A Função Social Da Poesia - T. S. Eliot
A Função Social Da Poesia - T. S. Eliot
A Função Social Da Poesia - T. S. Eliot
25-37)
forma, um grande poema do passado ainda nos agrada, mesmo que seu assunto seja
um daqueles que deveramos hoje abordar em prosa.
Mas se estamos procura da funo social essencial da poesia, precisamos
olhar primeiro para suas funes mais bvias, aquelas que precisam ser cumpridas, se
que algum poema o faz. O principal, suponho, que possamos nos assegurar de
que essa poesia nos d prazer. Se algum perguntar qual o gnero de prazer, s
poderei responder: o gnero de prazer que a poesia proporciona; simplesmente
porque qualquer outra resposta nos levaria a nos perdermos em divagaes estticas
e na questo geral na natureza da arte.
Suponho que se deva concordar com o fato de que qualquer poeta, haja sido
ele grande ou no, tem algo a nos proporcionar alm do prazer, pois se for apenas
isso, o prprio prazer pode no ser da mais alta espcie. Para alm de qualquer
inteno especfica que a poesia possa ter, tal como foi por mim exemplificado nas
vrias espcies de poesia, h sempre comunicao de alguma nova experincia, ou
uma nova compreenso do familiar, ou a expresso de algo que experimentamos e
para o que no temos palavras o que amplia nossa conscincia ou apura nossa
sensibilidade. Mas no com esse beneficio individual extrado poesia, nem
tampouco com a qualidade do prazer individual, que este ensaio se relaciona. Todos
compreendemos, creio eu, tanto a espcie de prazer que a poesia pode proporcionar,
quanto a diferena que, para alm do prazer, ela pode oferecer s nossas vidas. Caso
no se obtenham esses dois resultados, simplesmente no h poesia. Podemos
reconhecer isso, mas ao mesmo tempo fazer vista grossa para algo que isso faz por
ns coletivamente, enquanto sociedade. E falo no mais amplo sentido, pois creio ser
importante que cada povo deva ter sua prpria poesia, no apenas por causa
daqueles que gostam de poesia tal pessoa poderia sempre aprender outras lnguas
e apreciar a poesia delas , mas tambm porque isso estabelece de fato uma
diferena para a sociedade como um todo, ou seja, para pessoas que no gostam de
poesia. Incluo at mesmo aqueles que ignoram os nomes de seus prprios poetas
nacionais. Eis o verdadeiro assunto deste ensaio.
Observa-se que a poesia difere de qualquer outra arte por ter um valor para o
povo da mesma raa e lngua do poeta, que no pode ter para nenhum outro.
verdade que at a msica e a pintura tm um carter local e racial; mas decerto as
dificuldades de apreciao dessas artes, para um estrangeiro, so muito menores.
verdade, por outro lado, que os textos em prosa tm um significado em suas prprias
lnguas que se perde na traduo; mas todos sentimos que perdemos muito menos ao
lermos uma novela traduzida do que um poema vertido de outro idioma; e na
traduo de alguns gneros de obra cientfica a perda pode ser virtualmente nula. O
fato de que a poesia muito mais local do que a prosa pode ser comprovado na
histria das lnguas europias. Ao longo de toda a Idade Mdia e no curso dos cinco
sculos seguintes, o latim permaneceu como a lngua da filosofia, da teologia e da
cincia. O impulso concernente ao uso literrio das linguagens dos povos comea com
a poesia. E isso parece absolutamente natural quando percebemos que a poesia tem a
ver fundamentalmente com a expresso do sentimento e da emoo; e esse
sentimento e emoo so particulares, ao passo que o pensamento geral. mais
fcil pensar do que sentir numa lngua estrangeira. Por isso, nenhuma arte mais
visceralmente nacional do que a poesia. Um povo pode ter sua lngua trasladada para
longe de si, abolida, e uma outra lngua imposta nas escolas; mas a menos que
algum ensine esse povo a sentir numa nova lngua, ningum conseguir erradicar o
idioma antigo, e ele reaparecer na poesia, que o veculo do sentimento. Eu disse
precisamente sentir numa nova lngua, e pretendi dizer algo mais do que apenas
At agora apenas sugeri o ponto extremo at o qual, creio eu, pode-se dizer
que se estende a influncia da poesia; e isso pode ser melhor expresso pela afirmao
de que, no decurso do tempo, ela produz uma diferena na fala, na sensibilidade, nas
vidas de todos os integrantes de uma sociedade, de todos os membros de uma
comunidade, de todo o povo, independentemente de que leiam e apreciem poesia ou
no, ou at mesmo, na verdade, de que saibam ou no os nomes de seus maiores
poetas. A influncia da poesia, na mais distante periferia, naturalmente muito
difusa, muito indireta e muito difcil de ser comprovada. como acompanhar o trajeto
de um pssaro ou de um avio num cu luminoso: se algum os percebeu quando
estavam muito prximos, e os manteve sob a vista quando se afastavam cada vez
mais, poder v-los a uma grande distncia, a uma distncia na qual o olho de outra
pessoa, de quem se tenta chamar a ateno para o fato, ser incapaz de perceb-los.
Assim, se rastrearmos a influncia da poesia atravs dos leitores mais afetados por
ela s pessoas que jamais leram nada, a encontraremos presente em toda parte. Pelo
menos a encontraremos se a cultura nacional estiver viva e sadia, pois numa
sociedade saudvel h uma influncia recproca e uma interao continuas de uma
parte sobre as outras. E isso o que eu entendo como a funo social da poesia em
seu mais amplo sentido: isso o que, proporcionalmente sua existncia e vigor,
afeta a fala e a sensibilidade de toda a nao.
Ningum deve imaginar que estou dizendo ser a lngua que falamos
exclusivamente determinada por nossos poetas. A estrutura da cultura muito mais
complexa do que isso. A rigor, igualmente verdadeiro que a qualidade de nossa
poesia depende do modo como o povo utiliza sua lngua: pois um poeta deve tomar
como matria-prima sua prpria lngua, da maneira como de fato ela falada volta
dele. Se a lngua se aprimora, ele se beneficiar; se entra em declnio, dever tirar da
o melhor proveito. At certo ponto, a poesia pode preservar, e mesmo restaurar, a
beleza de uma lngua; ela pode e deve ajud-la a se desenvolver, a tornar-se to sutil
e precisa nas mais adversas condies e para os cambiantes propsitos da vida
moderna, quanto o foi numa poca menos complexa. Mas a poesia, como qualquer
outro elemento solitrio nessa misteriosa personalidade social a que chamamos nossa
cultura, deve permanecer dependente de muitssimas circunstncias que escapam
ao seu controle.
Isso me conduz a algumas reflexes posteriores de natureza mais geral. Minha
nfase nesse ponto tem sido sobre a funo local e nacional da poesia, e isso deve ser
explicado. No desejo dar a impresso de que a funo da poesia distinguir entre
um povo e outro, pois no creio que as culturas dos diversos povos da Europa possam
florescer isoladas uma das outras. No resta dvida de que houve no passado altas
civilizaes que produziram grande arte, pensamento e literatura, e que se
desenvolveram sozinhas. No posso falar disso com segurana, pois algumas delas
podem no ter sido to isoladas quanto inicialmente parece. Mas na histria da
Europa no tem sido assim. At mesmo a Grcia antiga deveu muito ao Egito, e algo
s suas fronteiras asiticas; e nas relaes dos Estados gregos entre si, com seus
diferentes dialetos e seus diferentes costumes, podemos encontrar uma influncia
recproca e estmulos anlogos aos que os pases europeus exerciam uns sobre os
outros. Mas a histria da literatura europia no indica que qualquer literatura tenha
sido independente das outras, revelando antes um movimento constante de dar e
receber, e que cada uma delas, sucessivamente, vem sendo revitalizada por estmulos
externos. Uma autarquia geral na cultura simplesmente no funcionar: a esperana
de perpetuar a cultura de qualquer pas repousa na comunicao com as demais. Mas
se a separao de culturas dentro da unidade europia um perigo, tambm o seria
uma unificao que levasse uniformidade. A variedade to essencial quanto a
unidade. Por exemplo, h muito a ser dito, para certos propsitos limitados, de uma
lngua franca universal como o esperanto ou o ingls bsico. Mas supondo que toda a
comunicao entre as naes fosse conduzida por uma lngua artificial, quo
imperfeita ela seria! Ou antes, seria absolutamente adequada em alguns aspectos, e
apresentaria uma completa falha de comunicao em outros. A poesia uma
constante advertncia a tudo aquilo que s pode ser dito em uma lngua, e que
intraduzvel. A comunicao espiritual entre um povo e outro no pode ser levada
adiante sem indivduos que assumam o desafio de aprender pelo menos uma lngua
estrangeira to bem quanto possvel aprender qualquer lngua que no a sua
prpria, conseqentemente, que estejam capacitados em maior ou menor grau, a
sentir em outra lngua to bem quanto na sua. E a compreenso de outro povo por
parte de qualquer pessoa necessita, dessa forma, ser complementada pela
compreenso daqueles indivduos dentre esse povo que se esforaram para aprender
a sua prpria lngua.
Pode ocorrer que o estudo da poesia de um outro povo seja particularmente
instrutivo. Eu disse que h qualidades poticas em cada lngua que s podem ser
entendidas por aqueles que dela so nativos. Mas h tambm um outro lado da
questo. Descobri algumas vezes, ao tentar ler uma lngua que no conhecia muito
bem, que no conseguia compreender um texto em prosa seno na medida em que o
digeria conforme os padres do professor: ou seja, eu estava seguro quanto ao
significado de cada palavra, dominava a gramtica e a sintaxe, e podia ento decifrar
a passagem em ingls. Mas descobri tambm algumas vezes que um texto potico,
que eu no conseguia traduzir, incluindo muitas palavras que no me eram familiares
e oraes que eu no conseguia interpretar, comunicava-me algo vvido e imediato,
que era nico, distinto de qualquer coisa em ingls algo que eu no podia
transcrever em palavras e, no obstante, sentia que compreendera. E ao aprender
melhor aquela lngua, descobri que essa impresso no era ilusria, ou algo que eu
imaginasse existir na poesia, mas algo que estava de fato ali. De modo que, em
poesia, vez por outra algum pode penetrar em outro pas, por assim dizer, antes que
seu passaporte seja expedido ou que seu bilhete de viagem seja comprado.
Toda a questo do relacionamento entre pases de lnguas diferentes, mas que
possuem afinidades culturais, no mbito europeu, por conseguinte aquela qual
somos conduzidos, talvez inesperadamente, pela investigao relativa funo social
da poesia. claro que no pretendo passar desse ponto para questes estritamente
polticas; mas gostaria que aqueles que se ocupam das questes polticas pudessem
mais amide cruzar a fronteira que conduz aos problemas que acabo de examinar pois
so estes que conferem ao aspecto espiritual das questes o aspecto material de que
se ocupa a poltica. Do lado em que me encontro na fronteira, uma dessas questes
se relaciona com as coisas vivas que tm suas prprias leis de crescimento, as quais
nem sempre razoveis, mas que somente devem ser aceitas pela razo; coisas que
no podem ser caprichosamente planejadas e postas em ordem da mesma forma que
no podem ser disciplinados os ventos, as chuvas e as estaes.
Finalmente, se eu estiver certo de que a poesia tem uma funo social para o
conjunto das pessoas da lngua do poeta, estejam elas conscientes ou no de sua
existncia, conclui-se que interessa a cada povo da Europa que os demais devam
continuar a ter sua poesia. No posso ler a poesia norueguesa, mas, se fosse dito que
no mais est sendo escrita qualquer poesia em lngua norueguesa, eu sentiria um
sobressalto que seria muito mais do que uma generosa simpatia. Eu o veria como um
indcio de doena que provavelmente estaria difundida por todo o continente, como o
incio de um declnio significando que os povos de toda parte houvessem deixado de