A Escultura No Campo Ampliado
A Escultura No Campo Ampliado
A Escultura No Campo Ampliado
O único sinal que indica a presença da obra com esse tipo de manipulação. Categorias
é uma suave colina, uma inchação na terra como escultura e pintura foram moldadas,
em direção ao centro do terreno. Mais de esticadas e torcidas por essa crítica, numa
perto pode-se ver a superfície grande e qua- demonstração extraordinária de elasticida-
drada do buraco e a extremidade da escada de, evidenciando como o significado de um
que se usa para penetrar nele. A obra pro- termo cultural pode ser ampliado a ponto
priamente dita fica portanto abaixo do nível de incluir quase tudo. Apesar do uso elásti-
do solo: espécie de pátio, de túnel, fronteira co de um termo como escultura ser aberta-
entre interior e exterior, estrutura delicada mente usado em nome da vanguarda estéti-
de estacas e vigas. Perimeters/Pavillions/ ca — da ideologia do novo — sua mensa-
Decoys de Mary Miss (1978) é certamente gem latente é aquela do historicismo. O novo
uma escultura, ou mais precisamente, um é mais fácil de ser entendido quando visto
trabalho telúrico. como uma evolução de formas do passado.
O historicismo atua sobre o novo e o dife-
Nos últimos 10 anos coisas realmente sur- rente para diminuir a novidade e mitigar a
preendentes têm recebido a denominação diferença. A evocação do modelo da evolu-
de escultura: corredores estreitos com ção permite uma modificação em nossa ex-
monitores de TV ao fundo; grandes foto- periência, de modo que o homem de agora
grafias documentando caminhadas cam- pode ser aceito como diferente da criança
pestres; espelhos dispostos em ângulos inu- que foi por ser visto simultaneamente como
sitados em quartos comuns; linhas provisó- sendo o mesmo, através da ação impercep-
rias traçadas no deserto. Parece que nenhu- tível do telos. Ademais, nos confortamos com
ma dessas tentativas, bastante heterogê- essa percepção de similitude, com essa es-
Mary Miss, neas, poderia reivindicar o direito de expli- tratégia para reduzir tudo que nos é estra-
Perimeters/Pavillions/
Decoys, 1977-78
car a categoria escultura. Isto é, a não ser nho, tanto no tempo como no espaço, àquilo
vista externa (acima), que o conceito dessa categoria possa se tor- que já conhecemos e somos.
vista interna (em baixo) nar infinitamente maleável.
A crítica perfilhou a escultura minimalista logo
Fonte das imagens: October, n. 8:
31-44. Cambridge: MIT Press,
O processo crítico que acompanhou a arte que esta apareceu no horizonte da ex-
1979 americana de pós-guerra colaborou para periência estética nos anos 60 — um con-
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exemplos suspeitos de precedente historicista. à história. A categoria escultura, assim como
Mas não importa. O artifício pode também qualquer outro tipo de convenção, tem sua
ser usado em vários trabalhos do início do própria lógica interna, seu conjunto de re-
século inspirados no primitivismo — Colu- gras, as quais, ainda que possam ser aplica-
na sem fim de Brancusi serve como exem- das a uma variedade de situações, não estão
plo para se fazer a mediação entre o passa- em si próprias abertas a uma modificação
do longínquo e o presente. extensa. Parece que a lógica da escultura é
inseparável da lógica do monumento. Gra-
Ao assim agirmos, contudo, o termo escul- ças a esta lógica, uma escultura é uma re-
tura, que pensávamos estar resguardando, presentação comemorativa — se situa em
começou a se tornar obscuro. Havíamos determinado local e fala de forma simbólica
pensado em utilizar uma categoria universal sobre o significado ou uso deste local. Um
para autenticar um grupo de singularidades;
bom exemplo é a estátua eqüestre de Mar-
mas esta categoria, ao ser forçada a abran-
co Aurélio: foi colocada no centro do
ger campo tão heterogêneo, corre perigo
Campidoglio para simbolizar com sua pre-
de entrar em colapso. Logo, ao olharmos
para o buraco feito no solo, pensamos que sença a relação entre a Roma antiga e impe-
sabemos e não sabemos o que seja escultura. rial e a sede do governo da Roma moderna,
renascentista. Outro monumento utilizado
Entretanto, eu diria que sabemos muito bem como marco num lugar onde devem ocor-
o que é uma escultura. Uma das coisas aliás rer eventos específicos e significativos é a
Alice Aycock, que sabemos é que escultura não é uma estátua Conversão de Constantino, de
Maze, 1972 categoria universal mas uma categoria ligada Bernini, colocada no sopé das escadas do
Vaticano que ligam a Basílica de São Pedro
ao coração do governo papal. As esculturas
funcionam portanto em relação à lógica de
sua representação e de seu papel como
marco; daí serem normalmente figurativas e
verticais e seus pedestais importantes por
fazerem a mediação entre o local onde se
situam e o signo que representam. Nada
existe de muito misterioso sobre esta lógi-
ca; compreendida e utilizada, foi fonte de
enorme produção escultórica durante sécu-
los de arte ocidental.
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1964 na Green Gallery: dígitos quase Neste sentido, a escultura assumiu sua total
arquiteturais cuja condição como escultura condição de lógica inversa para se tornar pura
se reduz simplesmente a ser aquilo que está negatividade, ou seja, a combinação de ex-
no quarto que não é realmente quarto; o clusões. Poderia-se dizer que a escultura
outro trabalho são caixas espelhadas expos- deixou de ser algo positivo para se transfor-
Robert Morris, tas ao ar livre — caixas cujas formas diferem mar na categoria resultante da soma da não-
Sem título (mirrored do cenário onde se encontram somente paisagem com a não-arquitetura. O limite
boxes), 1965
porque, apesar da impressão visual de con- da escultura modernista, a soma do nem/
Richard Long, tinuidade com relação à grama e às árvores, nenhum podem ser representados em for-
Sem título, 1969 não fazem parte da paisagem. ma de diagrama:
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sar anteriormente sobre o complexo, ape- Parece bastante claro que a permissão (ou
sar de outras culturas terem podido fazê-lo pressão) para pensar a ampliação desse cam-
com maior facilidade. Labirintos e trilhas são po foi sentida por vários artistas mais ou
ao mesmo tempo paisagem e arquitetura; menos ao mesmo tempo, entre os anos de
jardins japoneses são ao mesmo tempo pai- 1968 e 1970. Robert Morris, Robert
sagem e arquitetura; os campos destinados Smithson, Michael Heizer, Richard Serra,
aos rituais e às procissões das antigas civili- Walter de Maria, Robert Irwin, Sol LeWitt,
zações eram, indiscutivelmente, neste senti- Bruce Nauman, um depois do outro, assu-
do, os ocupantes do complexo. Isto não quer miram uma posição cujas condições lógicas
dizer que eram uma forma prematura ou já não podem ser descritas como modernis-
degenerada, ou uma variante da escultura. tas. Precisamos recorrer a um outro termo
Faziam sim parte de um universo ou espaço para denominar essa ruptura histórica e a
cultural, do qual a escultura era simplesmente transformação no campo cultural que ela
uma outra parte e não a mesma coisa, como caracteriza. Pós-modemismo é o termo já
desejaria a nossa mentalidade historicista. em uso em outras áreas da crítica. Parece
Suas finalidade e deleite residem justamente não haver motivos para não usá-lo.
em serem opostos e diferentes.
Qualquer que seja o termo usado, a evidên-
O campo ampliado é portanto gerado pela cia já existe. Por volta de 1970, Robert
problematização do conjunto de oposições, Smithson, com Partially Buried Woodshed,
entre as quais está suspensa a categoria na Kent State University, em Ohio, come-
modernista escultura. Quando isto aconte- çou a ocupar o eixo do complexo que, para
ce e quando conseguimos nos situar dentro facilitar a referência, chamo de local de cons-
dessa expansão, surgem, logicamente, três trução. Em 1971, com seu observatório
outras categorias facilmente previstas, todas construído em madeira e grama, na Holanda,
elas uma condição do campo propriamente Robert Morris se uniu a Smithson. Desde
dito e nenhuma delas assimilável pela escul- então muitos outros artistas, como Robert
tura. Pois, como vemos, escultura não é mais Irwin, Alice Aycock, John Mason, Michael
apenas um único termo na periferia de um Heizer, Mary Miss e Charles Simonds, têm
campo que inclui outras possibilidades trabalhado dentro deste novo conjunto de
estruturadas de formas diferentes. Ganha- possibilidades.
se, assim, “permissão” para pensar essas ou-
tras formas. Nosso diagrama é, por conse- A combinação de paisagem e não-paisagem
guinte, feito da seguinte maneira: começou igualmente a ser explorada no fi-
nal dos anos 60. O termo locais demarca-
dos é usado tanto para identificar trabalhos
como Spiral Jetty (1970), de Smithson, e
Double Negative (1969), de Heizer, como
para descrever alguns trabalhos dos anos 70
feitos por Serra, Morris, Carl Andre, Denis
Oppenheim, Nancy Holt, George Trakis e
muitos outros. Além da manipulação física
dos locais, este termo também se aplica a
outras formas de demarcação. Essas formas
podem operar através da aplicação de mar-
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das posições geradas por um determinado (NY). O Fotográfico (Gustav Gili, 2003), Os Papéis de
Picasso, (Iluminuras, 2006) e Caminhos da Escultura Mo-
espaço lógico, vários meios diferentes de
derna (Martins Fontes, 2007) são alguns de seus livros
expressão poderão ser utilizados. Ocorre publicados no Brasil.
também que qualquer artista pode vir a
ocupar, sucessivamente, qualquer uma das Tradução: Elizabeth Carbone Baez
posições. Da mesma forma, na posição limi-
tada da própria escultura, a organização e Notas
conteúdo de um trabalho marcante irão re-
1 Para uma discussão do grupo Klein, ver “On the Meaning of
fletir a condição do espaço lógico. Refiro- the Word ‘Structure’ in Mathematics”, de Marc Barbut,
me à escultura de Joel Shapiro a qual, apesar editado por Michael Lane em Introduction to
de se inserir no termo neutro, está envolvi- Structuralism (New York, Basic Books, 1970); para uma
da no estabelecimento de imagens de ar- utilização do grupo Piaget, ver “The Interaction of
Semiotic Constraints”, de A. J. Greimas e F. Rastier, Yale
quitetura dentro de campos (paisagens) re- French Studies, n. 41, 1968: 86-105.
lativamente vastos de espaço. (Estas consi-
2 closure – termo utilizado pela psicologia da Gestalt para
derações também se aplicam, evidentemen- descrever os processos através dos quais os objetos da
te, a outros trabalhos — por exemplo de percepção, lembranças, ações, conseguem estabilidade,
Charles Simonds ou Ann e Patrick Poirier.) isto é, o fechamento subjetivo de brechas, ou acaba-
mento de formas incompletas para se constituírem em
Tenho insistido que o campo ampliado do um todo. (N.T.)
pós-modernismo acontece num momento
específico da história recente da arte. É um
evento histórico com uma estrutura
determinante. Parece-me extremamente
importante mapear esta estrutura e é isto
o que comecei a fazer aqui. Mas por se
tratar de um assunto de história, é tam-
bém importante explorar um conjunto
mais profundo de questões que abrangem
algo mais que o mapeamento e que en-
volvem o problema da explicação. Estas
questões se referem à causa seminal: as
condições de possibilidades que propor-
cionaram a mudança para o pós-moder-
nismo, bem como as determinantes cultu-
rais da oposição através da qual um de-
terminado campo é estruturado. Certa-
mente esta abordagem para pensar a his-
tória da forma difere das elaboradas árvo-
res genealógicas construídas pela crítica
historicista. Pressupõe a aceitação de rup-
turas definitivas e a possibilidade de olhar
para o processo histórico de um ponto
de vista da estrutura lógica.