Contra-Antropologia, Contra o Estado: Uma Entrevista Com Eduardo Viveiros de Castro
Contra-Antropologia, Contra o Estado: Uma Entrevista Com Eduardo Viveiros de Castro
Contra-Antropologia, Contra o Estado: Uma Entrevista Com Eduardo Viveiros de Castro
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Revista Habitus: Boa tarde, Eduardo Viveiros de Castro. Gostaramos primeiramente de
agradec-lo por aceitar o convite dessa entrevista. Para abrir a entrevista, gostaria, por
gentileza, que o senhor nos dissesse como se deu seu interesse pela Antropologia, ainda como
estudante de Cincias Sociais na PUC.
Eduardo Viveiros de Castro: J contei tudo isso em diversas entrevistas. Mas para quem
nunca as leu, e tiver algum interesse nessa desinteressante biografia de um acadmico da classe
mdia carioca... Enfim. Fui fazer Cincias Sociais um pouco por acaso, mas no completamente
por acaso. Me formei no ensino mdio em 1968, quando o mundo estava pegando fogo, e o
Brasil tambm. 68 o ano da morte de Edson Luiz, da Marcha dos Cem Mil, o momento do AI5. Quando entrei para a PUC, as universidades pblicas estavam destrudas por causa das
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Revista Habitus: Voc chegou a fazer etnografia sobre essas novas formas de sociabilidade?
EVC: Eu no cheguei, de fato, justamente porque eu vivia nesse ambiente. Comecei a fazer algo
semi-estruturado, mas isso no durou nem um ano. A partir de 1975 eu comecei a estudar
antropologia pra valer, como aluno do mestrado do PPGAS (que tinha apenas mestrado, naquela
poca; o doutorado s comeou em 1977, fui o segundo doutor a defender tese no PPGAS, em
1984). Antes, eu s lera Lvi-Strauss, e muitas outras coisas que, do ponto de vista do que se
ensinava no Museu, pouco tinham a ver com antropologia: semitica, teoria literria, filosofia,
lingustica.... No entendia nada de antropologia social, a no ser aquela feita por Lvi-Strauss,
de quem eu tinha lido praticamente tudo. E ento comecei a ler os autores que antroplogos
lem: Malinowski, Boas, Sapir, Radcliffe-Brown, Bateson, Fortes, Firth, Evans-Pritchard,
Sahlins
etc. Foi quando , e porque, comecei a estudar Antropologia para valer que eu sa do
grupo que eu frequentava. No tinha tempo de ficar o tempo todo na rua, ou nas festas, no Baixo
Leblon, chapado de Mandrix (aposto que vocs nem sabem o que isso...) ou ligado de p.
Comecei a passar de 8 a 12 horas por dia lendo e estudando.
Ento conheci Roberto DaMatta, quem foi meu professor no primeiro ano. Eu era
orientando do Gilberto Velho, visto que tinha um projeto na rea de antropologia urbana, mas
comecei a me interessar pela teoria do parentesco e a antropologia clssica que o DaMatta
ensinava em seus cursos. Havia um aspecto meio formal, matemtico, e eu gostava desse tipo de
coisa, com a qual j tinha tido contato por via dAs estruturas elementares de Lvi-Strauss, que
lera na faculdade. Surgiu-me, ento, uma oportunidade de eu visitar o Xingu: uma linguista do
Museu, Charlotte Emmerich, convidou meia dzia de alunos para ir com ela passar 15 dias de
frias no Xingu. Como eu estava de saco cheio de meu trabalho em antropologia urbana, aceitei
o convite.
Quando cheguei ao Xingu, eu tinha uma viso do Brasil totalmente livresca, muito
abstrata. No tinha ideia de como era o interior do Brasil, o cerrado, a Amaznia. Eu era um
carioca bacana da praia, Zona sul, classe mdia alta, que via o mundo a partir disso. Quando
cheguei no Xingu, fiquei absolutamente maravilhado. O ambiente do Xingu, os ndios, a luz, os
rios, a paisagem, tudo. Era uma coisa espetacular. Os ndios do Xingu so especialmente
espetaculares, do ponto de vista visual. Fiquei fascinado por aqueles ndios de vitrine, que ao
vivo eram muito mais interessantes do que na vitrine isto , nas reportagens dO Cruzeiro e da
Manchete e decidi: isto que eu quero estudar.
Roberto DaMatta era o etnlogo do Museu na poca, e decidi ento que iria trabalhar
com ele. Entrei em 1974 aqui como aluno de mestrado, e todos os outros etnlogos tinham ido
para Braslia. Roberto Cardoso de Oliveira, Julio Cesar Melatti, Roque de Barros Laraia, todos
estavam em Braslia. Minha dissertao de mestrado foi defendida aqui em 77, foi a 37 tese de
mestrado defendida no Programa e apenas a segunda que tratava de ndio. As outras teses eram
sobre campesinato, operariado, ou sobre questes urbanas.
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a questo no
contexto de uma compreenso dos Yudj, enquanto eu, sempre com minha tendncias
abstrativas (tipicamente masculinistas, diro outros, ou melhor, outras), j me apressava em
generalizar.
O perspectivismo, na verdade, j tinha me aparecido na tese sobre os Arawet. O que
aconteceu pra mim foi um encontro entre minha teoria sobre o canibalismo Tupi e o que a Tania
estava desenvolvendo a partir de sua magnfica etnografia dos Yudj, sobre a relao entre
humanos e porcos, entre humanos e no-humanos, no xamanismo e na caa, e quais as
implicaes mais amplas disso. Ento foi convergncia dessas duas linhas de reflexo. A noo
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o matador e o
prisioneiro, que precedia a execuo cerimonial do cativo, descrito ou glosado pelos cronistas do
sculo XVI. Parecia haver nestes dilogos uma estranha ressonncia de perspectivas, porque o
matador dizia para o inimigo: "Voc foi o homem que matou meus parentes?" e o cara dizia
"Fui", e o matador dizia: "Ento voc vai morrer" e o prisioneiro falava "No, voc quem vai.
Voc j morreu, voc est morto. Meus parentes logo viro me vingar". Anchieta, ao descrever
esta cena, comentava: mais parecia que o que estava para morrer era o que estava para matar.
Ou seja, parecia que o matador era a vtima. Ento eu fiz uma espcie de teoria segundo a qual
o canibalismo envolvia um processo de captura do ponto de vista do outro, uma atualizao
dramtica da capacidade de se colocar no ponto dos outros para se ver a si mesmo enquanto
inimigo. Minha tese termina com isso: o perspectivismo e o canibalismo Tupi so uma
ocupao do ponto de vista inimigo e uma percepo de si mesmo enquanto outro.
Quando isso se cruzou com os trabalhos da Tania Stolze sobre como os porcos veem os
homens e como os homens veem os porcos, comecei a unir na minha cabea todos os exemplos
que eu tinha na memria. Na minha pesquisa entre os Yawalapiti, por exemplo, lembrava que
eles diziam: "os mortos, eles comem grilo, mas eles pensam que peixe; gente macaco de
ona, e assim por diante. A comecei a passear pela literatura e achei uma imensa quantidade
de informaes sobre o perspectivismo. Isso nas trs Amricas, mas sobretudo na Amaznia e
no extremo norte da Amrica do Norte.
Comeou a aparecer uma srie de dados que nunca ningum havia sistematizado, e que
revelava uma anti- ou contra-antropologia,, envolvendo uma outra maneira pensar a relao
entre natureza e cultura, o universal e o particular, o corpo e a alma. Isso parecia resolver uma
srie de problemas clssicos da etnologia amerndia. Por que o corpo to importante na
Amaznia? Porque o lugar onde que voc inscreve a perspectiva humana. A pertena a um
grupo marcada por uma interveno sistemtica sobre o corpo: pinturas, tatuagens,
escarificaes, perfuraes, depilaes, plumria etc. Por que os ndios acham que pra voc
aprender a lngua deles voc tem primeiro que comer a comida do grupo? Ou porque acham que
virar branco algo que acontece quando se comea a comer comida de branco, a se vestir
como branco, a ter relaes sexuais com branco e no a pensar como branco? O
perspectivismo se deve ao cruzamento da minha teoria intra-humana do canibalismo j que
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Revista Habitus: Aps alguns anos a sua lecture em Cambridge, o perspectivismo adquiriu
projeo internacional, influenciando etnlogos que trabalhavam em outras regies
etnogrficas, como a Sibria e a Monglia. O conceito de perspectivismo permite abranger
diversas regies etnogrficas, elsewhere Amaznia?
EVC: O perspectivismo de fato ganhou uma projeo internacional, eu acho que em larga
medida porque eu apresentei essas conferncias em Cambridge, que, junto com a Universidade
de Chicago e o Laboratrio de Lvi-Strauss em Paris, um dos trs principais centros do
pensamento antropolgico mundial. O fato deu ter dado essas conferncias l, e publicado o
artigo em ingls, deu-lhe uma audincia que no teria adquirido se mantido o trabalho em
portugus.. Ainda que, assim que ele saiu publicado em portugus, em 1996, o pessoal que lia
nossa lngua, isto , os americanistas, sobretudo os franceses, ficaram de orelha em p e
registraram a importncia das ideias ali levantadas. Importncia suficiente para muitos
correrem para cair de pau em cima, inclusive.
A possibilidade do tema do perspectivismo ser etnogrfica e teoricamente relevante para
alm das fronteiras da Amrica indgena evidente. O caso da Sibria o mais bvio. Os
materiais siberianos tm vrias semelhanas com os amaznicos, seja porque existe um fundo
paleoltico que junta a Sibria com a Amrica, seja porque o perspectivismo mostra muitas
afinidades com a prxis dos povos caadores: um caador precisa pensar como a presa para
peg-la. Alm disso, o perspectivismo indgena passa pela boca tanto quanto pelos olhos: seu
problema saber quem come quem. E como quem come v, e visto, por quem comido, e
vice-versa. Eu vejo tal coisa como comida, essa coisa me v como comedor, e assim por diante.
O perspectivismo faz parte dessa ontologia oral-canibal que pan-amaznica, talvez panindgena, talvez pan-humana: "quem come quem" (predador vs. presa), quem come como eu
como (congnere), quem come com quem" (comensal, parente, aliado), quem d comida para
quem (pais e filhos, donos e animais de estimao), Enfim, comer uma operao fsica e
metafisica fundamental. Parente aquele que come comigo - a comensalidade. Toda a teoria do
parentesco passa por isso: quem que me d de comer, a quem eu dou de comer, o que eu no
posso comer porque um parente est doente etc..
A sia setentrional mostrava vrios fenmenos que ressoavam com os materiais
amerndios. O primeiro a registr-los foi Morten Pedersen, meu contemporneo em Cambridge,
para a Monglia. Rane Willerslev, em seguida, viu grandes semelhanas em sua etnografia dos
Yukaghir da Sibria. Entretanto, como a Sibria no a Amaznia, Willerslev no sou eu e
sempre preciso d algo diferente do outro, quando mais no seja para ter algo a dizer, Rane
comeou a me criticar. Outros o seguiram, frequentemente com muito menos inteligncia e
honestidade intelectual do que ele. Crticas etnogrficas, crticas tericas, crticas supostamente
polticas todo tipo de crticas. Algumas simplesmente (e pertinentemente) ajustam o modelo
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Revista Habitus: Para mudar um pouco a direo da entrevista, gostaria que voc falasse
um pouco de sua aproximao com a filosofia: em 2009, foi publicado o livro Mtaphysiques
Cannibales, cujo objetivo era de apresentar seus artigos a um pblico francs ligado
filosofia. E ainda em 2014, o senhor publicou, em coautoria da filsofa Dbora Danowski, o
livro Ensaios sobre o fim do mundo.
EVC: O Mtaphysiques cannibales pode ser considerado um livro de divulgao, j que rene
artigos j publicados em portugus ou em ingls e os reescreve com um pblico de noantroplogos em mente, especialmente um pblico com formao filosfica. O livro tem uma
certa unidade, mas um pouco o resumo de tudo isso que ns viemos falando nesta entrevista,
apenas apresentado a um pblico mais ligado a filosofia, ou menos familiarizado com a
antropologia. um livro busca explicar quais so as potencialidades para a reflexo filosfica,
quais as promessas especulativas de um pensamento radicalmente outro, um pensamento que
no-ocidental, no-letrado, no-capturado pelo Estado. O livro se chama metafsicas no plural,
entre outras coisas porque a coleo que ele inaugurou se chama MtaphysiqueS, com um S
grande no fim, no plural portanto. e isso deve ter custado um pouquinho aos filsofos que
conceberam a coleo, visto que para a filosofia, classicamente, s h uma metafsica, certa ou
errada. MetafsicaS significa que h outros mundos, com outras metafsicas, e que essas outras
metafsicas esto em posio potencial de dilogo ou confronto com a nossa. Ou at mais do que
isso. Como argumenta Patrice Maniglier, um dos fundadores da coleo e a pessoa responsvel
por meu livro ter entrado nela (t-la aberto, de fato), nossa metafsica s tem sentido se
concebida como variao estrutural dentro desse conjunto de metafsicas possveis que a
espcie humana vem elaborando ao longo da sua histria.
O outro livro, que escrevi com a Dborah Danowski, filsofa (somos casados), um livro
que j me coloca em outro lugar, embora tenha uma relao com meu trabalho anterior e com a
problemtica da antropologia tal como a entendo, a saber, como centrada na emancipao
conceitual dos povos indgenas, na descolonizao permanente do pensamento. A
autodeterminao ontolgica dos povos, como eu chamei o objetivo, a meta visada pela
antropologia. A ideia de que existem outras metafsicas preparava, no meu trabalho anterior, a
ideia que comeamos a esboar nesse outro livro (H mundo por vir? Ensaio sobre os medos e
os fins, publicado em 2014 pela Cultura e Barbrie e pelo Instituto Socioambiental), que trata da
crise metafsica atual do ocidente, que est diretamente associada a uma crise fsica a
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Revista Habitus: A Antropologia tem o papel de pensar tais diferentes formas de imaginar a
relao entre o homem e o mundo? Voc enxerga esta preocupao mesmo em seus trabalhos
antigos, e desde sua experincia com os Arawet?
EVC: Tem. Em primeiro lugar, ela deve criticar seu prprio nome. A Antropologia tem que
redefinir radicalmente o que o anthropos da antropologia, e qual o seu mandato como
disciplina. O mandato da antropologia dissolver o homem, j dizia Lvi-Strauss. Dissolver o
homem no afirmar que o homem no existe, mas que o homem enquanto estado de exceo
ontolgico no existe, ele uma ilegitimidade csmica ambulante. preciso aprender a existir
como se esse homem no existisse, pois o risco que corremos hoje de deixar de existir
empiricamente e ponto. Ns estamos nos suicidando como espcie. Na medida em que ela
mostra a existncia de outras formas de existir como ser humano, a antropologia permite
perceber que o caminho que os ocidentais esto seguindo no nico possvel. E que portanto,
h esperana; se no no futuro, h esperana no passado. O que j alguma coisa...
Eu vejo minha opo pela antropologia, e minha experincia com os Arawet, como uma
forma de escapar seguir uma linha de fuga. Em algum lugar, Lvi-Strauss comenta meio
brincando que quem no est satisfeito consigo mesmo, vira psiclogo; quem no est satisfeito
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NOTAS
*Paulo Bull integrante do Comit Editorial da Revista Habitus.
Alm dele, foram responsveis pela transcrio da entrevista, Camila Bevilaqua Afonso, Ceci
Penido da Cunha, Isaura de Aguiar Maia e ria de Carvalho e Borges.
[1] STRATHERN, Marilyn. 2014. O Efeito Etnogrfico. Ed. Cosac Naify. Rio de Janeiro. 572p.
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