugar, passando a se constituir como uma experincia e uma prtica social de
espao (CERTEAU, 1994, p. 202).

18

Circuito designa o exerccio de uma prtica ou a oferta de determinado servio por meio de estabelecimentos,
equipamentos e espaos que no mantm entre si uma relao de contigidade espacial. Assim a sociabilidade
que possibilita por meio de encontros, comunicao, manejo de cdigos mais diversificada e ampla que na
mancha ou pedao que apresentam fronteiras ou localizaes bem delimitadas. (MAGNANI, 2009, p. 110)

70

Para se referir a essa multiplicidade facetria da cidade, Henri Lefebvre (2008, p. 76)
distingue o conceito de cidade do conceito de urbano, por considerar que o segundo eclode
durante a exploso do primeiro, passando a se constituir numa nova relao com a cidade.
O urbano, essa virtualidade em marcha, essa potencialidade que j se realiza,
constitui um campo cego para os que se atm a uma racionalidade j
ultrapassada, e assim se arriscam a consolidar o que se ope sociedade
urbana, o que a nega e destri durante o prprio processo que a cria, a saber,
a segregao generalizada, a separao, no territrio, de todos os elementos e
aspectos da prtica social, dissociados uns dos outros e reagrupados por
decises polticas no seio de um espao homogneo. (LEFEBVRE, 2008, p.
80)

Nessa nova paisagem que compe o urbano, a juventude se agrega em torno de


interesses, gostos e estilos de vida comuns, o que resulta na constituio de grupos cujo perfil
se delineia a partir de comportamentos, valores e conceitos adquiridos no processo histrico e
social. Alm de continente das experincias humanas, a cidade tambm um registro, uma
escrita, materializao de sua prpria histria (ROLNIK, 2004, p. 9).
Um desses grupos o dos hip hoppers os quais, em sua maioria, oriundos da periferia
das cidades, associam-se em um movimento o hip hop que, segundo eles prprios,
apresenta-se como uma alternativa de salvao para uma juventude marcada por excluso e
condies sociais assimtricas. Unidos sob um lema e um discurso em defesa da periferia
como categoria de pertencimento e de reconhecimento esses jovens controem sua rede de
sociabilidade, fortalecendo assim sua expresso cultural.
Aqui abrimos um parntese para ressaltar que o hip hop no um movimento
homogneo, havendo nele distintas orientaes, linhas e nfases que resultam nos diferentes
modelos e estilos que se instauram nessa sociedade global, no sendo possvel delimitar
fronteiras ao redor dele.
Sobre o movimento, ZECA assim se expressa em sua histria de vida:
[] Ento isso, hip hop enquanto uma questo, enquanto um movimento
globalizado, n, que tipo, , vem do negro, no vem dos Estados Unidos,
vem do negro, tanto um movimento aberto que luta, que luta no s
pelo negro, mas pela periferia.

2.3Hip hop salva: o discurso da periferia pela afirmao de novos valores


O movimento hip hop se constitui num dos grandes fenmenos de renovao cultural
etno/juvenil das ltimas trs dcadas (ARCE, 1999, p. 90). Vianna demarca o nascimento do
hip hop, afirmando que no final dos anos 60, um Disk Jokey chamado Kool Herc trouxe da

71

Jamaica para o Bronx a tcnica dos famosos sound systems de Kingston organizando festas
nas praas dos bairros (VIANNA, 1998, p.21) (grifo do autor).
Segundo Herschmann (2000, p. 184), a origem desse movimento remete para os
Estados Unidos, nos anos 70, quando, conjugando prticas culturais dos jovens negros e
latino-americanos, nos guetos e ruas das metrpoles, a juventude norte-americana congrega
trs formas de linguagem artstica: a msica (RAP- rhythm and poetry, pelos rappers e DJs),
a coreografia (break) e a arte plstica (o graffiti), imprimindo, atravs delas, suas marcas de
identificao e de pertencimento no tecido da cidade. Sua emergncia coincidiu com a poca
em que se desenvolvia, no mundo, uma grande discusso sobre os direitos humanos, tendo se
destacado, nessa luta, influentes lderes negros, como Martin Luther King e Malcolm X, e
grupos defensores dos direitos humanos, como os Panteras Negras (Black Phanters). Tal
contexto exerceu grande influncia sobre os primeiros praticantes do hip hop.
Chegou ao Brasil, nos anos 70, com a chamada cultura black, reproduzindo o estilo
americano. Encontrou espao na noite paulistana do circuito negro e popular da periferia,
passando compor a polifonia urbana. Assim, importado pelo cenrio intercultural brasileiro,
o hip hop se adaptou realidade local, incorporando elementos da nossa cultura. So
perceptveis as congruncias entre o samba e o rap, entre a capoeira e o break, entre o
colorido da pintura brasileira e as cores do grafite. Os/as pichadores e grafiteiros/as
campinenses afirmam que o grafite sofreu modificaes, no Brasil, pelo uso de materiais mais
baratos, e pela adoo de linguagem e temtica apropriadas realidade poltica e social do
pas. Uma estratgia inventada por eles/as para economizar spray, que caro, preparar o
muro com tinta lavvel, coisa que no ocorre em pases ricos nos quais o grafite produzido
exclusivamente com spray. Essa tcnica genuinamente brasileira recebe o nome de grapicho.
Em sua histria de vida, ZECA confirma que o grapicho19 tem origem brasileira, e consiste
em fazer o grafite usando tinta de parede, e misturando a ela pigmentos coloridos, em virtude
da dificuldade de aquisio do spray que custa muito caro:
Na Europa, a tinta lavvel s era utilizada pra dar o fundo na parede, dava o
fundo na parede e os grafites totalmente no spray, s que l eles compram as
melhores tintas em spray, com dois, trs euros. [...] Aqui a gente no tem
essa condio, ento nasceu meio que da coisa assim de improviso, de
terceiro mundo, e ficou conhecido , mundialmente assim, essa coisa do
grapicho como coisa brasileira, como uma coisa original daqui,
entendeu? (ZECA)
19

Existe porm uma modalidade que se pode dizer intermediria entre a pichao e o graffiti. Chamada por
alguns de grapicho [...] Estabelece conexes com o graffiti pela questo da elaborao e detalhamento dos
trabalhos, sempre muito coloridos, e com a pichao por constituir algo similar a uma assinatura, estando
diretamente ligado escrita. (SOUSA, 2007, p. 5)

72

Inicialmente, o hip hop reproduzia o estilo americano e reunia jovens para danar e
discutir idias relativas a esse movimento. Nos anos 90, em So Paulo, afirmou-se como um
importante fenmeno urbano juvenil, cuja trajetria se fez tanto margem quanto nos
interstcios da indstria cultural, segundo Herschmann (2000, p. 18), tendo seu processo de
popularizao acelerado, no cenrio miditico, pela divulgao dos arrastes no noticirio e
nos cadernos policiais. Sob a tica da enunciao jornalstica, o hip hop foi apresentado
sociedade associado ao comportamento dos grupos jovens de cultura de rua, como agentes
da desordem e da violncia, porm esse discurso que o estigmatizou , tambm, aquele que o
glamourizou.
Em contrapartida ao estigma de violncia que lhe foi imposto, baseando-se na
concepo da Histria, da Antropologia e dos Estudos Culturais que consideram a confeco
de um novo tecido multicultural na sociedade, uma parcela da mdia passou a tratar desses
grupos como tribos urbanas, referindo-se polifonia cosmopolita da urbanidade como um
territrio em que vozes e aes fortalecem a configurao de um espao marcado pela
instabilidade social. (HERSCHMANN, 2000, p. 91)
Segundo esse autor, na atualidade, o hip hop continua conquistando espao na cena
cultural brasileira, atravs de grupos, associaes, posses20 e pequenas gravadoras,
estabelecendo um estilo prprio que se configura, pela indumentria, pela arte, pela forma de
relacionamento dentro do grupo e com outros segmentos sociais, afirmando-se como um
discurso poltico a favor do movimento negro e de outros excludos da estrutura social.
Trazendo em si conotaes contraculturais, o hip hop lembra os movimentos dos anos
60, congregadores de expressividades polticas e contestatrias, que se caracterizaram pela
transgresso e reinterpretao de padres de valores estabelecidos, mas tambm pela
afirmao e projeo de novos valores. Por esse motivo, muitas vezes, colocado sob
suspeita, pelo poder estabelecido, em virtude do discurso radical e simbolicamente violento
que veicula, apesar de o mercado econmico brasileiro cooptar muitos dos signos e emblemas
desse movimento alternativo.
Apresenta-se, no apenas, mas tambm como uma alternativa contestatria, atravs
de produes que expem sociedade os contrastes enfrentados por essa juventude que
convive com a desigualdade e a excluso social em seu cotidiano, expandindo-se nos centros
urbanos, como um movimento reivindicatrio contemporneo que adquiriu uma visibilidade e
20

As posses ou associaes so um espao de socializao do hip hop no Brasil, no qual o grupo busca a
solidariedade, mas tambm o apoio institucional s minorias . (HERSCHMANN, 2000, p. 91)

73

um reconhecimento na indstria cultural. Assim sendo, nesse contexto que a pichao e o


grafite se constituem, se instalam e transitam pelas ruas da cidade, tomando o muro como
suporte para a expressividade de sua relao com o processo interativo que se realiza na
sociedade.
Como representantes da cultura de rua, tambm nesse contexto que, em virtude da
proximidade de caractersticas entre as duas prticas, se estabelece um debate acerca das
controvrsias relativas s definies de pichao, pichador/a, grafite e grafiteiro/a, discusso
essa que ser levantada no item seguinte.

2.4 Do ser pichador/a ou ser grafiteiro/a

1.4.1 Pichao, grafite, grapicho

Definir pichao e grafite no tarefa das mais fceis, uma vez que as controvrsias
em relao a tais conceitos so inmeras. Tericos, estudiosos, pichadores/as e grafiteiros/as
buscam conceituar essas duas prticas, mas ainda no chegaram a um ponto pacfico, nem
sabemos quando ou, mesmo, se chegaro. Embora sejam vertentes da cultura de rua,
apresentam-se dissidncias que nos incitam a questionar o porqu dessa dificuldade
conceitual. No seria ela justificada exatamente por que no haveria como distinguir as duas
prticas? Seriam elas to distintas assim?
Desde a investigao que realizamos acerca da construo discursiva do grafite de
muro (DUARTE, 2006), a recorrncia a essa questo foi digna de registro. Em praticamente
todos os eventos de que participamos, desde a defesa da dissertao, evidenciou-se a dvida
de acadmicos das mais diversas reas, sobre a distino entre essas duas manifestaes da
cultura de rua. No imaginrio da maioria, pichao vandalismo, grafite arte.
Aparentemente (ou no), a questo levantada por muitos tem um tom de crtica, uma vez que
a Academia exige, para os propsitos de cientificidade de um trabalho como este,
delimitarmos com preciso cada categoria abordada, alm de nos munirmos de uma
objetividade que possa credenciar o resultado da investigao perante a cincia.
Isso no consiste em novidade alguma, mas havemos que lembrar que as cincias
sociais no podem ser reduzidas s cincias naturais, uma vez que cada uma delas, em sua
investigao, trata de objetos e fenmenos cujas caractersticas, realizaes e especificidades
divergem e, portanto, requerem tratamento particular.

74

[] a ao humana radicalmente subjectiva. O comportamento humano,


ao contrrio dos fenmenos naturais, no pode ser descrito e muito menos
explicado com base nas suas caractersticas exteriores e objectivveis, uma
vez que o mesmo acto externo pode corresponder a sentidos de aco muito
diferentes. A cincia social ser sempre uma cincia subjectiva e no
objectiva como as cincias naturais; tem de compreender os fenmenos
sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem s
suas aces [...] (SANTOS, 2007, p. 67).

Alm desse argumento, aqui fazemos um parntese para lembrar que o prprio tema
da nossa pesquisa caracteristicamente mltiplo, sobretudo numa poca mltipla como a
contempornea, na qual as certezas e as verdades indiscutveis apresentaram suas fissuras, se
transmutaram

em

tantas

outras

verdades

com

suas

incompletudes,

nuanas

metamorfoseadas e ampliadas, trazendo ao palco objetos e fenmenos novos, objetos esses


tanto singulares quanto plurais, os quais sugerem a instaurao de um tambm novo
paradigma epistemolgico singular e plural que possa, em dilogo com uma multiplicidade de
vertentes tericas, chegar o mais prximo possvel desses objetos, permitindo que eles
prprios respondam se vo se deixar definir ou no. Talvez alguns deles, em coerncia com a
sociedade catica de nossa poca, se pretendam indefinveis. Vivemos num mundo
confuso e confusamente percebido. Haveria nisso um paradoxo pedindo uma explicao?
(SANTOS, 2000, p. 17-18)
Antes, era isso ou aquilo. Agora, isso e aquilo. Embora assim sendo, procuraremos,
no prximo item, apresentar as leituras acerca da distino (ou no), em termos conceituais,
entre pichao e grafite, buscando identificar aspectos ideolgicos que motivariam os sujeitos
que produzem tais escritas a, consequentemente, se autodefinirem como pichadores/as ou
como grafiteiros/as. Deixaremos, ento, a palavra final com esses/as jovens que usam os
muros da cidade de Campina Grande como suporte para sua escrita. A verso deles/as,
portanto, ser a nossa verso.

2.4.2 Pichao e grafite em duas verses discursivas

Neste item, apresentaremos uma discusso conceitual acerca de como so definidos


a pichao e o grafite, a partir de duas verses discursivas: o discurso oficial e o discurso
dos/as pichadores/as e grafiteiros/as.
No discurso do dicionrio, o vocbulo grafite, variao de grafito inscrio ou
desenho feito pelos antigos em monumentos aparece no como lpis prprio para desenhar
e como palavra, frase ou desenho, geralmente de carter jocoso, informativo, contestador ou

75

obsceno em muro ou parede de local pblico. J o vocbulo pichao, aparece como ato ou
efeito de pichar; pichamento e como dstico, em geral de carter poltico, escrito em muro
de via pblica (FERREIRA, 1986, p. 862). S por essa definio inicial, podemos notar a
proximidade dos conceitos, ou, no mnimo, perceber que o segundo est contido no primeiro.
J aqui podemos vislumbrar a dificuldade de definio dessas duas prticas. O conceito de
grafite como inscrio urbana, no entanto, s aparece no dicionrio de Aurlio, a partir de
1988. (FERREIRA, 1988, p. 309)
Embora sejam vertentes de uma mesma cultura, as controvrsias conceituais no se
limitam aos estudiosos, atingem os prprios/as pichadores/as e grafiteiros/as. Segundo o
grafiteiro e escritor Gitahy (1999, p.19), uma das diferenas entre o grafite e a pichao
que o primeiro advm das artes plsticas e o segundo da escrita, ou seja, o grafite privilegia a
imagem, a pichao, a palavra e/ou a letra. A pichao rpida, espontnea, subversiva e
utiliza pouca cor. Por sua condio de subverso no espao pblico, a cultura hegemnica
atribui a essa prtica, um tom depreciativo. O grafite planejado, mais elaborado, utiliza
muitas cores e tem uma preocupao esttica. Por isso, s vezes, aceito pela sociedade, que
permite o encaixe dele no rol das expresses artsticas.
Lara, por sua vez, afirma que:
O grafite original semelhante pichao hoje vista nas cidades. Ele
provocativo. J a arte do grafite foi absorvida, virou bonitinho, bacaninha e a
pichao ficou mal vista pela sociedade conservadora, careta, de base
familiar, a mesma que tenta dizer que grafite arte e pichao sujeira. Na
verdade no nada disso. (LARA, apud VELLUTO, 2006, p. 1)

O evento discursivo acima sugere a postura crtica de Lara, por este detectar o
processo de cooptao da sociedade em relao ao grafite, o qual remete operao da
ideologia dominante em propor uma hierarquizao, deixando a pichao numa espcie de
apartheid sociocultural.
Observamos, pois, que o discurso dos prprios sujeitos envolvidos com essas
produes, tanto em Campina Grande quanto em nvel nacional, mostra que eles discordam,
entre si, acerca dessas distines. H quem considere pichao e grafite uma mesma coisa, h
quem diga que o segundo uma evoluo da primeira. Mesmo entre eles, h quem defenda
que a pichao um ato ilcito, enquanto o grafite autorizado, que a pichao vandalismo,
enquanto o grafite arte. Algumas falas dos/as pichadores/as e grafiteiros/as campinenses
revelam que eles/as fazem uma diferena entre grafite e pichao. O discurso do grafiteiro
GORPO (DUARTE, 2006), por exemplo, revela o seguinte:

76

L em Recife, tive o primeiro contato com o spray quando eu tinha oito,


nove anos de idade. Comecei a pichar muros [...] comecei a praticar esse
ato ilcito que foi a pichao. Antes para mim era algo normal. Com o
conhecimento que eu tive do grafite, eu pude ver que no uma arte,
um ato de vndalo, n, digamos assim.

O grafiteiro BROWN, por sua vez, disse que uma das desvantagens de praticar o
grafite o preconceito de ser confundido com vndalo. A grafiteira LUA tambm considera
que a desvantagem dessa atividade o preconceito das pessoas. SAGAZ tem esse mesmo
pensamento: Ainda rola muito preconceito. A sociedade nos discrimina. A opinio de
ZECA tambm de que o grafite ainda muito marginalizado e confundido com pichao, o
que acarreta uma forte represso do sistema. CAOS refora o pensamento dos demais,
dizendo que as desvantagens da prtica do grafite so o preconceito e a marginalizao.
SLAP afirma que a desvantagem poder rodar, ser preso. (DUARTE, 2006)
Tambm nas histrias de vida dos sujeitos entrevistados, nesta pesquisa, repete-se a
mesma controvrsia acerca da diferenciao entre pichao e grafite, embora o pensamento
predominante seja o de que a linha que separa essas duas prticas tnue, como poderemos
observar nos seguintes excertos discursivos:
Em essncia, a pichao muito parecida com o grafite, porque, qual o
objetivo da pichao? levar seu nome ao maior nmero de lugares
possveis, marcar seu territrio, e fazer com que seu nome tenha uma
notoriedade. [] , ento eu acho que quem faz grafite no pode, ,
renegar suas origens, porque suas origens esto na pichao. [...] A
pichao foi tomando contornos, foi tomando formas, cores, e se transformou
no grafite que a gente tem hoje. Ento seria, , tipo, , o grafite, o homem, e a
pichao, o macaco, entendeu? [...] Ento basicamente essa questo, o
grafite e a pichao so uma coisa s. [] Eu represento a LPE tambm,
eu no sou pichador, e sou tambm, n? Mas eu represento a UZS crew, que
vem daqui tambm que o mesmo ncleo21, entendeu? (ZECA)
O grafite tem uma aceitao social, diferente do piche, mas o piche e o
grafite no se diferencia em nada. [...] O Art. 63, 65, crime contra o meio
ambiente, do Cdigo Penal, encara piche e grafite como a mesma histria.
[...] O piche e o grafite to ali, na mesma, caminhando um do lado do
outro. [...] Figuras que to em atividade h muito tempo, elas tambm
compartilham desse mesmo pensamento. Caramba, grafite e piche, mesma
farinha. Se a pessoa for preconceituosa, vai dizer: ah o piche, uma
tremenda safadeza, vandalismo, isso, aquilo outro. Ah, grafite o
bonzinho da histria, o lado bonito, isso, aquilo outro. (PAGO)
O objetivo de todo mundo que comea tanto no grafite, como na
pichao, a questo de colocar seu nome pra todo mundo ver. [] A
gente LPE, mas se a gente t fazendo grafite, eu acho a pichao uma
21

Essas duas siglas tm um mesmo ncleo: um mesmo grupo que utiliza LPE (para a pichao) e UZS (para o
grafite)

77

coisa, assim, mais anarquista, mais, como que se diz, , mais secreta,
assim, mais underground, mesmo, na essncia, assim. E o grafite, no. O
grafite, a gente pode se tornar at artista. (Histria de vida ZNOCK
MORB) (grifos nossos)
d) A MMS22 agora de grafite, n? Ainda tem uns MMS na cidade, mas
os que tem so relquias de quando a gente ainda pichava. So poucos,
assim. Agora, a gente s quer usar a MMS pra grafitar. Se, como tinha muito
INSANA na cidade, se eu fosse pedir s pessoas uma autorizao: deixa eu
fazer um grafite aqui na sua casa. Sou XXXXXX, isso, isso e isso, e fao l
um grafite, e assino em baixo como INSANA, a a dona da casa vai bater
l e: oxente, foi essa menina a que pichou meu muro, e vai ficar bem
mais fcil a identificao, por isso que, normalmente, pra grafite, uma
assinatura e pra pichao, outra assinatura. (INSANA)

Nesses recortes do discurso dos sujeitos desta pesquisa, identificamos tanto a verso
de que pichao e grafite consistem numa nica prtica, quanto a verso de que aquela
crime, enquanto este arte, o que implica na manuteno das controvrsias mesmo entre os/as
pichadores/as e/ou grafiteiros/as. Contudo vale ressaltar que, mesmo no discurso daqueles que
se posicionam defendendo a segunda verso, h momentos em que se revelam contradies, e
eles/as acabam por desdizer o que disseram anteriormente.
A maioria deles considera que os objetivos que direcionam ambas as prticas so
idnticos. Talvez, a partir dessas constataes, necessitssemos sugerir duas novas categorias
para este estudo grapicho e grapicheiros nas quais estariam contempladas,
simultaneamente, as duas prticas e seus produtores.
Por outro lado, nos eventos discursivos acima, j se evidenciam vislumbres da
operao da ideologia dominante no prprio discurso dos que produzem a pichao e o
grafite. Um ponto importante a salientar que, segundo informaes deles/as prprios/as,
os/as grafiteiros/as se iniciam na pichao, conforme afirma ZECA, em sua histria de vida:
Ao contrrio da maioria dos grafiteiros, eu no comecei pichando. PAGO, por sua vez,
afirma em sua histria de vida: T envolvido com a cultura de rua, agora em particular com
o grafite. E j tive uma experincia grande e marcante com piche. Comeou em 95, em
Recife.
Mesmo assim sendo, nas histrias de vida acima citadas, nenhum/a deles/as se
designou pichador/a. Quando muito, afirmam ter pichado, anteriormente, mas no momento,
declaram-se envolvidos com o grafite. Para se apresentarem sociedade, precisam de uma
identidade que seja menos problemtica, em virtude da ilegalidade dessa prtica. Para
Stuart Hall, uma identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente uma
22

MMS sigla do grupo feminino Meninas Maconheiras Style.

78

fantasia (HALL, 2000, p.13). Segundo ele, o que ocorre uma multiplicao de
representaes culturais e sistemas de significaes, que faz com que exista uma
multiplicidade de identidades possveis.
Ser que s porque esses sujeitos deixam de pichar e passam a grafitar, seu produto
final diverge totalmente dos propsitos anteriores? Ser que as motivaes que os/as levam a
essa prtica mais aceitvel socialmente tambm se modificam? Ser que o grafite no traz a
marcas contestatrias da pichao? Ser que uma prtica anula totalmente a outra?
Provavelmente, essa seria mais uma estratgia desses sujeitos para driblar as
determinaes, o que no descarta o agenciamento sociodiscursivo deles numa luta pela
validao dos seus valores e discursos, numa luta pela hegemonia. Aqui, oportuno lembrar a
utilizao gramsciana do termo hegemonia para referir-se s estratgias das classes
subalternas, como um planejamento estratgico-ttico que favorea sua ao poltica e social e
a conquista do poder. No deixa de ser, tambm, uma ttica para se encaixarem nas frestas do
cnone social.
Em razo disso, os/as grafiteiros/as se expem, os/as pichadores/as se ocultam.
impossvel revelar, publicamente, a identidade de um/a pichador/a. Como o grafite permite
que eles/as reivindiquem uma condio de artistas, muito mais cmodo se apresentarem
com a identidade de grafiteiros/as. A se evidencia a disputa entre o ser pichador/a e o ser
grafiteiro/a, subsidiada pela ideologia da sociedade, que delimita os conceitos,
hierarquizando-os, de forma que o primeiro seja estigmatizado como vndalo, como
criminoso, e o segundo, seja considerado artista plstico. Por outro lado, h tambm a
influncia do mercado e da mdia na atitude desses sujeitos, conforme abordaremos no
captulo IV, desta tese.
Erving Goffman, em suas reflexes sobre o estigma, considera que:
Uma vez que em nossa sociedade o indivduo estigmatizado adquire
modelos de identidade que aplica a si mesmo a despeito da impossibilidade
de se conformar a eles, inevitvel que sinta alguma ambivalncia em
relao a seu prprio eu. (GOFFMAN, 2008, p. 117)

Mesmo se denominando grafiteiros/as, no difcil encontrarmos, em pichaes,


tags de alguns(algumas) dos/as que assim se definem. Exemplificando, do discurso de ZECA,
selecionamos um fragmento que confirma isso:
Eu no posso me considerar um pichador, apesar de eu no, apesar de
eu pichar aqui e ali. Aqui e ali eu fao uma pichao, e tambm fao a
questo do bomb, que seria um grafite simples, contornado, muito prximo
da pichao, que eu gosto de fazer nos locais proibidos tambm, entendeu?
Assim, que o que t mais prximo da essncia do grafite.

79

Os textos produzidos por eles/as, nos muros de Campina Grande, por exemplo,
sugerem que os sentidos emergentes nas duas prticas se aproximam e que os objetivos que os
direcionam so, se no iguais, similares. Exemplo disso a frase, j citada anteriormente,
grapixo nis, denunciando a intrnseca relao entre as duas prticas. Em outros muros,
encontramos excertos lingusticos caracterizados por uma multidimensionalidade semnticoideolgica que sugerem a capacidade crtica e diretiva dos/as que produzem essas expresses
da cultura de rua: Todos unidos, na mesma ideologia; Foda-se o sistema, Desculpa de
grafiteiro, parede lisa; Reao da periferia; Arte ou crime? (DUARTE, 2006). Esse
ltimo exemplo, inclusive, toca na temtica aqui discutida, o que revela a preocupao deles
com a tica da ideologia social em relao ao que eles/as esto produzindo nos muros.
Fotografia Angelina Duarte

FOTO 21 Desculpa de grafiteiro parede lisa! (Caos UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro. CUCA. Janeiro
de 2005.
Fotografia Angelina Duarte

FOTO 22. Arte ou crime? (ZECA PCO.UZS) Rua Dr. Severino Cruz. Centro. Janeiro de 2005

fundamental lembrar que ambas as prticas utilizam os mesmos suportes urbanos,


so elaboradas de forma rpida, tm uma vida efmera, interagem com o pblico, fazem uso,

80

praticamente, dos mesmos materiais para a sua produo e so formas de expresso da


juventude. A prpria diviso entre grafite e pichao j nos remete para critrios de
ordenamento, prprios do projeto da modernidade. No existe unanimidade nem no
argumento de que o grafite uma expresso da arte e de que a pichao no revela uma
preocupao esttica.
Tanto alguns tericos quanto alguns produtores da pichao e do grafite afirmam que a
escolha do muro, a altura, o local, o tipo de letra, o tipo de alfabeto a ser utilizado na pichao
so suficientes para comprovar que h um planejamento, um cuidado com a esttica, o que,
para eles, impossibilita a distino entre as duas manifestaes a partir desse argumento.
Em um dos fragmentos de sua histria de vida, ZECA afirma:
Eu particularmente, eu acho bonito um muro pichado, todo pichado, e
tipo, se voc for analisar isso culturalmente, se voc for analisar isso
despido de preconceito, voc vai encontrar toda uma questo que
envolve os alfabetos, que so utilizados entendeu? Que no so coisas
aleatrias, so estudadas, , voc vai encontrar , l em So Paulo, o
pessoal chama de agenda que seria um muro onde todas as pichaes da
cidade j passaram, ento serve como um registro, entendeu? Eita,
fulano, , mil novecentos e tanto, bicho, o cara passou aqui, entendeu?
como um arquivo tambm. Ento eu acho que tem sua esttica, tem seu
valor.
O livro Ttsss...a arte da pixao em so paulo, brazil. (BOLETA, 2005) apresenta o
tema da pichao como arte: pixadores fazem arte, artistas fazem dinheiro! diria numa
pardia de Fred 04. Ainda na introduo dessa obra, Pinky Wainer afirma que a editora do
Bispo v na pixao uma linguagem contempornea do sculo 21.
Tambm na obra O graffiti na cidade de So Paulo e suas vertentes no Brasil:
estticas e estilos, encontramos uma referncia s interseces entre essas duas expresses da
cultura urbana: Se antes em sua raiz comum com a pichao, o graffiti era, sobretudo, signo
da rebeldia, anarquia, irreverncia e pouca preocupao com o fato esttico, o que acontece
a submisso dessa atitude de irreverncia juvenil a uma preocupao esttica e subjetiva
(ESTRELLA, 2006, p. 14).
Ainda nessa obra, encontramos:
Entendo como Bomb, um graffiti com inteno de destruir, ou seja, um ato
de vandalismo. Existe no meio do graffiti, um certo engano a respeito do que
legal ou ilegal. O que ser legal? Legal estar conforme a lei, ilegal estar
contra a lei. Logo, todo grafitti ilegal. Produo, piece, throw up, tag,
pixo... tudo vandalismo, tudo bomb. No incio fazamos produes e
pieces, mas com a mesma sensao de quem, hoje, faz pixos ou trhow ups,
pois ainda no tnhamos o apoio da opinio pblica e ningum sabia o que
era graffiti. Era tudo uma coisa s: 'pixao' (TINHO, 2006, p. 83)

81

Calazans, escritor, livre docente em artes visuais pela UNESC, critica:


E muitos tericos que no vivenciam o processo insistem em diferenciar a
pichao do grafite. [...] Grafites figurativos e pichaes verbais: uma
distino artificial feita por pseudo-pesquisadores olhando de fora um
movimento de arte das ruas, cuja complexidade intermdia escapa a
classificaes superficiais. [...] O pejorativo tom atribudo pichao fruto
de ignorncia e pressa em escrever sem observar, fruto de uma arrogncia e
empfia dos Doutores Universitrios. [...] Os grafites tm o mesmo valor das
pichaes. As letras criadas pelas gangues especialmente para suas tags
(assinaturas) e empregadas nas frases tm por si ss efeito esttico, so
linhas sinuosas, grafismos gticos ou barrocos. (CALAZANS, 2003, p. 1)

Uma vez que a prpria origem da palavra grafite se refere a grafismos rabiscados em
muros, talvez a insistncia em estabelecer diferenas entre o grafite e a pichao seja uma
questo burocrtico-acadmica, marcada pelo tom da ideologia dominante. O que a maioria
dos textos sobre o tema sugere que o primeiro uma evoluo da segunda. E nessa
perspectiva ser tratado neste estudo.
A grafiteira ZEN chegou a afirmar que o tchan da parada a pichao, que o
grafite autorizado no tem a adrenalina da pichao (DUARTE, 2006). Seu posicionamento
se coaduna com a afirmao de Calazans, e refora a idia de que o/a grafiteiro/a se deixa
cooptar por livre e espontnea vontade.
Mesmo j encontrando espaos em que reconhecido como arte, o grafite
considerado ilcito pelo discurso da legislao vigente, que o enquadra nas mesmas
penalidades a que est sujeita a pichao (Lei Ambiental nmero 9.605/98). O grafite e a
pichao so considerados, no Brasil, crimes contra o ordenamento urbano e o patrimnio
cultural. Essa lei no faz distino entre as duas prticas, conforme estabelecido em seu artigo
65:
Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificao ou
monumento urbano:
Pena deteno, de trs meses a um ano, e multa.
Pargrafo nico. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em
virtude do seu valor artstico, arqueolgico ou histrico, a pena de seis
meses a um ano de deteno, e multa.

Em comentrio a esse artigo, Freitas e Freitas (2001, p. 208), na obra Crimes contra a
natureza: (de acordo com a lei 9.605/98), afirmam que pichar ou grafitar bens mveis ou
imveis um fenmeno contemporneo. Pode ser uma manifestao de rebeldia juvenil,
protesto poltico ou mera expresso de inconformismo contra a sociedade. A seguir,
completam esses autores que a pichao e o grafite so um sinal dos tempos que se alastra

82

como um mau hbito por todo o mundo ocidental, cabendo ao Direito analisar o fato sob o
ponto de vista jurdico. Com esse pensamento, discriminam as duas prticas, colocando-as
num mesmo patamar de ilegalidade, atribuindo ao grafite o estigma de desvio, de vcio, de um
mal que se alastra prejudicando o projeto de higienizao social.
Mais adiante, aps definirem pichar como o ato de escrever ou desenhar slogans,
nomes, propagandas, mensagens, por vezes com fins polticos e sociais, em muros, paredes,
edifcios, construes enfim, e grafitar como fazer desenhos ou inscries com grafite
conceitos que, ao nosso ver no, no so diferentes acrescentam que se o ato de grafitar for
efetuado com autorizao do proprietrio, ou seja, para embelezar o local, no se configurar
crime (FREITAS; FREITAS, 2001, p. 209). Na interpretao dada por esses autores, no
existe ilicitude quando o grafiteiro desenha num muro com a autorizao do proprietrio.
Com essa concepo, a condio de arte do grafite fica restrita ao aval dos donos dos imveis
grafitados. Assim sendo, mesmo que se trate de uma manifestao de um cunho artstico
indiscutvel, quando no-autorizada, enquadrada como crime ambiental, e seu produtor fica
sujeito s punies previstas na lei. Nunca vimos contradio maior. Mais uma vez,
observamos os mecanismos de cooptao de tendncias contestadoras, para alimentar o
discurso da ideologia dominante.
Apresentado, pois, um resumo das duas verses discursivas sobre a pichao e o
grafite, pudemos constatar que a dificuldade conceitual acerca dessas duas prticas culturais
juvenis persiste em ambos os discursos. Passaremos, ento, a discutir como se d o
contraponto entre ao discurso oficial e o discurso da cultura de rua, a partir da prtica
discursiva e da prtica social que envolvem os que se expressam nos muros da cidade,
subsidiando-nos pela perspectiva da Teoria Social do discurso (FAIRCLOUGH, 2001).

2.4. O olhar da pesquisa contrapondo as verses discursivas

Todo evento discursivo mantm uma relao com o contexto histrico e social que o
envolve. A natureza da prtica social influencia a prtica discursiva que, por sua vez, produz
efeitos sobre a prtica social em que se insere.
John B. Thompson afirma:
Como pessoas, ns estamos imersos em conjuntos de relaes sociais e
estamos constantemente envolvidos em coment-las, em represent-las a ns
mesmos e aos outros, em verbaliz-las, em recri-las e em transform-las
atravs de aes, smbolos e palavras. [...] Pois a vida social , at certo
ponto, um campo de contestao em que a luta se trava tanto atravs de

83

palavras e smbolos como pelo uso da fora fsica. Ideologia, no sentido que
eu proponho e discuto aqui, uma parte integrante dessa luta; uma
caracterstica criativa e constitutiva da vida social que sustentada e
reproduzida, contestada e transformada, atravs de aes e interaes, as
quais incluem a troca contnua de formas simblicas. (THOMPSON, 2002,
p. 19)

Assim, a prtica discursiva permeada por formas simblicas que se utilizam de


estratgias para gerar e difundir sentidos e poder no mbito social. H sentidos que remetem
para o estabelecimento e a sustentao das formas de dominao. Exemplo disso o seguinte
fragmento da histria de vida de NAAH:
Eu acho que perigoso, sabe? Eu acho que arriscado. Eu acho que, do
ponto de vista social, assim, sabe? Porque eu dependo, eu descobri que
eu dependo muito da sociedade, n? Tem uma fase que quer ir contra,
que voc acha que nunca vai se adequar a ela. E tem uma hora que voc
se toca que no bem assim, que d pra fazer de um jeito, foi o que eu
fiz, eu transferi um pouco as coisas, assim, eu amadureci um pouco as
ideias. (NAAH)

H, porm outros sentidos que se caracterizam por subverter relaes de dominao:


Quando eu vim pra c, j com a cabea de uma metrpole,cheguei aqui,
de certa forma, a cultura de interior diferente [...] Tinha uma coisa aqui ou
outra perdida, mas no era um movimento de piche, muito menos de grafite.
A eu: caramba, vou fundar um comando aqui! A tive a atitude e chamei
uns colegas que imaginei que tinham coragem. Vamo? Vamo. Mostrei umas
letras pra eles, dei s umas ideias, por alto, do que que ia ser o
camando, a ideologia da histria. Pronto, a partir da, surgiu a OPZ, o
primeiro comando, a primeira organizao de piche na cidade, que at ento
no tinha piche aqui. (PAGO)
Ento eu sou a favor de voc pichar uma instituio que voc no
concorda com o procedimento que ela toma, entendeu? Se voc
antigoverno, se voc anarquista, se voc , segue alguma ideologia,
ento voc tem todo direito de pichar uma coisa que voc no, de uma
grande empresa que voc seja contra os procedimentos daquela
empresa, entendeu? (Histria de vida ZECA)

Na prtica discursiva da pichao e do grafite, pois, sugerido um agenciamento dos


sujeitos, uma vez que eles, pelo menos em seu discurso, no aceitam passivamente as formas
ideolgicas dominantes e as relaes assimtricas por elas estabelecidas, apesar de em alguns
momentos, na materialidade social, at se deixarem cooptar, a fim de participarem do jogo
interativo, cooperando, mas ao mesmo tempo competindo, nessa dialtica social.
Na prtica discursiva hegemnica, da estabilidade e da certeza, visvel a negligncia
ao discurso da alteridade, mas se evidenciam, tambm, mecanismos polticos e ideolgicos

84

para cooptar o outro do espao intersticial em que ele se encontra, a fim de que se
reproduzam valores e ideias do cnone social.
Apesar de os/as pichadores/as e grafiteiros/as se inscreverem nesse dilogo,
apresentam sua resposta ao discurso prevalecente, apontando-lhe ambiguidades e
ambivalncias, atravs do estabelecimento de uma luta ideolgica, como instncia da prtica
discursiva, mas ao mesmo tempo, movidos pelos atrativos da visibilidade, hibridizam-se para
se sentirem includos.
Assim procedendo, a pichao e o grafite tentam metamorfosear prticas discursivas
legitimadas, a partir do questionamento das ideologias que as subsidiam, mas tambm, em
alguns momentos reproduzem essas ideologias. Ao materializarem, na linguagem, elementos
pertinentes aos conflitos sociais, revelam que tm sua gnese numa matriz social ligada
condio de subordinao que caracteriza os que fogem ao padro hegemnico. Por outro
lado, podem mesmo estar reproduzindo um discurso que, no cenrio miditico da
contemporaneidade, tem servido de senha para a visibilidade da periferia. Prova disso que
aqueles/as jovens que no advm do subrbio se esforam para esconder dos demais essa
condio, assumindo comportamentos e discursos pertinentes a essa esfera social.
Os seguintes fragmentos de histrias de vida sugerem a condies assimtricas
vivenciadas por alguns desses jovens na periferia:
A gente vem de uma classe desfavorecida, entendeu? Minha me
professora pblica, e a gente se criou nas Malvinas23, e ela disse: voc
tem que estudar pra ser o melhor, porque a gente no tem nada, ento seu
futuro vai depender disso, de voc ser o melhor, ento uma questo que a
gente t sempre procurando evoluir, porque neguinho que nasceu em
bero de ouro, no t nem a pra isso, entendeu? , j tem tudo na mo,
e a? (ZECA)
Moleque, eu passei a minha infncia todinha jogando bola. Eu emburacava
nas maloca. O que voc imaginava dentro da Zona Leste, eu
emburacava. Era, minha famlia preocupada que s... Maloca toda
quebrada. Posso dizer assim, todo bequinho que tinha conhecido meu que
chegava l pra gente jogar. E nisso, eu me envolvendo com todo tipo de
gente. Eu de certa forma astuto, fui aprendendo, tendo convvio. No tinha
irmo, no tinha vizinho, no tinha isso que era bandido, que tava no
sistema, mas tinha muitos amigos que tavam fazendo parte desse social e
fui aprendendo com eles. E de certa forma aquilo, por eu tambm ser
produto do meio, aquilo foi mexendo na minha personalidade. (PAGO)

E essa condio, na maioria dos casos, expe a contradio. a experincia desses


sujeitos que impulsiona a prtica discursiva da transformao das relaes sociais, tanto no
mbito mais restrito quanto na sociedade como um todo. Essa experincia resulta nas
23 Bairro da periferia de Campina Grande.

85

expresses que se realizam, subversivamente, apesar de todos os esforos da lei para reprimilas. Sob pseudnimos (tags), eles/as se escondem. A utilizao das tags tem uma explicao
que supera a dimenso ideolgica e retrica, pois como essas prticas so ilegais, essa
uma estratgia para que eles/as possam escapar da mira da legislao vigente.
Fotografia Angelina Duarte

FOTO 23 Criar, sem pedir licena, um mundo de liberdade! (Zeca- PCO-UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro.
CUCA. Setembro de 2005.
Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 24. Liberdade de expresso. (Caos UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro. CUCA. Janeiro de 2005.

O vocbulo liberdade, muito utilizado por esses/as jovens, remete a toda uma
construo scio-histrica de investimento contra a opresso, seja ela em que esfera for,
mesmo que no seja fcil definirem que liberdade, de fato, desejam. Por trs desse uso h
todo um interdiscurso formatado por nuanas da contraposio, desde as advindas da
contracultura, at mesmo as mais domsticas, relativas necessidade de eles/as se
libertarem das amarras do mundo adulto.
Nesse discurso da alteridade, h uma contraposio s ordens do discurso
dominantes, institucionalizadas, legitimadas a famlia, a religio, a lei, o governo que
tanto podem remeter para efeitos de uma oposio que favorea uma possvel ascenso do
discurso da pichao e do grafite a uma posio de prestgio discursivo, da mesma forma que
h o interesse pelo prestgio, pela auto-afirmao no mbito sociocultural, como tambm pode

86

remeter para o desejo de liberdade, a irreverncia e a rebeldia do adolescente,


semelhantemente ao que ocorria com os jovens outsiders, de Winston Parva:
Mas a nica maneira que conheciam de mostrar aos que os tratavam como
ningum que de fato eles eram algum era inteiramente negativa, a
exemplo do sentimento que eles tinham a respeito de sua identidade: era a
condio de outsiders rejeitados que, numa compulso como que onrica e
totalmente ineficaz, rebelavam-se contra essa rejeio numa espcie de
guerrilha, provocando e perturbando, agredindo e, tanto quanto possvel,
destruindo o mundo ordeiro do qual eram excludos, sem entender muito
bem por qu. A lgica de seus sentimentos e atos parecia ser: Vamos
obrig-los a prestar ateno a ns, se no por amor, ao menos por dio.
(ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 144-145) (grifos dos autores)

Esses posicionamentos antagnicos s estruturas posicionadoras servem, pelo menos,


como um alerta para o esforo desses/as jovens pelo estabelecimento da sua identidade, como
tambm para apresentar a viso de mundo desses sujeitos, mostrando que o seu sistema de
conhecimento e de crenas fortemente influenciado pela prtica social, da qual a prtica
discursiva uma instncia. O sistema cognitivo que direciona o discurso do grafiteiro se
constri, pois, pela apreenso de elementos, captados na prpria convivncia com a
sociedade.
Ao tentarem desnaturalizar, no evento discursivo, os princpios ideolgicos
hegemnicos, os pichadores/as e grafiteiros/as se utilizam da capacidade de agir
criativamente, como defende a perspectiva gramsciana, para lutar pela reestruturao dessas
prticas e para, consequentemente, ver os efeitos da sua ao discursiva como uma conquista
na luta pela hegemonia.
Uma vez que a hegemonia vista em termos da permanncia relativa de
articulaes entre elementos sociais, existe uma possibilidade intrnseca de
desarticulao e rearticulao desses elementos. Essa possibilidade
relaciona-se agncia humana. Para Chouliaraki e Fairclough (1999), a ao
representa um artifcio potencial para a superao de relaes assimtricas,
desde que esse elemento ativo seja subsidiado por uma reflexividade crtica.
(RESENDE, 2006, p. 44)

A anlise da prtica social que se d via texto possibilita a abordagem das estruturas
condicionadoras, da operao da ideologia e das relaes sociais que atuam no contexto
pertinente pichao e ao grafite. Nesses discursos, tambm, h marcas das estruturas sociais
que tentam moldar o sujeito o sistema, a famlia, a religio, a lei atravs das quais a
ideologia dominante opera. As relaes sociais conflituosas se fundem ao condicionamento
dos sujeitos, e o resultado disso revelado no discurso, que, como j dissemos, miscigena
ideologia e contra-ideologia.

87

Embora saibamos que a prtica social no transparente e que, portanto, o discurso


no institui o real, aportamo-nos aqui na perspectiva da Teoria Social do Discurso a qual
defende uma concepo de discurso como modo de ao historicamente situado
(RESENDE, 2006, p. 25). Assim sendo, essa prtica favorece a presena de uma nova postura
ideolgica do discurso da pichao e do grafite, constituindo-se num terreno frtil
emergncia de uma postura emancipatria desses sujeitos sociais.
O/a pichador/a e o/a grafiteiro/a sinalizam para uma ao historicamente situada em
direo a possveis mudanas nessa estrutura social prevalecente. Atravs do texto, ele/a se
apropria do poder para subvert-lo.Por outro lado, a pichao e o grafite, nesse contexto,
buscam um espao para a alteridade, a fim de que, atravs de um processo articulatrio, sua
identidade seja includa e seu discurso legitimado.
Transferem-se, pois, da realidade social para o texto, conflitos, reivindicaes,
denncias e tantos outros elementos componentes do cotidiano dos sujeitos que produzem tais
textos. E, por ser a prtica social naturalmente contraditria e mutvel, tais caractersticas
ecoam no nvel textual do discurso, e tambm por isso que a ideologia dominante tem seu
espao nesses discursos.
Ao realizar uma mudana discursiva, o/a pichador/a e o/a grafiteiro/a propem uma
mudana social e cultural que possa vir a beneficiar sua prtica, uma vez que a hegemonia,
em sua dimenso que ideolgica, trabalha para que as manifestaes do grafite e, sobretudo,
do que denominam pichao, continuem a ser excludas do nvel societrio.Segundo
Fairclough (2001, p. 127) a mudana envolve formas de transgresso, cruzamento de
fronteiras, tais como a reunio de convenes existentes em novas combinaes, ou a sua
explorao em situaes que geralmente a probem. Dessa forma, o grafite desarticula ordens
de discurso hegemnico, rearticulando novas ordens de discurso, novas hegemonias
discursivas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 128)
O seguinte excerto discursivo de histrias de vida demonstra isso:
2003, quando eu comecei a ir pra rua pintar, o auge era OPZ e LPE, os
pichadores do Zepa e os pichadores da Liberdade. Era o auge, a guerra.
Primeiro grafite assim, um dos primeiros, n, que eu fiz na rua foi com
GORPO, e ah uma latinha de spray, liga pra polcia que to pichando, e a
polcia chegava e, cad a autorizao, no sei qu, to pichando, to
pichando.E hoje em dia, at sem autorizao, a prpria polcia v e tem
o discernimento de dizer, ah, no os caras to trabalhando de dia, to
fazendo uma pintura, e tal, tem aquele discernimento. (ZECA)
Em So Paulo, em Recife, s se considera grafiteiro, cara, o cara que passa
por esse processo, cara, e respeitar saber quem t pondo, cara, na rua, tem
que respeitar quem tava antes, cara. Aqui existiu algum que iniciou tudo

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isso. Vocs hoje to pintando porque algum sofreu no passado. Levar


tapa da polcia, como eu levei, como SAGAZ levou, em dois mil e tarar
atrs, de sofrer preconceito, da sociedade xingar. Hoje em dia muito
fcil. Hoje em dia qualquer pessoa pode pegar uma tinta e pintar,
porque t liberado. T liberado. (ZNOCK MORB)

Nesses excertos, identificamos que houve um investimento discursivo, mas tambm


acional desses sujeitos para que houvesse uma mudana da viso, at mesmo da polcia, sobre
essas prticas. , portanto, esse desejo de transformao que sugerem o texto, a prtica
discursiva e a prtica social do discurso da pichao e do grafite. Mesmo havendo essa
perspectiva de mudana, nesses eventos discursivos, observamos marcas tanto da ideologia
dominante quanto da contra-ideologia, embora os posicionamentos contra-ideolgicos e
contra-hegemnicos sejam uma condio sine qua non para a construo discursiva da
pichao e do grafite.
Essas anlises sugerem que o processo operado pela ideologia para hierarquizao
entre grafite e pichao, e para, consequentemente, gerar significados antagnicos entre eles,
incluindo uma e segregando outra dessas expresses culturais, nada mais do que a reiterao
do propsito de ordenamento social, tentando cumprir seu papel de dominao poltica e
ideolgica.
Observando as relaes estabelecidas entre o discurso e o processo scio-histrico no
qual se inserem os sujeitos que o produzem, constatamos que as duas verses discursivas
refletem os dilogos e as rupturas, a cooperao e a competio que se realizam na realidade
social. H um contraponto entre elas, uma vez que, enquanto uma estabelece regulao e
classificaes, outra as questiona. Enquanto uma se pauta pela certeza e pela ordem, outra,
revela ambiguidades e ambivalncias.
Assim sendo, apesar de o discurso oficial ditar as regras, o discurso da pichao e do
sinaliza para o estabelecimento de focos de luta pela superao de situaes de dominao e
de questionamento da hegemonia prevalecente.
Em razo disso, deduzimos que a hierarquizao entre pichao e grafite consiste
numa construo da ideologia social dominante, uma vez que essas prticas so similares, se
no iguais, conforme discutimos anteriormente. Deduzimos, ainda, que o que motiva essa
hierarquizao o esforo da ideologia dominante para reafirmar que o seu papel o de
quem d as cartas, e assim sendo, ela a responsvel por classificar e incluir/excluir.
Apesar de assim sendo, no podemos nos esquecer de que, a partir dos eventos
discursivos observados, mesmo nas ocorrncias da cooptao das tendncias contestadoras da
cultura de rua pela sociedade, mesmo no esforo para distinguir o ser grafiteiro/a do ser

89

pichador/a, evidencia-se a operao da ideologia que, por sua vez, acaba por gerar uma
contra-ideologia. Conforme afirma Gramsci, na dominao ideolgica, existem brechas nas
quais se constituem contra-ideologias (e contradiscursos) que se opem dominao e lutam
por reafirmar seu lugar social. (GRAMSCI, 1992, p. 62-63)
Dessa forma, enquanto as foras sociais centrpetas so postas em ao, emergem
foras centrfugas que se utilizam de estratgias para se articular nesse espao de negociao.
Melhor dizendo, at mesmo na atitude dos/as pichadores/as e grafiteiros/as, em se deixando
cooptar, podemos perceber a crtica e a contestao s estruturas condicionadoras.
Talvez estejam a pichao e o grafite se camuflando para no serem predados, apesar
de perseverarem nesse agenciamento, conforme veremos no item a seguir.

2.5 A agncia do sujeito nos muros da pichao e do grafite

2.5.1 A permanncia material da cultura

No so poucos os autores que tm voltado sua ateno influncia exercida pelos


aspectos culturais sobre a realidade social, no poucas vezes, sendo estes determinantes para a
que tal realidade possa ser descrita, explicada e interpretada, como o caso de Jefrey
Alexander, cujo objetivo terico problematizar o modo como os elementos de um sistema
social so mediados por cdigos culturais, o que resulta numa autonomia da cultura em sua
proposta de uma sociologia cultural (ALEXANDER, 2000, p. 294)
Concordamos com o ponto de vista de autonomizao da cultura, mas isso no
significa que esse procedimento se efetive a partir de uma mera permuta do modelo de anlise
social econmico pelo cultural, uma vez que essa simplificao parece-nos um tanto
insuficiente para a investigao sociolgica. Apesar de o foco estabelecido para discusso ser
a cultura, no podemos prescindir dos elementos econmicos e polticos que, numa via de
mo dupla, interseccionam-se e, reciprocamente, se influenciam. Fundamentamos nossa
posio no pensamento de E. P. Thompson, o qual para explicar a dinmica social, identifica,
na processualidade histrica, a dialtica da articulao entre o cultural, o econmico e o
poltico, embora, segundo ele, haja a autonomia dos acontecimentos polticos ou culturais
apesar de esses serem condicionados pelos acontecimentos econmicos' (THOMPSON,
2001a, p. 207) (grifo do autor).
Para E. P. Thompson, homens e mulheres, ao se confrontar com as necessidades de
sua existncia, formulam seus prprios valores e criam sua cultura prpria, intrnsecos a seu

90

modo de vida (THOMPSON, 2001b,p. 261). Assim sendo, necessidades, interesses e


condies materiais se articulam face permanncia material da cultura: o modo de vida, e
acima de tudo, as relaes produtivas e familiares das pessoas (THOMPSON, 1981, p. 195).
Raymond Williams, por sua vez, tambm considera a cultura em sua materialidade
como sendo:
todo um conjunto de prticas e expectativas, sobre a totalidade da vida:
nossos sentidos e distribuio de energia, nossa percepo de ns mesmos e
nosso mundo. um sistema vivido de significados e valores constitutivo e
constituidor que, ao serem experimentados como prticas, parecem
confirmar-se reciprocamente. (WILLIAMS, 1979, p. 113)

Essa materialidade da cultura tambm se revela nas prticas discursiva e social da


pichao e do grafite, como abordaremos no prximo item.

2.5.2 Marcas da experincia nas prticas discursiva e social dos/as pichadores/as e


grafiteiros/as

Orientando-nos por essa perspectiva terica, objetivamos promover uma discusso


sobre as experincias socioculturais da pichao e do grafite materializadas no discurso
veiculado pelos sujeitos que as vivenciam a partir das contribuies terico-metodolgicas
para a anlise da realidade histrico-social, propostas por Edward Palmer Thompson. Nessas
reflexes, enfocaremos, prioritariamente, o conceito de experincia, o qual consideramos
fundamental para a compreenso dessa prtica juvenil.
Para tanto, lanaremos mo de alguns exemplos de excertos lingusticos da pichao
e do grafite, constitutivos do corpus analtico de nossa pesquisa de mestrado (DUARTE,
2006), como tambm das histrias de vida de pichadores/as e grafiteiros/as.
Num primeiro momento, faremos uma breve contextualizao de E. P. Thompson,
quando enfatizaremos seu antagonismo ao estruturalismo althusseriano, ao mesmo tempo em
que lanaremos mo da contribuio de Gramsci para esse debate. Em seguida,
apresentaremos em que termos se institui a perspectiva terico-metodolgica de Thompson,
quando, finalmente, estabeleceremos um dilogo entre as contribuies trazidas por esse
historiador e as manifestaes sociodiscursivas da pichao e do grafite.

91

2.5.3 E. P. Thompson, seu contexto e sua crtica ao paradigma estruturalista

Edward Palmer Thompson est inscrito num contexto de crescente afirmao e


hegemonia do estruturalismo francs de Parsons e Smelser que, defendendo uma viso
totalizadora da sociedade, considera-a como constituda por estruturas interdependentes
subsistemas que desempenham papis em um sistema maior, a fim de garantir o
funcionamento harmnico do todo. Todas as questes desse perodo, portanto, giravam em
torno do paradigma reprodutivista e autolegitimado do sistema social. Tendo vivenciado tal
contexto, como tambm a ruptura com ele, Thompson se coloca como um sujeito desse
processo, produzindo, propondo e, ao mesmo tempo, desconstruindo o primado dessa
episteme. Refutando a tradio filosfica, sociolgica e historiogrfica que supervalorizou a
estrutura em detrimento do ator, tece toda uma crtica a esse contexto francs conservantista,
profundamente marcado por uma abstrao terica, voltada para as categorias sociolgicas, e
abre espao para a agncia do sujeito, construda no processo scio-histrico.
Determinante para essa postura do historiador, foram a influncia da sua militncia
poltica junto ao Partido Comunista Ingls e aos trabalhadores, como tambm suas referncias
terico-valorativas, cujas bases esto fincadas na linhagem de historiadores marxistas
fundadores da histria social britnica, tradio essa que se constituiu num polo de renovao
frente ao paradigma estruturalista.
Mantendo-se no marco marxista, leva a sua crtica para alm do que estava
estabelecido at ento, inserindo nessa abordagem a noo de sujeito, de autonomia, fazendo
emergir os elementos de cultura e a dimenso da subjetividade que no estavam presentes
nessa tradio. Assim, desestabiliza marcos conceituais, noes e estruturas institudas,
criticando o estruturalismo que, a partir do pensamento de Louis Althusser, atingiu tambm o
pensamento marxista.
Thompson contextualiza historicamente, no mbito do marxismo, o surgimento desse
paradigma e, semelhantemente a Gramsci, se contrape massificao e a consequente
vulgarizao do pensamento de Marx, oriundas das tradues feitas a partir da constituio
desse sofisticado sistema terico em movimento poltico, o que resultou nos marxismos
nuanados por interesses e compreenses mltiplas. Afirma ainda que na dcada de 50, os
estruturalismos [...] fluam com a corrente e se reproduziam por toda parte como ideologia
(THOMPSON, 1981, p. 86). Incomoda, pois, a esse historiador o uso do prprio marxismo

92

como uma ideologia no sentido marxista24 para encobrir a revelao de certos aspectos da
vida, o que denota uma simplificao da simplificao, uma vulgarizao da vulgarizao.
Outros marxistas de tradies diferentes tambm se contrapuseram a esses
reducionismos a que foi submetida a teoria marxista. Impressas no pensamento gramsciano,
por exemplo, encontra-se a refutao ao materialismo vulgar, que no deixa espao para o
sujeito e para a iniciativa poltica, e que consiste em reduzir uma concepo de mundo a um
formulrio mecnico [...]. Encontra-se tambm a afirmao de que a experincia sobre a
qual se baseia a filosofia da prxis [...] a prpria histria em sua infinita variedade e
multiplicidade... (GRAMSCI, 1992, p. 152). Nessa perspectiva, nas relaes vivenciadas
pelos sujeitos, no processo social interativo, podem surgir conflitos e contradies que
apontem para uma crise na hegemonia dominante (HALL; LUMLEY; MACLENNAN,
1983, p. 67).
Para Gramsci, hegemonia a capacidade de ser dirigente. No apenas de direo
poltica, mas tambm como direo moral, cultural, ideolgica (GRUPPI, 1978, p.11).
Atravs da luta poltica, a sociedade civil tem a possibilidade de transformar a sociedade para
construir uma nova hegemonia, uma capacidade de direo, uma nova mentalidade, uma nova
cultura, por meio do consenso. Isso se d em virtude de as prticas sociais terem um carter
inerentemente aberto, o que instabiliza o equilbrio da hegemonia. Ainda nessa concepo, o
termo hegemonia utilizado para referir-se s estratgias das classes subalternas, cuja cultura
no autnoma nem criticamente unificada. Sob esse ngulo, Gramsci privilegia a formao
social concreta e postula formular para ela um planejamento estratgico-ttico que possibilite
a ao poltica e social da classe minoritria e faculte a conquista do poder. (GRUPPI, 1978,
p. 68-69)
Enquanto, por exemplo, na perspectiva althusseriana, o sujeito neutralizado, frente
determinao da estrutura, na perspectiva de Gramsci, o pensamento e a ao do sujeito so
privilegiados. Na primeira, percebemos a marginalizao dos conflitos sociopolticos, das
contradies, dos tensionamentos e das lutas reais dentro da sociedade, predominando,
portanto, uma viso de dominao imposta unilateralmente. Consequentemente, na teoria
mecnica de Althusser, some o sujeito, some a experincia, some a histria. Por isso, apesar
de partir do pensamento de Marx, sua tese, exatamente por ser mecanicista, antagnica
24

Para Marx, ideologia o sistema ordenado de idias ou representaes e das normas e regras como algo
separado e independente das condies materiais, visto que seus produtores os tericos, os idelogos, os
intelectuais no esto diretamente vinculados produo material das condies de existncia. E, sem
perceber, exprimem essa desvinculao atravs de suas idias. (CHAU, 2001, p.20)

93

concepo marxista. E nesse ponto que E. P. Thompson constata que, pelas mos de
Althusser, o marxismo vulgar elaborado como uma teoria o estruturalismo que congrega
em seu bojo outros ismos: determinismo, reducionismo, mecanicismo.
Apresentando sua teoria como sendo uma leitura de Marx, Althusser defende, por
exemplo, que a ideologia um sistema de representao, uma relao imaginria vivida pelos
homens com as condies reais da existncia, e s se concretiza por existir sempre num
aparelho ideolgico concreto em cujo interior se determinam, aos homens, prticas e rituais
moldados pela ideologia. Essa reproduo se d devido imposio de conceitos e valores da
classe dominante dominada, via Aparelhos Ideolgicos do Estado AIEs (sistema poltico,
escolas, igrejas, canais de informao) e Aparelhos Repressivos do Estado AREs (governo,
exrcito, polcia, tribunais) que resulta sempre na estabilizao e na continuidade da
explorao de classes, por meio da ideologia e da represso. A partir dessa concepo
monoltica, unilateral defendida por Althusser, no h espao para a ambiguidade ou para a
transformao, uma vez que, ao interpelar os indivduos em sujeitos, os AIEs os subordinam
ideologia da classe dominante, assujeitando-os.
Esse assujeitamento ideolgico torna aparente a ao do sujeito, que pensa estar
trabalhando por si mesmo, mas que, na verdade est trabalhando por uma ideologia e numa
ideologia, reproduzindo-a, tendo suas aes ou prticas governadas pelos aparelhos
ideolgicos que so o local em que a funo prtico-social da ideologia dominante
assegurada.
Contrapondo-se a essa perspectiva, Thompson constri seu argumento, ressaltando as
consequncias dessa teoria para a construo de uma interpretao sobre a vida, sobre a
poltica, sobre a histria, sobre os acontecimentos. Em sua argumentao, resgata a
historicidade e a subjetividade que permeiam as prticas, apresentando sua percepo crtica,
assumidamente nos marcos do marxismo. O registro dessa contraposio se realiza na obra A
Misria da Teoria ou um planetrio de erros (THOMPSON, 1981) na qual esse autor tece
uma crtica terica e poltica a Althusser, afirmando que o estruturalismo althusseriano,
baseado em prticas repressivas, tolhe a liberdade da histria, desconsiderando a agncia
humana, ou seja, a experincia.
Convergindo para a perspectiva thompsoniana, temos a crtica de Deleuze (1974, p.
300):
o estruturalismo no um pensamento que suprime o sujeito, mas um
pensamento que o esmigalha e o distribui sistematicamente, que
contesta a identidade do sujeito, que o dissipa e o faz passar de um
lugar a outro, sujeito sempre nmade, fato de individuaes, mas

94

impessoais, ou de singularidades, mas pr-individuais.

Fairclough (2001, p. 121), por sua vez, conflui para a mesma direo, afirmando que:
A teoria althusseriana do sujeito exagera a constituio ideolgica dos
sujeitos e, conseqentemente, subestima a capacidade de os sujeitos
agirem individual ou coletivamente como agentes, at mesmo no
compromisso com a crtica e na oposio s prticas ideolgicas. [...]
os sujeitos so posicionados ideologicamente, mas tambm so
capazes de agir criativamente no sentido de realizar suas prprias
conexes entre as diversas prticas e ideologias a que esto expostos e
de reestruturar as prticas e as estruturas posicionadoras.

Do ponto de vista do estruturalismo, portanto, no podem ser contemplados os


discursos e as prticas sociais que surgem como reao hegemonia conservadora e que
trazem em si, implcitos, os confrontos vivenciados pelos sujeitos na sociedade. Discursos e
prticas que questionam, contestam e, muitas vezes, subvertem o conservantismo, sinalizando
para a subjetividade e para a alteridade, e apontando para a concepo que enfatiza a relao
dialtica entre estrutura e agncia humana (experincia, nos termos de Thompson), atravs da
qual esses fenmenos devem ser analisados. E exatamente a experincia o termo ausente
que consiste na contribuio especial de E. P. Thompson para a reelaborao das idias da
tradio incorporada por esse autor, conforme veremos no item subsequente.

2.5.4 A experincia devolvendo o sujeito ao processo

E. P. Thompson reconhece no marxismo uma possibilidade de pensamento crtico e de


prtica revolucionria. Na sua interpretao da noo de dialtica em Marx, esse historiador
parte do pressuposto de que todo pensar implica em agir e vice-versa, reconhecendo a relao
dialtica entre pensamento e ao, contrapondo-se s percepes estanques dessa relao,
como por exemplo, a althusseriana, que separa as duas e estabelece o primado de uma sobre a
outra, ou seja, da teoria sobre a prtica, de um teoricismo que se ope ao empirismo.
Assim sendo, esse historiador se referencia numa percepo emprica do mundo e
numa valorizao dessa percepo, o que resulta numa interpretao intrinsecamente
conectada com a dinmica da vida, diferentemente do espao institudo da Academia, a partir
do qual se posicionou Althusser. Para Thompson, fundamental trazer a realidade, o mais
vivamente possvel, para impulsionar o pensamento e consequentemente os sistemas tericos
que dele se derivam, no sentido de instaurar uma relao mais fecunda de dilogo entre o
pensar e o agir.

95

Uma vez que, com o estruturalismo, passou a prevalecer, notadamente, uma


referncia que subtrai a emergncia do sujeito e sua criatividade, e que enfatiza a ao das
determinaes estruturais dos mega-pactos, dos jogos das grandes potncias, dos estados
nacionais como sistemas sofisticadssimos, que objetivaram conter as aes humanas,
emergiram, na dcada de 60, os movimentos contraculturais, que contestaram a autoridade,
dando margem a uma percepo crtica desse momento.
esse contexto em ebulio, do qual E. P. Thompson foi partcipe, que influencia a
perspectiva terico-metodolgica apresentada por ele, para abordagem histrica desses
acontecimentos, na qual podemos detectar a ntida compreenso do homem como agente de
mudanas histricas, sociais e culturais. Da tambm surge a categoria experincia, a partir da
qual Thompson caracteriza a histria como resultante da prtica humana, devolvendo, dessa
forma, o sujeito ao processo.
Nas palavras desse historiador ingls:
O que descobrimos (em minha opinio) est num termo que falta: a
experincia humana. [...]. Os homens e mulheres tambm retornam como
sujeitos, dentro deste termo no como sujeitos autnomos, indivduos
livres, mas como pessoas que experimentam suas situaes e relaes
produtivas determinadas como necessidades e interesses e como
antagonismos, e em seguida tratam dessa experincia em sua conscincia e
sua cultura [...] das mais complexas maneiras (sim, relativamente
autnomas) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, atravs das
estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situao
determinada. (THOMPSON, 1981, p.182). (grifos do autor)

Essa categoria, indispensvel para a compreenso de como se desenrola a


processualidade histrica, permite-nos trat-la, contemplando a conscincia, os sentimentos,
os valores, os espaos de luta e os sistemas simblicos que subjazem experincia humana.
Na obra A formao da classe operria inglesa, por exemplo, fica clara a concepo que
Thompson tem da histria, quando, envolvido emocionalmente com o contexto sociocultural
ingls daquela poca, esse autor produz uma narrativa, enfatizando o agenciamento dos
sujeitos sociais na construo da realidade histrica.
De acordo com esse autor:
A experincia (descobrimos) foi, em ltima instncia, gerada na vida
material, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente, o ser
social determinou a conscincia social. La Structure ainda domina a
experincia, mas dessa perspectiva sua influncia determinada pequena. As
maneiras pelas quais qualquer gerao viva, em qualquer agora,

96

manipula a experincia desafiam a previso e fogem a qualquer definio


estreita de determinao. (THOMPSON, 1981, p.189) (grifos do autor)

Nessa assertiva de Thompson, reitera-se sua filiao terica ao marxismo, no que diz
respeito determinao da conscincia social pelo ser social (MARX, 1983b, p. 18), mas,
ao mesmo tempo, so acrescentados dados novos, quais sejam, a imprevisibilidade e a
indefinio da experincia do ator, que faz com que a estrutura ganhe vida, frente s
determinaes estruturais.
Para Thompson, a experincia no vivenciada apenas no plano das idias, como
sugeriu Althusser, mas tambm no plano dos sentimentos que dialogam com a cultura, a arte e
as convices religiosas, ou seja, na conscincia afetiva e moral, o que implica na
desconstruo da autonomia da moral, a partir da constatao de que os valores se vinculam
ao processo histrico, e de que toda contradio um conflito de valor, tanto quanto um
conflito de interesse (THOMPSON, 1981, p. 189). Tais valores, por sua vez, so vivenciados
na famlia, no trabalho e na comunidade imediata, espaos esses nos quais os sujeitos
realizam tal aprendizado.
Dessa forma, portanto, instabilizando a determinao estruturalista, a experincia
devolve o sujeito ao processo, mostrando que sempre se realiza um dilogo entre
determinao e escolha, entre o institudo e o instituinte. Os fins so escolhidos pela nossa
cultura, que nos proporciona, ao mesmo tempo, nosso prprio meio de escolher e de influir
nessa escolha (THOMPSON, 1981, p. 199).
No item a seguir, trataremos do dilogo entre as contribuies terico-metodolgicas
trazidas por esse historiador e as manifestaes discursivas da pichao e do grafite.

2.5.5 O dilogo da experincia dos/as pichadores/as e grafiteiros/as com o contexto


histrico contemporneo

Conforme pudemos perceber no item anterior, a experincia dinamiza sentimentos,


conceitos e valores, nas distintas prticas em que os sujeitos se inserem, o que tambm ocorre
nas prticas sociodiscursivas da pichao e do grafite em Campina Grande, atravs das quais
pichadores/as e grafiteiros/as representam muito das experincias vividas nesta cidade e da
influncia urbana em suas produes.
Por sua condio de subalternidade, e por se sentirem sufocados pelas determinaes
estruturais excludentes, esses atores assumem uma postura proativa, afrontam a

97

institucionalidade, no se importando com o risco a que se expem. Alguns exemplos das


manifestaes escritas dessas duas prticas25, nos muros campinenses, so suficientes para
que possamos observar que o discurso veiculado por esses/as jovens expressa os conceitos e
valores apreendidos por eles/as na materialidade do processo scio-histrico: A pica luta do
Black Cio X sistema. / Foda-se o sistema. / Liberdade de expresso. / Criar sem pedir
licena um mundo de liberdade. / PM o pior marginal. / nis na fita e os playboy no
dvd. / Proibido pichar ou pixar? / Reao da periferia. / Se apagar, eu volto. / Esta porra
quem comanda a zona leste. / Pichar fcil, difcil ser pichado. / Respeito pra
quem tem. / At quando? Descaso total, subdesenvolvimento, mo de obra barata,
coronelismo vivo (Nordeste). / No se venda, vote nulo. / Nem PM, nem MP, quem
comanda a OPZ. / Desordem e regresso, porm ptria amada. / Poucos com muito,
muitos sem nada. / S picho nibus porque papai trabalha limpando. (DUARTE, 2006)
O discurso coletado/gerado, a partir das suas histrias de vida, por sua vez, reiteram a
perspectiva de que o social e o histrico subjazem a essa construo discursiva.
Como todo evento discursivo mantm intrnseca relao com o contexto histrico e
social que o envolve, e como a natureza da prtica social influencia a prtica discursiva que,
por sua vez, produz efeitos sobre a prtica social, tais exemplos so significativos, por
revelarem os tensionamentos que constroem a conscincia moral e afetiva desses sujeitos na
convivncia pichao/grafite/sociedade. Por isso, suas prticas expressam uma subverso ao
padro que a estrutura delimita para eles.
Por invadirem, incomodarem, desafiarem, tornam-se, cada vez mais, alvo do olhar
vigilante e controlador da Legislao, porm isso no intimida sua prtica. Subversivamente,
desenvolvem aes relativamente autnomas sobre uma situao determinada, conforme
afirma Thompson. O potencial semntico-ideolgico constitutivo de suas manifestaes
comprova

serem

elas

efeito

da

complexidade

do

processo

scio-histrico

da

contemporaneidade, e demonstram que o sujeito manipula a experincia, desafia a


previso e foge a qualquer definio estreita de determinao.
Os seguintes excertos discursivos sugerem esse desafio determinao:
Ento eu sou a favor, p, do cara subir l em cima da Telemar. Foda-se
a Telemar! A Telemar fode a gente na conta do telefone, t ligado? Vai
25

Esses exemplos fazem parte do corpus analtico da pesquisa: DUARTE, Angelina. Se essa rua fosse minha,
eu mandava grafitar!!!: a construo discursiva do grafite de muro em Campina Grande PB. Dissertao de
concluso do curso de Mestrado Interdisciplinar em Cincias da Sociedade. Universidade Estadual da Paraba,
Campina Grande, 2006.

98

reclamar, tenta fazer uma reclamao da Telemar! Sobe l e picha,


ento, entendeu? / E ali, em tempo do segurana do trem chegar e meter bala
em todo mundo (ZECA)
A certo dia, certo dia, eu tava no aude velho [...] Veio PAGO e o
RABOK, disse: , o cara da LPE. E eu disse aos meninos: o cara da OPZ
quem . E todo mundo se conheceu, n. PAGO disse: eu t de rol hoje. A
eu disse: rapaz, a gente tambm vai de rol hoje. A eu disse: vamo se unir,
vi! A gente se encontra de quatro horas da manh, em frente lan house
tal, no Centro. Beleza! Fomos, pegamos nossa tinta e fomos encontrar com
eles. Nesse dia rolou um rol em conjunto. Foi o dia, o primeiro dia que a
gente invadiu a TELEMAR, n. Aquela coisa toda, que pra cidade foi
uma coisa, um prdio enorme, n. (ZNOCK MORB)
Aprendi muito, protestei bastante. Assim, aconteceu uma coisa comigo, eu
no tava pichando nesse dia, mas a gente meio que foi assaltada por policiais.
Os policiais vieram nos revistar, acharam sessenta reais em nossa
carteira, levaram uma parte. E eu fiquei revoltada com isso a. E lembra
de uma delegacia que tinha ali no, no, no Parque do Povo, na delegacia do
Parque do Povo tinha, no sei que l, policiais.Eu botei uma setinha em
baixo e, os piores marginais (MMS)26 (vide fotografia abaixo). Assim, fora
de posto de sade fechado, a pessoa colocava: Um absurdo! Coisas assim,
protestava com o geral, com o governo, com poltico, com tudo o que me
incomodava, e j que eu no podia chegar pra um policial e: p, seu amigo
me roubou, que no ia adiantar de nada, n? Eu fui l e mostrei pra todo
mundo que , so os piores marginais, mesmo. So os policiais, mesmo,
alguns, n? (INSANA)

Vejamos, abaixo, fotografia da pichao de INSANA - MMS, no posto policial,


conforme relatado em sua histria de vida:
Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 25 PM, o pior marginal (MMS) Rua Paulino Raposo. So Jos. Abril de 2005.

Neles, identificamos o agenciamento tanto discursivo como social, a capacidade


diretiva de sujeitos, que se sentindo incomodados com uma situao, protestam, utilizando26 Registrada em foto (DUARTE, 2006)

99

se de sua prtica cultural para expor sociedade sua crtica, sabendo eles que esta ser vista
por muitos outros sujeitos.
Tambm ao materializar na linguagem elementos pertinentes aos conflitos sociais, o
discurso pode remeter para a subalternidade caracterstica da matriz social de onde advm a
maioria dos/as manos/minas da cultura de rua. Nuanas desses conflitos esto
subentendidas tambm nas seguintes histrias de vida:
L na Zona Leste, at um aspecto cultural, a formao da molecada l
bem diferente daqui da Liberdade, que por sua vez bem diferente das
Malvinas, que bem diferente do Alto Branco. Olhando assim a
subcultura Zona Leste que faz parte de uma cultura, que Campina Grande,
a molecada l cresce vendo muito vizinho que t no presdio, tendo
irmo que tambm t no presdio. essa a mxima dentro de um sistema:
pregue a paz, mas se tiver necessidade, cobra, se for no caso de matar,
mata.O social em si ensina aquilo pra ele. O ser humano at certo ponto
produto do meio. A molecada l cresce com essa mentalidade. (PAGO)
[] E era interessante que a infncia a gente conviveu muito com os guri da
favela, sabe? Tive muito esse contato coma favela, tive muito esse contato
com pessoas humildes, sempre fui muito atrado, vi, pelas pessoas
humildes, assim. [] E eu fui vendo outra realidade, e da quando eu fui
caminhando e aprendendo coisas que eu apliquei at no grafite, que eu
apliquei na minha vida tambm. (ZNOCK MORB)

Esses mesmos tensionamentos, inscritos na conscincia e cultura de pichadores/as e


grafiteiros/as, surgem nas escritas nos muros, cujo planejamento estratgico demonstra que as
escolhas desses atores direcionam-se por propsitos subjetivos, polticos e ideolgicos,
predominantemente contestatrios e subversivos s relaes assimtricas e valores
legitimados pela ideologia dominante.
Assim, a pichao e o grafite revelam o desejo de legitimao de sua prtica, pelo
agenciamento desses sujeitos na construo da realidade histrica, inserida na produo social
geral, com seus efeitos, relaes de poder, reconhecimentos, posies ideolgicas,
constituio de identidades, o que j tem apresentado resultados, uma vez que as tendncias
do grafite tm sido cooptadas nas mais diversas esferas, sobretudo pela mdia, conforme
discutiremos no captulo IV, desta tese.
Constatamos, pois, que a experincia desses atores impulsiona mudanas na
processualidade histrica, porque, mesmo diante das determinaes estruturais, o sujeito
encontra espaos fronteirios para suas escolhas e aes. Assim, a pichao e o grafite
transpem as ordens de discurso hegemnico, instaurando novas hegemonias discursivas.
Dessa forma, pichadores/as e grafiteiros/as, dialogando com o contexto urbano
contemporneo, fluindo entre protesto e negociao, escrevem nos muros sua experincia,

100

expressam seus sentimentos, conceitos e valores, revelando que, nos interstcios de sua prtica
sociodiscursiva, instaura-se, tambm, uma perspectiva crtica em relao a muitas questes
vivenciadas por eles/as na materialidade social.
Do ponto de vista de E. P. Thompson, a partir da experincia vivenciada na realidade
material e cultural, para a qual foram devolvidos homens e mulheres reais, esses atores
assumem a agncia social, podendo reproduzir padres dominantes, mas tambm podendo
refut-los ou dar a eles uma nova formatao. Assim, devolvidos ao processo histrico, criam
seu espao de diferenciao, estabelecem um meio de participao na histria, reagindo s
determinaes estruturais, mas, ao mesmo tempo, se articulando, na medida do possvel, aos
propsitos da cooptao, para registrar sua experincia nesse cenrio plural e dialgico.
As contribuies terico-metodolgicas desse historiador, portanto, nos auxiliaram,
sobremaneira, nas reflexes sobre o agenciamento sociodiscursivo de pichadores/as e
grafiteiros/as, uma vez que, a partir delas, pudemos constatar a relevncia dessa perspectiva
para a compreenso da vida, do sujeito, da sociedade, da poltica e de toda a dinmica que
envolve o processo scio-histrico. A partir delas, pudemos identificar essa relao dialtica
entre estrutura e agenciamento humano, como tambm resgatar a historicidade e a
subjetividade que permeiam as prticas da pichao e do grafite na cidade de Campina
Grande.
Essas prticas, para se instaurarem na contemporaneidade, estabelecem negociaes
com a sociedade, o mercado e a mdia, conforme discutiremos no captulo IV, desta tese.
Antes, porm de abordarmos tais relaes, apresentaremos no captulo a seguir a
experincia etnogrfica que nos serviu de porta de acesso sociedade secreta.

101

CAPTULO III A PORTA DE ACESSO SOCIEDADE SECRETA: A


EXPERINCIA

ETNOGRFICA

NO

NCLEO

HIP

HOP

CAMPINA

___________________________________________________________________________
E a irmandade, doido, do hip hop? T ligado? A gente t dentro do
hip hop, a gente t criando faces pra brigar. Se o hip hop j veio
pra solucionar isso, se tinha as gangues de Nova Iorque que quando
se encontravam, matavam dois trs de cada lado, entendeu? Pra
solucionar isso, , passaram ao invs de brigarem, danarem break
pra ver quem danava melhor, entendeu? Vamos fazer um
campeonato de grafite pra ver quem grafita melhor! Entendeu? Mas,
porra, t indo de encontro a toda a proposta inicial da histria, que
apaziguar. T se dividindo em faces, e se dividindo em faces, e
guerreando entre si, eu fico triste com isso. (Histria de vida ZECA)

Com o objetivo de produzir um relato que pudesse refletir uma viso aproximada do
campo em que desenvolvemos nossa investigao, este captulo se constitui num exerccio
etnogrfico cuja proposta de, primeiramente, enunciar o modo como se instaurou a
experincia em foco, para, a partir dela, apresentar algumas reflexes acerca da dinmica que
permeia as relaes dentro do grupo estudado, a fim de desvendar o que est sendo posto na
interao que nele se realiza.
Seguindo os passos abordados por Foote White (1980, pp. 77-86), para quem
partilhar da convivncia com os nativos no implica em eliminao das diferenas culturais
entre investigador e investigado, iniciamos a observao participante nas reunies do Ncleo
Hip Hop Campina (NH2C) fundado no ano de 2007, contexto em que mantivemos contato
com os hip hoppers, apesar de o foco da nossa pesquisa ser, especificamente, grafite/pichao.
Detectamos que apesar de haver uma definio prpria para cada elemento
relacionado msica, dana ou parte grfica , a linha que os separa tnue, por haver
uma relao de complementaridade entre eles que so os pilares do hip hop em torno de um
objetivo comum: dar voz periferia. Assim sendo, h todo um investimento para que um
pilar valorize as especificidades dos demais. comum, por exemplo, haver intervenes
simultneas de grafite, rap e brake. Essa atitude visa ao fortalecimento dos hip hoppers em
torno de discursos, comportamentos, estilos e interesses, os quais passam a representar uma
marca identitria.
Nesse contexto, o grafite se destaca, uma vez que sua publicizao, em Campina
Grande, tem se ampliado, conforme discutimos no captulo II, desta tese. Pelas ruas desta
cidade, nos deparamos com murais em que a pichao e o grafite dialogam entre si e com a
sociedade, levantando, inclusive, temas da atualidade, como se fossem uma crnica sobre
nossa sociedade.

102

Outro aspecto digno de realce so as posies dicotmicas em relao a essa prtica,


em virtude das controvrsias estabelecidas entre os que tentam legitim-la, a partir de sua
condio esttica, em contraposio aos que, seguindo a Legislao Ambiental Brasileira, a
criminalizam. E essa dupla possibilidade de posicionamento que pe lenha na fogueira
das relaes entre os/as pichadores/as, grafiteiros/as, e entre pichao, grafite, sociedade e
Estado. Essas observaes so fundamentais para a compreenso de todo o processo interativo
no campo de estudo, como tambm entre ele e a conjuntura que o envolve.
Voltando experincia etnogrfica, a partir da 1 reunio da qual participamos no
NH2C, em 30 de maio de 2007, mergulhamos no universo do outro, tentando observar as
nuanas que a interao dentro do grupo nos permitiu entrever, para tecer algumas reflexes
sobre esse processo, esperando e plagiando Malinowski (1998, p. 21) que nossa vida na
aldeia no comeo, uma estranha aventura por vezes desagradvel, por vezes
interessantssima, logo assumisse um carter natural, em harmonia com o ambiente que nos
rodeava.
O referencial terico que norteou este exerccio etnogrfico teve como base os
trabalhos de Foote White (1980), Goffman (1975), Gluckman (1987), Malinowski (1998),
Geertz (1993) e Berreman (1980), por esses autores levantarem questes que implicam numa
situao mais prxima nossa pesquisa.
No item subsequente, apresentaremos um breve histrico do nosso campo de
observao.

3.1 Histrico do NH2C


O Ncleo Hip Hop Campina (NH2C), fundado em maro de 2007, foi idealizado por
Thiago Joh (DJ), George Macedo (DJ Frequncia Zero) e ZNOCK MORB (grafiteiro e MC),
com o objetivo de reunir militantes da cultura hip hop, o que se confirma na narrativa de
histria de vida de ZNOCK MORB:
Da, ento, veio 2007, veio o Ncleo Hip Hop Campina, que foi uma idia
de juntar, quatro elementos, que se viu que j se tinha na cidade, n? Tinha
uns caras que danavam na Zona Leste, na Zona Sul. Tinha uns caras que
grafitavam na Zona Sul e no Centro, sabe? Tinha um amigo nosso, Thiago,
que era DJ, tinha passado uma fase difcil na vida, tal, tinha chegado dos
Estados Unidos, e tal. Problemas pessoais, ele foi pra l, voltou, tal. E, de
repente, era DJ e tal. A, oxente, vamo unir tudo! N? Na verdade, quem teve
essa idia, eu, Frequncia Zero e Thiago.

103

A pgina da comunidade do NH2C, no site de relacionamento ORKUT, contm o


seguinte texto de abertura:
o nh2c um grupo de jovens que resolveram se unir e se organizarem dentro
da filosofia do hip hop.realizando projetos sociais e culturais agente procura
dar uma contribuio para todos da cultura hip hop e tambm todos que so
carentes de informao e divero na cidade de campina grande. as reunies
acontecem
no
cuca
as
quartas
de
7
30h
da
noite!
familia ta unida!!!!!!27
(http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=28780230)

Em seu incio, contava com 12 membros, tendo havido um aumento significativo


desse nmero. Em 25 de novembro de 2007, contava com 78 membros cadastrados28
representantes dos trs elementos rap, break e grafite alm de DJs e MCs e simpatizantes.
Por volta de meados do ano 2008, o Ncleo j listava 84 membros.
No dia 20 de junho de 2007, foi formada uma diretoria, assim constituda:
PRESIDENTE: Thiago Alcntara (DJ Joh); 1 SECRETRIO: George (DJ Frequncia Zero);
2 SECRETRIA: INSANA (grafiteira); 3 SECRETRIO: ZNOCK MORB (grafiteiro e
MC); TESOUREIRA: CASH (grafiteira); RELAES PBLICAS: Fbio Santos (MC);
DIRETOR DE PROJETOS: ZECA (grafiteiro). Nela, podemos ver a expressiva participao
do grafite. Dos sete cargos, quatro foram ocupados por grafiteiros/as.
Segundo um texto explicativo (vide ANEXO E), distribudo pelo presidente, durante
reunio do dia 30 de maio de 2007, os membros cadastrados realizam reunies semanais a
fim de traar estratgias sociais e culturais que tragam benefcios para as pessoas mais
carentes de educao, conhecimento e diverso. Ainda, conforme esse informativo, o Ncleo
Hip Hop Campina, como entidade sociocultural, tem como finalidade:
I Difundir a cultura nas suas mais diversas formas de expresso, enfatizando a
cultura na sociedade;
II Propiciar populao carente meios de insero social atravs da formao
cultural;
III Divulgar a cultura atravs das mais variadas formas de expresso artstica:
msica, cinema, artes plsticas, teatro, entre outras;
IV Estimular o debate da sociedade sobre a cultura e a solidariedade entre os
diversos segmentos sociais;

27

Descrio da comunidade do NH2C, no ORKUT. (obs: Optamos por manter a redao original desse texto,
como tambm dos demais utilizados nos captulos desta tese, oriundos de pginas ou comunidades do orkut)
28

Vide ANEXO F modelo de ficha/cadastro NH2C.

104

V Planejar aes integradas com outras entidades que tenham finalidades


semelhantes do Ncleo Hip Hop Campina;
VI Incentivar a valorizao e a difuso das manifestaes culturais;
VII Democratizar o acesso aos bens de cultura;
VIII Valorizar a diversidade tnica e regional, enfatizando o repdio a qualquer
tipo de preconceito;
IX Defender e valorizar o patrimnio cultural brasileiro;
X Garantir o direito de toda pessoa a ter acesso s fontes de cultura, usando de
todos os mecanismos legais para fazer valer o direito cultura como direito de
todos;
objetivo do Ncleo Hip Hop Campina combater todas as formas de
discriminao, mediante aes que despertem na sociedade a necessria
integrao entre as pessoas e o convvio com a diferena.
***

Logomarca utilizada pelo NH2C na poca de sua fundao foto copiada do orkut de DJ JOH
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=16692791000543478951

Logomarca utilizada pelo NH2C atualmente (12/08/2010) foto copiada do orkut de DJ JOH
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=16692791000543478951

105

No ano de 2010, segundo informao de alguns membros do Ncleo, as reunies


semanais foram extintas, em virtude de o espao cedido pelo CUCA, para tal fim, ter sido
inviabilizado. No incio deste ano, o dirigente do NH2C, Thiago Alcntara, passou a
coordenar a Central nica das Favelas (CUFA) Campina Grande, uma ramificao da CUFA
Paraba. (http://www.cufaparaiba.org/index.php)
Vejamos, abaixo, uma fotografia do dirigente do NH2C no 5 Encontro Nacional da
CUFA:

FOTO 15 (Nega Gizza, Manoel e Dj Joh)


Fotografia copiada do Orkut de DJ JOH fevereiro de 2010
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=16692791000543478951

Importante ressaltar que o dirigente do NH2C filho de uma famlia da classe mdia
alta, residente nesta cidade pai mdico e me comerciante , no sendo, portanto, oriundo da
periferia da cidade de Campina Grande ou de outro municpio qualquer. Sua ligao com o
Ncleo e com a CUFA se estabeleceu a partir de sua atividade no hip hop, como DJ.
Quanto CUFA, trata-se de uma organizao que tem o rapper MV Bill como um de
seus fundadores, foi criada a partir da unio entre jovens de vrias favelas do Rio de Janeiro
principalmente negros que buscavam espaos para expressarem suas atitudes,
questionamentos ou simplesmente sua vontade de viver. (http://www.cufa.org.br)
Aps essa breve incurso pelo histrico do Ncleo, apresentaremos o modo como se
instaurou o nosso exerccio etnogrfico.

106

3.2 Gnese da experincia etnogrfica

A instaurao dessa experincia ocorreu, nos anos 2004 a 2006, em um momento


bem anterior ao nosso primeiro encontro com o NH2C, quando desenvolvamos nossa
pesquisa de mestrado (DUARTE, 2006). Naquele momento, apesar de termos reunido um
vasto material para anlise, sentimos que nos faltava ouvir a voz dos/das que escreviam nos
muros campinenses.
Conseguir essa audio no foi um empreendimento dos mais fceis, pois, em virtude
da ilegalidade da pichao e do grafite, perante a Lei de Crimes Ambientais (Lei n.
9.605/98), a dificuldade de identificao desses sujeitos foi o nosso primeiro e maior
empecilho, mas como tudo um dia, no sabemos como, acontece, durante uma caminhada
que fazamos no Parque da Criana logradouro pblico desta cidade deparamo-nos
miraculosamente com um grafiteiro desenhando num dos muros daquela rea. Ousamos
cham-lo para saber seu nome, identificamo-nos como pesquisadora do grafite, e
apresentamos, brevemente, nossa proposta de pesquisa, ao que ele respondeu com um olhar
de desconfiana, como a querer nos decifrar. Aproximou-se, meio cabreiro, como se diz no
Nordeste, mas se permitiu identificar, dizendo ser ZECA sua tag29. Foi ento que
perguntamos se poderamos conversar qualquer dia, ao que ele, ainda visivelmente receoso,
disse que sim, dando-nos seu contato telefnico.
A primeira impresso que tivemos foi a de que ele havia nos atendido, s para nos
dispensar o mais rpido possvel, com o intuito de voltar ao muro que lhe servia de tela.
Sequer pensamos que ele, algum dia, atenderia nosso telefonema, quando o procurssemos.
(Seria bom demais para ser verdade!) Estvamos enganada. Assim que ligamos, ele marcou
um encontro conosco na casa da sua av, local em que residia. E a conversa que ali se iniciou
tem tido continuidade at hoje.
Abrimos aqui um parntese para contar algo que, definitivamente, representa a
relao de confiana que se estabeleceu entre ns e esse grafiteiro. Em 11 de setembro de
2008,

para

surpresa

nossa,

encontramos,

na

nossa

pgina

do

orkut

http://www.orkut.com.br/Main#Home.aspx?tab=m0 o seguinte depoimento de ZECA:


Conheci Angelina quando ela me procurou para colaborar com sua tese de
mestrado, sobre graffiti. Foi-se o mestrado, agora o doutorado e eu continuo
colaborando com prazer para que essa brilhante pesquisadora atinja todos os
seus objetivos. Deixando o acadmico de lado um pouco, Angelina uma
29

Tag corresponde ao pseudnimo usado pelo grafiteiro para assinar sua produo.

107

criatura de luz, que irradia paz e tranquilidade a todos sua volta. Nesses
anos de convivncia e intercmbio entre o Hip-Hop e o meio acadmico,
minha admirao por ela aumenta gradativamente. Tudo de bom pra voc e
sua famlia sempre!
Fotografia Slvia Duarte

FOTO 16 ZECA e eu - Parede frontal do CUCA Centro Universitrio de Cultura e Arte novembro de
2004.

A descoberta desse grafiteiro, por ns, foi decisiva para todo o percurso da
pesquisa, tendo sido ele a porta, o carto de visitas que nos deu credibilidade para que o
grupo de hip hop aceitasse nossa presena em suas reunies. Recebemos, pois, o apoio de
ZECA, um indivduo-chave, uma autoridade, de muito prestgio dentro do Ncleo, por ser
ele um dos grafiteiros mais antigos e atuantes na cidade.
Um detalhe importante no pode ser ocultado: ZECA faz parte de uma das
crews30mais expressivas do grafite em Campina a UZS (Unio da Zona Sul), contra a qual
uma crew de outra zona da cidade a OPZ (Organizao Pichadora do Zepa) trava disputas
constantes. As histrias de vida confirmam a rixa entre a OPZ e a LPE/UZS:
Tudo vem duma rixa que a gente tem, que a zona sul com a zona leste,
entendeu? Seria o povo ali da Liberdade, do Quarenta, com o povo do Z
Pinheiro, Monte Castelo, que eu no sei dizer de onde vem, eu sei que
assim, dentro das torcidas organizadas, assim. comum a Torcida Jovem do
Galo brigar com a Torcida Faco, s que dentro da Torcida Jovem do Galo
j teve um confronto histrico, assim, dentro da prpria torcida, do bonde
Zona Leste contra o Bonde Zona Sul, dentro da prpria torcida, entendeu?
(ZNOCK MORB) (grifo nosso)

O fragmento acima exposto evidencia um primeiro aspecto da sociedade secreta,


qual seja a rivalidade contra outros grupos, evidenciando tambm que a gnese desta pode
30

Crew o nome dado ao grupo ao qual o grafiteiro se vincula.

108

ocorrer em contextos externos ao da prpria sociedade, havendo um processo de


retroalimentao. Percebemos, ento, a complexidade do nosso campo investigativo. O que
para ns, at ento, se resumia a uma disputa entre zonas da cidade, revelou nuanas
profundas de conflitos exteriores ao grupo, mas ao mesmo tempo indispensveis ao
funcionamento interno dele. Essa rixa migrou das torcidas organizadas (TJG e TFJ 31) para o
grupo de pichao LPE, e de grafite UZS32, contrapostos OPZ, ampliando-se para as zonas
sul e leste desta cidade, retornando torcida, quando do confronto entre os bondes33 da zona
leste contra a zona sul, ambos contendo torcedores do Treze. Assim sendo, a anlise em
profundidade revela camadas semnticas que permeiam tanto prticas simblicas quanto
materiais.
A histria de vida de INSANA vem acrescentar um detalhe a essa disputa, no que diz
respeito motivao da postura desses grupos:
Rolava uma rivalidade muito grande, OPZ e LPE. Eram as maiores siglas
de pichao, maiores e quase nicas, na poca. Conflito de cada um querer
ser mais do que, at porque o conflito na pichao uma coisa meio que
essencial, porque cada um querendo fazer mais alto.Se eu fao um no
segundo andar, eu sou da LPE, exemplo, eu fao um nome no segundo
andar, vai vir um da OPZ querendo fazer no terceiro. E eu vou querer voltar
l pro quinto logo. E assim vai indo. (INSANA)

A foto abaixo (DUARTE, 2006) ilustra o confronto simblico que se gesta no contexto
social.
Fotografia: Angelina Duarte

Foto 17 (Pichaes: Acima de ns, s Deus. PAGO OPZ versus No desafie a todos. FDL LPE
Avenida Floriano Peixoto. Centro. Maio de 2005.

31

Torcida Jovem do Galo (do Treze Futebol Clube) e Torcida Faco Jovem (do Campinense Clube)

32

Segundo a histria de vida de ZNOCK MORB, a LPE e UZS so sociedades cuja origem e membros so os
mesmos, mas LPE a sigla utilizada para a pichao, enquanto UZS a sigla utilizada para o grafite.
33

Segundo a histria de vida de NAAH, o bonde tem um envolvimento com torcidas organizadas, com todo um
contexto mais pesado, mais violento.

109

Nela, o grafiteiro Pago, do grupo OPZ, escreveu quase no topo de um prdio: Acima
de ns, s Deus. Em resposta a ele, o grafiteiro FDL, do grupo LPE, grafou no topo do
referido prdio: No desafie a todos. Percebemos que na prpria disposio grfica dos
textos que se opem, encontra-se expresso o esforo de um para superar o outro.
O que motiva esse conflito o desafio de querer ultrapassar o adversrio, tambm
muito prpria das torcidas organizadas, alm de que o aspecto de violncia e cobrana que
subjaz essa atitude coletiva desses jovens no se limita esfera dos smbolos nos muros,
resultando em confrontos fsicos.
Ainda a histria de vida de NAAH explicita as consequncias materiais resultantes
dessas disputas, quando uma tag de um/a pichador/a ou grafiteiro/a queimada34 por um/a
rival. Isso vai te acarretar uma consequncia: ou todas as suas tags serem apagadas,
pichadas, a mesma coisa, ou um atrito, mesmo, fsico, uma agresso.
Nos grupos femininos, a postura idntica dos masculinos quanto rivalidade e
quanto ligao com torcida organizada. Segundo NAAH, em Campina, teve dois grupos de
meninas que pichavam, n: a MUS e a MMS, rivais at hoje.
Essas relaes de disputa pelo poder, pelo territrio, pelo prestgio, trazem tona
um primeiro aspecto conflitivo nesse espao de sociabilidade. Muitos adolescentes de outras
zonas urbanas se distanciaram do NH2C, pelo fato de, desde o momento de criao do
Ncleo, ter havido uma participao macia dos pichadores e grafiteiros da Zona Sul, o que
sugere, por um lado, uma hegemonia da UZS, e por outro, uma reao de faces que a ela se
opem. Um grafiteiro da ZL35 (Zona Leste), por exemplo, disse a esta pesquisadora que no
viria mais a essas reunies porque a UZS quer tomar conta de tudo; que o Ncleo no do
hip hop, mas da UZS.
Outro detalhe fundamental para nossa reflexo o de que, aps a fundao do NH2C,
dentro da UZS crew, surgiu uma outra ramificao, da qual ZECA participa: a crew TUDO
NOSSO, cujo nome revela o domnio do espao urbano exercido por esse grupo.
Quanto interpretao primeira vista desse grafiteiro sobre ns, foi se
modificando significativamente, de l para c, conforme pudemos confirmar a partir do
depoimento criado por ele a nosso respeito. Essa mudana visvel teve incio quando
34

Segundo a histria de vida de PAGO, queimar botar um X por cima, uma histria assim, danificar o
trabalho da pessoa.
35

Uma vez que este texto ser veiculado em mdia impressa e digital, por uma questo tica, a fim de evitar
problemas entre grupos que se opem, decidi manter o anonimato deste grafiteiro, procedimento esse que se
repetir em momentos posteriores deste texto, desde que tratem de situaes prximas a essa.

110

retornamos os resultados da pesquisa anterior para os/as grafiteiros/as, entre os quais estava
ele. Cpias da nossa dissertao algumas impressas e outras em CD foram distribudas
com todos/as os/as que participaram como sujeitos da investigao, tendo sido os resultados
partilhados com eles/as.
Sabendo que, como qualquer pesquisa, e particularmente a social, deve se pautar pela
tica e pelo respeito ao outro, sentimo-nos no compromisso de retornar ao campo para
apresentar os resultados do trabalho. Essa postura favoreceu a que, num segundo momento,
guardadas as devidas propores, percebssemos que se instaurou uma relao de confiana e
de respeito dele e dos demais membros do Ncleo ao trabalho que desenvolvamos, alm do
que nos sentimos bem mais familiarizada com o mundo desse grupo juvenil, apesar de
reconhecermos o papel diferencial do pesquisador na prpria existncia de tal grupo.
O prprio ttulo do relatrio final do trabalho foi retirado, com autorizao dos
autores, de uma frase presente num grafite produzido pelos grafiteiros campinenses ZECA e
SAGAZ36 (vide foto abaixo).
Fotografia Angelina Duarte

FOTO 18 Grafite produzido por ZECA e SAGAZ, na Rua Desembargador Trindade, Centro. Campina
Grande abril de 2006.

Assim sendo, esse pontap inicial da experincia etnogrfica, que nos permitiu uma
localizao no NH2C, implicou em tornar passvel de interpretao as diferentes posies, os
textos e os contextos em que se desenvolvem as relaes entre esses diversos atores que se
debatem, cooperando e competindo, na interao social, dentro de um campo cuja paisagem
ainda nos era estranha, conforme abordaremos no item a seguir.

36

O ttulo : SE ESSA RUA FOSSE MINHA, EU MANDAVA GRAFITAR!!!: a construo discursiva do


grafite de muro em Campina Grande PB.

111

3.3 A paisagem e o campo


Quando j nos preparvamos para realizar a segunda investigao sobre a qual versa
este relato, ainda cheia de incertezas de como teramos acesso ao grupo a ser estudado, em
um belo dia que, mais uma vez, no sabemos como aconteceu, recebemos um telefonema
de outro grafiteiro, GORPO, tambm sujeito da nossa primeira pesquisa, informando-nos
sobre a criao do NH2C, e convidando-nos para participar das reunies que se realizariam
nos domingos tarde, no CUCA (Centro Universitrio de Cultura e Arte). Segundo esse
grafiteiro, o principal objetivo da criao do Ncleo era a congregao de hip hoppers das
distintas zonas urbanas, para que o discurso e as prticas culturais do Movimento fossem
unvocos.
Sentimo-nos surpresa, e ao mesmo tempo feliz, porque seria essa a chance de manter
contato com grafiteiros/as e pichadores/as das diversas zonas e crews da cidade de Campina
Grande que convergiriam para tais reunies.
Aceitamos o convite, e nossa primeira preocupao foi a de como seramos recebida
pelo grupo. Planejamos todas as estratgias que utilizaramos para nos inserir no campo de
pesquisa: o que falar, como nos comportar. Preparamos toda a encenao, sobre a qual
Goffman (1975, p. 233) discorre, inclusive escolhendo o traje mais descontrado que
deveramos estar usando na ocasio, a fim de no destoar muito do padro utilizado pelos hip
hoppers.
Imagine-se entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou acompanhado de seu
guia branco (MALINOWSKI, 1998, P. 19). Chegando ao local da primeira reunio, no dia
30 de maio de 2007, s 15h e 30 min., cumprimentamos o grupo que, na ocasio era composto
de quatorze jovens dos quais trs eram do sexo feminino , comunicamos que havamos
sido convidada por GORPO um dos pioneiros do grafite em Campina37, e portanto, outra
autoridade nesse campo.
Apresentamo-nos aos presentes, dizendo que objetivos nos levavam a estar ali com
eles, semanalmente, alm de perguntar se algum do grupo se opunha a que participssemos
dessas reunies, ao que ningum declarou oposio.
Eles estavam reunidos em um reduzido espao fsico correspondente a uma pequena
sala secretaria do CUCA, cedida pela direo desse rgo estadual com poucas cadeiras, o
que obrigava os presentes a ficar de p ou a sentar na marquise de alvenaria que serve de

37

Dado coletado na pesquisa de Mestrado (DUARTE, 2006).

112

balco para atendimento do pblico. Para ns, como sinal de cordialidade, foi cedida uma
cadeira que antes estava ocupada por um b-boy38. A reunio durou cerca de duas horas, tendo
sido discutidos diversos assuntos pertinentes aos objetivos do Ncleo. Durante esse tempo, a
maioria do grupo fumou ininterruptamente, o que me incomodou muito, mas tentando manter
o controle de impresso (BERREMAN, 1980, p. 140), e em respeito ao espao e opo
deles, conseguimos fingir uma certa naturalidade. A impresso que tivemos foi a de que o
uso do cigarro remete a uma autoafirmao dos/das adolescentes no que diz respeito
liberdade de escolha, como uma representao do status adulto.
Embora tenhamos percebido que alguns dos hip hoppers nos olharam obliquamente,
sentimo-nos que a maioria se esforou para encenar uma relao amistosa, tendo o dirigente
do NH2C dito que ramos muito bem vinda ao grupo e que j tinha conhecimento do trabalho
desenvolvido por ns sobre o grafite. Nesse instante, sentimos um alvio por termos visto que
a aceitao foi a sinalizao deles para o primeiro passo da construo de uma relao de
proximidade que determinaria a realizao da pesquisa.
Assim, por saber que essa construo , tambm, uma parte fundamental da
investigao, empenhamo-nos para no faltar a nenhum dos encontros, a fim de que o grupo
pudesse perceber tanto nosso compromisso cientfico, quanto nosso interesse pelo hip hop.
Passado um ano de convivncia, consideramos que a relao pesquisadora/pesquisados/as
sofreu significativas mudanas, uma vez que a observao participante garantiu que
assumssemos um lugar naquele mundo. Com o tempo, o grupo comeou a requerer de ns
certas funes, como por exemplo, a elaborao de ofcios para rgos oficiais, a correo de
textos produzidos por eles, a produo de mensagens para folders de divulgao do NH2C, a
participao como entrevistada, em vdeo sobre o Ncleo, dentre outras.
Exemplificando, aps um bom perodo de convivncia, fomos procurada por
GORPO, para prefaciar uma publicao contendo fotos de seus grafites, texto que
transcrevemos a seguir:
GRAFFITHAYRONI
Spray, criatividade, ao, imagem-arte: graffiti.
Graffiti: sinnimo, THAYRONI.
Signos distintos, mas profundamente intertextuais.
Duas faces de uma mesma moeda.
Variveis de uma mesma equao.
Pensar um sem o outro, impossvel.
Pretenso intil separar corpo e alma.
Pretenso intil exilar do cncavo, o convexo.
38

B-boy a denominao do hip hopper que dana o break vertente coreogrfica do hip hop.

113

Cidade, muro, trao, cor, poesia: GRAFFITHAYRONI.


Encantei-me pelo graffiti primeira vista. Quando conheci Thayroni
Arajo Arruda, o encantamento se aguou. Atravs da sua spray-arte, eu
que pensava em apenas coletar dados para minha pesquisa de mestrado, fui
presenteada com lentes novas para ler os muros e para enxergar a dinmica
que motiva essa expresso urbana da contemporaneidade. Entendi, ento,
que o graffiti no pode se limitar a um dado analtico e que sua dimenso
artstica precisa ser evidenciada.
E para falar da arte, falar do artista fundamental. Mas no fcil
falar sobre Thayroni. Melhor seria fazer um graffiti (quem dera!) e, to bem
quanto ele, exprimir em imagem a imagem que tenho dele. As imagens, sim,
dizem muito mais do que as palavras pretendem. Estas s vezes nos traem e
nem sempre representam a essncia do que queremos dizer. Mas como
ainda no sei grafitar, o jeito escrever.
Graffiti, para mim, poesia. Sob a tag GORPO, est o poeta
Thayroni. Em suas mos, o muro que sempre teve como funo hifenizar,
isolar, transmuta-se para servir de ponte para o dilogo com a sociedade.
Pena que nem todos lhe dem ouvidos, pena que muitos estejam
anestesiados. Mas que ouam os que tm ouvidos de ouvir, que vejam os
que tm olhos de ver...
Compondo o repertrio imagtico do espao urbano, invadido pelo
entrecruzamento de linguagens e imagens que dialogam num ritual de
constante ressignificao, o graffiti de Thayroni marca presena, tatuando os
frios muros da cidade com cores e tons de crtica e poesia. Seu trabalho
representa uma nova potica na cena urbana cuja expressividade flui do bico
do spray. Seus traos e cores transformam paredes mortas em painis
artsticos, ao ar livre, com paisagens de contestao, criatividade e
conscientizao, redimensionando a condio de um simples muro,
tornando-o espao de expresso da arte.
E como a arte precisa ser sentida, busquemos sentir a grandeza de
Thayroni, na grandeza do graffiti que ele produz, na grandeza do
GRAFFITHAYRONI.

114

FOTO 19 Foto copiada do orkut de GORPO


http://www.orkut.com.br/Main#AlbumZoom?uid=7208282472710661659&pid=1209773143378&aid
=1$pid=1209773143378

Por eles terem sido informados, por ns, sobre o lugar de onde falvamos, sobre a
posio que ocupvamos no grupo, foi fcil delimitarem tarefas pertinentes a nossa
localizao nesse universo. Tal espao cedido a ns evidenciou que jamais poderamos estar
numa posio de ausncia, uma vez que esses so momentos de interface, nos quais o
desempenho de funes implica em papis, o que relevante para a pesquisa. Sentimos que o
grupo se utilizava do nosso papel de pesquisadora/professora para que, atravs dessa atuao
junto a eles, pudssemos contribuir para a legitimao dele perante a sociedade, favorecendo a
uma mudana discursiva que se estenderia para a esfera social.
No blog do NH2C http://nh2crepresenta.blogspot.com/ , o texto sobre o II Encontro
Hip Hop Campina, do qual participamos, traz uma referncia a esta pesquisadora, conforme
poderemos observar a seguir:
O II Encontro Hip Hop Campina foi realizado em Dezembro de 2008 e teve
a participao de vrias crews da cidade. DJ Joh comandou os toca discos,
tivemos a participao de Grando MC e Daniel Mordkai, e uma batalha de
Mcs onde Snoopy ganhou com sua rima e flow bem apurados. Tambm
participaram da batalha Indigente MC, Pleiade, Chacal , Cibaleno, Big over
e Zeca. Na dana os grupo Guereiros do Ritmo, Power move e vrios outros
mostarram responsa nas batalhas de B-boy estilo individual e estilo dupla. O
apoio da Vidrobox, Da Laboremus e de JC Rocha material de contruo foi
de extrema importancia para um evento que teve a presena de 248 pessoas

115

dos quatro cantos da cidade de Campina Grande. A Millys tambm apoiou


com a presena do Skatista Profissional Jason e de prmios. No grafite O
virna, Mala, Sponja, Bruno, Lorena , Zeca, Thyrone, Cego, Julian, Tonta,
Lua, Izabel, Mega, Son e mais uma p de irmozzzinhos que fortalecem o
Hip Hop em Campina.
Obrigado a todos que contribuiram e trabalharam para realizao desse
evento, Tcito, Adriana, Paulo, Daniel Mordkai, Fabiano da Laboremus,
Wener da Vidrobox, Jason da Isrrael, Manuel, Caio, Sponja, Son, Vnicius,
Jair do MST, Andreza, Mc Grando, Deti, Ivis, Dona Moema, Angelina
(nossa madrinha) e todos que fizeram de corao acontecer essa parada!!!
(grifo nosso)

Outro exemplo disso que, em um projeto Ao Hip Hop Campina , aprovado


pelo FIC/PB (Fundo de Incentivo Cultura Augusto dos Anjos), no final do ano de 2008, o
Ncleo solicitou que nosso nome integrasse a lista de membros responsveis pela efetivao
das atividades, o que, na viso do grupo, daria um maior respaldo e sinalizaria para o
credenciamento dessa proposta. Nesse tipo de pesquisa, recomenda-se ao etngrafo que de
vez nem quando deixe de lado mquina fotogrfica, lpis e caderno, e participe pessoalmente
do que est acontecendo (MALINOWSKI, 1998, p. 31). Esse projeto foi aprovado para ser
executado em 2009, embora no tenhamos conhecimento de quando se deu sua efetivao.
A necessidade de legitimao se d porque a popularizao do movimento hip hop,
no Brasil, se vinculou tica miditica que o apresentou sociedade, associando-o ao
comportamento dos grupos jovens de cultura de rua, como agentes da desordem e da
violncia, veiculando essa imagem pela divulgao dos arrastes no noticirio e nos
cadernos policiais (HERSCHMANN, 2000, p. 18). Aqui cabe ressaltar que nos empenhamos
para no anuir com essa viso que rima adolescncia com violncia, embora at possamos,
pelos resultados da investigao, encontrar elementos que a comprovem.
Essa relao conflituosa do hip hop, com a sociedade e com o Estado, um aspecto
fundamental para a interpretao da dinmica e dos tensionamentos recprocos que se
estabelecem no processo interativo tanto dentro do grupo quanto fora dele. Esse e outros
aspectos sero pontuados no prximo item.
3.4 Repertrios e implcitos na interao do NH2C: o espao de controle e disputas que
a cortina esconde
A primeira reunio de que participamos foi encaminhada pelo dirigente do NH2C que
iniciou sua fala informando os objetivos que norteariam esse grupo, quais sejam, o de difundir
a ideologia do movimento, e o de congregar representantes dos trs elementos do hip hop,
oriundos das diversas zonas da cidade de Campina Grande, a fim de que o discurso e a prtica

116

cultural dos hip hoppers campinenses no apresentassem discrepncias. Tais objetivos, por
sua vez, sugeriam (como se isso fosse possvel!) que as tenses e contradies que emergem,
sobretudo, entre faces de pichadores/as e grafiteiros/as rivais, fossem, se no eliminadas,
pelo menos amenizadas. O dirigente disse literalmente que no queria diviso zona norte/
zona sul, que isso deveria ser abominado, que os hip hoppers so cidados do mundo e no de
uma zona. Esse detalhe sobre o controle das disputas foi o primeiro que me chamou a
ateno.
O segundo ponto muito enfatizado por ele, e que tambm nos chamou a ateno, foi o
de que, com que essa nova configurao proposta pelo NH2C, a cidade ficaria livre das
conhecidas pichaes, j que os pichadores ascenderiam de categoria, passando agora a
se apresentar como escritores do grafite cujas produes se caracterizariam por conotaes,
exclusivamente, estticas que, por sua vez, deveriam exercer o papel de levar mensagens
educativas sociedade: sobre drogas, sobre meio ambiente, entre outras. A narrativa
construda pelo dirigente, sobre a univocidade dos propsitos do Movimento hip hop, como
tambm sobre a delimitao e homogeneizao dos procedimentos a serem seguidos pelos
membros do grupo, realou a ativao de um mecanismo de controle que, subliminarmente, se
evidenciava no seu discurso.
Nessa atitude, notamos a sincronia entre a proposta da regulao social para
disciplinamento dessas prticas, e o discurso do dirigente sob o qual subjaz o interdiscurso da
higienizao urbana.
Na terceira parte da obra Vigiar e Punir, Foucault (1977, p.117) trata da disciplina que
considera como o conjunto de mtodos que favorecem o controle minucioso das operaes do
corpo, sob a imposio de uma relao de docilidade-utilidade. Conforme esse autor, tais
processos disciplinares no eram novidade, quando surgiram, uma vez que j se realizavam,
h muito tempo, nos conventos, nos exrcitos e nas oficinas, mas nos sculos XVII e XVIII,
transformaram-se em frmulas gerais de dominao.
Tcnicas das distribuies da disciplina se iniciavam pela determinao do
posicionamento dos indivduos no espao. Atravs do princpio do
quadriculamento, estabelecia-se o lugar de cada indivduo, objetivando a
formao de grupos, o desmanche de coletividades e a anlise de
pluralidades confusas. Sob esse prisma, a organizao do espao analtico
pela disciplina permitia a vigilncia de comportamentos e a mensurao de
suas caractersticas, para que atravs de tal procedimento, eles pudessem ser
conhecidos, dominados e utilizados. Outro princpio importante da vigilncia
era o da localizao funcional, ou seja, lugares determinados se definem
para satisfazer no s a necessidade de vigiar, de romper as comunicaes
perigosas, mas tambm de criar um espao til (FOUCAULT, 1977, p.
123).

117

Com essas tticas, realizava-se o adestramento do corpo social, de multides


confusas, mveis, inteis de corpos e foras, e o poder disciplinar fabricava indivduos
atravs da disciplina. Nesse contexto, a utopia da cidade perfeitamente governada exigia
que a prtica da rejeio dos bafios pestilentos se implantasse, criando exlios-cerca, a fim
de que a comunidade fosse purificada, por processos de individualizao para delimitar
excluses. De certa forma, esses mecanismos do poder em torno de estranho, ainda hoje, se
evidenciam, objetivando marc-lo para modific-lo.
No panorama sociocultural, a pichao e o grafite podem ser considerados estranhos,
uma vez que convivem com alguns mecanismos de excluso, sendo, sobretudo, medidos e
controlados por dispositivos disciplinares. Em muitos momentos, seu discurso sugere a
existncia de uma luta para se articular com a sociedade, a fim de que seus conceitos e valores
possam ter validade perante o discurso dominante. Nessa luta poltica, alm do poder
dominante, emerge um contrapoder, ou seja, uma contra-hegemonia, na concepo
gramsciana, dos subalternos para que possam se confrontar, no plano ideolgico, com a
ideologia dominante. Dessa forma, a luta poltica assume um papel central nas prticas
culturais.
Gruppi (1978. p. 90), discutindo a hegemonia das classes subalternas, em Gramsci,
afirma:
Da contradio entre foras produtivas e relaes de produo, da
contradio de classe nasce a ao da classe subalterna, primeiro de modo
espordico, no coerente, no guiado por uma teoria, por uma estratgia
poltica, mas que depois com a conquista da teoria, da concepo do
mundo e do mtodo de anlise torna-se coerente, expressa-se a nvel
cultural, critica a cultura tradicional, prope uma nova cultura.

Mesmo nos espaos de dilogo entre a cultura hegemnica e a cultura de rua,


observamos que o objetivo da primeira exercer seu poder de controle e disciplinamento
sobre a segunda. Bauman (1999, p. 81) denomina esse procedimento disciplinador de
desestranhamento ou domesticao do estranho, e tece uma crtica a essa prtica,
considerando-a uma reafirmao da inferioridade e da indesejabilidade de quantos estejam
margem do modelo defendido pela modernidade. Diz ainda que o estranho uma pessoa
cuidadosamente vigiada, podendo chegar, no mximo, a ser um ex-estranho. Seu pensamento
corrobora com a idia de que o estigma uma marca impossvel de ser apagada. O objetivo
do estigma salientar a diferena como princpio permanente de excluso. A instituio do
estigma serve eminentemente tarefa de imobilizar o estranho na sua identidade de Outro
excludo. (BAUMAN, 1999, p.79).

118

Segundo esse autor, na sociedade moderna, o estigma se situa no centro de uma


contradio. Ele refutado, por lanar uma sombra ao aperfeioamento ilimitado proposto
pelo projeto moderno, estando assim em desacordo com ele, mas ao mesmo tempo,
praticamente indispensvel para os princpios da homogeneizao sobre o territrio que
deve ser submetido ao controle.
Algumas fronteiras socioculturais j tm apresentado uma certa mobilidade para a
cultura de rua, embora, nessas movncias, a preocupao com o alastramento das
manifestaes, sobretudo, da pichao ganha reforos para disciplin-la. Sabemos que esse
disciplinamento, muitas vezes se torna necessrio, uma vez que a defesa dos patrimnios
pblico e privado reivindicada pela sociedade que se sente prejudicada pela ao de
pichadores/as e grafiteiros/as. No nos cabe aqui, porm, avaliar o mrito dessa questo, j
que este no se constitui objetivo de nossa pesquisa. Deter-nos-emos, portanto, em enumerar
os mecanismos disciplinares de tal prtica.
O primeiro reforo para o processo de disciplinamento o da utilizao pedaggica.
Algumas instituies de ensino, percebendo a dificuldade de conteno das pichaes que,
muitas vezes, invadem as paredes e os muros das prprias escolas, propem espaos internos
para a produo do grafite, a fim de que essa prtica se limite ao ambiente pedaggico
determinado e, assim sendo, tenham a ordem e a disciplina mantidos. oportuno lembrar que
o aluno, a quem atribuda a dificuldade de produo escrita, na sala de aula, muitas vezes
o/a pichador/a ou o/a grafiteiro/a que, espontaneamente, produz seu texto. Durante nossa
pesquisa de mestrado, por exemplo, na coleta de dados, observamos que a incidncia de
pichao/grafite no entorno das escolas motivo de registro. Verdadeiros painis de palavras,
frases, smbolos e imagens, registrados nos muros, remetem para a dinmica do processo
scio-histrico da sociedade, da qual a escola uma instncia. Chegamos concluso de que,
de todos os espaos sociais escolhidos por esses sujeitos, para as suas produes, o muro das
escolas um dos mais expressivos. No toa que despontam, no ambiente educacional,
projetos para incluso dessas manifestaes, cujo objetivo, embora subliminar, no deixe de
ser o disciplinamento dessa prtica e a conseqente higienizao dos muros que circundam as
escolas.
O segundo reforo que o da cooptao. Para impedir que seus estabelecimentos
comerciais sejam detonados por esses sujeitos, como freqentemente ocorre, muitos
comerciantes se aliam a eles e autorizam a produo do grafite artstico nas portas e
paredes desses espaos, pagam pelo trabalho e dizem querer divulgar a arte. Essa uma das
estratgias utilizadas pelos comerciantes para manter o controle dessa atividade que invade

119

e suja seu patrimnio. No difcil encontrarmos o grafite nas portas de ferro das oficinas,
nos muros de clubes e de empresas e nas reas de lazer, patrocinado pelos proprietrios desses
espaos, os quais executam a profilaxia para prevenir o que consideram um mal e, ao mesmo
tempo, disciplinam essa atividade, condicionando-a aos interesses de quem sempre tem o
lucro como objetivo-mor.
Aqui reportamo-nos ao episdio ocorrido em 2008, quando 40 pichadores/as
adentraram, sem autorizao, Bienal Internacional de Artes de So Paulo e l deixaram sua
marca. A fim de evitar que o fato se repetisse, no ano de 2009, a curadoria do evento
convidou trs daqueles pichadores, na condio de artistas, para representar o movimento do
pixo (com o x no lugar do ch, como preferem). O que era interveno urbana ganha
agora status de arte, arte marginal, urbana, proibida e transgressora. Detalhe: Nessa entrada
da pichao pela porta da frente, no foi permitido o uso do spray, com o que os pichadores
concordaram, afirmando: Optamos por um trabalho documental. Consideramos que essa
descrio autoexplicativa, no que se refere ao disciplinamento. (http://g1.globo.com/saopaulo/noticia/2010/09/apos-invasao-em-2008-pichadores-sao- convidados-voltar-bienal.html)

O terceiro reforo para controle dessa atividade o da mercantilizao. Em vrias


instncias sociais, inclusive nas governamentais, projetos so desenvolvidos para legitimar as
prticas da cultura de rua. So oferecidos cursos e oficinas de grafitagem, nas mais variadas
tcnicas, a jovens que j picham sob o apelo da profissionalizao. No captulo IV, desta tese,
essa estratgia ser melhor discutida, j que, pela sua vinculao com a mdia e o consumo,
requer uma discusso mais aprofundada sobre ela.
Quanto ao ordenamento proposto pelo NH2C, na materialidade, revela o contrrio. As
disputas nos muros (como tambm fora deles) se acentuaram, sugerindo que no to fcil
conter essas manifestaes juvenis, porque elas representam as experincias desses sujeitos,
travadas nas em suas relaes societais na periferia, mas tambm porque tais relaes so
permeadas por tenses que se mostram tambm nas escritas produzidas por pichadores/as e
grafiteiros/as.
Exemplo disso foi um episdio de desentendimento entre grupos rivais, em uma
reunio do Ncleo, que tematizou trs das histrias de vida, ocorrido na poca em que era
apresentado seu discurso em prol da apaziguao. No prprio espao do NH2C, a ao
desconstruiu o discurso.
[] E fizeram uns bomb, na parte de baixo do viaduto. MEGA, SOM, tal. E
a galera da OPZ passou por l, meteu tinta em cima. A eles fizeram uma
campanha anti OPZ. Meteram tinta em cima de todas as pichaes da OPZ.
E vieram pra reunio do Ncleo. Veio, saiu daqui de trs, daqui da rua do

120

CEDUC aqui, saiu uns vinte da OPZ escondido, foram pra cima, a tava
MEGA ,SOM e CEGO, vieram armado de faca, j prevendo. T muito
prximo daquele negcio que uma coisa da torcida organizada, n?
Voc querer matar o outro porque o outro, , representa uma sigla
diferente da sua, entendeu?A energia que podia t sendo canalizada pra
uma luta em prol de alguma coisa t sendo gasta entre ns mesmos.
Estamos nos ferindo, entendeu? (ZECA)
Teve uma confuso envolvendo piche e grafite. Chegou outras pessoas e
danificaram o trabalho da gente. A caramba, por j ser uma cultura de rua, e
de certa forma tem uma ideologia que vinga ali dentro, [...] Essa ideologia
da gente fez com que a gente tomasse uma providncia. [] O coletivo
se juntou e tomou as devidas providncias. Na hora do vamo ver, eu
apartei geral a confuso, e eu ainda, que eu tenho voz l na zona leste. A os
moleques apanharam ainda, mas conseguiram se sair. Se eu no tivesse
agido como eu agi, p, os moleques iam ter parado no hospital, porque
chegou um grupo grande com a gente, um grupo grande, de duas partes
da zona leste. Um moleque armado e tudo. (PAGO)
A gente t em 2008, a cidade ainda tem uma mentalidade horrvel. A idia
era matar o menino. [] a OPZ tem um coletivo chamado PSICOS, que
assim, vrias pessoas podem colocar, mas o mesmo tag. Fizeram l no
viaduto. A veio o SOM e o MEGA fizeram um bomb, de um lado e um
bomb do outro. Cobriram um P, um pedao do P. O que foi que fizeram?
Juntaram 25 pessoas, e foram atrs de matar o menino. L no Ncleo Hip
Hop Campina. O CEGO tinha ido prevenido, com uma faca. O CEGO
puxou e deu num menino da OPZ. Faltou trs dedos, Angelina, faltou trs
dedos pra pegar na jugular do menino. Talvez voc no saiba, porque t
chegando agora, mas existe um submundo dentro do hip hop, cara. S quem
quem sabe. muita coisa podre dentro, cara. A gente se desentende.
(ZNOCK MORB)

Os trs excertos narrativos acima s confirmam a existncia da rivalidade entre


grupos, o que dificilmente ser controlado. A fim de melhor ilustrar o ocorrido, vejamos
abaixo fotografia dos bombs, os quais resultaram nesse tensionamento recproco:
Fotografia: Angelina Duarte

FOTO 20 Viaduto Elpdio de Almeida Centro da cidade de Campina Grande (agosto de 2008)

121

Na parte inferior dessa imagem, identificamos o nome do coletivo PSICO'S, do grupo


OPZ, em letras finas, de cor preta, e os bombs, em letras vermelhas, com as tags MEGA e
SOM. A letra A da tag MEGA foi escrita sobre uma parte do P, de PSICO'S. Sobre as tags
vermelhas, podemos ver tambm um X e um risco, o que significa que elas foram
queimadas pelo grupo OPZ, o qual se sentiu ofendido. Assim, essa imagem representa a
relao conflituosa que se evidencia tanto dentro quanto fora do espao do NH2C.
Aqui cabe um aparte, para lembrar que os muros das cidades so cobertos por
mensagens contestatrias direcionadas s instituies representativas desse mundo adulto
famlia, religio, lei, governo mas tambm a grupos de pichadores/as e grafiteiros/as entre
os quais ocorrem rivalidade e disputa pelo espao urbano. Em ambas as formas, sugerida,
tambm, a pretenso do/a pichador/a e do/a grafiteiro/a pela ocupao de uma posio de
prestgio. Semelhantemente briga de galos balinesa, as relaes intra e extragrupais do
NH2C so uma dramatizao das preocupaes de status. (GEERTZ, 1993, p. 304).
Por outro lado, existe uma analogia entre essa atitude adolescente e a postura de
transgresso empreendida por eles/as frente ao disciplinamento proposto pelos adultos.
Compreender essas manifestaes e relaes implica, portanto, em reconhecer o fato de que
esses sujeitos so adolescentes, e assim sendo, que essa condio influencia suas prticas.
Simultaneamente, ocorre tambm uma demarcao do status do grupo que consegue melhores
posies nessa disputa, ou seja, do que mais se destaca, qualitativa e quantitativamente, em
sua produo.
Voltando aos dois pontos que nos chamaram a ateno na nossa experincia
etnogrfica, quanto ao discurso do dirigente do Ncleo, a primeira reflexo que fazemos a
de que a predominncia da temtica do grafite, nos minutos iniciais da sua fala, evidencia o
lugar de destaque desse elemento dentro do hip hop, exatamente por existir a polmica sobre a
definio do que seja pichao/grafite, no havendo essa bifurcao em nenhum dos demais
elementos. Cremos que, por esse motivo, em todas as demais reunies de que participamos, as
discusses tenham girado, em sua maioria, em torno dessa polmica. Isso sugere que pichao
e grafite so os filhos mais trabalhosos do hip hop.
Talvez essa postura do NH2C revele uma preocupao com o perfil engajado que o
hip hop quer apresentar, para que, em lugar da posio marginal em que ele foi colocado,
possa haver uma mudana de perspectiva, a partir do dilogo entre esse movimento e a
sociedade, com suas mltiplas performances culturais.

122

Continuando seu discurso, o dirigente volta a se referir s manifestaes do grafite,


dizendo que a rivalidade entre torcidas organizadas de times de futebol39, expostas em
pichaes, no seriam mais admitidas, ficando proibida inclusive a entrada, nas reunies, de
qualquer membro que estivesse vestindo a camisa de um dos times de futebol da cidade. Esse
foi um aspecto a mais de reiterao da perspectiva disciplinar, implcita no discurso em pauta.
Tudo aparentemente ia bem com esse discurso homogeneizante, quando, no prprio
ambiente do encontro, comeam a surgir contestaes. Um grafiteiro discorda da imposio
da no identificao da zona e da crew a que pertencem os/as grafiteiros/as, reafirmando o
discurso do pertencimento. Duas grafiteiras que torcem por times rivais, deixam vir tona a
rivalidade que vem se dando entre elas, numa discusso que revela uma disputa que j vem se
desenrolando, h muito tempo, e que teve seu ponto culminante, segundo uma delas, no
momento em que a primeira derramou um balde de tinta sobre o grafite da segunda, como
forma de vingana por ter a rival pichado a sigla do seu time de preferncia no muro da casa
da outra. Nesse instante, os nimos se exaltaram e o dirigente tentou contornar a situao,
repetindo o que j havia dito sobre a necessidade de unio do grupo. Apesar disso, as
grafiteiras fingiram concordar, mas em episdios posteriores, cenas semelhantes se
repetiram em nossa frente, quanto mais, em segredo.
Nesse momento de exacerbao dos nimos, os laos da encenao perante a
pesquisadora se afrouxaram, a espontaneidade sugeriu uma aproximao das relaes
conflituosas que se realizam na sociedade, que segundo Gluckman (1987, p. 297) se fundam
no conflito, diferentemente de outros autores que veem a sociedade como autorregulada.
Assim se confirma que a integrao e a sociabilidade so marcadas por tais relaes, e que por
mais que sejam construdos o cenrio e os mecanismos de controle, vem tona a dinmica
implcita na interao.
Segundo esse antroplogo:
Todas as relaes sociais tm dois aspectos: um de diviso, no qual
interesses divergentes tendem a romper a relao; outro de fuso, atravs do
qual os laos comuns em um sistema de coeso social reconciliam esses
interesses divergentes. Diviso e fuso no esto presentes somente nas
histrias dos grupos e relaes especficas, mas so inerentes natureza de
uma estrutura social. (GLUCKMAN, 1987, p. 297)

39

Em Campina Grande, h muita rivalidade entre as torcidas organizadas do Treze Futebol Clube TJG (Torcida
Jovem do Galo) e do Campinense Clube TFJ (Torcida Faco Jovem) sendo que essa rivalidade tem
servido de temtica para muitos textos escritos nos muros da cidade.

123

At mesmo o repertrio lingustico dos presentes reunio se modificou nesse


instante de tenso. As expresses usadas pereciam pertencer a um dialeto desconhecido.
Apareceram frases como: Ela queimou meu trampo, Tem de ter respeito pela lombra do
bicho, t ligado?, Vou mandar a real, No pode ter lance de torcida organizada, Tem
bicho sujando a rea, Fico triste de ver essas paradas aqui no Ncleo, Vamos ter
responsa, Isso papo de torcida e de pichador, Eu t fazendo o meu, t ligado?,
Safadeza, egosmo, pilantragem, peso, foi peso!.
Abrimos aqui um parntese para dizer que essa cena nos lembrou o pensamento de
Malinowski quando elencou uma srie de aspectos a serem observados pelo investigador:
Alm do esboo firme da constituio tribal e dos atos culturais,
cristalizados que formam o esqueleto, alm dos dados referentes vida
cotidiana e ao comportamento habitual que so, por assim dizer, sua carne e
seu sangue, h ainda que registrar-se o esprito os pontos de vista, as
opinies, as palavras dos nativos: pois em todo ato da vida tribal existe,
primeiro, a rotina estabelecida pela tradio e pelos costumes; em seguida, a
maneira como se desenvolve essa rotina; e, finalmente, o comentrio a
respeito dela, contido na mente dos nativos. (MALINOWSKI, 1998, p. 32)

Elementos paralingusticos complementaram a paisagem: rostos avermelhados, bocas


cheias de saliva, gestos grotescos, palavres, alterao no tom de voz, dentre outros. Mesmo
em meio a toda essa polmica, alguns membros do Ncleo mantiveram-se indiferentes, e essa
atitude tambm se repetiu em outras reunies, o que revela pontos de clivagem ao lado de
posies divergentes, sugerindo, essas ltimas, que tal postura indica os que esto menos
comprometidos com a representao e com a coerncia da organizao social desse grupo.
Por outro lado, pode ser que eles/as no queiram se comprometer com uma ou outra demanda
poltica, dentro do Ncleo, embora algumas camadas semnticas de suas atitudes tenham se
mantido secretas para ns.
Apesar de o dirigente do NH2C tentar exercer uma liderana, essa se relativiza pela
prpria lgica social que permeia a interao. Interesses contrariados, opinies
desconsideradas, conflito instalado. Evidentemente, nem todos/as estavam ali com os mesmos
objetivos defendidos pelo dirigente do Ncleo. Da mesma forma que havia os que,
sintonizados com as metas do grupo, se submetiam a seguir as regras estabelecidas,
provavelmente, havia outros movidos por motivaes diferentes, talvez at mesmo por
curiosidade, ou pelo desejo de promoo social.
Sobre essas motivaes, as histrias de vida esclarecem: existe a pichao consciente,
existe a pichao anarquista, existe a pichao gangster, existe a pichao burra, por nada, o
cara que sai na rua e bota o nome dele, Ednaldo. (ZECA); tem duas categorias de pichador:

124

um que faz por moda, no sabe de verdade o que o piche e vai l e faz. E outro que, como
bastante relativo o conceito de arte, fazem aquilo como arte. (PAGO)
Naquele instante, comeamos a enxergar o espao que a cortina esconde, pois
percebemos que:
[] as aes sociais so comentrios a respeito de mais do que elas mesmas;
de que, de onde vem uma interpretao no determina para onde ela poder
ir. Fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas, as piscadelas
epistemologia, ou incurses aos carneiros revoluo, por que eles so
levados a isso. (GEERTZ, 1993, p. 34)

Iniciou-se, ento, nosso maior desafio, porque tnhamos tido acesso a zonas
protegidas pela fachada que foi construda para representar a homogeneidade do NH2C, como
um espao de sintonia e coeso social em torno dos ideais e valores defendidos pelo
movimento hip hop.
E como afirma Goffman:
No quero dizer que haver aquela espcie de consenso que surge quando
cada indivduo presente, candidamente expressa o que realmente sente e
concorda sinceramente com os sentimentos expressos pelos outros presentes.
Esta forma de harmonia um ideal otimista, no sendo de qualquer forma,
necessria para o funcionamento regular da sociedade. (GOFFMAN, 1975,
p. 18)

Os tensionamentos recprocos que presenciamos, num episdio to curto, fizeram-nos


perceber a complexidade do campo em que estvamos inserida, e nos ajudaram nas reflexes
que fizemos sobre nosso papel de pesquisadora em condies de pesquisa postas em um
contexto poltico de disputa entre faces rivais, como tambm nos alertaram sobre as
implicaes ticas que essas condies exigiriam de ns, sobretudo porque entramos no grupo
por intermdio da vertente dominante que, na poca, era a UZS.
Tais reflexes nos mostraram que, essa insero, nos possibilitou detectar que os
argumentos do dirigente do Ncleo estavam sendo utilizados para legitimar uma demanda
poltica que se confronta rotineiramente com interesses de outras demandas polticas. Por isso
mesmo, todo o nosso cuidado e toda a nossa ateno foram poucos, para dar conta da
amplitude de interfaces e de dimenses analticas que se descortinaram nesse cenrio que se
apresentou sempre inusitado e desafiador, como tambm o cenrio da sociedade secreta.
Na continuidade do nosso exerccio etnogrfico, durante o perodo correspondente a
um ano, foram inmeros os desvelamentos acerca dessas relaes conflituosas.
Nas reunies que se sucederam, pudemos perceber que o discurso da direo se
repetia, no sentido de estabelecer um ambiente harmnico entre os membros do Ncleo,

125

independentemente do elemento ou da zona urbana a que estivessem vinculados. Ouvi frases


como: No quero diviso Zona norte / Zona sul. Isso deve ser abominado! Somos cidados do
mundo. O muro como se fosse nosso filho. Vamo prestar ateno no compromisso!
Paralelas a ele, giravam as discusses acerca das intervenes de grafite que o Ncleo
promoveria, em espaos pblicos de diversos bairros da cidade, a fim de divulgar a
grafitagem, e, consequentemente, o movimento, alm de integrar cada vez mais os hip
hoppers desta cidade. Em muitas dessas intervenes, aliavam-se ao grafite, os demais
elementos do hip hop. Exemplo disso foi o Projeto hip hop: quebrando os muros do
preconceito que se realizou no presdio do Serroto40 na poca, com 900 detentos , quando
se reuniram em um domingo, quinze representantes dos distintos elementos e propiciaram aos
presidirios um dia de atividades culturais, incluindo oficinas de grafite.
O grafiteiro ZECA assim se expressou sobre essa experincia:
Pra gente chegar numa cadeia como a gente j foi, ali, no presdio do
Serroto, e fazer um dia diferente ali com os presos, entendeu? [...] So
pessoas estigmatizadas, n? [...] Ento a gente chegar ali, naquele ambiente,
e levar um pouquinho de de alegria, fazer com que eles se sintam tambm
iguais a gente, ali naquele dia eles so iguais gente, a gente t preso igual a
eles, entendeu? Apesar de que no fim do dia a gente v sair. (ZECA)

Alm desse, foram tambm criados o Projeto Expedio, cuja proposta era
semelhante do anterior, e se destinava a promover intervenes de grafite e dos demais
elementos, percorrendo a maior quantidade de bairros possvel, nesta cidade, mensalmente, e
o Projeto hip hop nas escolas.
Aps postos em prtica tais projetos, nas reunies de avaliao, comearam a surgir
outras pendncias, novamente relativas ao grafite sobre a diviso equitativa do espao no
muro , o que levou o dirigente do NH2C a propor uma reunio com a diretoria para discutir o
uso do Ncleo para promoo pessoal, tendo ele reafirmado: Reunimo-nos para nos unir! A
ideologia do Ncleo a unio, o empenho. Deve haver respeito s normas pra no virar
molecagem.
Mas as atividades continuavam se realizando. O Ncleo participou do Encontro
Nordestino de hip hop, em Joo Pessoa, em setembro de 2007, e do I Encontro Nacional de
Rappers e Repentistas (Rap e Rep: Hip Hop Repente frente a frente), em Campina Grande,
em outubro de 200741; desenvolveu, no ms de novembro, uma campanha contra o crack;

40

41

Presdio da cidade de Campina Grande.

Nesse evento, participamos das palestras, de uma oficina de grafite e observamos uma interveno de grafite
num mural, no bairro do Catol.

126

colocou no ar o blog http://nh2crepresenta.blogspot.com/2007; alm de ter conseguido aprovar


um projeto Ao Hip Hop Campina, de Thiago Alcntara de Andrade Henriques (diretor do
Ncleo), no FIC (Fundo de Incentivo Cultura Augusto dos Anjos), em 2008.
(http://maycirilobrazil.spaces.live.com/blog/cns!80610C9AE0EA91E8!718.entry)
Em uma outra reunio, foi abordada, enfaticamente, a questo da inexistncia de
polticas pblicas para o hip hop, temtica essa sempre constante no discurso de Thiago: a
gente mesmo. Ningum abre espao pra gente, no. No podemos ficar dependentes do
governo! Recebemos proposta da Prefeitura Municipal, no aceitei. Estado, tambm no
aceitei. Precisamos ser independentes. Com o respaldo que a gente t agora, a gente
consegue tudo. Consegui a verba pra legalizar o Ncleo.
Unificao de propsitos e independncia eram, portanto, palavras-chave na fala do
dirigente do Ncleo, em todas as oportunidades em que ele fez uso da palavra, durante nossa
experincia etnogrfica.
Numa das reunies do incio do ano de 2008, novamente, comearam a se evidenciar
questes que sugeriam uma certa desestabilizao dos propsitos estabelecidos pelo dirigente.
Assim sendo, Thiago decidiu lembrar aos membros do Ncleo que havia uma hierarquia no
NH2C, ao que ZECA rebateu suscitando a necessidade de descentralizao dessa direo,
uma vez que todas decises e atividades estavam ficando na mo de uma nica pessoa. Na
defensiva, o dirigente afirmou que lder tem que ser uma pessoa serena. No pode ser
tendenciosa. No pode ter parcialidade. Tem que ter toda uma postura. ZECA permaneceu
irredutvel quanto descentralizao. Thiago, por sua vez, concluiu o dilogo, afirmando que
no poderia haver o uso do NH2C para projetos particulares.
Esse rpido episdio tambm apontou para o que havia por trs da cortina, uma vez
que, embora no dito explicitamente, ambos os discursos estavam impregnados pela crtica e
contestao recprocas, e por pressuposies.
Como na briga de galos balinesa, ali se instaurava uma guerra caricaturada de eus
simblicos e uma simulao formal das tenses de status (GEERTZ, 1993, p. 312). Se houve
proposta de descentralizao, pressupomos que havia um monoplio das decises. Em
seguida, ao apresentar os critrios necessrios a um lder, pressupomos que o dirigente do
NH2C estava se autodescrevendo, a fim de assegurar sua posio de liderana. J na
concluso do dilogo, pressupomos que havia um incmodo pelo uso do Ncleo para fins
individuais.
Esse cenrio que constitui o NH2C possibilita a ocupao, em um mesmo espao, de
diferentes sujeitos, com diferentes sentidos, trajetrias e significados. Os tensionamentos entre

127

eles ainda eram uma incgnita para ns, quando as narrativas de histria de vida vieram a nos
auxiliar no desvendamento da trama que havia se instaurado no NH2C. Em quase todas elas,
as relaes com o Ncleo apareceram como temtica transversal, conforme veremos no item
subsequente.

5.5 O NH2C como tema nas histrias de vida

As cinco entrevistas de histria de vida agregaram significados a muitos episdios


presenciados por esta pesquisadora na experincia etnogrfica junto ao Ncleo Hip Hop
Campina, uma vez que o acesso s camadas semnticas de cada um desses eventos foi
facilitado pelos que tinham conhecimento de todo o contexto interativo no qual se instalavam
as relaes dentro desse grupo, como tambm de todas as implicaes decorrentes delas.
Assim sendo, a emergncia do tema NH2C, em pelo menos quatro dessas cinco
narrativas, foi um fator decisivo para elucidao de questes que se apresentaram de modo
tcito no discurso dos membros do Ncleo.
Unificao, homogeneizao e coeso eram a tnica discursiva, embora a realidade se
distanciasse dessas metas. Essa constatao foi possvel graas aos tensionamentos que
presenciamos em vrias reunies, mas, sobretudo, quando nas falas dos/as entrevistados/as,
estes vieram compor as narrativas, conforme poderemos observar nos seguintes excertos:
[] se voc puder pesquisar sobre a Zulu Nathion, foi fundada pelo frica
Bambaata, e prega assim a questo do hip hop permanecer independente aos
polticos, t ligado? Foi uma coisa que fez eu me afastar do Ncleo,
entendeu, tipo , quando a gente se reuniu ali pela primeira vez, a gente,
todo mundo assim tinha um sonho, n, de de querer ver aquela histria
e tal, e quando a gente comeou a ver o Ncleo tomando partido do
estado contra a prefeitura, da prefeitura contra o estado, defendendo
fulano, falando mal de sicrano, eu disse no, isso t errado. [] viver o
hip hop em todos os sentidos, no sentido do hip hop original que feito de
maneira independente, que feito na periferia, entendeu? Que no se vende,
saca? (ZECA)
Porque o esprito esse, cara. de construir uma grande irmandade. Porque
o grande objetivo do hip hop esse, cara, construir uma irmandade. A
da comeam a aparecer , dinheiro, , essas coisas, poltica, e os caras
comeam a vender esses valores que so to valiosos, cara, t ligado?
Que pra mim no tm preo, cara. (ZNOCK MORB)

Esses fragmentos vo de encontro ao discurso do dirigente do NH2C, apresentado,


alguns pargrafos acima. A partir dessa narrativa, identificamos o surgimento da dissidncia
de membros da UZS, tambm fundadores do Ncleo, justificada como uma ruptura do ideal
do hip hop. A histria de vida de NAAH igualmente remonta a tal dissidncia e acrescenta

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que, desta, nasceu o coletivo ARTICULAO HIP HOP, fundado pelos/as grafiteiros/as
mais antigos da cidade, e que, embora no tenha uma sede, reunies, cadastro de membros,
nem apoio financeiro, quando ocorre algum evento, eles se articulam com representantes dos
demais elementos do hip hop e participam como ARTICULAO.

www.articulacaohiphop.blogspot.com

Numa das histrias de vida, o/a entrevistado/a42 assim se expressou sobre a ruptura do
ideal do NH2C:
Os grupos aqui em Campina Grande, os ncleos, os coletivos, eles nunca
tiveram muito sucesso. No sei se falta de interesse ou compromisso ou
porque se corromperam com dinheiro e no queriam repassar pros seus
amigos, porque acontece muito isso. E a quando as pessoas usam um
coletivo em benefcio prprio, isso acaba acabando com esse coletivo,
acabando coma a confiana. E a divide novamente, fragmenta, e a ficam
pequenos grupos, n? [] O Ncleo43 durou muito tempo, mudou muito os
membros, e aos poucos eles foram saindo e ele meio que acabou, n? []
Uma pessoa que foi falsa com outra dentro desse meio, que visou, que
excluiu outro de uma oportunidade, pegou essa oportunidade de divulgar um
trabalho, s pra si. Isso acontece muito.Porque voc diz que t pensando
coletivo, voc cria uma histria que um Ncleo, que um negcio com um
nome coletivo, e voc visa s seu nome, seu interesse, seu lucro. Eu acho
que foi isso que aconteceu em Campina. O poder de divulgar muito essa
arte ainda t na mo de uma pessoa, que tem muito acesso prefeitura,
com pessoas assim, e que toma s pra ele. [...] E isso dissipou muito. A
42

Optamos por no identificar o/a autor/a dessa fala, para evitar constrangimentos ou cobranas a ele/a.
43 NH2C Ncleo Hip Hop Campina.

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voc tem um projeto que diz que de grafite e t no seu nome, pra liberar
uma verba de dois mil reais, um valor simblico, pra gastar em material, a
voc pega pessoas que esto iniciando, que to s com interesse em
aprender, e coloca dez sprays, na mo desses quatro iniciantes, eles fazem e
voc manda como se seu projeto tivesse sido cumprido. s vezes at
divulgam coisas, que aconteceu, e no aconteceu. No tem, no tem
material, no tem. No porque, s diz que tem, que , somos, fazemos, mas
no tem. A o que que vo te dizer, o que que vo te mostrar? Eles tm
um Ncleo, eles tm uma sigla cadastrada, um projeto, no sei o qu, mas
no tm aes reais, e frequentes e... Isso no existe. Eles s so uma lenda,
sabe? Infelizmente.

A identificao dessas relaes de tenso dentro do grupo se constitui em mais um


desafio para o pesquisador. As comunidades no so idealmente homogneas e unidas so
tambm palco tenses e de conflitos. Por isso, nosso trabalho documenta, por necessidade,
esses aspectos, de formas que podem agradar a alguns membros e a outros, no (PORTELLI,
1997, p. 31)
Conforme pudemos observar nos excertos acima, as relaes conflituosas emergem
nas falas dos/as entrevistados/as, na forma de crtica a atitudes que resultaram na
fragmentao dos ideais constitutivos da proposta inicial do NH2C.
Esses discursos sugerem a desconstruo do discurso do dirigente do Ncleo, no que
diz respeito imparcialidade do lder e independncia do NH2C, citado anteriormente. Por
outro lado, na afirmao porque se corromperam com dinheiro e no queriam repassar pros
seus amigos, podemos inferir que, caso o dinheiro tivesse sido repassado, talvez a ruptura do
ideal de independncia do movimento fosse deixada em segundo plano.
Sabemos que, mesmo sob a moldura de um objetivo em comum, esses/as jovens;
como os demais cidados, precisam de dinheiro para sobreviver, e, muitas vezes, em razo da
instabilidade tambm no que se refere a trabalho, veem nesses coletivos uma alternativa que
os ajude a pagar suas contas.
Tendo havido tal dissidncia, constatamos que a batalha pelo predomnio das aes
culturais que envolvem o movimento hip hop, em Campina Grande, passou a se dividir entre
o NH2C apoiado pela CUFA e o ARTICULAO apoiado pela UZS crew , conforme
exemplificam os seguintes cartazes de eventos promovidos, em 2010, pelos dois ncleos. O
primeiro evento diz respeito etapa paraibana da batalha de break do Brasil; o segundo, ao 1
ato pblico do quinto elemento.
Vejamos os cartazes:

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Assim sendo, nessa disputa dos coletivos, pela representao do hip hop, repete-se a
lgica que subjaz a rivalidade dos grupos de pichao e grafite. Essa e outras lgicas, que se
localizam no espao que a cortina costuma esconder, s puderam ser acessadas em razo do
exerccio etnogrfico que implica em um deslocamento da perspectiva do observador, com o
objetivo de compreender o modo como o observado interpreta o mundo que o cerca.
Procuramos, portanto, aguar a percepo para, em cada reunio com o NH2C, como tambm
na anlise das histrias de vida, olhar por dentro de que maneira as tenses e contradies
estavam se desenrolando nesses encontros (mas tambm fora deles).

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Assim sendo, a observao participante permitiu-nos observar e interpretar alguns


aspectos do repertrio e da dinmica que estavam sendo postos na interao, apesar de termos
plena convico de que esta verso interpretativa consiste, de acordo com Geertz (1978, p.25),
numa interpretao de terceira mo.
No prximo captulo, trataremos de questes que dizem respeito s relaes entre
pichao, grafite, sociedade, mercado e mdia.

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