Sociedade Secreta Dos Pichadores e Grafiteiros de Campina Grande
Sociedade Secreta Dos Pichadores e Grafiteiros de Campina Grande
Sociedade Secreta Dos Pichadores e Grafiteiros de Campina Grande
JOO PESSOA PB
2010
D812s
230f. : il
Orientador: Marcos Ayala.
Tese(Doutorado) UFPB/CCHLA.
UFPB/BC
CDU: 316(043)
AGRADECIMENTOS
Na tessitura desta tese, entre fios e segredos, recebi tanto que, para agradecer,
apenas palavras no seriam suficientes. Talvez precisasse de um imenso painel grafitado que
versasse sobre os mais distintos temas, dentre eles: trabalho, estudo, superao, determinao,
parceria, companheirismo, incentivo, espera, compreenso, confiana, amor, enfim.
Os/as que acompanharam esse meu momento acadmico sabem quantos muros
precisei ultrapassar, mas esse um segredo guardado apenas pelos que compartilham, mais
intimamente, da minha vida.
Agora hora de arrematar os fios acadmicos, com os fios da gratido...
a Deus, pela bno da vida, da sade e da proteo espiritual. Obrigada,
Senhor, pelo pensamento que me haveis inspirado e pela fora que me haveis
dado;
a Marta, anjo protetor;
a minha famlia, linda famlia, pelo apoio e por compreender as minhas
ausncias, embora eu tenha me esforado para que ela nem as notasse; Nos
nomes de Eulampio, Slvia e Tula, represento todos os meus familiares;
a Iasmin delicada como uma flor, fonte de renovao da vida e da esperana
, por me fazer sentir, duplamente, o sentimento materno;
aos/s meus/minhas inestimveis amigos/as, cujos nomes sequer cabem nesta
pgina. No nome de Sandra Simone, represento todos/as os/as demais.
a Tula Duarte, Tiago Silva e Euda Cordeiro, pelo carinho e presteza em me
ajudar no arremate dos ltimos fios desta tese;
aos/s meus/minhas colegas de doutorado, especialmente, s amigas-irms M
Jackeline F. Carvalho e Rejane G. Carvalho, pelo compartilhar dos segredos
e pelo estmulo para que eu seguisse confiante;
aos/s professores/as, pelo profissionalismo acadmico, mas tambm pelas
questes humanas que suscitaram no nosso convvio. No nome de Eliana
Moreira, represento os/as demais.
a Nancy, secretria do PPGS, pela ateno e presteza na resoluo de
problemas;
ao Ncleo Hip Hop Campina, por ter aberto as portas para que eu chegasse
sociedade secreta. No nome de Thiago Joh, represento os demais membros
do NH2C;
a GORPO, pelo convite para participar do NH2C, mas, sobretudo, pela ateno
e colaborao que, sempre, dispensou a mim;
aos/s narradores/as da sociedade secreta: ZECA, INSANA, PAGO,
NAAH e ZNOCK MORB, pela generosidade e solicitude, sem a qual esta tese
no teria sido possvel;
RESUMO
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DUARTE, Angelina Maria Luna Tavares. The secret society of taggers and graffiti artists in
Campina Grande, Paraba, Brazil. 230 p, 2010. Doctoral thesis. Universidade Federal da
Paraba, Doctorate in Sociology.
ABSTRACT
This thesis is the result of an investigation about the secret society of taggers and graffiti
artists, in Campina Grande, State of Paraba, Brazil. Trying to find the secret kept by the
young people involved, our aim was to identify, describe, and analyze its organizational
structure, its functioning, its relations, its rules and characteristics. In order to do so, we
intercrossed three theoretical and methodological fields: Ethnography; Oral History, and
Social Theory of Discourse (FAIRCLOUGH, 2001). The analytical corpus was built upon
two verbs: to observe and to listen participative observation and life histories. We observed
individuals. We listened to five of them three boys and two girls. We also observed texts
and real and virtual contexts. Regarding their discourse about the secret society, we
observed linguistic extracts (written and oral texts from taggers and others from graffiti
artists, and five narratives of their life histories), so that we could develop the analytical
process. We sometimes inquired into texts available on online social networks such as Orkut,
written by taggers and graffiti artists, as well as other linguistic events available on group or
crew blogs and notes taken on field diary. Within the hierarchically divided and structurally
organized space, in which the group plays the main role, individuals live symbolic and
material experiences of sociability. They organize themselves, exercise control, set rules, lead,
and fund a closed society, whose existence lies on the secrecy. From this society, they play,
dispute, protest, negotiate, and claim the inclusion of their cultural practices in the urban
contemporary cultural scene. The concept of experience (THOMPSON, 1981) was
fundamental to our analysis. The results suggest that the taggers and graffiti artists see the
secret society as an identity locus which allows them to have a paradoxical anonymous
visibility, once they do not have social projection in peripheries.
Key-words: secret society, pichao or tagging, graffiti, experience and discourse.
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RSUM
Cette thse a result dune enqute sur la socit secrte dutilisateurs/trices de goudron et
dutilisateurs/trices de graphite, Campina Grande PB. la recherche du secret retenu par
ces jeunes gens, nous avons tabli comme but didentifier, de dcrire et danalyser la structure
de lorganisation, le fonctionnement, les rapports, les rgles et les caractristiques de cette
socit-l. Pour autant, nous avons entrecrois trois fils thoriques-mthodologiques:
Ethnographie, Histoire Orale et Thorie Sociale du Discours (FAIRCLOUGH, 2001). Le
corpus analytique a t fait avec deux verbes: OBSERVER et COUTER observation
participante et histoires de vie. Nous avons observer des sujets. Nous en avons cout cinq
trois garons et deux filles. Nous avons galement observ des textes et des contextes rels et
virtuels. Nous avons encore remarqu des gravures. En ce qui concerne le discours produit par
eux/elles sur cette socit secrte , nous nous sommes servis du procd mtholologique de
lobservation dextraits linguistiques de ce discours (crit et oral, respectivement, quelques
textes issus de lutilisation du goudron et du graphite, et cinq rcits de leurs histoires de vie),
en envisageant, partir de ceux-ci, de dvelopper le processus analytique. Quelquefois, nous
avons encore recours des textes des pages du site de rapports ORKUT, dutilisateurs/trices
de goudron et dutilisateurs/trices de graphite, ainsi qu dautres vnements linguistiques
trouvs dans les pages de communauts et blogs de groupes ou crews, outre les annotations
sur le journal de champ. Le concept dexprience (THOMPSON, 1981) a t essentiel nos
analyses. Les resultats suggrent que la socit secrte est reprsente, par ces jeunes
gens, comme un locus didentit leur permettant, paradoxalement, une visibilit anonyme,
puisque, en banlieue, ils nont pas de projection. Sur cette place structurellement organise,
hirarchiquement partage o le collectif a le rle principal, ils ont des expriences
symboliques et matrielles de sociabilit, sorganisent, exercent un contrle, tablissent des
rgles, commandent, fondent une socit ferme, dont loutil indispensable pour son existence
cest le secret. De cette faon, partir de celtte socit, ils jouent, ils disputent, ils protestent,
ils ngocient. Toutefois, ils revendiquent linclusion de leurs pratiques culturelles dans la
scne de la culture urbaine contemporaine.
Mots-cls : socit secrte, utilisation de goudron, graphite, exprience, discours.
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SUMRIO
INTRODUO DOS MUROS PARA A SOCIEDADE SECRETA: UMA
ETNOGRAFIA DA PESQUISA............................................................................................. 13
CAPTULO I ABRINDO A CORTINA PARA A SOCIEDADE SECRETA
.................................................................................................................................................. 27
1.1 A rua e a noite: guardis do segredo de pichadores/as e grafiteiros/as
...................................................................................................................................................27
1.2 O segredo nas redes de sociabilidade ............................................................................... 30
1.3 O
segredo
como
dinmica
comunicativa
da
sociedade
secreta
.................................................................................................................................................. 33
1.4 O segredo das redes na rede ............................................................................................. 47
1.4.1 A sociedade em rede .................................................................................................. 47
1.5 A sociedade secreta virtual ............................................................................................48
CAPTULO II CULTURA, JUVENTUDE URBANA E EXPERINCIA NO CONTEXTO
SCIO-HISTRICO
DA
SOCIEDADE
SECRETA
...................................................................................................................................................63
2.1 Cultura(s): singular ou plural?............................................................................................63
2.2 Circuitos juvenis urbanos ..................................................................................................66
2.3 Hip hop salva: o discurso da periferia pela afirmao de novos valores
..................................................................................................................................................69
2.4 Do ser pichador/a ou ser grafiteiro/a: o que a ideologia tem a ver com essa questo
..................................................................................................................................................72
2.4.1 Pichao, grafite, grapicho .....................................................................................72
2.4.2 Pichao e grafite em duas verses discursivas .......................................................73
2.4.3 O olhar da pesquisa contrapondo as verses discursivas................................. 81
2.5 A agncia do sujeito nos muros da pichao e do grafite..................................................88
2.5.1 A permanncia material da cultura............................................................................88
2.5.2 Marcas da experincia nas prticas discursiva e social dos/as pichadores/as e
grafiteiros/as .......................................................................................................................89
2.5.3 E. P. Thompson, seu contexto e sua crtica ao paradigma estruturalista ...............90
2.5.4 A experincia devolvendo o sujeito ao processo ......................................................93
2.5.5 O dilogo da experincia dos/as pichadores/as e grafiteiros/as com o contexto
histrico contemporneo ....................................................................................................95
CAPTULO III A PORTA DE ACESSO SOCIEDADE SECRETA: A EXPERINCIA
ETNOGRFICA
NO
NCLEO
HIP
HOP
CAMPINA..............................................................................................................................100
3.1 Histrico do NH2C ..........................................................................................................101
3.2 Gnese da experincia etnogrfica ..................................................................................105
3.3 A paisagem e o campo .....................................................................................................110
3.4 Repertrios e implcitos na interao do NH2C: o espao de controle e disputas que a
cortina esconde ....................................................................................................................114
3.5 O NH2C como tema nas histrias de vida ......................................................................126
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FOTO 01 nis na fita e os playboy no DVD (Crash LPE) Rua Aprgio Nepomuceno. Cruzeiro abril de
2003.
Nesse dia, comeamos a refletir sobre que segredo o qu e quem estaria por trs
desse texto, sobre o discurso que o envolvia e, consequentemente, sobre o contexto
sociocultural que subjazia a essa construo discursiva. Na tentativa de encontrar respostas,
investigamos. Atravs da fotografia, registramos textos e imagens impressos nos muros de
trs bairros campinenses, nos quais a pichao e o grafite disputavam espao. O resultado
dessa curiosidade resultou, em 2006, na nossa dissertao de mestrado SE ESSA RUA
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Sobre a etnografia, Geertz nos lembra que esta no se limitaria a uma questo de
mtodo, mas se definiria pelo tipo de esforo intelectual empreendido pelo/a pesquisador/a
para desenvolver uma descrio densa que exigiria do etngrafo o enfrentamento de uma
multiplicidade de estruturas complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas s
outras, que so simultaneamente estranhas, irregulares e inexplcitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (GEERTZ, 1978, p. 20).
Para esse etngrafo, os que optam pela pesquisa de natureza etnogrfica tm uma
dupla tarefa. A primeira seria a de descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos
dos sujeitos de nossa investigao; a segunda seria a de construir um sistema de anlise no
qual o que genrico a essas estruturas se destaque frente a outros determinantes do
comportamento humano. Em etnografia, o dever da teoria fornecer um vocabulrio no qual
possa ser expresso o que o ato simblico tem a dizer sobre ele mesmo isto , sobre o papel
da cultura na vida humana (GEERTZ, 1978, p. 38). Assim, pelos objetivos delimitados,
consideramos que a etnografia apresentou-se-nos como um caminho indispensvel para a
realizao desta pesquisa.
Assim sendo, atravs da observao participante, com um dirio de campo nas mos,
inserimo-nos em um contexto cultural distinto do nosso, com o objetivo de "apreender o
ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua viso de seu mundo.
(MALINOWSKI, 1998, pp. 33-34). Essa convivncia se constituiu para ns numa experincia
de grande valor cientfico, mas tambm humano, que implicou numa dupla atividade de
trabalho construtivo e de observao , sem o qual a investigao teria sido prejudicada, se
no impossibilitada. Dessa forma, observar os fenmenos em sua plena realidade os
imponderveis da vida real (MALINOWSKI, 1998, p. 29) , no NH2C, contribuiu,
sobremaneira, para a consecuo de nossas metas investigativas, uma vez que, alm de ter nos
propiciado um convvio mais prximo aos sujeitos pesquisados, tivemos a oportunidade de
observar as distintas nuanas que se instauram na formatao das relaes vivenciadas nesse
campo de pesquisa, e, mais especificamente, no que designamos sociedade secreta.
Assim, como a realidade social o prprio dinamismo da vida individual e coletiva
com toda a riqueza de significados dela transbordante (MINAYO, 2000, p. 15), buscamos
responder questes referentes subjetividade desses sujeitos, bem como outras que dizem
respeito ao grupo e suas articulaes com a realidade social.
Quanto observao participante, no NH2C, cabe esclarecer que, embora esse
ambiente no corresponda, especificamente, sociedade secreta, foi atravs dela que
pudemos estabelecer contato com os grupos campinenses de pichao e grafite, tendo essa se
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constitudo como uma relevante estratgia metodolgica para nosso processo investigativo.
Ressaltamos ainda que no resta dvida de que a experincia etnogrfica ampliou-nos a
compreenso sobre as relaes cooperativas e competitivas, intra e extragrupais, tanto no que
diz respeito ao movimento hip hop, quanto sociedade de pichadores/as e grafiteiros,
merecendo, portanto, um captulo dedicado a ela.
Quanto ao procedimento metodolgico, optamos por uma abordagem de natureza
qualitativa, j que nossa proposta implica em identificar elementos concernentes esfera
subjetiva da vida social. Resende (2006, p. 57) afirma que essa uma forma de pesquisa
potencialmente crtica. Por meio da PQ, as cincias sociais identificam estruturas de poder
naturalizadas em um contexto scio-histrico definido, sendo, portanto, segundo ela,
fundamental aos estudos cujo foco so representaes de mundo, relaes sociais,
identidades, opinies, atitudes e crenas ligadas a um meio social. Tambm, de acordo com
Minayo e Sanches, a abordagem qualitativa empregada, para a compreenso de fenmenos
caracterizados por um alto grau de complexidade interna, servindo para aprofundar a
complexidade de fatos e processos particulares e especficos a indivduos e grupos
(MINAYO; SANCHES, 1993, p. 239)
Referindo-se a esse tipo de abordagem, Goldemberg, por sua vez, considera que os
dados da pesquisa qualitativa objetivam a compreenso profunda de certos fenmenos sociais
apoiados no pressuposto da maior relevncia do aspecto subjetivo da ao social
(GOLDEMBERG, 1999, p. 49-50).
Nosso estudo teve, pois, um carter descritivo/interpretativo/analtico, por se deter na
compreenso das diversas relaes que permeiam o processo social de construo e
configurao da sociedade investigada, como tambm dos sujeitos e discursos que a ela esto
vinculados.
Embora tenhamos recorrido, complementarmente, a dados e resultados constantes na
nossa pesquisa de Mestrado (DUARTE, 2006), geramos um corpus analtico especfico para
esta pesquisa, a partir da observao participante e da histria de vida. Na escolha dessas
ferramentas, inspiramo-nos em Malinowski (1998), o qual defendia a integrao entre a
primeira e a segunda, a fim de que fosse possvel a identificao de aspectos da viso de
mundo dos nativos, no explicitadas em suas falas.
Nesse ponto, esclarecemos que, na afirmao de que geramos os dados analticos,
concordamos com a distino epistemolgica entre coleta de dados e gerao de dados,
proposta por Resende, quando afirma:
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gestos, expresses faciais, nfases, silncios, por exemplo os quais ainda estivessem vivos
em nossa mente. Os textos resultantes dessa transcrio cada qual com no mnimo vinte
pginas foram diludos nas discusses de cada captulo desta tese. Importante ressaltar que
tal processo demorado, trabalhoso e exige perseverana e muita disciplina. Acrescentamos
ainda que o ideal que esse trabalho no seja terceirizado, pois, em nossa opinio, s quem
presenciou as narrativas possui a capacidade de coloc-las no papel para deixar o texto final o
mais prximo da fala dos/as entrevistados/as.
A fim de preservarmos a identidade dos/as entrevistados/as, optamos por nos referir a
eles/as, utilizando seus pseudnimos. Em alguns momentos, porm, a fim de evitarmos
constrangimentos, necessitamos omitir, mesmo seus pseudnimos, quando o discurso
sinalizava para questes delicadas que envolvem a rivalidade entre grupos.
Findo o processo de textualizao das narrativas orais, sabamos que o texto produzido
por ns no era definitivo ou limitado. A teoria do pesquisador ser somente uma das
possveis perspectivas abertas pelo texto (CALDAS, 1999, p. 77). O texto final resultante
dessas entrevistas um texto dialgico, de muitas vozes e mltiplas interpretaes
(PORTELLI, 1997, p. 27).
Conforme complementa aquele autor, acerca do texto final:
Em sua rede ficcional, em sua fora viva, exige o que envolve uma releitura,
reinterpretaes. Por ser um corpus vivo no se esgotou nem no projeto que
o iniciou, nem no longo trajeto transcriativo e muito menos nas
interpretaes que, formalmente, o transformaram atravs do pesquisador
numa leitura especfica e singular. (CALDAS, 1999, p. 77)
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contado a um mdico, que ns ramos a segunda pessoa que tinha acesso a esse momento de
sua vida. Disse, ainda, que sabia que no texto final, haveria alguns cortes, o que implica em
que ela desejasse que sua identidade se mantivesse em segredo. Assim, procedemos. Dessa
forma, o aspecto secreto dessa sociedade influenciou a nossa produo final. Percebemos,
nesse instante, a responsabilidade e o compromisso tico que devem compor os instrumentos
de qualquer pesquisador, a fim de que o resultado do seu trabalho no venha a comprometer
seus/as entrevistados/as.
Sobre essa responsabilidade que nos cabe, necessrio dizer que, especificamente em
relao a esta pesquisa, alguns aspectos precisam ficar bem claros. O primeiro deles que o
objeto de nossa investigao, historicamente, tem sido associado a um estigma de
criminalidade, o que reforado pela prpria legislao, motivo pelo qual envidamos todos os
esforos para que nossas anlises no reforassem esse estigma; o segundo deles a
rivalidade que inspira suas prticas socioculturais, o que implica no nosso cuidado em no
contribuir para a acentuao das rixas; o terceiro deles que entrevistamos membros de dois
grupos OPZ e UZS , entre os quais h essa rivalidade, e no podemos expor os/as
entrevistados/as, nem gerar constrangimentos entre eles/as; o quarto deles que esta
pesquisadora cnjuge do curador do meio ambiente de Campina Grande e isso foi
informado aos sujeitos desta investigao , motivo pelo qual a precauo teve de ser
redobrada, a fim de que essa condio no seja associada ao nosso interesse por investigar
essa sociedade. Esse tambm foi o motivo pelo qual no pudemos acompanhar nenhuma
interveno noturna de pichao rol juntamente com os sujeitos pesquisados.
(Imaginemos a manchete que isso daria!). As nicas intervenes que presenciamos foram de
grafite, durante o dia.
O quinto deles que precisamos manter a imparcialidade, pois foram nossos objetivos
descrever e analisar a sociedade secreta, e no, exercer juzos de valor sobre ela. Tambm
no foi objetivo nosso discutir as implicaes dessas prticas com respeito violao dos
espaos privado e pblico.
O sexto deles diz respeito s noes de linguagem, sujeito e discurso com as quais
trabalhamos. Para a Teoria Social do Discurso (FAICLOUGH, 2001), que tem por princpio a
linguagem como espao de luta hegemnica, a linguagem considerada como parte
irredutvel da vida social dialeticamente interconectada a outros elementos sociais
(RESENDE, 2006, p. 11). Os sujeitos no so meramente posicionados de modo passivo,
mas capazes de agir, de negociar seu relacionamento com os tipos de discurso a que eles
recorrem (FAIRCLOUGH, 2001, p. 87). Os agentes sociais so dotados de relativa
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poderiam ser publicizados. As xerox das fichas de cadastro dos membros do NH2C, com seus
dados pessoais, as listas de presena das reunies do NH2C, o dirio de campo, contendo,
inclusive os nmeros de telefone de pichadores/as e grafiteiros/as, a transcrio das histrias
de vida e o vdeo sobre o Ncleo sequer puderam ser utilizados como anexos. Nesse aspecto,
o segredo continuou a compor, desde o planejamento, esta tese que resultou em cinco
captulos.
Sabendo que ela no se limitaria aos muros da Academia, optamos por no produzir
um captulo, exclusivamente, terico, a fim de que nosso texto flusse e a sua leitura se
tornasse prazerosa para qualquer leitor, sobretudo, para pichadores/as e grafiteiros/as, os/as
quais tero, de nossa parte, o compromisso de voltar ao campo para apresentar os resultados a
que chegamos. Assim sendo, procuramos diluir a teoria no processo analtico, em dilogo
com as prprias falas dos/as entrevistados/as.
O primeiro captulo abre as cortinas para a apresentao da sociedade secreta,
enfocando o aspecto do segredo como dinmica comunicativa dessa rede de sociabilidade,
desde a esfera real at a esfera virtual da sociedade em rede.
No segundo captulo, subsidiando-nos pelas perspectivas dos Estudos Culturais, da
literatura sobre juventude e da Teoria Social do Discurso, abordamos as relaes entre o
panorama da cultura contempornea, os circuitos juvenis urbanos movimento hip hop,
pichao e grafite e a experincia dos sujeitos que interatuam nesses contextos (Thompson,
1978). Tambm compuseram esse captulo reflexes acerca das (in)definies das identidades
de pichador/a e grafiteiro/a, como tambm acerca do agenciamento sociodiscursivo dos
sujeitos produtores dessas duas expresses da cultura de rua.
O terceiro captulo, no apenas descreve nossa experincia etnogrfica, no NH2C, mas
tambm apresenta momentos analticos, a partir das histrias de vida de pichadores/as e
grafiteiros/as entrevistados/as, sobre o contexto, os sujeitos e os discursos que se instauram
nesse campo de observao permeado por controle e disputas.
No quarto captulo, considerando que as expresses culturais contemporneas se
instauram num contexto social, mais amplo, de articulao entre o local ao global;
considerando tambm que esta uma tese de doutorado em Sociologia, e que, de acordo com
o inciso III, do Art. 12, da resoluo n 62/1999, precisa representar um trabalho de pesquisa
original em que demonstre capacidade crtica e domnio terico-metodolgico em
Sociologia, apresentamos uma discusso sobre as relaes estabelecidas entre as prticas
simblicas da pichao e do grafite, e a sociedade, o mercado e a mdia, no contexto da
globalizao, discusso essa que julgamos indispensvel anlise de qualquer fenmeno
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[...] Ele: bora, pichador, no sei o qu! Por que tu pichou ali? Eu:
caramba, eu no pichei nada! E eu sa pra dialogar com o cara, e
nisso, o segurana saiu assim em direo quela praa que tem. Eu:
No, eu no fiz isso! E num momento de descuido, eu, fuc, disparei, a
subi na contramo, em direo feira. Quando eu cheguei na
esquina, o vigia me enquadrou, eu sem sandlia, que na correria, eu
deixei a sandlia. Eu: Calma, eu no fiz nada, no, eu fui roubado, eu
fui roubado! A quando ele foi baixando a arma, o cara aparece na
esquina de baixo: segura ele, segura ele! A o vigia: Para! O cara, um
senhor j, e eu, um maloqueiro, de bon, correndo na rua descalo! O
vigia: Para! Eu no fiz nada, no! Quando eu disse a segunda vez:
eu no fiz nada! Ele, p! Sem exagero, a bala, o tiro que ele deu
tava como daqui a nessa parede. Ele apontou a arma assim pra
mim, p! Eu s vi o fogo! Eita, eu s fiz virar a cara e sair
desabando. Caramba, Angelina, eu acho que eu nunca corri tanto
na minha vida, no.1
Os grifos em todos os fragmentos das histrias de vida, daqui em diante, so desta pesquisadora.
ARCA um espao no Centro da cidade, construdo pelo Poder Pblico Municipal, destinado a acomodar os
camels que, anteriormente, se instalavam nas caladas do centro comercial de Campina Grande.
3
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FOTO 02 A vida. Todos unidos na mesma ideologia! Sem crise. (Ovni UZS) Rua Paulo de Frontin.
Centro. CUCA. Janeiro de 2005.
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Assim, esses/as jovens obtm o domnio sobre um cdigo a que apenas eles tm
acesso, fazendo surgir um mundo distinto do aparente, o que resulta em ambiguidades e
interpretaes conflitivas sobre a realidade, forando a negociao das posies sociais.
(MIRANDA, 2001, p. 100)
Mesmo sendo segredo, este, paradoxalmente, se espalha nas redes reais, mas tambm,
nas virtuais. Atrai, excita, encanta, transgride, camufla... Traz risco, adrenalina, rixa, projeo,
punio, profisso... Assume sentidos, torna-se smbolo. , simultaneamente, arte e crime,
essncia e mercado, local e global, periferia e centro, anonimato e visibilidade, estrutura e
ao, identidade e diferena, subverso e negociao, pureza e hibridismo, pichao, grafite, e
grapicho...
Subverte, assim, a delimitao conceitual. Move as fronteiras que separam as duas
prticas, se que elas existam. Grapixo nis (LPE/UZS), diz uma escrita num muro de
Campina.
Fotografia Angelina Duarte
FOTO 03 Grapixo nis (LPE/UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro. CUCA. Janeiro de 2005.
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marca identitria. Representa tambm uma sociedade, uma sociedade secreta. Resume a
mestiagem entre as duas prticas, mas tambm o hibridismo entre a zona e o mundo.
Representa, ainda, o sentimento de pertena a esse contexto profundamente marcado por
criatividade, tenso e contradio.
Subverte-se, em segredo, a determinao estrutural da lngua, da lei e da sociedade.
Proibido pichar ou pixar (OPZ), diz, ironicamente, outra escrita no muro.
Fotografia: Angelina Duarte
FOTO 04 Proibido pichar ou pixar (Hits OPZ) Rua Prof. Francisco Carlos Medeiros. Prata.
Fevereiro de 2005
32
sentimento, entre seus membros, de estarem sociados, e pela satisfao derivada disso
(SIMMEL, 1983, p. 169), constituindo-se, assim, numa relao social pura, numa forma
ldica da sociao (SIMMEL, 2006, p. 65).
Periferia, no discurso da sociedade secreta, assume sentidos muito mais amplos que
os convencionais, constituindo-se no apenas como uma referncia espacial, como j
dissemos, mas representando um contexto no qual essas identidades juvenis se formam, se
comportam e interagem. O universo das crews organizado a partir do discurso sobre
pertencer periferia.
[...] Periferia passa no apenas a ser uma categoria espacial, como tambm
uma categoria identitria que faz referncia pertena de classe, mas que
no se restringe a esse fator. Categoria que tambm traz consigo modos
particulares de se portar e de se relacionar com os pares da periferia.
(PEREIRA, 2010, P. 158)
Fotografia: Angelina Duarte
FOTO 05 Reao da periferia (Gorpo) Rua Paulo de Frontin. Centro. (CUCA) setembro de 2004
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Embora conectada ao movimento hip hop, e por isso, estabelecendo fronteiras internas
com os demais elementos que o compem, essa sociedade traa um perfil para se articular aos
contextos micro e macro, delimitando suas especificidades e suas identidades, cujos vnculos
se pautam tanto pela unidade de impulsos e propsitos em torno dos valores defendidos pelo
movimento, quanto pela satisfao de pertencerem a um grupo que lhes permite unir o til ao
agradvel: crtica, contestao, projeo, rivalidade, planejamento de intervenes,
compartilhamento de experincias, lazer, afetividade, religiosidade, e tambm trabalho.
Por outro lado, seus estilos actuam frequentemente como mscaras, da mesma forma que as
34
se
constituem
se
instalam.
Mas
que
seria
sociedade secreta de pichadores/as e grafiteiros/as? Por que e para que ela existiria?
Haveria, de fato, um segredo? Em que ele consistiria e como se manteria? Seria possvel
desvend-lo? E, em sendo desvendado, no deixaria de ser segredo? Essa sociedade se abriria
para a pesquisadora, ou representaria para garantir a manuteno do segredo?
sobre ela que iremos nos debruar agora.
1.3 O segredo como dinmica comunicativa da sociedade secreta
Os grupos de pichao e grafite, em Campina, nascem da curiosidade, da brincadeira,
da experimentao, da influncia dos amigos, no contexto mais imediato a rua, o bairro, a
zona , e vo se ampliando para as reas centrais da cidade, onde o fluxo de transeuntes e,
consequentemente, de pichadores/as e grafiteiros/as bem maior do que na periferia, uma
vez que a motivao para essas duas prticas colocar seu nome pra todo mundo ver. Para
eles, inclusive, no momento em que deixam de atuar apenas na quebrada onde moram e
saem para pixar em outras quebradas, ou mesmo no centro da cidade, que se tornam pixadores
de verdade (PEREIRA, 2010, p. 160).
O interesse pela pichao foi s as circunstncias dos lugares, das
pessoas com quem eu andava, e por curiosidade, eu cheguei a
acompanhar rol durante a madrugada, pra pichao, n? (NAAH)
At ento, eu no tinha ido pra rua mesmo. J era rua, mas no era rua
mesmo, era dentro do condomnio. A um certo dia a gente se encontrou
na divisa do Catol com a Liberdade, e eu encontrei com SAGAZ e
SVO. A rolou uma grande amizade. Terminou nesse mesmo dia a gente
saindo pro Centro, e pichando tudo. (ZNOCK MORB)
Eu morava aqui. Moleque, a sempre ia de frias l pra Recife. E tinha
alguns conhecidos da minha irm que pichavam e eu era curioso pra
saber como era realmente. A no final de 94, eu fui morar de verdade l. A
nisso, eu conheci umas pessoas que j tinham um movimento, mas que era
tudo molecote tambm, no era pichador, no. A vez ou outra, tipo,
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arrumava uma lata aqui, a saa, fazia uma besteira aqui, pegava um giz
de cera fazia uma coisa ali, e nisso eu tambm peguei os embalos e
comecei nessas brincadeiras de moleque. (PAGO)
Eu digo: bom, galera, a gente LPE, mas se a gente t fazendo grafite, eu acho a pichao uma coisa, assim,
mais anarquista, mais, como que se diz, , mais secreta, assim, mais underground, mesmo, na essncia,
assim. (Histria de vida ZNOCK MORB) (grifos nossos)
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n? A tem gente que no liga, que a me j foi pegar dez vezes dentro
da delegacia.(NAAH)
Talvez seja apenas pelo fascnio que a aura enigmtica do segredo exerce sobre a
juventude, por proporcionar-lhe o trnsito por um territrio no acessvel a todos, cujo
controle passa a estar nas mos desses/as jovens, mas tambm por chamar a ateno da
sociedade para eles/as. Por outro lado, pode ser que o segredo, contraditoriamente ao seu
significado, exera o papel de publicizao dessa sociedade formada por eles/as e,
consequentemente, de suas prticas culturais, em razo da curiosidade que alimenta nos
indivduos. Mas tambm pode ser tudo isso e muito mais. Entretanto, em razo do segredo,
talvez no nos seja possvel penetrar as camadas mais profundas dessa sociedade.
O tempo ajuda a transformar a brincadeira na vera. Vendo a cidade limpa, e
trazendo a experincia com o piche, de Recife, em 1999, PAGO funda o primeiro grupo de
pichao nesta cidade, o primeiro comando.
Quando eu vim pra c, j com a cabea de uma metrpole, de cidade
grande, cheguei aqui, de certa forma, a cultura de interior diferente, a eu vi,
caramba, a cidade limpa, limpa, limpa, limpa. Tinha uma coisa aqui ou
outra perdida, mas no era um movimento de piche, muito menos de grafite.
A eu, caramba, vou fundar um comando aqui. A tive a atitude e chamei
uns colegas que imaginei que tinham coragem. Vamo? Vamo. Mostrei umas
letras pra eles, dei s umas ideias, por alto, do que que ia ser o camando, a
ideologia da histria. Pronto, a partir da, surgiu a OPZ6, o primeiro
comando, a primeira organizao de piche na cidade, que at ento no
tinha piche aqui. (Histria de vida PAGO)
Comando? Que palavra seria essa? Qual a sua representao para a sociedade
secreta? Apelarmos apenas para a questo lingustica seria limit-la demais em sua
multidimensionalidade semntico-ideolgica e sociocultural.
No nvel textual desse discurso, a escolha dessa palavra j sinaliza para a metfora da
guerra, do conflito, da batalha que so prprios das prticas dessa sociedade. Ao assim
procederem, esto escolhendo enunciados metafricos para emoldurar os conceitos
vinculados sua experincia.
Fairclough (2001, p.241) afirma que as metforas estruturam o modo como
pensamos e o modo como agimos, e nossos sistemas de conhecimento e de crena, de uma
forma penetrante e fundamental. Segundo ele, h fatores culturais, polticos e ideolgicos
que determinam a escolha da metfora pelos produtores dos textos, sendo, portanto,
necessrio considerar os efeitos desse recurso lingustico sobre o pensamento e a prtica
social.
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FOTO 06 Esta porra quem comanda Zona Leste!!! (PZL) / Nem PM, nem MP, nessa porra quem comanda
OPZ . (OPZ) Rua Otaclio Nepomuceno. Catol. Muro da Escola Normal. Maio de 2005.
FOTO 07 A guerra vai comear. (Zoi PPZ) Rua Dr. Severino Cruz. Centro. Parque do Povo. Maio de
2005
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encaixadozinho, um pico7, muito louca a ousadia da pessoa subir pra divulgar o seu nome, a
sua arte l em cima (PAGO). Cada um querer ser mais do que , at porque o conflito, na
pichao, uma coisa meio que essencial, porque cada um querendo fazer mais alto. E s
vezes at que , entre aspas, saudvel, at o momento que t s no, nas paredes. (INSANA).
Fundar um comando exigiria confiana, atitude e coragem. Confiana na
capacidade de agenciamento. Atitude de liderana para desafiar. Coragem para correr os
riscos e segurar a barra , de ser visto e preso, ou at mesmo de morrer numa queda, no
confronto com outros grupos, com a polcia ou com outros sujeitos que se contrapem a suas
prticas.
Eu acho que perigoso, sabe? Eu acho que arriscado. Eu acho que, do
ponto de vista social, assim, sabe? [] Outra coisa, assim, um ladro que
possa ver quatro ou cinco pessoas andando e queira roubar, porque hoje
em dia ainda tem mais esse risco, fora as autoridades, n? [] Mas j
teve muito amigos que um segurana puxou uma arma e atirou. No pegou,
no foram atingidos, mas voltaram a fazer. Isso no adrenalina? Mas voc
correr, e o orgulho de ter feito, n? Voltei, terminei. Se apagar, eu volto.
(NAAH)
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unnime, a classe todinha botou destaque liderana pra mim. A partir da, eu me toquei. E fui
ganhando em cima disso.
Num grupo que uma das mximas de haver cobrana quando h
necessidade, esse grupo vai respeitar, ter como figura de autoridade quem
coloca aquilo em prtica, quem faz aquilo bem feito. Resultado desse meu
comportamento, dessa parte da minha personalidade, do meu
temperamento, isso, contribuiu pra eu ter uma espcie de liderana
nesse subgrupo social. (PAGO)
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FOTO 08 LPE => os + loucos! (LPE) XPichadores Psicopatas do Zepa (PPZ) Rua Jos Dantas de Aguiar.
Catol. fevereiro de 2005
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de ser excludo, desprestigiado, estigmatizado. A aparncia de que esse uso sugere uma
combusto social.
Haveria uma simbiose entre o discursivo e o social? Embora saibamos que nem todo
discurso se torna uma prtica, a primeira impresso que temos a de que no contexto da
sociedade secreta, a linha que separa essas duas esferas tnue. A Teoria Social do
Discurso nos ajudar a desvendar esse segredo.
Nesse ponto, o risco se acentua, pois alm de ele j existir, em razo da natureza dessa
prtica, entra a a represso policial, a servio da lei. Inclusive fui pro presdio, duas vezes,
fazer umas visitas l, comer sopa do governo (PAGO). A prpria relao desses/as jovens
com a polcia, que para eles/as uma inimiga mortal, tambm sugere uma guerra.
42
Mas nem esse aspecto intimida o grupo. Eu admiro, assim, a adrenalina, a coragem,
mesmo, assim (NAAH). Apesar de toda a represso, repete-se a transgresso, mesmo que
esses sujeitos no saibam, exatamente, o que esto transgredindo, j que vrios fatores se
mesclam nas suas atitudes. No h, portanto, um motivo nico e determinado para isso. O que
h, mesmo, so contradies. As afiliaes culturais juvenis guardam, porm, contradies
internas, nuanas diversas, toda uma srie de dubiedades intrigantes (FREIRE FILHO, 2005,
p. 148).
Em lugar de conteno dessas prticas, h uma persistncia desses sujeitos na criao
de novos grupos.
Todo dia, no, mas sempre aparece uma sigla nova. assim, , da LPE,
apareceu LPA, LPP, LPL. Da OPZ, apareceu OPC, OPI, OPM. Tem sigla
que hoje em dia eu vejo, assim, no sei nem, algumas, o significado de
algumas nem conheo. Na minha poca eu conhecia todo mundo.Hoje em
dia tanta coisa nova que eu nem, no sei nem algumas, o significado de
algumas siglas. A foi criando depois da LPE, OPZ, e MMS, a criaram,
criou-se LPA, LPO, OPC, MUS, MUS tambm que s das meninas.
(INSANA)
Todo dia aparece um que d um rol ou outro e para, ou depois ele muda
de nome, ou depois ele desiste, enfim, vai e vem, n, pichadores. , alguns
continuam, mesmo, tm prazer em fazer. (NAAH)
Por que essa proliferao? Que sentido faria para esses/as jovens/as pertencer a essa
sociedade? Ser que as histrias de vida responderiam? A condio adolescente apontaria
para a primeira causa dessa escolha. Mas apenas ela no suficiente para explicar esse
fenmeno.
No comeo da minha adolescncia eu fui meio rebelde. Meio roqueira, e
nunca gostei, assim, dos padres de roupa que minha me e minha av
gostaram. [...] Teve uma poca na minha vida que eu s gostava de usar
camisa pintada por mim. Eu achava que era como se meu peito fosse um out
door pra o que eu pensava. [...] O comeo da minha adolescncia foi desse
jeito, meio revoltada com a vida. (INSANA)
Na adolescncia, fiquei encrenqueira, fiquei dando trabalho, fiquei
respondona, desobediente (risos!), fiquei realmente bem diferente do que eu
era quando pequena.Foi uma adolescncia bem complicada, daquela de
tirar o juzo de qualquer me. (NAAH)
Haveria tambm a influncia dos amigos para essa iniciao, mas tambm a admirao
desses jovens por outros que obtiveram notoriedade nesse contexto. De acordo com Rezende
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tentador de romp-lo por boataria ou por confisso e esse desafio o acompanha todo o
tempo (SIMMEL, 1999, p. 222). Em relao s crews de pichao e de grafite, alm de se
estabelecer como um elemento viabilizador do processo de interatividade social, passa a
compor a prpria dinmica comunicativa de tais grupos, assumindo assim significados
pertinentes cultura de rua.
Referindo-se ao segredo, Simone Maldonado assim se expressa:
Do ponto de vista sociolgico, a importncia e as tonalidades culturais que o
binmio ocultao-revelao assume em cada configurao histrica e local,
superam a valorao moral que delas se possa fazer. Sociologicamente, mais
do que um contedo, um objeto unicamente de ocultao que uma vez
revelado se esvaziasse e perdesse o sentido, o segredo toda uma dinmica
comunicativa, feita de retricas, de silncios, de transparncia, de opacidade
e tambm de certas formas de revelao, estando entre seus possveis
mecanismos, a mentira e a malversao. (MALDONADO, 1999, p. 3) (grifo
da autora)
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Uma outra vinculao ao segredo se estabelece a partir da funo poltica exercida por
alguns membros desses grupos, embora no anonimato. Nesse aspecto, no mais a brincadeira,
mas a denncia. Para exercer sua crtica sociedade, no podendo faz-lo abertamente, nem
tendo espao para tal, expressam-se em segredo.
Assim, por fora de posto de sade fechado, a pessoa colocava: Um absurdo!
Coisas assim, protestava com o geral, com o governo, com poltico, com
tudo o que me incomodava. [...] A fiz meus protestos, eu queria mais aquilo
ali, eu queria mostrar a todo mundo o que eu pensava, que tambm tinha um
monte de gente que concordava comigo, mas a gente, no sei como falar, a
gente no, no no, a televiso no aberta pra todo mundo, a gente no
tem meio nenhum de falar o que a gente tem vontade, ento foi o jeito
que eu encontrei. (INSANA)
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paralelos (para o espanto daqueles que esperavam que dali s surgisse mais misria sem
futuro), onde passa a viver a maioria da populao dos vrios pases, inclusive do Brasil
(VIANNA, 2007).
A fora reivindicatria de grupos de pichadores/as e grafiteiros/as evidencia novos
atores urbanos em cujas mos, o muro, que sempre teve como funo hifenizar, transmuta-se,
para servir, tambm, de ponte para a defesa de valores e para o questionamento do status quo,
difundindo novos contedos poltico-culturais. Assim, segundo Novaes (2007, p. 105),
vislumbra-se um novo e possvel caminho para a construo do espao pblico. E nele,
destaca-se a juventude. Completa, ainda, essa autora:
preciso atentar para novas apropriaes e linguagens que renovam a
poltica e (re)inventam possibilidades do(a) jovem de hoje estar e agir no
espaco pblico. [...] Ou seja, falar da participao juvenil significa
ultrapassar os lugares tradicionais da poltica. (NOVAES, 2007, p. 101)
Por outro lado, mesmo que esse espao venha servindo de palco para a denncia,
caracteriza-se, igualmente, pelo forte apelo de uma nova esttica de sociabilidade desse grupo
juvenil urbano. Segundo Vianna, (2007) as novidades nas produes dos mundos culturais
perifricos muitas vezes so mais interessantes tambm esteticamente.
De uma forma ou de outra, a essa funo poltica e/ou esttica, o segredo continua
subjacente, atravs do anonimato desses sujeitos. Conforme j afirmamos, suas reivindicaes
so expostas, mas os sujeitos que as produzem ocultam-se, sendo essa atitude parte
constitutiva do segredo que, por sua vez, interfere na formatao da prpria cartografia
urbana, contribuindo para a ressignificao de espaos e territrios ocupados por
pichadores/as e grafiteiros/as, embora mantendo como ponto de referncia a periferia,
representada pela sociedade secreta que constituem.
O segredo consiste, ainda, em muitos casos, num componente indispensvel escrita
da pichao e do grafite, uma vez que seus significados s podem ser decifrados pelos que
dominam os cdigos utilizados nessas produes. O efeito da leitura dessas escritas vai ecoar
mais profundamente nos sentidos construdos pelos praticantes da pichao e do grafite,
porque esse consumo se torna mais efetivo pelos conhecimentos compartilhados pelo grupo e
pela representao desses conhecimentos na viso de mundo desses sujeitos e na sua ao
sobre esse mundo. Para os leigos, no passam de meros rabiscos ininteligveis.
Isso se confirma em um fragmento da narrativa de histria de vida de NAAH, quando
ela afirma que a tag, ela feita de uma forma que a gente entende, mas nem todo mundo,
uma pessoa comum que no interage, no se interessa, vai olhar e no vai saber nunca, porque
que t ali, n?
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Assim sendo, em relao sociedade secreta, esse ambiente virtual tem expandido a
capacidade de comunicao e de criao desses jovens, j que as comunidades e sites de
relacionamento, nele instauradas, acabam por se constituir como uma espcie de extenso da
comunidade real, destinando-se, igualmente, persecuo de objetivos comuns aos membros
desses grupos, como tambm ao favorecimento de uma maior interatividade entre os que
aderem a essas redes sociais. Castells afirma que o que a Internet faz processar a
virtualidade e transform-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede, que a
sociedade em que vivemos (CASTELLS, 2003, p. 287).
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Outro aspecto a ressaltar que, embora esse jovem exponha seu perfil na rede mundial
de computadores, inclusive adicionando suas fotos, em nenhum momento aparece seu nome
verdadeiro. Em lugar dele, utilizado seu pseudnimo MEGA.
Ainda quanto s fotos acima expostas, ambas esto coerentes com o prprio nome do
lbum em que se encontram inseridas: PROIBIDO. Essa palavra remete a toda uma histria
de prtica transgressora da pichao e do grafite. No proibido, guardado o segredo. Na
primeira foto, expe-se a prtica, considerada crime, pela legislao, mas os sujeitos
continuam secretos aos no iniciados na sociedade secreta. Na segunda, a mscara, o capuz
e o soco ingls simbolizam o binmio violncia/clandestinidade, mas o segredo sobre quem
os utiliza permanece.
De acordo com Fairclough (2001), no nvel textual do discurso, a escolha vocabular
revela a intrnseca relao entre materialidade lingustica e materialidade social. A carga
semntico-ideolgica que impregna o vocbulo que d nome ao lbum diz muito sobre as
relaes conflituosas entre pichao/grafite/sociedade, a serem discutidas no captulo II, desta
tese.
Aparentemente, a exposio dos perfis de pichadores/as e grafiteiros/as deveria
eliminar o carter secreto da sociedade constituda por eles/as, mas, na verdade, como essa
publicizao se d, virtualmente, o segredo a tambm se estabelece como elemento definidor,
como marca identitria desses sujeitos e dos grupos a que eles se vinculam. Alm do que a
prpria condio de virtualidade, se no impede, ao menos dificulta tal identificao.
A fim de melhor fundamentarmos, empiricamente, nossa constatao de que as
comunidades virtuais so uma extenso das materiais, apresentaremos exemplos de pginas
do site de relacionamento orkut, nas quais so publicizados perfis desses/as jovens, como
tambm de comunidades virtuais de crews que atuam na cidade de Campina Grande. Quanto
s crews, optamos por OPZ e UZS, em razo de serem as mais antigas e as mais expressivas
nessa atividade, no recorte espacial desta pesquisa, como tambm porque os trs meninos com
os quais realizamos as entrevistas de histria de vida pertencem a tais grupos.
Logomarca da OPZ
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=16927751725044848034
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Logomarca da UZS
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=4689529564380136895
EXEMPLO 01
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=4045074620007105442
12
Segundo ZNOCK MORB, em sua narrativa de histria de vida, PSICO'S um coletivo da OPZ. Um coletivo
uma interveno feita por vrias pessoas, com uma nica tag, como se esta representasse uma nica pessoa.
53
no intuito de estabelecer o MAIOR grupo de pessoas que nao vem no pixe uma forma de ser
subversivo, mas sim uma forma de mostrar que arte pode estar no alcance de qualquer pessoa
que se interesse
Estamos de portas abertas Para qualquer pessoa que queira saber mais sobre nossa
ideologia...basta nos procurar na Zona Leste da cidade
Vou Ser Franco e direto...NAO ACEITAMOS NENHUMA PESSOA QUE NAO SE
IDENTIFIQUE COM NOSSAS METAS...entao bom avisar que aqueles que se
aproveitarem de nosso grupo para atividades ilicitas...SER PUNIDO das formas mais
severas que podemos alcanar...
REAFIRMANDO que nao estamos de forma alguma incitando NINGUEM a sair pichando a
cidade...vai quem quer e tem coragem...
Dito Isso...
pra Resumir...
*O COMANDO EH NOIS MAN*
Ainda sobre essa crew, identificamos o que se afirma ser a sua comunidade
oficial,cuja pgina no orkut tambm se encontra reproduzida a seguir:
EXEMPLO 02
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=17122539
54
Em relao s pginas do orkut sobre a OPZ, acima expostas, pudemos observar que
a primeira afirma ser essa uma crew de grafite (Com Avassalador investimento nas areas do
graffiti...), enquanto a segunda afirma ser essa uma crew de pichao (essa comunidade eh p
kem eh ou jah foi da mais considerada, mais ativa, mais respeitada e mais DOIDA galera de
pixacao13 ki jah apareceu aki na paraiba!). Nesses casos, fica ntida a indefinio sobre o que,
de fato, seja grafite e o que seja pichao, conforme discutiremos no item 2.4, do captulo II,
desta tese, motivo pelo qual afirmamos que deixaremos a palavra final com esses/as jovens
que usam os muros da cidade de Campina Grande como suporte para sua escrita. Persistindo
a dificuldade conceitual, reiteramos que a verso deles, portanto, ser a nossa verso.
J quanto UZS crew, em todos os dados coletados nas pginas do orkut sobre esse
grupo, encontramos a afirmao de que esta se trata de uma crew de grafite, como podemos
ver na sua home page http://www.uzscrew.hpg.com.br/acrew.html em cuja abertura se
encontra o seguinte texto:
A uzs uma crew de graffiteiros campinenses que vem fazendo um bonito
trabalho nas periferias de campina grande.A uzs foi criada em setembro de
2003 com o intuito de mostrar as diferenas entre a pixao e o graffiti e
mostrar a sociedade uma forma de arte moderna e contempornea. (grifos
nossos)
UZS crew
Incio>Comunidades>Artes e Entretenimento> UZS crew descrio:
13
O uso de pixao (e, s vezes, pixo/pixe), em lugar de pichao, tambm uma forma de transgredir at
mesmo a norma ortogrfica. Esse uso prprio dos textos de pichadores/as e grafiteiros/as.
55
COMUNIDADE OFICIAL
A uzs uma crew de graffiteiros campinenses que vem fazendo um bonito
trabalho nas periferias de campina grande.a uzs foi criada em setembro de
2XX3 com o intuito de mostrar as diferenas entre a pixao e o graffiti e
mostrar a sociedade uma forma de arte moderna e contempornea. (grifos
nossos)
idioma: Portugus (Brasil)
categoria: Artes e Entretenimento
dono: moderador #
moderadores: sagaz-uzs-, rene(z-nokmorb), Tudo Nosso!
Tipo: pblica
privacidade do contedo: aberta para no-membros
local: campina, paraiba, 581061, Brasil criado em: 23 de julho de 2006
membros: 90
EXEMPLO 04
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=4164057
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transgresso s normas, to ntima das prticas da pichao e do grafite. Por outro lado, na
escolha da primeira, observamos a postura proativa do sujeito que expressa seu desejo de
mudana dessa situao desigual para um mundo igual cidado cane... 14!. Esse um verso
do rap Da ponte pra c, do grupo Racionais MC's com o contedo do qual MEGA
demonstra se identificar. Na escolha da segunda frase de autoria de Bob Marley15 ocorre a
mesma identificao.
Segundo Archard (1999, p. 11) A estruturao do discursivo vai constituir a
materialidade de uma certa memria social. Ambos os exemplos expressam contedos
polticos que se opem aos valores antidemocrticos impostos pela ideologia dominante. O
que os hip hoppers rappers, MC's, pichadores/as e grafiteiros/as dizem, hoje, resultado de
um construto discursivo que configura sua memria, e este se apresenta como uma resposta ao
discurso do sistema contra o qual o movimento hip hop lana sua denncia. Assim sendo, por
trs das escolhas desses textos, ecoam vozes distintas que, dialogicamente, se interseccionam
para que seu discurso possa ser produzido e distribudo a inmeros sujeitos e redes sociais on
line, e consumido por um nmero bem maior de outros sujeitos (possveis interlocutores).
Finalmente, o terceiro aspecto, tambm bastante significativo, foi a adio da letra
integral do rap Pirituba16, do grupo RZO (Rapaziada da Zona Oeste), de So Paulo, cuja letra
aborda temticas semelhantes s abordadas nas frases de abertura do perfil de MEGA, que,
sendo tambm da Zona Oeste, embora de outra cidade, identificou-se com o contedo
expresso no referido rap, em virtude da globalizao tambm dos problemas sociais
(IANNI, 1996, p. 78).
So muitos discursos construindo o discurso contestador da pichao e do grafite. O
interdiscurso, segundo Fairclough (2001, p. 95) a entidade estrutural que subjaz aos
eventos discursivos, na qual se identificam rearticulaes internas entre ordens de discurso
que representam elementos das ordens sociais, e que, por sua vez, configuram a formao
discursiva e ideolgica desses sujeitos.
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Traduo do original: Agora eu quero o mundo igual cidado kane, . Referncia ao filme Cidado Kane,
dirigido por Orson Wells (EUA/1941) que trata da histria doempresrio da imprensa Charles Foster kane, o
qual viveu uma vida de luxo.
(http://www.webcine.com.br/filmessc/cidakane.htm)
Robert Nesta Marley foi o responsvel por levar o reggae da Jamaica para o mundo.
(http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u541.jhtm)
http://www.letras.com.br/rzo/pirituba-parte-II
58
A formao discursiva, por sua vez, no consiste numa expresso fechada e estvel
das concepes e valores de determinado grupo social, mas se estabelece como um espao de
entrecruzamento de vrios discursos, em cujo interior so incorporados elementos prconstrudos, formulados alhures prpria formao discursiva.
Observemos, ento, o exemplo seguinte, sobre o qual vnhamos discutindo nos
pargrafos acima, e que ilustra bem essa interdiscursividade:
EXEMPLO 05
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=10162845907402648153
MEGA ORKUT 10/05/09
idade: 19
aniversrio: 11 setembro
local: bombcity!, pb, Brasil
relacionamento: solteiro(a)
eu numka tive bicicleta ou video game! hoje em dia quero o mundo igual
cidadao cane.....!
Se voc obedecer a todas as regras, vai perder toda a diverso (31/05/09)
i nois na ativa... Vrios malucos novamente...
Pirituba assim que ainda a mesma coisa
Quem ouviu j boto f pois a zica t solta
Eu quero v quem vai recorre. Vai resolve
Melhor ento no da sopa. Pode crer
Humilde com a mente afoita. Lngua solta no Rap
Ento cresce. Alto estima na rima. No s a roupa.
Confere quem ensina. Jesus conduz e determina.
Igual aqui na vila. Vila mire ou mirante desde antes
dominantes.
Veraneio cinza a noite. Ou a Blazer de hoje a baratinha de
ontem.
No importa. Sempre incomoda. foda os home.
Se da conde no esconde. Se do Brooklin no se ilude.
Pirituba tem os mano e tem nois. Tem atitude.
Voc j t ligado. Policia no tem d. Voc vai ver que
aquilo.
P p... Em Pirituba na vila castiga sem do. E se nos pega s...
P P
Eu j cansei de ouvir morte aqui morte ali. Ta cada vez pior...
P P
Ento confira. Meu Rap assim. Sentimento na rima
59
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Apenas a anlise dos discursos que permeiam esse rap j daria um captulo desta
tese. No discurso da sociedade secreta h o interdiscurso do rap suscitando a resistncia:
Periferia assim mesmo ainda resiste. Essa heterogeneidade discursiva renderia muitas teses,
mas como nossos objetivos investigativos so outros, gostaramos de frisar, unicamente, o
investimento sociodiscursivo do movimento hip hop, a ser discutido no item 2.3, do captulo
II, desta tese, tambm atravs das letras de rap, as quais mantm um olhar atento s
contradies polticas, sociais e tnicas, resultando numa proposta de agncia social, mas que
tambm incentiva, algumas vezes, a violncia. Assim sendo, os sujeitos que vivenciam as
experincias suscitadas por tais letras se identificam com elas e assumem os valores
defendidos por esse movimento como seus.
Retomando nossa exemplificao, tambm a descrio da comunidade ATACK
BOMB ZONA OESTE, de propriedade de MEGA, nesse site de relacionamento,
arremata as observaes feitas por ns at aqui, conforme poderemos observar abaixo:
EXEMPLO 06
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=33287433
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Campina Grande.
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elaborara promover uma articulao entre seu discurso e o discurso prevalecente, num
processo ininterrupto de interao/negociao com o contexto cultural em que se inserem.
Em virtude dessas mudanas, paradigmas considerados inamovveis, foram revistos e,
o padro que, at ento, era singular, precisou admitir o plural, j que foram expostos novos
umbrais de adscrio de identidade (ARCE, 1999, p. 79). Exemplo dessa ruptura
paradigmtica a redefinio do conceito de cultura hegemnica, como uma marca
registrada, o que favorece a abertura de espaos de convivncia nos quais prticas
socioculturais de grupos e indivduos minoritrios possam ser contempladas. Sabemos que
o desdobramento semntico do termo cultura, por si s, propicia uma extensa discusso.
Eagleton (2005), por exemplo, apresenta um amplo panorama conceitual da idia de cultura,
mostrando as transformaes histricas pelas quais passou o termo.
Nessa nova perspectiva, abre-se espao, tambm, para dois elementos da cultura de
rua pichao e grafite como fortes representantes da expresso subalterna. Suas
manifestaes redimensionam a condio de um simples muro, tornando-o espao de dilogo,
de ludicidade, de disputa, de denncia e de exposio de conflitos sociais e ideolgicos
gerados pelo convvio com o cenrio urbano hbrido, a partir da emergncia de um/a novo/a
ator/atriz social juvenil: o/a jovem das favelas, das zonas e dos bairros populares (ARCE,
1999, p. 79).
Stuart Hall, ao discutir questes relativas ao ps-colonialismo, afirma que a definio
de colonizao extrapola o sentido de dominao de potncias imperiais sobre certas regies
do mundo. Segundo ele, colonizao significa o processo inteiro de expanso, explorao,
conquista, colonizao e hegemonia imperial que constitui a face mais evidente, o exterior
constitutivo, da modernidade capitalista europia e depois, ocidental, aps 1942 (HALL,
2003, p.112) (grifo do autor).
Sob esse ponto de vista, identidades clssicas hegemnicas pensavam, no apenas o
social e o cultural a partir de viso e discursos nicos, que eram os seus, mas tambm o
poltico e o econmico. Entretanto, como os processos socioculturais so caracterizados pela
mobilidade e pela multiplicidade de interaes e trocas constantes e contnuas, no foi
possvel o confinamento dos fenmenos culturais em um continer que os limitasse em suas
movncia e criatividade. A dinmica de tais processos resultou em reinveno, cujo produto
se esvaiu por entre os dedos da to sonhada homogeneidade. O entrecruzar de olhares,
perspectivas, desejos e fazeres originou, na sociedade, uma tessitura plural na qual a marca da
multidimensionalidade j no pode mais ser desfeita.
66
Terry Eagleton, ao discutir, por exemplo, a grande tradio literria, mostra que o
valor se relaciona s transformaes histricas. Afirma ele que mudanas sociais profundas
poderiam inverter valores, como, por exemplo, em uma determinada poca, o pensamento de
Shakespeare ser considerado limitado ou irrelevante. Em tal situao Shakespeare no teria
mais valor do que muitos grafitos de hoje (EAGLETON, 2003, p.16) (grifo nosso).
67
Essa
inverso
de
valores
evidenciou
experincia,
criatividade,
as
Dessa forma, a tradio cannica, assumindo uma nova posio discursiva, cedendo
lugar a abordagens flexveis e alternativas que enfocam as negociaes dos produtos de uma
cultura com outras, particularmente daquelas entre as quais existiam relaes assimtricas
(cnone versus perifrico), abre espao para o redimensionamento desse cnone e enseja,
assim, o acesso da pichao e do grafite a um lugar nos debates sobre a cultura urbana
contempornea.
Essas e outras questes, sobretudo, as que dizem respeito ao esgotamento heurstico
da teoria sociolgica clssica, tm resultado numa maior ateno ao tema da cultura, por parte
das investigaes em cincias sociais, tendo em vista a centralidade assumida por ele, como
possibilidade terico-epistemolgica que contemple a amplitude dos processos socioculturais.
Dentre eles, os circuitos juvenis urbanos tm se instaurado como um valioso fenmeno a ser
investigado para a compreenso da realidade social.
68
69
nvel das instituies, mas tambm ao nvel da prpria vida cotidiana. (PAIS, 1999, p. 163164)
Ainda, nesse contexto, redimensiona-se o conceito de identidade, uma vez que, em
lugar da homogeneidade, contemplam-se a heterogeneidade, a diversidade cultural e a
existncia de mltiplas juventudes particulares.
As identidades tm a ver, entretanto, com a questo da utilizao dos
recursos da histria, da linguagem e da cultura para a produo no daquilo
que ns somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tm a ver no tanto com
as questes quem ns somos ou de onde viemos, mas muito mais com as
questes quem ns podemos nos tornar, como ns temos sido
representados e como essa representao afeta a forma como ns podemos
representar a ns prprios (HALL, 2000, p. 109).
Dessa forma, a vivncia instaurada no panorama urbano atual sugere que a juventude
continua se destacando por apresentar um perfil caracterizado pela inovao, pela revoluo,
semelhantemente ao perfil constitutivo da prpria atualizao da sociedade, estabelecendo-se
a partir de processos de identificao, neotribalismos, nos quais os sujeitos interagem com os
pares e com o grupo (MAFFESOLI, 1998, 2004, 2005).
Muitas so as redes de sociabilidade que se tornam evidenciadas, conforme abordamos
no captulo I, desta tese, cada qual com suas particularidades, mas prioritariamente, marcadas
por laos comunitrios, nos mais diversos circuitos18 juvenis urbanos que, continuamente,
formatam a cidade pela inscrio das mltiplas formas atravs das quais esses sujeitos
vivenciam sua experincia na cultura e na histria. De acordo com Simmel, toda a
organizao interna da interao urbana baseada em uma complexa hierarquia de simpatias,
indiferenas, e averses tanto do tipo mais efmero como do mais duradouro (MORAES,
1983, p. 128)
A partir dessas evidncias, a prpria noo primeira de cidade como espao territorial
ultrapassada, na medida em que tais formas do uma amplitude e um contorno paisagem
urbana, o que implica tambm numa geografia cultural resultante desse mundo da
heterogeneidade criadora (SANTOS, 2000, p.127). Assim sendo, a cidade deixa de ser vista
apenas como um lugar, passando a se constituir como uma experincia e uma prtica social de
espao (CERTEAU, 1994, p. 202).
18
Circuito designa o exerccio de uma prtica ou a oferta de determinado servio por meio de estabelecimentos,
equipamentos e espaos que no mantm entre si uma relao de contigidade espacial. Assim a sociabilidade
que possibilita por meio de encontros, comunicao, manejo de cdigos mais diversificada e ampla que na
mancha ou pedao que apresentam fronteiras ou localizaes bem delimitadas. (MAGNANI, 2009, p. 110)
70
Para se referir a essa multiplicidade facetria da cidade, Henri Lefebvre (2008, p. 76)
distingue o conceito de cidade do conceito de urbano, por considerar que o segundo eclode
durante a exploso do primeiro, passando a se constituir numa nova relao com a cidade.
O urbano, essa virtualidade em marcha, essa potencialidade que j se realiza,
constitui um campo cego para os que se atm a uma racionalidade j
ultrapassada, e assim se arriscam a consolidar o que se ope sociedade
urbana, o que a nega e destri durante o prprio processo que a cria, a saber,
a segregao generalizada, a separao, no territrio, de todos os elementos e
aspectos da prtica social, dissociados uns dos outros e reagrupados por
decises polticas no seio de um espao homogneo. (LEFEBVRE, 2008, p.
80)
71
Jamaica para o Bronx a tcnica dos famosos sound systems de Kingston organizando festas
nas praas dos bairros (VIANNA, 1998, p.21) (grifo do autor).
Segundo Herschmann (2000, p. 184), a origem desse movimento remete para os
Estados Unidos, nos anos 70, quando, conjugando prticas culturais dos jovens negros e
latino-americanos, nos guetos e ruas das metrpoles, a juventude norte-americana congrega
trs formas de linguagem artstica: a msica (RAP- rhythm and poetry, pelos rappers e DJs),
a coreografia (break) e a arte plstica (o graffiti), imprimindo, atravs delas, suas marcas de
identificao e de pertencimento no tecido da cidade. Sua emergncia coincidiu com a poca
em que se desenvolvia, no mundo, uma grande discusso sobre os direitos humanos, tendo se
destacado, nessa luta, influentes lderes negros, como Martin Luther King e Malcolm X, e
grupos defensores dos direitos humanos, como os Panteras Negras (Black Phanters). Tal
contexto exerceu grande influncia sobre os primeiros praticantes do hip hop.
Chegou ao Brasil, nos anos 70, com a chamada cultura black, reproduzindo o estilo
americano. Encontrou espao na noite paulistana do circuito negro e popular da periferia,
passando compor a polifonia urbana. Assim, importado pelo cenrio intercultural brasileiro,
o hip hop se adaptou realidade local, incorporando elementos da nossa cultura. So
perceptveis as congruncias entre o samba e o rap, entre a capoeira e o break, entre o
colorido da pintura brasileira e as cores do grafite. Os/as pichadores e grafiteiros/as
campinenses afirmam que o grafite sofreu modificaes, no Brasil, pelo uso de materiais mais
baratos, e pela adoo de linguagem e temtica apropriadas realidade poltica e social do
pas. Uma estratgia inventada por eles/as para economizar spray, que caro, preparar o
muro com tinta lavvel, coisa que no ocorre em pases ricos nos quais o grafite produzido
exclusivamente com spray. Essa tcnica genuinamente brasileira recebe o nome de grapicho.
Em sua histria de vida, ZECA confirma que o grapicho19 tem origem brasileira, e consiste
em fazer o grafite usando tinta de parede, e misturando a ela pigmentos coloridos, em virtude
da dificuldade de aquisio do spray que custa muito caro:
Na Europa, a tinta lavvel s era utilizada pra dar o fundo na parede, dava o
fundo na parede e os grafites totalmente no spray, s que l eles compram as
melhores tintas em spray, com dois, trs euros. [...] Aqui a gente no tem
essa condio, ento nasceu meio que da coisa assim de improviso, de
terceiro mundo, e ficou conhecido , mundialmente assim, essa coisa do
grapicho como coisa brasileira, como uma coisa original daqui,
entendeu? (ZECA)
19
Existe porm uma modalidade que se pode dizer intermediria entre a pichao e o graffiti. Chamada por
alguns de grapicho [...] Estabelece conexes com o graffiti pela questo da elaborao e detalhamento dos
trabalhos, sempre muito coloridos, e com a pichao por constituir algo similar a uma assinatura, estando
diretamente ligado escrita. (SOUSA, 2007, p. 5)
72
Inicialmente, o hip hop reproduzia o estilo americano e reunia jovens para danar e
discutir idias relativas a esse movimento. Nos anos 90, em So Paulo, afirmou-se como um
importante fenmeno urbano juvenil, cuja trajetria se fez tanto margem quanto nos
interstcios da indstria cultural, segundo Herschmann (2000, p. 18), tendo seu processo de
popularizao acelerado, no cenrio miditico, pela divulgao dos arrastes no noticirio e
nos cadernos policiais. Sob a tica da enunciao jornalstica, o hip hop foi apresentado
sociedade associado ao comportamento dos grupos jovens de cultura de rua, como agentes
da desordem e da violncia, porm esse discurso que o estigmatizou , tambm, aquele que o
glamourizou.
Em contrapartida ao estigma de violncia que lhe foi imposto, baseando-se na
concepo da Histria, da Antropologia e dos Estudos Culturais que consideram a confeco
de um novo tecido multicultural na sociedade, uma parcela da mdia passou a tratar desses
grupos como tribos urbanas, referindo-se polifonia cosmopolita da urbanidade como um
territrio em que vozes e aes fortalecem a configurao de um espao marcado pela
instabilidade social. (HERSCHMANN, 2000, p. 91)
Segundo esse autor, na atualidade, o hip hop continua conquistando espao na cena
cultural brasileira, atravs de grupos, associaes, posses20 e pequenas gravadoras,
estabelecendo um estilo prprio que se configura, pela indumentria, pela arte, pela forma de
relacionamento dentro do grupo e com outros segmentos sociais, afirmando-se como um
discurso poltico a favor do movimento negro e de outros excludos da estrutura social.
Trazendo em si conotaes contraculturais, o hip hop lembra os movimentos dos anos
60, congregadores de expressividades polticas e contestatrias, que se caracterizaram pela
transgresso e reinterpretao de padres de valores estabelecidos, mas tambm pela
afirmao e projeo de novos valores. Por esse motivo, muitas vezes, colocado sob
suspeita, pelo poder estabelecido, em virtude do discurso radical e simbolicamente violento
que veicula, apesar de o mercado econmico brasileiro cooptar muitos dos signos e emblemas
desse movimento alternativo.
Apresenta-se, no apenas, mas tambm como uma alternativa contestatria, atravs
de produes que expem sociedade os contrastes enfrentados por essa juventude que
convive com a desigualdade e a excluso social em seu cotidiano, expandindo-se nos centros
urbanos, como um movimento reivindicatrio contemporneo que adquiriu uma visibilidade e
20
As posses ou associaes so um espao de socializao do hip hop no Brasil, no qual o grupo busca a
solidariedade, mas tambm o apoio institucional s minorias . (HERSCHMANN, 2000, p. 91)
73
Definir pichao e grafite no tarefa das mais fceis, uma vez que as controvrsias
em relao a tais conceitos so inmeras. Tericos, estudiosos, pichadores/as e grafiteiros/as
buscam conceituar essas duas prticas, mas ainda no chegaram a um ponto pacfico, nem
sabemos quando ou, mesmo, se chegaro. Embora sejam vertentes da cultura de rua,
apresentam-se dissidncias que nos incitam a questionar o porqu dessa dificuldade
conceitual. No seria ela justificada exatamente por que no haveria como distinguir as duas
prticas? Seriam elas to distintas assim?
Desde a investigao que realizamos acerca da construo discursiva do grafite de
muro (DUARTE, 2006), a recorrncia a essa questo foi digna de registro. Em praticamente
todos os eventos de que participamos, desde a defesa da dissertao, evidenciou-se a dvida
de acadmicos das mais diversas reas, sobre a distino entre essas duas manifestaes da
cultura de rua. No imaginrio da maioria, pichao vandalismo, grafite arte.
Aparentemente (ou no), a questo levantada por muitos tem um tom de crtica, uma vez que
a Academia exige, para os propsitos de cientificidade de um trabalho como este,
delimitarmos com preciso cada categoria abordada, alm de nos munirmos de uma
objetividade que possa credenciar o resultado da investigao perante a cincia.
Isso no consiste em novidade alguma, mas havemos que lembrar que as cincias
sociais no podem ser reduzidas s cincias naturais, uma vez que cada uma delas, em sua
investigao, trata de objetos e fenmenos cujas caractersticas, realizaes e especificidades
divergem e, portanto, requerem tratamento particular.
74
Alm desse argumento, aqui fazemos um parntese para lembrar que o prprio tema
da nossa pesquisa caracteristicamente mltiplo, sobretudo numa poca mltipla como a
contempornea, na qual as certezas e as verdades indiscutveis apresentaram suas fissuras, se
transmutaram
em
tantas
outras
verdades
com
suas
incompletudes,
nuanas
75
obsceno em muro ou parede de local pblico. J o vocbulo pichao, aparece como ato ou
efeito de pichar; pichamento e como dstico, em geral de carter poltico, escrito em muro
de via pblica (FERREIRA, 1986, p. 862). S por essa definio inicial, podemos notar a
proximidade dos conceitos, ou, no mnimo, perceber que o segundo est contido no primeiro.
J aqui podemos vislumbrar a dificuldade de definio dessas duas prticas. O conceito de
grafite como inscrio urbana, no entanto, s aparece no dicionrio de Aurlio, a partir de
1988. (FERREIRA, 1988, p. 309)
Embora sejam vertentes de uma mesma cultura, as controvrsias conceituais no se
limitam aos estudiosos, atingem os prprios/as pichadores/as e grafiteiros/as. Segundo o
grafiteiro e escritor Gitahy (1999, p.19), uma das diferenas entre o grafite e a pichao
que o primeiro advm das artes plsticas e o segundo da escrita, ou seja, o grafite privilegia a
imagem, a pichao, a palavra e/ou a letra. A pichao rpida, espontnea, subversiva e
utiliza pouca cor. Por sua condio de subverso no espao pblico, a cultura hegemnica
atribui a essa prtica, um tom depreciativo. O grafite planejado, mais elaborado, utiliza
muitas cores e tem uma preocupao esttica. Por isso, s vezes, aceito pela sociedade, que
permite o encaixe dele no rol das expresses artsticas.
Lara, por sua vez, afirma que:
O grafite original semelhante pichao hoje vista nas cidades. Ele
provocativo. J a arte do grafite foi absorvida, virou bonitinho, bacaninha e a
pichao ficou mal vista pela sociedade conservadora, careta, de base
familiar, a mesma que tenta dizer que grafite arte e pichao sujeira. Na
verdade no nada disso. (LARA, apud VELLUTO, 2006, p. 1)
O evento discursivo acima sugere a postura crtica de Lara, por este detectar o
processo de cooptao da sociedade em relao ao grafite, o qual remete operao da
ideologia dominante em propor uma hierarquizao, deixando a pichao numa espcie de
apartheid sociocultural.
Observamos, pois, que o discurso dos prprios sujeitos envolvidos com essas
produes, tanto em Campina Grande quanto em nvel nacional, mostra que eles discordam,
entre si, acerca dessas distines. H quem considere pichao e grafite uma mesma coisa, h
quem diga que o segundo uma evoluo da primeira. Mesmo entre eles, h quem defenda
que a pichao um ato ilcito, enquanto o grafite autorizado, que a pichao vandalismo,
enquanto o grafite arte. Algumas falas dos/as pichadores/as e grafiteiros/as campinenses
revelam que eles/as fazem uma diferena entre grafite e pichao. O discurso do grafiteiro
GORPO (DUARTE, 2006), por exemplo, revela o seguinte:
76
O grafiteiro BROWN, por sua vez, disse que uma das desvantagens de praticar o
grafite o preconceito de ser confundido com vndalo. A grafiteira LUA tambm considera
que a desvantagem dessa atividade o preconceito das pessoas. SAGAZ tem esse mesmo
pensamento: Ainda rola muito preconceito. A sociedade nos discrimina. A opinio de
ZECA tambm de que o grafite ainda muito marginalizado e confundido com pichao, o
que acarreta uma forte represso do sistema. CAOS refora o pensamento dos demais,
dizendo que as desvantagens da prtica do grafite so o preconceito e a marginalizao.
SLAP afirma que a desvantagem poder rodar, ser preso. (DUARTE, 2006)
Tambm nas histrias de vida dos sujeitos entrevistados, nesta pesquisa, repete-se a
mesma controvrsia acerca da diferenciao entre pichao e grafite, embora o pensamento
predominante seja o de que a linha que separa essas duas prticas tnue, como poderemos
observar nos seguintes excertos discursivos:
Em essncia, a pichao muito parecida com o grafite, porque, qual o
objetivo da pichao? levar seu nome ao maior nmero de lugares
possveis, marcar seu territrio, e fazer com que seu nome tenha uma
notoriedade. [] , ento eu acho que quem faz grafite no pode, ,
renegar suas origens, porque suas origens esto na pichao. [...] A
pichao foi tomando contornos, foi tomando formas, cores, e se transformou
no grafite que a gente tem hoje. Ento seria, , tipo, , o grafite, o homem, e a
pichao, o macaco, entendeu? [...] Ento basicamente essa questo, o
grafite e a pichao so uma coisa s. [] Eu represento a LPE tambm,
eu no sou pichador, e sou tambm, n? Mas eu represento a UZS crew, que
vem daqui tambm que o mesmo ncleo21, entendeu? (ZECA)
O grafite tem uma aceitao social, diferente do piche, mas o piche e o
grafite no se diferencia em nada. [...] O Art. 63, 65, crime contra o meio
ambiente, do Cdigo Penal, encara piche e grafite como a mesma histria.
[...] O piche e o grafite to ali, na mesma, caminhando um do lado do
outro. [...] Figuras que to em atividade h muito tempo, elas tambm
compartilham desse mesmo pensamento. Caramba, grafite e piche, mesma
farinha. Se a pessoa for preconceituosa, vai dizer: ah o piche, uma
tremenda safadeza, vandalismo, isso, aquilo outro. Ah, grafite o
bonzinho da histria, o lado bonito, isso, aquilo outro. (PAGO)
O objetivo de todo mundo que comea tanto no grafite, como na
pichao, a questo de colocar seu nome pra todo mundo ver. [] A
gente LPE, mas se a gente t fazendo grafite, eu acho a pichao uma
21
Essas duas siglas tm um mesmo ncleo: um mesmo grupo que utiliza LPE (para a pichao) e UZS (para o
grafite)
77
coisa, assim, mais anarquista, mais, como que se diz, , mais secreta,
assim, mais underground, mesmo, na essncia, assim. E o grafite, no. O
grafite, a gente pode se tornar at artista. (Histria de vida ZNOCK
MORB) (grifos nossos)
d) A MMS22 agora de grafite, n? Ainda tem uns MMS na cidade, mas
os que tem so relquias de quando a gente ainda pichava. So poucos,
assim. Agora, a gente s quer usar a MMS pra grafitar. Se, como tinha muito
INSANA na cidade, se eu fosse pedir s pessoas uma autorizao: deixa eu
fazer um grafite aqui na sua casa. Sou XXXXXX, isso, isso e isso, e fao l
um grafite, e assino em baixo como INSANA, a a dona da casa vai bater
l e: oxente, foi essa menina a que pichou meu muro, e vai ficar bem
mais fcil a identificao, por isso que, normalmente, pra grafite, uma
assinatura e pra pichao, outra assinatura. (INSANA)
Nesses recortes do discurso dos sujeitos desta pesquisa, identificamos tanto a verso
de que pichao e grafite consistem numa nica prtica, quanto a verso de que aquela
crime, enquanto este arte, o que implica na manuteno das controvrsias mesmo entre os/as
pichadores/as e/ou grafiteiros/as. Contudo vale ressaltar que, mesmo no discurso daqueles que
se posicionam defendendo a segunda verso, h momentos em que se revelam contradies, e
eles/as acabam por desdizer o que disseram anteriormente.
A maioria deles considera que os objetivos que direcionam ambas as prticas so
idnticos. Talvez, a partir dessas constataes, necessitssemos sugerir duas novas categorias
para este estudo grapicho e grapicheiros nas quais estariam contempladas,
simultaneamente, as duas prticas e seus produtores.
Por outro lado, nos eventos discursivos acima, j se evidenciam vislumbres da
operao da ideologia dominante no prprio discurso dos que produzem a pichao e o
grafite. Um ponto importante a salientar que, segundo informaes deles/as prprios/as,
os/as grafiteiros/as se iniciam na pichao, conforme afirma ZECA, em sua histria de vida:
Ao contrrio da maioria dos grafiteiros, eu no comecei pichando. PAGO, por sua vez,
afirma em sua histria de vida: T envolvido com a cultura de rua, agora em particular com
o grafite. E j tive uma experincia grande e marcante com piche. Comeou em 95, em
Recife.
Mesmo assim sendo, nas histrias de vida acima citadas, nenhum/a deles/as se
designou pichador/a. Quando muito, afirmam ter pichado, anteriormente, mas no momento,
declaram-se envolvidos com o grafite. Para se apresentarem sociedade, precisam de uma
identidade que seja menos problemtica, em virtude da ilegalidade dessa prtica. Para
Stuart Hall, uma identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente uma
22
78
fantasia (HALL, 2000, p.13). Segundo ele, o que ocorre uma multiplicao de
representaes culturais e sistemas de significaes, que faz com que exista uma
multiplicidade de identidades possveis.
Ser que s porque esses sujeitos deixam de pichar e passam a grafitar, seu produto
final diverge totalmente dos propsitos anteriores? Ser que as motivaes que os/as levam a
essa prtica mais aceitvel socialmente tambm se modificam? Ser que o grafite no traz a
marcas contestatrias da pichao? Ser que uma prtica anula totalmente a outra?
Provavelmente, essa seria mais uma estratgia desses sujeitos para driblar as
determinaes, o que no descarta o agenciamento sociodiscursivo deles numa luta pela
validao dos seus valores e discursos, numa luta pela hegemonia. Aqui, oportuno lembrar a
utilizao gramsciana do termo hegemonia para referir-se s estratgias das classes
subalternas, como um planejamento estratgico-ttico que favorea sua ao poltica e social e
a conquista do poder. No deixa de ser, tambm, uma ttica para se encaixarem nas frestas do
cnone social.
Em razo disso, os/as grafiteiros/as se expem, os/as pichadores/as se ocultam.
impossvel revelar, publicamente, a identidade de um/a pichador/a. Como o grafite permite
que eles/as reivindiquem uma condio de artistas, muito mais cmodo se apresentarem
com a identidade de grafiteiros/as. A se evidencia a disputa entre o ser pichador/a e o ser
grafiteiro/a, subsidiada pela ideologia da sociedade, que delimita os conceitos,
hierarquizando-os, de forma que o primeiro seja estigmatizado como vndalo, como
criminoso, e o segundo, seja considerado artista plstico. Por outro lado, h tambm a
influncia do mercado e da mdia na atitude desses sujeitos, conforme abordaremos no
captulo IV, desta tese.
Erving Goffman, em suas reflexes sobre o estigma, considera que:
Uma vez que em nossa sociedade o indivduo estigmatizado adquire
modelos de identidade que aplica a si mesmo a despeito da impossibilidade
de se conformar a eles, inevitvel que sinta alguma ambivalncia em
relao a seu prprio eu. (GOFFMAN, 2008, p. 117)
79
Os textos produzidos por eles/as, nos muros de Campina Grande, por exemplo,
sugerem que os sentidos emergentes nas duas prticas se aproximam e que os objetivos que os
direcionam so, se no iguais, similares. Exemplo disso a frase, j citada anteriormente,
grapixo nis, denunciando a intrnseca relao entre as duas prticas. Em outros muros,
encontramos excertos lingusticos caracterizados por uma multidimensionalidade semnticoideolgica que sugerem a capacidade crtica e diretiva dos/as que produzem essas expresses
da cultura de rua: Todos unidos, na mesma ideologia; Foda-se o sistema, Desculpa de
grafiteiro, parede lisa; Reao da periferia; Arte ou crime? (DUARTE, 2006). Esse
ltimo exemplo, inclusive, toca na temtica aqui discutida, o que revela a preocupao deles
com a tica da ideologia social em relao ao que eles/as esto produzindo nos muros.
Fotografia Angelina Duarte
FOTO 21 Desculpa de grafiteiro parede lisa! (Caos UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro. CUCA. Janeiro
de 2005.
Fotografia Angelina Duarte
FOTO 22. Arte ou crime? (ZECA PCO.UZS) Rua Dr. Severino Cruz. Centro. Janeiro de 2005
80
81
Uma vez que a prpria origem da palavra grafite se refere a grafismos rabiscados em
muros, talvez a insistncia em estabelecer diferenas entre o grafite e a pichao seja uma
questo burocrtico-acadmica, marcada pelo tom da ideologia dominante. O que a maioria
dos textos sobre o tema sugere que o primeiro uma evoluo da segunda. E nessa
perspectiva ser tratado neste estudo.
A grafiteira ZEN chegou a afirmar que o tchan da parada a pichao, que o
grafite autorizado no tem a adrenalina da pichao (DUARTE, 2006). Seu posicionamento
se coaduna com a afirmao de Calazans, e refora a idia de que o/a grafiteiro/a se deixa
cooptar por livre e espontnea vontade.
Mesmo j encontrando espaos em que reconhecido como arte, o grafite
considerado ilcito pelo discurso da legislao vigente, que o enquadra nas mesmas
penalidades a que est sujeita a pichao (Lei Ambiental nmero 9.605/98). O grafite e a
pichao so considerados, no Brasil, crimes contra o ordenamento urbano e o patrimnio
cultural. Essa lei no faz distino entre as duas prticas, conforme estabelecido em seu artigo
65:
Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificao ou
monumento urbano:
Pena deteno, de trs meses a um ano, e multa.
Pargrafo nico. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em
virtude do seu valor artstico, arqueolgico ou histrico, a pena de seis
meses a um ano de deteno, e multa.
Em comentrio a esse artigo, Freitas e Freitas (2001, p. 208), na obra Crimes contra a
natureza: (de acordo com a lei 9.605/98), afirmam que pichar ou grafitar bens mveis ou
imveis um fenmeno contemporneo. Pode ser uma manifestao de rebeldia juvenil,
protesto poltico ou mera expresso de inconformismo contra a sociedade. A seguir,
completam esses autores que a pichao e o grafite so um sinal dos tempos que se alastra
82
como um mau hbito por todo o mundo ocidental, cabendo ao Direito analisar o fato sob o
ponto de vista jurdico. Com esse pensamento, discriminam as duas prticas, colocando-as
num mesmo patamar de ilegalidade, atribuindo ao grafite o estigma de desvio, de vcio, de um
mal que se alastra prejudicando o projeto de higienizao social.
Mais adiante, aps definirem pichar como o ato de escrever ou desenhar slogans,
nomes, propagandas, mensagens, por vezes com fins polticos e sociais, em muros, paredes,
edifcios, construes enfim, e grafitar como fazer desenhos ou inscries com grafite
conceitos que, ao nosso ver no, no so diferentes acrescentam que se o ato de grafitar for
efetuado com autorizao do proprietrio, ou seja, para embelezar o local, no se configurar
crime (FREITAS; FREITAS, 2001, p. 209). Na interpretao dada por esses autores, no
existe ilicitude quando o grafiteiro desenha num muro com a autorizao do proprietrio.
Com essa concepo, a condio de arte do grafite fica restrita ao aval dos donos dos imveis
grafitados. Assim sendo, mesmo que se trate de uma manifestao de um cunho artstico
indiscutvel, quando no-autorizada, enquadrada como crime ambiental, e seu produtor fica
sujeito s punies previstas na lei. Nunca vimos contradio maior. Mais uma vez,
observamos os mecanismos de cooptao de tendncias contestadoras, para alimentar o
discurso da ideologia dominante.
Apresentado, pois, um resumo das duas verses discursivas sobre a pichao e o
grafite, pudemos constatar que a dificuldade conceitual acerca dessas duas prticas culturais
juvenis persiste em ambos os discursos. Passaremos, ento, a discutir como se d o
contraponto entre ao discurso oficial e o discurso da cultura de rua, a partir da prtica
discursiva e da prtica social que envolvem os que se expressam nos muros da cidade,
subsidiando-nos pela perspectiva da Teoria Social do discurso (FAIRCLOUGH, 2001).
Todo evento discursivo mantm uma relao com o contexto histrico e social que o
envolve. A natureza da prtica social influencia a prtica discursiva que, por sua vez, produz
efeitos sobre a prtica social em que se insere.
John B. Thompson afirma:
Como pessoas, ns estamos imersos em conjuntos de relaes sociais e
estamos constantemente envolvidos em coment-las, em represent-las a ns
mesmos e aos outros, em verbaliz-las, em recri-las e em transform-las
atravs de aes, smbolos e palavras. [...] Pois a vida social , at certo
ponto, um campo de contestao em que a luta se trava tanto atravs de
83
palavras e smbolos como pelo uso da fora fsica. Ideologia, no sentido que
eu proponho e discuto aqui, uma parte integrante dessa luta; uma
caracterstica criativa e constitutiva da vida social que sustentada e
reproduzida, contestada e transformada, atravs de aes e interaes, as
quais incluem a troca contnua de formas simblicas. (THOMPSON, 2002,
p. 19)
84
para cooptar o outro do espao intersticial em que ele se encontra, a fim de que se
reproduzam valores e ideias do cnone social.
Apesar de os/as pichadores/as e grafiteiros/as se inscreverem nesse dilogo,
apresentam sua resposta ao discurso prevalecente, apontando-lhe ambiguidades e
ambivalncias, atravs do estabelecimento de uma luta ideolgica, como instncia da prtica
discursiva, mas ao mesmo tempo, movidos pelos atrativos da visibilidade, hibridizam-se para
se sentirem includos.
Assim procedendo, a pichao e o grafite tentam metamorfosear prticas discursivas
legitimadas, a partir do questionamento das ideologias que as subsidiam, mas tambm, em
alguns momentos reproduzem essas ideologias. Ao materializarem, na linguagem, elementos
pertinentes aos conflitos sociais, revelam que tm sua gnese numa matriz social ligada
condio de subordinao que caracteriza os que fogem ao padro hegemnico. Por outro
lado, podem mesmo estar reproduzindo um discurso que, no cenrio miditico da
contemporaneidade, tem servido de senha para a visibilidade da periferia. Prova disso que
aqueles/as jovens que no advm do subrbio se esforam para esconder dos demais essa
condio, assumindo comportamentos e discursos pertinentes a essa esfera social.
Os seguintes fragmentos de histrias de vida sugerem a condies assimtricas
vivenciadas por alguns desses jovens na periferia:
A gente vem de uma classe desfavorecida, entendeu? Minha me
professora pblica, e a gente se criou nas Malvinas23, e ela disse: voc
tem que estudar pra ser o melhor, porque a gente no tem nada, ento seu
futuro vai depender disso, de voc ser o melhor, ento uma questo que a
gente t sempre procurando evoluir, porque neguinho que nasceu em
bero de ouro, no t nem a pra isso, entendeu? , j tem tudo na mo,
e a? (ZECA)
Moleque, eu passei a minha infncia todinha jogando bola. Eu emburacava
nas maloca. O que voc imaginava dentro da Zona Leste, eu
emburacava. Era, minha famlia preocupada que s... Maloca toda
quebrada. Posso dizer assim, todo bequinho que tinha conhecido meu que
chegava l pra gente jogar. E nisso, eu me envolvendo com todo tipo de
gente. Eu de certa forma astuto, fui aprendendo, tendo convvio. No tinha
irmo, no tinha vizinho, no tinha isso que era bandido, que tava no
sistema, mas tinha muitos amigos que tavam fazendo parte desse social e
fui aprendendo com eles. E de certa forma aquilo, por eu tambm ser
produto do meio, aquilo foi mexendo na minha personalidade. (PAGO)
85
expresses que se realizam, subversivamente, apesar de todos os esforos da lei para reprimilas. Sob pseudnimos (tags), eles/as se escondem. A utilizao das tags tem uma explicao
que supera a dimenso ideolgica e retrica, pois como essas prticas so ilegais, essa
uma estratgia para que eles/as possam escapar da mira da legislao vigente.
Fotografia Angelina Duarte
FOTO 23 Criar, sem pedir licena, um mundo de liberdade! (Zeca- PCO-UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro.
CUCA. Setembro de 2005.
Fotografia: Angelina Duarte
FOTO 24. Liberdade de expresso. (Caos UZS) Rua Paulo de Frontin. Centro. CUCA. Janeiro de 2005.
O vocbulo liberdade, muito utilizado por esses/as jovens, remete a toda uma
construo scio-histrica de investimento contra a opresso, seja ela em que esfera for,
mesmo que no seja fcil definirem que liberdade, de fato, desejam. Por trs desse uso h
todo um interdiscurso formatado por nuanas da contraposio, desde as advindas da
contracultura, at mesmo as mais domsticas, relativas necessidade de eles/as se
libertarem das amarras do mundo adulto.
Nesse discurso da alteridade, h uma contraposio s ordens do discurso
dominantes, institucionalizadas, legitimadas a famlia, a religio, a lei, o governo que
tanto podem remeter para efeitos de uma oposio que favorea uma possvel ascenso do
discurso da pichao e do grafite a uma posio de prestgio discursivo, da mesma forma que
h o interesse pelo prestgio, pela auto-afirmao no mbito sociocultural, como tambm pode
86
A anlise da prtica social que se d via texto possibilita a abordagem das estruturas
condicionadoras, da operao da ideologia e das relaes sociais que atuam no contexto
pertinente pichao e ao grafite. Nesses discursos, tambm, h marcas das estruturas sociais
que tentam moldar o sujeito o sistema, a famlia, a religio, a lei atravs das quais a
ideologia dominante opera. As relaes sociais conflituosas se fundem ao condicionamento
dos sujeitos, e o resultado disso revelado no discurso, que, como j dissemos, miscigena
ideologia e contra-ideologia.
87
88
89
pichador/a, evidencia-se a operao da ideologia que, por sua vez, acaba por gerar uma
contra-ideologia. Conforme afirma Gramsci, na dominao ideolgica, existem brechas nas
quais se constituem contra-ideologias (e contradiscursos) que se opem dominao e lutam
por reafirmar seu lugar social. (GRAMSCI, 1992, p. 62-63)
Dessa forma, enquanto as foras sociais centrpetas so postas em ao, emergem
foras centrfugas que se utilizam de estratgias para se articular nesse espao de negociao.
Melhor dizendo, at mesmo na atitude dos/as pichadores/as e grafiteiros/as, em se deixando
cooptar, podemos perceber a crtica e a contestao s estruturas condicionadoras.
Talvez estejam a pichao e o grafite se camuflando para no serem predados, apesar
de perseverarem nesse agenciamento, conforme veremos no item a seguir.
90
91
92
como uma ideologia no sentido marxista24 para encobrir a revelao de certos aspectos da
vida, o que denota uma simplificao da simplificao, uma vulgarizao da vulgarizao.
Outros marxistas de tradies diferentes tambm se contrapuseram a esses
reducionismos a que foi submetida a teoria marxista. Impressas no pensamento gramsciano,
por exemplo, encontra-se a refutao ao materialismo vulgar, que no deixa espao para o
sujeito e para a iniciativa poltica, e que consiste em reduzir uma concepo de mundo a um
formulrio mecnico [...]. Encontra-se tambm a afirmao de que a experincia sobre a
qual se baseia a filosofia da prxis [...] a prpria histria em sua infinita variedade e
multiplicidade... (GRAMSCI, 1992, p. 152). Nessa perspectiva, nas relaes vivenciadas
pelos sujeitos, no processo social interativo, podem surgir conflitos e contradies que
apontem para uma crise na hegemonia dominante (HALL; LUMLEY; MACLENNAN,
1983, p. 67).
Para Gramsci, hegemonia a capacidade de ser dirigente. No apenas de direo
poltica, mas tambm como direo moral, cultural, ideolgica (GRUPPI, 1978, p.11).
Atravs da luta poltica, a sociedade civil tem a possibilidade de transformar a sociedade para
construir uma nova hegemonia, uma capacidade de direo, uma nova mentalidade, uma nova
cultura, por meio do consenso. Isso se d em virtude de as prticas sociais terem um carter
inerentemente aberto, o que instabiliza o equilbrio da hegemonia. Ainda nessa concepo, o
termo hegemonia utilizado para referir-se s estratgias das classes subalternas, cuja cultura
no autnoma nem criticamente unificada. Sob esse ngulo, Gramsci privilegia a formao
social concreta e postula formular para ela um planejamento estratgico-ttico que possibilite
a ao poltica e social da classe minoritria e faculte a conquista do poder. (GRUPPI, 1978,
p. 68-69)
Enquanto, por exemplo, na perspectiva althusseriana, o sujeito neutralizado, frente
determinao da estrutura, na perspectiva de Gramsci, o pensamento e a ao do sujeito so
privilegiados. Na primeira, percebemos a marginalizao dos conflitos sociopolticos, das
contradies, dos tensionamentos e das lutas reais dentro da sociedade, predominando,
portanto, uma viso de dominao imposta unilateralmente. Consequentemente, na teoria
mecnica de Althusser, some o sujeito, some a experincia, some a histria. Por isso, apesar
de partir do pensamento de Marx, sua tese, exatamente por ser mecanicista, antagnica
24
Para Marx, ideologia o sistema ordenado de idias ou representaes e das normas e regras como algo
separado e independente das condies materiais, visto que seus produtores os tericos, os idelogos, os
intelectuais no esto diretamente vinculados produo material das condies de existncia. E, sem
perceber, exprimem essa desvinculao atravs de suas idias. (CHAU, 2001, p.20)
93
concepo marxista. E nesse ponto que E. P. Thompson constata que, pelas mos de
Althusser, o marxismo vulgar elaborado como uma teoria o estruturalismo que congrega
em seu bojo outros ismos: determinismo, reducionismo, mecanicismo.
Apresentando sua teoria como sendo uma leitura de Marx, Althusser defende, por
exemplo, que a ideologia um sistema de representao, uma relao imaginria vivida pelos
homens com as condies reais da existncia, e s se concretiza por existir sempre num
aparelho ideolgico concreto em cujo interior se determinam, aos homens, prticas e rituais
moldados pela ideologia. Essa reproduo se d devido imposio de conceitos e valores da
classe dominante dominada, via Aparelhos Ideolgicos do Estado AIEs (sistema poltico,
escolas, igrejas, canais de informao) e Aparelhos Repressivos do Estado AREs (governo,
exrcito, polcia, tribunais) que resulta sempre na estabilizao e na continuidade da
explorao de classes, por meio da ideologia e da represso. A partir dessa concepo
monoltica, unilateral defendida por Althusser, no h espao para a ambiguidade ou para a
transformao, uma vez que, ao interpelar os indivduos em sujeitos, os AIEs os subordinam
ideologia da classe dominante, assujeitando-os.
Esse assujeitamento ideolgico torna aparente a ao do sujeito, que pensa estar
trabalhando por si mesmo, mas que, na verdade est trabalhando por uma ideologia e numa
ideologia, reproduzindo-a, tendo suas aes ou prticas governadas pelos aparelhos
ideolgicos que so o local em que a funo prtico-social da ideologia dominante
assegurada.
Contrapondo-se a essa perspectiva, Thompson constri seu argumento, ressaltando as
consequncias dessa teoria para a construo de uma interpretao sobre a vida, sobre a
poltica, sobre a histria, sobre os acontecimentos. Em sua argumentao, resgata a
historicidade e a subjetividade que permeiam as prticas, apresentando sua percepo crtica,
assumidamente nos marcos do marxismo. O registro dessa contraposio se realiza na obra A
Misria da Teoria ou um planetrio de erros (THOMPSON, 1981) na qual esse autor tece
uma crtica terica e poltica a Althusser, afirmando que o estruturalismo althusseriano,
baseado em prticas repressivas, tolhe a liberdade da histria, desconsiderando a agncia
humana, ou seja, a experincia.
Convergindo para a perspectiva thompsoniana, temos a crtica de Deleuze (1974, p.
300):
o estruturalismo no um pensamento que suprime o sujeito, mas um
pensamento que o esmigalha e o distribui sistematicamente, que
contesta a identidade do sujeito, que o dissipa e o faz passar de um
lugar a outro, sujeito sempre nmade, fato de individuaes, mas
94
Fairclough (2001, p. 121), por sua vez, conflui para a mesma direo, afirmando que:
A teoria althusseriana do sujeito exagera a constituio ideolgica dos
sujeitos e, conseqentemente, subestima a capacidade de os sujeitos
agirem individual ou coletivamente como agentes, at mesmo no
compromisso com a crtica e na oposio s prticas ideolgicas. [...]
os sujeitos so posicionados ideologicamente, mas tambm so
capazes de agir criativamente no sentido de realizar suas prprias
conexes entre as diversas prticas e ideologias a que esto expostos e
de reestruturar as prticas e as estruturas posicionadoras.
95
96
Nessa assertiva de Thompson, reitera-se sua filiao terica ao marxismo, no que diz
respeito determinao da conscincia social pelo ser social (MARX, 1983b, p. 18), mas,
ao mesmo tempo, so acrescentados dados novos, quais sejam, a imprevisibilidade e a
indefinio da experincia do ator, que faz com que a estrutura ganhe vida, frente s
determinaes estruturais.
Para Thompson, a experincia no vivenciada apenas no plano das idias, como
sugeriu Althusser, mas tambm no plano dos sentimentos que dialogam com a cultura, a arte e
as convices religiosas, ou seja, na conscincia afetiva e moral, o que implica na
desconstruo da autonomia da moral, a partir da constatao de que os valores se vinculam
ao processo histrico, e de que toda contradio um conflito de valor, tanto quanto um
conflito de interesse (THOMPSON, 1981, p. 189). Tais valores, por sua vez, so vivenciados
na famlia, no trabalho e na comunidade imediata, espaos esses nos quais os sujeitos
realizam tal aprendizado.
Dessa forma, portanto, instabilizando a determinao estruturalista, a experincia
devolve o sujeito ao processo, mostrando que sempre se realiza um dilogo entre
determinao e escolha, entre o institudo e o instituinte. Os fins so escolhidos pela nossa
cultura, que nos proporciona, ao mesmo tempo, nosso prprio meio de escolher e de influir
nessa escolha (THOMPSON, 1981, p. 199).
No item a seguir, trataremos do dilogo entre as contribuies terico-metodolgicas
trazidas por esse historiador e as manifestaes discursivas da pichao e do grafite.
97
serem
elas
efeito
da
complexidade
do
processo
scio-histrico
da
Esses exemplos fazem parte do corpus analtico da pesquisa: DUARTE, Angelina. Se essa rua fosse minha,
eu mandava grafitar!!!: a construo discursiva do grafite de muro em Campina Grande PB. Dissertao de
concluso do curso de Mestrado Interdisciplinar em Cincias da Sociedade. Universidade Estadual da Paraba,
Campina Grande, 2006.
98
FOTO 25 PM, o pior marginal (MMS) Rua Paulino Raposo. So Jos. Abril de 2005.
99
se de sua prtica cultural para expor sociedade sua crtica, sabendo eles que esta ser vista
por muitos outros sujeitos.
Tambm ao materializar na linguagem elementos pertinentes aos conflitos sociais, o
discurso pode remeter para a subalternidade caracterstica da matriz social de onde advm a
maioria dos/as manos/minas da cultura de rua. Nuanas desses conflitos esto
subentendidas tambm nas seguintes histrias de vida:
L na Zona Leste, at um aspecto cultural, a formao da molecada l
bem diferente daqui da Liberdade, que por sua vez bem diferente das
Malvinas, que bem diferente do Alto Branco. Olhando assim a
subcultura Zona Leste que faz parte de uma cultura, que Campina Grande,
a molecada l cresce vendo muito vizinho que t no presdio, tendo
irmo que tambm t no presdio. essa a mxima dentro de um sistema:
pregue a paz, mas se tiver necessidade, cobra, se for no caso de matar,
mata.O social em si ensina aquilo pra ele. O ser humano at certo ponto
produto do meio. A molecada l cresce com essa mentalidade. (PAGO)
[] E era interessante que a infncia a gente conviveu muito com os guri da
favela, sabe? Tive muito esse contato coma favela, tive muito esse contato
com pessoas humildes, sempre fui muito atrado, vi, pelas pessoas
humildes, assim. [] E eu fui vendo outra realidade, e da quando eu fui
caminhando e aprendendo coisas que eu apliquei at no grafite, que eu
apliquei na minha vida tambm. (ZNOCK MORB)
100
expressam seus sentimentos, conceitos e valores, revelando que, nos interstcios de sua prtica
sociodiscursiva, instaura-se, tambm, uma perspectiva crtica em relao a muitas questes
vivenciadas por eles/as na materialidade social.
Do ponto de vista de E. P. Thompson, a partir da experincia vivenciada na realidade
material e cultural, para a qual foram devolvidos homens e mulheres reais, esses atores
assumem a agncia social, podendo reproduzir padres dominantes, mas tambm podendo
refut-los ou dar a eles uma nova formatao. Assim, devolvidos ao processo histrico, criam
seu espao de diferenciao, estabelecem um meio de participao na histria, reagindo s
determinaes estruturais, mas, ao mesmo tempo, se articulando, na medida do possvel, aos
propsitos da cooptao, para registrar sua experincia nesse cenrio plural e dialgico.
As contribuies terico-metodolgicas desse historiador, portanto, nos auxiliaram,
sobremaneira, nas reflexes sobre o agenciamento sociodiscursivo de pichadores/as e
grafiteiros/as, uma vez que, a partir delas, pudemos constatar a relevncia dessa perspectiva
para a compreenso da vida, do sujeito, da sociedade, da poltica e de toda a dinmica que
envolve o processo scio-histrico. A partir delas, pudemos identificar essa relao dialtica
entre estrutura e agenciamento humano, como tambm resgatar a historicidade e a
subjetividade que permeiam as prticas da pichao e do grafite na cidade de Campina
Grande.
Essas prticas, para se instaurarem na contemporaneidade, estabelecem negociaes
com a sociedade, o mercado e a mdia, conforme discutiremos no captulo IV, desta tese.
Antes, porm de abordarmos tais relaes, apresentaremos no captulo a seguir a
experincia etnogrfica que nos serviu de porta de acesso sociedade secreta.
101
ETNOGRFICA
NO
NCLEO
HIP
HOP
CAMPINA
___________________________________________________________________________
E a irmandade, doido, do hip hop? T ligado? A gente t dentro do
hip hop, a gente t criando faces pra brigar. Se o hip hop j veio
pra solucionar isso, se tinha as gangues de Nova Iorque que quando
se encontravam, matavam dois trs de cada lado, entendeu? Pra
solucionar isso, , passaram ao invs de brigarem, danarem break
pra ver quem danava melhor, entendeu? Vamos fazer um
campeonato de grafite pra ver quem grafita melhor! Entendeu? Mas,
porra, t indo de encontro a toda a proposta inicial da histria, que
apaziguar. T se dividindo em faces, e se dividindo em faces, e
guerreando entre si, eu fico triste com isso. (Histria de vida ZECA)
Com o objetivo de produzir um relato que pudesse refletir uma viso aproximada do
campo em que desenvolvemos nossa investigao, este captulo se constitui num exerccio
etnogrfico cuja proposta de, primeiramente, enunciar o modo como se instaurou a
experincia em foco, para, a partir dela, apresentar algumas reflexes acerca da dinmica que
permeia as relaes dentro do grupo estudado, a fim de desvendar o que est sendo posto na
interao que nele se realiza.
Seguindo os passos abordados por Foote White (1980, pp. 77-86), para quem
partilhar da convivncia com os nativos no implica em eliminao das diferenas culturais
entre investigador e investigado, iniciamos a observao participante nas reunies do Ncleo
Hip Hop Campina (NH2C) fundado no ano de 2007, contexto em que mantivemos contato
com os hip hoppers, apesar de o foco da nossa pesquisa ser, especificamente, grafite/pichao.
Detectamos que apesar de haver uma definio prpria para cada elemento
relacionado msica, dana ou parte grfica , a linha que os separa tnue, por haver
uma relao de complementaridade entre eles que so os pilares do hip hop em torno de um
objetivo comum: dar voz periferia. Assim sendo, h todo um investimento para que um
pilar valorize as especificidades dos demais. comum, por exemplo, haver intervenes
simultneas de grafite, rap e brake. Essa atitude visa ao fortalecimento dos hip hoppers em
torno de discursos, comportamentos, estilos e interesses, os quais passam a representar uma
marca identitria.
Nesse contexto, o grafite se destaca, uma vez que sua publicizao, em Campina
Grande, tem se ampliado, conforme discutimos no captulo II, desta tese. Pelas ruas desta
cidade, nos deparamos com murais em que a pichao e o grafite dialogam entre si e com a
sociedade, levantando, inclusive, temas da atualidade, como se fossem uma crnica sobre
nossa sociedade.
102
103
27
Descrio da comunidade do NH2C, no ORKUT. (obs: Optamos por manter a redao original desse texto,
como tambm dos demais utilizados nos captulos desta tese, oriundos de pginas ou comunidades do orkut)
28
104
Logomarca utilizada pelo NH2C na poca de sua fundao foto copiada do orkut de DJ JOH
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=16692791000543478951
Logomarca utilizada pelo NH2C atualmente (12/08/2010) foto copiada do orkut de DJ JOH
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=16692791000543478951
105
Importante ressaltar que o dirigente do NH2C filho de uma famlia da classe mdia
alta, residente nesta cidade pai mdico e me comerciante , no sendo, portanto, oriundo da
periferia da cidade de Campina Grande ou de outro municpio qualquer. Sua ligao com o
Ncleo e com a CUFA se estabeleceu a partir de sua atividade no hip hop, como DJ.
Quanto CUFA, trata-se de uma organizao que tem o rapper MV Bill como um de
seus fundadores, foi criada a partir da unio entre jovens de vrias favelas do Rio de Janeiro
principalmente negros que buscavam espaos para expressarem suas atitudes,
questionamentos ou simplesmente sua vontade de viver. (http://www.cufa.org.br)
Aps essa breve incurso pelo histrico do Ncleo, apresentaremos o modo como se
instaurou o nosso exerccio etnogrfico.
106
para
surpresa
nossa,
encontramos,
na
nossa
pgina
do
orkut
Tag corresponde ao pseudnimo usado pelo grafiteiro para assinar sua produo.
107
criatura de luz, que irradia paz e tranquilidade a todos sua volta. Nesses
anos de convivncia e intercmbio entre o Hip-Hop e o meio acadmico,
minha admirao por ela aumenta gradativamente. Tudo de bom pra voc e
sua famlia sempre!
Fotografia Slvia Duarte
FOTO 16 ZECA e eu - Parede frontal do CUCA Centro Universitrio de Cultura e Arte novembro de
2004.
A descoberta desse grafiteiro, por ns, foi decisiva para todo o percurso da
pesquisa, tendo sido ele a porta, o carto de visitas que nos deu credibilidade para que o
grupo de hip hop aceitasse nossa presena em suas reunies. Recebemos, pois, o apoio de
ZECA, um indivduo-chave, uma autoridade, de muito prestgio dentro do Ncleo, por ser
ele um dos grafiteiros mais antigos e atuantes na cidade.
Um detalhe importante no pode ser ocultado: ZECA faz parte de uma das
crews30mais expressivas do grafite em Campina a UZS (Unio da Zona Sul), contra a qual
uma crew de outra zona da cidade a OPZ (Organizao Pichadora do Zepa) trava disputas
constantes. As histrias de vida confirmam a rixa entre a OPZ e a LPE/UZS:
Tudo vem duma rixa que a gente tem, que a zona sul com a zona leste,
entendeu? Seria o povo ali da Liberdade, do Quarenta, com o povo do Z
Pinheiro, Monte Castelo, que eu no sei dizer de onde vem, eu sei que
assim, dentro das torcidas organizadas, assim. comum a Torcida Jovem do
Galo brigar com a Torcida Faco, s que dentro da Torcida Jovem do Galo
j teve um confronto histrico, assim, dentro da prpria torcida, do bonde
Zona Leste contra o Bonde Zona Sul, dentro da prpria torcida, entendeu?
(ZNOCK MORB) (grifo nosso)
108
A foto abaixo (DUARTE, 2006) ilustra o confronto simblico que se gesta no contexto
social.
Fotografia: Angelina Duarte
Foto 17 (Pichaes: Acima de ns, s Deus. PAGO OPZ versus No desafie a todos. FDL LPE
Avenida Floriano Peixoto. Centro. Maio de 2005.
31
Torcida Jovem do Galo (do Treze Futebol Clube) e Torcida Faco Jovem (do Campinense Clube)
32
Segundo a histria de vida de ZNOCK MORB, a LPE e UZS so sociedades cuja origem e membros so os
mesmos, mas LPE a sigla utilizada para a pichao, enquanto UZS a sigla utilizada para o grafite.
33
Segundo a histria de vida de NAAH, o bonde tem um envolvimento com torcidas organizadas, com todo um
contexto mais pesado, mais violento.
109
Nela, o grafiteiro Pago, do grupo OPZ, escreveu quase no topo de um prdio: Acima
de ns, s Deus. Em resposta a ele, o grafiteiro FDL, do grupo LPE, grafou no topo do
referido prdio: No desafie a todos. Percebemos que na prpria disposio grfica dos
textos que se opem, encontra-se expresso o esforo de um para superar o outro.
O que motiva esse conflito o desafio de querer ultrapassar o adversrio, tambm
muito prpria das torcidas organizadas, alm de que o aspecto de violncia e cobrana que
subjaz essa atitude coletiva desses jovens no se limita esfera dos smbolos nos muros,
resultando em confrontos fsicos.
Ainda a histria de vida de NAAH explicita as consequncias materiais resultantes
dessas disputas, quando uma tag de um/a pichador/a ou grafiteiro/a queimada34 por um/a
rival. Isso vai te acarretar uma consequncia: ou todas as suas tags serem apagadas,
pichadas, a mesma coisa, ou um atrito, mesmo, fsico, uma agresso.
Nos grupos femininos, a postura idntica dos masculinos quanto rivalidade e
quanto ligao com torcida organizada. Segundo NAAH, em Campina, teve dois grupos de
meninas que pichavam, n: a MUS e a MMS, rivais at hoje.
Essas relaes de disputa pelo poder, pelo territrio, pelo prestgio, trazem tona
um primeiro aspecto conflitivo nesse espao de sociabilidade. Muitos adolescentes de outras
zonas urbanas se distanciaram do NH2C, pelo fato de, desde o momento de criao do
Ncleo, ter havido uma participao macia dos pichadores e grafiteiros da Zona Sul, o que
sugere, por um lado, uma hegemonia da UZS, e por outro, uma reao de faces que a ela se
opem. Um grafiteiro da ZL35 (Zona Leste), por exemplo, disse a esta pesquisadora que no
viria mais a essas reunies porque a UZS quer tomar conta de tudo; que o Ncleo no do
hip hop, mas da UZS.
Outro detalhe fundamental para nossa reflexo o de que, aps a fundao do NH2C,
dentro da UZS crew, surgiu uma outra ramificao, da qual ZECA participa: a crew TUDO
NOSSO, cujo nome revela o domnio do espao urbano exercido por esse grupo.
Quanto interpretao primeira vista desse grafiteiro sobre ns, foi se
modificando significativamente, de l para c, conforme pudemos confirmar a partir do
depoimento criado por ele a nosso respeito. Essa mudana visvel teve incio quando
34
Segundo a histria de vida de PAGO, queimar botar um X por cima, uma histria assim, danificar o
trabalho da pessoa.
35
Uma vez que este texto ser veiculado em mdia impressa e digital, por uma questo tica, a fim de evitar
problemas entre grupos que se opem, decidi manter o anonimato deste grafiteiro, procedimento esse que se
repetir em momentos posteriores deste texto, desde que tratem de situaes prximas a essa.
110
retornamos os resultados da pesquisa anterior para os/as grafiteiros/as, entre os quais estava
ele. Cpias da nossa dissertao algumas impressas e outras em CD foram distribudas
com todos/as os/as que participaram como sujeitos da investigao, tendo sido os resultados
partilhados com eles/as.
Sabendo que, como qualquer pesquisa, e particularmente a social, deve se pautar pela
tica e pelo respeito ao outro, sentimo-nos no compromisso de retornar ao campo para
apresentar os resultados do trabalho. Essa postura favoreceu a que, num segundo momento,
guardadas as devidas propores, percebssemos que se instaurou uma relao de confiana e
de respeito dele e dos demais membros do Ncleo ao trabalho que desenvolvamos, alm do
que nos sentimos bem mais familiarizada com o mundo desse grupo juvenil, apesar de
reconhecermos o papel diferencial do pesquisador na prpria existncia de tal grupo.
O prprio ttulo do relatrio final do trabalho foi retirado, com autorizao dos
autores, de uma frase presente num grafite produzido pelos grafiteiros campinenses ZECA e
SAGAZ36 (vide foto abaixo).
Fotografia Angelina Duarte
FOTO 18 Grafite produzido por ZECA e SAGAZ, na Rua Desembargador Trindade, Centro. Campina
Grande abril de 2006.
Assim sendo, esse pontap inicial da experincia etnogrfica, que nos permitiu uma
localizao no NH2C, implicou em tornar passvel de interpretao as diferentes posies, os
textos e os contextos em que se desenvolvem as relaes entre esses diversos atores que se
debatem, cooperando e competindo, na interao social, dentro de um campo cuja paisagem
ainda nos era estranha, conforme abordaremos no item a seguir.
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balco para atendimento do pblico. Para ns, como sinal de cordialidade, foi cedida uma
cadeira que antes estava ocupada por um b-boy38. A reunio durou cerca de duas horas, tendo
sido discutidos diversos assuntos pertinentes aos objetivos do Ncleo. Durante esse tempo, a
maioria do grupo fumou ininterruptamente, o que me incomodou muito, mas tentando manter
o controle de impresso (BERREMAN, 1980, p. 140), e em respeito ao espao e opo
deles, conseguimos fingir uma certa naturalidade. A impresso que tivemos foi a de que o
uso do cigarro remete a uma autoafirmao dos/das adolescentes no que diz respeito
liberdade de escolha, como uma representao do status adulto.
Embora tenhamos percebido que alguns dos hip hoppers nos olharam obliquamente,
sentimo-nos que a maioria se esforou para encenar uma relao amistosa, tendo o dirigente
do NH2C dito que ramos muito bem vinda ao grupo e que j tinha conhecimento do trabalho
desenvolvido por ns sobre o grafite. Nesse instante, sentimos um alvio por termos visto que
a aceitao foi a sinalizao deles para o primeiro passo da construo de uma relao de
proximidade que determinaria a realizao da pesquisa.
Assim, por saber que essa construo , tambm, uma parte fundamental da
investigao, empenhamo-nos para no faltar a nenhum dos encontros, a fim de que o grupo
pudesse perceber tanto nosso compromisso cientfico, quanto nosso interesse pelo hip hop.
Passado um ano de convivncia, consideramos que a relao pesquisadora/pesquisados/as
sofreu significativas mudanas, uma vez que a observao participante garantiu que
assumssemos um lugar naquele mundo. Com o tempo, o grupo comeou a requerer de ns
certas funes, como por exemplo, a elaborao de ofcios para rgos oficiais, a correo de
textos produzidos por eles, a produo de mensagens para folders de divulgao do NH2C, a
participao como entrevistada, em vdeo sobre o Ncleo, dentre outras.
Exemplificando, aps um bom perodo de convivncia, fomos procurada por
GORPO, para prefaciar uma publicao contendo fotos de seus grafites, texto que
transcrevemos a seguir:
GRAFFITHAYRONI
Spray, criatividade, ao, imagem-arte: graffiti.
Graffiti: sinnimo, THAYRONI.
Signos distintos, mas profundamente intertextuais.
Duas faces de uma mesma moeda.
Variveis de uma mesma equao.
Pensar um sem o outro, impossvel.
Pretenso intil separar corpo e alma.
Pretenso intil exilar do cncavo, o convexo.
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B-boy a denominao do hip hopper que dana o break vertente coreogrfica do hip hop.
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Por eles terem sido informados, por ns, sobre o lugar de onde falvamos, sobre a
posio que ocupvamos no grupo, foi fcil delimitarem tarefas pertinentes a nossa
localizao nesse universo. Tal espao cedido a ns evidenciou que jamais poderamos estar
numa posio de ausncia, uma vez que esses so momentos de interface, nos quais o
desempenho de funes implica em papis, o que relevante para a pesquisa. Sentimos que o
grupo se utilizava do nosso papel de pesquisadora/professora para que, atravs dessa atuao
junto a eles, pudssemos contribuir para a legitimao dele perante a sociedade, favorecendo a
uma mudana discursiva que se estenderia para a esfera social.
No blog do NH2C http://nh2crepresenta.blogspot.com/ , o texto sobre o II Encontro
Hip Hop Campina, do qual participamos, traz uma referncia a esta pesquisadora, conforme
poderemos observar a seguir:
O II Encontro Hip Hop Campina foi realizado em Dezembro de 2008 e teve
a participao de vrias crews da cidade. DJ Joh comandou os toca discos,
tivemos a participao de Grando MC e Daniel Mordkai, e uma batalha de
Mcs onde Snoopy ganhou com sua rima e flow bem apurados. Tambm
participaram da batalha Indigente MC, Pleiade, Chacal , Cibaleno, Big over
e Zeca. Na dana os grupo Guereiros do Ritmo, Power move e vrios outros
mostarram responsa nas batalhas de B-boy estilo individual e estilo dupla. O
apoio da Vidrobox, Da Laboremus e de JC Rocha material de contruo foi
de extrema importancia para um evento que teve a presena de 248 pessoas
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cultural dos hip hoppers campinenses no apresentassem discrepncias. Tais objetivos, por
sua vez, sugeriam (como se isso fosse possvel!) que as tenses e contradies que emergem,
sobretudo, entre faces de pichadores/as e grafiteiros/as rivais, fossem, se no eliminadas,
pelo menos amenizadas. O dirigente disse literalmente que no queria diviso zona norte/
zona sul, que isso deveria ser abominado, que os hip hoppers so cidados do mundo e no de
uma zona. Esse detalhe sobre o controle das disputas foi o primeiro que me chamou a
ateno.
O segundo ponto muito enfatizado por ele, e que tambm nos chamou a ateno, foi o
de que, com que essa nova configurao proposta pelo NH2C, a cidade ficaria livre das
conhecidas pichaes, j que os pichadores ascenderiam de categoria, passando agora a
se apresentar como escritores do grafite cujas produes se caracterizariam por conotaes,
exclusivamente, estticas que, por sua vez, deveriam exercer o papel de levar mensagens
educativas sociedade: sobre drogas, sobre meio ambiente, entre outras. A narrativa
construda pelo dirigente, sobre a univocidade dos propsitos do Movimento hip hop, como
tambm sobre a delimitao e homogeneizao dos procedimentos a serem seguidos pelos
membros do grupo, realou a ativao de um mecanismo de controle que, subliminarmente, se
evidenciava no seu discurso.
Nessa atitude, notamos a sincronia entre a proposta da regulao social para
disciplinamento dessas prticas, e o discurso do dirigente sob o qual subjaz o interdiscurso da
higienizao urbana.
Na terceira parte da obra Vigiar e Punir, Foucault (1977, p.117) trata da disciplina que
considera como o conjunto de mtodos que favorecem o controle minucioso das operaes do
corpo, sob a imposio de uma relao de docilidade-utilidade. Conforme esse autor, tais
processos disciplinares no eram novidade, quando surgiram, uma vez que j se realizavam,
h muito tempo, nos conventos, nos exrcitos e nas oficinas, mas nos sculos XVII e XVIII,
transformaram-se em frmulas gerais de dominao.
Tcnicas das distribuies da disciplina se iniciavam pela determinao do
posicionamento dos indivduos no espao. Atravs do princpio do
quadriculamento, estabelecia-se o lugar de cada indivduo, objetivando a
formao de grupos, o desmanche de coletividades e a anlise de
pluralidades confusas. Sob esse prisma, a organizao do espao analtico
pela disciplina permitia a vigilncia de comportamentos e a mensurao de
suas caractersticas, para que atravs de tal procedimento, eles pudessem ser
conhecidos, dominados e utilizados. Outro princpio importante da vigilncia
era o da localizao funcional, ou seja, lugares determinados se definem
para satisfazer no s a necessidade de vigiar, de romper as comunicaes
perigosas, mas tambm de criar um espao til (FOUCAULT, 1977, p.
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e suja seu patrimnio. No difcil encontrarmos o grafite nas portas de ferro das oficinas,
nos muros de clubes e de empresas e nas reas de lazer, patrocinado pelos proprietrios desses
espaos, os quais executam a profilaxia para prevenir o que consideram um mal e, ao mesmo
tempo, disciplinam essa atividade, condicionando-a aos interesses de quem sempre tem o
lucro como objetivo-mor.
Aqui reportamo-nos ao episdio ocorrido em 2008, quando 40 pichadores/as
adentraram, sem autorizao, Bienal Internacional de Artes de So Paulo e l deixaram sua
marca. A fim de evitar que o fato se repetisse, no ano de 2009, a curadoria do evento
convidou trs daqueles pichadores, na condio de artistas, para representar o movimento do
pixo (com o x no lugar do ch, como preferem). O que era interveno urbana ganha
agora status de arte, arte marginal, urbana, proibida e transgressora. Detalhe: Nessa entrada
da pichao pela porta da frente, no foi permitido o uso do spray, com o que os pichadores
concordaram, afirmando: Optamos por um trabalho documental. Consideramos que essa
descrio autoexplicativa, no que se refere ao disciplinamento. (http://g1.globo.com/saopaulo/noticia/2010/09/apos-invasao-em-2008-pichadores-sao- convidados-voltar-bienal.html)
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CEDUC aqui, saiu uns vinte da OPZ escondido, foram pra cima, a tava
MEGA ,SOM e CEGO, vieram armado de faca, j prevendo. T muito
prximo daquele negcio que uma coisa da torcida organizada, n?
Voc querer matar o outro porque o outro, , representa uma sigla
diferente da sua, entendeu?A energia que podia t sendo canalizada pra
uma luta em prol de alguma coisa t sendo gasta entre ns mesmos.
Estamos nos ferindo, entendeu? (ZECA)
Teve uma confuso envolvendo piche e grafite. Chegou outras pessoas e
danificaram o trabalho da gente. A caramba, por j ser uma cultura de rua, e
de certa forma tem uma ideologia que vinga ali dentro, [...] Essa ideologia
da gente fez com que a gente tomasse uma providncia. [] O coletivo
se juntou e tomou as devidas providncias. Na hora do vamo ver, eu
apartei geral a confuso, e eu ainda, que eu tenho voz l na zona leste. A os
moleques apanharam ainda, mas conseguiram se sair. Se eu no tivesse
agido como eu agi, p, os moleques iam ter parado no hospital, porque
chegou um grupo grande com a gente, um grupo grande, de duas partes
da zona leste. Um moleque armado e tudo. (PAGO)
A gente t em 2008, a cidade ainda tem uma mentalidade horrvel. A idia
era matar o menino. [] a OPZ tem um coletivo chamado PSICOS, que
assim, vrias pessoas podem colocar, mas o mesmo tag. Fizeram l no
viaduto. A veio o SOM e o MEGA fizeram um bomb, de um lado e um
bomb do outro. Cobriram um P, um pedao do P. O que foi que fizeram?
Juntaram 25 pessoas, e foram atrs de matar o menino. L no Ncleo Hip
Hop Campina. O CEGO tinha ido prevenido, com uma faca. O CEGO
puxou e deu num menino da OPZ. Faltou trs dedos, Angelina, faltou trs
dedos pra pegar na jugular do menino. Talvez voc no saiba, porque t
chegando agora, mas existe um submundo dentro do hip hop, cara. S quem
quem sabe. muita coisa podre dentro, cara. A gente se desentende.
(ZNOCK MORB)
FOTO 20 Viaduto Elpdio de Almeida Centro da cidade de Campina Grande (agosto de 2008)
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Em Campina Grande, h muita rivalidade entre as torcidas organizadas do Treze Futebol Clube TJG (Torcida
Jovem do Galo) e do Campinense Clube TFJ (Torcida Faco Jovem) sendo que essa rivalidade tem
servido de temtica para muitos textos escritos nos muros da cidade.
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um que faz por moda, no sabe de verdade o que o piche e vai l e faz. E outro que, como
bastante relativo o conceito de arte, fazem aquilo como arte. (PAGO)
Naquele instante, comeamos a enxergar o espao que a cortina esconde, pois
percebemos que:
[] as aes sociais so comentrios a respeito de mais do que elas mesmas;
de que, de onde vem uma interpretao no determina para onde ela poder
ir. Fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas, as piscadelas
epistemologia, ou incurses aos carneiros revoluo, por que eles so
levados a isso. (GEERTZ, 1993, p. 34)
Iniciou-se, ento, nosso maior desafio, porque tnhamos tido acesso a zonas
protegidas pela fachada que foi construda para representar a homogeneidade do NH2C, como
um espao de sintonia e coeso social em torno dos ideais e valores defendidos pelo
movimento hip hop.
E como afirma Goffman:
No quero dizer que haver aquela espcie de consenso que surge quando
cada indivduo presente, candidamente expressa o que realmente sente e
concorda sinceramente com os sentimentos expressos pelos outros presentes.
Esta forma de harmonia um ideal otimista, no sendo de qualquer forma,
necessria para o funcionamento regular da sociedade. (GOFFMAN, 1975,
p. 18)
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Alm desse, foram tambm criados o Projeto Expedio, cuja proposta era
semelhante do anterior, e se destinava a promover intervenes de grafite e dos demais
elementos, percorrendo a maior quantidade de bairros possvel, nesta cidade, mensalmente, e
o Projeto hip hop nas escolas.
Aps postos em prtica tais projetos, nas reunies de avaliao, comearam a surgir
outras pendncias, novamente relativas ao grafite sobre a diviso equitativa do espao no
muro , o que levou o dirigente do NH2C a propor uma reunio com a diretoria para discutir o
uso do Ncleo para promoo pessoal, tendo ele reafirmado: Reunimo-nos para nos unir! A
ideologia do Ncleo a unio, o empenho. Deve haver respeito s normas pra no virar
molecagem.
Mas as atividades continuavam se realizando. O Ncleo participou do Encontro
Nordestino de hip hop, em Joo Pessoa, em setembro de 2007, e do I Encontro Nacional de
Rappers e Repentistas (Rap e Rep: Hip Hop Repente frente a frente), em Campina Grande,
em outubro de 200741; desenvolveu, no ms de novembro, uma campanha contra o crack;
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Nesse evento, participamos das palestras, de uma oficina de grafite e observamos uma interveno de grafite
num mural, no bairro do Catol.
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eles ainda eram uma incgnita para ns, quando as narrativas de histria de vida vieram a nos
auxiliar no desvendamento da trama que havia se instaurado no NH2C. Em quase todas elas,
as relaes com o Ncleo apareceram como temtica transversal, conforme veremos no item
subsequente.
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que, desta, nasceu o coletivo ARTICULAO HIP HOP, fundado pelos/as grafiteiros/as
mais antigos da cidade, e que, embora no tenha uma sede, reunies, cadastro de membros,
nem apoio financeiro, quando ocorre algum evento, eles se articulam com representantes dos
demais elementos do hip hop e participam como ARTICULAO.
www.articulacaohiphop.blogspot.com
Numa das histrias de vida, o/a entrevistado/a42 assim se expressou sobre a ruptura do
ideal do NH2C:
Os grupos aqui em Campina Grande, os ncleos, os coletivos, eles nunca
tiveram muito sucesso. No sei se falta de interesse ou compromisso ou
porque se corromperam com dinheiro e no queriam repassar pros seus
amigos, porque acontece muito isso. E a quando as pessoas usam um
coletivo em benefcio prprio, isso acaba acabando com esse coletivo,
acabando coma a confiana. E a divide novamente, fragmenta, e a ficam
pequenos grupos, n? [] O Ncleo43 durou muito tempo, mudou muito os
membros, e aos poucos eles foram saindo e ele meio que acabou, n? []
Uma pessoa que foi falsa com outra dentro desse meio, que visou, que
excluiu outro de uma oportunidade, pegou essa oportunidade de divulgar um
trabalho, s pra si. Isso acontece muito.Porque voc diz que t pensando
coletivo, voc cria uma histria que um Ncleo, que um negcio com um
nome coletivo, e voc visa s seu nome, seu interesse, seu lucro. Eu acho
que foi isso que aconteceu em Campina. O poder de divulgar muito essa
arte ainda t na mo de uma pessoa, que tem muito acesso prefeitura,
com pessoas assim, e que toma s pra ele. [...] E isso dissipou muito. A
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Optamos por no identificar o/a autor/a dessa fala, para evitar constrangimentos ou cobranas a ele/a.
43 NH2C Ncleo Hip Hop Campina.
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voc tem um projeto que diz que de grafite e t no seu nome, pra liberar
uma verba de dois mil reais, um valor simblico, pra gastar em material, a
voc pega pessoas que esto iniciando, que to s com interesse em
aprender, e coloca dez sprays, na mo desses quatro iniciantes, eles fazem e
voc manda como se seu projeto tivesse sido cumprido. s vezes at
divulgam coisas, que aconteceu, e no aconteceu. No tem, no tem
material, no tem. No porque, s diz que tem, que , somos, fazemos, mas
no tem. A o que que vo te dizer, o que que vo te mostrar? Eles tm
um Ncleo, eles tm uma sigla cadastrada, um projeto, no sei o qu, mas
no tm aes reais, e frequentes e... Isso no existe. Eles s so uma lenda,
sabe? Infelizmente.
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Assim sendo, nessa disputa dos coletivos, pela representao do hip hop, repete-se a
lgica que subjaz a rivalidade dos grupos de pichao e grafite. Essa e outras lgicas, que se
localizam no espao que a cortina costuma esconder, s puderam ser acessadas em razo do
exerccio etnogrfico que implica em um deslocamento da perspectiva do observador, com o
objetivo de compreender o modo como o observado interpreta o mundo que o cerca.
Procuramos, portanto, aguar a percepo para, em cada reunio com o NH2C, como tambm
na anlise das histrias de vida, olhar por dentro de que maneira as tenses e contradies
estavam se desenrolando nesses encontros (mas tambm fora deles).
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