Entre Memória e História - Pierre Nora
Entre Memória e História - Pierre Nora
Entre Memória e História - Pierre Nora
I. O fim da histria-memria
Acelerao da histria. Para alm da metfora, preciso ter a noo do que a expresso
significa: uma oscilao cada vez mais rpida de um passado definitivamente morto, a
percepo global de qualquer coisa como desaparecida - uma ruptura de equilbrio. O
arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradio, no mutismo do costume, na
repetio do ancestral, sob o impulso de um sentimento histrico profundo. A ascenso
conscincia de si mesmo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre
comeada. Fala-se tanto de memria porque ela no existe mais.
A curiosidade pelos lugares onde a memria se cristaliza e se refugia est ligada a este
momento particular da nossa histria. Momento de articulao onde a conscincia da ruptura
com o passado se confunde com o sentimento de uma memria esfacelada, mas onde o
esfacelamento desperta ainda memria suficiente para que se possa colocar o problema de
sua encarnao. O sentimento de continuidade toma-se residual aos locais. H locais de
memria porque no h mais meios de memria.
Pensemos nessa mutilao sem retomo que representou o fim dos camponeses, esta
coletividade-memria por excelncia cuja voga como objeto da histria coincidiu com o
apogeu do crescimento industrial. Esse desmoronamento central de nossa memria s , no
entanto, um exemplo. o mundo inteiro que entrou na dana, pelo fenmeno bem conhecido
da mundializao, da democratizao, da massificao, da mediatizao. Na periferia, a
independncia das novas naes conduziu para a historicidade as sociedades j despertadas
de seu sono etnolgico pela violentao colonial. E pelo mesmo movimento de
descolonizao interior, todas as etnias, grupos, famlias, com forte bagagem de memria e
fraca bagagem histrica. Fim das sociedades-memria, como todas aquelas que asseguravam
a conservao e a transmisso dos valores, igreja ou escola, famlia ou Estado. Fim das
ideologias-memrias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado
para o futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro, quer se
trate da reao, do progresso ou mesmo da revoluo. Ainda mais: o modo mesmo da
percepo histrica que, com a ajuda da mdia, dilatou-se prodigiosamente, substituindo uma
memria voltada para a herana de sua prpria intimidade pela pelcula efmera da
atualidade.
Acelerao: o que o fenmeno acaba de nos revelar bruscamente, toda a distncia
entre a memria verdadeira, social, intocada, aquela cujas sociedades ditas primitivas, ou
arcaicas, representaram o modelo e guardaram consigo o segredo - e a histria que o que
nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela
mudana. Entre uma memria integrada, ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora
e toda-poderosa, espontaneamente atualizadora, uma memria sem passado que reconduz
eternamente a herana, conduzindo o antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado
1 In: Les lieux de mmoire. I La Republique, Paris, Gallimard, 1984, pp. XVIII - XLII. Traduo autorizada pelo Editor.
Editions Gallimard 1984.
dos heris, das origens e do mito - e a nossa, que s histria, vestgio e trilha. Distncia que
s se aprofundou medida em que os homens foram reconhecendo como seu um poder e
mesmo um dever de mudana, sobretudo a partir dos tempos modernos. Distncia que chega
hoje num ponto convulsivo.
Esse arrancar da memria sob o impulso conquistador e erradicador da histria tem
como que um efeito de revelao: a ruptura de um elo de identidade muito antigo, no fim
daquilo que vivamos como uma evidncia: a adequao da histria e da memria. O fato que
s exista uma palavra em francs para designar a histria vivida e a operao intelectual que
a toma inteligvel (o que os alemes distinguem por Geschichte e Historie), enfermidade de
linguagem muitas vezes salientada, fornece aqui sua profunda verdade: o movimento que nos
transporta da mesma natureza que aquele que o representa para ns. Se habitssemos
ainda nossa memria, no teramos necessidade de lhe consagrar lugares. No haveria
lugares porque no haveria memria transportada pela histria. Cada gesto, at o mais
cotidiano, seria vivido como uma repetio religiosa daquilo que sempre se fez, numa
identificao carnal do ato e do sentido. Desde que haja rastro, distncia, mediao, no
estamos mais dentro da verdadeira memria, mas dentro da histria. Pensemos nos judeus,
confinados na fidelidade cotidiana ao ritual da tradio. Sua constituio em povo da
memria exclua uma preocupao com a histria, at que sua abertura para o mundo
moderno lhes imps a necessidade de historiadores.
Memria, histria: longe de serem sinnimos, tomamos conscincia que tudo ope uma
outra. A memria a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela est em
permanente evoluo, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento, inconsciente de
suas deformaes sucessivas, vulnervel a todos os usos e manipulaes, susceptvel de
longas latncias e de repentinas revitalizaes. A histria a reconstruo sempre
problemtica e incompleta do que no existe mais. A memria um fenmeno sempre atual,
um elo vivido no eterno presente; a histria, uma representao do passado. Porque afetiva
e mgica, a memria no se acomoda a detalhes que a confortam, ela se alimenta de
lembranas vagas, telescpicas, globais ou flutuantes, particulares ou simblicas, sensvel a
todas as transferncias, cenas, censura ou projees. A histria, porque operao intelectual
e laicizante, demanda anlise e discurso crtico. A memria instala a lembrana no sagrado, a
histria a liberta, e a toma sempre prosaica. A memria emerge de um grupo que ela une, o
que quer dizer, como Halbwachs o fez, que h tantas memrias quantos grupos existem, que
ela , por natureza, mltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A histria, ao
contrrio, pertence a todos e a ningum, o que lhe d uma vocao para o universal. A
memria se enraza no concreto, no espao, no gesto, na imagem, no objeto. A histria s se
liga s continuidades temporais, s evolues e s relaes das coisas. A memria um
absoluto e a histria s conhece o relativo.
No corao da histria trabalha um criticismo destrutor de memria espontnea. A
memria sempre suspeita para a histria, cuja verdadeira misso destru-la e a repelir. A
histria deslegitimao do passado vivido. No horizonte das sociedades de histria, nos
limites de um mundo completamente historicizado, haveria dessacralizao ltima e
definitiva. O movimento da histria, a ambio histrica no so a exaltao do que
verdadeiramente aconteceu, mas sua anulao. Sem dvida um criticismo generalizado
conservaria museus, medalhas e monumentos, isto , o arsenal necessrio ao seu prprio
trabalho, mas esvaziando-os daquilo que, a nosso ver, os faz lugares de memria. Uma
sociedade que vivesse integralmente sob o signo da histria no conheceria, afinal, mais do
que uma sociedade tradicional, lugares onde ancorar sua memria.
Um dos sinais mais tangveis desse arrancar da histria da memria , talvez, o incio
de uma histria da histria, o despertar recente, na Frana, de uma conscincia
Proj. Histria, So Paula, (10), Dez. 1993
constri, decreta, mantm pelo artifcio e pela vontade uma coletividade fundamentalmente
envolvida com sua transformao e sua renovao. Valorizando, por natureza, mais o novo do
que o antigo, mais o jovem do que o velho, mais o futuro do que o passado. Museus, arquivos,
cemitrios e colees, festas, aniversrios, tratados, processos verbais, monumentos,
santurios, associaes, so os marcos testemunhas de uma outra era, das iluses de
eternidade. Dai o aspecto nostlgico desses empreendimentos de piedade, patticos e
glaciais. So os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizaes passageiras numa
sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os
particularismos; diferenciaes efetivas numa sociedade que nivela por princpio; sinais de
reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que s tende a reconhecer
indivduos iguais e idnticos.
Os lugares de memria nascem e vivem do sentimento que no h memria
espontnea, que preciso criar arquivos, que preciso manter aniversrios, organizar
celebraes, pronunciar elogios fnebres, notariar atas, porque essas operaes no so
naturais. por isso a defesa, pelas minorias, de uma memria refugiada sobre focos
privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar incandescncia a
verdade de todos os lugares de memria. Sem vigilncia comemorativa, a histria depressa
os varreria. So basties sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem no estivesse
ameaado, no se teria, tampouco, a necessidade de constru-los. Se vivssemos
verdadeiramente as lembranas que eles envolvem, eles seriam inteis. E se, em
compensao, a histria no se apoderasse deles para deform-los, transform-los, sov-los e
petrific-los eles no se tornariam lugares de memria. este vai-e-vem que os constitui:
momentos de histria arrancados do movimento da histria, mas que lhe so devolvidos. No
mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando
o mar se retira da memria viva.
A Marselhesa ou os monumentos aos mortos vivem, assim, essa vida ambgua, sovada
do sentimento misto de pertencimento e de desprendimento. Em 1790, o 14 de julho j era e
ainda no um lugar de memria. Em 1880, sua instituio em festa nacional em lugar de
memria oficial, mas o esprito da Repblica fazia dele um recurso verdadeiro. E hoje? A
prpria perda de nossa memria nacional viva nos impe sobre ela um olhar que no mais
nem ingnuo, nem indiferente. Memria que nos pressiona e que j no mais a nossa, entre
a dessacralizao rpida e a sacralizao provisoriamente reconduzida. Apego visceral que
nos mantm ainda devedores daquilo que nos engendrou, mas distanciamento histrico que
nos obriga a considerar com um olhar frio a herana e a inventari-la. Lugares salvos de uma
memria na qual no mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-afetivos e
sentimentais; lugares de unanimidade sem unanimismo que no exprimem mais nem
convico militante nem participao apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida
simblica. Oscilao do memorial ao histrico, de um mundo onde se tinham ancestrais a um
mundo da relao contingente com aquilo que nos engendrou, passagem de uma histria
totmica para uma histria crtica: o momento dos lugares de memria. No se celebra
mais a nao, mas se estudam suas celebraes.
uma brecha entre o presente e o passado, que aparea um antes e um depois. Mas tratase menos de uma separao vivida no campo da diferena radical do que um intervalo vivido
no modo da filiao a ser restabelecida. Os dois grandes temas de inteligibilidade da histria,
ao menos a partir dos Tempos modernos, progresso e decadncia, ambos exprimiam bem
esse culto da continuidade, a certeza de saber a quem e ao que devamos o que somos.
Donde a imposio da ideia das origens, forma j profana da narrativa mitolgica, mas que
contribua para dar a uma sociedade em via de laicizao nacional seu sentido e sua
necessidade do sagrado. Mais as origens eram grandes, mais elas nos engrandeciam. Porque
venervamos a ns mesmos atravs do passado. esta relao que se quebrou. Da mesma
forma que o futuro visvel, previsvel, manipulvel, balizado, projeo do presente, tornou-se
invisvel, imprevisvel, incontrolvel; chegamos, simetricamente, da ideia de um passado
visvel a um passado invisvel; de um passado coeso a um passado que vivemos como
rompimento; de uma histria que era procurada na continuidade de uma memria a uma
memria que se projeta na descontinuidade de uma histria. No se falar mais de origens,
mas de nascimento. O passado nos dado como radicalmente outro, ele esse mundo do
qual estamos desligados para sempre. colocando em evidncia toda a extenso que dele
nos separa que nossa memria confessa sua verdade, como na operao que, de um golpe, a
suprime.
Porque no se deveria crer que o sentimento da descontinuidade se satisfaz com o
vago e o difuso da noite. Paradoxalmente, a distncia exige a reaproximao que a conjura e
lhe d, ao mesmo tempo, sua vibrao. Nunca se desejou de maneira to sensual o peso da
terra sobre as botas, a mo do Diabo do ano mil, e o fedor das cidades no sculo XVIII. Mas a
alucinao artificial do passado s precisamente concebvel num regime de
descontinuidade. Toda a dinmica de nossa relao com o passado reside nesse jogo sutil do
impenetrvel e do abolido. No sentido inicial da palavra, trata-se de uma representao
radicalmente diferente daquela trazida pela antiga ressurreio. To integral quanto ela se
quis, a ressurreio implicava, com efeito, numa hierarquia da lembrana hbil em ajeitar as
sombras e a luz para ordenar a perspectiva do passado sob o olhar de um presente finalizado.
A perda de um princpio explicativo nico precipitou-nos num universo fragmentado, ao
mesmo tempo em que promoveu todo objeto, seja o mais humilde, o mais improvvel, o mais
inacessvel, dignidade do mistrio histrico. Ns sabamos, antigamente, de quem ramos
filhos e hoje somos filhos de ningum e de todo mundo. Se ningum sabe do que o passado
feito, uma inquieta incerteza transforma tudo em vestgio, indcio possvel, suspeita de
histria com a qual contaminamos a inocncia das coisas. Nossa percepo do passado a
apropriao veemente daquilo que sabemos no mais nos pertencer. Ela exige a acomodao
precisa sobre um objeto perdido. A representao exclui o afresco, o fragmento, o quadro de
conjunto; ela procede atravs de iluminao pontual, multiplicao de tomadas seletivas,
amostras significativas. Memria intensamente retiniana e poderosamente televisual. Como
no fazer a ligao, por exemplo, entre o famoso retomo da narrativa que pudemos notar
nas mais recentes maneiras de se escrever a histria e o poder total da imagem e do cinema
na cultura contempornea? Narrativa, na verdade, bem diferente da narrativa tradicional,
fechada sobre si mesma e com seu recorte sincopado. Como no ligar o respeito escrupuloso
pelo documento de arquivo - colocar a prpria pea sob seus olhos -, o particular avano da
oralidade - citar os atores, fazer ouvir suas vozes -, autenticidade do direto ao qual fomos
habituados? Como no ver, nesse gosto pelo cotidiano no passado, o nico meio de nos
restituir a lentido dos dias e o sabor das coisas? E nessas biografias de annimos, o meio de
nos levar a apreender que as massas no se formam de maneira massificada. Como no ler
nessas bulas do passado que nos fornecem tantos estudos de micro-histria, a vontade de
igualar a histria que reconstrumos histria que vivemos? Memria-espelho, dir-se-ia, se os
espelhos no refletissem a prpria imagem, quando ao contrrio, a diferena que
procuramos a descobrir; e no espetculo dessa diferena, o brilhar repentino de uma
Proj. Histria, So Paula, (10), Dez. 1993
identidade impossvel de ser encontrada. No mais uma gnese, mas o deciframento do que
somos luz do que no somos mais.
Esta alquimia do essencial contribui de maneira bizarra, para fazer do exerccio da
histria, cujo impulso brutal em direo ao futuro deveria tender a nos proporcionar, o
depositrio dos segredos do presente. Alis, a operao traumtica realiza-se menos pela
histria do que pelo historiador. Estranho destino o seu. Seu papel era simples antigamente e
seu lugar inscrito na sociedade: se fazer a palavra do passado e barqueiro do futuro. Nesse
sentido, sua pessoa contava menos do que seu servio: cabia-lhe ser apenas uma
transparncia erudita, um veculo de transmisso, um trao de unio o mais leve possvel
entre a materialidade bruta da documentao e a inscrio na memria. Em ltima instncia,
uma ausncia obsessiva de objetividade. Da exploso da histria-memria emerge um novo
personagem, pronto a confessar, diferentemente de seus predecessores, a ligao estreita,
ntima e pessoal que ele mantm com seu sujeito. Ou melhor, a proclam-lo, a aprofund-lo e
a fazer, no o obstculo, mas a alavanca de sua compreenso. Porque esse sujeito deve tudo
a sua subjetividade, sua criao, sua recriao. ele o instrumento do metabolismo, que d
sentido e vida a quem, em si e sem ele, no teria nem sentido nem vida. Imaginemos uma
sociedade inteiramente absorvida pelo sentimento de sua prpria historicidade; ela estaria
impossibilitada de produzir historiadores. Vivendo integralmente sob o signo do futuro, ela se
contentaria dc processos de gravao automticos de si mesma e se satisfaria com mquinas
de se auto contabilizar, mandando de volta para um futuro indefinido a tarefa de se
compreender a si mesma. Em contrapartida, nossa sociedade, certamente arrancada de sua
memria pela amplitude de suas mudanas, mas ainda mais obcecada por se compreender
historicamente, est condenada a fazer do historiador um personagem cada vez mais central,
porque nele se opera aquilo de que ela gostaria mas no pode dispensar: o historiador
aquele que impede a histria de ser somente histria.
Da mesma forma que devemos distncia panormica o grande plano e ao
estranhamento definitivo uma hiperveracidade artificial do passado, a mudana do modo de
percepo reconduz obstinadamente o historiador aos objetos tradicionais dos quais ele se
havia desviado, os usuais de nossa memria nacional. Vejam-na novamente na soleira da
casa natal, a velha morada nua, irreconhecvel. Com os mesmos mveis de famlia, mas sob
uma nova luz. Diante da mesma oficina, mas para uma outra obra. Na mesma pea, mas para
um outro papel. A historiografia inevitavelmente ingressada em sua era epistemolgica, fecha
definitivamente a era da identidade, a memria inelutavelmente tragada pela histria, no
existe mais um homem-memria, em si mesmo, mas um lugar de memria.
tempo, a cristalizao da lembrana e sua transmisso; mas simblica por definio visto que
caracteriza por um acontecimento ou uma experincia vividos por um pequeno nmero uma
maioria que deles no participou.
O que os constitui um jogo da memria e da histria, uma interao dos dois fatores
que leva a sua sobredeterminao recproca. Inicialmente, preciso ter vontade de memria.
Se o princpio dessa prioridade fosse abandonado, rapidamente derivar-se-ia de uma definio
estreita, a mais rica em potencialidades, para uma definio possvel, mais malevel,
susceptvel de admitir na categoria todo objeto digno de uma lembrana. Um pouco como as
boas regras da crtica histrica de antigamente, que distinguiam sabiamente as fontes
diretas, isto , aquelas que uma sociedade voluntariamente produziu para serem
reproduzidas como tal - uma lei, uma obra de arte, por exemplo - e a massa indefinida dc
fontes indiretas, isto todos os testemunhos deixados por uma poca sem duvidar de sua
utilizao futura pelos historiadores. Na falta dessa inteno de memria os lugares de
memria sero lugares de histria.
Em contrapartida, est claro que, se a histria, o tempo, a mudana no interviessem,
seria necessrio se contentar com um simples histrico dos memoriais. Lugares portanto, mas
lugares mistos, hbridos e mutantes, intimamente enlaados de vida e de morte, de tempo e
de eternidade; numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado , do imvel
e do mvel. Anis de Moebius enrolados sobre si mesmos. Porque, se verdade que a razo
fundamental de ser de um lugar de memria parar o tempo, bloquear o trabalho do
esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para - o
ouro a nica memria do dinheiro - prender o mximo de sentido num mnimo de sinais,
claro, e isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memria s vivem aptido para a
metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisvel de suas
ramificaes.
Dois exemplos, em registros diferentes. Veja-se o calendrio revolucionrio: se lugar
de memria, visto que, enquanto calendrio, ele deveria fornecer os quadros a priori de toda
memria possvel e enquanto revolucionrio, ele se proporia, por sua nomenclatura e por
sua simbologia, a "abrir um novo livro para a histria" como ambiciosamente diz seu
organizador, e "transportar inteiramente os franceses para si mesmos", segundo um outro de
seus relatores. E, nesse objetivo, parar a histria no momento da Revoluo, indexando o
futuro dos meses, dos dias, dos sculos, e dos anos sobre a imagem da epopeia
revolucionria. Ttulos j suficientes! O que, no entanto, o constitui ainda mais como lugar de
memria, aos nossos olhos, sua derrota em se tomar aquilo que quiseram seus fundadores.
Estivssemos, ainda hoje, vivendo sob seu ritmo, ele teria se nos tornado to familiar, como
um calendrio gregoriano, que teria perdido sua virtude de lugar de memria. Ele teria se
fundido nossa paisagem memorial e s serviria para compatibilizar todos os outros lugares
de memria imaginveis. Mas sua derrota no total: datas-chaves, acontecimentos
emergem para sempre a ele ligados. Vendmiaire, Thermidor, Brumaire. E os motivos de
memria viram-se sobre si mesmos, duplicam-se em espelhos deformantes que so sua
verdade. Nenhum lugar de memria escapa aos seus arabescos fundadores.
Tomemos, desta vez, o clebre caso "Tour de la France par deux enfants": lugar de memria
igualmente indiscutvel, pois que, da mesma forma que o Petit Lavisse formou a memria
de milhes de jovens Franceses, no tempo em que um ministro da instruo pblica podia
tirar seu relgio de seu bolso para declarar de manh, s oito horas e cinco minutos: Todas
as nossas crianas passam os Alpes. Lugar de memria, tambm, pois que inventrio do que
preciso saber sobre a Frana, narrao identificadora e viagem iniciadora. Mas as coisas se
complicam: uma leitura atenta logo mostra que, desde o seu aparecimento, em 1877, "Le
Tour" esteriotipa uma Frana que no existe mais e que, nesse ano do 16 de maio, que v a
solidificao da Repblica, tira sua seduo de um sutil encantamento pelo passado. Livro
Proj. Histria, So Paula, (10), Dez. 1993
para crianas cujo sucesso se deve, em parte, memria dos adultos, como sempre. Eis para
o montante da memria, e para o seu jusante? Trinta e cinco anos aps sua publicao,
quando a obra ainda reina s vsperas da guerra, ela certamente lida como chamada,
tradio j nostlgica: prova disso, apesar de seu remanejamento e de sua atualizao, a
edio antiga parece vender melhor do que a nova. Depois o livro fica mais raro, s utilizado
nos meios residuais, no fundo de campos distantes; ele esquecido. "Le Tour de la France"
toma-se aos poucos raridade, tesouro de sto, ou documento para os historiadores. Ele deixa
a memria coletiva para entrar na memria histrica, depois na memria pedaggica. Para o
seu centenrio, em 1977, no momento em que "Le Cheval dOrgueil" alcana um milho de
exemplares e quando a Frana giscardiana e industrial, mas j atingida pela crise econmica,
descobre sua memria oral e suas razes camponesas, ele reimpresso, e "Le Tour" entra
novamente na memria coletiva, no a mesma, enquanto espera novos esquecimentos e
novas reencarnaes O que patenteia essa vedete dos lugares da memria, sua inteno
inicial ou o retomo sem fim dos ciclos de sua memria? Evidentemente os dois: iodos os
lugares de memria so objetos no abismo.
Esse mesmo princpio de duplo pertencimento que permite operar, na multiplicidade
dos lugares, uma hierarquia, uma delimitao dc seu campo, um repertrio de suas escalas.
Se vemos efetivamente as grandes categorias de objetos que sobressaem do gnero - tudo o
que vem do culto dos mortos, tudo que sobressai do patrimnio, tudo o que administra a
presena do passado no presente - est portanto claro que alguns, que no entram na estrita
definio, podem isso pretender e que, inversamente, muitos, a maior parte mesmo, daqueles
que dele fazem parte por principio, devem, de fato ser excludos. O que constitui certos stios
pr-histricos, geogrficos ou arqueolgicos em lugares, e mesmo em lugares de destaque,
muitas vezes o que deveria precisamente lhes ser proibido, a ausncia absoluta de vontade
de memria, compensada pelo peso esmagador de que o tempo, a cincia, o sonho e a
memria dos homens os carregou. Em contrapartida, qualquer limite que tem a mesma
importncia que o Rhin, ou o Finistre, esse fim de terra, as quais as clebres pginas de
Michelet, por exemplo, deram seus ttulos de nobreza. Toda constituio, todo tratado
diplomtico so lugares de memria, mas a constituio e 1793, no da mesma forma que a
de 1791, com a Declarao dos direitos do homem, lugar fundador de memria; e a paz dc
Nimgue, no da mesma forma que as duas extremidades da histria da Europa, a diviso de
Verdun e a conferncia de Yalta.
Na mistura, a memria que dita e a histria que escreve. por isso que dois domnios
merecem que nos detenhamos, os acontecimentos e os livros de histria, porque, no sendo
mistos de memria e histria, mas os instrumentos, por excelncia, da memria em histria,
permitem delimitar nitidamente o domnio. Toda grande obra histrica e o prprio gnero
histrico no so uma forma de lugar da memria? Todo grande acontecimento e a prpria
noo de acontecimento no so, por definio, lugares de memria? As duas questes
exigem uma resposta precisa.
Entre os livros de histria so unicamente lugares de memria aqueles que se fundam
num remanejamento efetivo da memria ou que constituem os brevirios so pedaggicos.
Os grandes momentos de fixao de uma nova memria histrica no so to numerosos na
Frana. No sculo XIIII, as "Grandes Chroniques de France" condensam a memria dinstica e
estabelecem o modelo de vrios sculos de trabalho histrico. , no sculo XVI, durante as
guerras dc religio, a escola dita da "histria perfeita" destri a lenda das origens troianas da
monarquia e restabelece a antiguidade gaulesa: as "Recherches de la France", de Etienne
Pasquier (1599), constituem, na prpria modernidade do ttulo, uma ilustrao emblemtica.
A ilustrao do fim da Restaurao introduz bruscamente a concepo moderna de histria:
as "Lettres sur l'histoire de France" , de Augustin Thierry (1820) constituindo o incio e sua
publicao definitiva em volume, em 1827 coincidindo, prximo de alguns meses, com o
Proj. Histria, So Paula, (10), Dez. 1993