Questões de Gênero Na Ciência e Na Educação
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Resumo
Os aspectos que definem os ideais de masculinidade e feminilidade permeiam todas as reas
da sociedade, e a cincia inclusive, como evidenciam a histria e a filosofia da cincia . Esses
ideais, que por sculos assinalaram a esfera domstica como espao feminino, acabaram
limitando o acesso das mulheres educao e, por conseguinte, cincia. Desde a primeira
onda do movimento feminista, essa situao vem mudando ; contudo, diversos obstculos
ainda se interpem entre as mulheres e a carreira cientfica a educao cientfica, sutilmente
permeada pelo sexismo ainda e xistente na sociedade, sendo um deles. Um dos fatores que
afastam meninas da cincia, segundo estudiosos, a falta de modelos de cientistas mulheres.
Neste artigo, explora m-se o Prmio Nobel de F sica de 1903, que quase negligenciou Marie
Curie, e suas potencialidades, na formao de professores, para o reconhecimento desse
preconceito que ainda existe na cincia.
Uma pesquisa inicial inadvertida histria dos laureados do Prmio Nobel pode sugerir um
carter vanguardista da premiao. Em seu terceiro ano, o de 1903, uma mulher (Marie
Sklodowska C urie) foi premiada pela primeira vez e na cincia que, como ressaltam Gould
(1998) e Schiebinger (2001), geralmente considerada a mais masculina a fsica.
Infelizmente, a histria do Prmio em cincias no sustenta essa possvel primeira impresso:
nestes ma is de cem anos de lurea, apenas duas cientistas foram premiadas na fsica, quatro
na qumica e dez em medicina ou fisiologia.
Essas raras premiaes a mulheres cientistas revelam a desproporo entre os gneros na
atividade cientfica, fato conhecido, mas que vem mudando nos ltimos anos. Esse
desequilbrio , por sua vez, um reflexo social mais amplo; historicamente, as diferenas
profissionais, mesmo que sob a gide de escolha feminina/masculina, so, como os estudos
feministas do ltimo sculo mostram, imperativos sociais. Profisses em cincia, engenharia e
poltica so tradicionalmente consideradas masculinas, enquanto so tomadas como femininas
aquelas em educao, enfermagem ou as domsticas. Essa classificao historicamente
instituda, e as francas despropores entre os gneros nessas atividades propiciam a intruso
nelas de certos valores socialmente compreendidos para cada grupo.
Mesmo grande, o desequilbrio entre os gneros na cincia menor que o desequilbrio entre
os gneros dos laureados. Assim, esse grupo seleto de cientistas uma espcie de reflexo
agravado de uma atividade masculina. Schiebinger (2001) lembra que, apesar de haver um
crescente nmero de mulheres na atividade, elas ainda sofrem embargos sua entrada,
manuteno e reconhecimento na cincia, em todos os nveis da jornada inclusive na
escolha do merecedor anual da mais distinta lurea do empreendimento.
McGrayne (1994) cita diversas mulheres cujos trabalhos cientficos foram fundamentais para
a premiao de seus parceiros ou orientadores. Na fsica, especificamente, ela cita Lise
Meitner, C hein-Shiung Wu e Jocelyn Bell Burnell. Apesar da qualidade de seus trabalhos,
suas contribuies foram neutralizadas. difcil distinguir qual, dentre tantos fatores sociais e
histricos como guerras, xenofobia ou machismo, tornou-se o maior obstculo para cada uma
delas. A primeira vencedora, Marie Curie, poderia ter sido parte deste grupo de mulheres.
Este trabalho analisa o contexto social e histrico da Frana de 1903, levantando os possveis
fatores que levaram a lguns fsicos franceses a desprezar o trabalho de Marie C urie na
indicao ao P rmio Nobel de 1903, e o potencial didtico desse episdio para a discusso da
excluso das mulheres da cincia. Para compreender melhor a conjuntura social europeia,
discutem-se a primeira onda do feminismo e a histria do Prmio. Apontam-se enfim a lgumas
consequncias de preconceitos sutis na educao cientfica e as possveis contribuies de
uma aula de cincia pautada nesse episdio histrico para desconstruir tais concepes.
O termo fe minis mo, co mo s innimo de movimento das mu lheres e reivind icao de igualdade de direitos , foi
utilizado pela prime ira ve z por Hubertine Auclert, e m La Citoyenne, na dcada de 1880. O termo s e cons agrou
na dcada s eguinte, primeiramente na Frana, e ento entrando em outros pas es e s uas res pectivas lnguas .
Atualmente, o Pr mio Nobel inclui ta mb m a rea de economia u ma in iciat iva de 1969 do Sveriges
Riks Bank, a quem cabe s ua res pons abilidade financeira.
assoalho e cujo teto, aos pedaos, umedecia o local o que, muitas vezes, os fez perder as
delicadas pores enriquecidas de rdio que com muito esforo conseguiram (QUINN, 2011).
Para Feldman (2000), mesmo sendo fa tores impressionantes, o anonimato e as condies
precrias de trabalho no fora m o motivo maior da polvorosa miditica provocada pelo
Prmio de F sica de 1903. A imprensa estava mesmo interessada em Madame C urie,
imigrante polonesa que estudou fsica e ma temtica em Paris com pouqussimas condies
financeiras. Mesmo na Belle poque, os ganhos feministas ainda no haviam conseguido a
aceitao das mulheres no espao acadmico. A mulher que estudava, como se viu, era o alvo
preferido dos reacionrios. As mulheres acadmicas, especialmente em cincias, eram em sua
maioria estrangeiras. Marie C urie foi pioneira entre as doutoras em cincia da Europa. Com a
nomeao, o casal tornou-se um cone. Em um momento histrico em que as reivindicaes
femininas ganhavam cada mais espao, mas tambm sofriam srias crticas e impedimentos, a
deciso do Comit Nobel em premiar uma mulher tambm o elevou condio de mito.
Anualmente, as acade mias des ignadas (Pa z: Pa rla mento Noruegus ; Literatura: a Aca de mia de Letras de
Es tocolmo; Medic ina ou Fis io logia: o Karolins ka Medica l Ins titute de Es tocolmo; Fs ica e Qu mica: a Acade mia
Sueca de Cincias ) apontam cinco de s eus me mb ros para es colher nomeadores , recolher s uas suges tes e com
His tria, Filos ofia e Sociologia da Cincia na Educao em Cincias
Em 1901, Madame Curie foi sugerida para o Prmio de F sica pelo mdico Charles-Joseph
Bouchard, patologista influente, membro da Academia Francesa de Medicina. Naquele ano,
entretanto, ele foi o nico a sugeri- la. J em 1902, alm de Bouchard, dois fsicos tambm
nomearam Marie C urie, juntamente com P ierre C urie e Becquerel: Jean-Gaston Darboux,
reitor da Faculdade de C incias da Universidade de Paris, e Emil Warburg, influente fsico
alemo, membro da Academia Prussiana de Cincias. J o fsico leuthre Mascart sugeriu
apenas P ierre naquele ano. Segundo Q uinn (2011), porm, fosse a radioatividade premiada
em 1902, dificilmente negligenciariam Marie Curie, em virtude das nomeaes conjuntas.
Estranhamente, a situao mudou de figura no ano seguinte. leuthre Mascart, juntamente
aos tambm fsicos franceses, Gabrie l Lippmann, Jean-Gaston Darboux e Henri Poincar
assinaram uma carta nomeao em que sequer mencionavam o trabalho de Marie C urie. A
carta era quase inteiramente uma fico. A tribuam a P ierre o estudo de diferentes minerais
de urnio e trio e o enriquecimento de duas novas substncias. Disseram que, juntos, P ierre
e Becquerel competiam com rivais estrangeiros pelo suprimento de rdio e buscaram com
grande dificuldade alguns decigramas desse precioso material , fazendo suas pesquisas por
vezes juntos, por vezes separados. A carta conclua que parece impossvel para ns separar
os nomes dos dois fsicos, e, portanto, no hesitamos em propor que o Prmio Nobel seja
dividido entre Sr. Becquerel e Sr. Curie (QUINN, 2011, paginao eletrnica).
A omisso de Marie faria com que ela fosse desconsiderada da premiao de 1903. O Estatuto
do Prmio Nobel especifica a necessidade de uma nomeao para que o comit escolha o
laureado e naquele ano, e ela no fora nomeada. Contudo, um dos mais ativos e respeitado s
membros do comit, Gustav Mittag- Leffler, ao receber a carta, escreve u a P ierre,
questionando o desprezo repentino ao trabalho de Marie. Em sua resposta, P ierre enfatizou
sua preferncia por ser considerado juntamente sua esposa, pois seus trabalhos fo ram
colaborativos. Mittag-Leffler precisou de manobras burocrticas, a fim de nomear Marie
Curie; sua influncia e o fato de ela ter sido sugerida nos anos anteriores permitiram, ento,
que o casal dividisse com Becquerel o Prmio da Fsica de 1903 (QUINN, 2011).
Ao ser anunciado, o prmio teve grande efeito nas imprensas francesa e mundial. Dependendo
da linha do jornal ou da revista, a descrio do trabalho do casal diferia. Alguns jornais
conservadores evitavam mencionar o trabalho de Marie Curie; outros, mais moderados,
insistiam em exp- la como colaboradora secundria, essencial para a concentrao de P ierre
em seus estudos. O outro lado tambm se mostrou, com a defesa de Madame C urie como
nica responsvel pelo trabalho, tratando seu marido como uma pea num jogo de aparncias.
De todo modo, era difcil conceber que um trabalho to rduo pudesse ser conduzido por um
casal em colaborao, especialmente quando se esperava das mulheres casadas o total cuidado
da casa e dos filhos. Certamente, essa conjunt ura familiar de cooperao, tpica dos C urie, era
bastante inusitada no comeo do sculo XX, e talvez se pudesse atribuir a esse cenrio uma
justificativa carta dos fsicos franceses. Entretanto, dois dos quatro signatrios estavam
bastante familiarizado s com os trabalhos da cientista; Lippmann apresentara a primeira
comunicao de Marie C urie Acade mia Francesa de C incias e foi, mesmo no ano de 1903,
o presidente da banca examinadora de sua tese de doutorado. Darboux, que um ano antes
sugerira ao Comit os C urie e Becquerel, mais frente viria a ser um grande defensor da
nomeao de Marie Curie Academia Francesa de Cincias (QUINN, 2011).
bas e nelas decidir u m vencedor, que deve s er aprovado, finalmente, pela acade mia. Dentre os nomeadores , tm
pos io permanente os me mb ros das prprias academias ; profes s ores de cincias e literatura de toda a
Es candinvia e nobelis tas podem enviar s uas suges tes . H tamb m nomea dores temporrios , geralmente
profes s ores de divers os ins titutos pelo mundo, que s o es colhidos , us ualmente, a cada dois anos .
matemtica, que fez enormes contribuies na qumica) e discutir esse que um dos aspectos
da natureza da cincia. Como bem aponta Prez et al (2001), a concepo elitista da cincia,
alm de propagar a ideia de que esse um empreendimento levado por gnios, restringe
tambm o que ser gnio: e m geral, homens, brancos e heterossexuais. O nmero de
mulheres na cincia hoje em dia seguramente mais expressivo que h um sculo ela,
afinal, feita em grandes grupos e conhece poucas fronteiras. No entanto, nossos livros e
escolas continuam com o hbito danoso de festejar apenas um punhado de nomes, escolhidos
por valores sociais que, como demonstram os levantes contraculturais, devem ser repensados.
Importa, certamente, contextualizar os acontecimentos daquele Prmio Nobel: como j dito
aqui, uma Europa que se transformava. Momentos histricos assim naturalmente presenciam
a queda de braos entre progressistas e reacionrios, e uma interpretao feminista do evento
demonstra que ele foi palco deste tipo de embate. Cabe perguntar se ainda hoje mulheres na
cincia passam por esse tipo de dificuldade e a resposta afirmativa, infelizmente. Elas tm
progresses mais lentas na carreira, ganham menos, encaram dupla jornada de trabalho e
ainda enfrentam assdio moral e sexual (SC HIEBINGER, 2001). Alm disso, na atual onda
de feminismo, tambm se presencia m manifestaes conservadoras contra os avanos das
mulheres em relao a direitos trabalhistas, vida domstica e, principalmente, vida sexual e
reprodutiva. Alunos e alunas que se deparem com esse episdio, devidamente transposto e
mediado por um professor preparado, podem comear a desenvolver algum senso crtico em
relao temtica e aplic- lo para identificar, em outros mbitos de suas vidas, a propagao
de desigualdade de gnero.
Por fim, cabe perguntar: o que seria da histria da fsica, em termos de representatividade de
mulheres, se Madame C urie no tivesse sido laureada naquele ano? Teria sido nomeada pela
segunda vez, na Q umica, em 1911? E as mulheres que se seguiram tambm na fsica (e
qumica) nuclear, como sua filha Irne Joliot-Curie, e Lise Meitner e Maria Goeppert-Mayer,
seriam cientistas amplamente reconhecidas? O exemplo de Meitner bastante valioso e
sugestivo; indicada pelo menos quinze vezes aos Prmios de Q umica e F sica
(GONALVES-MAIA, 2012), foi negligenciada pelo Prmio Nobel da Q umica de 1944, que
laureou somente seu parceiro, Otto Hahn. S uas reais contribuies tambm foram por muito
tempo relegadas por museus de cincias, instituies, festividades sobre a descoberta da fisso
nuclear e mesmo por historiadores da cincia (SIME, 1989). O que se pode inferir se o mesmo
tivesse ocorrido com Marie Curie?
Agradecimentos
Este trabalho foi desenvolvido com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico (CNPq).
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