Questões de Gênero Na Ciência e Na Educação

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Atas do IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em Cincias IX ENPEC

guas de Lindia, SP 10 a 14 de Novembro de 2013

Questes de gnero na cincia e na educao


cientfica: uma discusso centrada no Prmio Nobel
de Fsica de 1903
Gender issues in science and in science education:
discussing the 1903 Nobel Prize in Physics
Marins Domingues Cordeiro
Programa de Ps-Graduao em Educao Cientfica e Tecnolgica UFSC
[email protected]

Resumo
Os aspectos que definem os ideais de masculinidade e feminilidade permeiam todas as reas
da sociedade, e a cincia inclusive, como evidenciam a histria e a filosofia da cincia . Esses
ideais, que por sculos assinalaram a esfera domstica como espao feminino, acabaram
limitando o acesso das mulheres educao e, por conseguinte, cincia. Desde a primeira
onda do movimento feminista, essa situao vem mudando ; contudo, diversos obstculos
ainda se interpem entre as mulheres e a carreira cientfica a educao cientfica, sutilmente
permeada pelo sexismo ainda e xistente na sociedade, sendo um deles. Um dos fatores que
afastam meninas da cincia, segundo estudiosos, a falta de modelos de cientistas mulheres.
Neste artigo, explora m-se o Prmio Nobel de F sica de 1903, que quase negligenciou Marie
Curie, e suas potencialidades, na formao de professores, para o reconhecimento desse
preconceito que ainda existe na cincia.

Palavras chave: histria da cincia, feminismo, Prmio Nobel, radioatividade


Abstract
Gender binary and its aspects underlie our whole social environment, science included, as
revealed by the studies in history and philosophy of science. These centennial ideals place
women at the domestic sphere, limiting their access to education, and to science as a
consequence. S ince the first wave of the feminist movement, this situation has been changing.
However, there are still many obstacles to overcome in womens path to scientific carriers
subtly sexist science education being one of them. Studies point out that the lack of role
models of women scientists is one of the reasons girls feel left out of the scientific enterprise,
and choose different carriers. This paper intends to explore the 1903 Nobel Prize in P hysics,
that almost left Marie C urie out, and its educational possibilities for physics educators, who
could use this episode to recognize the still pulsating prejudices prevailing in science.

Key words: history of science, feminism, Nobel Prize, radioactivity


Introduo

His tria, Filos ofia e Sociologia da Cincia na Educao em Cincias

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Uma pesquisa inicial inadvertida histria dos laureados do Prmio Nobel pode sugerir um
carter vanguardista da premiao. Em seu terceiro ano, o de 1903, uma mulher (Marie
Sklodowska C urie) foi premiada pela primeira vez e na cincia que, como ressaltam Gould
(1998) e Schiebinger (2001), geralmente considerada a mais masculina a fsica.
Infelizmente, a histria do Prmio em cincias no sustenta essa possvel primeira impresso:
nestes ma is de cem anos de lurea, apenas duas cientistas foram premiadas na fsica, quatro
na qumica e dez em medicina ou fisiologia.
Essas raras premiaes a mulheres cientistas revelam a desproporo entre os gneros na
atividade cientfica, fato conhecido, mas que vem mudando nos ltimos anos. Esse
desequilbrio , por sua vez, um reflexo social mais amplo; historicamente, as diferenas
profissionais, mesmo que sob a gide de escolha feminina/masculina, so, como os estudos
feministas do ltimo sculo mostram, imperativos sociais. Profisses em cincia, engenharia e
poltica so tradicionalmente consideradas masculinas, enquanto so tomadas como femininas
aquelas em educao, enfermagem ou as domsticas. Essa classificao historicamente
instituda, e as francas despropores entre os gneros nessas atividades propiciam a intruso
nelas de certos valores socialmente compreendidos para cada grupo.
Mesmo grande, o desequilbrio entre os gneros na cincia menor que o desequilbrio entre
os gneros dos laureados. Assim, esse grupo seleto de cientistas uma espcie de reflexo
agravado de uma atividade masculina. Schiebinger (2001) lembra que, apesar de haver um
crescente nmero de mulheres na atividade, elas ainda sofrem embargos sua entrada,
manuteno e reconhecimento na cincia, em todos os nveis da jornada inclusive na
escolha do merecedor anual da mais distinta lurea do empreendimento.
McGrayne (1994) cita diversas mulheres cujos trabalhos cientficos foram fundamentais para
a premiao de seus parceiros ou orientadores. Na fsica, especificamente, ela cita Lise
Meitner, C hein-Shiung Wu e Jocelyn Bell Burnell. Apesar da qualidade de seus trabalhos,
suas contribuies foram neutralizadas. difcil distinguir qual, dentre tantos fatores sociais e
histricos como guerras, xenofobia ou machismo, tornou-se o maior obstculo para cada uma
delas. A primeira vencedora, Marie Curie, poderia ter sido parte deste grupo de mulheres.
Este trabalho analisa o contexto social e histrico da Frana de 1903, levantando os possveis
fatores que levaram a lguns fsicos franceses a desprezar o trabalho de Marie C urie na
indicao ao P rmio Nobel de 1903, e o potencial didtico desse episdio para a discusso da
excluso das mulheres da cincia. Para compreender melhor a conjuntura social europeia,
discutem-se a primeira onda do feminismo e a histria do Prmio. Apontam-se enfim a lgumas
consequncias de preconceitos sutis na educao cientfica e as possveis contribuies de
uma aula de cincia pautada nesse episdio histrico para desconstruir tais concepes.

Feminismo, primeira onda e o Prmio Nobel


A Belle poque, que vai do fim do sculo XIX ao comeo da P rimeira Grande Guerra,
usualmente retratada como um perodo de grande efervescncia cultural, com o
desenvolvimento das comunicaes, da vida artstica e de novos pensamentos, na Frana e em
toda a Europa. tambm o perodo de florescimento do movimento das mulheres (conhecido
como primeira onda do feminismo 1 ) e de estabelecimento do reverenciado Prmio Nobel.

O termo fe minis mo, co mo s innimo de movimento das mu lheres e reivind icao de igualdade de direitos , foi
utilizado pela prime ira ve z por Hubertine Auclert, e m La Citoyenne, na dcada de 1880. O termo s e cons agrou
na dcada s eguinte, primeiramente na Frana, e ento entrando em outros pas es e s uas res pectivas lnguas .

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difcil definir o momento exato de nascimento das reivindicaes femininas; em virtude do


posicionamento scio-histrico inferior dado s mulheres desde os perodos mais remotos,
muitos estudiosos acreditam que sempre houve tentativas pontuais para mudar e ssa condio
ao longo da histria (PINTO, 2012 ). Entretanto, enquanto movimento social, poltico e
filosfico, o movimento feminista surgiu no sculo XIX, resultado de manifestos de mulheres
(e homens simpatizantes) cada vez mais frequentes, que vinham aco ntecendo desde o sculo
anterior na Europa. Dentre as reivindic aes, o movimento exigia o direito ao voto em leis,
liberdade no casamento, e demandava solues educacionais e econmicas para combater o
crescente empobrecimento feminino (OFF EN, 2000, p. 108). A partir da Primavera dos
Povos, em 1848, o ideal feminista de igualdade poltica e social entre os gneros ganhou cada
vez mais adeptos; sua histria, porm, mostra o crescente nmero de obstculos que se
impunham ao menor sinal de ganhos sociais femininos.
Interessantemente, apesar da natureza de florescimento de conhecimentos, a Belle poque
francesa foi um perodo de fortes contra-ataques ao feminismo. Eram reaes s tmidas
vitrias do movimento, que miravam usualmente no que a literatura pa ssara a chamar de a
nova mulher: mulheres empregadas, solteiras, educadas, de classe mdia. Uma guerra de
conhecimentos surgia, contra-argumentando os tratados feministas, inflamada por uma
enxurrada de publicaes de mdicos, criminologistas, psiclogo s, socilogos e outros
expertos, muitos dos quais [...] comprometidos em manter as mulheres onde alguns homens
pensavam ser sua posio designada por Deus ou definida biologicamente (OFFEN, 2000,
p. 183). O u seja, em uma posio de subservincia ou servido ao marido, no mbito
domstico, enquanto progenitoras.
Nessa mesma bela poca de nascimento dos tempos modernos, surge tambm o Prmio
Nobel. Alfred Nobel, qumico sueco que fez fortuna durante sua vida com o desenvolvimento
de explosivos e suas patentes em diversos pases europeus, instituiu em seu testamento que,
aps destinar parte de sua riqueza a familiares, o restante deveria constituir um fundo cujos
rendimentos anuais seriam distribudos queles que, no ano a nterior, tivessem feito grandes
contribuies ao mundo. Assim, definiu cinco reas de premiao: fsica, qumica, medicina
ou fisiologia, literatura e paz2 .
Em virtude da necessidade de definies burocrticas, o Prmio s passou a ser distribudo
em 1901. Os enormes montantes eram suficientes para provocar excitao na comunidade
cientfica; mesmo havendo diversos tipos de premiao poca, nenhuma delas se
aproximava, financeiramente, ao recm- institudo prmio sueco. A celebridade generalizada
da lurea, remanescente at os dias de hoje, no entanto, foi inesperada. Para Feldman (2000),
nos primeiros dois anos de premiao, as atenes do mundo tornavam-se aos vencedores da
Literatura e da Paz prmios inusitados queles que s conheciam a faceta cientfica de
Nobel, o inventor dos explosivos. O interesse mundial nos prmios da rea cientfica se
concentrou a partir de 1903, quando o casal C urie, dois fsicos desconhecidos mesmo em
Paris, onde moravam, foi premiado (FELDMAN, 2000).
A polvorosa nas imprensas francesa e internacional acerca do casal se devia aos obstculos
que eles tiveram de transpor durante suas investigaes (F ELDMAN, 2000). Eles trabalharam
em condies insalubres para o enriquecimento dos dois elementos que sua hiptese previa;
seu laboratrio estava instalado em um galpo cedido pela Universidade de Paris, sem

Atualmente, o Pr mio Nobel inclui ta mb m a rea de economia u ma in iciat iva de 1969 do Sveriges
Riks Bank, a quem cabe s ua res pons abilidade financeira.

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assoalho e cujo teto, aos pedaos, umedecia o local o que, muitas vezes, os fez perder as
delicadas pores enriquecidas de rdio que com muito esforo conseguiram (QUINN, 2011).
Para Feldman (2000), mesmo sendo fa tores impressionantes, o anonimato e as condies
precrias de trabalho no fora m o motivo maior da polvorosa miditica provocada pelo
Prmio de F sica de 1903. A imprensa estava mesmo interessada em Madame C urie,
imigrante polonesa que estudou fsica e ma temtica em Paris com pouqussimas condies
financeiras. Mesmo na Belle poque, os ganhos feministas ainda no haviam conseguido a
aceitao das mulheres no espao acadmico. A mulher que estudava, como se viu, era o alvo
preferido dos reacionrios. As mulheres acadmicas, especialmente em cincias, eram em sua
maioria estrangeiras. Marie C urie foi pioneira entre as doutoras em cincia da Europa. Com a
nomeao, o casal tornou-se um cone. Em um momento histrico em que as reivindicaes
femininas ganhavam cada mais espao, mas tambm sofriam srias crticas e impedimentos, a
deciso do Comit Nobel em premiar uma mulher tambm o elevou condio de mito.

O trabalho dos Curie e a controvrsia por trs das nomeaes ao


Prmio Nobel da Fsica de 1903
Como tema para sua tese de doutorado, Marie C urie escolhe u, em 1897, as radiaes de
urnio, descobertas por Henri Becquerel no ano anterior, e que por ele foram interpretadas
como uma espcie de fosforescncia invisvel (MARTINS, 1990). Eram emisses intrigantes,
pois, apesar da classificao de Becquerel, eram originadas tambm pelo urnio metlico,
poca j reconhecidamente no luminescente.
Embora Becquerel houvesse comunicado as propriedades ionizadoras das emisses de urnio,
a maior parte das pesquisas feitas por ele e outros cientistas usavam o mtodo fotogrfico. As
investigaes de Marie C urie conc entraram-se na propriedade eltrica do fenmeno, testando
diversos outros compostos, procura de radiaes anlogas s de Becquerel. Observou que os
compostos de trio tambm eram emissores. As radiaes, portanto, no mais poderiam ser
chamadas de radiao de urnio; aos compostos que as emitiam, o casal, que a essa altura j
trabalhava em colaborao, deu o nome de radioativos. Mais tarde, o fenmeno passar ia a ser
chamado de radioatividade.
Eles formularam a hiptese de que a radioatividade era um fenmeno de natureza atmica;
com ela, interpretaram que a atividade mais alta em certos minrios de urnio e trio deveria
ser resultado da existncia de algum outro elemento desconhecido que, mesmo em
quantidades infinitesimais, emitia fortes radiaes. De fato, observaram no apenas um, mas
dois novos elementos, que chamaram de polnio em homenagem terra natal de Marie e
rdio. A partir de ento, dedicara m-se ao enriquecimento dessas substncias, um trabalho
rduo, que culminou no doutoramento de Marie Curie, em fsica, no ano de 1903.
Sua hiptese atmica da radioatividade permitiu um novo foco nas pesquisas sobre o assunto;
com ela, em 1899, Rutherford classificou as radiaes em alfa e beta (Paul Villard observou a
terceira categoria, denominada gama). Entre 1902 e 1903, Rutherford, em parceria com
Frederick Soddy, observou que as emisses ocorriam com uma transformao dos tomos,
processo ao qual dera m o nome de desintegrao a tmica. Em virtude fertilidade da hiptese
de Marie C urie, e mesmo antes de sua defesa de doutorado, ela fora sugerida 3 nos anos de
1901 e 1902 para o Prmio da Fsica.
3

Anualmente, as acade mias des ignadas (Pa z: Pa rla mento Noruegus ; Literatura: a Aca de mia de Letras de
Es tocolmo; Medic ina ou Fis io logia: o Karolins ka Medica l Ins titute de Es tocolmo; Fs ica e Qu mica: a Acade mia
Sueca de Cincias ) apontam cinco de s eus me mb ros para es colher nomeadores , recolher s uas suges tes e com
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Em 1901, Madame Curie foi sugerida para o Prmio de F sica pelo mdico Charles-Joseph
Bouchard, patologista influente, membro da Academia Francesa de Medicina. Naquele ano,
entretanto, ele foi o nico a sugeri- la. J em 1902, alm de Bouchard, dois fsicos tambm
nomearam Marie C urie, juntamente com P ierre C urie e Becquerel: Jean-Gaston Darboux,
reitor da Faculdade de C incias da Universidade de Paris, e Emil Warburg, influente fsico
alemo, membro da Academia Prussiana de Cincias. J o fsico leuthre Mascart sugeriu
apenas P ierre naquele ano. Segundo Q uinn (2011), porm, fosse a radioatividade premiada
em 1902, dificilmente negligenciariam Marie Curie, em virtude das nomeaes conjuntas.
Estranhamente, a situao mudou de figura no ano seguinte. leuthre Mascart, juntamente
aos tambm fsicos franceses, Gabrie l Lippmann, Jean-Gaston Darboux e Henri Poincar
assinaram uma carta nomeao em que sequer mencionavam o trabalho de Marie C urie. A
carta era quase inteiramente uma fico. A tribuam a P ierre o estudo de diferentes minerais
de urnio e trio e o enriquecimento de duas novas substncias. Disseram que, juntos, P ierre
e Becquerel competiam com rivais estrangeiros pelo suprimento de rdio e buscaram com
grande dificuldade alguns decigramas desse precioso material , fazendo suas pesquisas por
vezes juntos, por vezes separados. A carta conclua que parece impossvel para ns separar
os nomes dos dois fsicos, e, portanto, no hesitamos em propor que o Prmio Nobel seja
dividido entre Sr. Becquerel e Sr. Curie (QUINN, 2011, paginao eletrnica).
A omisso de Marie faria com que ela fosse desconsiderada da premiao de 1903. O Estatuto
do Prmio Nobel especifica a necessidade de uma nomeao para que o comit escolha o
laureado e naquele ano, e ela no fora nomeada. Contudo, um dos mais ativos e respeitado s
membros do comit, Gustav Mittag- Leffler, ao receber a carta, escreve u a P ierre,
questionando o desprezo repentino ao trabalho de Marie. Em sua resposta, P ierre enfatizou
sua preferncia por ser considerado juntamente sua esposa, pois seus trabalhos fo ram
colaborativos. Mittag-Leffler precisou de manobras burocrticas, a fim de nomear Marie
Curie; sua influncia e o fato de ela ter sido sugerida nos anos anteriores permitiram, ento,
que o casal dividisse com Becquerel o Prmio da Fsica de 1903 (QUINN, 2011).
Ao ser anunciado, o prmio teve grande efeito nas imprensas francesa e mundial. Dependendo
da linha do jornal ou da revista, a descrio do trabalho do casal diferia. Alguns jornais
conservadores evitavam mencionar o trabalho de Marie Curie; outros, mais moderados,
insistiam em exp- la como colaboradora secundria, essencial para a concentrao de P ierre
em seus estudos. O outro lado tambm se mostrou, com a defesa de Madame C urie como
nica responsvel pelo trabalho, tratando seu marido como uma pea num jogo de aparncias.
De todo modo, era difcil conceber que um trabalho to rduo pudesse ser conduzido por um
casal em colaborao, especialmente quando se esperava das mulheres casadas o total cuidado
da casa e dos filhos. Certamente, essa conjunt ura familiar de cooperao, tpica dos C urie, era
bastante inusitada no comeo do sculo XX, e talvez se pudesse atribuir a esse cenrio uma
justificativa carta dos fsicos franceses. Entretanto, dois dos quatro signatrios estavam
bastante familiarizado s com os trabalhos da cientista; Lippmann apresentara a primeira
comunicao de Marie C urie Acade mia Francesa de C incias e foi, mesmo no ano de 1903,
o presidente da banca examinadora de sua tese de doutorado. Darboux, que um ano antes
sugerira ao Comit os C urie e Becquerel, mais frente viria a ser um grande defensor da
nomeao de Marie Curie Academia Francesa de Cincias (QUINN, 2011).
bas e nelas decidir u m vencedor, que deve s er aprovado, finalmente, pela acade mia. Dentre os nomeadores , tm
pos io permanente os me mb ros das prprias academias ; profes s ores de cincias e literatura de toda a
Es candinvia e nobelis tas podem enviar s uas suges tes . H tamb m nomea dores temporrios , geralmente
profes s ores de divers os ins titutos pelo mundo, que s o es colhidos , us ualmente, a cada dois anos .

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Se no se pode alegar desconhecimento acerca do papel de Marie C urie nos estudos da


radioatividade, ento qual a justificativa para a carta dos quatro fsicos? Seria porque, em
diversos aspectos, Marie C urie incorporava aquela nova mulher, estudada, independente e,
inesperadamente, talentosa? Seria um resultado do contra-ataque ao feminismo, que se
armava to fortemente na Frana do incio do sculo XX? impossvel afirmar
definitivamente que o seja; para isso, seria necessria uma investigao sobre registros das
opinies dos signatrios da carta sobre as questes femininas. Entretanto, o histrico de
dificuldades encontradas por mulheres nas cincias, alm da conjuntura da poca e o fato de
conhecerem bem o histrico do trabalho colaborativo do casal, nos permitem inferir que as
motivaes dos quatro fsicos possam ter sido de natureza sexista.

Cincia e a questo de gnero: consideraes educacionais


O machismo no permeia apenas a cincia, mas tambm a educao, afastando mulheres de
carreiras cientficas. Diversas investigaes tm sido feitas, em variados estgios da educao,
para compreender as consequncias desse preconceito. Alguns diagnsticos, no caso
estadunidense, mostram a menor propenso de meninas a seguir a carreira cientfica
(RIEGLE-CRUMB; MOORE; RAMOS-WADA, 2011); a dificuldade daquelas que gostam
de cincia, na tentativa de equilibrar esse suposto lado masculino com outros aspectos de
heterofeminilidade (ARC HER et al, 2012); a preferncia de meninas por brinquedos
domsticos, enquanto meninos demonstram mais conforto com brinquedos cientficos
(JONES; HOWE; RUA, 2000).
So normativas de gnero que invadem a educao, por meio de hbitos sutis, como
Schiebinger (2001) menciona, tais como provas de cincias contextualizadas com analogias
esportivas, incentivo e elogios criatividade dos meninos (enquanto as meninas so elogiadas
por esmero), e o tempo maior de manifestao verbal em sala de aula dado a meninos. Uma
pesquisa de Frana e Munford (2012) com duas professoras de cincias, apesar de no ser
parmetro para generalizae s, evidencia tratamentos estereotipados similares no Brasil.
Materiais didticos tambm reflete m essas diferenas. Softwares didticos desenvolvidos para
meninos tendem a exaltar a aventura e a coragem, enquanto para as meninas, so voltados a
sentimentos e vida domstica. Alis, os trabalhos domsticos de cuidado e limpeza aparecem
com frequncia em livros didticos, e sempre na forma feminina. Homens, nessas obras,
segundo Schiebinger (2001) nos EUA e Martins e Hoffmann (2007) no Brasil, so mais
representados exercendo funes relacionadas a carros e pesca, e quando so retratados como
profissionais, so professores de cincias ou mdicos.
A influncia do machismo na cincia e na educao cientfica, como se tentou mostrar at
aqui, restringe a cincia aos homens. Naturalmente, podemos citar algumas mulheres que
efetivame nte conseguiram chegar ao topo da carreira, mas no sem passar pelos mais diversos
obstculos. Alm disso, esses exemplos dificilmente chegam com a riqueza de detalhes
necessria educao cientfica. Desse modo, meninas e mulheres, que demonstram preferir
abordagens mais contextualizadas da cincia (KAHVECI; SOUTHERLAN D; GILMER,
2008; JOHNSON, 2007), ficam sem modelos inspiradores de cientistas mulheres, fator
fundamental para perseguirem uma carreira cientfica (BUCK et al, 2008).
Madame C urie foi uma das mulheres que conseguiu, apesar de todos os empecilhos, inclusive
no auge de sua carreira, com a notvel lurea. Premiaes funcionam como importantes
legitimadores do conhecimento cientfico e do cientista que o props. Assim, a histria do
episdio, med iada com a conscincia das diversa s formas de manifestao que o machismo
encontra, tem o potencial de fornecer um grande exemplo de mulher cientista (fsica e
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matemtica, que fez enormes contribuies na qumica) e discutir esse que um dos aspectos
da natureza da cincia. Como bem aponta Prez et al (2001), a concepo elitista da cincia,
alm de propagar a ideia de que esse um empreendimento levado por gnios, restringe
tambm o que ser gnio: e m geral, homens, brancos e heterossexuais. O nmero de
mulheres na cincia hoje em dia seguramente mais expressivo que h um sculo ela,
afinal, feita em grandes grupos e conhece poucas fronteiras. No entanto, nossos livros e
escolas continuam com o hbito danoso de festejar apenas um punhado de nomes, escolhidos
por valores sociais que, como demonstram os levantes contraculturais, devem ser repensados.
Importa, certamente, contextualizar os acontecimentos daquele Prmio Nobel: como j dito
aqui, uma Europa que se transformava. Momentos histricos assim naturalmente presenciam
a queda de braos entre progressistas e reacionrios, e uma interpretao feminista do evento
demonstra que ele foi palco deste tipo de embate. Cabe perguntar se ainda hoje mulheres na
cincia passam por esse tipo de dificuldade e a resposta afirmativa, infelizmente. Elas tm
progresses mais lentas na carreira, ganham menos, encaram dupla jornada de trabalho e
ainda enfrentam assdio moral e sexual (SC HIEBINGER, 2001). Alm disso, na atual onda
de feminismo, tambm se presencia m manifestaes conservadoras contra os avanos das
mulheres em relao a direitos trabalhistas, vida domstica e, principalmente, vida sexual e
reprodutiva. Alunos e alunas que se deparem com esse episdio, devidamente transposto e
mediado por um professor preparado, podem comear a desenvolver algum senso crtico em
relao temtica e aplic- lo para identificar, em outros mbitos de suas vidas, a propagao
de desigualdade de gnero.
Por fim, cabe perguntar: o que seria da histria da fsica, em termos de representatividade de
mulheres, se Madame C urie no tivesse sido laureada naquele ano? Teria sido nomeada pela
segunda vez, na Q umica, em 1911? E as mulheres que se seguiram tambm na fsica (e
qumica) nuclear, como sua filha Irne Joliot-Curie, e Lise Meitner e Maria Goeppert-Mayer,
seriam cientistas amplamente reconhecidas? O exemplo de Meitner bastante valioso e
sugestivo; indicada pelo menos quinze vezes aos Prmios de Q umica e F sica
(GONALVES-MAIA, 2012), foi negligenciada pelo Prmio Nobel da Q umica de 1944, que
laureou somente seu parceiro, Otto Hahn. S uas reais contribuies tambm foram por muito
tempo relegadas por museus de cincias, instituies, festividades sobre a descoberta da fisso
nuclear e mesmo por historiadores da cincia (SIME, 1989). O que se pode inferir se o mesmo
tivesse ocorrido com Marie Curie?

Agradecimentos
Este trabalho foi desenvolvido com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

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His tria, Filos ofia e Sociologia da Cincia na Educao em Cincias

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