2012 AngelaDasNeves1
2012 AngelaDasNeves1
2012 AngelaDasNeves1
Contistas Maupassant:
So Paulo
2012
Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Letras Modernas
Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos, Literrios e
Tradutolgicos em Francs
Contistas Maupassant:
So Paulo
2012
AGRADECIMENTOS
Profa. Dra. Gloria Carneiro do Amaral, por ter me sugerido um tema to
motivador para pesquisa, nos idos de 2001, pela preciosa orientao durante uma dcada
de estudos e por compartilhar generosamente suas descobertas, produzindo em mim
verdadeiras epifanias literrias, como ao colocar em minhas mos a carta original de
Machado de Assis a Lcio de Mendona, datada de 2 de abril de 1901.
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, pela concesso da
bolsa de doutorado e pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa.
Profa. Dra. Maria Ceclia Queiroz Pinto e Profa. Dra. Brigitte Hervot, pelas
observaes precisas durante a banca de qualificao, por diversas indicaes
bibliogrficas e pelas ricas sugestes para a melhoria deste trabalho.
Profa. Dra. Maria Cristina Batalha, cujos textos muito acrescentaram s
minhas reflexes sobre Maupassant e as pginas esquecidas dos contistas brasileiros
aqui apresentados.
Profa. Dra. Regina Pontieri, com quem tive o prazer de entrar em contato j
no final desta pesquisa, ainda a tempo de me fazer repensar a potica do conto
maupassantiano num grande continuum que a irmana de outros mestres do gnero.
Ao Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos, de quem fui aluna desde a graduao,
agradeo as sugestes em diversos momentos desta pesquisa, como no III Encontro de
Pesquisas da rea de Francs, em 2011.
Ao IEB, Biblioteca Mrio de Andrade e seus funcionrios, pelo acesso e pela
permisso de fotografar, para os fins desta pesquisa, livros raros de Medeiros e
Albuquerque e de Viriato Correia. seo de obras raras da Biblioteca Central da
Unicamp, em especial sua diretora tcnica, Tereza Cristina Carvalho, pela presteza no
acesso aos livros consultados de Ribeiro Couto, pertencentes ao acervo de Srgio
Buarque de Holanda.
Association des Amis de Flaubert et de Maupassant e ao M. Daniel Fauvel,
que mobilizaram pesquisadores do mundo todo a se reunirem em Rouen para o
Colloque International La Rception de Guy de Maupassant, em novembro de 2010.
Aos amigos sempre receptivos durante minhas pesquisas na Frana, Mme. Colette
Chopart e Jos Maria Ventura, mais uma vez, muito obrigada.
Aos amigos e colegas do grupo de pesquisas, Fabiana, Grace, Isabella, Ana e
Jos, pelas discusses e pelas dificuldades compartilhadas durante nossas reunies.
Aos meus pais, Armando e Ana, aos meus irmos, Augusto, Armando, Ana e
Adriana, pelo amor, pela amizade e pelo apoio incondicional em todos os momentos.
Ao Luciano, pelo amor, pelo caminho trilhado, pela companhia constante.
RESUMO
Diversos estudiosos apontaram a proximidade das realizaes de contistas
brasileiros com a obra de Guy de Maupassant (1850-1893). Nesta tese, propomos um
estudo paralelo da contstica de Maupassant com a obra de oito escritores, que
produziram a maior parte de seus textos entre 1880 e 1940: Lcio de Mendona,
Medeiros e Albuquerque, Simes Lopes Neto, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Viriato
Correia, Gasto Cruls e Ribeiro Couto. Nosso objetivo avaliar como ocorreu a
recepo criativa do escritor francs nesse perodo, no Brasil, por meio da observao
dos que o leram e o citam em suas obras. Na primeira parte, fazemos um estudo do
conjunto da obra de Guy de Maupassant, de cada gnero a que o escritor se dedicou, o
que nos fornece uma viso aprofundada e de conjunto de sua potica. A partir de uma
tipologia de suas narrativas curtas, em que se valoriza sua riqueza e variedade de formas
e temas, sugerimos uma abordagem comparativa com os escritores brasileiros, que nos
ocupa na segunda parte deste trabalho. Nos captulos dedicados a cada escritor
brasileiro em questo, fazemos uma apresentao de nomes e obras, na maioria das
vezes pouco conhecidos do pblico em geral, pois pouco referidos em manuais de
literatura brasileira ou em estudos sobre o conto no Brasil. Com exceo de Simes
Lopes Neto, Monteiro Lobato e Lima Barreto, os demais contistas possuem ainda raros
estudos a respeito de suas obras, constatao que aqui pretendemos ajudar a corrigir. A
seleo dos textos brasileiros estudados reflete o duplo movimento da argumentao da
tese comparativa com o conto maupassantiano e o da valorizao de narrativas
exemplares de contistas brasileiros, hoje injustamente esquecidos. Se esse grupo de
escritores obteve, por meio da leitura de Maupassant, uma motivao para a criao de
seus contos, por outro lado, colaboraram individualmente para a escrita de obras-primas
bastante originais no gnero, no Brasil de seu tempo. O momento aqui recortado revela
diversos nomes importantes que, juntos ao de Machado de Assis, contriburam para a
firmao do conto brasileiro.
ABSTRACT
Several scholars have pointed out the proximity of the work of Brazilian writers
with the Guy de Maupassants canon (1850-1893). In this work, we propose a parallel
study of Maupassant short stories with the work of eight writers, who produced most of
their writings from 1880 and 1940: Lcio de Mendonca, Medeiros e Albuquerque,
Simes Lopes Neto, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Viriato Correia, Gasto Cruls and
Ribeiro Couto. Our goal is to evaluate how the creative response of the French writer
was during this period, in Brazil, through the reading of those who read and cited him in
their works. In the first part, the study of Guy de Maupassants complete work and each
genre that the writer devoted himself will provide an in-depth understanding of his
poetry. In the second part, from a typology of his short stories, in which its richness and
variety of shapes and themes are valued, we suggest a comparison with the Brazilian
writers. In chapters devoted to each Brazilian writer in question, we do a presentation of
names and works, mostly little known to the general public, as referenced in some
manuals of Brazilian literature or studies on the short story in Brazil. With the exception
of Simes Lopes Neto, Monteiro Lobato and Lima Barreto, there are few studies about
the works of the other storytellers, finding that here we intend to help correct. The
selection of the Brazilian texts reflects the double movement of the argument of this
work comparing with the narrative of maupassantian short stories and the appreciation
of outstanding Brazilian storytellers, today unjustly forgotten. If this group of writers
were motivated by reading Maupassant on the one hand, on the other hand they
collaborated individually for writing highly original masterpieces in the genre of their
time in Brazil. The moment studied in this work reveals several important names who,
along with Machado de Assis, contributed to establishing the Brazilian short story.
RSUM
Plusieurs critiques ont soulign la proximit des ralisations des crivains
brsiliens avec luvre de Guy Maupassant (1850-1893). Dans cette thse, nous
proposons une tude parallle des contes et nouvelles de Maupassant avec les uvres de
huit conteurs, qui ont produit la plupart de leurs crits entre 1880 et 1940: Lcio de
Mendona, Medeiros e Albuquerque, Simes Lopes Neto, Monteiro Lobato, Lima
Barreto, Viriato Correia, Gasto Cruls et Ribeiro Couto. Notre objectif est dvaluer
comment la rception crative de lcrivain franais a eu lieu dans cette priode, au
Brsil, par lobservation de ceux qui lont lu et le citent dans leurs uvres. Dans la
premire partie, nous prsentons luvre de Guy de Maupassant, chaque genre littraire
auquel il sest consacr, ce qui nous permet une vision approfondie et de lensemble de
sa potique. partir dune typologie de ses rcits courts, o la richesse et la varit de
formes et thmes sont valorises, nous proposons une approche comparative avec les
crivains brsiliens, ce qui nous occupe dans la deuxime partie de ce travail. Dans les
chapitres consacrs chaque crivain brsilien en question, avant les analyses
comparatives, qui ont pour but dlargir la discussion leur sujet, nous prsentons des
noms et des uvres, la plupart des fois peu connus du publique en gnral, puisque peu
prsents dans les manuels de littrature brsilienne ou dans des tudes concernant le
conte au Brsil. lexception de Simes Lopes Neto, Monteiro Lobato et Lima Barreto,
les autres conteurs sont encore peu tudis, constatation quon veut aider corriger. Le
choix des textes brsiliens tudis illustre le mouvement double de largumentation de
la thse comparative avec le conte maupassantien et de lapprciation de rcits
exemplaires des conteurs brsiliens, aujourdhui malheureusement oublis. Si dune part
ce groupe dcrivains a obtenu, travers la lecture de Maupassant, une motivation pour
la cration de leurs histoires, dautre part ils ont collabor individuellement pour
lcriture de chefs-duvres trs originaux dans le genre au Brsil de leur temps. Le
moment ici dcoup rvle plusieurs noms importants qui, avec celui de Machado de
Assis, ont contribu pour la fixation dune forme historique du conte brsilien.
SUMRIO
Introduo ...................................................................................................................... 11
INTRODUO
Oh, spirit of Maupassant, come to my aid! This
may be a triumph of robust and vivid concision:
and certainly ought to be.1
JAMES, Henry. March 11th 1888. The notebooks of Henry James. New York: Oxford University Press,
1947. p. 89.
2
CARPEAUX, Otto Maria. Histria da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Edies O Cruzeiro, 1963. v. 5.
p. 2423.
3
ANDRADE, Mrio de. Contos e contistas. O empalhador de passarinho. 3. ed. So Paulo: Martins;
Braslia: INL, 1972. p. 7. O artigo data de 13 set. 1938.
4
VERSSIMO, Jos. Alguns livros de 1900. Estudos de Literatura Brasileira. 3. srie. Belo Horizonte;
So Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977. p. 131.
11
AUERBACH, Erich. Frate Alberto. Mimesis: a representao da realidade na literatura ocidental. 3. ed.
So Paulo: Perspectiva, 1994. p. 182-190.
6
No promio, o narrador bocacciano apresenta indefinidamente as formas das cem narrativas que
sucedero: [...] intendo di raccontare cento novelle, o favole o parabole o istorie che dire le vogliamo,
raccontate in diece giorni da una onesta brigata di sette donne e di tre giovani nel pistelenzioso tempo
della passata mortalit fatta [...]. BOCACCIO, Giovanni. Decameron. 8. ed. Milano: Mondadori, 2001.
p. 7. Agradecemos Profa. Regina Pontieri pela observao sobre essa variedade formal do Decameron.
7
AUERBACH, Erich. Op. cit., p. 186.
12
sabe dar conselhos.8 Esse poder sugestivo evita que ele tenha de dar muitas
explicaes, pois o leitor livre para interpretar a histria como quiser.9 Isso se
justifica pela sabedoria prtica do narrador, por seu dom de demover os pensamentos e
levar seu leitor reflexo. Para Benjamin, essa relao ingnua, entre o ouvinte e o
narrador, deve-se ao interesse em conservar o que foi narrado,10 de modo que ele ser
parte ativa da transmisso, por meio de sua memria.
Para Benjamin, as duas profisses principais do narrador so a de marinheiro
(o homem que viaja) e a do campons (a do sujeito que permanece em sua terra).
Veremos como, nos contos de Maupassant e de alguns contistas brasileiros, a
atividade do narrador como um sujeito experiente, habituado a ouvir confisses e
segredos (como o mdico, o juiz), e a idade so caractersticas comuns logo atribudas
a seus narradores.
Alguns tericos do conto literrio reduzem a duas as correntes contsticas
modernas, de modo que, se um contista no maupassantiano isto , cujos contos so
anedticos, centrados em acontecimentos , certamente tchekhoviano de atmosfera
ou lrico, em que sempre esperamos que algo acontea.11 No entanto, Cleusa Pinheiro
Passos observou que embora parte da crtica considere que depois de Maupassant as
buscas da contstica deveriam ser conduzidas em direo distinta, no se pode negar que
Tchekhov, mestre impecvel nessa arte, muitas vezes, em pontos especficos, se
aproxima de Flaubert e Maupassant [...].12 Raimundo Magalhes Jnior inclui entre os
contistas modernos tambm Katherine Mansfield, como uma terceira via, mas pondera:
Como num jogo de bilhar, em que uma bola impulsiona a segunda e esta, por sua vez,
dinamiza uma terceira, a influncia do francs se fez sentir sobre o russo e a deste sobre
a neozelandeza.13
BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da
cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 200. O texto data de 1936.
9
Idem, p. 203.
10
Idem, p. 210.
11
Cf. Alceu Amoroso Lima: [...] o conto mais moderno, inspirado sobretudo em Tchecov, como o conto
realista se inspirara em Maupassant. LIMA, Alceu Amoroso. A evoluo do conto no Brasil. In:
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Curso de conto: Conferncias realizadas na Academia
Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 1958. p. 23. Herman Lima fala na estratificao definitiva que lhe
dariam mais tarde, de um lado, Guy de Maupassant, do outro, Anton Tchecov e conclui: Por mais que
se procure fugir, Maupassant e Tchecov so os dois plos e todo conto h de filiar-se ora a um, ora a
outro [...]. LIMA, Herman. Variaes sobre o conto. Rio de Janeiro: Edies de Ouro, 1967. p. 18 e 20.
12
PASSOS, Cleusa Pinheiro. Breves consideraes sobre o conto moderno. In: BOSI, Viviana et al.
(Org.). Fices: leitores e leituras. So Paulo: Ateli Editorial, 2001. p. 75.
13
MAGALHES JNIOR, Raimundo. Trs mestres do conto. A arte do conto: sua histria, seus
gneros, sua tcnica, seus mestres. Rio de Janeiro: Bloch, 1972. p. 285.
13
FUSCO, Richard. Maupassant and the American short story: the influence of form at the turn of the
century. [s.l.]: The Pennsylvania State University Press, 1994. p. 119 e 121.
15
ZIEGER, Karl. Arthur Schnitzler un Maupassant autrichien. In: BENHAMOU, Nolle (Org.). Guy
de Maupassant. Amsterdam/New York: Rodopi, 2007. p. 72-80.
16
CESAR, Guilhermino. Dois momentos de Lobato. Letras de Hoje. Porto Alegre: PUC-RS, n. 49, set.
1982. p. 11.
17
MONTELLO, Josu. O conto brasileiro de Machado de Assis a Monteiro Lobato. In: ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS. Curso de conto: Conferncias realizadas na Academia Brasileira de Letras.
Rio de Janeiro, 1958. p. 138. Jos Verssimo, no artigo citado, da mesma opinio, vinculando o autor
brasileiro mais aos contos filosficos franceses do sculo XVIII. VERISSIMO, Jos. Op. cit., p. 132.
14
LIMA, Herman. Evoluo do conto. In: COUTINHO, Afrnio. A literatura no Brasil. 6. ed. So Paulo:
Global, 2002. v. 6. p. 50. MONTELLO, Josu. O conto brasileiro de Machado de Assis a Monteiro
Lobato. Op. cit., p. 156.
19
COUTINHO, Afrnio. A literatura no Brasil. Op. cit., v. 4. p. 376.
20
MARTINS, Wilson. Pontos de vista: crtica literria. So Paulo: T. A. Queiroz, 1994. v. 8. p. 148.
21
LIMA, Herman. Op. cit., p. 49.
22
Cartas de 20/02/1905 e de 31/07/1907. LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. So Paulo:
Brasiliense, 1948. t. I. p. 95 e 188.
15
uma corrente veja-se o caso de Lobato e Mrio. Nosso trabalho busca mostrar como
essa tradio do conto maupassantiano ocorreu por aqui, seja por meio da tentativa de
cpia do paradigma francs, seja pelo desvio dele, entre realistas, decadentistas, prmodernistas e modernistas. Usar um modelo para seguir seu caminho pessoal , alis, a
tendncia dos grandes contistas, que criam a sua prpria vertente e sua forma especfica
de conto.
Considerado o grande nmero de contistas Maupassant, invivel para um
estudo analtico, procuramos restringir nosso foco queles que foram mais comparados
pelos crticos com Maupassant (captulos sobre Lcio de Mendona e Viriato Correia),
ou que colocassem pessoalmente suas obras sob a gide do escritor francs (Medeiros e
Albuquerque, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Gasto Cruls e Ribeiro Couto). O caso
especial de Simes Lopes Neto, em que no h referncias sobre suas leituras e apenas
um crtico o coloca na esteira de Maupassant, deve-se a uma observao bastante
particular que fizemos de Contos gauchescos ao lado de Contes de la Bcasse.
Trabalharemos aqui, portanto, com um elenco de contistas que produziram suas
narrativas no momento de maior divulgao da obra de Maupassant no Brasil e que tm
em comum, em sua maioria, a leitura do contista francs, demonstrada, na maior parte
dos casos, por referncias a ele em cartas, artigos, entrevistas, contos ou epgrafe de
conto. A publicao de suas obras de contos est concentrada num perodo bastante
delimitado, entre 1880 e 1940, que consideramos equivalente primeira recepo
criativa de Maupassant no Brasil.
Ainda que os estudiosos acima mencionados apresentem esses contistas
brasileiros sob esse molde, raramente dizem a que textos de Maupassant se referem
exatamente, como se o rtulo Maupassant fosse claro o suficiente para a
compreenso das obras desses contistas. Somente o estudo aprofundado da obra de
Maupassant e a compreenso da sua variada produo contstica o que procuramos
ilustrar na primeira parte desta tese , seguidos da anlise comparativa de contos dos
escritores brasileiros com outros exemplares do francs o que realizamos na segunda
parte permitiu conceituar o conto Maupassant para esses leitores, depreendendo
seus traos tpicos, segundo a recepo aqui recortada para estudo. Esses resultados so
apresentados na concluso desta tese. Podemos, por enquanto, apenas sugerir que a
recepo criativa de Maupassant no Brasil se oferece como uma resposta recepo
crtica dele por aqui, iniciada na dcada de 1880.
16
23
JAUSS, Hans Robert. Lhistoire de la littrature: un dfi la thorie littraire. Pour une esthtique de la
rception. Traduit de lallemand par Claude Maillard. Prface de Jean Starobinski. Paris: Gallimard,
1978. p. 53 (e 81), 26 e 50, respectivamente. O artigo original em alemo, Literaturgeschichte als
Provokation der Literaturwissenschaft, data de 1967.
24
Idem. A esttica da recepo: colocaes gerais. In: LIMA, Lus Costa (Org.). A literatura e o leitor:
textos de esttica da recepo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 80.
25
Idem. Lhistoire de la littrature: un dfi la thorie littraire. Op. cit., p. 49. Grifo nosso.
17
JAUSS. A esttica da recepo: colocaes gerais. In: LIMA, Lus Costa. Op. cit., p. 71.
Idem, p. 79.
18
28
A ideia de que certas definies mudam conforme a esttica de cada autor abordado percorre o trabalho
de Daniel Grojnowski, Lire la nouvelle: La conception de la nouvelle varie selon les poques mais
galement selon des esthtiques dauteurs. Lire la nouvelle. Paris: Nathan, 2000. p. 3. Da mesma ideia
partilhou Mrio de Andrade, com a sua clebre boutade: Em verdade, sempre ser conto aquilo que seu
autor batizou com o nome de conto. ANDRADE, Mrio de. Contos e contistas. O empalhador de
passarinho. Op. cit., p. 5.
29
Cf., por exemplo, carta de Maupassant ao editor Victor Havard, datada de 5 dc. 1891. Disponvel em
<http://maupassant.free.fr/cadre.php?page=oeuvre>. ltimo acesso em: 20 de junho de 2012.
30
VIAL, Andr. Maupassant et lart du roman. Paris: Nizet, 1954. p. 460-86. FORESTIER, Louis.
Introduction. In: MAUPASSANT, Guy de. Contes et nouvelles. Paris: Gallimard, 1974. (Bibliothque de
la Pliade). t. I. p. XXXV-XXXVIII. REBOUL, Pierre. Prface. In: MAUPASSANT, Guy de. Contes du
jour et de la nuit. Paris: Gallimard, 1984. p. 9.
19
[...] il est illusoire de vouloir distinguer, dans luvre dun Maupassant par
exemple, des contes et des nouvelles tout au plus peut-on dire que certains
textes placs dans un cadre cent cinquante chez ce dernier sont conts: par un
narrateur-acteur ou par un narrateur-tmoin.31
Nos demais volumes, geralmente intitulados pelo nome da novela principal (La
maison Tellier, Miss Harriet, Le Horla, entre outros), nota-se que no h predomnio da
histria contada, ainda que o conto breve aparea em todos os quinze volumes de
Maupassant. Essas novelas-ttulo apresentam como caracterstica comum, a
distinguirem-nas dos contos, o enredo sequencial, com histrias e sub-histrias, que
preenchem (de forma mais abrangente que os contos) o perfil de uma ou mais
personagens. Veremos como isso ocorre na obra de Maupassant no captulo sobre as
narrativas curtas.
Quanto ao termo novelista, ele ser pouco utilizado. Mesmo quando se
compreender a fatura da novela, falaremos de contistas (e, em certos momentos, de
contadores), assim como mais comum essa referncia a Maupassant (conteur),
quando se fala do conjunto de suas narrativas curtas. Enfim, para alm dos termos
especficos, tem-se em vista definir os contistas com que vamos aqui trabalhar por meio
da sucinta frase de Alfredo Bosi, em Situao e formas do conto brasileiro
contemporneo: o contista um pescador de momentos singulares cheios de
significao.32
Maupassant, assim como Tchekhov e seus contemporneos, considerava o conto
como um gnero literariamente menor. Esse um dos motivos que fez de Maupassant
um escritor ofuscado nas Letras Francesas por grandes romancistas de seu sculo, como
Balzac, Flaubert e Zola. Tambm o carter popular e ertico de alguns de seus contos o
impedia de ascender ao lugar de alta literatura. Alm disso, Richard Fusco sugere que o
preconceito difundido entre crticos e escritores, no incio do sculo XX, de que
Maupassant teria insistido numa nica forma de conto, contribuiu para coloc-lo num
lugar de segundo plano, na Frana e nos Estados Unidos. Ou seja, foi o uso excessivo
do modelo de conto reputado a Maupassant que fez a gerao seguinte, na Frana,
subjug-lo como subliteratura, sem rel-lo. O crtico americano demonstrou que, ao
contrrio do que se supunha, o contista francs desenvolveu sua contstica sob quinze
31
GODENNE, Ren. La nouvelle. tudes sur la nouvelle de langue franaise. Paris: Honor Champion
Editeur, 1993. p. 26.
32
BOSI, Alfredo. Situao e formas do conto brasileiro contemporneo. O conto brasileiro
contemporneo. So Paulo: Cultrix/Edusp, 1975. p. 9.
20
FUSCO, Richard. Maupassant and the American short story. Op. cit., p. 6 e 43.
HOLANDA, Srgio Buarque de. A decadncia do romance. O esprito e a letra: estudos de crtica
literria. Org. Antnio Arnoni Prado. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. v. 1. p. 105.
35
LINS, lvaro. Contos. Jornal de crtica. 2 srie. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1943. p. 156.
36
Segundo Jauss, lhistorien de la littrature doit toujours redevenir dabord lui-mme un lecteur avant
de pouvoir comprendre et situer une uvre, cest--dire, fonder son propre jugement sur la conscience de
sa situation dans la chane historique des lecteurs successifs. JAUSS, Hans Robert. Lhistoire de la
littrature: un dfi la thorie littraire. Pour une esthtique de la rception. Op. cit., p. 51.
34
21
22
PARTE I
GUY DE MAUPASSANT:
DE POETA NATURALISTA A MESTRE DO CONTO UNIVERSAL
Pendant sept ans je fis des vers, je fis des contes, je fis
des nouvelles, je fis mme un drame dtestable. Il nen
est rien rest.1
MAUPASSANT, Guy de. Le roman. Romans. Prface et notes par Louis Forestier. Paris: Gallimard,
1987. (Bibliothque de la Pliade). p. 713. O texto original data de 1887. No trecho selecionado,
Maupassant refere-se aos anos de 1873 a 1880, poca de convivncia com Flaubert, que lia e comentava
praticamente tudo o que o discpulo escrevia.
2
Idem, p. 709.
24
CAPTULO 1
Um poeta despoetizado
Se croyant pote comme tous les romanciers qui
dbutent, il avait fait quelques vers publis sans
grand succs.3
Je suis le plus dsillusionnant et le plus
dsillusionn des hommes; le moins sentimental
et le moins potique.4
MAUPASSANT, Guy de. Ivan Tourgueniev. Chroniques: anthologie. Paris: Librairie Gnrale
Franaise, 2008. (Le Livre de Poche). p. 1361. Crnica publicada primeiramente sob o pseudnimo de
Maufrigneuse, no Gil Blas, em 6 de setembro de 1883.
4
MAUPASSANT, Guy de. Lettre Gisle dEstoc, janvier 1881. Disponvel em: <http://maupassant.
free.fr/cadre.php?page=concs> Acesso em: 1 set. 2011.
5
DELAISEMENT, Grard. Maupassant, pote en vers et en prose. In: MAUPASSANT 2000. Bulletin
Flaubert et Maupassant. Rouen: Association des Amis de Flaubert et de Maupassant, n. 9, 2001. p. 131.
6
Alfred Le Poittevin era irmo de Laure Le Poittevin de Maupassant e amigo ntimo de Flaubert. Morreu
em 1848, portanto sem conhecer o sobrinho, tantas vezes comparado a ele por Laure e Flaubert. A nica
obra publicada de Alfred Une promenade de Blial et uvres indites, livro pstumo, de 1924,
organizado por Ren Descharmes (Paris: Les Presses Franaises).
7
Aps a morte de Louis Bouilhet, em 18 de julho de 1869, Maupassant escreveu um poema em sua
homenagem, em que define sua filiao potica: Car il tait si franc, si simple et naturel, / Pauvre
Bouilhet! Lui mort! si bon, si paternel! / Lui qui mapparaissait comme un autre Messie / Avec la clef du
ciel o dort la posie. Disponvel em: <www.maupassant.free.fr>. Acesso em: 4 jul. 2011. Ver tambm,
no mesmo sentido, as crnicas dedicadas a Louis Bouilhet.
25
datam da adolescncia e foram escritos sob os auspcios de Alfred de Musset. Mas foi
aos trinta anos, quando j ento Maupassant negava a facilidade dos versos romnticos
de adolescncia e a poesia de Musset, com seu nome gravado sobre a capa amarela das
edies de Charpentier, editor de Gustave Flaubert e dos naturalistas, que nosso autor
estreou, com seu primeiro livro, que intitulou Des vers.
O volume foi publicado em abril de 1880, com a seguinte dedicatria para
Flaubert: Gustave Flaubert / lillustre et paternel ami / que jaime de toute ma
tendresse, / lirrprochable matre / que jadmire avant tous.8 Algumas semanas depois,
falecia o autor de Madame Bovary. Na segunda edio do livro, tambm de 1880,
Maupassant publica como prefcio uma carta de Flaubert, datada de 19 de fevereiro de
1880, em defesa do poema Au bord de leau (ento intitulado Une fille), pelo qual
nosso autor respondera a um processo por ultraje aos costumes e moral pblica. Logo
aps a carta, vem esta observao do jovem poeta: Et, par l, je place encore une fois
mon livre sous sa protection qui ma dj couvert, quand il vivait, comme un bouclier
magique contre lequel nont point os frapper les arrts des magistrats.9
Se o processo repercutiu a favor do poeta, tambm os crticos lhe foram
favorveis. Des vers foi logo bem acolhido por seus contemporneos. Thodore de
Banville, poeta romntico tardio e autor do Petit trait de posie franaise, de 1872,10
uma autoridade em poesia na poca, em comentrio sobre Des vers, afirmou: [...] je me
tromperais fort sil ny avait pas l linspiration et la vigueur dun grand artiste.11 Sob
o patronato de Flaubert e com as portas abertas pela recente publicao de sua novela
Boule de Suif no volume coletivo Les soires de Mdan, de que eram autores outros
cinco escritores vinculados ao Naturalismo,12 a repercusso de seu livro de estreia j era
esperada pelo autor. Em carta ao amigo Robert Pinchon, de fevereiro de 1877,
Maupassant desabafa: Je fais partie dun groupe littraire qui ddaigne la posie. Ils me
serviront de repoussoir; cest pas bte [...].13
26
Dessa forma, os poemas de Maupassant nos interessaro aqui sob dois pontos de
vista: o levantamento de alguns elementos temticos que reaparecem em sua obra
posterior e por uma observao de sua viso do fazer potico.
14
Yvan Leclerc aponta o carter prosaico de Des vers, sob vrios aspectos: Dabord le titre, minimaliste,
une sorte de lapalissade pour dsigner un recueil de posie, un titre brut et net, un pluriel indfini bien
concret qui nous promet une tranche de posie comme les romanciers naturalistes dbitent des tranches
de vie. LECLERC, Yvan. Maupassant, pote naturaliste? In: MAUPASSANT 2000. Bulletin Flaubert
et Maupassant. Op. cit., p. 186. Os demais aspectos comentaremos ao final deste captulo sobre a poesia
de Maupassant, quando voltaremos a mencionar o artigo de Yvan Leclerc.
15
MAUPASSANT, Guy de. Des vers et autres pomes. Pref. Louis Forestier. Dir. Emmanuel Vincent.
Rouen: Publications de lUniversit de Rouen, n. 309. 474 p.
16
VINCENT, Emmanuel. Des vers et autres pomes de Maupassant. In: MAUPASSANT 2000. Bulletin
Flaubert et Maupassant. Op. cit., p. 173-4.
17
Idem, p. 172-3.
27
MAUPASSANT, Guy de. Les potes franais du XVIe sicle. Chroniques. Op. cit., p. 1128-9.
Idem. Potes. Chroniques. Op. cit., p. 1145.
20
Idem. Le roman. Romans. Op. cit., p. 712.
21
DELAISEMENT, Grard. Op. cit., p. 135.
22
MAUPASSANT, Guy de. Des vers. Op. cit., respectivamente, p. 5, 4 e 7.
19
28
amoroso numa luta de sombras. O que tinha tudo para ser um encontro romntico na
natureza se torna uma viso um tanto obscura do amor.
O luar reaparece frequentemente em outros poemas do volume, ora como eulrico (em La chanson du rayon de lune, p. 95-9), ora com papel inferior, como mero
objeto. Mas gostaramos de lembrar aqui outros textos de Maupassant, em que esse
elemento da paisagem tambm interage na narrativa. Nos dois contos intitulados Clair
de lune, o luar contribui para uma modificao sobre a personagem. No primeiro
conto, de julho de 1882, recolhido no volume de contos pstumo Le pre Milon (de
1899), a interlocutora e irm da protagonista atribui o adultrio de sua irm ao luar
(cest le clair de lune qui fut ton amant vrai).23 Da mesma forma, na narrativa de
viagem Sur leau, Maupassant afirma: Lhomme qui aime normalement sous le soleil,
adore frntiquement sous la lune.24 No outro conto intitulado Clair de lune, este
mais conhecido, publicado em jornal em outubro de 1882 e recolhido no volume
homnimo, de 1888, o padre Marignan, pouco tolerante com as mulheres, est prestes a
destratar a sobrinha durante um encontro amoroso dela, quando se v convertido pela
noite de luar. Ele cr estar diante de uma cena bblica e conclui: Dieu peut-tre a fait
ces nuits-l pour voiler didal les amours des hommes. E ele ento desiste de
importunar os namorados, aps a concluso do narrador de que Dieu ne permet-il point
lamour, puisquil lentoure visiblement dune splendeur pareille?.25
Podemos ver, pelos exemplos acima, como esse elemento reaparece sob diversas
funes no enredo dos textos em prosa, primeiramente caricaturizado sob um poder
evocador do amor carnal no poema da juventude.
No segundo poema de Des vers, Un coup de soleil, no temos uma cena de
amor calmo sob o sol, conforme sups o narrador de Sur leau. Outra vez uma mulher
atrai o eu-lrico, que, por sua vez, em seu dsir furieux (v. 13),26 pensa que a abraa e
sobe aos cus. Mas o simbolismo romntico cai por terra: de tanto abra-la, o homem
apaixonado acaba matando-a, contrariando o ditado francs (qui trop embrasse mal
treint). Em Une conqute, tambm o sentimento do amor puro violentado: o
poema em terceira pessoa narra a histria de um homem que atrado pelo perfume de
uma passante, num momento de grande epifania, at que ela desaparece em meio
23
MAUPASSANT, Guy de. Clair de lune. Contes et nouvelles. Prface et notes par Louis Forestier. Paris:
Gallimard, 1974. (Bibliothque de la Pliade). t. I. p. 477.
24
Idem. Sul leau. Paris: Gallimard, 1993. (Collection Folio Classique, 2408). p. 83.
25
MAUPASSANT, Guy de. Clair de lune. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 599.
26
Idem. Des vers. Op. cit., p. 11.
29
multido; por dias ele constri grande expectativa em rever tal mulher, que ele
acreditava pertencer alta sociedade (Il cherchait son histoire en regardant ses bas., v.
13),27 porm ela uma prostituta, que facilmente se entrega a ele e ainda zomba de sua
ingenuidade inicial. O eu-lrico, de sentido muito prtico, ento conclui, citando um
provrbio: Pote au cur naf il cherchait une perle; / Trouvant un bijoux faux, il le prit et
fit bien. / Japprouve le bon sens de cet adage ancien: Quand on na pas de grive, il faut
manger un merle. (v. 141-4).28 Veremos, no captulo sobre Ribeiro Couto, como
Maupassant se reaproveitou do tema desse poema, no conto Linconnue, e, o escritor
brasileiro, por sua vez, no conto A conquista.
No poema Sommation sans respect,29 o eu-lrico dirige-se amante em tom de
zombaria contra o marido trado, ressaltando os defeitos dele: barrigudo, senta-se
mesa com um guardanapo no pescoo, ronca, chama-a por nomes vulgares, feio e
sovina. Como se v, tudo pode ser tema para os poemas de Maupassant, assim como o
era para seus contos, em que temos inmeros exemplos de retrato de homens trados,
como em M. Parent e La porte.
Fugindo aos temas erticos e sarcsticos, h ainda poemas que lidam com o
fantstico ou com o pessimismo. O poema Terreur j foi apontado por alguns crticos
como prenunciador de Le Horla.30 Nesses versos, o eu-lrico descreve o medo de uma
presena desconhecida, despertada por uma leitura literria (Ce soir-l javais lu fort
longtemps quelque auteur. / Il tait minuit, et tout coup jeus peur., v. 1-2).31 La
dernire escapade retrata um casal de idosos centenrios que fazem seu ltimo passeio
pelo bosque onde namoravam na juventude. Eles sentem a angstia da morte antes de
tornarem-se des gens de pierre (IV, v. 50).32 O quadro triste e a natureza ao redor,
mesmo moribunda, parece rir-se deles: [...] paraissant / Samuser lchement avec cette
agonie. (V, v. 20-1).33 Maupassant reempregou elementos desse poema no conto
Menuet, em que o narrador observa um casal de idosos danar pela ltima vez, numa
praa, a dana evocada no ttulo.
27
Idem, p. 19.
Idem, p. 25.
29
Idem, p. 91-3.
30
Cf. DELAISEMENT, Grard. Op. cit., p. 137-8; VINCENT, Emmanuel. Des vers et autres pomes de
Maupassant. In: MAUPASSANT 2000. Bulletin Flaubert et Maupassant. Op. cit., p. 172-3.
31
MAUPASSANT, Guy de. Des vers. Op. cit., p. 15.
32
Idem, p. 80.
33
Idem, p. 82.
28
30
Idem, p. XXVIII.
Idem, p. 46.
36
Apud: FLAUBERT, Gustave; MAUPASSANT, Guy de. Correspondance. Texte tabli, prfac et
annot par Yvan Leclerc. Paris: Flammarion, 1993. p. 218.
37
ZOLA, mile. Les potes contemporains. uvres compltes. 1878. Apud: LECLERC, Yvan. Op. cit.,
nota 18, p. 193.
38
MAUPASSANT, Guy de. Des vers. Op. cit., p. 115.
35
31
39
32
No ensaio Le ct baudelairien de Maupassant, In: Europe. Paris, n. 482, juin 1969. p. 121-45,
Annarosa Poli afirma Baudelaire est sans conteste lcrivain qui a exerc la plus grande influence sur
Maupassant aprs Flaubert (p. 121). No cabe aqui contestar a afirmao, por demais categrica, j que
de fato h diversas menes ao poeta em vrios textos de Maupassant. preciso ressalvar que a articulista
no trata da poesia de Maupassant, mas somente das temticas baudelairianas em sua prosa.
43
Segundo Grard Delaisement, para quem Maupassant sabia de memria imagens e temas
baudelairianos. DELAISEMENT, Grard. Op. cit., p. 138.
44
MAUPASSANT, Guy de. Les potes franais du XVIe sicle. Chroniques. Op. cit., p. 1132-3. A
mesma opinio aparece na clebre carta ao jovem poeta Maurice Vaucaire, datada de julho de 1885. Ver
MAUPASSANT, Guy de. tudes, chroniques et correspondance. Op. cit., p. 334.
45
Cf. AMARAL, Gloria Carneiro do. Aclimatando Baudelaire. So Paulo: Annablume, 1996. p. 297 e 299.
33
46
34
posie, quil a consacr plusieurs chroniques au sujet se rvlant excellent critique dun
genre o sa russite, pour contestable quelle soit, donne rflchir et admirer.51
Em crnica de 1881, intitulada Contemporains, Maupassant atribui ao verso o
papel secundrio de exprimir aquilo que a prosa, por sua preciso, clareza e exatido,
no pode exprimir. Essa talvez seja a razo pela qual ele se definia como o menos
potico dos homens, conforme o trecho de carta que selecionamos para a epgrafe.
Como disse Yvan Leclerc, poderamos colocar o poeta Maupassant em
contradio com o cronista,52 levantando clichs mal-resolvidos em seus poemas, nem
sempre sarcsticos. Mas o sentimento que predomina, na maioria desses seus versos de
escritor debutante, de que sua nica inteno a de pater les bourgeois. Mais que em
qualquer conto que tematize o amor carnal (e no so muitos), a poesia de Maupassant
apela ao ertico em si e por si, sob uma forma que era considerada como a ltima para
esse fim, despoetizando (como lembrou Yvan Leclerc) ou desilusionando a poesia
quando preciso, e tornando-a clara como a sua prosa.
51
52
Idem, p. 138.
LECLERC, Yvan. Op. cit., p. 188.
35
CAPTULO 2
O ltimo dramaturgo em verso
Me voici auteur dramatique succs, et rudement
tonn de ltre, car je ne crois pas avoir
dcouvert ce fameux secret dramatique,
impnetrable pour les romanciers.53
Antes de publicar seu livro de estreia, Maupassant divulgou impressa uma pea
curta, Histoire du vieux temps, concluda em 1874. Conhecida por poucos nesse
primeiro momento, ela foi interpretada e republicada somente em 1879. O livro de
poemas do autor, Des vers, de 1880, tambm inclui esta comdia em versos.54 A
encenao de 1879 foi bem-sucedida no Troisime-Thtre-Franais, mas a pea s foi
vista novamente nos palcos vinte anos depois, portanto, j aps a morte do autor.
Esse texto, que Maupassant considerava sua primeira obra dramtica e uma
frle comdie,55 foi dedicado a Caroline Commanville, sobrinha de Flaubert e amiga
de juventude de Maupassant. A pea, de reduzida extenso o prprio autor reconhece
na dedicatria que deveria ser considerada um simples dilogo , estruturada em uma
nica cena; o cenrio composto apenas dos mveis de uma sala domstica, e toda a
ao envolve duas personagens, um conde e uma marquesa j em idade avanada. Eles
conversam ao p do fogo sobre o passado um do outro, que ambos pensam desconhecer.
O dilogo ocorre durante uma noite de inverno, quando ambos se sentem tristes pela
perda do vio da juventude. A marquesa incentiva a causerie: Oui, causons, car un bon
souvenir de jeunesse / Ravive par instants notre froide vieillesse.56 Sabendo da fama de
mulherengo do amigo, ela lhe pede que narre uma de suas histrias vividas, mas que
no seja de amor banal. Ele comea dizendo que aprendeu muito sobre as mulheres e
que deixou de amar uma para amar a todas, j que, para ele, a maioria delas so enfants
gtes, sempre descontentes. Ela conclui: Vous avez en amour une triste morale!;
Votre cur est ferm comme un logis davare. Antes mesmo de contar a histria que
lhes diz respeito, o conde parece farejar seu destino comum: Et vous tiez, je crois, la
53
36
37
38
A desordem vai num crescendo, apagam-se as luzes e as falas denunciam uma orgia, de
que quase todos participam. O cafeto Mich acende as luzes e tudo volta desordem
inicial.
Esse texto, aparentemente sem interesse literrio, teve uma primeira funo de
socializao entre o grupo que Maupassant comeava a frequentar. Segundo sua
bigrafa Nadine Satiat, la feuille de rose, maison turque, avait t conue dans le
dsir exprs de faire rire Flaubert.65 O texto apela para o humor, o nonsense e o
erotismo desabrido. Conforme Yvan Leclerc, em texto que j mencionamos no captulo
sobre a poesia de Maupassant, essa pea tambm recobre a mesma funo de seus
poemas excessivamente sexualizados, uma vez que ela annonce un programme de
dpotisation: la pornographie gurit des ides reues sentimentales.66
Em 1998, Clmence M. C. Jout-Pastr realizou uma traduo dessa pea para o
portugus, intitulada Os anos cor-de-rosa: casa turca, que foi premiada e publicada em
So Paulo. curioso observar que a nica pea de Maupassant traduzida no Brasil
esteja justamente entre as menos divulgadas na Frana, em ambos os casos, creio, pelo
seu contedo ertico-escatolgico.67 Na apresentao dessa edio, Clmence JoutPastr comenta algumas dificuldades da traduo, que de fato bastante cuidadosa,
zelando por manter o humor na lngua de chegada:
A traduo dessa pea apresentou vrios desafios, a comear pelo ttulo que contm
a metfora, muito pouco conhecida em francs contemporneo, feuille de rose.
Tal metfora, utilizada nos meios libertinos do final do sculo XIX, representa o
nus (rose = rosa) e a lngua (feuille = folha). Optou-se, na verso para o portugus,
por manter o tom falsamente ingnuo do ttulo em francs. Para tanto, fez-se um
jogo de palavras que recupera a sonoridade de nus em anos.
Em virtude de diferenas culturais e lingusticas, foi necessrio fazer algumas
adaptaes como, por exemplo, na personagem que tem um forte sotaque da regio
da cidade de Marselha. Neste caso, optou-se por um sotaque gacho pois que, alm
de praticamente impossvel (e de no fazer sentido) reproduzir o sotaque marselhs
em portugus, a personagem de Maupassant tem alguns atributos que fazem parte
do esteretipo do gacho no Brasil, ou seja, um indivduo que faz questo de
enfatizar suas qualidades de macho.68
65
39
69
70
40
71
Idem.
Idem, cena 1, p. 9.
73
Idem, cena 3, p. 17.
74
Idem, cena 4, p. 22.
72
41
75
76
42
auxiliam na reinstaurao da paz e da justia: sua prima, Suzanne dglou, que ama o
soldado Jacques Valderose, e a duquesa Jeanne de Blois. So da prpria duquesa estas
palavras que resumem seu carter: Je prfre, en un mot, le fond la surface, / Et la
beaut du cur celle de la face (segundo ato, cena XI).
No segundo ato, a condessa usa-se de Jacques Valderose, que est apaixonado por
ela. Quer torn-lo seu cmplice e convenc-lo a matar de fato o conde. Mas, no terceiro
ato, seu plano no vinga, o marido e os soldados franceses retomam o poder. Ela se
suicida, o conde perdoa o jovem Valderose e manda defenestrar o ex-amante de sua
esposa, Gautier Romas. Retomada a paz, o conde conclui diante do inimigo: Et lamour
dune femme est une arme moins lourde / Quune pe et pourtant meilleure vos
succs (terceiro ato, cena VI). Ao contrrio dos seus dramas de costumes, em que a
mulher geralmente triunfa com suas pequenas armas, no seu drama histrico, Maupassant
preferiu fazer as armas e a justia vencerem a traio nacional e o amor infiel.
recente a publicao de um novo texto teatral de Maupassant, datado de 1883.
Com o ttulo de Madame Thomassin,77 essa pequena pea foi escrita em colaborao
com William Busnach (1832-1907, jornalista, dramaturgo e colaborador em adaptaes
de livros de Zola para o teatro) e s dada ao pblico em edio crtica pela pesquisadora
Marlo Johnston, em 2005. Segundo ela, a pea foi representada em 13 de janeiro de
1883, no pequeno Thtre Cluny, no Quartier Latin, e j ento a autoria do texto era
reputada por inmeros crticos ao autor de Linutile beaut, que nunca a reconheceu.
Hoje essa autoria parece indiscutvel, e uma das provas dela o nome de Maupassant ao
lado do de Busnach, no registro do Thtre Cluny, para recebimento de direitos
autorais.78
Escrito em um ato e composto de doze cenas, o pequeno drama passa-se no
quarto da protagonista, ausente da cena, pois est morta, de causa desconhecida. Julie, a
empregada que a criou, tenta consolar o vivo, M. Thomassin. A conversa entre os dois
nos permite saber que a jovem Mme. Berthe Thomassin era filha do melhor amigo,
tambm j morto, de M. Thomassin, M. Antoine Braud, e que havia um jovem entre o
casal, M. Henry, afilhado do pai da jovem e empregado do vivo. Na quinta cena, o
jovem Henry procura uma carta sua, comprometedora, que revelaria a relao recente
77
MAUPASSANT, Guy de; BUSNACH, William. Madame Thomassin. Edition de Marlo Johnston.
Rouen: Publications des Universits de Rouen et du Havre, 2005. Todas as informaes oferecidas aqui
sobre essa pea e sua recepo crtica na Frana devem-se ao posfcio dessa edio, de Marlo Johnston,
muito cuidadoso e um excelente exemplo de pesquisa para atribuio de autoria.
78
Idem, p. 52.
43
entre os dois. Essa carta acaba nas mos de M. Thomassin, aps ser encontrada por
Julie. O suspense sobre o contedo da carta permanece durante alguns instantes, pois
Julie no sabe ler. Henry volta cena e conta empregada que o amor antigo dele por
Berthe s se concretizou num nico encontro. Na penltima cena, ele revela a M.
Thomassin que a moa cometeu o suicdio, tomando um frasco de veneno. Antes que o
vivo tenha a iniciativa de investir contra o rapaz, Henry tenta beber a mesma droga. M.
Thomassin arranca-lhe o frasco das mos e o expulsa de sua casa. Na ltima cena, Julie
acusa ao vivo de ter matado Berthe, afinal, a jovem amava Henry antes de casar-se, e
lembra que M. Thomassin tinha idade para ser pai da falecida. Julie pede a M.
Thomassin que perdoe Henry, mas o vivo diz perdoar Berthe, mas no a Henry.
Madame Thomassin um texto bastante simples, que poderia ser representado
num teatro popular, sem requerer a marca do grande escritor. Tudo leva a crer que, por
essa razo, Maupassant nunca o reconhecera como seu. Essa a opinio de um crtico
annimo da poca:
Il parat que M. Guy de Maupassant a quelque peu collabor cette pice et quil en
serait mme le principal auteur. Mais alors pourquoi est-il sign de Busnach
seulement? M. Guy de Maupassant craignait peut-tre de compromettre par un acte
sans importance son avenir littraire, il a prfr laisser la responsabilit M.
Busnach qui a les reins plus solides.79
Crtica do LOpinion Nationale, 19 jan. 1883. Reproduzida por JOHNSTON, Marlo. Posface. In:
MAUPASSANT; BUSNACH. Op. cit., p. 41 e 126. Franois Coppe, em texto para o La Patrie, de 22 de
janeiro de 1883, chegou at a lamentar que a pea fosse de Maupassant: si M. Guy de Maupassant est
coupable de Madame Thomassin, nous le regrettons pour lui; car Madame Thomassin est un assez
insignifiant opuscule. Citado por JOHNSTON, Marlo. Op. cit., p. 43 e 128.
80
JOHNSTON, Marlo. Op. cit., p. 38-9.
81
Idem, p. 57-8.
44
Tratamos da recepo dessas peas teatrais nos jornais brasileiros em nosso artigo Guy de Maupassant
em cena: dramas e adaptaes para o teatro, publicado na revista Lettres Franaises, Araraquara: Unesp,
n. 11 (1), p. 13-31, 2010.
83
SARCEY, Francisque. Chronique Thtrale. Le temps, 9 mars 1891. p. 2. Disponvel em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btp6k232858w/f2.langPT>. Acesso em: 17 set. 2011.
45
impasse: nela anuncia-se que Musotte, apelido de Henriette Lvque, modelo com quem
viveu Jean Martinel antes de seu casamento, est no leito de morte, aps parir uma
criana fruto desse relacionamento. Sem ainda comunicar nada jovem esposa, Jean vai
realizar o ltimo pedido de sua ex-amante: visit-la e assumir a paternidade da criana.
O segundo ato retrata essa visita. Jean tem um ltimo dilogo com Musotte, em
que promete cuidar da criana e pedir a Gilberte que o crie como seu filho, conforme
solicita a ex-namorada. Aqui est a unio de dois elementos recorrentes em Maupassant:
a honestidade da cortes e o reconhecimento do filho bastardo (como em
Mademoiselle Fifi e Le papa de Simon). Logo em seguida, Musotte morre, durante
um delrio.
Enquanto isso, na casa de M. de Petitpr, todos especulam sobre a razo da sada
de Jean, cujo real motivo s o seu tio e Lon conhecem. Nessa discusso, surge o
assunto do divrcio, em vias de legalizao na Frana da poca. O pai de Gilberte, M.
de Petitpr, juiz, defende essa escolha:
MADAME DE RONCHARD: Tromper sa femme nest pas sclrat? Tu dis cela
devant ton fils? Voil un joli enseignement!
Elle passe gauche.
LON: Oh! Jai mon opinion faite l-dessus, ma tante.
PETITPR, se levant: Ce fut un crime, ce nen est presque plus un. Il est
considr aujourdhui comme si naturel quon le punit peine. On le punit par le
divorce, chtiment de dlivrance pour beaucoup. La loi prfre dsunir huis clos,
timidement, plutt que de svir comme autrefois...84
84
46
Essa regra que prega uma inverso de valores fica tcita em seu dilogo com M.
de Sallus, na segunda cena, quando o amante deixa o casal a ss:
85
Idem, p. 67.
Ao que se sabe, essa pea em verso bastante diferente, em um ato, havia sido aceita pelo Vaudeville
em 1888, sob o ttulo de La paix du foyer. Esse era o ttulo que Maupassant dera mesmo ao texto
definitivo, mas que fora modificado por Alexandre Dumas Filho pois j havia outra com esse nome em
1893.
87
importante observar nesse conto, como j tivemos a oportunidade de apontar no artigo Guy de
Maupassant em cena: dramas e adaptaes para o teatro, que o autor o escreveu sob a forma de um texto
teatral, entremeando o dilogo entre as personagens com didasclias, que no conto vm demarcadas pelo
uso tipogrfico do itlico.
88
Idem, p. 174-5.
89
Idem, p. 181-2.
86
47
Vous mavez laiss entendre que le mariage nest pas une chane, mais une
association dintrts, un lien social, plus quun lien moral; quil ne force pas les
poux navoir plus damiti ni daffection, pourvu quil ny ait pas de scandale.90
Ela reivindica a sua liberdade, estabelecida por ele pelas regras do casamento:
MADAME DE SALLUS: Laissez-moi donc parler. Je suis belle, dites-vous, je suis
jeune, et condamne par vous vivre, vieillir, en veuve. Mon cher, regardez-moi.
(Elle se lve.) Est-il juste que je me rsigne au rle dAriane abandonne pendant
que son mari court de femme en femme, et de fille en fille? (Sanimant.) Une
honnte femme! Je vous entends. Une honnte femme va-t-elle jusquau sacrifice
de toute une vie, de toute joie, de toute tendresse, de tout ce pour quoi nous sommes
nes, nous autres? Regardez-moi donc. Suis-je faite pour le clotre? Puisque jai
pous un homme, cest que je ne me destinais pas au clotre, nest-ce pas? Cet
homme, qui ma prise, me rejette et court dautres... Lesquelles! Moi je ne suis
pas de celles qui partagent. Tant pis pour vous, tant pis pour vous. Je suis libre.
Vous navez pas le droit de madresser un conseil. Je suis libre!91
Idem, p. 191.
Idem, p. 193-4.
92
Idem, p. 198.
91
48
Idem, p. 204-5.
Idem, p. 214.
95
Idem, p. 234.
94
49
restou mais que uma pgina. Sabe-se que o autor tambm autorizou diversos
dramaturgos a adaptarem obras suas, como Bel-Ami e Pierre et Jean para o teatro, mas
esses textos tirados de seus romances nada tm da lavra de Maupassant, que se ops no
final, desautorizando a encenao.96
Para concluir, vimos que, no teatro de Maupassant, h a insistncia sobre alguns
elementos, como o ambiente domstico, a ironia do discurso, como no teatro clssico,
que contradiz as personagens em cena e d o tom da comdia. As trs unidades, de
tempo, espao e ao tambm so raramente infringidas. A metalinguagem cnica e o
coup de thtre desencadeado pelo recebimento de uma carta so recursos comuns do
teatro do final do XIX, para o qual nosso autor no traz novidades formais.
Em casos em que as peas teatrais provm de contos do autor, percebe-se que,
nestes, as personagens femininas so mais diretas e mais ousadas que as feitas para o
palco. Para faz-las agir diante da sociedade, era preciso amenizar suas nsias e deixlas mais parecidas com o ideal do pblico. A tentao de adaptar contos para a cena
seduziu o autor e motivou dramaturgos posteriores a fazerem o mesmo. Por outro lado,
a mise en scne teatral o atraa na fatura de contos dramticos, como Tribunaux
rustiques, Le cas de Madame Luneau e La revanche. Segundo Louis Forestier, o
conto maupassantiano um duplo jogo, uma tricherie de la narration: Le conte est
simultanment la sduction dune voix et le charme dune criture. Cest sans doute
pourquoi les contes de Maupassant plaisent aux comdiens.97 Veja-se o caso da
encenao, no Brasil, da pea Contos de seduo.98
Observamos, em quase todas as peas, a stira da sociedade de seu tempo,
muitas vezes ridicularizada por impasses nas relaes amorosas, sempre mal resolvidas.
Seja na Bretanha do sculo XIV, seja na Paris de seu tempo, Maupassant coloca em
cena mulheres e homens discutindo a relao de poder em meio s suas necessidades
amorosas. A infidelidade consentida e o pacto social para manter a paz do casal so
ento recorrentes, numa poca em que o que vigorava era o casamento de
convenincias. Essa discusso voltar em inmeros contos e romances do autor, o que
aponta a relevncia do estudo destes textos, seno para a compreenso do teatro francs
do final do sculo, ao menos para uma viso de conjunto da obra de Maupassant.
96
50
CAPTULO 3
Maupassant e a epistolografia
Jai la peur et la haine des lettres; ce sont des
liens.99
99
MAUPASSANT, Guy de. Sur leau. Paris: Gallimard, 1993. (Collection Folio Classique, 2408). p. 126.
Em resposta a Caroline Commanville, quando ela lhe pedia opinio sobre a inteno de publicar a
correspondncia de Gustave Flaubert, Maupassant afirma: Je crois, en gnral, quil ne faut jamais
publier les choses qui nont pas t faites pour tre publies. Carta publicada em LECLERC, Yvan. Vers
une deuxime dition de la Correspondance Flaubert-Maupassant. Bulletin Flaubert-Maupassant,
Rouen, n. 3, p. 53-68, 1995.
101
Idem. Chroniques: anthologie. Ed. de Henri Mitterand. Paris: Librairie Gnrale Franaise, 2008. (Le
Livre de Poche). p. 260. Grifos nossos.
102
Idem, p. 264.
100
51
103
Em termos quantitativos, restam hoje, em maior nmero, as cartas enviadas ao editor Victor Havard,
que somam mais de cem.
52
Se, indiretamente, nas conversas privadas com sua me, h algum rancor sobre a
falta da ao para lhe abrir portas, na sua comunicao direta com aqueles escritores que
se tornariam seus amigos, como Zola, Flaubert, Edmond de Goncourt e Turgueniev,
resvala-se a sempre muito respeito, tratando-os por Mestres e vangloriando suas
obras. Muitas dessas cartas exprimem comentrios sobre novos livros desses amigos
escritores. o que ocorre na missiva que escreve de Palermo, na Itlia, a Zola, em maio
de 1885, aps a leitura de Germinal.
[...] je veux vous dire tout de suite que je trouve cette uvre la plus puissante et la
plus surprenante de toutes vos uvres.
104
HERVOT, Brigitte. Tagarelice espirituosa: as cartas de Maupassant. So Paulo: Ed. Unesp, 2010. p.
34.
105
MAUPASSANT, Guy de. tudes, chroniques et correspondance. Ed. de Ren Dumesnil. Paris:
Librairie de France/Grnd, 1938. p. 202.
106
Disponvel no site: <http://maupassant.free.fr>. Acesso em: 1 set. 2011.
53
Vous avez remu l-dedans une telle masse dhumanit attendrissante et bestiale,
fouill tant de misres et de btise pitoyable, fait grouiller une telle foule terrible et
dsolante au milieu dun dcor admirable, que jamais livre assurment na contenu
tant de vie et de mouvement, une pareille somme de peuple.
On sent en vous lisant, lme, lhaleine et toute lanimalit tumultueuse de ces gens.
Leffet que vous avez obtenu est aussi tonnant que superbe, et la mise en scne de
votre roman reste devant les yeux et devant la pense, comme si on avait vu ces
choses.
Jentends dailleurs tous les jours parler de Germinal dans ce pays o on vous aime
infiniment. Les journaux de Palerme, de Naples et de Rome se passionnent en des
polmiques violentes votre sujet.107
Idem.
Brigitte Hervot demonstra, por diversos exemplos, que, enquanto elogiava Zola diretamente, em cartas a
Flaubert nosso escritor fazia crticas largas ao autor de Le roman exprimental. HERVOT, Brigitte. Op. cit.,
p. 112-25. Cf. da mesma autora: Zola vu par Maupassant. Cadernos Neolatinos: mile Zola e o
Naturalismo, Rio de Janeiro: Depto. de Letras Neolatinas da UFRJ, ano IV, abril de 2005. Nmero especial.
CD-ROM.
109
Disponvel no site: <http://maupassant.free.fr>. Acesso em: 1 set. 2011.
110
Cf. MAUPASSANT, Guy de. La Maison Tellier. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 261.
108
54
dois escritores,111 por sugesto dos primeiros editores, que teriam destrudo as cartas
mais libidinosas ou comprometedoras. As cartas conhecidas, ainda que tragam aqui e ali
traos dessa liberdade entre os pares, em geral tratam de servios prestados, sobretudo
da parte de Flaubert, como recomendaes para inserir o jovem escritor no mercado
literrio. No seu conjunto, a importncia dessa correspondncia ultrapassa o
conhecimento mtuo dos dois autores; segundo Yvan Leclerc, ela prsente un cas de
filiation probablement unique dans lhistoire littraire.112
No que se refere a essa filiao, uma carta de Maupassant a Flaubert, de 18741875, indica que o jovem seguia com cuidado os conselhos do mestre: Cher Monsieur
et ami, jai recopi hier soir mon Histoire du vieux temps. Jai fait tous les changements
que vous maviez indiqus et jai enlev 5 pages au commencement.113 Em certas
cartas, como a um pai, Maupassant pede-lhe conselhos, divaga sobre suas expectativas
com a literatura e as dificuldades da vida literria em Paris (ver, por exemplo, carta de 8
de janeiro de 1877). A proteo solicitada por Maupassant era tal que Flaubert veio em
defesa do jovem poeta publicamente (o que raramente fazia), em carta aberta ao jornal
Le Gaulois, de 19 de janeiro de 1880, por conta do processo a que Maupassant teve de
responder pela republicao do poema Une fille, depois intitulado Au bord de leau.
Flaubert, por sua vez, solicitou a Maupassant algumas informaes para a
redao de um captulo de Bouvard et Pcuchet. Podemos ver, nas cartas trocadas no
incio de novembro de 1877, indicaes precisas das falsias das redondezas de tretat
(ver foto dessa cidade, no nosso Caderno de Fotos, p. 150), ilustradas em croquis por
Maupassant, a pedido de Flaubert. O mestre acha os detalhes dados por Maupassant
trop locaux e decide instalar suas personagens em Fcamp, j que La cte dtretat
est trop spciale et mentranerait dans des explications encombrantes.114
Conforme Yvan Leclerc, apesar de sua importncia na formao do escritor, no
podemos considerar a influncia de Flaubert determinante em Maupassant. Segundo
esse crtico, o jovem escritor, que sempre postou seus versos para a avaliao de
Flaubert, parecia evitar enviar seus contos ao mestre da prosa.115 Alm disso, Leclerc
afirma que, pouco a pouco, Maupassant sengage dans un processus de
111
LECLERC, Yvan. Prface. In: FLAUBERT, Gustave; MAUPASSANT, Guy de. Correspondance.
Texte tabli, prfac et annot par Yvan Leclerc. Paris: Flammarion, 1993. p. 42.
112
Idem, p. 9.
113
FLAUBERT, Gustave; MAUPASSANT, Guy de. Op. cit., p. 94. O grifo do autor.
114
Idem, p. 128 e 130, respectivamente.
115
Tanto que Flaubert lhe pede, ao final da carta de 4 de julho de 1879: Donnez-moi de vos nouvelles (et
des nouvelles) de temps autre. Idem, p. 195. Maupassant escreve somente um ms depois, sem anexar
a sua missiva nenhum conto para leitura de Flaubert.
55
116
56
122
57
2 A Marseille, les Surs Rondoli sont partout en montre, nulle part Yvette. A
Nice de mme, Cannes de mme, sauf chez Vial. Je parle des librairies de la ville.
A Cannes, la marchande de la gare a vendu le premier jour ses exemplaires
dYvette et elle ma paru fort surprise quon ne lui en et pas envoy dautres,
comme on en avait fait pour Rondoli.
Je viendrai Paris dans une dizaine de jours, mais pour fort peu de temps.
Je vous serre bien cordialement la main.
GUY DE MAUPASSANT123
Idem.
Idem.
58
tous les bons Dieux, et bataillons carrs sans quon puisse me reprocher davoir
encens les uns ou mani la pique dans les autres, ce qui me donne galement le
droit de me battre pour tous mes amis, quel que soit le drapeau qui les couvre.
[...] jai peur de la plus petite chane quelle vienne dune ide ou dune femme.125
125
59
Et puis, je crois quil faut viter les inspirations vagues. Lart est mathmatique, les
grands effets sont obtenus par moyens simples et bien combins. [...]
Certes, vous avez des dons potiques, un esprit qui reoit bien les impressions, qui
se laisse bien pntrer par les objets et les ides. Il ne vous faudrait, mon humble
avis, quune tension de rflexion pour utiliser pleinement vos moyens en vitant
surtout les penses dites potiques, et en cherchant la posie dans les choses
prcises ou mprises, o peu dartistes ont t la dcouvrir.
Mais surtout, surtout, nimitez pas, ne vous rappelez rien de ce que vous avez lu:
oubliez tout, et (je vais vous dire une monstruosit que je crois absolument vraie),
pour devenir bien personnel, nadmirez personne.
Il est difficile, en cinquante lignes, de parler de ces choses sans avoir lair pdant, et
je maperois que je nai pas vit lcueil.
Je vous serre cordialement la main.
GUY DE MAUPASSANT128
preciso ressaltar que a maioria dessas ideias est mais bem desenvolvida em
outras crnicas do autor e, principalmente, no seu ensaio Le roman, publicado trs
anos depois. Percebe-se, pois, que essa conscincia sobre o fazer literrio foi sendo
adquirida pelo escritor ao longo de sua carreira, obtida pouco a pouco pelo exerccio da
carta (sua oficina de escrita, na definio de Brigitte Hervot):129 da carta privada, escrita
a amigos do mesmo ofcio (Catulle Mends e Paul Alexis), carta pblica a um
desconhecido (Maurice Vaucaire), at, enfim, o texto aberto publicao, Le roman.
Mas no foi somente a jovens interessados em literatura que Maupassant
escreveu cartas. A troca de correspondncia com mulheres desconhecidas, atradas pela
sua fama de sedutor, atendia a uma curiosidade ertica do escritor. Durante algum
tempo, gostava de se divertir com isso, conforme vemos nas cartas enviadas a Marie
Bashkirtseff, por dois meses, entre maro e abril de 1884.130 Quando o jogo epistolar e a
enquete por cartas o cansavam (por conta de perguntas como: Vous me demandez quel
est mon peintre parmi les modernes? Millet), simplesmente abandonava suas
admiradoras, contente de j lhes ter enviado gratuitamente, na assinatura das cartas,
alguns autgrafos. Com Gisle dEstoc, por muitos chamada de a andrgina, por seu
costume de vestir-se de colegial e pela sua atrao tambm por mulheres, a relao foi
mais adiante e ela tornou-se por alguns anos amante do escritor.
Para concluirmos, aps uma visada geral sobre o hbito epistolar de Maupassant,
observa-se que as funes mais frequentes de suas cartas, bilhetes ou telegramas, que
passam de oitocentos ao todo, eram o agradecimento, o comunicado, o convite para
128
60
131
61
de junho de 1891, revela pela caligrafia a sua oscilao de sade detalhe que hoje
quase impossvel aos estudiosos de suas cartas resgatar, considerado o difcil acesso aos
manuscritos remanescentes. Tentando aliviar a angstia da me, o escritor resume todo
o seu estado nesta frase to simples e cheia de tristes subentendidos: Remarque comme
ma lettre est crite dune main plus sre.132
A ausncia de cartas a partir de 1892 demonstra a impotncia fsica de
Maupassant para escrev-las e, at mesmo, para produzir outras obras. Esse silncio,
assim como o desconhecimento de missivas mais reveladoras sobre outras relaes do
escritor, como a que teve com a jovem Josphine Litzelmann,133 com quem teve trs
filhos, jamais reconhecidos, devem-se provavelmente destruio de outras cartas por
seus familiares (talvez por ordem sua; jamais saberemos), desejosos de no legar
posteridade o lado de sua vida que a moral da poca considerava decadente para a
memria do grande escritor nesse sentido, como sugeriu Yvan Leclerc, on peut
redouter une purification par le feu.134 O corpus existente, porm, bastante vasto e
permite-nos conhecer outros aspectos da vida de Maupassant e, o que mais relevante,
observar o trabalho dirio de seu ofcio de escritor.
132
62
CAPTULO 4
Vogando pela literatura
[...] comme on aime, en voyageant, connatre un peu
davance la rgion o lon saventure! Comme on est
heureux quand on trouve un livre o quelque vagabond
sincre a jet quelques-unes de ses visions! Ce nest l
quune prsentation, qui vous prpare seulement
connatre les lieux. Parfois cest plus.135
MAUPASSANT, Guy de. En Bretagne. Au soleil. Paris: Louis Conard, 1908. p. 252-3.
63
de crnicas, entre 1881 e 1883. So nove partes dedicadas viagem ao norte da frica
(Au soleil, La mer, Alger, La province dOran, Bou-Amama, Province
dAlger, Le Zarez, La Kabylie-Bougie e Constantine) e mais outras, que de fato
em nada se relacionam s primeiras, foram acrescentadas em algumas edies
posteriores para enriquecer o volume. Dessas, quatro tratam da Crsega, e foram
datadas de 1880; outra parte relata uma viagem Bretanha (En Bretagne), geralmente
compilada pelos organizadores nos volumes de crnicas do autor; h ainda um conto
sobre a Sua (Aux eaux o mais comum seria encontr-lo em Contes et nouvelles,
como ocorre na edio da Pliade) e uma crnica sobre uma visita a uma indstria de
ferro e ao (Le Creusot). Isso posto, nossos comentrios vo repousar principalmente
sobre as nove primeiras narrativas de Au soleil e sobre En Bretagne.
Durante essa primeira viagem frica, a mais longa de todas, Maupassant (ou o
seu narrador) vai de Marselha a Argel de navio; de Argel a Oran, de Oran a Sada, entre
outras cidades no interior da Arglia, segue de trem e, aonde a linha frrea acaba, viaja
no dorso de animais ou empreende longas caminhadas.
Como todo viajante, o narrador maupassantiano revela-se aberto a novas
experincias que observa e descreve, informando seu leitor francs sobre os costumes e
eventos no norte da frica: sociais (guerras civis ocasionadas pela ocupao colonial),
religiosos (cerimnias do ramadan), culturais (apresentaes de dana do ventre; o uso
rabe das tendas e dos tapetes), climticos (o calor de 49C, as tempestades de areia, as
miragens tpicas do deserto e os osis) e at gastronmicos (a culinria rabe, o modo de
preparo do caf, a loua). Mas usa seu repertrio de francs do norte para definir a vida
dos argelinos, franceses do sul, onde quem impera, a seu ver, o sol. Seus relatos so
cheios de partis pris, dos quais, nos melhores momentos, consegue se desvencilhar. o
que constatou tambm Brigitte Hervot:
[...] a descoberta do desconhecido se faz a partir de referncias ao conhecido, em
uma rede de analogias essencialmente vantajosas para o europeu.
Porm, se verdade que muitos escritores ajudaram a reforar certas representaes
redutoras do Outro, vrios deles, entre os quais Maupassant, questionaram e
discutiram os esteretipos depreciativos do discurso colonialista. Naturalmente,
nem sempre conseguem escapar ilesos da viso colonial etnocntrica, mas
introduzem um novo olhar sobre o outro, um olhar etnogrfico.136
136
HERVOT, Brigitte. Maupassant: um viajante nato. In: ESTEVES, Antonio R.; ZANOTO, Srgio
Augusto (Org.). Literaturas de viagem: viagens na literatura. Assis: Trinfal, 2010. p. 128.
64
Assim como faria em La vie errante, o autor comea Au soleil justificando por
que empreendeu essa viagem. Para isso, oferece ao leitor uma observao sobre a morte
e sua infalibilidade, e sobre o tdio da vida:
Cest cela, la vie! Quatre murs, deux portes, une fentre, un lit, des chaises, une
table, voil! Prison, prison! Tout logis quon habite longtemps devient prison! Oh!
Fuir, partir! fuir les lieux connus, les hommes, les mouvements pareils aux mmes
heures, et les mmes penses, surtout.137
Acompanhado por oficiais rabes que o inserem nos locais mais recnditos,
nenhuma das dificuldades encontradas, como o calor ou a guerra, o intimida, pois, Ds
quon a mis le pied sur cette terre africaine, un besoin singulier vous envahit, celui
daller plus loin, au sud.140 Ali observa as pessoas comuns, bem como loucos num
hospcio (que sempre atraram Maupassant), assim como ouve delas suas histrias de
vida, algumas engraadas, outras tristes e de morte. Isso demonstra que o contador
maupassantiano est aqui sempre presente, como o narrador ambulante descrito por
Walter Benjamin.
Saindo de Marselha, onde pega o navio para a frica, chega a Argel dois dias
depois da partida e dali oferece ao leitor seu coup dil sur la ville. O narrador
esfora-se para compreender o funcionamento dessa sociedade, em que as leis se fazem
pelo roubo e pelo domnio do mais forte: Jai vu le jour mme de mon arrive un petit
fait sans importance et qui pourtant rsume peu prs lhistoire de lAlgrie et de la
colonisation.141 Essa generalizao um recurso comum ao olhar do turista, que
depreende alm do que possvel pelos fatos presenciados. O acontecimento a que o
137
65
narrador se refere aqui diz respeito a um jovem que, aps encerar seus sapatos e receber
por isso, foi logo roubado por outro mais velho. Um colega, sentado mesa ao lado,
explica que assim funciona entre os argelinos: o mais novo s trabalha enquanto no
forte o suficiente para roubar. O narrador maupassantiano relaciona a situao ali
presente forma de colonizao e culpa a presena francesa pela pobreza dos nativos.
[...] ds les premiers pas, on est saisi, gn, par la sensation du progrs mal appliqu
ce pays, de la civilisation brutale, gauche, peu adapte aux murs, au ciel et aux
gens. Cest nous qui avons lair de barbares au milieu de ces barbares, brutes il est
vrai, mais qui sont chez eux, et qui les sicles ont appris des coutumes dont nous
semblons navoir pas encore compris le sens [...]. Or nous sommes rests des
conqurants brutaux, maladroits, infatus de nos ides toutes faites. Nos murs
imposes, nos maisons parisiennes, nos usages choquent sur ce sol comme des
fautes grossires dart, de sagesse et de comprhension. Tout ce que nous faisons
semble un contresens, un dfi ce pays, non pas tant ses habitants premiers qu
la terre elle-mme.142
Mas essa viso positiva sobre os rabes por vezes substituda pelo olhar do
homem civilizado diante do primitivo. Ao falar das faianas rabes, que considera
horrorosas, tira concluses de outra ordem, em que assume o olhar do colono:
Peuple trange, enfantin, demeur primitif comme la naissance des races. Il passe
sur la terre sans sy attacher, sans sy installer. [...] Ils ne semblent attachs ni au sol
ni la vie, ces cavaliers vagabonds qui posent une seule pierre sur la place o
142
Idem, p. 16-7.
Idem, p. 36.
144
Idem, p. 45.
143
66
dorment leurs morts, une grosse pierre quelconque ramasse sur la montagne
voisine. [...] Leurs coutumes sont restes rudimentaires. Notre civilisation glisse sur
eux sans les effleurer.145
Idem, p. 90-1.
Idem, p. 53 e 100.
147
Idem, p. 54.
148
Idem, respectivamente, p. 93 e 94.
146
67
Como se v, o autor brinca com o estilo dos guias tursticos, que critica na
narrativa En Bretagne, datada de julho de 1882:
Jaime la folie ces marches dans un monde quon croit dcouvrir, les tonnements
subits devant des murs quon ne souponnait point, cette constante tension de
lintrt, cette joie des yeux, cet veil sans fin de la pense.
Mais une chose, une seule, me gte ces explorations charmantes: la lecture des
guides. crits par des commis voyageurs en kilomtres, avec des descriptions
odieuses et toujours fausses, des renseignements invariablement errons, des
indications de chemins purement fantaisistes, ils sont, sauf un seul, un guide
allemand excellent, la consolation des bonnetiers voyageant en train de plaisir et
visitant la contre dans le Joanne, et le dsespoir des vrais routiers qui vont, sac au
dos, canne la main, par les sentiers, par les ravins, le long des plages.
Ils mentent, ils ne savent rien, ils ne comprennent rien, ils enlaidissent, par leur
prose emphatique et stupide, les plus ravissants pays; ils ne connaissent que les
grand-routes et ne valent gure moins cependant que la carte dite dtat-major, o
les barrages de la Seine faits depuis trente ans bientt ne sont point encore
indiqus.149
Idem, p. 251-3.
Idem, p. 253-4.
151
Conforme levantamento de Jacques Dupont, na edio de Sur leau anotada por ele. MAUPASSANT,
Guy de. Sur leau. Paris: Gallimard, 1993. (Collection Folio Classique, 2408). p. 171-2.
150
68
1887), com um salto no dia 9. Na apresentao, o autor oferece, com falsa modstia, o
carter despretensioso do livro:
Ce journal ne contient aucune histoire et aucune aventure intressantes. Ayant fait,
au printemps dernier, une petite croisire sur les ctes de la Mditerrane, je me
suis amus crire chaque jour ce que jai vu et ce que jai pens.
En somme, jai vu de leau, du soleil, des nuages et des roches je ne puis raconter
autre chose et jai pens simplement, comme on pense quand le flot vous berce,
vous engourdit et vous promne.
Sabemos que Maupassant forja aqui um dirio de bordo, com textos reescritos
para esta publicao. Sur leau repleto de digresses, em que vm tona reflexes
antes feitas nesses antigos textos, as quais muitas vezes no tm relao estreita com as
supostas paisagens observadas pelo narrador. Elas conduzem o leitor a contextos
externos viagem pelo Mediterrneo, no barco Bel-Ami (seu famoso barco comprado
com dinheiro ganho em direitos autorais), que comea em Antibes, passa por Cannes
(onde o vento o impede de prosseguir a viagem de imediato), Agay, Saint-Raphal e
Saint-Tropez, at ser interrompida por uma ventania, que leva o escritor e os dois
marinheiros que o acompanham, Bernard e Raymond, de volta a Antibes. Dessa cidade,
o escritor toma um trem para Mnaco, onde encontra um velho amigo.
O tom do livro varia entre o confessional do dirio ntimo e o reflexivo do
cronista, repleto de fluctuations intimes qui redoublent celles du bateau et de la
mer.152 A narrao da viagem entrecortada pela descrio da paisagem, em que cabe
a comparao do barco Bel-Ami imagem de um fantasma: le bateau, pareil un
grand fantme, glissa sur leau tranquille.153 H tambm a personificao do vento (Et
dans lme du marin rgne, comme chez les croyants, lide dun Dieu irascible et
formidable, la crainte mystrieuse, religieuse, infinie du vent, et le respect de sa
puissance),154 que dado como o responsvel pela trajetria. O leitor pode ter a
impresso de que o escritor estava quase deriva desse barco-fantasma, ao lu, sob a
fora do vento e de seus pensamentos; no entanto, a construo do livro tambm
ficcionalizada.
Em diversos momentos, o narrador simula escrever a narrativa durante a
navegao: De la pleine mer, o nous sommes prsent [...];155 Je suis seul,
vraiment seul, vraiment libre. [...] jai pour me servir et me promener deux matelots qui
152
DUPONT, Jacques. Prface. In: MAUPASSANT, Guy de. Sur leau. Op. cit., p. 23.
MAUPASSANT, Guy de. Op. cit., p. 37.
154
Idem, p. 44.
155
Idem, p. 40.
153
69
mobissent, quelques livres lire et des vivres pour quinze jours. Quinze jours sans
parler, quelle joie!;156 le lendemain, alerte comme aprs une convalescence, ayant
crit ces quelques pages [...].157 E, no final, desculpa-se frente ao leitor, pela
subjetividade e o mal-acabamento do texto:
Il me reste demander pardon pour avoir ainsi parl de moi. Javais crit pour moi
seul ce journal de rvasseries, ou plutt javais profit de ma solitude flottante pour
arrter les ides errantes qui traversent notre esprit comme des oiseaux.
On me demande de publier ces pages sans suite, sans composition, sans art, qui vont
lune derrire lautre sans raison et finissent brusquement, sans motif, parce quun
coup de vent a termin mon voyage.
Je cde ce dsir. Jai peut-tre tort.158
156
Idem, p. 42-3.
Idem, p. 107.
158
Idem, p. 163-4.
159
Idem, p. 42-3.
160
Idem, p. 152.
161
Idem, p. 63-4.
157
70
162
MAUPASSANT, Guy de. La vie errante: Venise Ischia Pcheuses et guerrires. Paris: Conard,
1909. p. 9.
163
Idem, p. 13.
71
espcie de alienao temporria do mundo (on et dit quune main surnaturelle venait
dempaqueter le monde, en des nues fines de coton, pour quelque voyage inconnu),164
que ele procura definir por um conjunto de sinestesias que o embebedam: sente o calor
da noite de vero, a bruma do mar que o acaricia; ouve a msica na praa de San-Remo;
sente aromas de flores. Tudo propcio sua escapada simbolista, pela qual o escritor
envereda: Je demeurais haletant, si gris de sensations, que le trouble de cette ivresse
fit dlivrer mes sens. Je ne savais plus vraiment si je respirais de la musique, ou si
jentendais des parfums, ou si je dormais dans les toiles.165 A confuso dos sentidos,
que Maupassant acredita ser intraduzvel para uma linguagem clara, logo o faz convocar
para o seu texto a presena do poema Correspondances, do grand patron
Baudelaire: Est-ce que je ne venais de sentir jusquaux moelles ce vers mystrieux:
Les parfums, les couleurs et les sons se rpondent?.166 Alm de Baudelaire, o narrador
evoca tambm Rimbaud e Les voyelles, que tenta justificar cientificamente por uma
teoria recente, na poca, sobre a audio colorida. Conforme se pode observar,
Maupassant flerta com os simbolistas, mas procura manter-se na constante defesa da
clareza da linguagem, que s a prosa realista lhe permite.
Afastando-se da Frana e chegando costa da Itlia, as referncias mudam. Em
La cte italienne, observa o clima e afirma: On dirait le sjour choisi par une
princesse des Mille et une nuits.167 Armado de seu olhar, ele capta descries que
fazem rememorar a infncia e as leituras de contos de fadas, bem como os romances
escondidos na escrivaninha da escola. Sua viso permite-lhe desbravar lugares antes
somente imaginados, assim como os antigos escritores-viajantes.
Seus relatos sobre as cidades italianas so marcados pela concepo aristocrtica
do autor sobre a arte, o mesmo motivo que o fez sair de Paris:
[...] on comprend alors que la vraie distinction de lintelligence, que le sens de la
beaut rare des formes, de la population des proportions et des lignes, ont disparu
de notre socit dmocratise, mlange de riches financiers sans got et de parvenus
sans traditions.168
Idem, p. 16.
Idem, p. 18.
166
Idem, p. 19.
167
Idem, p. 29.
168
Idem, p. 37.
169
Idem, p. 48.
165
72
admirao pela arte renascentista (ces vieux artistes taient des ralistes)170 d espao
a longas descries de quadros, de esculturas e da arquitetura ali vistos. A parte
dedicada Siclia oferece pginas dignas de um guia turstico, em que apresenta os
locais com detalhes histricos e geogrficos. Sua verve de contista serve-lhe para relatar
a visita ao quarto onde Wagner comps Parsifal e para narrar um episdio sobre um
homem bbado que ficou preso nas catacumbas.
Os pontos tursticos visitados so escolhidos conforme o gosto pela sua
profisso: je monte aussitt en barque pour aller saluer, devoir dcrivain, les papyrus
de lAnapo.171 E como escritor, d sua definio alegrica dos papiros: On dirait des
ttes humaines devenues plantes, jetes dans leau sacre de la source par un des dieux
paens qui vivaient l jadis. Cest le papyrus antique.172 Tambm em Npoles, na
penltima parte do livro, Ischia, relata a visita ao tmulo do poeta Virglio.
No norte da frica, as questes que mais aborda so as de ordem prtica: a falta
de sanitarismo pblico, a desorganizao das cidades, a m condio das pontes e das
vias, a seca. O relato de uma visita a um hospcio lembra-nos, de imediato, o narrador
de La chevelure e, assim como aquele narrador, o de La vie errante tambm se sente
atrado por curiosos casos de loucura. Aps ouvir e observar um homem louco, ele
afirma: Et on croit sentir pntrer en son me un souffle de draison, une manation
contagieuse et terrifiante de ce dment malfaisant.173 Descreve seu sentimento ao sair
do hospcio, que tambm surpreende por seus termos: Je men vais troubl dune
motion confuse, plein de piti, peut-tre denvie, pour quelques-uns de ces hallucins,
qui continuent dans cette prison, ignors deux.174 A ideia do contgio que sente do
alucinado foi trabalhada tambm em diversas narrativas fantsticas de Maupassant,
como Le Horla, anteriores publicao deste texto. Isso mostra seu constante
interesse pelo assunto, do qual trataremos em outros captulos, quando abordarmos o
tema da loucura e seu uso por autores brasileiros.
Ainda nas partes dedicadas frica, o autor tambm menciona a religio
(considera o islamismo la plus mystrieusement dominatrice des religions qui ait dompt
la conscience humaine)175 e os costumes culturais, as roupas coloridas e diferenciadas
segundo cada regio, os hbitos de mulheres e crianas, de modo semelhante ao feito em
170
Idem, p. 53.
Idem, p. 127.
172
Idem, p. 128.
173
Idem, p. 162-3.
174
Idem, p. 164.
175
Idem, p. 176. Outra definio semelhante est na p. 223.
171
73
176
Idem, p. 169.
Idem, p. 239-240.
178
[...] a narrao, em seu aspecto sensvel, no de modo algum o produto exclusivo da voz. Na
verdadeira narrao, a mo intervm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experincia do
trabalho, que sustentam, de cem maneiras o fluxo do que dito. BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia
e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. p.
220-1.
179
Idem, p. 246.
180
Cf. HERVOT, Brigitte. Op. cit., p. 129 e 144. Nesse artigo, a autora faz um levantamento das viagens
por terra, mar e ar, bem como pelas drogas, na obra de Maupassant, ressaltando seu imperativo da busca
da prpria identidade.
177
74
desconhecidas que descreve e cujas tradies procura compreender, mais do que apenas
relatar, na medida de suas limitaes. Ao visitar outros pases, em pleno
neocolonialismo francs, por vezes o autor consegue abstrair a viso do colonizador e
revelar aspectos que vo alm de uma amostra extica das terras visitadas. Esse ponto
de vista um dos elementos mais importantes das narrativas de viagem aqui estudadas,
pois revela o quanto suas discusses so importantes historicamente, num pas ainda
hoje incapaz de gerir problemas com a imigrao dos ex-colonizados.
Se a vontade intermitente de viajar era oriunda de uma necessidade de se
dpayser, sob o pretexto do isolamento necessrio ao artista, a redao dessas
narrativas, por sua vez, era o cadinho do autor para outras narrativas mais longas ou
literariamente mais bem trabalhadas. Divagaes sobre poltica ou literatura, cultura ou
costumes so despertadas pela observao de homens e paisagens, vistos do caf, da
janela do trem ou do barco. Pontos de vista variados de um mesmo homem sempre
disposto reflexo e, algumas vezes, s rveries, que colaboram para a impresso de
que tudo foi escrito no calor da hora, como aconteceria se esses textos fossem de fato
dirios de bordo. Dessa extravagncia, incomum na obra de Maupassant, o escritor
realista sente a necessidade de se desculpar, conforme vimos, no final de Sur leau (Il
me reste demander pardon pour avoir ainsi parl de moi).
Ao deslocar o ato da escritura de suas narrativas para o momento das viagens, o
autor pretende tornar mais verossmeis seus relatos, impedindo que a distncia fsica e
temporal d margem a lembranas falsas, pelo menos aos olhos do leitor. Para isso
contribui tambm sua verve de contista, que relata com primor histrias dos locais
visitados e de seus habitantes.
Seja pelo carter mais crtico de Au soleil, seja pelo aspecto mais meditativo de
Sur leau ou La vie errante, onde por vezes apresenta, segundo ele mesmo, les
opinions qui sont crment dun dmolisseur,181 essa trilogia de Maupassant ainda
requer, a meu ver, a ateno necessria da crtica e um estudo de conjunto ainda indito.
Essas narrativas permitem ao leitor no s vagar por paisagens e culturas diversas, mas
visitar os pensamentos de Maupassant, para quem il nest point de pays plus
magnifique que le cerveau dun grand crivain.182
181
75
CAPTULO 5
O cronista de costumes e da vida literria
[...] le chroniqueur plat surtout parce quil prte aux
choses quil raconte son tour desprit, lallure de sa
verve, et quil les juge toujours avec la mme mthode,
leur applique le mme procd de pense et
dexpression auquel le lecteur du journal est habitu.183
Maupassant aceita no incio essa condio, escreve mais outra crnica (sobre
poetas franceses do sculo XVI) para Duval, que pede desculpas por atrasar a
publicao dos textos do jovem colaborador. Aparentemente, a razo para essa
indisposio que o escritor no obedece ao trato inicial, de abordar temas leves, para o
pblico burgus. Como se nota pelos assuntos, em suas primeiras tentativas, propunhase crtica literria. Logo depois, Maupassant interrompe sua contribuio para esse
peridico, com a seguinte justificativa para Flaubert, na mesma carta que citamos antes:
Or je vois par mes yeux, je juge par ma raison et je ne dirais point que ce qui est blanc
est noir, parce que cest lavis dun autre. Je compte faire encore un article dpreuve
pour La Nation, aprs quoi je me tiendrai tranquille.185 Por razes financeiras e por
querer oferecer seu tempo a algo mais til, como o seu livro de poemas e os dramas em
versos, Maupassant desiste de tentar entrar para a redao do La Nation. E conclui da
que nunca teria liberdade suficiente na imprensa para dizer o que quer que fosse:
183
76
[...] aucun journal ne me laissera faire des articles vraiment littraires et dire ce que
je pense. Je lis tous les jours La Nation; cette feuille est radicalement imbcile, cest
le royaume des prjugs et du convenu, toute chose nouvelle les effarouchera
comme ide et comme forme.186
186
Idem.
MAUPASSANT, Guy de. Messieurs de la chronique. Op. cit., p. 237.
188
Idem, respectivamente, p. 236 e 237.
187
77
seja quando versa sobre a literatura, a cultura e as artes, seja quando aborda atualidades
polticas e sociais.
De mais de duzentas crnicas escritas por Maupassant, aproximadamente 120
saram em Le Gaulois, 75 no Gil Blas, 16 em Le Figaro, 7 em Lcho de Paris e 5 em
Le XIXe Sicle. A partir de 1887, o escritor passa a dedicar-se mais s viagens,
pesquisa e redao de seus quatro ltimos romances, que publicaria anualmente.189
A reunio de suas crnicas, j feita parcialmente por Ren Dumesnil, na dcada
de 1930, e depois por outros pesquisadores em pequenas antologias, somente foi
empreendida em sua totalidade nos anos 2000, por dois estudiosos do autor: em 2003,
por Grard Delaisement; e em 2008, por Henri Mitterand, muito apoiado na experincia
mais exaustiva do anterior e a nica edio mais completa hoje encontrada nas livrarias.
Uma das razes para o atraso dessa compilao que, ao contrrio dos seus contos e
romances, e com exceo das crnicas contidas nas narrativas de viagens, as demais
nunca foram organizadas em livro pelo autor, por motivos contratuais com os jornais
em que colaborava. Outro motivo para essa disperso est no modo como Maupassant
escrevia e publicava seus textos. Ele oferecia contos e crnicas ao mesmo tempo, em
peridicos variados, e mesclava entre eles assuntos e formas. preciso dizer tambm
que conto e crnica no eram ainda gneros com contornos to bem-definidos, no final
do sculo XIX, sendo que muitas vezes dividiam o mesmo espao nos rodaps dos
jornais.190 No caso de Maupassant, que tambm no distinguia contos de novelas, as
diferenas entre eles no precisavam ser necessariamente estabelecidas, visto que o
jornal os reunia indistintamente, fico e no fico escrita por literatos.
conhecido dos estudiosos o hbito do autor de Le Horla de reescrever contos e
crnicas, reaproveitar assuntos e trechos publicados em diversos outros textos, variando o
veculo ou o gnero. Isso no s criou a dificuldade de classificao de alguns textos um
dos diferenciais entre a edio de Delaisement e a de Mitterand como gerou entre eles
uma espcie de distino qualitativa. Mitterand, alm de preferir o critrio temtico ao
cronolgico, omite em sua edio o que considera textos-clones:191 isto , 53 crnicas
dadas por Delaisement so descartadas por tratarem de mesmo motivo temtico, sob
189
At 1887, Maupassant j havia publicado Une vie, em 1883, e Bel-Ami, em 1885. Seguiram-se MontOriol, de 1887, Pierre et Jean, de 1888, Fort comme la mort, de 1889, e Notre cur, de 1890.
190
Sobre o assunto, cf.: CANDIDO, Antonio. A vida ao rs-do-cho. In: CANDIDO et al. A crnica: o
gnero, sua fixao e suas tranformaes no Brasil. Campinas: Ed. da Unicamp. Rio de Janeiro: Fund.
Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 13-22. S, Jorge de. A crnica. 4. ed. So Paulo: tica, 1992.
191
De maneira semelhante, Emmanule Grandadam define esses textos de Maupassant como crnicas
hbridas, tanto pela forma quanto pelos assuntos. GRANDADAM, Emmanule. Maupassant journaliste
littraire. Bulletin Flaubert-Maupassant, Rouen, n. 21: Maupassant et la politique, p. 111-30, 2007. p. 112.
78
MITTERAND, Henri. Introduction gnrale. In: MAUPASSANT, Guy de. Chroniques. Op. cit., p. 17.
Idem, p. 26.
79
MAUPASSANT, Guy de. Propritaires et lilas. Chroniques. Op. cit., p. 56. Cf. tambm: Les
employs. Chroniques. Op. cit., p. 67: De toutes les classes dindividus, de tous les ordres de
travailleurs, de tous les hommes qui livrent quotidiennement le dur combat pour vivre, ceux-l sont les
plus plaindre, sont les plus dshrits de faveurs.
195
Idem. Les hros modestes. Chroniques. Op. cit., p. 75.
80
Das onze crnicas sobre artes, muitas delas relatam visitas aos famosos Sales
de pintura. A mais importante , sem dvida, La vie dun paysagiste, escrita como
uma carta, enviada de tretat a um amigo no nomeado e publicada no Gil Blas, em
1886. Maupassant, cujo pintor favorito era Franois Millet, desenvolve a sua
concepo sobre a pintura e sua viso da natureza, a partir da observao, em diversos
momentos de sua vida, de pintores vindos a tretat, atrados pela qualit du jour,
vraiment excellente nessa cidade litornea da Normandia.196 Entre eles, esto Corot,
Courbet e Monet, que esteve em tretat no ano anterior (1885) e que nosso escritor pde
seguir, la recherche dimpressions.197
Nesse texto curto, lemos mais uma vez a defesa do olhar e do dom de
observao sobre a natureza, pertinente a todo artista, que o autor de Le Roman
sempre defendeu:
Vrai, je ne vis plus que par les yeux; je vais, du matin au soir, par les plaines et par
les bois, par les rochers et par les ajoncs, cherchant les tons vrais, les nuances
inobserves, tout ce que lcole, tout ce que lAppris, tout ce que lducation
aveuglante et classique empche de connatre et de pntrer.
Mes yeux ouverts, la faon dune bouche affame, dvorent la terre et le ciel. Oui,
jai la sensation nette et profonde de manger le monde avec mon regard, et de
digrer les couleurs comme on digre les viandes et les fruits.
[...] Une feuille, un petit caillou, un rayon, une touffe dherbe marrtent des temps
infinis; et je les contemple avidement, plus mu quun chercheur dor qui trouve un
lingot, savourant un bonheur mystrieux et dlicieux dcomposer leurs
imperceptibles tons et leurs insaisissables reflets.198
Essa busca da arte no contato com a natureza, por sua observao direta,
assemelha-se ao modo de pintar dos impressionistas. Dada a sua incapacidade de pintar
(je passe des jours douloureux regarder, sur une route blanche, lombre dune borne
en constatant que je ne puis la peindre), Maupassant coloca em paralelo o trabalho do
pintor ao do escritor ilusionista. Conforme observa Henri Mitterand, Cest ce qui fait
de cette chronique un texte de rflexion esthtique peut-tre aussi important que le texte
sur le roman publi en 1888 en mme temps que Pierre et Jean et en tout cas
complmentaire de celui-ci.199
Apesar da curiosidade de todos os textos sobre sociedade, poltica, costumes e
artes, sua gama de assuntos e o constante humor do cronista, so de maior interesse para
ns aqueles que tratam diretamente de escritores ou de questes literrias, uma vez que
196
81
nos permitem discutir mais claramente as ideias do autor sobre a literatura. H, entre essas
crnicas, textos sobre poetas como Louis Bouilhet e romancistas, como Balzac, Georges
Sand, Flaubert (onze textos), Zola (trs textos), Edmond de Goncourt e Turgueniev.
Muitas vezes, Maupassant comea suas crnicas abordando algum escritor, para
depois tratar de um gnero literrio. Por exemplo, no ms seguinte morte do escritor
russo Ivan Turgueniev, ocorrida na cidade francesa de Bougival, em 3 de setembro de
1883, nosso autor publicou trs crnicas em sua homenagem e, mais tarde, dedicou-lhe
o volume de contos La Maison Tellier. Turgueniev, que morara na Frana e frequentara
o crculo de diversos escritores franceses, como Georges Sand, Flaubert e Zola, foi um
grande intermediador cultural e era reconhecido pelos amigos franceses como um
homem modesto e excelente prosador em diversas lnguas. Maupassant, cuja obra foi
apresentada a Tolstoi, na Rssia, pelo prprio Turgueniev, no poupou em suas crnicas
elogios ao amigo. Alm de dois artigos intitulados Ivan Tourgueniev, um para Le
Gaulois e outro para o Gil Blas, publicados em 5 e 6 de setembro de 1883200 (entre
outros publicados antes da morte do escritor russo), Maupassant escreveu Le
fantastique, que saiu em Le Gaulois, em 7 de outubro de 1883, e no qual teceu
consideraes que vo alm do tributo pstumo.
Na primeira parte desse artigo, h uma visada geral sobre a literatura fantstica.
Maupassant comea constatando o fim do medo popular do sobrenatural e do mistrio,
que para ele to somente o medo do desconhecido, e afirma que, at 1900, o medo do
irreal no acometeria nem mesmo os habitantes do campo. Para ele, graas ao
desenvolvimento do conhecimento, as novas geraes no temeriam mais o mistrio, a
noite, o sonambulismo e o espiritismo, e da resultaria o fim da literatura fantstica.
Notre pauvre esprit inquiet, impuissant, born, effar par tout effet dont il ne
saisissait pas la cause, pouvant par le spectacle incessant et incomprhensible du
monde, a trembl pendant des sicles sous les croyances tranges et enfantines qui
lui servaient expliquer linconnu. Aujourdhui, il devine quil sest tromp, et il
cherche comprendre, sans savoir encore. Le premier pas, le grand pas est fait.
Nous avons rejet le mystrieux qui nest plus pour nous que linexplor.
Dans vingt ans, la peur de lirrel nexistera plus mme dans le peuple des champs.
Il semble que la Cration ait pris un autre aspect, une autre figure, une autre
signification quautrefois. De l va certainement rsulter la fin de la littrature
fantastique.201
200
Maupassant escreveu outros textos em que menciona Turgueniev: a crnica Linventeur du mot
nihilisme, de 21 de novembro de 1880, na qual traa o percurso do escritor russo e seu perfil de
contista, e o conto La peur, de 25 de julho de 1884, cujo incio oferece uma definio do medo dada
pelo escritor russo, com que Maupassant lida em seu texto, e em que constata tambm o fim do
sobrenatural.
201
MAUPASSANT. Le fantastique. Chroniques. Op. cit., p. 1366.
82
TODOROV, Tzvetan. Introduction la littrature fantastique. Paris: ditions du Seuil, 1970. p. 177.
Idem, p. 182.
204
Idem, p. 174-5.
205
CASTEX, Pierre Georges. Le conte fantastique en France: de Nodier Maupassant. Paris: J. Corti,
1951. p. 404.
206
MAUPASSANT, Guy de. Le fantastique. Op. cit., p. 1367.
203
83
207
84
fch davoir lu cela; rien nen reste que le dgot pour soi-mme davoir ainsi gaspill
son temps.210 Para reforar sua opinio e rebater uma crtica sofrida de outro cronista,
Nestor (pseudnimo de Henry Fouquier), na crnica seguinte para o mesmo jornal,
intitulada Question littraire, de 18 de maro, Maupassant reafirma o tdio que sente
com a leitura do autor de La reine Margot e enfatiza que, justamente por temer a clera
dos admiradores de Dumas, jeus soin de me mettre labri derrire cette phrase de
Balzac.211 V-se a, no s pela prudncia de Maupassant como pela crtica de Nestor,
que nosso autor no estava lutando contra uma batalha ganha e, por isso, recorria a
modalizaes nessa tarefa de dar por morta uma linhagem de romancistas. Neste ltimo
texto, acrescenta que malgr sa prodigieuse astuce de conteur, faltava a Alexandre
Dumas outro dom, o da arte literria, ou seja cette qualit littraire de lesprit qui met
en une uvre ce je ne sais quoi dternel, cette couleur inoubliable, changeante avec les
artistes, mais toujours reconnaissable, lme artistique enfin [...]. E Maupassant lana o
desafio: Ce qui restera de Dumas pre quand son fils aura disparu. Rien quun souvenir
[...].212 Isso era o que esperava o autor de Pierre et Jean, sempre reticente sobre o
gosto do grande pblico.
A crtica a Alexandre Dumas servia-lhe para definir a tarefa do escritor mais
consciente sobre a criao, que reflete sobre a literatura e, principalmente, defender o
romancista realista e a sua concepo da verdade esttica, que depois definiria em Le
roman. Maupassant separava em dois blocos os artistas que faziam da imaginao sua
matria literria e os que simplesmente faziam literatura de acordo com a sua viso da
realidade. Desde 1882, em En lisant, o escritor normando j impunha sua maneira de
conceber o romance realista: ct des livres qui amusent, admettez-vous les livres
qui meuvent? Oui, nest-ce pas? Or, cest mon tour de ne pas admettre quon puisse
tre mu par le tissu dinvraissemblances des romans dits consolants. Quoi de plus
mouvant, de plus poignant que la vrit?.213 No nos esqueamos da epgrafe de seu
primeiro romance, Une vie, escrito em lembrana de Flaubert: Lhumble vrit.
Mesmo quando se serve de Dumas pai de forma favorvel, percebe-se o quo
longe dele esto suas preferncias. Na crnica M. Victor Cherbuliez, publicada no Gil
Blas em 1 de maio de 1883, aps provar por diversos exemplos a pobreza literria do
ltimo romance do acadmico que comenta, Maupassant diz ainda que faltam aos
210
Idem.
Idem. Question littraire. Chroniques. Op. cit., p. 1379.
212
Idem, p. 1379-80.
213
Idem. En lisant. Op. cit., p. 1375.
211
85
86
219
87
destoantes do panorama cultural mundial. No entanto, nas obras de fico, essa viso
amenizada pelo dom do artista, por meio de ironias e stiras.
O estilo desses textos, hbridos em formas e temas, vagueia entre a fico e a no
fico, entre a dissertao e o relato cotidiano. Como ele definiu ser tpico ao gnero,
tambm seus textos passam de um assunto a outro, sem transio, mas devem ser
concisos, buscando um tom leve, para seduzir e convencer seus leitores. Para Henri
Mitterand, assim como nas narrativas de viagem, nas crnicas, Maupassant passa
avec la mme libert du paysage au portrait, du portrait la scne de genre, de
lanecdote la rflexion, ou inversement. Cest de l que nat le charme de
beaucoup de ses chroniques. Cest un texte imprvisible dans sa discontinuit. [...]
La sensibilit moderne saccorde assez bien ce vagabondage travers les grands
et les petits sujets [...].221
221
Idem, p. 36.
GRANDADAM, Emmanule. Op. cit., p. 113.
223
CANDIDO, Antonio. Crtica e sociologia. Literatura e sociedade: estudos de teoria e de histria
literria. 10. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008. p. 13.
222
88
224
89
CAPTULO 6
Maupassant contista e novelista
[...] je me suis absolument dcid ne plus faire de
contes ni de nouvelles. Cest us, fini, ridicule. Jen ai
trop fait dailleurs. Je ne veux travailler qu mes
romans, et ne pas distraire mon cerveau par des
historiettes de la seule besogne qui me passionne.225
O reconhecimento de seus contos como a melhor parte de sua obra foi feito
ainda por seus contemporneos. Stphane Mallarm considerava a sua primeira
225
90
maneira a de contista e julgava que ela se tornaria clssica.227 Henry James, em seu
clebre texto de 1888, dizia que em qualquer apreciao sincera do seu talento, os
contos ocupam o primeiro lugar, no somente por seu nmero, mas, especialmente, por
serem mais caractersticos e os considerava uma coleo de obras-primas.228 Leon
Tolsti pensava que quase todos os romances de Maupassant eram fracos e resumiu:
Heureusement, Maupassant a crit des petits rcits.229 Porm, at algumas dcadas
atrs, os manuais de literatura francesa colocavam em primeiro lugar a sua atuao
como romancista. Em 1943, lvaro Lins comentou, em seu Jornal de crtica, que no
captulo do romance naturalista que sempre aparece o estudo da obra de Guy de
Maupassant.230
O conto pode ser considerado um filho bastardo de Maupassant; a forma dada
como sua foi emprestada de contistas que leu e admirou, como Turgueniev, Poe e
Hoffmann. Tambm Flaubert escreveu Trois contes, que Maupassant no ignorava.
Recuando ainda mais na histria do conto literrio, tanto Jos Verssimo (que citamos
na introduo) quanto Otto Maria Carpeaux colocam os contos de Maupassant na
tradio dos fabliaux franceses medievais e annimos e das farsas de Molire.231
Segundo esses crticos, todos os maiores prosadores franceses ocupam o lugar de
precursores da contstica maupassantiana, dada a abrangncia de formas e motivos
desenvolvidos nos cerca de trezentos contos que escreveu. Como bem definiu Otto
Maria Carpeaux, Maupassant parece muito variado. O mesmo exprimiu mile Zola,
no seu discurso pronunciado durante as obsquias de Maupassant, em 7 de julho de
1893: Les contes, les nouvelles se succdaient, dune varit infinie, tous dune
perfection admirable, apportant chacun une petite comdie, un petit drame complet,
ouvrant une brusque fentre sur la vie.232
227
Je me disais aussi, vocant la premire manire, celle-l qui peut-tre sera classique, du conteur,
avant que ne lamplifia et ne linquitt le romancier [...]. MALLARM, Stphane. Deuil. uvres
compltes. Paris: Gallimard, 1945. (Bibliothque de la Pliade). p. 526.
228
Henry James foi apresentado a Maupassant numa reunio em Croisset, na casa de Flaubert, por Ivan
Turgueniev, em dezembro de 1875. Cito a partir de: JAMES, Henry. Guy de Maupassant. In:
MAUPASSANT, Guy de. Novelas e contos. Rio de Janeiro; Porto Alegre; So Paulo: Globo, 1951, p. XI.
A traduo do artigo de Dora Marques da Cunha.
229
Tolsti conheceu a obra de Maupassant, em francs, por intermdio de Turgueniev. Cf. TOLSTO,
Lon. Guy de Maupassant. Trad. du russe par lie Halprine-Kaminski. Montpellier: LAnabase, [s.d.]. p.
49. O texto de Tolsti datado de 1893-1894 e serviu de prefcio primeira traduo para o russo das
obras completas de Maupassant.
230
LINS, lvaro. Contos. Jornal de crtica. 2 srie. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1943. p. 156.
231
CARPEAUX, Otto Maria. Relendo Maupassant. A Manh, Rio de Janeiro, 20 jul. 1947, p. 1.
Suplemento Letras & Artes. VERSSIMO, Jos. Alguns livros de 1900. Estudos de Literatura Brasileira.
3 srie. Belo Horizonte; So Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977. p. 131.
232
ZOLA, mile. Guy de Maupassant. Europe, Paris, n. 482, juin 1969. p. 8.
91
92
Boule de suif, a primeira novela de sucesso do autor, tem por evento central a
Guerra Franco-prussiana de 1870: enquanto a cidade de Rouen ocupada pelos alemes
(assunto das quatro primeiras pginas), um grupo de dez pessoas, representantes de
diversos extratos da sociedade francesa (casais de burgueses, nobres, religiosas, um
democrata pobre e uma cortes), segue numa diligncia, procurando fugir a essa
tomada, a fim de alcanar o Havre e talvez se refugiar na Inglaterra. Maupassant
utilizou-se de um tema que conhecia por experincia pessoal, durante o tempo em que
atuou como soldado na regio de Rouen. Albert Lumbroso e outros bigrafos236 de
Maupassant apontam tambm que a personagem Boule de Suif foi inspirada em uma
cortes conhecida do autor, Adrienne Legay, fato cuja veracidade teria sido assegurada
pela me do escritor. Louis Forestier afirma que a anedota do conto serait vraie aussi et
Maupassant laurait recueillie de la bouche mme de son oncle Charles Cordhomme,
tio esse que foi o modelo de outra personagem da novela, o democrata Cornudet.237
O compromisso com a verdade era a motivao do autor, que estampava nesse
texto, junto aos outros cinco escritores envolvidos no volume Les Soires de Mdan, o
tema da guerra sob uma perspectiva mais realista.
Nous navons eu, en faisant ce livre, aucune intention antipatriotique, ni aucune
intention quelconque nous avons voulu seulement tcher de donner nos rcits
une note juste sur la guerre, de les dpouiller du chavinisme la Droulde, de
lenthousiasme faux jug jusquici ncessaire dans toute narration o se trouvent
93
une culotte rouge et un fusil. [...] Ce ne sera pas antipatriotique, mais simplement
vrai: ce que je dis des Rouennais est encore beaucoup au-dessous de la Vrit.238
238
94
242
Idem, p. 112-5.
Idem, p. 85.
244
Idem, p. 110, 116 e 117.
243
95
reunidos aqui, esboados s vezes em pequenas frases, como a stira ao campons dono
do albegue ou ao normando comerciante (figurado por Loiseau), ou o discurso
contraditrio com as aes da alta sociedade.
Por fim, a metalinguegem literria fica por conta da segunda refeio que o
grupo faz, na retomada da viagem, quando no jornal enrolado num queijo gruyre, que a
condessa trazia, estampa-se o ttulo faits divers.245 E a ironia do autor, contra um falso
patriotismo dessas classes ditas elevadas, fecha a novela com Cornudet que assobia e
canta trechos da Marselhesa (que em 1870 ainda no era o hino nacional, mas um
canto revolucionrio), cadenciado com os soluos do choro de raiva e vergonha de
Boule de Suif e o silncio de constrangimento dos demais viajantes.
Alm dessa novela, outros contos de Maupassant vo tratar da Guerra Francoprussiana, sob um vis semelhante, da transposio de um tema histrico sob uma
anedota, que retoma faits divers conhecidos do escritor. Em Mademoiselle Fifi (conto
de 1882), que tambm se passa em Rouen, ce pot de chambre de la France,246 durante
a ocupao alem, um grupo de comandantes solicita os servios de prostitutas.247 Uma
delas, Rachel, resiste (mais fortemente que Boule de Suif) a dormir com um subtenente
alemo, apelidado Mlle. Fifi por seus traos femininos e pela sua m articulao do
francs. O resultado aqui, porm, mais trgico que em Boule de Suif: a cortes mata
o inimigo e escondida pelo padre, no sino da igreja. Esse sino, alis, que no toca mais
desde a invaso, representa la seule rsistence que les envahisseurs eussent rencontr
aux environs: celle du clocher.248 De forma irnica, somente um padre e uma prostituta
defendem a nao. Apesar da morte que cometeu, a protagonista do conto obtm um
desfecho mais favorvel: Elle en fut tire quelque temps aprs par un patriote sans
prjugs qui laima pour sa belle action, puis layant ensuite chrie pour elle-mme,
lpousa, en fit une Dame qui valut autant que beaucoup dautres.249
Em Le lit 29 (de 1884), est associado mais fortemente o tema da guerra com
o ertico. Irma, outra cortes, representa tambm a resistncia aos invasores na cidade
de Rouen. Aps ser contaminada pela sfilis por soldados alemes, ela resolve
disseminar sua doena por outros soldados inimigos, mesmo que isso custe sua vida. A
245
Idem, p. 119.
Idem. Mademoiselle Fifi. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 385.
247
Otto Maria Carpeaux emitiu um comentrio bastante curioso sobre a frequncia dessas personagens na
obra de Maupassant: Enfim, as prostitutas e seus fregueses chegaram a substituir, em Maupassant, o
resto da populao francesa. CARPEAUX, Otto Maria. Relendo Maupassant. A Manh, Rio de Janeiro,
20 jul. 1947. p. 1. Suplemento Letras & Artes.
248
MAUPASSANT, Guy de. Mademoiselle Fifi. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 390.
249
Idem, p. 397.
246
96
concluso da cortes, que se mostra superior em valores frente ao soldado francs, seu
ex-amante, ridicularizado pelos demais, de que ela fez mais pela Frana do que ele
mesmo, na luta contra a invaso prussiana: [...] je leur ai fait plus de mal que toi, moi,
et que jen ai tu plus que tout ton rgiment runi.250
Maupassant escreveu diversos outros contos sobre a guerra, que buscavam
retratar a violncia alem diante de qualquer resistncia nfima dos franceses. Le pre
Milon (1883) narra a histria de um velho campons que se veste com o uniforme
prussiano para matar os soldados rivais. Aps ter perdido o pai e um filho em guerra,
esse homem mata dezesseis prussianos e enfrenta um batalho com a sua honra, quando
fuzilado diante da famlia. Esse conto revela a crueldade da guerra em si: Le pays fut
terroris. On fusilla des paysans sur une simple dnonciation, on emprisonna des
femmes; on voulut obtenir, par la peur, de rvlations des enfants.251 Deux amis
(1883) mostra o fuzilamento de dois pescadores, M. Morissot e M. Sauvage, por no
darem a palavra de ordem exigida pelo comandante alemo. Outros contos foram
escritos com a mesma inteno, como Saint-Antoine e La folle, do mesmo ano,
revelando nesse primeiro perodo de sucesso do autor sua preocupao com o assunto
da guerra. Faz-se a transposio do motivo histrico para a fico, questionando sempre
um falso valor patritico atribudo ao evento e elevando personagens comuns como
verdadeiras atuantes nos acontecimentos retratados.
Alm de obter assunto para contos na leitura de faits divers, como era
procedimento comum a diversos escritores do final do sculo XIX (Stendhal, Balzac,
Flaubert, Dumas, entre outros),252 h diversos contos cuja trama encerra personagens
leitoras de jornais, cuja imaginao alimentada por esse gnero jornalstico.
Roland Barthes estudou a estrutura desse gnero tipicamente francs, que
sapparente la nouvelle et au conte,253 e depreendeu suas caractersticas principais:
trata-se em geral de um texto curto, de ttulo atraente, que convida leitura, em que se
relatam fatos annimos, de resultados trgicos, e que causam estranheza no leitor. O
250
MAUPASSANT, Guy de. Le lit 29. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 185.
Idem. Le pre Milon. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 824.
252
Cf. sobre o assunto BENHAMOU, Nolle. De linfluence du fait divers: les Chroniques et Contes de
Maupassant. Romantisme: Revue du Dix-Neuvime Sicle, Paris: Sedes, n. 97: Le fait divers, p. 47-58, 1997.
253
BARTHES, Roland. Structure du fait divers. Essais Critiques. Paris: ditions du Seuil, 1964. p. 189.
251
97
254
Idem, p. 192.
MAUPASSANT, Guy de. Le Roman. Romans. Paris: Gallimard, 1987. (Bibliothque de la Pliade). p.
708.
256
Trataremos mais adiante, no item 6.8, dessa publicao coletiva francesa, nos moldes do Decameron
de Bocaccio e do Heptamron de Marguerite de Navarre, e de que Maupassant fez parte.
255
98
Quand la terreur vous saisit, on ne raisonne pas, on ne pense plus, on devient fou.
En une seconde je mimaginai des choses effroyables. Je pensai aux faits divers des
journaux, aux crimes mystrieux, toutes les histoires chuchotes de jeunes filles
pouses par des misrables!257
257
99
Les contes et les courtes nouvelles que lcrivain publie dans les journaux bousculent
ou renversent, parfois avec humour, la doctrine littraire quil dveloppe dans ses
crits thoriques ou critiques. Auteur indissociable du mouvement raliste et
naturaliste, Maupassant est aussi un professionnel de lcriture capable de plier sa
plume aux exigences contrastes des diffrents genres littraires (le roman, la
nouvelle, le conte) et des diffrents supports (le livre, le journal). Pour tre
pragmatique, en est-il moins artiste?261
Como dissemos, seria difcil propor uma classificao dos contos que no
previsse o cruzamento de temas trabalhados por nosso autor. No caso dos contos e
novelas passados na Normandia, o espao no restringe o assunto que envolve a trama,
mas muitas vezes determina um perfil especfico de personagem. Maupassant usa com
frequncia a cor local para criticar comportamentos e hbitos. H a recorrncia de tipos,
esboos de pessoas conhecidas do autor quando viveu nessa regio, onde passou a
maior parte de sua vida. Muitas das peripcias includas nesses textos explicam-se por
um modo de vida e uma viso pragmtica dela tipificados.
A novela La Maison Tellier (1881) antes de tudo a histria de um prostbulo
numa cidade litornea normanda, casa familiar, como muitos que existiam (e talvez
ainda existam) nas pequenas cidades. Situada em Fcamp e mantida por uma viva
261
262
100
263
MAUPASSANT, Guy de. La Maison Tellier. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 258.
Idem, p. 271.
265
Idem, p. 275.
266
Idem. Histoire dune fille de ferme. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 239.
264
101
MAUPASSANT, Guy de. tudes, chroniques et correspondance. Ed. de Ren Dumesnil. Paris:
Librairie de France/Grnd, 1938. p. 437-8.
268
Idem. Toine. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 433.
269
Idem, p. 435.
102
plus dimportance; les relations y sont moins nombreuses, mais on se rencontre plus
souvent. Quand on connat toutes les fentres dune rue, chacune delles vous
occupe et vous intrigue davantage quune rue entire de Paris.270
Esse interesse mesquinho pela vida dos outros motivo de contos como Le
crime au pre Boniface, conforme vimos, e tambm de Le rosier de Mme Husson.
Durante a conversa dos dois amigos, o primeiro diverte-se com as anedotas do lugar e
diz que Marambot possui uma doena especial, o esprit de clocher, uma espcie de
provincianismo. O mdico ento explica a expresso e o seu gosto pelo regionalismo,
dando o perfil do homem normando:
Lesprit de clocher, mon ami, nest pas autre chose que le patriotisme naturel.
Jaime ma maison, ma ville et ma province par extension, parce que jy trouve
encore les habitudes de mon village; mais si jaime la frontire, si je la dfends, si je
me fche quand le voisin y met le pied, cest parce que je me sens dj menac dans
ma maison, parce que la frontire que je ne connais pas est le chemin de ma
province. Ainsi moi, je suis Normand, un vrai Normand [...]271
270
MAUPASSANT, Guy de. Le rosier de Mme Husson. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 952.
Idem, p. 954.
272
JAMES, Henry. Op. cit., p. XIII.
271
103
104
105
passeio de comemorao torna-se uma aventura amorosa para me e filha, que passam a
se entreter num passeio de barco com dois homens locais, enquanto o pai e o noivo da
moa pescam.
Dos ltimos contos do autor que tm por espao o centro parisiense, os mais
significativos so aqueles que encerram, junto a esse ambiente de luxo e vigor ertico,
questes de identidade, deformada pela preocupao com a aparncia e a autoimagem.
A sociedade parisiense revela-se um teatro em que as personagens querem atuar
perpetuamente, guardando as mesmas convenes. Maupassant apresenta a uma
reflexo mais complexa que aquela mera oposio entre campo e cidade, e o tom
judicativo desviado do discurso do narrador. Em Le masque (1889), apresenta-nos
um homem que vai a um baile de carnaval e procura manter sua aparncia jovem e seu
vigor durante toda a noite atrs de sua mscara, quando, na verdade, est quase
morrendo. Linutile beaut (1890), novela que tambm tem por belo pano de fundo os
bulevares e teatros parisienses, envolve problema semelhante, mas que preferimos tratar
no item reservado aos contos de seduo.
A moldura dessas narrativas, repletas de belas descries de ruas e de
monumentos centenrios, encanta ainda o leitor, assim como a essas personagens, que
perambulam por esse cenrio, obnubiladas por ideais despertados pela cidade-luz. Essa
seduo por vezes causa o riso no leitor; mas, em excurses noturnas, leva ao frisson da
morte (mesmo que onrica), que vinha anunciada no incio do belssimo conto La nuit.
Je vais, je marche, tantt dans les faubourgs assombris, tantt dans les bois voisins
de Paris, o jentends rder mes surs les btes et mes frres les braconniers.
Ce quon aime avec violence finit toujours par vous tuer. Mais comment expliquer
ce qui marrive?279
6.4 Grandes misrias de pequenas pessoas: os contos e as novelas sobre pequenoburgueses e funcionrios
MAUPASSANT, Guy de. La nuit. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 944-5. O subttulo desse conto
Cauchemar.
280
BARTHES, Roland. Maupassant et la physique du malheur. uvres compltes. [s.l.]: ditions du
Seuil, 1993. t. 1. p. 641. O artigo de 1956. No o vimos mencionado nas vastas bibliografias sobre
nosso autor estabelecidas por Louis Forestier e Henri Mitterand, nem citado por crticos mais recentes.
106
107
apenas tomado uma fitinha do cho. Promenade apresenta a histria de Pre Leras,
um empregado que, por trabalhar demais e sem conscincia disso, nunca pde desfrutar
de nenhum prazer da vida e, quando enfim sai para fazer o seu nico grande passeio
pela cidade, acaba se suicidando.
Em cheval, conta-se a vida de Hector de Gribelin, sua esposa e dois filhos,
de origem nobre, mas que vivem do curto salrio do pai de famlia, funcionrio do
Ministrio da Marinha como foi Maupassant. Tendo recebido uma pequena
gratificao, Hector resolve oferecer um passeio dominical de carro, mulher e aos
filhos, e ele os seguiria a cavalo. Ao passar pela avenue des Champs-Elyses, onde ele
esperava ser visto por toda a sociedade, o cavalo passa do trote ao galope e Hector, sem
conseguir dominar o animal, acaba atropelando uma empregada domstica de 65 anos,
Mme. Simon, que atravessava a avenida. Aps passar pela delegacia, Hector tem de
pagar uma casa de sade para Mme. Simon por um ms, o que consome toda a sua
gratificao. Os mdicos declaram a velha empregada impossibilitada de voltar ao
trabalho, o que decide Mme. Gribelin a cuidar de Mme. Simon em sua casa.
Esses contos lidam quase sempre com uma quebra de expectativas, das
personagens e do leitor (semelhante que ocorre no fait divers), que passam a tomar
conhecimento, bruscamente, de um saber que lhes custa toda a vida e, para o leitor, o
engaja releitura, para ver desde onde foi iludido. Otto Maria Carpeaux observou a
funo dessa reviravolta no conto, de que, para esse crtico, Maupassant o criador:
Maupassant o criador da short story, caracterizada por uma ou duas viravoltas
bruscas que do o efeito infalvel. Nesta tcnica, Maupassant mestre inigualvel; e
no uma tcnica mecnica. No serve s para surpreender o leitor, mas tambm
para irritar certos leitores. O bomio Maupassant pretende pater le bourgeois,
assim como seu padrinho e mestre Flaubert.283
CARPEAUX, Otto Maria. Histria da Literatura Universal. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1963. v. V. p.
2423.
108
hideur et aussi dans tout son pathtique: les personnages apparaissent comme
possds du germe mme de la catastrophe tragique: laveuglement, la dmesure,
la folie du trop paratre. Presque tous les contes de Maupassant sont des drames
de la vanit sociale.
[...]
Maupassant est lun des grands crivains de notre littrature qui ait su dcrire en
profondeur une alination sociale, gnreurement dmystifie.284
Os eptetos dados ao autor, que pode ser a uma s vez libertino e ingnuo,
envolvem questes culturais de recepo literria, de uma obra que no cansar de
intrigar os crticos e atrair leitores curiosos. Se o erotismo de Maupassant j no espanta
mais o pblico moderno, certo que sua leitura, por muito tempo, no era recomendada
284
109
nas famlias mais tradicionais, tanto no Brasil quanto na prpria Frana. O assunto
parece de tal modo entranhado na arte do contista que, mesmo contos em que a inteno
no tratar especificamente desse tema, ele acaba aparecendo de maneira latente. Em
Boule de Suif, vimos como as personagens acabam contaminadas pelo amor na noite
em que a cortes se entrega por dever social ao comandante alemo. Trataremos a
seguir de contos em que o tema acaba conduzindo a trama e ocupando lugar central.
Homens sedutores
288
MAUPASSANT, Guy de. La dot. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 327.
Idem, p. 332.
290
Idem. Bombard. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 368.
289
110
casa de campo. Ele articula um estratagema para atender a seus desejos: contrata uma
empregada insuspeita, Victorine, e, enquanto a inglesa dorme, encontra-se com a jovem,
a quem sempre d uma moeda de um lus. O desfecho do conto surpreende: certa noite,
Simon se demora com Victorine, pois a sente mais animada que de costume; no dia
seguinte, Mme. Bombard estende empregada uma moeda, dizendo com seu sotaque:
Ten, ma fille, voil vingt francs dont jav priv v, hier au soir. Je v les rend.291
O conto acaba com os olhos enormes do marido voltados para a mulher, surpreso por
saber que dormiu com ela.
Poderamos citar aqui outros contos em que o jogo de seduo masculino acaba
com um resultado desfavorvel ao sujeito, por conta da astcia feminina. Les pingles
(1888) retrata a vingana de duas amantes contra o homem que as engana. Em outros
textos, a seduo feminina o tema central, conforme veremos.
Mulheres sedutoras
Mantendo-se solteiro a vida toda e assim livre para relacionar-se com diversas
mulheres, Maupassant pde conhecer muito bem os ardis de seduo femininos, sobre
os quais tinha uma viso muito particular (e, por vezes, contraditria). Como em
diversos outros planos, em que preferiu manter-se liberto de convenes e de relaes
estritas, ele tambm pregava isso no domnio amoroso, conforme vimos nesta frase:
Jai peur de la plus petite chane, quelle vienne dune ide ou dune femme.292
Contos como Nuit de Nol, La porte, Au bord du lit, Le signe,
Larmoire, La chambre 11, Joseph, Rose, Le saut du berger, Les caresses,
Imprudence e La toux tratam do uso desses ardis ou das descobertas dos poderes
femininos nas relaes amorosas, conjugais ou no. O grupo de amigas no incomum,
e h uma trilogia em que duas delas voltam (a baronne de Grangerie e a marquise de
Rennedon): La confidence, Sauve e Le signe.
Em Joseph (1885), duas amigas jovens, uma baronesa e uma condessa, so
deixadas por seus maridos durante cinco dias numa praia pouco frequentada, a fim de
evitar les rdeurs galants. As duas fazem de tudo para se distrair, bebem, fumam e
conversam sobre amor e amantes, de que j sentem falta. Elas desenvolvem uma ideia
comum, desde os textos teatrais do autor, de que impossvel amar no casamento, a
291
MAUPASSANT, Guy de. Bombard. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 370.
Carta a Catulle Mends, enviada de Paris, em 1876. MAUPASSANT, Guy de. tudes, chroniques et
correspondance. Op. cit., p. 220.
292
111
algum com quem se vive sempre. A baronesa Andre de Fraisires lana o desafio:
Moi [...] jen trouve toujours; mme ce soir, si jen voulais un, je laurais.293 Ela
apresenta sua tcnica (compara seu modo de obter amantes pesca com vara) e uma
teoria sobre o homem do tipo Joseph, que no se deixa atrair, seja por estar
apaixonado por outra mulher, seja por excessiva timidez, seja por ser incapable de
mener jusquau bout la conqute dune femme.294 O dilogo torna-se lascivo e ela
conta uma de suas histrias com um homem admitido como empregado (assim como
fez Simon Bombard), a quem ela chamava de Joseph. O relato, que j tem humor por si,
torna-se ainda mais engraado pela forma do dilogo, que estruturado como uma cena
de teatro. A curiosidade e ingenuidade de sua interlocutora, a condessa Noemi de
Gardens, torna mais vivaz a narrao de sua amiga, e seu espanto junta-se ao do leitor
quando faz surgir no ato da enunciao o objeto do dilogo: Joseph.
O rol de personagens femininas variado e, como vimos nos outros tpicos,
quase sempre envolve uma distino de inteligncia vinculada categoria social a que
pertencem essas mulheres; por conseguinte, o nvel cultural influencia na caracterizao
das mulheres mais astuciosas: enquanto Andre de Fraisires l Georges Sand, a pobre
protagonista de Enrage? lia faits divers e obras como Autour du mariage.
Nessa galeria maupassantiana, permitido ver mulheres que, mesmo carentes de
cultura letrada e do amor, so intuitivas e alcanam seus objetivos, como em a ira
(1885). Linutile beaut (1890) envolve uma relao complexa do casal, na qual o
marido ciumento se usa, inutilmente, da gravidez sucessiva de sua esposa (so sete ao
todo) para tentar mant-la indesejvel e omissa sociedade. Mas a condessa Gabrielle
Mascaret, sempre bela, vinga-se do marido mentindo, ao dizer que um de seus filhos foi
gerado por outro homem. A dvida sobre a paternidade corri por anos o conde
Mascaret (assim como ao protagonista de M. Parent), at que a condessa confessa sua
mentira, arquitetada para acabar com o interesse do marido por ela e findar a
progenitura. Sobre essa novela, vejamos o que o prprio Maupassant disse a respeito,
ele que admirava esse texto, pela sua simbologia e pelo modo como esperava atingir a
sensibilidade de seu pblico:
[...] soyez sr que LInutile Beaut a cent fois la valeur du Champ dOliviers. Celuici plaira davantage la sensibilit bourgeoise; mais la sensibilit a des nerfs au lieu
293
294
MAUPASSANT, Guy de. Joseph. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 507.
Idem, p. 509.
112
de jugement. LInutile Beaut est la nouvelle la plus rare que jaie jamais faite. Ce
nest quun symbole.295
295
113
114
fantastique e Adieux mystres e nas duas verses de La peur (de 1882 e de 1884).
Segundo Remo Ceserani:
uma caracterstica constante da literatura fantstica em geral a presena de
declaraes de intenes, reflexes tericas sobre as experincias contadas,
definies de gnero, notas introdutrias ou observaes e comentrios do narrador
espalhadas aqui e acol no desenrolar das narraes: o fantstico, entre outras
modalidades e gneros literrios, um dos mais claramente autoconscientes.300
CESERANI, Remo. O fantstico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. p. 144,
nota 16.
301
O estudo de Anatol Rosenfeld sobre Hoffmann nos despertou para essa compreenso: O que, porm,
d um cunho todo especial obra de Hoffmann e no se coaduna plenamente com sua classificao de
romntico (nos termos do romantismo alemo) o forte trao realista de muitas de suas narrativas,
particularmente da sua fase madura. [...] O fantstico na obra de Hoffmann localiza-se geralmente em
pleno ambiente real, muitas vezes descrito com grande preciso. ROSENFELD, Anatol. E. T. A.
Hoffmann. Letras germnicas. So Paulo: Perspectiva/Edusp; Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
(Debates, v. 257). p. 31.
302
MAUPASSANT, Guy de. La peur. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 601.
115
303
116
novela e muito consciente sobre o que escrevia, o escritor logo preveniu seu camareiro,
Franois Tassart:
Avant huit jours, vous verez que tous les journaux publieront que je suis fou. [...]
leur aise, ma foi, car je suis sain desprit, et je savais trs bien, en crivant cette
nouvelle, ce que je faisais. Cest une uvre dimagination qui frappera le lecteur et
lui fera passer plus dun frisson dans le dos, car cest trange.306
preciso observar que, j na verso de 1886, o narrador que relata seu caso
diante dos mdicos percebe a falta de verossimilhana de sua histria, ao ser contada
oralmente, e que seria mais convincente se fosse dada sob a forma de dirio
exatamente o que far Maupassant na segunda verso.
Je sens, messieurs, que je vous raconte cela trop vite. Vous souriez, votre opinion
est dj faite: Cest un fou. Jaurais d vous dcrire longuement cette motion
dun homme qui, enferm chez lui, lesprit sain, regarde, travers le verre dune
carafe, un peu deau disparue pendant quil a dormi. Jaurais d vous faire
comprendre cette torture renouvele chaque soir et chaque matin, et cet invincible
sommeil, et ces rveils plus pouvantables encore.309
117
se reinterpretam, creio ter sido inaugurada com Maupassant: alm das duas verses de
Le Horla, temos o caso das duas verses bastante distintas de La peur, alm do par
La main e La main dcorch. Eles representam na obra do autor um
autoquestionamento de formas, temas e tratamento literrio que volta em momentos
diversos de sua carreira.
Como vemos, Maupassant ocupou-se muito em retrabalhar o fantstico ao longo
de sua obra e, dessa forma, contribuiu para inov-lo. As suas reflexes sobre o assunto
so bastante desenvolvidas dentro de seus textos, verdadeiros metacontos, em que se
esboa uma teoria da evoluo e a recepo de uma forma atrelada a um tema.
A ideia de que o medo e o sentimento do fantstico no surgiriam nos trpicos
(apresentada no Brasil por Araripe Jnior)310 tambm foi alimentada por Maupassant: no
conto La peur (de 1882), ele exprime pela fala da mesma personagem que j citamos:
Je lai sentie [la peur] en Afrique. Et pourtant elle est fille du Nord; le soleil la
dissipe comme un brouillard. Chez les Orientaux, la vie ne compte pour rien; on est
rsign tout de suite; les nuits sont claires et vides de lgendes, les mes aussi vides
des inquitudes sombres qui hantent les cerveaux dans les pays froids. En Orient, on
peut connatre la panique, on ignore la peur.311
118
Mas s aps morto, aos 82 anos, descobre-se, entre seus papis, um manuscrito,
colocado junto a um dossi, composto de pensamentos datados em que faz uma
apologia da morte e da impunidade, dispostos num crescendo, tpico do dirio ntimo:
Car tuer est la grande loi jete par la nature au cur de ltre!
[...] La nature aime la mort; elle ne punit pas, elle!
[...] Ce doit tre un trange et savoureux plaisir que de tuer [...]
Moi qui ai pass mon existence juger, condamner, tuer par des paroles
prononces, tuer par la guillotine ceux qui avaient tu par le couteau, moi! moi! si
je faisais comme tous les assassins que jai frapps, moi! moi! qui le saurait?314
313
119
316
Como por um lapso? Roger Bastide o chamou no artigo Lhypocrisie visuelle dans la littrature
contemporaine. Bastidiana: posie, mysticisme et sociologie, n. 10-1, avril-sept. 1995, p. 123. O texto
provm de uma conferncia, proferida pelo autor em Bordeaux, em 5 de maro de 1922.
317
LINTVELT, Jaap. La polyphonie de lencadrement dans les contes de Maupassant. In:
MAUPASSANT et lcriture. Actes du colloque de Fcamp. Direction de Louis Forestier. ditions
Nathan, 1993, p. 173. Jaap Lintvelt afirma que h 144 narrativas enquadradas, dentre as 301 reunidas por
Louis Forestier, na edio da Pliade dos Contes et nouvelles.
120
(enquanto se digere, ouve-se uma histria que alimenta o esprito; cf. Une veuve) ou a
hora do ch (Le bonheur).
comum que suas personagens-contadoras reforcem a exemplaridade de seu
caso, a fidedignidade dos fatos narrados e a importncia de seu relato por meio de frases
apelativas, como: Je me rappelle cela comme dhier;318 Jai gard de ce soir-l une
impression inoubliable;319 [...] jprouve dabord le besoin de vous affirmer que mon
histoire est vraie en tous points, quelque invraisemblable quelle paraisse;320 Je vais
vous dire la chose pour votre instruction;321 Oh, cest toute une histoire, une assez
triste et vilaine histoire;322 Dites-moi donc son histoire. Les choses les plus simples,
les plus humbles, sont parfois celles qui nous mordent plus au cur;323 pour rpondre
[...] ce que nous disions et me rappeler un singulier souvenir, jai connu un exemple
admirable [...];324 Il avait d rpter souvent cette histoire, car il la disait couramment,
nhsitant pas sur les mots choisis avec habilet pour faire image.325
O aspecto da recepo pelo ouvinte ou pelo leitor foi ressaltado por Peter
Brooks, no artigo em que observa os contos de Maupassant luz da teoria do narrador
de Walter Benjamin:
Maupassant offre un exemple clatant de cette littrature urbaine et marchande,
dpendante des journaux et des diteurs, qui ne cesse pourtant pas de mettre en
scne des situations fictives de communication orale. Les contes de Maupassant
abondent en exemples de rcits encadrs, o il y a rcit dans le rcit, o celui qui
parle sadresse celui (ou peut-tre plus souvent: celle) qui coute, o un
narrateur a presque toujours un ou plusieurs narrataires explicites. Ce qui est mis en
jeu dans ces contes, cest moins le message du rcit que sa rception.326
Esse recurso estrutural em abismo responde a uma inteno do efeito que se quer
causar no leitor. Ele permite ao autor criar uma verossimilhana interna maior (como no
caso da primeira verso de Le Horla e em Apparition), ou aumentar o humor (caso
de Joseph), ou ainda distinguir a voz da personagem da voz do narrador e isent-lo de
julgamentos (Moiron).
318
121
Empregaremos, em diversos momentos, os termos da teoria dos nveis narrativos, de Grard Genette.
Narrador extradiegtico refere-se quele que no est inserido na histria que narra, ao contrrio do
intradiegtico; o narrador heterodiegtico est inserido na histria, mas no como atuante, as aes no
so suas; o narrador homodiegtico o que relata uma histria em que atua; j o narrador autodiegtico
relata a sua prpria histria. Por exemplo: Schhrazade est une narratrice intradigtique, parce quelle
est dj, avant douvrir la bouche, personnage dans un rcit qui nest pas le sien; mais puisquelle ne
raconte pas sa propre histoire, elle est en mme temps narratrice htrodigtique. GENETTE, Grard.
Nouveau discours du rcit. Paris: Seuil, 1983. p. 56.
328
BROOKS, Peter. Le conteur-rflxions partir de Walter Benjamin. Op. cit., p. 226.
329
MAUPASSANT, Guy de. Humble drame. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 1018.
330
Idem, p. 1020.
331
Idem.
122
Cf. GODENNE, Ren. Pistes pour une tude de la nouvelle au XIXe sicle. tudes sur la nouvelle de
langue franaise. Paris: Honor Champion, 1993. p. 49-63.
333
Notas de Louis Forestier. In: MAUPASSANT, Guy de. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 1563-4.
334
Maria Cristina Batalha escreveu um curioso artigo sobre os procedimentos orais desse volume de
Maupassant, mas em que sentimos falta de comentrios sobre o quarto ao penltimo contos, portanto a
maioria, que revelam a falta de unidade, pressuposta por Maupassant na apresentao de La Bcasse.
Cf. BATALHA, Maria Cristina. A presena da vertente oral no conto literrio de Guy de Maupassant.
Matraga. Rio de Janeiro, v. 15, 2003. p. 119-32.
335
GODENNE, Ren. Le recueil de nouvelles. tudes sur la nouvelle de langue franaise. Op. cit., p.
153.
123
mesmo Contes de la Bcasse, apenas encena uma unidade inicial, j que nem a
introduo do volume, La Bcasse, nem suas personagens so mais mencionadas no
restante das narrativas, que ali se pretendiam enquadradas. Trataremos largamente desse
volume no captulo sobre Simes Lopes Neto.
Alm do conto dentro do conto, tambm o uso da carta (v. Lettre dun fou) e
do dirio (La chevelure, a segunda verso de Le Horla, Aux eaux) dentro da
histria primeira servem ao autor para compor uma estrutura complexa em nveis
narrativos, com intenes semelhantes s que j expusemos: aumentar a
verossimilhana interna, outorgar personagem acontecimentos estranhos e sua
autenticidade. Dilogos carteados entre amantes ou amigos variam o uso do narrador em
primeira pessoa, dando certa vivacidade ao relato (como em Mots damour, Nos
lettres, La moustache, Enrage?).
Sobre a absoro de outras formas literrias nos contos de Maupassant, elas
respondem a um fenmeno cada vez mais comum literatura moderna. Cleusa Rios
Pinheiro Passos observou como Maupassant opera com a transposio da carta e do
poema no conto Mots damour, em seu trabalho primoroso, que, de algum modo,
aproxima o conto das grandes experimentaes estruturais presentes no romance.336
Segundo a mesma estudiosa, esse conto apresenta, portanto, apenas duas missivas,
retirando da forma epistolar a base de sua configurao, mas observa que:
No fica a a apropriao de Maupassant, pois a narrativa enriquecida pela
insero de outra forma literria, o poema, representado por uma estrofe de Louis
Bouilhet e outra de Musset (autoria indicada pelo prprio Ren). O esforo de
citao, compreendido dentro da atmosfera didtica do conto, nos mergulha de
imediato no s na explorao de seus limites tericos, mas igualmente na
necessidade que a arte tem de se auto-referenciar e buscar em outras experincias
literrias composio epistolar, verso ou at dirio [...], modos de mimetizar o
real e particularizar um momento da existncia, amplificando-o, pelo tratamento
privilegiado que lhe conferido.337
Por meio do estudo de diversos contistas, Cleusa Rios Pinheiro Passos tem por
objetivo ilustrar como o conto, como forma de arte literria, incorpora desde sempre,
mas cada vez mais na literatura moderna, outras experincias, bem como elementos de
conhecimentos contguos o que mostra a impossibilidade de teorias totalizadoras
sobre ele.338
336
PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. Breves consideraes sobre o conto moderno. In: BOSI, Viviana et al.
(Org.). Fices: leitores e leituras. So Paulo: Ateli Editorial, 2001. p. 82.
337
Idem, p. 82.
338
Idem, p. 86-7.
124
339
BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da
cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 200.
340
BROOKS, Peter. Op. cit., p. 232-3.
341
CARPEAUX, Otto Maria. Histria da Literatura Universal. Op. cit., p. 2423 e 2424.
342
ZOLA, mile. Guy de Maupassant. Europe, n. 482, Paris, juin 1969, p. 11.
125
CAPTULO 7
Maupassant romancista
343
MAUPASSANT, Guy de. Question littraire. Chroniques: anthologie. Paris: Librairie Gnrale
Franaise, 2008. (Le Livre de Poche). p. 1378. Grifo do autor.
344
Idem. Romans. Chroniques: anthologie. Op. cit., p. 1455-6.
345
Idem. Les bas-fonds. Chroniques: anthologie. Op. cit., p. 1471.
126
346
VIAL, Andr. Guy de Maupassant et lart du roman. Paris: Nizet, 1994. FORESTIER, Louis. Prface.
In: MAUPASSANT, Guy de. Romans. Paris: Gallimard, 1987. (Bibliothque de la Pliade). p. XXXII.
347
HAN, Jean-Pierre. Un prcurseur du nouveau roman? Europe, Paris, n. 482, p. 102-6, juin 1969.
127
fato que Maupassant deixa aos poucos o narrador onisciente e impessoal para
aderir, ainda em terceira pessoa, a um narrador que assume o discurso indireto livre com
frequncia e que persegue mais de perto o ponto de vista de uma personagem em
especfico.
O primeiro romance de Maupassant foi escrito entre 1878 e 1882, e publicado
em folhetim em 1883. Une vie foi logo recebido com grande entusiasmo, pela crtica e
pelo pblico. Temos a um romance de aprendizagem, em que o desencantamento com a
vida, de que prova a protagonista, Jeanne, assemelha-se ao de Emma, em Madame
Bovary. Passa-se tambm na Normandia, e a famlia de Jeanne provm de Rouen. A
epgrafe do romance Lhumble vrit (que lembra a do romance stendhaliano Le
rouge et le noir: Lpre vrit, por sua vez retirada de Danton, e remete-nos a outro
texto de Maupassant, que tem por ttulo Humble drame) resume no s a vida dessa
mulher como a esttica do romance de Maupassant, conforme visto em Le roman. O
desencantamento de Jeanne com a vida provm da observao de inmeros adultrios,
dos quais ela est rodeada e que seu esprito puro e correto no suporta. O desgosto com
a traio da me, do marido e depois do filho apenas sutilmente amenizado no final da
trama. Sozinha no mundo com uma empregada que traiu sua confiana, mas que ficar
cuidando dela at o fim, Jeanne conclui que Rosalie foi mais feliz que ela mesma.348 A
concluso do romance aponta para um final de vida sem grandes acontecimentos.
Jeanne alegra-se com a ideia de criar a neta ilegtima e rf de me e com a volta breve
do filho Paul.
Numa crnica de 1884, Maupassant afirmava que o romancista devia ver a vida
com os olhos das personagens, segundo o temperamento e o meio particular a cada uma
delas.349 Dessa maneira, o romancista passa de uma mulher normanda, sem ambio
nenhuma, a um homem parisiense, que far de tudo para ascender. Bel-Ami (1885) um
romance de costumes que poderamos relacionar tanto a Les Illusions perdues quanto a
Le pre Goriot, de Balzac. Passa-se em Paris, onde a ascenso de Georges Duroy no
s social e financeira, mas tambm amorosa e poltica (acaba baro e pretende tornar-se
ministro). Logo no incio do romance, uma fala de seu amigo Forestier acorda em
Duroy a sua verdadeira vocao: tu as vraiment du succs auprs des femmes. Il faut
soigner a. a peut te mener loin [...] Cest encore par elles quon arrive le plus vite.350
348
128
E exatamente o que faz Duroy, passando de Mme. de Marelle a Mme. Forestier, Mme.
Walter e sua filha Suzette.
A polmica em torno de seu segundo romance fez o autor escrever uma carta,
em 1 de junho de 1885, ao Gil Blas, jornal em que Bel-Ami sara em folhetim, em
defesa prpria: Jai voulu simplement raconter la vie dun aventurier pareil tous ceux
qui nous coudoyons chaque jour dans Paris, et quon rencontre dans toutes les
professions existantes.351 Ele explica que no quis retratar a classe dos jornalistas, mas
sim um sujeito sem profisso simplement affam dargent et priv de conscience. E
explica que escolheu o jornal para seu personagem realizar sua ascenso, pois esse
meio, mais que qualquer outro, lhe permitiria retratar todas as etapas dessa evoluo.
La Presse est une sorte dimmense rpublique qui stend de tous les cts, o on
trouve de tout, o on peut tout faire, o il est aussi facile dtre un fort honnte homme
que dtre un fripon.352 Maupassant quer eximir-se, assim, de qualquer interpretao de
seu romance como clef. Georges Duroy um aventureiro, como existem em qualquer
profisso, e que se tornou jornalista pelo acaso de um encontro.
Mont-Oriol (1886-1887), que Maupassant considerava o seu romance mais
353
fraco,
129
esto fadados solido e ao isolamento. Christiane Ravenel, como Jeanne, de Une vie,
acreditava que a vida era simples e boa, via o mundo travers lillusion du rve
intrieur,355 at que descobre o amor e se desilude dele ao cabo de um ano. O declnio
de sua histria de amor ocorre na mesma proporo que a ascenso de seu marido, o
banqueiro judeu William Andermatt, que se casou par adresse [...] pour tendre ses
spculations dans un monde qui ntait point le sien.356 Sua fortuna ser multiplicada
com a explorao de um negcio em ascenso na poca, o turismo medicinal. A cura
pelas guas, que, desde 1883, Maupassant havia pessoalmente buscado, s no
consegue reverter, em seu romance, a desiluso e a ganncia. Podemos concluir que, no
pequeno mundo do Mont-Oriol, todos so doentes, do corpo ou do esprito, e que os
males mais incurveis so mesmo os deste ltimo. Numa crtica contempornea
publicao do romance, Brunetire comentou que Maupassant se mantivera pessimista
neste romance, mas que son pessimisme a souri, pois trouxe consigo a emoo qui
manquait encore ses romans.357
O tema da bastardia, muito comum nos romances naturalistas do perodo,
bastante recorrente na obra maupassantiana. Segundo diversos crticos, esse assunto
passa a interessar o romancista principalmente aps o nascimento de seus filhos
bastardos, cuja filiao at hoje discutvel.
Aussi rpandue lpoque que la syphilis, la btardise hante luvre de
Maupassant. Au total, trente-deux contes, trois romans, Pierre et Jean, Une vie,
Mont-Oriol. Avec une rcurrence du thme partir de 1883, anne de la naissance
de Lucien Litzelmann358 [o primeiro dos trs ou quatro filhos bastardos do escritor].
Idem, p. 695.
Idem, p. 488.
357
BRUNETIRE. Revue des Deux Mondes. 1er mars 1887. Apud: FORESTIER, Luis. Mont-Oriol.
Notice. In: MAUPASSANT. Romans. Op. cit., p. 1442.
358
FRBOURG, Olivier. Maupassant, le clandestin. [s.l.]: Mercure de France, 2000. p. 129.
356
130
num navio. A ideia final do romance, da personagem que parte rompendo os laos
familiares que a atormentavam e vaga ao lu de seu destino, seria tematizada em outros
momentos da obra maupassantiana.
Zola considerava Pierre et Jean o melhor romance de Maupassant: [...] je veux
mme faire une place part Pierre et Jean, qui est, selon moi, la merveille, le joyau
rare, luvre de vrit et de grandeur qui ne peut tre dpasse.359 Maupassant chegou
a autorizar que Oscar Mtnier adaptasse esse romance para o teatro e leu o roteiro, ao
qual fez muitas objees, que se podem ler em carta de fevereiro-maro de 1888.
Em Fort comme la mort (1889), romance parisiense, o duplo feminino
representado por me e filha, Anne (Any) Guilleroy e Annette, assombra a vida do
protagonista, o pintor Olivier Bertin. A sensao da passagem do tempo (h diversas
cenas de espelho, com as trs personagens do tringulo), do seu envelhecimento (os
cabelos de Olivier embranquecem de repente, da mesma forma que acontece a Mme.
Roland, em Pierre et Jean), de seu isolamento e do amor pela me passam a angustiar
Olivier, a partir de quando percebe estar apaixonado pela filha da amante, agora noiva
do marqus de Farandal. Ele redescobre sua juventude ao rever na filha o rosto e a voz
da mulher que primeiro amou. Os discursos indiretos, o fluxo de conscincia e o
retrospecto que pe o leitor a par do passado de Olivier e Anne so marcas dessa nova
forma do romance maupassantiano, utilizada exausto a partir de Pierre et Jean.
Il la regardait avec ravissement, comme on regarde une aurore, comme on coute de
la musique, avec des tressaillements daise quand elle se baissait, se redressait,
levait les deux bras en mme temps pour remettre en place sa coiffure. Et puis, de
plus en plus, dheure en heure, elle activait en lui lvocation de lautrefois!360
359
131
destructeur, de plus fort que la mort. Je suis lui comme une maison qui brle au
feu!362
Olivier Bertin acaba consumido por seu amor e morto por um acidente, em que
atropelado por um nibus. o nico final trgico num romance maupassantiano e que
contraria as regras de verossimilhana estabelecidas em Le roman.
Desde o incio de 1889, Maupassant escrevia um romance que chamaria Curs
trangers, conforme carta a Victor Havard, de final de 1888 ou incio de 1889. Notre
cur (1890) pe em questo um homem romntico que no consegue se fazer amar por
uma mulher frgida. Assim como na maioria dos romances de Proust, h aqui um retrato
da aristocracia parisiense, em meio qual est um artista, Andr Mariolle, que no
consegue se libertar de um amor castrador por Michle de Burne. Maupassant oferece
aqui sua herona moderna, uma mulher de esprito livre, mas a quem no faltam
aspectos negativos, sob o ponto de vista da poca: a frieza, o desinteresse pelo amor e
pela maternidade. o que mostra esta fala de um amigo de Mariolle, o romancista
Lamarthe:
Voyez-vous, mon cher, la femme nest cre et venue en ce monde que pour deux
choses, qui seules peuvent faire panouir ses vraies, ses grandes, ses excellentes
qualits: lamour, et lenfant. Je parle comme M. Prudhomme. Or celles-ci [comme
Mme. de Burne] sont incapables damour, et elles ne veulent pas denfants; quand
elles en ont, par maladresse, cest un malheur, puis un fardeau. En vrit, ce sont
des monstres.363
Ou seja, at seu ltimo romance publicado, Maupassant era movido por uma
corrente de verdade, lhumble vrit que encabea Une vie.
362
132
133
CAPTULO 8
A repercusso da obra de Guy de Maupassant
MAUPASSANT, Guy de. La vie errante: Venise Ischia Pcheuses et guerrires. Paris: Conard,
1909. p. 122.
367
ARTINIAN, Artine. Pour et contre Maupassant: enqute internationale (147 tmoignages indits).
Paris: Librairie Nizet, 1955. p. 8.
368
Idem, p. 10. Tecemos diversos comentrios sobre esses depoimentos em nossa dissertao de
mestrado, A volta do Horla: a recepo de Guy de Maupassant no Brasil.
134
(1888-1923). Mas, para os amantes da literatura realista, Maupassant nunca perderia seu
lugar no cnone. Segundo Artine Artinian, aps 1925, houve a retomada de Maupassant
na Frana, cuja reabilitao s cresceu nas dcadas seguintes, com a fundao de
associaes dedicadas a publicar peridicos especializados no autor. Aos poucos,
redescobriu-se o valor literrio da obra maupassantiana, e reedies comentadas de seus
textos foram organizadas por estudiosos, o que deu margem a trabalhos preciosos, de
diferentes lavras. Considerados clssicos, textos como Boule de Suif e o romance Une
vie fazem parte de currculos escolares franceses. Manuais sobre teoria do conto e,
sobretudo, de literatura fantstica, raramente deixam de posicionar o autor de Le
Horla num alto lugar de independncia no gnero, apontando um grupo de escritores
que o tomaram por modelo.
Segundo o estudioso belga Ren Godenne, no sculo XX, houve um duplo
movimento, entre escritores franceses, de rejeio e de homenagem (encensement) do
legado maupassantiano. O movimento de rejeio demonstra-se pelas novas escolhas
que fizeram determinados contistas, quanto aos procedimentos ficcionais.
Aux yeux des nouvellistes du XXe sicle qui refusent de sacrifier tout llment
anecdotique, Maupassant incarne limage sclrose du nouvelliste-conteur avec son
arsenal de procds jugs uss (les cadres narratifs dintroduction, la mise en place
dun paroxysme dramatique, la chute...). Lorsque jappris, dans les annes 1990,
un des responsables dun concours de nouvelles que les organisateurs avaient refus
un texte de Maupassant envoy par mes soins sous un autre nom, il me rpondit que
de toute faon le texte naurait pas t retenu si le nom de son auteur avait t
connu! Faudrait-il croire que lauteur aurait des difficults se faire diter prsent
comme lont soutenu Edith Thomas: [...] si Maupassant, si Tchekhov revenaient
sur terre, ils ne trouveraient vraissemblablement pas, en France, dditeur [...]369
369
GODENNE, Ren. Le monde de la nouvelle franaise du XXe face Maupassant. In: BENHAMOU,
Nolle (Org.). Guy de Maupassant. Amsterdam/New York: Rodopi, 2007. p. 113-4. O texto de Edith
Thomas data de 1954.
135
Suas tradues para o russo comearam quando Maupassant era vivo e eram
muitas vezes organizadas por grandes nomes das letras. Tolstoi, no ano da morte do
escritor francs (1893), prefaciou e organizou dois volumes de suas obras. Em 1894, j
370
Segundo Godenne, ao longo do sculo XX, trinta e cinco recueils fazem referncia a Maupassant.
Idem, p. 116.
371
GRANDADAM, Emmanule. Contes et nouvelles de Maupassant: pour une potique du recueil. MontSaint-Aignan: Publications des Universits de Rouen et du Havre, 2007. p. 15-6.
372
SATIAT, Nadine. Guy de Maupassant. Op. cit., p. 631. FRBOURG, Olivier. Op. cit., p. 77.
373
ARTINIAN, Artine; MAYNIAL, Edouard. Prface. In: MAUPASSANT, Guy de. Correspondance
indite. Recueillie et prsente par Artine Artinian. Paris: ditions Dominique Wapler, [1951]. p. VI.
136
374
137
377
138
Segundo
estudiosa,
diversos
contistas
romenos
importantes
foram
380
139
Idem, p. 101.
PALACIOS, Conceptin. Maupassant et Clarn, face face. In: BENHAMOU, Nolle (Org.). Guy de
Maupassant. Op. cit., p. 58.
384
ZIEGER, Karl. Arthur Schnitzler un Maupassant autrichien. In: BENHAMOU, Nolle (Org.). Guy
de Maupassant. Op. cit., p. 72-80.
385
Idem, p. 75.
383
140
387
Foi traduzido para o sueco ainda em vida, desde 1883, com poucos meses de
386
Idem, p. 78.
FRNLF, Hans. Contribution ltude de la rception de Maupassant en Sude. XVIe Congrs des
Romanistes scandinaves, Copenhague, aot 2005, Ed. Michel Olsen. Disponvel no site <http://
perso.orange.fr/maupassantiana/Bibliographie/Bibliochronologique.html#2006>. Agradecemos Profa.
Dra. Brigitte Hervot pela referncia oferecida.
387
141
Idem, p. 9 e 13.
CONRAD, Joseph. Notes on life and letters. Disponvel no site: <www.onlineliterature.com/conrad/notes-lite-letters>. ltimo acesso em: 15 maio 2012.
389
142
FUSCO, Richard. Maupassant and the American short story: the influence of form at the turn of the
century. [s.l.]: The Pennsylvania State University Press, 1994. p. 2.
391
O autor elenca diversos tipos de enredo: linear, de chave irnica, de surpresa-inverso, em lao, em
hlice descendente, de contraste, senoidal e com falso final.
392
Idem, p. 8-9.
393
Idem, p. 23.
394
Citado por FUSCO. Op. cit., p. 141.
143
contos de Maupassant, cuja coletnea ela pretendia intitular Mad stories: Un cas de
divorce, Fou?, Lui?, Solitude, La nuit, Suicides, vendre e Le pre
Amable, mas que no chegou a ser publicada, pois seu projeto foi barrado pelo editor
da escritora americana.
Nos pases rabes, a entrada de Maupassant no se fez seno sob uma releitura
cultural bastante marcada. Segundo Arselne Ben Farhat, o sucesso de Maupassant na
Arglia, na Tunsia e no Egito no sofreu declnio desde o sculo XIX, quando seus
contos e novelas j eram traduzidos e adaptados.
Il est lun des crivains franais les plus lus et les plus apprcis au Maghreb et au
Moyen Orient, comme en tmoigne le grand nombre de ses uvres traduites en
arabe. Nous en avons recens environ cent trente le plus souvent publies dans des
revues littraires. Ltude de ces textes nous rvle que les traducteurs nont pas
tous suivi la mme dmarche.395
Alm dos que procuraram ser fiis obra de Maupassant, houve ali,
continuamente, o hbito de retraduzir textos do escritor francs, adaptando-o ao
horizonte de expectativas do pblico muulmano. Entre 1930 e 1960, o nome de
Maupassant era estampado nas primeiras pginas de revistas, como forma de aumentar
suas vendas, tal era a popularidade do autor. A unio de elementos paratextuais, como
ilustraes, comentrios e retratos do autor tambm aguavam a curiosidade para os
textos a serem lidos. A atribuio de textos apcrifos a Maupassant no era inusual. Por
outro lado, alguns tradutores-escritores procederam a uma reescritura de textos de
Maupassant (segundo o pesquisador, de difcil reconhecimento at para especialistas do
escritor francs), sem lhe atribuir a autoria.
Nos demais pases orientais, ao que se sabe, a recepo de Maupassant foi
bastante tardia. Na China, Maupassant era conhecido desde os anos 1920, mas somente
com a abertura paulatina do regime poltico e na dcada de 1990 que houve a traduo
mais sistemtica do autor, com predileo por seus contos e novelas. Segundo a
professora Tang Zhen, o maior problema dessas tradues que foram operadas a partir
de originais russos e, s mais recentemente, tradutores, como ela, conhecedores de
francs, ocupam-se de novas tradues das obras.
Les jeunes le connaissent par la traduction de Boule de Suif dans leur manuel de
lyce, et le patriotisme les impressionne. Les effets instructifs sont les plus
395
FARHAT, Arselne Ben. La rception de Maupassant dans les pays arabes: tude des stratgies
paratextuelles dans les rcits traduits. In: BENHAMOU, Nolle (Org.). Guy de Maupassant. Op. cit., p.
103.
144
apprcis comme les critres du choix. On peut trouver ainsi un nombre de soixante
nouvelles dans lancienne collection de la premire dition en 1978 aprs la
rvolution culturelle: La maison Tellier, Mademoiselle Fifi, Le Pre Milon, etc.,
et ses romans Bel-Ami et Une Vie. Et dans les annes 90, une traduction de ses
uvres compltes et de toutes ses contes et nouvelles est parue dans deux maisons
ddition diffrentes. Mais la traduction des contes et des nouvelles en chinois sest
faite partir de la traduction russe et cest le fait qui minquite.396
396
TANG Zhen. Traduction et critique de Maupassant en Chine dans les annes 90. In: MAUPASSANT
2000. Bulletin Flaubert et Maupassant. Rouen: Association des Amis de Flaubert et de Maupassant, n. 9,
2001. p. 87.
397
Respectivamente, em 22/04/1884, na Gazeta de Noticias; 20/01/1894, no Correio Paulistano; 23 e
24/03/1894, na Gazeta de Noticias.
398
Em 20/11/1886 e de 7 a 24/02/1892, na Gazeta de Noticias.
399
Nos dias 8 e 20/05/1891 e 07/02/1892, no Jornal do Commercio (RJ).
400
Em 19 e 20/02/1892, no Correio Paulistano, e 12/04/1897, no Jornal do Commercio (RJ).
401
Sob o ttulo A Arte de Escrever. Em 24/06/1906, no Jornal do Commercio (RJ).
402
Em 02/11/1914, no Correio Paulistano, sob o ttulo O talento.
145
Louvrage est une cration des diteurs car jamais Maupassant navait eu lintention
ni la possibilit de donner un de ses recueils le titre de cette nouvelle si
troitement lie lactualit littraire qui la engendre. [...] le volume mime un
recueil la manire de Maupassant, enchanant seize contes dorigines diffrentes
la nouvelle inaugurale et ponyme: les six premiers appartiennent en fait Toine,
les sept suivants sont tirs des Contes du jour et de la nuit; quant aux sept derniers,
il sagit dindits. Par la suite, le volume Boule de suif, n dune fantaisie dditeur,
fera flors et sera rdit maintes reprises sous cette forme [...]403
GRANDADAM, Emmanule. Op. cit., p. 35. Os comentrios so muito pertinentes, mas merecem
pequena correo quanto contagem dos textos. A edio Ollendorff oferece Boule de Suif, seguida de
vinte contos, no dezesseis. MAUPASSANT, Guy de. Boule de Suif. Illustrations de Jeanniot. Paris: Paul
Ollendorff, [s.d.]. (uvres Compltes Illustres).
404
Pesquisa fornecida pela Livraria Francesa em 27 set. 2011, referente ao perodo de jan. de 2008 a ago.
2011. Agradecemos mais uma vez proprietria e aos funcionrios pela gentileza em ceder esses dados.
405
Tentamos junto a outras duas grandes livrarias da cidade obter dados da mesma natureza, mas uma
delas no quis responder e outra se negou a dar informaes para fins de pesquisa acadmica.
146
Flaubert (623), Balzac (461) e Zola (309). Entre os livros de Maupassant mais vendidos
nesse perodo esto:
Ttulo
Quantidade
Boule de Suif (96), Boule de Suif e Mademoiselle Fifi (25) ........................................ 121
Une vie (48), Une vie en franais facile (700 1700 mots) (59) .............................. 107
Le Horla (58), Le Horla et autres nouvelles fantastiques (29) ..................................... 87
Pierre et Jean ................................................................................................................. 22
Contes de la Bcasse (11), Contes de la Bcasse et autres contes de chasseurs (10) .. 21
Contes noirs: La petite Roque et autres nouvelles ........................................................ 19
Bel-Ami .......................................................................................................................... 18
Le verrou et autres contes grivois ................................................................................. 10
Une partie de campagne ................................................................................................ 10
406
HERVOT, Brigitte. Tagarelice espirituosa: as cartas de Maupassant. So Paulo: Ed. Unesp, 2010.
147
CADERNO DE FOTOS
Foto 1
Foto 2
Foto 3
149
Foto 4
Falsias em tretat. Ce petit nom dtretat, nerveux et sautillant, sonore et gai, ne semble-t-il
pas n de ce bruit de galets rouls par les vagues? / La plage dont la beaut clbre a t si souvent
illustre par les peintres semble un dcor de ferie avec ses deux merveilleuses dchirures de falaise
quon nomme les Portes. (MAUPASSANT. tretat. Chroniques: anthologie. Op. cit., p.
562). Foto da autora, fevereiro de 2006.
150
Foto 5
Rue Guy de Maupassant, em tretat, onde est localizada sua antiga casa, La Guillette. Foto
da autora, fevereiro de 2006.
Foto 6
Entrada de La Guillette, em tretat. Encontramos a antiga casa do escritor conforme a divisa
dada por ele: Mes portes sont toujours ouvertes (FRBOURG, Olivier. Maupassant, le
clandestin. Op. cit., p. 141). Foto da autora, fevereiro de 2006.
151
Foto 7
La Guillette. A casa foi construda em 1881, com o valor recebido de direitos autorais com a
publicao do livro La Maison Tellier, em terreno cedido pela me do escritor. Guy de
Maupassant pensava em dar o nome dessa novela casa, mas Laure o dissuadiu disso. Foi em
La Guillette que ele escreveu o clebre ensaio Le Roman, em 1887. Foto da autora, fevereiro de
2006.
152
Foto 8
Vista da Rue du Gros-Horloge, em Rouen. Et voici Rouen, Rouen lopulente, la ville aux
clochers, aux merveilleux monuments, aux vieilles rues tortueuses. / On ne la peut dcrire. Il la
faut connatre. (MAUPASSANT. De Paris Rouen. Chroniques: anthologie. Op. cit., p.
592). Foto da autora, novembro de 2010.
153
Foto 9
154
Foto 10
Busto em homenagem a Louis Bouilhet, na esquina da rue Thiers, em Rouen. O monumento de
autoria de M. Guillaume e foi inaugurado em 24 de agosto de 1882, na presena de Guy de
Maupassant. Um pouco antes, dia 21, Maupassant publicara, no jornal Le Gaulois, uma
crnica noticiando o tributo ao seu primeiro mestre: Ctait le buste du pote mort, voici treize ans
maintenant, et dont on va inaugurer le monument, dans quelques jours. Toute la presse va donc
rpter ce nom; on rappellera ses uvres si admires des lettrs et peu lues maintenant du public; on
racontera sa vie, on rveillera sa gloire. Je veux, un des premiers, reparler du pote gracieux et
puissant que jai connu, que jai aim, et que jai vu dans lintimit de sa vie.
(MAUPASSANT. Louis Bouilhet. Chroniques. Op. cit., p. 1134). Foto da autora, fevereiro
de 2006.
155
Foto 11
Esttua em homenagem a Gustave Flaubert, em Rouen, feita por M. Chapu e inaugurada em 23
de novembro de 1890. No dia seguinte inaugurao do monumento, em 24 de novembro de
1890, Lcho de Paris publica o artigo Gustave Flaubert, em que Maupassant o descreve:
[...] dans sa tte, dans cette forte tte aux yeux bleus, lunivers entier passa depuis le
commencement du monde jusqu nos jours. Il a tout vu, cet homme, il a tout compris, il a tout
senti, il a tout souffert, dune faon exagre, dchirante et dlicieuse. (MAUPASSANT.
Gustave Flaubert. Chroniques. Op. cit., p. 1290). Foto da autora, novembro de 2010.
156
Foto 12
Foto 13 Busto em homenagem a Guy de Maupassant, no Square Verdrel, em Rouen, datado de 1948,
de autoria de Robert Busnel. Esse monumento substitui uma primeira homenagem de Rouen ao escritor,
um busto em bronze, de 1900, obra do escultor Verlet, roubado e fundido durante a ocupao alem em
1941, na Segunda Guerra Mundial. Esse busto em bronze situava-se em outro local da cidade, na Rue
Thiers. (Informaes obtidas pela autora junto ao Ple Patrimoine et Tourisme, da cidade de Rouen, em 19
de setembro de 2006.) Foto da autora, novembro de 2010.
157
PARTE II
Maupassant ao enfermeiro Bispali. Citado por SATIAT, Nadine. Maupassant. Paris: Flammarion,
2003. p. 590.
2
CARPEAUX, Otto Maria. Relendo Maupassant. A Manh, Rio de Janeiro, 20 jul. 1947. Suplemento
Letras & Artes. p. 8.
3
MAUPASSANT, Guy de. Chroniques: anthologie. Paris: Librairie Gnrale Franaise, 2008. p. 1512.
4
Expresso de Verlaine em Les Potes maudits, texto de 1884-1888, sob a qual definiu poetas como
Tristan Corbire, Arthur Rimbaud e Stphane Mallarm.
159
CAPTULO 1
Guy de Maupassant, um hspede de Lcio de Mendona
Qual o escritor pblico to desventuroso que no
tenha a iluso, ao menos, de uns claros olhos
inocentes a lhe beijarem, como um raio de sol
primaveril, as linhas fugitivas?5
MENDONA, Lcio de. Noite de S. Joo. Esboos e perfis; Horas do bom tempo: memrias e
fantasias. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2003. (Coleo Afrnio Peixoto). p. 209.
6
Os comentrios biobibliogrficos aqui tecidos se devem leitura de VENNCIO FILHO, Alberto.
Lcio de Mendona, o fundador da ABL. Conferncia pronunciada na Academia Brasileira de Letras, em
9 mar. 2004. Disponvel no site: <www.abl.br>; e de MENDONA FILHO, Carlos Sussekind de.
Apresentao. In: MENDONA, Lcio de. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. XI-XIII.
7
Sobre esse romance epistolar, h um artigo de apresentao de Marco Antnio de Moraes. Nele, o
estudioso revela-lhe as marcas naturalistas e cientificistas e aponta diferenas entre o romance de Lcio
de Mendona e Dom Casmurro, de Machado de Assis. Cf. MORAES, Marcos Antonio de. Mais
romances epistolares: O marido da adltera. In: CALEDRIO. Memria Postal, mar. 2004. p. 2-4.
160
Se, como eu suponho, for o seu livro recebido com as simpatias e animaes que
merece, no durma sobre os louros. No se contente com uma ruidosa nomeada;
reaja contra as sugestes complacentes do seu prprio esprito; aplique o seu talento
8
a um estudo continuado e severo; seja, enfim, o mais austero crtico de si mesmo.
161
Apesar dos moldes despretensiosos dos seus contos, de que alguns alis se destacam
pela capacidade emotiva, sente-se que a vocao de Lcio de Mendona na carreira
literria, era para explorar, com maior pertincia, o gnero favorito de Maupassant,
de quem evocam a capacidade especial.12
12
Apud MENDONA, Edgar Sssekind de; MENDONA, Carlos Sssekind de. Lcio de Mendona:
ensaio bio-bibliogrfico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1934. p. 166-7.
13
Apud VENNCIO FILHO, Alberto. Op. cit., p. 29.
14
CANDIDO, Antnio. Formao da Literatura Brasileira. 8. ed. Belo Horizonte; Rio de Janeiro:
Itatiaia, 1997. v. 2. p. 258. Ver tambm biografia dada nas p. 341-2.
15
MONTELLO, Josu. Op. cit., p. 141.
16
MOISS, Massaud. Histria da Literatura Brasileira. So Paulo: Cultrix, 2001. v. II: Realismo e
Simbolismo. p. 116.
17
VENNCIO FILHO, Alberto. Op. cit., p. 30.
162
Escritos entre 1873 e 1897, a maioria desses contos foi primeiro publicada na
imprensa, em peridicos como A Semana, A Repblica e Gazeta de Noticias. Os dois
livros renem 42 textos, muito desiguais em composio, alguns tendendo crnica
(Horas do bom tempo, Exumao, Luto paterno, Guilmar), anedota (Defunto
alegre) ou ao aplogo no estilo machadiano (Memrias de um alfinete, As mos).
s vezes, so apenas pginas lpidas, entre alegres, ou melanclicas, ou dramticas,
conforme definiu Machado de Assis ao comentar Horas do bom tempo, em carta a
Lcio de Mendona, de 2 de abril de 1901:
J o ttulo trazia a frescura necessria aos meus invernos. Devem ter sido bem bons
tempos esses, que V. recordou em pginas lpidas, com vida e vontade. doce
achar na conta da vida passada algumas horas tais que no esquecem, que revivem e
fazem reviver os outros. No h seno um relgio para elas, mas preciso ser bom
relojoeiro para saber dar corda e faz-las bater de novo como voc fez.
Ao p delas, vi os contos, reli muitos, e agradeo as sensaes de vria espcie que
me deixaram, ou alegres, ou melanclicas, ou dramticas. Uma destas, a do
Hspede, das mais vivas. E das melanclicas no sei se alguma valer mais que
aquela Sombra do Rochedo, que um livro em cinco pginas; a comparao da
manh e da tarde deliciosa, e a que forma e d o ttulo das mais verdadeiras. E as
Mos? e a Lgrima perdida? e o resto? Eis a boa prosa com emoo e
sinceridade.19
18
Apud MENDONA, Edgar Sssekind de; MENDONA, Carlos Sssekind de. Lcio de Mendona:
ensaio bio-bibliogrfico. Op. cit., p. 148.
19
ASSIS, Machado de. A Lcio de Mendona. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 3.
p. 1057-8.
163
1894, toda a crtica conhecida unnime em dizer que o melhor conto de Lcio de
Mendona e justamente o que o filia arte de Maupassant (cf. Jos Verssimo, Josu
Montello e Massaud Moiss). Comentaremos em detalhes esses trs contos mais
adiante.
Outros textos trazem apenas um desses ou de outros elementos que os assemelhe
a contos de Maupassant, sem que isso justifique um estudo comparativo: O tio da
Esccia, sob o aspecto do interesse de um jovem arrivista, por herana vinda de um tio
estrangeiro, lembra Mon oncle Jules; em O indcio, a iluso do homem que se
pensa trado pela mulher e depois percebe que ela apenas fumava escondido seu
charuto, num desejo de grvida, trabalha com o esptaculo da decepo tpico do fait
divers, segundo a definio de Roland Barthes, e de que o autor de Le crime au pre
Boniface tanto se utilizou.
O aspecto que mais atraa os contemporneos de Lcio de Mendona na leitura
de sua obra era o regionalismo entre romntico e determinista de seu primeiro livro de
contos, Esboos e perfis, cujas histrias provieram de seu contato com os perfis
esboados, durante sua residncia em cidades interioranas do Rio de Janeiro e Minas
Gerais. Entre as melhores, podemos destacar Joo Mandi, sobre um homem trado por
sua mulher e que, aps cobrar ao amante a noite oferecida por ela, quebra promessa
Nossa Senhora do Socorro e acaba matando o ex-hspede. Em Corao caipira, pese em questo tambm o marido trado, que definha e morre sem conceder o perdo
esposa adltera. Sobre o aspecto provinciano desses contos que voltaremos a mencionar
adiante , concebidos por vezes como instantneos (a fugacidade sempre presente,
como apontou Machado), ou seja, pequenos retratos da vida interiorana, em que no h
preocupao com a observao psicolgica, segue o comentrio de Pedro Lessa:
Alguns desses contos so primores de observao e de estilo, e neles temos a
melhor parte da produo literria de Lcio de Mendona. Distingue-se geralmente
um acentuado brasileirismo, naturalmente explicvel por muitos anos de vida
provinciana, e do contato quase ininterrupto com a natureza e com os habitantes do
nosso interior. No se procure nos contos de Lcio uma observao paciente,
trabalhados exames psicolgicos que denunciam uma investigao apurada, longa,
poderosa, o estudo do profundo, que nos d os tipos compreensivos, a preocupao
artstica, um conjunto sistemtico.
So quadros de vida, desenhados com traos leves, a reproduzirem rapidamente, em
um instantneo, caracteres e fatos, no raros ou vulgares, as alegrias fugazes de todos
os dias, as tristezas, as dores comuns que compem o tecido da existncia humana.
Reminiscncias, escritas para A Semana, so lembranas do tempo de estudante e
constituram mais tarde os primeiros captulos de Horas do bom tempo.20
20
164
21
22
MENDONA, Lcio de. Um pai. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. 237.
Idem, p. 238.
165
Esse marido, do tipo justiceiro inflexvel,25 age com a conivncia da lei, do pai
da mulher morta e, at certo ponto, com a aceitao da sociedade carioca do seu tempo.
A sucinta parfrase que fizemos do conto no permite ver de todo a maneira rpida, sem
transies, como narrado. Apresenta-se um ponto de vista armado de ironia contra
fatos assombrosos do cotidiano, tratados com prosasmo, algumas vezes reproduzido no
prprio modo imparcial de narrar os destinos de suas personagens. Para melhor
observarmos como isso se d no texto, veja-se o trecho a seguir:
Boquejou-se alguma coisa, valha a verdade, na grande aldeia que ainda , para
mexerico, o Rio de Janeiro; no se aceitou como muito natural o acidente do carro;
estranhou-se, ao ch de mais de uma famlia de alta roda, que o doutor houvesse
conservado o boleeiro imperito; mas no passou de murmrio abafado, com que
ainda cresceu a notoriedade e, pois, a clientela do facultativo.
[...] a opinio pblica suspeitosa mas covarde.26
MENDONA, Lcio de. Um pai. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. 241.
Idem, p. 241-2.
25
Idem, p. 239.
26
Idem, p. 239-40.
24
166
27
MENDONA, Lcio de. Fatalidade orgnica. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. 279.
MAUPASSANT, Guy de. Le colporteur. Contes et nouvelles. Paris: Gallimard, 1979. t. II. p. 1258.
29
Idem. Les bcasses. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 570.
30
Idem. Le prjug du dshonneur. Chroniques: anthologie. Paris: Le Livre de Poche, 2008. p. 338 e 342.
Crnica datada de 26/05/1881. Ver tambm a crnica Les trois cas (15/01/1884) e o conto La porte,
em que o escritor define os trs tipos de marido trado que citamos: o cego, o cmplice (o mais feliz de
todos, segundo o autor) e o vingativo.
28
167
caipira, em todos os contos que citamos, do escritor francs assim como do brasileiro,
h humor por parte do narrador no retrato do homem trado.
O conto Fio reatado (dedicado a Jlia Lopes de Almeida) passa-se no Rio de
Janeiro, tambm na poca em que foi escrito. Apresenta-se como uma narrativa
enquadrada, dividida em quatro pequenas partes. No incio, narrada em primeira
pessoa pelo amigo de um clebre advogado, que vai ao seu escritrio lhe dar os
parabns por uma causa ganha brilhantemente. O advogado, porm, est abatido e
taciturno, e passa a ocupar o lugar de narrador homodiegtico, nas duas prximas
partes do conto, quando explica ao amigo a histria da cafetina Irma Bertrand, sua
cliente, absolvida de um assassinato graas sua defesa, que mal havia estudado, mal
conhecendo o crime pelo que disseram em tempo os jornais.31 Esse narrador, que
experienciou os fatos, d importncia a seu relato:
Ah! paga a pena ouvir-se; senta-te, acende o charuto, e ouve sem me
interromper; acho que me far bem referir este caso triste.
Dispus-me a toda a ateno, aproximei a minha cadeira; o clebre advogado voltouse mais para mim na chaise-longue e entrou a contar, pausadamente.32
MENDONA, Lcio de. Fio reatado. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. 261.
Idem, p. 258.
33
Conforme vimos, para Walter Benjamin, os gestos se somam voz, na narrao, sustentando o que
dito. BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria
da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 220-1.
32
168
pattica, era outra, diz o advogado, que a descobriu enquanto estava eu aqui a ler os
meus jornais:34 se antes ele pensava defender um crime passional, agora o leitor (e o
advogado) descobrem que foi apenas uma vingana pela suposta rival t-la humilhado,
quando Irma lhe contara uma histria de sua infncia. O motivo ftil, mas o que
espanta ainda mais que o advogado tenha feito parte dessa histria. Irma Bibi, filha
de franceses ex-vizinhos seus, sua primeira namoradinha, quando ele tinha ainda sete
anos e ela nove ou dez. A histria de Irma repousa no fato de que ele foi o nico homem
que ela amou. Tendo-se desencontrado, por diversas mudanas de endereo, s neste
dia, no seu escritrio, o advogado pde saber o destino que teve sua Bibi: foi violentada
e tornou-se prostituta e, agora, criminosa. Irma conta (por um pargrafo ela se torna a
terceira narradora do conto) que envenenou a colega para se vingar de quando esta riu
de sua infncia inocente com o garoto que amou, o nico sentimento puro que em mim
existia. O advogado, que no a tinha reconhecido, assim como ela tambm no a ele,
mas que se sentira atrado pelos olhos dela e pela sua voz como por um canto de
sereia, atribui seu sucesso na causa (cuja defesa, ele assume, era falssssima) ao
encanto inconsciente por Bibi, por quem foi magneticamente advertido.35 Irma, por
sua vez, aps o espanto da revelao que ele lhe faz, de que foi o garoto que ela amou,
diz que mentiu em juzo, confessando um falso crime passional, pois no queria mais
uma vez ser alvo de riso por expor seu segredo. Aps conversarem, o advogado agracia
a velha amiga com uma penso e os cuidados em uma casa de sade. O conto termina
com a retomada do primeiro narrador e a frase curiosa do advogado:
E, mudando de voz, como para rematar a conversa, o grande advogado observou,
batendo-me no ombro:
Bom assunto, no te parece? para um conto naturalista!36
MENDONA, Lcio de. Fio reatado. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. 262.
Idem.
36
Idem, p. 264.
35
169
defesa falsa. Ele torna-se ento, indiretamente, um comparsa da cliente, que, por sua
vez, alm de reencontrar o nico amor de sua vida, ainda presenteada com seus
cuidados financeiros. Reatados os fios, o conto naturalista est acabado, retomando a
forma de metade dos contos maupassantianos, alm do tema da mulher decada e bemsucedida (ver Mademoiselle Fifi, La Maison Tellier), do crime impune (Moiron,
Un fou), envolvendo uma redescoberta inesperada (Les bijoux, La parure), mas
que foi concebido por Lcio de Mendona como um conto original, cuja composio se
aproxima da contstica de Maupassant, mas de que no h nenhum texto semelhante.
Bom assunto para um conto... de Maupassant.
Passemos ao ltimo conto que selecionamos, O hspede, o mais comparado
pelos crticos brasileiros obra de Maupassant. Em primeiro lugar, ele retoma a
estrutura do conto enquadrado. O pargrafo de abertura, conforme vimos nos outros
contos de Lcio de Mendona, insere o leitor na trama e apresenta o assunto com
precisa conciso:
Ele a est, que o diga, o Oliveira, aquele rapago de bigode louro e olhar azul, que
viajou como caixeiro de cobranas, cometa, e hoje reprter. Por sinal que foi a
ltima viagem de cobranas que fez, e de to horrorizado mudou de vida e
profisso. Foi ele mesmo quem me referiu o caso. Aqui o dou pelo custo, sem nada
de meu.37
37
38
MENDONA, Lcio de. O hspede. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. 269.
Idem.
170
um frio de medo e um claro de pressentimento. Logo, ali mesmo, resolveu acautelarse, arrependido da imprudncia de ter mostrado tanto dinheiro.39
Pressentindo a maldade do casal de velhos, mas sem nada dizer, ele resolve
encurtar a estadia. No dorme ali e sai por volta da meia-noite, pela janela do quarto de
Joaquim. O final trgico, porm, no foi evitado: Joaquim volta durante a madrugada e,
encontrando a janela aberta e para no acordar os pais, instala-se em silncio em seu
quarto. Por fim, confirma-se o pressentimento de Oliveira: noite (que no trouxe bons
conselhos), o casal, movido pela ganncia, comete o fratricdio de forma inconsciente.
o final surpreendente do conto, espcie de desforra do destino:
Sbito, no silncio da habitao, soaram, soturnas, repetidas, machadadas rpidas,
uma, duas, trs, muitas, regulares a princpio, depois desatinadas.
Anda! traze a luz! estertorou uma voz estrangulada.
Entrou no quarto o outro vulto, a velha gorda, com a candeia acesa. Apenas a luz
bateu na cama, numa horrvel massa de roupas e carnes ensangentadas, dois gritos
sufocados misturaram o seu horror:
O Jquim!!!
O filho!! o meu rapaz!!!
Fora, na estrada deserta, voejavam os bacuraus, como almas penadas.40
39
MENDONA, Lcio de. O hspede. Esboos e perfis; Horas do bom tempo. Op. cit., p. 271.
Idem, p. 272.
41
MAUPASSANT, Guy de. Boule de suif. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 108.
40
171
Ma femme (um jovem obrigado a se casar com uma mulher aps dormir, por
engano, no mesmo quarto que ela, quando nem se conheciam).
No foi, muito provavelmente, nenhum desses textos em especfico que fez
diversos crticos brasileiros aproximarem O hspede de contos de Maupassant, mas
sim a conciso e a forma recorrente do conto enquadrado, que encerra uma histria
trgica no seio familiar, cujo crime provocado pela ganncia. O oportunismo das
personagens de Maupassant tem nos pais de Joaquim um caso brasileiro via Portugal.
Tanto Brito Broca quanto Raimundo Magalhes Jnior observam que a origem
temtica de O hspede pode estar em uma histria difundida oralmente. As fontes que
atestariam sua veracidade se perderam, mas o assunto foi popularizado nas peas The
fatal curiosity (1736), do dramaturgo ingls George Lillo, e Der Vierundzwanzigste
Februar [O dia 24 de fevereiro] (1810), do alemo Zacharias Werner. Ambas colocam
em cena um casal rstico que mata um viajante enriquecido, que lhe pedira pousada, a
fim de roubar-lhe os haveres, e depois descobre que eliminara o prprio filho, vindo do
estrangeiro, de barbas crescidas e desejoso de ver se os pais o reconheciam.42 Para
Raimundo Magalhes Jnior: Lcio de Mendona, no sculo passado, valeu-se desse
tema no Brasil, para escrever um dos seus melhores contos trgicos, O Hspede.43
Brito Broca acrescenta em nota que Eduardo Frieiro prope como modlo provvel do
conto de Lcio uma narrativa annima, possvel traduo do francs, publicada em
setembro de 1845 no Recreador Mineiro, quinzenrio ilustrado que se editava em
Ouro-Prto.44 O ttulo da histria Dedo de Deus e, segundo o crtico, pode ter sido
conhecida durante a estada do escritor fluminense em Minas Gerais.
Seja qual for a provenincia do tema retomado, a forma do conto escolhida, o
tratamento narrativo, a ambientao srdida e adjetivada de forma precisa e o impacto
final do conto atrelam-no tradio do conto Maupassant.
Os contos que estudamos de Lcio de Mendona revelam um artfice
preocupado com um modelo de narrativa breve e com assuntos do seu tempo. Sob uma
forma bem-acabada, seus textos denotam a tradio a que muitos outros contistas
brasileiros que o seguiriam escolheram. Lcio de Mendona encabea nossa pesquisa,
abrindo o perodo que recortamos para estudo, com textos inseridos em seu livro
42
MAGALHES JNIOR, Raimundo. A arte do conto: sua histria, seus gneros, sua tcnica, seus
mestres. Rio de Janeiro: Bloch, 1972. p. 108.
43
Idem.
44
BROCA, Brito. Um tema universal na literatura brasileira. Pontos de referncia. [s.l.]: Ministrio da
Educao e Cultura/Servio de Documentao/Departamento de Imprensa Nacional, 1962. p. 115.
172
publicado em 1901, mas que, desde as duas ltimas dcadas (quando os textos de
Maupassant comeavam a ser lidos e comentados por aqui), j ganhavam lugar em
jornais e revistas, sem a forma definitiva que a publicao em volume imprimiu s suas
histrias.
Carlos Sussekind de Mendona Filho observa o quanto os contos de seu av
estavam de acordo com o seu tempo, que captaram a contento uma marca literria:
A viso absolutamente seca e objetiva dos valores culturais de sua poca revela-se
no texto de Lcio de Mendona. Episdios permeados de humor e de uma certa
leveza caractersticas de quem j compreendeu as falhas humanas e no luta
contra elas, apenas questiona-as compem em ritmo crescente o estilo do autor.
Sua obra discorre sobre as questes materiais e espirituais do tempo, propiciando ao
leitor uma atmosfera impregnada de realidade simples e crua.
Atravs de seus personagens, sempre concebidos com aguda delicadeza um
barqueiro, um casal de hospedeiros, uma costureira45 Lcio de Mendona nos
conta de maneira direta e contundente os pequenos dramas cotidianos, suas lutas,
seus amores, sua sobrevivncia. No h glamour.46
173
Por essas razes, Jos Verssimo lamentou que Lcio de Mendona no tivesse
se dedicado por mais tempo aos contos, bem como a escritos de maior flego. Mas o
crtico paraense reconheceu que o autor de Histrias do bom tempo soube interpretar
superiormente os grandes mestres e produzir o seu.50 Josu Montello, conforme vimos,
tambm observou que Lcio de Mendona captou a frmula do conto de Maupassant,
certa modalidade de narrativa novelesca, e aderiu [a]o figurino de Boule de Suif,51 o
que fez, acreditamos, com bastante esmero e originalidade, reimprimindo em seus textos
o contorno do conto Maupassant.
49
174
CAPTULO 2
Do fait divers ao conto: Medeiros e Albuquerque e Maupassant
A influencia franceza passou a ser, desde ento, de tal
modo forte entre ns, que para estudar as escolas que
tm vivido e florescido no Brasil indifferente tomar
um compendio de literatura nacional ou de literatura
franceza. Se houve l, houve aqui. Se houve aqui, houve
l. uma correlao estricta.52
175
VERSSIMO, Jos. Alguns livros de 1900. Estudos de Literatura Brasileira. 3 srie. Belo Horizonte;
So Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977, principalmente nas p. 131 a 134.
57
LEO, Mcio. Medeiros e Albuquerque. Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,
ano 26, v. 46, n. 153, set. 1934. p. 85-6.
176
58
BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da
cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 205.
59
RIO, Joo do. (Paulo Barreto). Medeiros e Albuquerque. O momento literrio. Rio de Janeiro:
Fundao Biblioteca Nacional, 1994. p. 63.
177
A iluso tpica causada pela leitura dos faits divers que acomete o carteiro de
Le crime au pre Boniface (publicado por Maupassant pela primeira vez no jornal
parisiense Gil Blas, em 1884, e recolhido pelo autor no volume Contes du jour et de la
nuit, de 1885) tem seu paralelo em Um crime, de Medeiros e Albuquerque (conto de
Um homem prtico, de 1898). Nele, um funcionrio pblico, leitor de romances de
folhetim, tambm iludido por sua imaginao e imagina haver um crime, quando o
que se passava era um parto. Medeiros e Albuquerque ridiculariza desde o incio sua
personagem e, como se poder observar, no tem a mesma sutileza de linguagem do
escritor francs, nem a mesma malcia do ertico, mas lhe deve todo o movimento da
narrativa, bastante inspirado em Le crime au pre Boniface.
Os dois contos so narrados em terceira pessoa onisciente. O conto de
Maupassant apresenta ao leitor algumas horas do trabalho dirio do carteiro Boniface.
Funcionrio de provncia, que cumprimenta os moradores pelo nome, ele seguia por
uma cidadezinha fictcia da Normandia, para as ltimas entregas do dia. Enquanto
andava, Boniface lia o jornal parisiense que ia entregar na casa do coletor chamado
Chapatis, um novo morador recm-casado. O carteiro era apaixonado pelos faits divers,
e por isso sua leitura se detm na notcia de um triplo assassinato, descoberto por um
lenhador que passava pela casa da famlia. O excerto um pouco longo, mas ilustra essa
leitura de Boniface, que guiar todo o caminho da narrativa:
[Boniface] ouvrit sa sacoche, prit la feuille, la fit glisser hors de sa bande, la dplia,
et se mit lire tout en marchant. La premire page ne lintressait gure; la
politique le laissait froid; il passait toujours la finance, mais les faits divers le
passionnaient.
Ils taient trs nourris ce jour-l. Il smut mme si vivement au rcit dun crime
accompli dans le logis dun garde-chasse, quil sarrta au milieu dune pice de
trfle, pour le relire lentement. Les dtails taient affreux. Un bcheron, en passant
au matin auprs de la maison forestire, avait remarqu un peu de sang sur le seuil,
comme si on avait saign du nez. Le garde aura tu quelque lapin cette nuit,
pensa-t-il; mais en approchant il saperut que la porte demeurait entrouverte et que
la serrure avait t brise.
Alors, saisi de peur, il courut au village prvenir le maire, celui-ci prit comme
renfort le garde champtre et linstituteur: et les quatre hommes revinrent ensemble.
Ils trouvrent le forestier gorg devant la chemine, sa femme trangle sous le lit,
et leur petite fille, ge de six ans, touffe entre deux matelats.
Le facteur Boniface demeura tellement mu la pense de cet assassinat dont toutes
les horribles circonstances lui apparaissaient coup sur coup, quil se sentit une
faiblesse dans les jambes, et il pronona tout haut:
178
Nom de nom, y a t-il tout de mme des gens qui sont canaille!60
Impressionado pelo que leu, Boniface continua seu caminho, la tte pleine de la
vision du crime, e chega casa de M. Chapatis para a entrega habitual. Logo encontra
algo diferente do de costume, que chama sua ateno: a porta est trancada e as janelas,
fechadas, indicando que ningum saiu de casa. Nada de anormal haveria nisso, se a
imaginao do carteiro no tivesse sido alimentada pela leitura do fait divers. Como
Boniface sabia que M. Chapatis acordava cedo, ficou preocupado, ignorando o fato de
que havia chegado casa do destinatrio mais cedo que de hbito. Boniface toma a
precauo de dar uma volta ao redor da casa, para ver se encontra algo suspeito, assim
como fez o lenhador da notcia. Ao passar por uma janela, o carteiro ouve gemidos e
depois gritos; ento corre at a delegacia, a fim de buscar ajuda.
A descrio da delegacia ilustra a pasmaceira do local: dois policiais, sem
fardas, consertam uma cadeira, quando Boniface chega com a notcia do crime.
Surpresos, mas no apressados, os policiais observam Boniface e fazem-lhe perguntas,
para avaliarem a necessidade de ir casa do coletor. O carteiro mistura o que ouviu na
casa de M. Chapatis com o que leu na notcia do jornal parisiense. Os policiais so
convencidos por ele e o seguem. Quando chegam l, o movimento do policial mais
experiente reproduz o de Boniface. O suspense da narrativa est todo traado na
mudana de expresso facial do policial, descrita pelo narrador. Compreendendo logo
que os rudos eram produzidos pelo casal, numa manh amorosa, o policial se retira,
manda Boniface deixar a entrega no local e todos vo embora. Nada compreendendo, o
desconfiado carteiro passa logo ao ingnuo da histria. O carter farsesco do conto est
principalmente nessa transio, da incompreenso ao entendimento de Boniface. O
segundo policial precisa explicar-lhe ao p do ouvido o que se passava. No final do
conto, confuso e envergonhado, Boniface segue seu caminho e deixa os dois policiais
rindo e brincando com sua ingenuidade.
Conforme vimos no captulo 6 da primeira parte, Louis Forestier afirma que o
assunto desse conto foi tomado pelo autor de uma aventura normanda acontecida e
contada por um amigo dele.61 Isto , tambm a fico provm de um fait divers, como
era muito do gosto de Maupassant: histrias curiosas, tiradas da vida, do cotidiano.
Neste texto, ele trabalha principalmente com o contraste entre a ingenuidade do carteiro
60
MAUPASSANT, Guy de. Le crime au pre Boniface. Contes et nouvelles. (Dir. de Louis Forestier).
Paris: Gallimard, 1979. (Bibliothque de la Pliade). t. II. p. 169.
61
FORESTIER, Louis. Notes. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 1368.
179
BARTHES, Roland. Structure du fait divers. Essais critiques. Paris: Editions du Seuil, 1964. p. 188-97.
Segundo Barthes, le temps fascinant et insupportable qui spare lvnement de sa cause. Idem, p. 192.
64
Idem, p. 193.
65
BORGES, Jorge Luis. O conto policial. Obras completas. So Paulo: Globo, 1999. v. IV. p. 220.
63
180
Castro tem esprito imaginativo e, assim como Boniface, tambm gostava de ler
jornais. Mas lia tudo, anotava os processos e brigas polticas, para mais tarde mencionlas aos colegas, defendendo sempre a situao, contra a oposio. Alm dos jornais,
admirava romances de folhetim franceses, todos bastante secundrios e muito na moda
na poca. Castro pensa descobrir em suas leituras um manancial rico de experincias
que o preparariam para assumir um cargo de responsabilidade pblica.
O Castro cultivava a litteratura de folhetim: conhecia Ponson du Terrail, Georges
Ohnet, Gaboriau, Montpin e admirava os personagens dos seus romances. Mas,
como ha quem prefira contos de amor e aventuras cavalheirescas, o Castro dava-se
66
181
aos romances de sensao moderna, onde um grande crime, commettido nas mais
seguras condies de segredo, com mil e uma precaues, afinal por um cumulo
de pericia de um agente, quasi genial como psychologo descoberto inteiramente,
graas a vestigios minimos, insignificantes, completamente despercebidos para
olhos faltos de perspicacia to insigne. Mas, ao menos nisto, o Castro tinha um ideal
alevantado. Elle lia minuciosamente a noticia de todos os crimes que se praticavam.
Lia e si o criminoso era desconhecido entrava a imaginar a scena, a reconstituir
o quadro, a architectar hypotheses, acabando sempre por escrever em carta
anonyma policia o resultado de suas conjecturas. Conjecturas complicadas as
suas! To complicadas, que nunca acertara. Mas que culpa tinha dizia elle e dizia
com razo que os factos fossem to estupidos; elle no podia suppr que as cousas
fossem to tolamente prosaicas...68
182
levou a vislumbrar um crime onde havia uma cena de amor. Seu maior erro foi
compartilhar seu equvoco. Castro, por sua vez, acabava de ser nomeado para a funo
de subdelegado e queria mostrar servio. Tambm gostava de desvendar os crimes
anunciados nos jornais ou contados nos romances, o que o levou a imaginar um crime
quando havia um parto. Alimentados por leituras populares, os dois leitores so
absorvidos pela trama do fait divers, com a diferena que a aplicam a fatos
pessoalmente interpretados, o que lhes acarreta consequncias inesperadas.
Do ponto de vista da intriga, ambos partem de evidncias sonoras e detm-se
apenas nelas, ignorando qualquer outro indcio que poderia apontar para uma situao
cotidiana. Eles conduzem por alguns instantes um verdadeiro inqurito detetivesco, que
se constri por meio de indagaes tpicas e que beiram aqui o cmico, pois so
marcadamente principiantes. Elevam uma cena cotidiana a um cenrio trgico
romanesco. O movimento de leitura que fazem da cena at o desfecho farsesco, pois
envolve o espetculo de uma decepo, conforme a definio de Barthes.
Por esses motivos, a disposio de esprito dos dois protagonistas para a
desconfiana revela a inocncia dos dois, que so pegos nas armadilhas que criaram, por
meio de sua imaginao habilidosa. Nenhum dos dois separa a atividade investigativa
de seu cotidiano banal. No caso de Boniface, o campons tem um olhar desvirtuado pela
leitura vinda de Paris, projetando suas expectativas sobre o ambiente que tem diante de
si. No caso de Castro, ambicionando uma grande estreia na carreira de detetive,
submerso por sua ambio num caso vergonhoso e que lhe tira a patente.
Os dois contos em estudo satirizam a tradio do gnero policial, primeiro
porque, apesar dos ttulos, no existe propriamente crime em nenhum deles; segundo, o
papel do investigador diminudo em Maupassant (na figura dos dois policiais que no
faziam nada e continuam sem nada para fazer) e questionado no conto de Medeiros e
Albuquerque. Por meio do desvio operado por uma leitura do gnero desvio esse
proposto internamente nos textos , os dois contos podem ser lidos aqui como narrativas
policiais de humor, com investigadores que, na nsia por descobrir, encobrem a
realidade, fazendo dela uma leitura equvoca e cmica, ou, conforme a expresso de
Raimundo Magalhes Jnior, uma caricatura de sherlocks trapalhes.71
Outros contos das obras mais tardias de Medeiros e Albuquerque pem em cena
personagens ingnuas, tambm levadas pela crena nos romances ou pelas notcias de
71
MAGALHES JNIOR, Raimundo. O conto policial. A arte do conto. Rio de Janeiro: Bloch, 1972. p.
226.
183
jornais a serem vtimas de sua prpria imaginao, como A ocasio faz o ladro e O
assassinato do general. Observa-se que o escritor brasileiro tinha especial atrao por
fazer de suas personagens leitoras, como ele mesmo no temia fazer em seus contos
releituras da tradio literria.
72
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Crime inconfesso. Contos escolhidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Edies
Lux, 1924. p. 355.
73
Idem, p. 357.
184
Conta a seguir a histria de uma menina de trs anos, a quem ele denomina
Edith, e que sofria de impaludismo. De temperamento nervoso e com uma inteligncia
bastante desenvolvida para a idade, a menina ouviu o mdico dizer a seu pai que ela iria
para o cu (visto que a doena era aparentemente incurvel). Movida pela imaginao
infantil, alimentada por uma notcia de jornal que ouvira de algum um pai enforcou o
filhinho e este foi para o cu, um lugar belo e alegre, segundo seus familiares , a garota
resolve levar o irmozinho para brincar junto com ela e o estrangula. Edith, porm, no
morre nessa poca, e seu crime ocultado pelo mdico e pela famlia, at que, na
juventude, descobre ter sido a assassina de seu irmo e, prostrada, definha aos poucos.
Assim como o carteiro Boniface, do conto maupassantiano mencionado, e o
investigador Castro, de Um crime, Edith deixou-se iludir por um discurso que a
impressionou e que a dominou. Porm, se Maupassant e Medeiros, naqueles contos,
procuraram obter um riso de sarcasmo contra personagens ingnuas, aqui o escritor
brasileiro obtm um drama com um fratricdio inocente.
[...] Edith [...] juntou todas as foras do seu corpinho fragil, sentou-se na cama, beijou
e abraou o irmo e disse-lhe chorosa: Tu queres ir para o ceo brincar commigo,
meu negro? Elle disse que sim. Ella passou-lhe as mos em volta do pescoo e com
toda a fora que a exaltao dessa ida lhe emprestava, manteve preso o irmozinho:
repetia agora a scena do jornal, que tanto a impressionra. [...]74
O uso da questo como frase final opera uma reabertura do texto para uma nova
leitura de sua intriga. No domnio interno ao conto, essa tcnica provoca no interlocutor
uma reavaliao de seu julgamento anterior, colocando novamente o amigo Caldas no
lugar do mdico. O silncio de Caldas, com o final do conto, deixa sem resposta a
interpretao que poderia fazer, reafirmando sua posio inicial, de denunciar o crime,
ou reavaliando-a, reconsideradas as circunstncias particulares ao caso.
No conto de Maupassant intitulado M. Jocaste (1883), o narrador
heterodiegtico prope-se a reabrir uma discusso polmica sobre um incesto, agora
74
75
185
para um pblico maior, a fim de que peut-tre se trouvera-t-il quelquun, non pour
excuser le fait immonde et brutal, mais pour comprendre quon ne peut lutter contre
certaines fatalits qui semblent des fantaisies horribles de la nature toute-puissante!.76
Ele tambm defende o ocultamento da verdade, em defesa das vtimas de uma
fatalidade, neste caso, uma relao amorosa entre pai e filha.
O recurso do questionamento lanado ao leitor foi empregado por Maupassant,
em circunstncias diversas, no conto Fou?. O narrador em primeira pessoa relata o
cime que nutriu pela esposa e seu cavalo de passeio e a vingana que tramou contra os
dois. Ao final do conto, a pergunta dada no ttulo e repetida ao longo do conto, volta-se
para o leitor: Dites-moi, suis-je fou?.77
Essa insistncia no julgamento e a frequncia dos autores em deixar a resposta a
cargo do leitor reforam no s o carter exemplar do conto tradicional, de levar a uma
reflexo sobre atitudes e comportamentos sociais, como est de acordo com a esttica
desses escritores, que queriam estimular a sugestividade do leitor, faz-lo coautor de
suas histrias.
O uso da narrativa em moldura presta-se muito bem a essa funo, uma vez que
emprega uma personagem, no caso do mdico ou do juiz, especialmente criada para
ouvir e transmitir um exemplo carregado de significados. Tambm Noivas, de
Medeiros e Albuquerque, recupera o contador tradicional, na figura de um velho mdico
situado entre um crculo de jovens estudantes neste grupo est o primeiro narrador que
trocam histrias comuns. Reunidos para a caa na floresta (o que por si s lembra o
Maupassant dos Contes de la Bcasse), em meio paisagem noturna de vero em uma
fazenda, o narrador, caador noturno, enreda seus ouvintes, com sua prosa alegre e
espirituosa.78 O caso que se segue, entretanto, no se refere nem a caadas nem a mortes
trgicas, mas a um caso amoroso. Este velho mdico aproxima-se de outro Boniface, de
Maupassant, o do conto Le garde, caador como ele, grand tueur de btes et grand
buveur de vin, un homme robuste et gai, plein desprit, de sens et de philosophie.79 Ou
ainda, podemos compar-lo personagem do conto Clochette, de Maupassant, pelo tom
idlico da histria e pelo retrato de outra exmia contadora de histrias. Veja-se,
paralelamente, a descrio de Clochette, seguida da do mdico do conto Noivas:
76
186
Elle avait, autant que je puis me rappeler les choses quelle me disait et dont mon
cur denfant tait remu, une me magnanime de pauvre femme. Elle voyait gros et
simple. [...] Elle me contait ces naves aventures de telle faon quelles prenaient en
mon esprit des proportions de drames inoubliables, de pomes grandioses et
mystrieux; et les contes ingnieux invents par des potes et que me narrait ma mre,
le soir, navaient point cette saveur, cette ampleur, cette puissance des rcits de la
paysanne.80
O medico era um typo adoravel. Sadio e robusto, apezar da avanada edade, parecia
um moo pelo corao e pelo espirito.
Alma ingenua, enthusiastica e expansiva, amando as boas e puras gargalhadas dos que
no tm da vida remorsos e queixumes, colleccionra um repertorio inexgottavel de
anecdotas comicas que, melhor do que ninguem, sabia referir com infinita graa,
dispondo os animos e preparando habilmente o desenlace final, saudado sempre por
uma exploso geral de hilaridade.81
A cano italiana e a narrao em moldura de uma histria amorosa remetemnos de imediato tradio da novela toscana do Decameron. Esse conto, assim como
A flor dos trs desejos, O invejado e Os guardas do tesouro, de Se eu fosse
Sherlock Holmes; e V-la e am-la, de Surpresas..., recuperam a tradio do
anedotrio popular, o que refora a presena desse autor neste trabalho.
80
MAUPASSANT, Guy de. Clochette. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 852-3.
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Noivas. Contos escolhidos. Op. cit., p. 51.
82
Idem, p. 55.
81
187
188
86
87
189
190
Temendo morrer de fome, Walter Schnaffs sonda uma maneira de se render aos
franceses. Por fim, h uma verdadeira encenao do exrcito francs, simulando uma
grande rendio, enquanto o covarde soldado prussiano comemora sua sada pacfica do
conflito. Este conto no uma mera crnica sobre a guerra. O autor francs, que foi
soldado e conheceu de perto o que pe em sua literatura, faz uma crtica profunda contra
todo o contexto da guerra, aos inimigos, mas tambm ao uso poltico que a nao faz da
falsa resistncia.
Medeiros e Albuquerque, conhecedor do contexto, mas pessoalmente bastante
afastado dele, est mais preocupado em narrar uma anedota da guerra e um caso
extremo de loucura que leva ao crime. Se aqui retrata a alienao que conduz ao
homicdio, no conto que veremos adiante, o escritor brasileiro conta uma histria de
suicdio, igualmente relacionada loucura.
Em O homem que morreu, Medeiros e Albuquerque hesita entre a narrativa
fantstica em primeira pessoa, relato de um homem possudo, e a expresso de um
sentimento esprita. A pontuao reveladora dos dois momentos: nas dvidas, o conto
Lettre dun fou talvez o modelo mais prximo: um homem possudo, que escreve
uma carta angustiada amada (no conto de Maupassant, o destinatrio um mdico),
procurando saber se ele estaria ou no louco; nas reticncias e nas aluses religiosas,
creio que o seu subjetivismo o afasta de Maupassant. Eis o incio de Lettre dun fou:
Mon cher docteur, je me mets entre vos mains. Faites de moi ce quil vous plaira.
Je vais vous dire bien franchement mon trange tat desprit, et vous apprcierez
sil ne vaudrait pas mieux quon prt soin de moi pendant quelque temps dans une
maison de sant plutt que de me laisser en proie aux hallucinations et aux
souffrances qui me harclent.
Voici lhistoire, longue et exacte, du mal singulier de mon me.91
MAUPASSANT, Guy de. Lettre dun fou. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 461.
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. O homem que morreu. Contos escolhidos. 2. ed. Rio de Janeiro:
Edies Lux, 1924. p. 69.
92
191
93
MAUPASSANT, Guy de. Lettre dun fou. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 465.
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Op. cit., p. 76.
95
MAUPASSANT, Guy de. Op. cit., p. 464.
96
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Op. cit., p. 69.
97
Idem, p. 82.
98
Idem, p. 69.
94
192
MAUPASSANT, Guy de. Lettre dun fou. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 466.
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. O homem que morreu. Contos escolhidos. Op. cit., p. 81.
101
Idem. Se eu fosse Sherlock Holmes. Rio de Janeiro: Guanabara, [1932]. Terror conta em terceira
pessoa a histria de um morador de rua alcolatra, dominado pela mania de perseguio por ratos.
Garotos se divertem com o mendigo e pregam-lhe uma armadilha que acaba por mat-lo. A descrio
100
193
crua da morte e o prazer dos outros com sua desgraa do o tom trgico, nem sempre alcanado com
sucesso pelo autor.
102
Idem. Surpresas... (contos). Rio de Janeiro: Flores e Mano, 1934. Esse conto narra tambm em terceira
pessoa como unnime neste ltimo volume a realizao do sonho do pai de Tibrio Cludio, filho de
um operrio italiano. O filho, desiludido tambm no amor, pe fogo na cidadezinha onde mora, evocando
Nero, mas a destruio pouca e simblica e tem mesmo de disputar a autoria de seu feito no manicmio
com outros dois doentes.
103
MAUPASSANT, Guy de. Lapparition. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 780.
194
195
107
108
196
109
197
MAUPASSANT, Guy de. La chevelure. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 107.
Idem, p. 113.
114
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. No silncio. Contos escolhidos. Op. cit., p. 282.
115
Idem, p. 275.
113
198
199
MAUPASSANT, Guy de. La nuit. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 948-9.
VERSSIMO, Jos. Op. cit., p. 133.
200
mesmo ideal artstico e moral, falta sua obra uma unidade qualquer. Se a variedade
deleita, a unidade superior da obra darte, resultado de uma concepo da vida, ,
penso eu, com a mesma histria da literatura e da arte, condio indispensvel do seu
valor e durao. aqui o lugar de repetir a minha queixa do sr. Medeiros e
Albuquerque: o desperdcio de gro senhor que ele faz do seu real talento e das suas
evidentes capacidades literrias.120
120
121
201
BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da
cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 204.
202
123
VIEIRA, Celso. Orao do sr. Celso Vieira. Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,
ano 26, v. 46, n. 153, set. 1934. p. 64.
124
MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Surpresas. Op. cit., p. 107.
125
Viriato Correia, seu amigo pessoal, disse que Medeiros e Albuquerque era um dos maiores nomes do
Brasil, CORREIA, Viriato. Medeiros e Albuquerque. Revista da Academia Brasileira de Letras. Op. cit.,
p. 76.
203
126
204
CAPTULO 3
Quando Blau Nunes comeu a cabea da galinhola:
Simes Lopes Neto e Maupassant
A maior pressa a que se faz devagar.127
Nascido e criado em Pelotas, Joo Simes Lopes Neto (1865-1916) teve uma
vida tranquila de neto de fazendeiros, em meio ao charque e populao nativa.128
Comeou a estudar tardiamente em escola local, at que, aos treze anos, foi enviado ao
Rio de Janeiro para concluir seus estudos, no colgio Ablio, a clebre instituio
carioca retratada nas pginas de O Ateneu, de Raul Pompeia. Por alguns meses, cursou
medicina na mesma cidade, mas, por razes de sade, abandonou os estudos e voltou ao
torro natal, em 1882. Casou-se em 1892, com Francisca de Paula Meireles Leite.
Entre as diversas ocupaes de Simes Lopes Neto, e em que aos poucos
dissipou a herana familiar,129 a mais duradoura e que garantiu a sua sobrevivncia e a
de sua esposa at o final de sua vida foi a de jornalista. Ele deu incio a essa atividade
em 1888, aos 23 anos, quando foi chamado para trabalhar em A Ptria, jornal dirigido
por seu tio, Ismael Simes Lopes. Por meio de sua produo contnua nesse veculo, na
coluna Balas de estalo (mesmo ttulo que Machado de Assis dera anos antes a sua
coluna na Gazeta de Notcias do Rio de Janeiro), com crnicas de humor em verso, os
triolets, Simes Lopes Neto se fez conhecer sob o pseudnimo Serafim Bemol. Aps o
fechamento de A Ptria, em 1895, trabalhou de forma espordica em outros jornais de
Pelotas, como o Dirio Popular, com a mesma coluna, alm de outra, intitulada
Tesoura hilariante e assinada sob o pseudnimo Riforte. Nos ltimos anos de vida,
sempre em Pelotas, foi professor de portugus e francs na Escola do Comrcio e, a
partir de 1912, profissionalizou-se como jornalista. Assumiu o posto de redator do
127
LOPES NETO, Joo Simes. Contos gauchescos e Lendas do Sul. So Paulo: Globo, 2001. p. 166.
As informaes sobre a vida do escritor foram coletadas nas seguintes obras: a biografia escrita por
uma sobrinha-neta do autor: MASSOT, Ivete Simes Lopes Barcelos. Simes Lopes Neto na intimidade.
Porto Alegre: BELS/Instituto Estadual do Livro, 1974; no primeiro captulo da tese de livre-docncia de
Ligia Chiappini: CHIAPPINI, Ligia. Captulo 1: O caipora ou vai, Joo, ser gauche na vida. No
entretanto dos tempo: literatura e histria em Joo Simes Lopes Neto. So Paulo: Martins Fontes, 1987.
p. 9-52; e no posfcio de Carlos Reverbel s primeiras edies da editora Globo para Contos gauchescos
e Lendas do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro; Porto Alegre; So Paulo: Globo, 1961. p. 417-38.
129
Ligia Chiappini compara o caso de Simes Lopes Neto ao de Monteiro Lobato e comenta que, nessa
poca, para um homem escrever, sendo rico, era preciso antes perder todo o dinheiro, para encontrar
novamente o seu outro: o seu lado Simeo. CHIAPPINI. Op. cit., p. 48. Simeo era o colega de infncia
de Simes, quando viveu na Estncia da Graa (fazenda de seu av paterno, o visconde Joo Simes
Lopes), mas seu total oposto: filho de ex-escravos, pobre e analfabeto. Diversos estudiosos traaram um
paralelo entre Simes e Simeo, identificando elementos dessa relao em leituras da obra do autor.
128
205
jornal Opinio Pblica entre os anos de 1913 e 1914, funo qual voltou em 1915,
aps deixar o cargo de diretor do Correio Mercantil, que ocupou entre 1914 e 1915. Foi
como assalariado que morreu em 1916, deixando sua esposa em dificuldades
financeiras, pois seu esplio no obteve interessados nos anos logo subsequentes.
Suas principais obras foram publicadas ainda em vida, com recursos prprios.
Em 1894, estreou como dramaturgo amador tambm sob o pseudnimo Serafim Bemol,
com uma pea curta, de entretenimento, no gnero do teatro de revista, intitulada O
boato. Em 1896, lanou Os bacharis, seu maior sucesso nos palcos, em parceria com
Jos Gomes Mendes e Manuel Acosta y Olivera. Em 1910, publicou o Cancioneiro
guasca; em 1912, Contos gauchescos e, em 1913, Lendas do Sul. Por essa poca
tambm publicou a comdia A viva Pitorra e as conferncias Educao cvica e Pedra.
Entre as obras principais, somente os Casos do Romualdo e Terra gacha ficaram
inditos em livro por muito tempo, aps a morte do autor. Os Casos do Romualdo foram
coletados nos rodaps do Correio Mercantil de Pelotas, do ano de 1914, primeiro
veculo de sua divulgao. Esse levantamento foi realizado por Carlos Reverbel,
estudioso e bigrafo de Simes Lopes Neto, sob encomenda da editora Globo, e
publicados em 1952. Terra gacha, de que somente o primeiro volume projetado pelo
autor foi encontrado em manuscritos, foi publicado em 1955.
Ao contrrio do que os primeiros bigrafos do autor postularam, a pesquisa
arqueolgica aos jornais locais empreendida por Cludia Rejane Dornelles Antunes
mostra que Simes Lopes Neto foi celebrado como escritor ainda em vida,130 mas fica
claro, pelos exemplos coletados, que somente na esfera municipal e estadual, onde seus
livros eram reputados pela preciso no retrato da cor local. Um primeiro pequeno passo
para a projeo nacional ocorreu com a visita de Coelho Neto ao Rio Grande do Sul,
quando travou contato com a obra simoniana e, ao que parece, fez divulg-la entre
outros escritores da ento capital federal. Mas foi principalmente aps a divulgao
maior proporcionada pelas grandes tiragens da editora Globo e pelos estudos de
Augusto Meyer, na dcada de 1940, que o regionalista do sul se juntou aos regionalistas
de So Paulo nos captulos sobre o Regionalismo e o Pr-Modernismo, hoje frequentes
nos manuais de literatura brasileira. De escritor municipal a estadual, somente aps sua
130
ANTUNES, Cludia Rejane Dornelles. A potica do conto de Simes Lopes Neto: o exemplo de O
negro Bonifcio. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. (Coleo Memria das Letras, 14). p. 30-8 e 183-6.
206
morte, pelo resgate de sua obra pelos modernistas gachos e pela crtica, conseguiu a
projeo nacional.131
Essa projeo, com a passagem do tempo, deve ser observada como uma reviso
do autor. Foi relido num segundo momento, no mais sob o olhar do reconhecimento
rio-grandense, cujo mrito era perceber a eleio de um modelo do homem gacho, mas
pela qualidade da fatura literria de seus textos. O registro dos elementos regionais
deixa de ser a qualidade primeira apontada em sua obra e a crtica especializada comea
a pr em relevo o tratamento de recursos literrios, como o uso original do foco
narrativo, cedido a um personagem que v e fala como o homem local o achado
tcnico de Simes Lopes Neto, na opinio de Ligia Chiappini.132
Escritos em uma lngua repleta de termos regionais, seus contos impem
algumas dificuldades ao leitor atual e no gacho. A maioria das edies de sua obra
acompanhada de um glossrio com os regionalismos, por vezes at ilustrado, tendo o
primeiro deles sido realizado por Aurlio Buarque de Holanda. Entretanto, conforme
Lcia Miguel-Pereira definiu muito bem, no preciso ser gacho para sentir-lhe a
poesia. Segundo a crtica mineira, [...] o que importa no que os nativos se
reconheam no retrato, mas que o retrato impressione aos que ignoram os modelos,
faa-os penetrar num mundo novo.133 Ainda sobre o aspecto lingustico, tambm tem
razo Alfredo Bosi, ao alertar que a linguagem de Simes segue a fluncia do contador.
o artista enquanto homem que tem algo de si a transmitir, ainda quando parea
fazer apenas documentrio de uma dada situao cultural. Seus contos fluem num
ritmo to espontneo, que o carter semidialetal da lngua passa a segundo plano,
impondo-se a verdade social e psicolgica dos entrechos e das personagens.134
Para Alfredo Bosi, Simes Lopes Neto o exemplo mais feliz de prosa
regionalista no Brasil antes do Modernismo.135 Como se v, o escritor gacho
valorizado por unir com harmonia uma narrao de histrias bem ambientadas no seu
universo social de origem, por meio de uma linguagem prpria do homem local.
131
Cf. CHIAPPINI, Ligia. Op. cit., p. 68-78. Segundo a autora, tanto Mrio de Andrade quando
Guimares Rosa dispunham em suas bibliotecas de exemplares anotados dos livros de Simes Lopes Neto
(v. p. 69). No entanto, para desamparo de diversos estudiosos que vm traando paralelos entre eles,
nenhum fez menes crticas ao escritor gacho.
132
CHIAPPINI, Ligia. Op. cit., p. 342.
133
MIGUEL-PEREIRA, Lcia. Histria da Literatura Brasileira: prosa de fico, de 1870 a 1920. 2. ed.
Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1957. p. 216 e 215, respectivamente.
134
BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. 47. ed. So Paulo: Cultrix, 2010. p. 225.
135
Idem, p. 226.
207
208
comentrio de Herman Lima, em que coloca o nome de Simes Lopes Neto junto ao de
outros escritores brasileiros, na mesma corrente do conto maupassantiano:
A tradio naturalista de Maupassant procura captar a realidade no seu aspecto
externo, como a sede e o motivo dos conflitos entre os homens. Ela teve no
regionalismo o principal estmulo e a atmosfera que a ajudariam a produzir entre
ns algumas obras-primas no gnero, pela pena de Afonso Arinos, Simes Lopes
Neto, Monteiro Lobato, Carvalho Ramos, Guimares Rosa, etc. Sem embargo, o
conto naturalista no foi s no contato da terra que se construiu entre ns. O
ambiente social das cidades, dos centros operrios serviu-lhe excelente matria
prima, de que souberam tirar partido um Coelho Neto e um Lima Barreto.141
LIMA, Herman. O conto, do Realismo aos nossos dias. In: COUTINHO, Afrnio. A literatura no
Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana S.A./Livraria So Jos, [s.d.], v. II. p. 245.
209
Em um conto de guerra, tambm de 1883, Le pre Milon, Maupassant sugere essa interpretao ao
leitor: Chaque nuit, il errait, il rdait laventure, abattant des Prussiens tantt ici, tantt l, galopant par
les champs dserts, sous la lune, uhlan perdu, chasseur dhommes. MAUPASSANT, Guy de. Contes et
nouvelles. Op. cit., t. I, p. 827. Grifo nosso.
143
Car cest bien la parution en recueil qui cre les remaniements. Pour insrer dans les Contes de la
bcasse le rcil intitul La Folle et paru dabord dun seul tenant dans Le Gaulois, Maupassant le scinde
en deux textes. La premire partie, qui deviendra La Bcasse, constituait un long prambule lhistoire
dune pauvre femme victime dun officier prussien sadique. Cette squence, spare du rcit quelle
introduisait, acquiert dans le recueil son autonomie. GRANDADAM, Emmanule. Contes et nouvelles
de Maupassant: pour une potique du recueil. Mont-Saint-Aignan: Publications des Universits de Rouen
et du Havre, 2007. p. 45.
144
FORESTIER, Louis. Notices, notes et variantes. In: MAUPASSANT, Guy de. Contes et nouvelles.
Op. cit., t. I, p. 1493.
210
Brasil. Essa forma, que Maupassant tanto contribuiu para difundir por aqui, no supera
o modelo e, no caso em vista, nem o sucessor brasileiro, que melhor soube zelar por ela,
conforme veremos. Mas revela como uma ciranda de contistas em torno de uma forma
comum cresceu ao longo dos sculos, graas, mais recentemente, divulgao dela
operada pela obra do escritor francs.
O livro de Maupassant abre-se com La Bcasse. O narrador impessoal
maupassantiano introduz sua personagem, o baro des Ravots, antigo e proeminente
caador aposentado de uma provncia no nomeada. Com as pernas imobilizadas por
um problema fsico, esse baro tem por distraes atirar em pssaros do alto da janela
de sua casa, ler e reunir-se com os amigos que vm das caadas, para ouvi-los contar
suas histrias:
Ctait un homme de commerce aimable chez qui tait rest beaucoup de lesprit
lettr du dernier sicle. Il adorait les contes, les petits contes polissons, et aussi les
histoires vraies arrives dans son entourage. Ds quun ami entrait chez lui, il
demandait:
Eh bien, quoi de nouveau?
[...]
Ctaient dtranges et invraisemblables aventures, o se complaisait lhumeur
hbleuse des chasseurs.145
Podemos observar, nessa apresentao, que o baro des Ravots est atrelado a
duas correntes: a cultura literria, vinculada aos antigos sales franceses, e a cultura
popular e regional da provncia, disseminada por homens de vida prtica em meio
natureza selvagem. O baro um representante cultural do homem francs do sculo
XIX, que cultiva indiscriminadamente o prazer de caar para divertimento prprio e os
costumes mundanos dos sales. As histrias trocadas com seus convivas so marcadas
pelo humor, mas tambm pelo carter anedtico e surpreendente.
Conforme o primeiro narrador, essas reunies eram caracterizadas por uma
espcie de ritual: havia nesse grupo o hbito do chamado conte de la Bcasse. Uma
vez que todos os presentes admiravam a carne da galinhola (bcasse, em francs), cada
conviva comia uma, com o cuidado de retirar e reunir as cabeas intactas das aves em
um mesmo prato. Em seguida, o anfitrio, o baro des Ravots, ungia essas cabeas e
prendia uma delas ao gargalo de uma garrafa, que fazia girar sobre a mesa, no centro do
grupo. Ao parar, para quem o bico da galinhola apontasse, seria o eleito a regalar-se
com as cabeas das aves. Ao terminar de com-las, sob ordem do baro, esse caador
145
211
deveria conter une histoire pour indemniser les dshrits.146 Os contos que se
seguem no livro seriam, ento, conforme o primeiro narrador, algumas dessas
narrativas.
Desde a primeira delas, o conto Ce cochon de Morin, j no atendida essa
prerrogativa, segundo a qual deveria trazer uma unidade temtica e estrutural com La
Bcasse. O primeiro narrador (que s aparentemente o interlocutor do baro des
Ravots) conversa com seu amigo, ex-jornalista e atual deputado. Este quem apresenta,
por meio do dilogo, a histria do Morin do ttulo: um comerciante casado, que perdeu a
honra aps tentar beijar fora uma jovem, Mademoiselle Henriette Bonnel, durante
uma viagem de trem de volta provncia (La Rochelle), saindo de Paris. Morin foi
preso e desde esse dia ficou conhecido em sua cidade como um homem desprezvel, da
ser chamado de porco. O ato absurdo de Morin abrandado, diante do relato desse
narrador. Dispondo-se a ajudar Morin, o ex-jornalista procura a famlia da moa para
ressarci-la, mas acaba se envolvendo com ela, revertendo assim a perspectiva sobre os
acontecimentos: seria a moa responsvel pela atitude de Morin? De forma semelhante
do protagonista do clebre conto La ficelle, Morin consumido pela humilhao por
que passa diante da sociedade e morre dois anos depois, enquanto a jovem Henriette
acaba casando-se com um tabelio e passando-se por uma mulher respeitvel.
Embora esse conto, isoladamente, seja rico em elementos para discusso, em
termos de conjunto, na tentativa de Maupassant criar uma obra nica com Contes de la
Bcasse, nada revela dessa inteno. na segunda narrativa do volume que vamos
encontrar essa inteno levemente satisfeita, pelos traos que restaram do deslocamento
de seu incio para a abertura do livro.
La folle comea, de fato, como uma histria recuperada pela indenizao
sobre a galinhola: Tenez, dit M. Mathieu dEndolin, les bcasses me rappellent une
bien sinistre anecdote de la guerre.147 Curiosamente, o assunto do conto (a guerra)
aproximado do repertrio do lazer e da caa. Esse falso paradoxo explica-se ao final da
narrativa. Trata-se da histria de uma vizinha do narrador que ficou louca aos 25 anos,
aps perder o pai, o marido e um filho. Deprimida, ela passa quinze anos na cama, at
que, durante a Guerra Franco-prussiana, um grupo de alemes a carrega em direo
floresta de Imauville e ningum mais tem notcias dessa mulher. Quando chega o
outono e as galinholas voam pela regio, o narrador segue para a floresta, a fim de ca146
147
212
las, e por l encontra um ninho delas sobre o colcho em que jaz o esqueleto da vizinha
abandonada pelos alemes ao frio, neve e aos lobos, at a morte.
Vemos que esse conto o nico do volume que se insere na estrutura proposta
no texto de abertura. Ainda que diversos contos sejam narrativas enquadradas, casos
relatados diante de outras pessoas, por um sujeito que viveu os fatos (como em Ce
cochon de Morin, Menuet e La peur), essas personagens-narradoras no so
vinculadas roda do baro des Ravots. La rempailleuse, por exemplo, retoma a
situao inicial de La Bcasse, mas com outras personagens: durante a abertura das
caas, na casa do marqus de Bertrans, esto reunidos onze caadores, oito mulheres e
um mdico, e este ltimo conta a triste histria da velha empalhadora.
Se tomarmos o aspecto regional de Contes de la Bcasse como parmetro, notase um pano de fundo que rene as narrativas do volume, porm, sem uma continuidade.
A provncia grande o suficiente para que seus personagens no dialoguem e seus
espaos no se comuniquem. O objetivo desse retrato, por parte dos narradores, mais
de desintegrao com esse homem regional do que de comunho com ele. Pierrot, por
exemplo, o caso de uma viva normanda, Madame Lefvre, e sua empregada, Rose,
que, para espantar o ladro de sua plantao de cebolas, acaba trazendo para casa um
cachorro amarelo, com corpo de crocodilo e cabea de raposa. O escritor retrata muito
bem, por meio de Madame Lefvre, a sovinice que atribui aos normandos. Aps
perceber que o cachorro comia demais e no latia nunca, o apego da mulher ao pequeno
Pierrot dissipa-se e ela o deixa morrer num canil. O retrato do regional no se faz, pois,
sem uma stira aos costumes locais. Ver como exemplos disso Farce normande, em
que fica a ideia do provrbio, citado em certo momento do conto, qui va la chasse
perd sa place,148 ou a ingenuidade de Adelade, de Les sabots, que desconhecia como
so feitos os filhos.
Tambm em Un Normand, podemos afirmar que Maupassant busca fazer uma
caricatura de um homem tpico de sua regio. Logo no incio, o narrador ouve o relato
de um amigo sobre o pre Mathieu: Je vais vous faire sentir un fumet de Normandie
qui vous restera dans le nez. Le pre Mathieu est le plus beau Normand de la province,
148
MAUPASSANT, Guy de. Farce normande. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 502. Para Walter
Benjamin, o provrbio , por si s, uma espcie de ideograma de uma narrativa, so runas de antigas
narrativas, nas quais a moral da histria abraa um acontecimento, como a hera abraa o muro.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da
cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 221.
213
et sa chapelle une des merveilles du monde, ni plus ni moins [...].149 Mas o retrato
desse antigo sargento normando, de sessenta anos, logo se revela uma stira contra a f
e os costumes provincianos. Querendo aproveitar-se de tudo, ele torna-se guardio de
uma capela dirigida s jovens grvidas, onde vende oraes e indica os santos certos
para cada necessidade dos visitantes. Esse normando ganancioso, bonacho e bom de
copo tambm inventa o saoulomtre, espcie de bafmetro, que ele testa em si
mesmo, para desafiar sua prpria capacidade de atingir o maior nvel alcolico.
Para Emmanule Grandadam, Le paysan normand va donc de pair avec la
thmatique du recueil. Il a aussi, pour le lecteur parisien ou citadin, le sensible avantage
et le mrite dtre la fois soi et lautre auquel le lecteur cultiv ne sidentifie pas.150
Tambm Maria Cristina Batalha apontou, no ttulo e no contedo do livro, esse jogo
entre uma viso do homem do campo e do homem da cidade:
A bcasse uma ave de carne refinada e iguaria muito apreciada pelos caadores da
Normandia. Alm disso, a palavra bcasse, ou mais exatamente seu diminutivo,
bcassine, designa a pessoa ingnua e simples, desprovida da mscara social atrs
da qual a gente da cidade se apresenta. Ora, parece-nos que o ttulo, pela
ambigidade da referncia bcasse, nos possibilita inferir as primeiras hipteses
de leitura, alertando para uma unidade intentada pelo autor: a carne da ave
caracterstica da sua regio como um produto requintado e, paralelamente,
sugerindo a simplicidade do homem do campo, em sua proximidade com a terra,
com a tradio e com o primitivo.151
214
[...]),152 mas apenas como observaes pitorescas do narrador, que no emprega essa
lngua como sua, mas sim em pequenas falas das personagens (Les sabots e Aux
champs). Com exceo desses cinco contos, em que h o retrato de personagens
normandas, nos demais, a provenincia delas pouco determinante. Curioso notar que
a preocupao com a linguagem e os costumes normandos ocuparia o autor em outros
contos mais tardios e que, portanto, no constam do volume, como Le diable e
Tribunaux rustiques. Alis, o espectro normando nunca se afastou dos interesses de
Maupassant, de forma que os Contes de la Bcasse no constituem, portanto, uma
unidade parte na obra do escritor.
Outro ponto importante na anlise do conjunto dos contos a reunidos a
disperso da autoria das narrativas. Mesmo que fossem recontadas pelos caadores
visitantes do baro (o que, de fato, s acontece uma vez), perde-se a fora da vivncia
rica de um nico sujeito guiando os relatos. Nesse ponto, ambos os autores se afastam
do modelo do Decameron. O escritor francs ainda cuidou de dedicar cada um dos
contos a um amigo, o que torna mais dispersiva, para o leitor, a inteno do conjunto.
Passemos ao livro de Simes Lopes Neto, para vermos como o escritor brasileiro
operou com esses mesmos recursos literrios. Os Contos gauchescos tambm comeam
com um texto de apresentao, mas sem ttulo, que se inicia com a seguinte frase:
Patrcio, apresento-te Blau, o vaqueano. Dessa simples introduo j se depreendem
trs elementos importantes para a compreenso de todo o volume e que sero reforados
ao longo dos contos:
1) a categoria do interlocutor a que se dirigir Blau Nunes, um igual, algum que
compartilha de mesmos referenciais culturais e de mesmos valores, por ter nascido na
mesma ptria; o leitor inevitavelmente se confunde com ele, que ao longo do livro
chamado a ouvir as histrias (escuite, p. 47-54; Vanc assuntou bem no conto?, p.
165; vanc escuite, p. 174). Alguns estudiosos, como Flvio Loureiro Chaves,
sugerem que Simes Lopes Neto seja esse interlocutor e o acompanhante de Blau
Nunes;153
152
153
215
154
Sabe-se, no entanto, que Simes Lopes Neto assim batizou tambm um bonequinho que recebeu como
lembrana de um parente vindo de uma viagem Alemanha; isso s refora o entendimento da
personagem como um ser fantasioso (um boneco dotado de caractersticas humanas).
216
155
LOPES NETO, Joo Simes. Contos gauchescos e Lendas do Sul. Op. cit., p. 38-9.
Lembramos que tambm em Casos do Romualdo: contos gauchescos, de extrao muito mais satrica
e popular, o autor utilizou um contador de histrias prodigioso. Romualdo um caador que abre o saco
de histrias: Abro o saco e conto o muitssimo que tenho visto, as aventuras em que fui parte (LOPES
NETO, Joo Simes. Casos do Romualdo: contos gauchescos. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2004. p.
27). Romualdo a parte avessa de Blau Nunes: exagerado e contador de vantagens ao modo do baro de
Mnchausen (cf. A Teteia, p. 65-8), ele narra em lngua vulgar e tem de ser decifrado pelo primeiro
narrador (p. 109), que recebeu um pacote em sua casa com esses casos. O livro tambm comea por uma
apresentao irnica, que alerta sobre a pouca seriedade de seu contedo. Creio que o autor brinca com a
prpria obra, colocando este seu Romualdo como um concorrente de Blau Nunes: Leitor! / Entendamonos desde j: / possvel (o autor ignora-o), que haja coletnea semelhante, anterior, nacional; se existe,
para melhor bem, que supere a atual no contedo e na forma! (p. 23). No esqueamos que o subttulo de
Casos do Romualdo justamente Contos gauchescos. No cabe aqui uma comparao desse livro com a
obra de Maupassant; apesar de a ocupao de Romualdo ser a mesma da do baro des Ravots, o livro de
Simes uma antologia de causos, cujo reduzido tratamento literrio no permitiria equiparar as
categorias que quisemos pr aqui em questo, para o que julgamos Contos gauchescos muito mais
apropriado.
157
ZILBERMAN, Regina. Presente e passado nos Contos gauchescos. In: FILIPOUSKI, Ana Mariza et
al. Simes Lopes Neto: a inveno, o mito e a mentira. Porto Alegre: Movimento/IEL, 1973. p. 29-37.
158
Idem, p. 29 e p. 33.
156
217
Simes Lopes Neto, ao criar os Contos gauchescos, no vivia mais a poca que os
tornou possveis. Ao voltar-se para ela, compreendeu sua razo de ser e seu fim.
Mas seu gesto como escritor tambm o de compreenso de seu tempo, de sua
realidade, que contrariava a tradio e propunha novos valores, aos quais ele se
opunha. Deste modo, os Contos gauchescos no so simplesmente a reconstituio
do passado, de um modo de vida particular, mas tambm um pensamento e um
alerta contra o presente que contraria uma tradio atravs da qual se ergueu a
civilizao rio-grandense e responsvel por seu desaparecimento.
E esta atitude de Joo Simes, voltar ao passado para compreender a sua perda,
lega-nos uma questo que julgamos fundamental. Ela coincidiu, e no por acaso,
com o momento de maior criatividade do regionalismo gacho. A questo
sabermos por que este floresceu justamente com a perda do mundo que o gerou.159
159
ZILBERMAN, Regina. Presente e passado nos Contos gauchescos. Op. cit., p. 37.
CHAVES, Flvio Loureiro. Op. cit., p. 16.
161
Idem, p. 18.
162
CHIAPPINI, Ligia. Op. cit., p. 349.
160
218
As diferenas entre Blau Nunes e o baro des Ravots so, como se observa,
muito grandes. A personagem brasileira muito mais complexa que a maupassantiana e
sua importncia para a compreenso do livro fundamental, pois Blau um pilar da
estrutura que o contm. No livro de Maupassant, passada a leitura do segundo conto, o
leitor j pode se esquecer do baro des Ravots e de seus convivas, pois eles no
reaparecero e a fruio das narrativas seguintes j no mais depende deles. No livro de
Simes Lopes Neto, isso se torna impossvel, pois a presena do narrador intrnseca
unidade das narrativas. Os textos de Maupassant de Contes de la Bcasse sero
povoados por diversos outros narradores como os caadores e o baro, no menos
importante estruturao dos contos, mas irrelevantes no conjunto.
Para continuar nosso estudo comparativo, queremos comentar ainda dois dos
Contos gauchescos, O boi velho e Contrabandista, para tratarmos do segundo
elemento de comparao com Maupassant: o desfecho impactante.
Blau Nunes comea o relato de O boi velho valorizando a histria dos Silva
pela maldade tpica do ser humano:
Cu-pucha!... bicho mau, o homem!
Conte vanc as maldades que ns fazemos e diga se no mesmo!... Olhe, nunca
me esqueo dum caso que vi e que me ficou c na lembrana, e ficar t eu
morrer...164
163
164
219
Narra-se ento a histria dessa famlia e de seu boi Cabina. O animal sempre
esteve disposio de todos e transportava as crianas para pegar frutas e para ir ao
banho. Mas o tempo passou, o animal ficou velho e, depois da morte de outro boi seu
companheiro, o Dourado, Cabina emagreceu e adoeceu. Os mesmos homens que,
quando crianas, andaram sobre Cabina agora julgam necessrio matar o animal para
aproveitar-lhe o couro. O boi ento ferido e ainda sangra, quando um menino vem lhe
pr na boca um pedao de batata-doce. Para Blau Nunes, s depois do ato da criana
que despertado no grupo o remorso por matarem o boi Cabina. A frase final retoma o
argumento do incio, sobre a maldade dos homens: Cu-pucha!... mesmo bicho mau,
o homem!.165
A transposio da humanidade dos sentimentos de Cabina e da falta de amor da
famlia pelo animal para a narrativa de Blau Nunes de grande lirismo (o que no
encontramos, porm, no conto seguinte, Correr eguada). A forma simples e
inesperada como acaba o conto, que retoma a frase inicial, sobre a maldade humana
contra animais, inevitavelmente nos faz lembrar de contos como Mademoiselle
Cocotte, de Clair de lune; de Pierrot, de Contes de la Bcasse; da triste histria do
cavalo Coco, em Contes du jour et de la nuit; ou ainda de Lne, em Miss Harriet.
J vimos, em Pierrot, que a avareza e o esprito prtico de Mme Lefvre a fez pegar e
largar o cachorro. Tambm a frase final do conto contrape a sua frieza ao sentimento
da empregada Rose, ao constatar a morte certa de Pierrot, que, na falta de comida, seria
devorado pelos cachorros mais fortes, presos como ele no canil:
Et, suffoque lide de tous ces chiens vivant ses dpens, elle sen alla,
emportant mme ce qui restait du pain quelle se mit manger en marchant.
Rose la suivit en sessuyant les yeux du coin de son tablier bleu.166
LOPES NETO, Joo Simes. O boi velho. Contos gauchescos. Op. cit., p. 84.
MAUPASSANT, Guy de. Pierrot. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 575.
220
os adereos dela. Ele se atrasa, a filha j chora e ri, sem saber por qu, quando o pai
trazido por uma comitiva, carregado, pois foi morto pela guarda da fronteira. O final
de uma tristeza pungente, mas de uma simplicidade de termos admirvel, pelo silncio,
pelas frases curtas do contrabandista e pela imagem do vestido entregue, ltimo
presente do pai, mas coberto com o seu sangue:
Ento vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um
homem, ainda de pala enfiado...
Ningum perguntou nada, ningum informou de nada; todos entenderam tudo...;
que a festa estava acabada e a tristeza comeada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sof enfeitado, que ia ser o trono dos
noivos. Ento um dos chegados disse:
A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capito, porque
ele avanou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e
ainda o amarrou no corpo... A foi que o crivaram de balas... parado... Os
ordinrios!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona me da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o
embrulho; e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o vu branco, as flores de
laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura
daquelas cousas bonitas como que bordada de colorado, num padro esquisito, de
feitios estramblicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de
bagual!...
Ento rompeu o choro na casa toda.167
167
168
221
169
A terica sugere at que um fato biogrfico, o estrabismo de nascena, agravado por uma cirurgia
malfeita na infncia, teria aguado o sentido do jovem Simes Lopes Neto para a observao constante do
mundo ao seu redor. Ela comenta que o olhar uma espcie de metfora obsessiva, desde a abertura dos
Contos Gauchescos. Cf. CHIAPPINI, Ligia. Op. cit., p. 19.
170
CHIAPPINI, Ligia. Op. cit., p. 176.
171
Idem, p. 326.
172
Idem, p. 328.
222
Queremos mostrar aqui que a importncia de Simes Lopes Neto no deve ficar
reduzida sua filiao a um modelo de conto, de que nem sequer temos notcia se
conheceu diretamente. Ler Simes Lopes Neto ao lado de Maupassant apenas nos
permite cotejar formas de produo do texto literrio semelhantes, com intenes e
resultados diferentes, como era esperado. A preocupao em estabelecer um florilgio
de lendas e mitos locais, recuando na histria do pas, e principalmente a preocupao
formal com o texto e a busca de um foco narrativo que d voz ao gacho pobre, de
origem ancestral, impedem-nos de ler seus contos sob os auspcios de Maupassant. O
que fizemos foi relacionar elementos em princpio semelhantes, mas com solues
diversas, que ilustram uma preocupao comum de mais um contista do perodo em
estudo.
Conhecendo a tradio do conto literrio, a importncia da presena francesa no
incio do sculo XX, no Brasil, e, especialmente, em nosso caso, da leitura realizada por
diversos escritores pr-modernistas dos contos de Maupassant, nos permitido ler de
outra forma, tambm vlida e enriquecedora, o conto simoniano. Uma forma que o
irmana tradio do narrador benjaminiano,173 qual pertencem muitos personagens de
Maupassant. V-se, assim, o escritor pelotense, na dcada de 1910, projetado a um
domnio sem fronteiras a que nos leva o comparatismo.
A presena francesa no perodo da belle poque era sintomtica, e o
regionalismo era uma forma de resistncia a ela, conforme afirmam Ligia Chiappini e
Regina Zilberman:
Quando digo que Simes Lopes Neto afina com os avessos, no penso somente em
Lima Barreto e Euclides, mas tambm no regionalismo como um todo, que, em
plena moda de uma cultura afrancesada, prope-se a conhecer melhor a realidade
brasileira, valorizando o folclore, as falas regionais, o fundo tnico dos
costumes.174
Antes de ns, Ligia Chiappini j havia associado a teoria de Walter Benjamin ao caso de Simes
Lopes Neto: Simes Lopes Neto, na soleira do campo e da cidade, e na soleira do Rio Grande e do Brasil
entre dois sculos, indivduo solitrio, tambm o jornalista e professor que sabe dar conselhos. Sua
experincia de vida hbrida como a de Leskov e como a de Guimares Rosa. CHIAPPINI, Ligia. No
entretanto dos tempos. Op. cit., p. 330.
174
Idem, p. 134.
223
175
224
CAPTULO 4
O Maupassant caboclo:177
Monteiro Lobato e sua colcha de retalhos maupassantiana
Nascido em Taubat, em 1882, Jos Bento Monteiro Lobato foi criado numa
fazenda, junto aos pais e s irms. Seu interesse pelos livros comeou ainda na
adolescncia, quando dispunha de livre acesso biblioteca do av materno, o visconde
de Trememb. Veio para So Paulo, onde, em 1900, ingressou na Faculdade de Direito
do largo de So Francisco e estabeleceu sua formao literria num crculo de
estudantes-literatos. Entre suas leituras favoritas, que o acompanhariam at a idade
adulta, esto clssicos da literatura francesa, portuguesa, inglesa, brasileira, russa, grega,
alem e italiana, nessa ordem.179
Aps casar-se em 1908, trabalhar como promotor e depois tornar-se fazendeiro,
no interior de So Paulo, a partir de 1918, Lobato passa direo da Revista do Brasil e,
no ano seguinte, da editora Monteiro Lobato e Cia. Ainda que tenha atuado em
diversas outras reas, como a diplomacia, interessa-nos aqui tratar de sua produo
literria, o nico domnio ao qual se dedicou durante toda sua vida.180 Sua obra est
dividida entre adulta (em que produziu contos, crnicas, romance, cartas e ensaios) e
infantil, sendo que esta ltima iniciou-se em 1920 e estendeu-se at sua morte, em 1948.
177
A expresso de Guilhermino Cesar, em Dois momentos de Lobato. In: Letras de Hoje. Porto
Alegre: PUC-RS, n. 49, set. 1982. p. 11.
178
LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. So Paulo: Brasiliense, 1948. t. II. p. 60. Carta de 07/12/1915.
Nas transcries, preferimos respeitar as edies originais e adotar a grafia defendida pelo autor.
179
Ver levantamento de Sueli Cassal, a partir do estudo de A barca de Gleyre. Pode-se notar que as leituras
de Lobato em literatura francesa abrangem desde Montaigne, Rabelais, Mme. de Sevign, passando pelos
filsofos do sculo XVIII, com grande concentrao nos autores do XIX, poetas e prosadores, entre eles
Chateaubriand, Victor Hugo, Baudelaire, Balzac, Zola, Daudet, Flaubert, Maupassant e Anatole France.
CASSAL, Sueli Tomazini Barros. Amigos escritos. So Paulo: Imprensa Oficial, 2002. p. 120-3.
180
Diversos estudiosos abordaram com profundidade a atuao de Lobato em outras reas, como nas
campanhas sanitarista e do petrleo, e refletiram sobre o que elas acarretaram vida do escritor. Para esse
e outros assuntos, remeto leitura de CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1955. 2 v. LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida.
So Paulo: Moderna, 2000. AZEVEDO, Carmen Lcia de; CAMARGOS, Marcia; SACCHETTA,
Vladimir. Monteiro Lobato: furaco na Botocndia. So Paulo: Senac, 1997. STAROBINAS, Lilian. O
caleidoscpio da modernizao: discutindo a atuao de Monteiro Lobato. So Paulo, 1992. Dissertao
(Mestrado) Departamento de Histria, Universidade de So Paulo.
225
Conforme Lobato declara ao amigo Godofredo Rangel, em carta de 6 de julho de 1909. LOBATO,
Monteiro. A barca de Gleyre. Op. cit., t. I, p. 251.
182
LOBATO, Monteiro. Idias de Jeca Tatu. So Paulo: Globo, 2008. p. 60-7. A primeira edio de
1919.
183
Idem. Crticas e outras notas. So Paulo: Brasiliense, 1965. p. 87-91.
184
BED, Ana Luisa Reis. Monteiro Lobato e a presena francesa em A barca de Gleyre. So Paulo:
Annablume/Fapesp, 2007. p. 155.
226
Se, no plano das ideias, muitos de seus mestres eram franceses, na linguagem, os
parmetros de Lobato eram confessadamente os portugueses Fialho dAlmeida e
Camilo Castelo Branco. Preocupou-se tambm em incorporar em suas obras o
vocabulrio e algumas estruturas do falar caipira, sobretudo na reproduo dos dilogos
das personagens. Machado de Assis era para ele um mestre, mas, quanto forma
literria escolhida e s tcnicas de composio de seus contos, foi sem dvida a
Maupassant que ele seguiu. Guilhermino Cesar, em Dois momentos de Lobato,
mostra como essas leituras foram importantes para o autor de Urups, mas como
tambm ele buscou super-las: [...] ele reagiu diante dessa herana, que tanto prezou e
da qual, em verdade, jamais se libertaria. Com a sua poderosa intuio, Lobato recrioua.185 A conscincia do escritor taubateano era total sobre essa dvida em suas
realizaes literrias iniciais. Em carta ao amigo Godofredo Rangel, de 3 de outubro de
1917, ao anunciar a publicao de mais um conto seu, afirma: Saiu no Estado mais
uma escorrencia minha. Ainda produto do Lobato francs em transio.186
185
227
189
228
Sud Menucci (1892-1948) foi professor, historiador, jornalista, ensasta e membro da Academia
Brasileira de Letras. Entre 1925 e 1931, foi redator e crtico de O Estado de S. Paulo. MELO, Lus
Correia. Dicionrio de autores paulistas. So Paulo: Comisso do IV Centenrio da Cidade de So Paulo,
1954, p. 382.
194
Mantivemos a grafia da poca. O texto pode ser lido na ntegra no CD-ROM anexo dissertao de
mestrado A volta do Horla: a recepo de Guy de Maupassant no Brasil. So Paulo, 2007. Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 2007, em Anexos, p. 404.
229
tema para a fico. Nem de surpreender que a primeira obra de sucesso desses autores
trabalhasse de alguma maneira esse assunto, dadas as circunstncias em que foram
produzidas. Ainda que fale em charge dolorosa e em gnese dos sentimentos das
personagens, Sud Menucci no pe em contraste os procedimentos formais de criao
dos dois escritores, que foram comentados mais tarde por outros crticos.195
Agripino Grieco, em 1933, comenta o livro de estreia de Lobato e, em
determinado momento, ao mencionar o conto Bocatorta, pe em relao os dois
escritores por meio do regionalismo de cada um. Empregando um modo impressionista
de fazer crtica, confronta a criao da personagem de Lobato dos camponeses de
Maupassant:
[...] o terrivel caso do Boccatorta, digno de um Maupassant que, ao invs de fazer
falar os camponios normandos, fizesse falar os caipiras de So Paulo e dsse a um
delles a capacidade de pincelar em traos rudes e incisivos a figura quasimodesca
do here da narrao...196
Em 1935, o mesmo crtico cita ainda um outro conto de Urups, Barba azul,
a ser comparado com Maupassant, pela temtica, pelo estilo e pela personagem:
Caso seccamente exposto, com aquella impressionante frieza do melhor
Maupassant, o de um Barba Azul patricio, viuvo todos os annos e s desposando
mulheres predestinadas physiologicamente a morrer de parto, para que elle,
sobrevivente, receba industria rendosa um polpudo seguro de vida.197
195
Apenas a ttulo de curiosidade, devemos lembrar que a crtica de Sud Menucci deve ser posta em
dilogo com a clebre polmica gerada por discurso de Rui Barbosa sobre o Jeca Tatu, que levantou as
vendas de Urups. Na quarta edio, portanto a edio seguinte crtica de Menucci, Lobato faria uma
reviso da personagem do Jeca Tatu, centro da questo aberta sobre o patriotismo. Somente a Lobato,
compreendendo melhor sua prpria personagem, retratou-se, dizendo que o Jeca era a consequncia, e
no a causa da misria e do descaso no Vale do Paraba. No livro de contos seguinte, sem retomar a
personagem, o autor volta questo, ao criar histrias que se passam na regio e, em especial, em cidades
imaginrias como Oblivion e Itaoca.
196
GRIECO, Agripino. Evoluo da prosa brasileira. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1933. p. 182.
197
Idem. Monteiro Lobato. Gente nova do Brasil: veteranos alguns mortos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1935. p. 378.
230
198
Os contos desse livro, publicado por Lobato em 1923, foram depois incorporados s novas edies de
Cidades mortas.
199
MONTELLO, Josu. O conto brasileiro de Machado de Assis a Monteiro Lobato. In: ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS. Curso de conto: Conferncias realizadas na Academia Brasileira de Letras.
Rio de Janeiro, 1958. p. 164. Esse texto foi republicado, em verso muito menor, em 1981, num volume
coletivo de homenagem ao centenrio de Lobato, com o ttulo de O polemista do conto. Cincia &
Trpico, Recife, v. 9 (2), p. 259-264, 1981.
200
MONTELLO, Josu. O conto brasileiro de Machado de Assis a Monteiro Lobato. In: ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS. Curso de conto. Op. cit., p. 165.
231
201
Idem.
Idem, p. 166.
203
BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. 47. ed. So Paulo: Cultrix, 2010. p. 230. A
primeira edio data de 1970.
202
232
inteno cmica do contista brasileiro. Para Bosi, em Negrinha, por exemplo, reponta
com maior insistncia o documento social acompanhado do costumeiro sentimento
polmico e da vontade de doutrinar e reformar.204 Est claro que o comentrio de Bosi
versa sobre os assuntos abordados por Lobato, que no respondem pelas escolhas
formais. Mas interessante notar que mais um crtico tenha observado, por trs dos
contos do autor, sua inteno polemista. Cabe verificar se, como comentou Josu
Montello, a apropriao do mestre do conto francs tambm no est inserida nessa
inteno (no meramente imitativa), que para Bosi intrnseca a Lobato.
Massaud Moiss, um dos mais enfticos nas relaes Lobato-Maupassant,
chegou a afirmar que todo o programa esttico do conto, extrado de Maupassant, foi
seguido risca por Lobato:
Uma narrativa h, em Urups, que parece constituir o fulcro, o modelo primordial,
do autor: Meu Conto de Maupassant. O escritor francs o mestre confesso de
Lobato: as missivas dA Barca de Gleyre o dizem reiteradas vezes, notadamente a
de 27/6/1909, na qual se esboa uma teoria do conto de inequvoca origem:205
233
234
traio, entre tantos outros tipos de maldade; ambos sugerem que o fascnio do
homem pelo mal parece ser maior que sua atrao pelo bem.208
OLIVEIRA, Wanda Aparecida L. de. Maupassant e Lobato: estruturas paralelas. So Jos do Rio
Preto, 1999. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) Universidade Estadual Paulista. p. 10-1.
209
Idem, p. 41.
210
Idem, p. 105-6.
211
Idem, p. 145.
212
BED, Ana Luiza. Op. cit., p. 138.
235
213
236
[...]
No resistiu, no reagiu, no protestou. Tomou o trem no Braz e veiu de cabea
baixa, sem proferir palavra, at S. Jos; da por diante (quem o conta um soldado
da escolta) metia amiude os olhos pela janela, como preocupado em ver qualquer
coisa na paisagem, at que defrontou o saguarag. Nesse ponto armou um pincho de
gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de cranio rachado, a
escorrer a couve-flor dos miolos perto da arvore fatal.216
215
216
LOBATO, Monteiro. Meu conto de Maupassant. Urups. 4. ed. So Paulo: Brasiliense, 1950. p. 135.
Idem, p. 137-8.
237
As suposies levam ao filho adotivo da velha Mlle. Source, mas tambm aqui o
leitor pode apenas supor isso, j que no h provas contra o jovem. Ao contrrio do
personagem de Lobato, este no confessa, a princpio parece sofrer muito com a morte
de Mlle. Source, mas seu comportamento se transforma: torna-se comunicativo e acaba
reconquistando a confiana de todos na cidade, at que vira prefeito da comuna.
Lorphelin, alm de envolver os temas de amor e morte, com personagens do campo,
uma stira sagacidade dos investigadores e ingenuidade da populao local, que
acaba seduzida pelo discurso do rfo, numa reverso dos valores. Um tabelio chega a
afirmar: Un homme qui parle avec tant de facilit et qui est toujours de bonne humeur
217
218
238
219
239
como o descaso a que esto sujeitas, pela psicologia do espao social que ocupam. A
frase sa difformit lavait dcide ne se point marier, car elle ne voulait pas tre
pouse pour son argent, sobre Mlle. Source, ou esta outra, sobre Mme. Bontemps, do
conto Le diable, Elle sarrterait tout lheure, et il y aurait sur la terre une femme
de moins, que personne ne regretterait222 resumem o trgico cotidiano dessas mulheres
comuns, a quem o amor filial faltou.
Cremos que essas profundezas abissais envolvem, no conto de Lobato, todas
as personagens. Quando o segundo narrador d por encerrado o seu conto de
Maupassant, com o suicdio do italiano (fim da anedota policial), instiga o amigo a
imaginar e errar por interpretaes falsas: O remorso!. O prprio ex-delegado insiste
na impresso que teve na poca, quando o soldado da escolta lhe contou a histria: No
progresso ingenuo da narrativa li toda a tragedia ntima daquele cerebro, senti todo um
drama psicologico que nunca ser escrito....223 Mas o conto de Lobato continua: aps
uma tragada no cigarro, esse segundo narrador conclui, em meio a um sorriso, dizendo
que o filho era o assassino; diante de mais uma surpresa do ouvinte, cita Oscar Wilde,
em O retrato de Dorian Gray: a vida sabe melhor imitar a arte do que a arte sabe
imitar a vida.224
O espanto do interlocutor do ex-delegado (sempre indicado pelo ponto de
interrogao) retrata o do prprio leitor, que enganado pela lbia do narrador
lobatiano, assim como aquele amigo e companheiro de viagem foi pelo ex-delegado. A
postura deste , por si s, a do contador, que se diverte em criar o suspense e iludir o
colega, espcie de revanchismo anedtico, j que ele mesmo foi enganado, no passado,
por seus pressentimentos, ao avaliar o caso. Alm desse dilema interno trama, o Meu
conto de Maupassant impe-nos outro, ao colocar-se sob a gide do escritor francs.
Conto-estopim, como queria Lobato, ele gera impasses interpretativos que, como faz a
boa literatura, apenas nos instiga a sondar hipteses sobre sua composio, sem que
nunca saibamos a verdade, pois, na fico, ela relativa.
J dissemos, em outro trabalho, que h a um jogo de enganao, subjacente ao
clebre gnero dos faits divers, em que tanto Maupassant quanto Lobato se inspiraram
para escrever diversos de seus textos. Esse gnero jornalstico de dar notcias leva o
leitor comum a suspeitar, segundo sua experincia, de uma concluso lgica e
222
MAUPASSANT, Guy de. Le diable. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 774.
LOBATO, Monteiro. Meu conto de Maupassant. Urups. Op. cit., p. 138.
224
Idem, p. 139.
223
240
elaborada, mas surpreendido pela verdade banal e, algumas vezes, cmica. Segundo
Edgard Cavalheiro, o assunto de Meu conto de Maupassant tambm foi tirado de um
fato conhecido por Lobato, na poca em que era promotor;225 ou seja, sua fico provm
de fatos da vida. Mas as transies e apresentao dos elementos descritivos, que
enriquecem a trama, foram aprendidos com suas leituras de Maupassant.
Mais uma vez, o jogo do narrador, do contador de histrias est em ao, para
pegar um ingnuo. Pontes prepara a piada fatal a grande custo e a arma no momento
ideal: A anedota correu capciosa pelos fios naturais at s proximidades do desfecho,
225
CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. 2. ed. So Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1956. t. I. p. 207.
226
LOBATO, Monteiro. O engraado arrependido. Urups. Op. cit., p. 81-2.
241
narrada com arte de mestre, segura e firme, num andamento estrategico em que havia
genio.227 Logo em seguida, o major Bentes sofre de um aneurisma cardaco e Pontes
foge, temendo a polcia. Fica por tanto tempo recluso, remoendo seu crime, que perde a
chance de preencher a vaga do major na coletoria. O destino do humorista torna-se
tambm tragicmico: suicida-se, enforcado na perna de uma ceroula.
O conto Le diable tambm se passa no campo, onde uma senhora de 92 anos
vive com seu filho agricultor, Honor Bontemps. O mdico avisa que ela est nos seus
ltimos dias e precisa de algum ao seu lado, mas o filho (caracterizado por Maupassant
pela avareza normanda) prefere cuidar de seu trigal. O mdico o manda chamar a velha
Rapet, uma senhora que ganhava a vida passando roupas e fazendo velhos passarem da
vida para a morte. A descrio dada pelo narrador revela em mincias os maus
sentimentos dessa mulher, que tem amor pela morte e pelo sofrimento alheios:
La Rapet, une vieille repasseuse, gardait les morts et les mourants de la commune et
des environs. Puis, ds quelle avait cousu ses clients dans le drap dont ils ne
devaient plus sortir, elle revenait prendre son fer dont elle frottait le linge des
vivants. Ride comme une pomme de lautre anne, mchante, jalouse, avare dune
avarice tenant du phnomne, courbe en deux comme si elle et t casse aux
reins par lternel mouvement du fer promen sur les toiles, on et dit quelle avait
pour lagonie une sorte damour monstrueux et cynique. Elle ne parlait jamais que
des gens quelle avait vus mourir, de toutes les varits de trpas auxquelles elle
avait assist; et elle les racontait avec une grande minutie de dtails toujours pareils,
comme un chasseur raconte ses coups de fusil.228
227
228
242
encore vingt sous sur lui, car elle navait pass que trois jours et une nuit, ce qui faisait
en tout cinq francs, au lieu de six quil lui devait.229
Tal frieza de raciocnio, de um filho desprovido do sentimento mais primitivo, o
amor me, e movido pelo interesse pecunirio, no caso isolado em personagens de
Maupassant, assim como no o Pontes, personagem de Lobato.
4.6 Estranhos casos de amor, morte e herana: Barba Azul, La dot e Les bijoux
Lucas continua a contar a histria num caf srdido: Caso notavel, o daquele
homem! Caso merecedor de novela ou conto, j que a justia no tem foras para metelo na cadeia.232 Esse narrador conta ento que conheceu tal homem, o doutor Pnfilo
Novaes, em Brotas, no primeiro casamento dele, quando era ento mero prtico de
farmacutico. A moa, Pequetita Mendes, filha de sitiante, no passava de um desses
229
MAUPASSANT, Guy de. Le diable. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 776.
GRIECO, Agripino. Monteiro Lobato. Gente nova do Brasil. Op. cit., p. 378.
231
LOBATO, Monteiro. Barba azul. Negrinha. So Paulo: Brasiliense, 1950. p. 109.
232
Idem, p. 110.
230
243
restolhos enfermios que aparecem ao lado das espigas viosas [...]. Como, porm, era
ele pobre e ela arranjada, explicou-se financeiramente a unio.233 Algum tempo depois,
Pequetita morreu no parto e Pnfilo recebeu um grande valor do seguro de vida da
mulher. O mesmo se sucede com suas trs esposas seguintes, o que sugere ao narrador
que ele escolhia a dedo as noivas enfermias:
O miseravel, que tinha olho medico, s se casou da por diante com mulheres de
vicio organico semelhante ao da primeira. Cuidadosamente escolhia as esposas
entre as predestinadas. E foi amontoando a sua fortuna.
Imagina tu agora a vida desse miseravel, sempre alternando a fase de tocaia da
viuvez com um ano de casamento criminoso. Escolhia a vitima, representava a
comedia do amor, sagrava a unio e... seguro de vida! Depois, imagina o sadismo
dessa alma ao ver desenvolver-se no ventre da vitima, no o filho que ela
docemente esperava, mas a bolada gorda que viria acrescentar os seus cabedais!
Afez-se a tal caada e nela aperfeioou-se de maneira a nunca errar o bote.234
233
244
Uma sequncia de maus sujeitos esto no entorno dessa moa, cujas expectativas
vo sendo rompidas linha a linha. Logo aps a chegada a Paris com Simon, no ponto
final do passeio de bonde, Jeanne pergunta ao condutor pelo marido, que deveria estar
no andar de cima. O condutor responde que ele j descera h muito tempo. A concluso
cruel do condutor a traz realidade: Allons, la ptite, assez caus, un homme de perdu,
dix de retrouvs. Dcanillez, cest fini. Vous en trouverez un autre dans la rue [...] il
vous a bien lche, ah! ah! ah!.238 Quem cuida dela, sozinha em Paris, um primo,
funcionrio do Ministrio da Marinha (como o foi Maupassant), que ela encontra na rua,
quando ia casa dele. O final do conto sugere, sem nada afirmar, que a curta filosofia
do condutor estava certa:
Puis, dfaillant dmotion, elle tomba sur le gilet de son cousin, en sanglotant.
Comme on sarrtait pour les regarder, il la poussa tout doucement, sous lentre de
sa maison, et, la soutenant par la taille, il lui fit monter son escalier, et comme sa
bonne interdite ouvrait la porte, il commanda:
Sophie, courez au restaurant chercher un djeuner pour deux personnes. Je nirai
pas au ministre aujourdhui.239
238
239
MAUPASSANT, Guy de. La dot. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 330.
Idem, p. 332.
245
sembla que la terre remuait; quun arbre, devant lui, sabattait; il tendit les bras et
scroula, priv de sentiment.240
240
MAUPASSANT, Guy de. Les bijoux. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 768.
Idem, p. 769.
242
Idem, p. 770.
243
Idem, p. 771.
241
246
ingenuidade por todos os lados.244 No podemos concordar que contos como O Resto
de Ona, A Cruz de Ouro ou Um homem honesto (os trs de Cidades mortas),
ou ainda Negrinha, Bugio moqueado e Barba Azul (os trs de Negrinha) sejam
ingnuos. Alis, cremos que mesmo na ilha de tragdia que Urups, h o jogo
constante entre o engenho e a ingenuidade, tpico da narrativa irnica, cuja sntese
pudemos ver na composio de Meu conto de Maupassant. Ao explicar essa marca de
Monteiro Lobato, crticos brasileiros usaram diversas expresses para defini-la: Josu
Montello disse que ele era um polemista do conto; de modo semelhante, Bosi fala do
costumeiro sentimento polmico e da vontade de doutrinar e reformar (talvez como os
velhos retricos); Herman Lima fala na arte inslita de narrador de Monteiro
Lobato.245 E, dessa forma, quando Lobato elege um modelo, no deixa de question-lo
quando preciso.
O elemento inverossmil, de que Lobato j tinha se utilizado em O comprador
de fazendas, segundo constatou Josu Montello, vem revelar que, ao contrrio da
fico em que as transies so bem calculadas , a vida repleta de
inverossimilhanas, como a do desfecho de Meu conto de Maupassant. Dessa
maneira, o realismo de Lobato quer ser mais real que o de Maupassant. Podemos
concluir que o legado maupassantiano subvertido por Lobato. E que, mais uma vez, o
autor de Meu conto de Maupassant pregou uma pea nos leitores ingnuos,
concebendo um conto de Maupassant anti-maupassantiano.
Em termos ps-romnticos, em que a originalidade literria est em jogo, a
maneira como Lobato rediscute a formalizao do conto maupassantiano (de que o
prprio autor francs se negava a extrair uma teoria) e a invalida num novo texto
complexo, procedimento autoirnico (j que antes o elegera por modelo), revela uma
inverso das posies entre escritor-receptor, fazendo-nos reavaliar e questionar a teoria
que a precedeu sob um novo olhar.
Como a cozinheira Josefa, de O Resto de Ona, este Maupassant caboclo
tem um maravilhoso paladar quituteiro para a literatura. Diversas personagens suas,
de extrato mais simples, so contadoras de histrias, sendo possvel arrancar um conto
ao primeiro conhecido que entrar... no conto.246
244
247
Desse modo, Lobato coloca o conto como uma forma ficcional mais complexa
que o romance, e Maupassant, numa posio bastante elevada em relao a grandes
romancistas do sculo XIX. Por essa razo, o escritor brasileiro o valorizava tanto.
O recorte que fizemos para este estudo comparativo segue principalmente as
indicaes dos comentrios crticos de Josu Montello e de Agripino Grieco. Meu
conto de Maupassant lida em termos da forma do conto, assim como O comprador de
fazendas, com uma reviso da teoria da observao de Maupassant; tematicamente,
247
GRIECO, Agripino. Monteiro Lobato. Gente nova do Brasil. Op. cit., p. 366.
Idem, p. 372.
249
Carta de 23/10/1909. LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre. Op. cit., t. I, p. 281.
248
248
249
252
250
CAPTULO 5
Ricos e pobres de Paris e do Rio:
o conto urbano de Lima Barreto e de Guy de Maupassant
[...] o fenmeno artstico um fenmeno social e
o da Arte social para no dizer sociolgico.253
BARRETO, Lima. O destino da literatura. Impresses de leitura. So Paulo: Brasiliense, 1956. p. 56.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espao romanesco. So Paulo: tica, 1976. p. 20-1.
255
BARRETO, Lima. Amplius. Histrias e sonhos. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1990. p. 11.
256
Ver SEVCEVKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira
Repblica. So Paulo: Brasiliense, 1983.
257
MAUPASSANT. Lhomme de lettres. Chroniques: anthologie. Paris: Librairie Gnrale Franaise,
2008. p. 1479-82. Essa crnica foi traduzida e publicada no Correio Paulistano, de 19 e 20 de fevereiro
de 1892.
254
251
258
Cf. BURY, Marianne. Maupassant chroniquer ou lart de la polmique. In: FORESTIER, Louis (Dir.)
Maupassant et lcriture. Actes du colloque de Fcamp. ditions Nathan, 1993.
259
Estamos de acordo com Lilia Moritz Schwarcz quanto necessidade de conhecimento da biografia
deste autor para a melhor compreenso de sua obra: A biografia no serve para explicar de modo
mecnico a literatura, mas desconsider-la muitas vezes leva fetichizao do texto, ou construo da
figura de gnio romntico, deslocado de seu contexto. No caso de Lima Barreto, a atitude de separao de
sua histria quase um equvoco, pois significa abrir mo do prprio fundamento dessa literatura.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Introduo Lima Barreto: termmetro nervoso de uma frgil Repblica. In:
BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. So Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 22.
260
BARRETO, Lima. Correspondncia. So Paulo: Brasiliense, 1956, t. II. p. 256-7.
252
Cf. LINS, Osman. Op. cit. e MIGUEL-PEREIRA, Lcia. Prefcio. In: BARRETO, Lima. Histrias e
sonhos. So Paulo: Brasiliense, 1956. p. 9-16.
262
Osman Lins observa o insulamento das personagens romanescas limianas, que as impede de agir e
mesmo comunicar suas fraquezas a interlocutores internos obra. Cf. o captulo 2 Lima Barreto: o
romancista, em Lima Barreto e o espao romanesco. Op. cit., p. 31-48. Discutiremos essa interpretao
logo adiante, quando tratarmos dos contos do autor.
263
BARRETO, Lima. Correspondncia. So Paulo: Brasiliense, 1956. t. I. p. 93.
264
Agradecemos ao funcionrio Tarso Tavares pelas informaes fornecidas sobre o acervo da Limana na
Biblioteca Nacional. A ordem com que reproduzimos os ttulos de Maupassant foi dada na numerao de
Lima Barreto, o que pode sugerir uma possvel sequncia de leitura e quais seriam os cinco livros, que em
1911, ele teria lido.
265
BARRETO, Lima. O ideal do Bel-Ami. Feiras e mafus: artigos e crnicas. Pref. Jackson de
Fiqueiredo. So Paulo: Brasiliense, 1956. A crnica de novembro de 1916.
253
O termo foi aplicado e o assunto estudado na obra de Maupassant por Brigitte Hervot. HERVOT,
Brigitte. Vencer ou vencer: a tica do arrivista. Assis, 1993. Dissertao de mestrado. Unesp, 1993.
254
sempre evitado pelo narrador maupassantiano. Ele valoriza a histria que ser contada
pela sua veracidade e pelo drama que contm:
Oui, le souvenir de ce soir-l ne seffacera jamais. Jai eu, pendant une demi-heure,
la sinistre sensation de la fatalit invincible; jai prouv ce frisson quon a en
descendant aux puits des mines. Jai touch ce fond noir de la misre humaine; jai
compris limpossibilit de la vie honnte pour quelques-uns.267
O relato dela, dado em primeira pessoa, expe os sofrimentos por que passou
desde a orfandade, o relacionamento com um vizinho por quem se apaixonou, a sada de
Yvetot para fugir ao tutor e patro que queria for-la a ter relaes com ele, o abuso
sofrido por ela quando estava a caminho de Rouen, a priso, at a chegada Paris e a
necessidade de servido sexual para sobreviver. Seu sofrimento lutuoso: Javais trop
de deuil au cur, e sua percepo das desigualdades se realiza por meio da
necessidade: Je regardais toutes ces maisons en me disant: Y a tant de lits et tant de
pain dans tout a, et je ne pourrai point seulement trouver une crote et une
paillasse.269 Ela conclui sua histria com o autoconsolo de que a chacun sa peine,
267
MAUPASSANT, Guy de. Lodysse dune fille. Contes et nouvelles. Paris: Gallimard. t. I, p. 997.
Idem, p. 998.
269
Idem, p. 1000-1.
268
255
Esse conto exemplar bem poderia ser o conto limiano de Maupassant, como
Lobato fez o seu. Uma discusso literria entremeia o causo; o ouvinte pede-o e dialoga
durante o relato, prendendo sua ateno histria. O narrador extradiegtico intervm
logo aps esse dilogo, para fazer-se presente e delimitar a paisagem em que se inserem
os dois amigos depois dessa intromisso, s haver uma outra, para fechar o conto.
270
MAUPASSANT, Guy de. Lodysse dune fille. Op. cit., respectivamente, p. 1003.
BARRETO, Lima. Uma vagabunda. Histrias e sonhos. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier,
1990. p. 159.
271
256
257
algum tempo, estando ele em necessidades, sem mesmo lhe pedir, ela quis ajud-lo
financeiramente e ele aceitou. O narrador barretiano retoma a narrao ao fim, para
garantir a passagem do tempo e a mudana do cenrio:
Levantaram-se, saram do jardim e o advento da noite misteriosa e profunda, era
anunciado pelo acender dos lampies de gs e o piscar dos globos de luz eltrica,
naquele magnfico fim de crepsculo.276
258
259
281
VASCONCELLOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto. Rio de
Janeiro, Lacerda, 1999. p. 339.
282
BESNARD-COURSODON, Micheline. tude thmatique et structurale de luvre de Maupassant: le
pige. Paris: ditions A.-G. Nizet, 1973.
283
DONALDSON-EVANS, Mary. La femme (r)enferme chez Maupassant. In: FORESTIER, Louis
(Dir.) Maupassant et lcriture. Actes du colloque de Fcamp. ditions Nathan, 1993.
260
certo ponto, discutida e no aceita. A autora alerta-nos para a confuso frequente que se
faz entre a opinio do autor e a de uma instncia fictcia, a do narrador.
Lima Barreto, no conto Um especialista, trata do tema de maneira dramtica,
vinculando a prostituio ao incesto, mas no sem sarcasmo. Desde o ttulo, ironiza a
especialidade do comendador portugus, que o levar ao seu drama familiar: a predileo
pelas mulatas. Casado e radicado h vinte e quatro anos no Rio de Janeiro, antes morara
no Recife, onde se relacionou com outras mulatas. Sua especialidade definida nas
primeiras pginas do conto:
Gostava das mulheres de cor e as procurava com o afinco e ardor de um amador de
raridades.
noite, pelas praas mal iluminadas, andava catando-as, joeirando-as com olhos
chispantes de lubricidade e, por vezes mesmo, se atrevia a seguir qualquer mais
airosa pelas ruas de baixa prostituio.
A mulata, dizia ele, a canela, o cravo, a pimenta; , enfim, a especiaria de
requeime acre e capitoso que ns, os portugueses, desde Vasco da Gama, andamos
a buscar, a procurar.284
Esse retrato pode ser comparado ao que o comendador faz da mulata para o
amigo e o que o narrador dar mais adiante.
uma cousa extraordinria! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como esta,
filho, nem a que conheci em Pernambuco h uns vinte e sete anos! Qual! Nem de
longe! Calcula que ela alta, esguia, de bom corpo; cabelos negros corridos, bem
corridos: olhos pardos. bem fornida de carnes, rolia; nariz no muito afilado,
284
BARRETO, Lima. Um especialista. Contos reunidos. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Garnier, 1990.
p. 116-7.
285
Idem, p. 119.
261
mas bom! E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lbios roxos, bem
quentes... S vendo, mesmo! S! No se descreve.286
Era bonita de fato e elegante tambm. Viera com um vestido creme de pintas pretas,
que lhe assentava magnificamente.
O seu rosto harmonioso, enquadrado num magnfico chapu de palha preta, saa
firme do pescoo rolio que a blusa decotada deixava ver. Seus olhos curiosos,
inquietos, voavam de um lado a outro e a tez de bronze novo cintilava luz dos
focos. Atravs do vestido se lhe adivinhavam as formas; e, por vezes, ao arfar, toda
ela trepidava de volpia...287
286
BARRETO, Lima. Um especialista. Contos reunidos. Op. cit., p. 118-9. Grifos nossos.
Idem, p. 121.
288
Idem.
289
Idem, p. 124.
287
262
263
sofrida por Pierre Martel ao defrontar-se com a jovem pela primeira vez, rf do pai de
criao, transtorna-o, reabrindo a chaga da paixo antiga. Movido pelo sentimento, ele
apaga da memria, segundo o narrador, o fato conhecido, uma vez que ainda lhe pairava
certa dvida sobre a sua paternidade; e seu subconsciente lana-lhe o aval para manter a
relao. O amor correspondido leva-os ao ato final.
Un soir, ils se trouvrent seuls. Ils causaient doucement, cte cte, sur le canap
du petit salon. Tout coup, il lui prit la main dans un mouvement paternel. Et il la
garda, troubl du cur et des sens malgr sa volont, nosant plus repousser cette
main quelle lui abandonnait, et se sentant dfaillir sil la gardait. Et, brusquement,
elle se laissa tomber dans ses bras. Car elle laimait ardemment, comme sa mre
lavait aim, comme si elle et hrit de cette passion fatale.294
MAUPASSANT, Guy de. M. Jocaste. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 720. Grifo nosso.
Idem, p. 721.
264
265
interpretao que no dada pelo autor de forma direta. Essa teoria est expressa no
prefcio de Maupassant a Pierre et Jean, intitulado Le roman, do qual algumas
passagens vm citadas no seguinte trecho do artigo de Lintvelt:
Limage de femme, fournie par la narration fminine ne diffre donc pas
essentiellement de celle donne par lhomme, et la rception fminine ne rend pas
forcment toute la complexit dun rcit fminin. Cest toujours au lecteur de jouer
un rle actif dans linterprtation idologique.
Cest l justement lobjectif esthtique de Maupassant, qui estime que le romancier
devra composer son uvre dune manire si adroite, si dissimule, quil soit
impossible de dcouvrir ses intentions, sa vision personnelle du monde. Le but
du romancier est de forcer le lecteur comprendre le sens profond et cach.299
299
LINTVELT, Jaap. La polyphonie de lencadrement dans les contes de Maupassant. In: FORESTIER,
Louis (Dir.) Op. cit., p. 180.
300
Idem, p. 185.
301
VASCONCELLOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta. Op. cit., p. 340.
266
Duplicidade interna a uma obra concebida sob uma unidade, uma vez que
reproduz, a seu modo, uma contradio de seu tempo. O autor encontrou, pois, algumas
maneiras de libertar as figuras femininas, seja pela denncia de sua situao, seja pela
presena constante de retratos que se repetem obsessivamente, seja pela valorizao de
sua histria, que reconstituda, embora geralmente dada pelo narrador masculino em
terceira pessoa.
Conforme apresentamos no incio deste estudo, os objetivos estticos diversos
dos dois autores no impediu que Lima Barreto encontrasse na obra de Maupassant uma
temtica e uma estrutura de conto com as quais dialogar, uma vez que condizem com
seus princpios de composio. O conto de proveito moral visado pela literatura
militante do escritor brasileiro e pela sugesto esttica de Maupassant, narrador
ilusionista oferece para Lima Barreto um modo de mascaramento pessoal, mas ainda
de alerta para o seu leitor, impedindo uma leitura passiva, j que o chama elaborao
formal de um julgamento. Temos, portanto, uma anlise e interpretao da forma, que
conduzem de uma maneira mais exaustiva a uma compreenso da esttica dos autores.
5.2 O arrivista
Ainda que em alguns dos textos tratados anteriormente este assunto tambm
aparea, Numa e ninfa um conto todo fundado no arrivismo. Conforme vimos, um
tema caro a Maupassant e que Lima Barreto criticou abertamente na crnica O ideal do
Bel-Ami. Em tom bastante agressivo contra duas personalidades de sua poca, dois
burocratas e jornalistas brasileiros, nomeados professores em universidades
estrangeiras, Lima Barreto reflete sobre o destino do pas, enquanto nos remete obra
do escritor francs.
vista de tais exemplos, pergunto: que ns todos devemos pensar sbre o rumo que
as coisas vo tomando no Brasil? Que devemos ensinar aos meninos? Os pais, que
devem ensinar aos filhos? As mes, que devem incutir na alma das criaturas que
elas geraram? a abnegao? a dedicao? a honra? o sacrifcio pelo ideal?
o estudo? O que ? No deve ser nada disso; nada, meu Deus! O que ns
devemos ensinar aos filhos, aos moos, aos meninos, que aprendam o Bel-Ami, de
Maupassant; que faam Pachecos, mas que tenham sempre em mira prometer
casamento filha dste, para arranjar isto, filha daquele, para arranjar aquilo, e
afinal arranjar, por intermdio do casamento, tudo.
267
302
BARRETO, Lima. O ideal do Bel-Ami. Feiras e mafus: artigos e crnicas. Op. cit., p. 181. O artigo
data de 1916.
303
VIAL, Andr. Guy de Maupassant et lart du roman. Paris: Nizet, 1954. p. 478. Grifo do autor.
268
269
Numa viu logo que o caminho mais fcil para chegar a seu fim era casar-se com a filha
do dono daquela marca longnqua do desmedido imprio do Brasil.307
Sob a forma de narrativa circular, o conto volta, enfim, ao momento inicial,
quando um primeiro discurso foi solicitado ao deputado. Desesperado, Numa solicita
auxlio da esposa. Seus brilhantes discursos pblicos, a partir da, so, aparentemente,
redigidos por Gilberta. A tcnica narrativa de Lima Barreto salta etapas para depois
retom-las, deixando entrevistas as circunstncias da redao dos textos e fazendo o
leitor reler, a cada nova informao, os dados anteriores. Somente na cena final do
conto, Numa descobre-se trado pela esposa com o primo dela e, assim, a autoria dos
textos revelada ao leitor e ao marido: era o amante dela, poeta, que a ajudava nessa
tarefa.
A porta estava fechada; ele quis bater, mas parou a meio. Vozes abafadas... Quem
seria? Talvez a Idalina, a criada... No, no era; era voz de homem. Diabo!
Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Quem era? Aquele tipo... Ah! Era o
tal primo... Ento, era ele, era aquele valdevinhos [sic], vagabundo, sem eira nem
beira, poeta sem poesias, frequentador de chopes; ento, era ele quem lhe fazia os
discursos? Por que preo?
Olhou ainda mais um instante e viu que os dois acabavam de beijar-se. A vista se
lhe turvou; quis arrombar a porta; mas logo lhe veio a ideia do escndalo e refletiu.
Se o fizesse vinha a coisa a pblico; todos saberiam do segredo da sua
inteligncia e adeus cmara, ministrio e quem sabe? a presidncia da
Repblica. Que que se jogava ali? A sua honra? Era pouco. Que se jogava ali
eram a sua inteligncia, a sua carreira; era tudo! No, pensou ele de si para si, vou
deitar-me.
No dia seguinte, teve mais um triunfo.308
BARRETO, Lima. Numa e ninfa. Contos completos de Lima Barreto. Op. cit., p. 296.
Idem, p. 299.
309
MAUPASSANT. Lhomme-fille. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 757.
308
270
Il sarrta devant sa femme: Et bien, si tu veux, Bichette, je vais retourner tout seul
chez Me Lamaneur pour le consulter et lui expliquer la chose. Je lui dirai que tu as
prfr a, par convenance, pour quon ne puisse pas jaboter. Du moment que
jaccepte la moiti de cet hritage, il est bien vident que je suis sr de mon fait, que
je suis au courant de la situation, que je la sais bien nette, bien honnte. Cest
comme si je te disais: Accepte aussi, ma chre, puisque jaccepte, moi, ton mari.
Autrement, vrai, a ntait pas digne.
Mme Serbois pronona simplement: Comme tu voudras.310
271
311
272
CAPTULO 6
Viriato Correia e o conto dramtico Maupassant
273
316
No pudemos ter acesso direto nem crtica nem obra, publicada no Maranho e sem exemplares
localizados em So Paulo ou na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Os demais volumes, em suas
primeiras edies, esto disponveis na seo de obras raras da Biblioteca Mrio de Andrade. Deve-se
estar sempre atento tambm busca pelo primeiro nome e pelo sobrenome desconhecidos do autor, que,
conforme indicamos acima, Manuel (Viriato Correia) Baima do Lago Filho.
317
PINTO, Genulfo Hrcules. Viriato Corra: a modo de biografia. Op. cit., p. 52.
318
CORREIA, Viriato. Medeiros e Albuquerque. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de
Janeiro, ano 26, v. 46, n. 153, set. 1934. p. 74.
319
O mesmo diz Nelly Novaes Coelho, em seu Dicionrio da literatura infantil-juvenil brasileira. So
Paulo: Quron, 1983. p. 900.
274
Ou seja, para Josu Montello, toda a obra de Viriato Correia guiada pelo senso
dramtico. Mais adiante, volta a essa ideia, relacionando-o tradio de Maupassant:
Viriato Correia procurou fazer-se mais simples na sua maneira de contar. E foi com
esta simplicidade intencional, que um recurso e no indcio de penria, que
escreveu os grandes contos de corte teatral das Novelas Dodas [sic] e das Histrias
speras e que se intitulam O Drama de Dona Alice, Os Trs Relgios, Circo de
Cavalinhos e Sinhazinha Lel [sic].
Mas sse narrador, que sabe estruturar o conto Maupassant em forma exemplar,
no se contentou com os recursos opulentos da prpria inspirao. E mergulhou nos
alfarrbios dos velhos tempos, transformando em contos geis boa cpia de lances
pitorescos e dramticos de nosso passado, nas Histrias de nossa Histria, na Terra
de Santa Cruz e nos Contos da Histria do Brasil.321
MONTELLO, Josu. O conto brasileiro de Machado de Assis a Monteiro Lobato. In: ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS. Curso de conto: Conferncias realizadas na Academia Brasileira de Letras.
Rio de Janeiro, 1958. p. 154-5.
321
Idem, p. 156.
275
LIMA, Herman. Variaes sobre o conto. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967. p. 97.
Idem. O conto, do Realismo aos nossos dias. In: COUTINHO, Afrnio. A literatura no Brasil. Rio de
Janeiro: Editorial Sul Americana S.A./Livraria So Jos, [s.d.], v. II. p. 234.
324
COUTO, Ribeiro. Um novellista brasileiro. Correio Paulistano, So Paulo, 24 nov. 1921. p. 3. Todas
as prximas citaes deste artigo referem-se a esta fonte e os grifos so nossos.
325
Est claro que Ribeiro Couto quer elevar o autor brasileiro ao interesse do pblico, por meio da
comparao com autores consagrados da literatura universal, efeito esperado desde o ttulo do artigo. A
aproximao com o americano Edgar Allan Poe (1809-1849), o alemo Hoffmann (1776-1822), com o
dramaturgo francs Andr de Lorde (1871-1942) e o autor dos Contes cruels (1883), Villiers de LIsleAdam (1838-1889), vai ao encontro de uma linhagem de autores ligados ao horror, que desenvolvem em
seus textos assuntos mrbidos como o infanticdio, o sofrimento dos inocentes, a loucura, o fantstico e a
323
276
277
observaes, ainda que de praxe, contstica do autor maranhense. Mcio Leo faz uma
ressalva, ao perceber principalmente os temas, as paisagens e as personagens sertanejas:
Eu limitaria muito o vosso ambiente, se deixasse a vossa obra de contista irmo de
Maupassant adstrita apenas ao serto.327 Apesar disso, retoma a seguir o estudo dos
contos em que existem elementos sertanejos, como a figura do cantador popular. Em
certo momento, Mcio Leo afirma que h uma religiosidade dramtica, e
singularmente supersticiosa328 em Viriato Correia, o que se pode entender, mais
simplesmente, como o determinismo tpico naturalista, presente sobretudo nas
narrativas dos primeiros livros. Como o acadmico j tinha expressado em passagem
anterior, para ele, Viriato foi contagiado pelo naturalismo de Zola (Nan), Alusio
Azevedo (Mulato) e Ingls de Sousa (O Missionrio).329 Vejamos as palavras de Mcio
Leo, ao definir essa superstio tpica no Viriato contista:
Eis a como estamos face a face com o Destino. Mas com o Destino em toda a
intensidade da concepo esquiliana Fra sagrada, que move as almas, os seres e
os universos, e diante da qual no ha reflexo, prudncia ou propsito humano que
prevalea.
A idia, talvez inconciente [sic], dsse Poder est em todos os vossos contos. le
que, soberano, desdenhoso e inevitvel, preside a todas as aes da vida e dos
romances.
[...]
Males sbre males, sofrimentos sbre sofrimentos, enfermidades sbre
enfermidades, eis, sr. Viriato Correia, em vossa concepo, que talvez no seja
erronea, o que o serto do Brasil, o que , ali, a misrrima vida dos homens.
Mas sse mundo, cheio de dr e desengano, , por outro lado, um mundo cheio de
poesia.330
327
Idem, p. 153.
Idem, p. 154.
329
Idem, p. 145. O bigrafo Genulfo Hrcules Pinto menciona as leituras literrias de Viriato Correia:
Balzac inteiro, Coelho Neto, Alexandre Dumas, Daudet, Ea de Queirs, Raul Pompeia, Dostoievski,
entre outros, mas Maupassant no citado. Genulfo Pinto afirma que seus contos se situavam
rigorosamente dentro da escola realista e eram profundamente humanos. PINTO, Genulfo Hrcules. Op.
cit., p. 35-7.
330
LEO, Mcio. Recepo do Sr. Viriato Correia. Op. cit., p. 154 e 156.
328
278
A escolha dos ttulos de seus trs ltimos livros de contos enfatiza o desejo do
autor em reunir textos curtos (contos, novelas e histrias), sob um ponto de vista
particular: o do regionalismo (Contos do serto), do inverossmil (Novelas doidas) e do
tom cruel (Histrias speras). Em Contos do serto, predominam as narrativas lineares,
em terceira pessoa, o que se justifica pelo tom lendrio e histrico que o autor quis lhes
dar. No ltimo livro de contos, Histrias speras, est bem equilibrado o nmero de
contos em primeira e em terceira pessoa, considerando que se privilegia a tambm o
narrador-contador de histrias.
Tendo tambm vivido entre contadores populares, assim como Monteiro Lobato
e Maupassant, Viriato Correia retoma a narrativa enquadrada como modelo formal para
muitos de seus textos. Dos dezenove contos de Novelas doidas, nove retomam essa
estrutura: O drama de D. Alice, O outro, A noiva, O dever de matar, A
desfeita, O homem que tocava clarineta, A mulher que envelheceu, Madrugada
negra, O matador de crianas. Em geral, os outros dez contos de Novelas doidas
trazem uma anedota narrada, seja em primeira, seja em terceira pessoa, que prioriza o
relato dialogado, ao que, parece-nos, o autor cada vez mais foi aderindo ao longo de
suas obras. H temas variados, predominando aqueles em que h morte ou ameaa de
morte e traio. Mais uma vez, pediremos o auxlio de Ribeiro Couto nessa constatao:
Ha neste volume quasi todas as modalidades do conto. Desde o regional puramente
lyrico, como A Morena que deixou de gostar de um boiadeiro porque elle deixou
o verso cahir no cho num desafio viola, at ao trgico, como o do rapaz que,
noite matou a me na rde por engano, pensando, no escuro ser a hospede ricaa
que ia roubar...
279
Esse sujeito, interpretando a arte idealizada pelo autor, apresenta no conto que
abre o livro a teoria que o encerra. Alves Moreira coloca-se contra o lugar-comum na
arte e afirma que, se a morte por crime recorrente na vida, no deveria ocupar o
drama, onde o inesperado deveria interceder, para interesse do pblico. O
desembargador simboliza, portanto, o contista refletindo sobre a sua obra e o tom
didtico e metalingustico mostra os procedimentos de criao do prprio Viriato. Essa
mesma reflexo retornar em Histrias speras, no conto O crime de Pedro, que nos
servir no fechamento deste captulo.
No estudo sobre Monteiro Lobato, comparamos a arte do autor de Urups de
Maupassant, por meio da teoria de verossimilhana apresentada no prefcio a Pierre et
331
CORREIA, Viriato. Novellas doidas. Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1921. p. 13-4.
280
Jean. Nesse momento, lembramos que, tratando do romance, para dar a impresso de
realidade, essa teoria exige que seu autor conte a histria da alma, do corao e da
inteligncia no seu estado normal, apresentando fatos de uma verdade irrecusvel e
constante.332 Viriato Correia estaria, ento, indo contra a teoria maupassantiana?
Aparentemente sim, de modo a aproximar-se do naturalismo; porm, a anlise do drama
forjado pelo desembargador de Viriato Correia nos mostrar que, se a personagem
prope um tipo de teatro que valoriza o trao de novidade chocante e principalmente
imprevista, o autor oferece ainda um conto vinculado tradio e que est centrado na
verossimilhana do relato. Ao criar uma intriga sob a forte contextura de fabulao e
uma poderosa textura dramtica como definiu Herman Lima , Viriato no deixa de
enunci-la por meio de minuciosos detalhes apresentados pelo narrador, distinguindo o
que o seu conto e o que seria o drama de sua personagem. Vejamos a continuao do
trecho citado.
[...] o caso de dona Alice me commoveu. Posso mesmo dizer que at hoje no
houve facto nenhum que mais me impressionasse, deixando-me um interesse to
violento. E quanto mais o desvendo mais me conveno que o palco da vida muito
mais vibrante que o palco dos theatros. Quanto mais o conheo mais me conveno
que no ha imaginao humana, por mais rica e mais extranha, capaz de ultrapassar
a realidade dos factos. Pensem na coisa mais exotica do mundo, imaginem o caso
mais exquisito [sic] que, amanh, vero desenrolar-se na vida outro facto ainda
mais exquisito e mais exotico. A imaginao da natureza mais culminante que a
nossa. mais surpreendente das fantasias humanas no supera certas fantasias da
realidade. Eu, si tivesse jeito para a literatura theatral, construia um drama
impressionante com o episodio de dona Alice.333
281
334
282
283
que a esposa deixou de se interessar pelo marido; por que, talvez, o marido nada
percebera do relacionamento da esposa; por que o amante, Silva Gentil, era predisposto
morte em um cubculo fechado; por que outra festa foi dada a D. Alice, impedindo a
remoo do cadver logo depois que ela se deparou com ele. Ao descrever a cena
central e grand-guignol, em que o marido inesperadamente chega a sua casa quando
a esposa recebia o amante no quarto , o desembargador hesita entre o tempo narrativo
passado e o presente,339 a fim de aumentar a intensidade do relato. Brinca tambm com
a convergncia de todas as circunstncias para a morte de Silva Gentil e, como o autor
de teatro colocaria as didasclias, ele vai explicando ao pblico de aprendizes da arte
que ele desvenda: necessrio que os senhores notem que no havia nisso nada de
anormal [...]; E, por uma coincidencia que eu no pude at hoje desvendar com
preciso [...]; Tudo isso feito com a maior naturalidade. No era a primeira vez que
uma scena egualzinha quella, se havia dado entre os dois [...]; Se ella dormiu ou no,
no sei. Creio que no. Isso porm no interessa aco do drama; Uma festa
arranjada assim de improviso devia resentir-se [sic] da pressa, no verdade? Mas isso
no se verificou.340 Criador e autocrtico, o desembargador no deixa espao para os
interlocutores se pronunciarem; sua arte no sugere nem dialoga, mas conclui por si
mesma. Como uma obra fechada interpretao do leitor.
O narrador chega a brincar com a prpria impresso e o pressentimento que teve
do crime: sentia o ar pesado da festa, apesar da alegria que ali deveria haver; explica
esse sentimento pelo fato de, nesse dia, ter recebido notcia do falecimento de um
amigo. A necessidade de explicar tanta que o escrupuloso narrador faz de seu relato
algo inverossmil. Ele v a narrativa de dentro, com lente de aumento, como o autor no
ato da criao; os circunstantes nada obtemperam. Esta narrao , afinal, releitura do
acontecimento e o nvel de questionamento se faz outro, sobre a reconstruo do
ocorrido, quase como no inqurito policial.
Como se pode notar, ao se aproximar do fait divers ou do conto policial, o
desembargador vai cada vez mais constatando a sua impotncia em fazer do relato uma
pea teatral: Tivesse eu qualidades de teatrlogo, aqui terminava o primeiro acto da
tragedia ou drama, como queiram chamar; Tivesse eu virtudes de comediografo, disse
o velho desembargador depois de uma pausa, aqui faria cair o panno do segundo acto;
(aqui devemos levantar o panno do terceiro acto); Ahi tem os senhores o final do
339
340
CORREIA, Viriato. O drama de D. Alice. Novellas doidas. Op. cit., p. 21, 23 e 25.
Idem, respectivamente, p. 22, 22, 23, 24 e 29.
284
O que ficaria como papel sugestivo da arte realista Maupassant, para esse
narrador de Viriato Correia, um impasse insupervel, que impede a realizao da obra
de arte tal como concebe. A intensidade do drama estaria toda na dvida, mas o
desembargador s a percebe na soluo, que deveria ser dada pelo artista.
O impasse apresentado no conto de Viriato Correia dialetiza a sua obra. Seu
protagonista quer ensinar forosamente uma leitura a mais bizarra, a mais cruel, a fim
de superar a natureza na sua fantasia mais aguda, que a arte no pode transcender. Esse
fracasso, que Viriato parece assumir na voz do narrador do conto inicial do volume, ser
o embate que dominar em todos os outros textos. Ser a tentativa de superar, pela
originalidade da trama, a imaginao da natureza, as fantasias da realidade,343
buscando aproximar-se, por caminho contrrio ao de Maupassant, tambm do que
considera o mximo da verdade esttica.
341
CORREIA, Viriato. O drama de D. Alice. Novellas doidas. Op. cit., respectivamente p. 20, 24, 24, 28
e 28.
342
Idem, p. 34.
343
Idem, p. 14.
285
CORREIA, Viriato. O homem que tocava clarineta. Novellas doidas. Op. cit., p. 199-200.
286
carta, bate-lhe porta para lhe informar da verdade, de que ele o amante e no o
marido.
Trabalhando com a iluso semelhante dos faits divers, Viriato Correia por
meio do narrador autodiegtico, igualmente trado em suas convices atribui a uma
possibilidade inimaginada o desfecho da histria. O desvio operado pela oposio entre
a interpretao do narrador e o desfecho vem comprovar dialeticamente, por meio da
obra de arte de Viriato Correia, que as circunstncias da vida so mais surpreendentes
que as da arte; porm, no se tratando aqui de notcia de jornal, mas sim de um texto
expressivo, literrio, o autor pretende assim venc-la. O narrador Baptista, tendo
fracassado como sedutor da herona e como intrprete de um drama vital, quer libertarse, fazendo do amigo uma vtima como ele. Fora do palco, expectador da sua histria,
cuja autora seria a natureza invencvel, pretende com a repetio dramtica super-la.
Porm, v-se que ainda se faz intrprete incansvel e ingnuo. Sua afirmao final,
buscando interpretar o som da clarineta, deixa ver que a sua impotncia compreensiva
permanente como a de todo sujeito que se pe a explicar as circunstncias da vida,
parece querer evidenciar Viriato Correia.
Do incio do relato at seu final que permite ver o percurso de Baptista
procura da chave interpretativa daquele drama familiar , o protagonista teceu trs
opinies diferentes para o mesmo som da clarineta, captado todas as noites: primeiro,
achava-os impertinentes, atribuindo-os maravilhosa mulher, a tocadora da
clarineta; depois, quando descobriu que no era ela a clarinetista, mas o horrvel
homem, sua averso ao instrumento aumentou: a clarineta insuportvel que se ouvia,
s dez horas da noite, era tocada por elle a ponto de ter vontade de ir quebrar o
instrumento;345 por fim, ironicamente, chega fruio final da msica, no ltimo
pargrafo do conto:
S me movi ao ouvir, defronte, um som de clarineta. No eram os sons
impertinentes e enfadonhos dos outros dias, eram uns sons alegres, limpidos, felizes
de quem consegue reflectir na musica a doura de uma consciencia tranquilla...346
CORREIA, Viriato. O homem que tocava clarineta. Novellas doidas. Op. cit., p. 202 e 207.
Idem, p. 209.
288
estava ali dentro. Quem tem a conscincia tranquila o prprio Baptista, espectador
desse espetculo da decepo347 que s a vida proporciona. Para revelar o verdadeiro
mistrio orquestrado por ele mesmo, foi preciso que um ser externo (o clarinetista) lhe
viesse bater porta; foi necessrio, depois, que o som da clarineta (a msica)
reorganizasse sua mente; aquilo tudo acometia a sua sanidade e enredava a sua vida
toda, impedindo-o de estudar e de superar esse amor no correspondido. A msica, que
primeiro o desagradava, foi capaz agora de aliviar sua tenso. Tal qual a arte, demoveu
o seu ouvinte/leitor de suas obsesses. A tortura sedutora da incompreenso da msica,
do amor, da mulher e, enfim, da arte, fazem desse sujeito um observador, preso dentro
do palco da vida, de que se faz espectador, janela. Mas no Municipal que ele tudo
revela, buscando uma compreenso dos mbiles da vida, por meio da arte, que organiza
suas experincias.
A leitura tortuosa de Baptista, como a impossvel pea do desembargador de O
drama de D. Alice, perfeita para a demonstrao de um tipo de leitor que Maupassant
tambm ironizou em sua obra, fazendo-os tambm instrumentos da aprendizagem de
sua capacidade limitada de apreenso sobre os eventos ordenados pela vida. Exemplos
disso so o pre Boniface, de Le crime au pre Boniface, a narradora de Enrage ou
ainda Jeanne, de Une vie, todos eles j mencionados em outras partes deste trabalho. A
responsabilidade de suas leituras deles mesmos, pela iluso que tm da vida, lida com
os critrios romanescos mais superficiais.
Viriato Correia exagera, em geral, essa tnica: primeiro porque a faz prevalecer
nas outras narrativas enquadradas do volume, demonstrando uma preocupao
obsessiva pela metalinguagem, pela obra que reflete sobre ela mesma, afinal. Segundo,
porque faz dessas personagens atpicas, grotescas, muitas vezes, seres extremamente
trgicos, que caminham cegamente para seus destinos impiedosos, como dipo, Fedra
entre outras do teatro clssico. Sua volpia da ao forte, como definiu Ribeiro
Couto, ou sua religiosidade dramtica e supersticiosa, segundo Mcio Leo, fazem-no
beirar o abismo: da forma desviante, dos temas cruis, das personagens bizarras e do
tempo alm do recortado pelo conto.
Veja-se tambm Madrugada negra, como exemplo disso. No fundo de uma
cervejaria, alguns camaradas esto reunidos para contar histrias alegres. Dois deles,
Nogueira Lins e Conrado Pinto, lamentam ter apenas histrias de vida horrveis.
347
BARTHES, Roland. Structure du fait divers. Essais critiques. Paris: Editions du Seuil, 1964. p. 192.
289
Riamos ainda do desfecho comico da historia que o dr. Camara acabava de contar,
quando o Nogueira Lins, sempre triste, com aquelle todo [sic] esguio de cegonha,
comeou:
No tenho, infelizmente, um caso alegre para contar aos amigos. A minha
historia horrivel.
Era nos fundos de uma cervejaria, s duas da madrugada. Reuniamo-nos ali todos
os dias, e, naquella noite, alguem lembrra que contassemos os casos da nossa vida.
Ninguem vae contar coisas tristes no fundo de uma cervejaria, deante da espuma da
cerveja. Todos ns haviamos escolhido o que havia de comico no nosso passado.
Talvez os amigos no me queiram ouvir. A minha historia dolorosissima.
O Conrado Pinto chegou a cadeira para mais perto da mesa:
Era tambem uma historia m que eu queria contar.
No pde ser mais dolorosa que a minha, insistiu o Nogueira Lins.
Por mais horrivel que seja a sua, nunca se poder comparar minha.
Duvido. O meu caso toda a minha desgraa. Eu hoje devia ser, pelo menos,
senador da Republica, ministro ou banqueiro ou um grande nome do paiz. Arraseime completamente e, agora, nada mais sou que um guarda-livros de segunda ordem.
Tudo pelo caso que lhes vou narrar. E o que peor, em tudo isso, que no tive e
no tenho a mais pequena culpa.348
290
291
Segundo conta Gasto do Lago, Diniz de Pdua vivia casado na Bahia com a
jovem dona Anglica. Quando ele perdeu sua virilidade, por conta de uma doena,
Anglica amaziou-se com outro homem, Bernardes Colomba, com quem teve os trs
filhos. Ao virem para o Rio de Janeiro, continuaram uma encenao familiar para a
sociedade (cuja verdade s era partilhada com Gasto do Lago): Anglica passava-se
por filha de Diniz de Pdua e por esposa de Bernardes Colomba. Constituram ento,
segundo esse narrador, um dos taes dramas domesticos, horrendos, nojentos,
extravagantes, de que ha tantos debaixo desses telhados e de que aqui fra no
sabemos.352 Sendo cmplice dessa histria, Gasto do Lago no quis envolver-se:
Compreendi que ali estava um drama conjugal que eu nunca devia desvendar aos olhos
ignorantes.353
Tendo por muitos anos suportado passivamente a sujeio a que a mulher o
condenara, Diniz de Pdua realizou seu plano de vingana, minuciosamente calculado:
aplicou doses precisas de veneno (h predileo no autor brasileiro por esse tipo de
morte) a cada uma das crianas do casal, de modo que, quando atingiam os trs anos e
trs meses de idade, morriam. Esse procedimento foi, certamente, o que fez Ribeiro
Couto afirmar, em sua resenha de Novelas doidas, que Viriato Correia criou um conto
de que Maupassant teria se esquecido. As semelhanas do enredo de O matador de
crianas com o de Moiron so evidentes e a elas voltaremos.
Gasto do Lago compactua com os dois crimes cometidos no seio dessa famlia
e aqui est mais uma vez o carter de surpresa do conto, cuja intriga dramtica
fechada com a chave do segundo narrador:
351
292
Mais uma vez, Viriato Correia encerra em seu conto todas as mincias realistas
para dar razo ao relato, o que o torna verossmil, mas surpreendente. Tal histria do
pai-marido, com a troca de papis familiares, encena uma tpica tragdia familiar que se
torna mais abominvel pela conscincia dos envolvidos sobre os seus atos, ao contrrio
de Madrugada negra, por exemplo.
As semelhanas de Diniz de Pdua com Moiron, personagem de Maupassant,
evidenciam mais ainda a releitura proposta por Viriato, que, reafirmamos, no se
esqueceu do autor francs. H uma sucesso de enganos e traies em jogo,
possibilitadas pelas diversas camadas diegticas do conto enquadrado. Logo no incio,
como no conto de Viriato Correia, temos a incitao ao assunto por dois de seus
narradores.
Comme on parlait encore de Pranzini, M. Maloureau qui avait t procureur gnral
sous lEmpire, nous dit:
Oh! jai connu, autrefois, une bien curieuse affaire, curieuse par plusieurs points
particuliers, comme vous lallez voir.355
354
293
O conto surpreende pelo horror da histria e pelo modo como narrada, pois
est toda construda sob os diversos pontos de vista: o do magistrado, o do padre e o do
criminoso. O discurso de Moiron, segundo seu ponto de vista, justifica seus atos e suas
falsas confisses, sua descrena na religio e seu destemor do poder divino. Tendo
burlado o julgamento dos homens e acreditando-se vingado, em sua insanidade, Moiron
no teme mais nada. M. Maloureau ouviu at o final a horrvel confisso e, cheio de
tudo aquilo, deixou o moribundo com um padre, que aparentemente ainda tentaria
dialogar com Moiron.
Assim como em O matador de crianas, o primeiro narrador no volta para o
encerramento do conto. A impresso que temos de que, diante de casos horrveis como
esses, j consumados, em que nem a f nem a justia demoveram os criminosos de
cometer atos hediondos contra inocentes, nada h a fazer, seno aplicar a lei dos homens
e faz-los pagar por seus crimes tanto Moiron quanto Diniz de Pdua so condenados.
Por outro lado, se no conto de Viriato, Gasto do Lago vota a favor do criminoso, no de
Maupassant, M. Maloureau acaba conseguindo o abrandamento da pena. Mas essa a
nossa leitura, uma vez que os contos terminam de forma aberta, para que cada leitor
conclua por si.
Conforme vimos, ambos os autores trabalham a questo do julgamento segundo
pontos de vista proporcionados pela maleabilidade da forma do conto escolhida, que
mudam e inovam. Cada um destes pontos de vista leva a um engano, orquestrado pelo
autor, que simboliza as armadilhas pregadas pela natureza. Ligados por uma viso do
mundo determinista, no hesitam em sacrificar suas personagens em nome dessa lei
357
MAUPASSANT, Guy de. Moiron. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 988-9.
294
Neste conto de Histrias speras, Hortnsia, na linhagem dos perfis naturalistas femininos (aqui
determinada pela genealogia familiar e pela tradio da mulher ligada ao pecado), tem sua curiosidade
atrada para o amor de um macaco do circo visitado. Assim como Henriette, de Imprudence,
conduzida pelo marido ao desejo de experimentar uma maneira nova de atender sua nsia amorosa. Mas
a tragicidade de O circo de cavalinhos muito maior: o marido encontra-a nos braos do macaco.
295
CORREIA, Viriato. O crime de Pedro. Historias asperas. So Paulo: Companhia Editora Nacional,
1928. p. 192-3.
296
escrever um conto forte, muito forte, desses que nos ficam eternamente na memoria.
Mas quero um conto que no tenha siquer a vaga sombra de saia. Disso no ha na
realidade da vida. S a imaginao mo pode dar. E ella no mo d, por mais que eu
lho pea.360
Em tudo ele exprime o ideal do conto do autor conto forte, que se guarde na
memria , salvo pela percepo da realidade em torno, para ele incapaz de lhe oferecer
um tema que no envolva o amor. Mais uma vez, a imaginao humana quer superar a
natureza, a realidade em suas fabulaes. Parece que o escritor-personagem de Viriato
quer uma arte sobrenatural, a que o naturalismo no atenderia.
Neste momento, modifica-se o ponto de observao do conto, e o amigo do
escritor passa a conduzir a histria, extrada da vida, segundo ele, que poderia figurar
num novo conto de Lcio de Paula. O diplomata Coriolano Vargas, como contador,
conseguir enredar mesmo ao experiente colega em suas suposies vulgares sobre o
conto narrado.
Coriolano Vargas ergueu-se:
A imaginao humana no inventa coisa nenhuma. Ella apenas o reflexo da
existencia, dos factos que se desenrolam. O homem imaginoso o que mais guarda
nos recessos da memoria maior numero dos choques da vida. Se, at agora, voc
no conseguiu o que pretende, porque, em vez de olhar o mundo, est olhando
para dentro do seu intimo. Assim nada conseguir.
E offerecendo-nos charutos:
Quer voc um conto horrivel, um conto exotico e sem mulher?
Procuro-o ha quazi [sic] dois annos.
Eu tenho o conto. um facto real. Voc vae ver como s a realidade tem
qualidades creadoras. um conto melancolico, desses que deixam na alma uma
torrente de amargura. Nenhuma saia o atravessa. No ha o mais vago rastilho de
amor nos seus planos mais longinquos. No entanto, um conto de emoo que
nunca mais se pode esquecer. Exactamente o que voc quer.
[...]
Isto deve ser um conto abrupto, vertiginoso. Nada de paysagens, de descripes, de
explanaes philosophicas, de galas de estilo, nada. Tudo isso prejudicar a
intensidade, a melancolia do desenlace. Estilo quazi telegraphico. Narrativa, apenas
narrativa.361
297
Reforando muito o suspense, termina sua histria, relatando que, aps cumprida
a pena de Pedro, reapareceu o tal turco, vivo e mais idoso. O conto acaba assim, sem
termos o parecer do escritor-personagem sobre o conto ideal (horrvel, melanclico,
abrupto, vertiginoso) que lhe foi narrado. A histria, porm, atende a todos os
preceitos do seu conto e, ainda mais, como um metaconto, encerra a arte de Viriato
Correia. Contador como Lobato e Maupassant, busca provocar no seu leitor o impacto
do entrecho indito, doloroso e inesquecvel, que fique eternamente na memria deste,
de modo que possa tambm repassar essa histria exemplar. A ciranda de narradores
benjaminianos se abre a novos participantes, contistas atrados por fazer do mal um
tema artstico, como Coriolano Vargas, Lcio de Paula e... Viriato Correia.
Em O crime de Pedro faz-se a discusso literria que conduz internamente
sua fatura. Reaparece a discusso da verossimilhana literria e da arte objetiva, que,
enfim, parece vencer a arte imaginativa. A conversa apaziguada, durante o ch da tarde,
entre o diplomata e o escritor, serve definio literria deste e, para ns, percepo
da arte do conto do autor de Histrias speras: objetiva, buscando sua fonte na vida,
querendo super-la na violncia de suas transies, trgica, cruel, golpeante. Este conto
simboliza a descoberta do escritor por uma tnica prpria, que nos parece veiculada
percepo de recursos artsticos captados da leitura do contista francs.
Acreditamos que os dois autores engendram seus contos, cuidadosamente
formatados, como os filhos da personagem de La mre aux monstres, que usava
espartilhos durante suas gestaes para criar bebs malformados e vend-los aos
362
298
montreurs
de
phnomnes.363
Conforme
concluiu
Donaldson-Evans
sobre
Maupassant, o que, a nosso ver, cabe a Viriato Correia: [...] Maupassant conteur est un
producteur de phnomnes. Comme cette mre aux monstres, il serre linstrument de
torture le conte dans lequel il comprime, dforme ltre jusqu en faire un
monstre.364 Assim como a me que lucra com as aberraes que cria, do conto La
mre aux monstres, Maupassant e Viriato Correia criam seus contos, o brasileiro ainda
parodiando a forma divulgada por Maupassant, a fim de dar a sua prpria viso da arte e
da vida, transfigurando-as.
Assim como Guy de Maupassant, Viriato Correia dedicou-se ao teatro. Sua viso
do mundo tambm percorrida pelo senso dramtico, o que interferiu sobremaneira na
escrita de seus contos. Ele est centrado em produzir no leitor o sentimento do pathos,
representado no teatro. Josu Montello, conforme vimos, considerava toda a obra de
Viriato Correia permeada pela noo dramtica, pelo senso da teatralidade; para esse
crtico, ele fz teatro sob a forma de conto.365 O bigrafo de Viriato Correia chegou
tambm a concluso semelhante: No incio, [Viriato] pensava que fazia teatro porque
era contista. Agora, est convencido de que contista precisamente porque faz
teatro.366
363
MAUPASSANT, Guy de. La mre aux monstres. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 842.
DONALDSON-EVANS, Mary. La femme (r)enferme chez Maupassant. In: FORESTIER, Louis
(Dir.) Maupassant et lcriture. Actes du colloque de Fcamp. ditions Nathan, 1993. p. 73.
365
MONTELLO, Josu. O conto brasileiro de Machado de Assis a Monteiro Lobato. Op. cit., p. 154-5.
366
PINTO, Genulfo Hrcules. Op. cit., p. 160.
364
299
CAPTULO 7
O fantstico maupassantiano revisitado por Gasto Cruls
[...] somos uns para os outros esfinges
indecifrveis?367
Nous sommes tous dans un dsert. Personne ne
comprend personne.368
CRULS, Gasto. Do outro lado. Contos reunidos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1951. p. 358.
Frase atribuda por Maupassant a Flaubert. MAUPASSANT, Guy de. Solitude. Contes et nouvelles. t.
I. p. 1257.
369
LINHARES, Temstocles. Dilogos sobre o romance brasileiro. So Paulo: Melhoramentos, 1978. p.
111-3.
370
LITRENTO, Oliveiros. Apresentao da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exrcito/Forense Universitria, 1974. v. 1. p. 192-3.
371
H poucos trabalhos universitrios que procuram resgatar a sua obra, principalmente por meio de
estudos de seus romances: MAIA, Cludio Silveira. Gasto Lus Cruls: uma nova recepo. Araraquara,
2005. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Cincias e Letras, Unesp. 2 v. MAIA, Cludio Silveira.
Pedras perdidas: o decadentismo e a viso ps-colonial de Gasto Cruls. Araraquara, 2009. Tese
(Doutorado) Faculdade de Cincias e Letras, Unesp.
368
300
1935, Agripino Grieco afirmou: O sr. Gasto Cruls um dos mais prestigiosos nomes
das nossas letras actuaes. Autor de contos e novellas que se vendem bastante, concilia
o que no commum o favor publico e a estima dos leitores cultos.372
Procuraremos reconhecer aqui o valor olvidado desse escritor, na sua
comparao com Guy de Maupassant; porm, no chegaremos ao exagero de Litrento,
para quem Gasto Cruls um dos melhores contistas que o Brasil at hoje possuiu.
Para esse historiador, de estilo literrio maneira [de] Maupassant, est Gasto Cruls a
merecer urgente reviso crtica que o situar, decerto, ao lado dos grandes prosadores
nacionais exemplificados por um Machado de Assis e um Guimares Rosa.373 O elogio
excessivo proporcional ao esquecimento em que infelizmente caiu o escritor retratado.
Assim como Oliveiros Litrento, Agripino Grieco tambm apontou a proximidade
entre Gasto Cruls e Guy de Maupassant, por meio do conto cruel: O Sr. Cruls s forte
ao fixar a vida sertaneja, colhendo a nota visual, a impresso direta, a sensao imediata.
Sob esse aspecto, tem ele, aqui e ali, um pouco da simplicidade robusta e do candor cruel
de certos contos de Maupassant, desse Maupassant que achava os filhos de Eva capazes
de tudo.374 Agripino Grieco refere-se, especificamente, a dois contos que estudaremos
neste captulo, Ao embalo da rede, cuja epgrafe foi retirada da frase final do conto La
chevelure: Lesprit de lhomme est capable de tout. Guy de Maupassant.375 Veremos
como o conto brasileiro, posto sob a tutela da epgrafe, ressignifica o seu contedo, de
modo a que Maupassant patrocina o texto nacional.376
Gasto Cruls no s lia a literatura francesa, o que se observa por essa e outras
epgrafes de seus contos, como foi traduzido na Frana. Segundo Regina Salgado
Campos, num artigo para a revista Lngua e Literatura, Gasto Cruls foi traduzido e
comentado na Revue de lAmrique Latine. Trs contos do escritor brasileiro foram
traduzidos para o francs em 1926 (Flor do tabuleiro), 1927 (A morte do saci) e
1929 (Bir), e nesse ltimo ano, trs romances comentados. Em 1931, foi feita, na
mesma revista, uma resenha de A Amaznia que eu vi. Para a autora, a ambientao
rural dos contos selecionados, bem como a regio amaznica, com seu exotismo e
estranhamento so motivo privilegiado de curiosidade para o leitor europeu.377
372
GRIECO, Agrippino. Gasto Cruls. Gente nova do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1935. p. 333.
LITRENTO, Oliveiros. Op. cit., p. 193.
374
GRIECO, Agripino. Evoluo da prosa no Brasil. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1933. p. 143.
375
CRULS, Gasto. Ao embalo da rede. Contos reunidos. Op. cit., p. 217.
376
CANDIDO, Antonio. Literatura comparada. Recortes. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 212.
377
CAMPOS, Regina Salgado. A noiva brasileira de Oscar Wilde ou Gasto Cruls, um leitor de Andr
Gide. Lngua e Literatura, n. 20, 1992-1993. p. 27.
373
301
Conferir a carta de Monteiro Lobato ao amigo, comentando o romance Elza e Helena, no volume
LOBATO, Monteiro. Cartas escolhidas. So Paulo: Brasiliense, 1959. v. 1. p. 217-21.
379
SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
1966. p. 394.
380
Consultamos os exemplares de Boletim de Ariel na biblioteca do IEB-USP.
381
CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crtica da Literatura Brasileira. 2. ed. [s.l.]:
Ministrio da Educao e Cultura, 1955. p. 231.
382
MOISS, Massaud; PAES, Jos Paulo Paes et al. Pequeno dicionrio de literatura brasileira. So
Paulo: Cultrix, 1969. p. 83.
302
Maupassant.
Conforme
demonstraremos,
mesmo
no
seu
narrador
LIMA, Herman. O conto, do Realismo aos nossos dias. In: COUTINHO, Afrnio. A literatura no
Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana/Livraria So Jos, [s.d.], v. II. p. 239.
384
ATADE, Austregsilo. O moderno conto brasileiro. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS.
Curso de conto: Conferncias realizadas na Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 1958. p. 182.
385
CRULS, Gasto. Coivara: contos. Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1920.
303
Le conteur est donc, assez souvent, un de ces hommes qui, par profession, sont
appels diagnostiquer ou dcider en toute impartialit: juge ou mdecin. Ils ont
la science et lautorit pour eux. Dans leur bouche lexemplum prend, pour ainsi
dire, force de loi. Le rcit devient indiscutable, estampill quil est au sceau de
lexprience et de la vrit. Ce type de conte sintgre, le plus souvent, dans une
conversation suppose entre amis ou compagnons de voyage. Ces propos servent
dintroduction (le thme) et de conclusion (lenseignement) lhistoire enchsse,
qui devient une sorte de fable.386
386
FORESTIER, Louis. Les contes, entre clairs et brouillard. Magazine Littraire, Paris, n. 512, oct.
2011. p. 75.
387
Agripino Grieco fala em seus contos macabros dos primeiros tempos. GRIECO, Agripino. Gente
nova do Brasil. Op. cit., p. 353.
304
Um Aasvero moderno revela certo humor, mas um conto que, pretendendose irreverente, resvala no inverossmil. Mais um mdico est no centro da narrativa,
relatando ao primeiro narrador, um diplomata, como se refugiou em muitos pases, at
chegar ao Japo para fugir profisso, pela qual tanto o procuravam. Uma juno da
simbologia bblica sobre o judeu errante e do Mdecin malgr lui, de Molire, citado na
epgrafe, e a tradio da narrativa enquadrada do o tom lendrio deste conto, de
interesse menor quanto feitura e ao resultado. Curioso notar que j aqui se questiona
o papel do mdico e sua recusa do ofcio, conforme se notar em A eutansia e O
abscesso de fixao.
A noiva de Oscar Wilde um conto que se constri por meio de uma
conversa entre amigos numa confeitaria. As duplas aspas se devem ao fato de que o
ttulo do conto dado por uma das personagens, sua coautora. Um primeiro relato,
subentendido na histria, aqui repassado por Alfredo Roberval, um poeta amigo do
rapaz que lhe contou o caso, chamado Raul, que j est morto. Seu suicdio est
relacionado a essa histria como Pandora, motivado pela curiosidade, Raul abriu a
caixa contendo a sua desgraa: sua tia, D. Isabel, teria sido a inspiradora de vrios livros
de Oscar Wilde, que a teria conhecido durante uma viagem dela Europa. Apaixonada
pelo escritor, ao final do conto, D. Isabel recebe o sobrinho moribundo nos braos, este
tambm leitor de Wilde, e que descobrira as fontes alusivas tia na obra do escritor
irlands.
Em termos da estruturao desse conto, Cruls filia-se tradio do Decameron,
retomada por Maupassant, uma vez que o relato se constri pela incitao ao tema e por
pedidos dos participantes, que intervm em sua construo. Alm disso, o autor cria um
jogo de reinterpretaes literrias, observando a vida e a obra de Oscar Wilde por meio
dos elementos da fico criada neste seu conto. Por esse vis, mais que a tradio
maupassantiana, Gasto Cruls faz aqui um dilogo com a obra de outro escritor francs,
Andr Gide, que citado, em determinado momento. Numa leitura bastante instigante
desse conto, Regina Salgado Campos, no artigo citado, atribui a Andr Gide a origem
do conto de Gasto Cruls, por meio da referncia a duas obras: Oscar Wilde, de 1901, e
Cahiers dAndr Walter, de 1891.
na estrutura do conto, entretanto, que podemos observar uma leitura atenta dos
procedimentos de Gide. Narrativa em primeira pessoa do singular, inicia-se com
uma indagao a Raul sobre o motivo que o levou a dar a dois gatos o nome de duas
personagens de Oscar Wilde. No pargrafo seguinte que nos damos conta de que
agora que esse enunciador do discurso direto nos apresentado. Ou seja: um
305
narrador eu nos conta, a ns leitores, o que lhe foi contado (a ele e outros dois
companheiros, reunidos em torno mesa de uma confeitaria), pelo eu do
primeiro pargrafo, agora identificado como o poeta Alfredo Roberval, que era
sempre interessante em tudo o que contava [...] Concludo o relato, o narrador
pergunta a Alfredo por que no faria a sua estria na novela aproveitando a histria
que nos acabava de contar (p. 57). [...] Estamos portanto diante de um conto onde
algum conta o que lhe contaram, sendo que por sua vez, Raul conta suas conversas
e suas hipteses na tentativa de elucidar o caso amoroso de sua tia.
Trata-se de uma composio bem gideana, a mise en abyme, j trabalhada por
Gide desde a sua primeira obra.388
Como se observa, Gide foi leitor atento dos sucessos formais das narrativas de
Maupassant e, Gasto Cruls, de Gide e de Maupassant. Todos se interessaram, e isso
evidente em suas obras, pelo enquadramento de narrativas, pelo conto dentro do conto.
A noiva de Oscar Wilde vem coroar a inclinao do escritor brasileiro pelo ato de
contar histrias anedticas e de estrutura complexa, e seu prazer por fazer de sua
literatura um lugar em que as tradies literrias dialogam. Ao fazer do escritor irlands
sua personagem, Gasto Cruls o faz interagir com personagens brasileiras, revertendo a
tradio literria.
Gilberto Amado, comentando Coivara no ano de sua publicao,390 se pde
perceber os defeitos do contista estreante como a m escolha do ttulo sem conexo
com o tom geral do volume,391 a recorrncia do vocabulrio requintado para evitar as
repeties e o literatismo na busca da frase benfeita , tambm j notara em Gasto
Cruls a imaginao, o dom dos bons assuntos de que o leitor nunca mais se
esquece. Em Noites brancas, por exemplo, o irmo do romancista Jorge Amado
observa uma tal mistura de estranheza e maldade, de necessidade fatal e real prestigio
388
306
literario nesse conto, que elle ficar sempre na literatura brasileira, como uma pagina de
referncia.392 Se errou no palpite, no deixa de ter razo na percepo da fora motriz
da obra do contista em questo. O trabalho com a narrativa curta se aprimorou no
escritor, no sentido da valorizao do estranho e do fantstico, visando sensao final
nica despertada no leitor. preciso lembrar que era essa tambm a inteno do conto
maupassantiano de Monteiro Lobato. O engenhoso enredo de A noiva de Oscar
Wilde, conto enquadrado que transforma em personagem o escritor irlands, resulta,
conforme vimos, num final trgico, em que o narrador autodiegtico morto. Esse texto
despertou a estranheza de Lima Barreto, mais pela escolha do assunto (a eleio de
Oscar Wilde, por quem Lima tinha ojeriza) do que pela forma, tambm num texto
pouco posterior publicao do volume.
No artigo margem de Coivara, de Gasto Cruls,393 tambm um artigo para a
imprensa, Lima Barreto elogia-lhe, ao contrrio de Gilberto Amado, a escrita natural e
sem pedantismo, o interesse do autor pela vida social da roa. Qualifica o Noturno n 13
como um conto estranho e reputa-lhe um tom de transcendente espiritualidade. Na
maior parte do artigo, o criador de Policarpo Quaresma passa a discutir o papel do
mdico na literatura e na sociedade, a partir dos contos G.C.P.A. e A neurastenia do
Professor Filomeno, ainda que observe que H, porm, nos contos do Senhor Cruls
muita cousa outra que no a pura preocupao das cousas de sua profisso.394
De fato, nos volumes posteriores que essa preocupao com os temas mdicos
se aprimora, quando necessrio fabulao, ou se esvai, aparecendo diluda no fluxo de
conscincia do narrador. No primeiro caso esto A eutansia e O abscesso de
fixao, de Ao embalo da rede; no segundo, em Meu ssia e No espelho, de
Histria puxa histria.
Da estada do autor na Paraba, para uma campanha de saneamento rural, entre
1921 e 1922, captou paisagem e temas para os contos de Ao embalo da rede.395 O livro
de 1923 ainda est marcadamente envolvido com o ponto de vista determinista do
ambiente sertanejo, ainda que, como em Coivara, no predominem as histrias passadas
no interior. Contos como Flor do tabuleiro e Ao embalo da rede trazem-nos
personagens do serto com que se imiscuem e se perdem personagens citadinas.
392
307
396
397
308
A partir desse dado, o narrador lista uma srie de casos de suicdio, cometidos
das formas mais diversas o leitor afeito a Maupassant logo se d conta de que todos
eles j foram entrevistos em algum de seus contos.
398
309
Em nota a esse conto, Louis Forestier comentou como Maupassant faz, nessa
passagem, uma retrospectiva de diversas personagens suicidas de seus contos:
Pour le lecteur, ils constituent une fantastique rtrospective de toutes les morts
brutales dont lcrivain a parsem son uvre: la gorge ouverte, cest labb Vilbois
(Le Champ doliviers); le ventre fendu, cest Mme Hlne (LEnfant, t. I, p. 781);
lempoisonnement, cest Yveline Samoris ou Yvette; la pendaison, cest Une veuve,
Promenade ou Le Pre Amable; la mort par usure et dmission, par asphyxie
sociale plus que matrielle, cest Misre humaine ou Le Baptme; la noyade... cest
la hantise et la fascination; le motif parcourt toute luvre, depuis Sur leau jusqu
la noyade manque de Mouche, en passant par Madame Baptiste, Miss Harriet et
Petit soldat.402
401
MAUPASSANT, Guy de. Lendormeuse. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 1159.
FORESTIER, Louis. Notes. In: MAUPASSANT, Guy de. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 1694.
403
MAUPASSANT, Guy de. Lendormeuse. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 1161.
404
Idem, p. 1165.
402
310
deita para receber uma substncia letal indolor e que exala o odor de flores. No sonho, o
narrador guiado pelo secretrio dessa instituio e chega a experimentar a sensao de
deitar-se na endormeuse. Nesse exato momento, ele despertado de seu devaneio por
um guarda-campestre, que o traz realidade. Esse sujeito ia ao Sena resgatar mais um
corpo de suicida. A proximidade do narrador com o domnio da morte estreita, mas
fica no plano do onrico; no plano da realidade, em que ela predominante, no h
possibilidade de relao com ela que no seja trgica.
Embora o conto se realize entre o plano real e o onrico, ele pe em xeque uma
viso determinista sobre o suicdio, justamente numa leitura contrria do conto de
Gasto Cruls. Pode-se compreender que a opinio do mdico Gasto Cruls predomina
sobre a atuao do escritor, julgando sua personagem e fazendo-a pagar por uma
deciso que considera incorreta e precipitada. Ele no se priva de corrigir o erro desse
mdico, fazendo-o recorrer tambm abreviao de sua curta vida de personagem.
Outro conto do segundo livro de Gasto Cruls que merece nosso estudo
comparativo O abscesso de fixao. Ele envolve uma narrativa enquadrada e, mais
uma vez, personagens mdicas.
O narrador homodiegtico relata sua ltima viagem ao norte do pas, feita num
navio. Na embarcao, nos vrios dias de viagem, travou contato com outro mdico,
chamado Cristiano Thompson. Esse sujeito, a princpio um bom pai de famlia, bastante
simptico e conversador, havia abandonado a medicina, no Rio de Janeiro, pelo trabalho
com a borracha, na Amaznia. Entre as diversas conversas no bar do navio, o narrador
acaba tocando num assunto que faz Cristiano relembrar o assassinato que cometera. O
personagem-narrador conta que fora chamado para socorrer uma prostituta, a polaca
Sarah Itanovitch, cujo assassino nunca fora descoberto pela justia. Percebendo o
interesse de Cristiano e sua fisionomia alterada, o narrador continuou, entretanto,
respondendo s suas perguntas. Quando termina esse relato, comea a longa confisso
de Cristiano, que ocupar todo o final do conto. Ele se prope a confessar o assassinato,
sob o pretexto de ser bem compreendido e de que o outro guardaria seu segredo. Sua
lgica, alis, revela a sua presuno e o seu egosmo:
Mas, oua-me. O senhor mdico e poder compreender-me. Alm disso, conto
com o seu segrdo profissional: vai ouvir a confisso de um doente ou, melhor, de
um ex-doente [...]. Afinal, foi para o meu bem e no h de ser agora, depois de tanto
tempo, que eu v sentir os primeiros remorsos, como qualquer criminoso. Sim,
311
porque eu no sou criminoso. Longe de mim esta idia! [...] eu, agora, preciso
contar-lhe tudo, para que o senhor no fique fazendo mau juzo a meu respeito.405
Atribuindo seu crime obsesso e como um pretexto para a sua felicidade, esse
sujeito age friamente e espera a compreenso de seu interlocutor. Ao final de seu relato,
pergunta ao seu ouvinte: O senhor, no meu caso, no faria a mesma coisa?.408 O conto
acaba assim, sem sabermos se o narrador faria ou no o mesmo, da mesma forma que o
narrador de M. Jocaste, de Maupassant. Cristiano Thompson um parente distante do
cruel magistrado de Un fou, sempre considerado um exemplo de conduta, quando, na
verdade, guardava crimes hediondos, descobertos por meio do seu dirio. A concluso
deste conto de Maupassant poderia servir ao conto O abscesso de fixao: Les
405
312
mdecins alinistes qui on la confi, affirment quil existe dans le monde beaucoup
de fous ignors, aussi adroits et aussi redoutables que ce monstrueux dment.409 Esse
juiz, at sua morte, era conhecido por uma vida irrepreensvel, por sua atuao ntegra.
Morto aos 82 anos, recebeu todas as homenagens do estado. At que um secretrio
encontrou um dirio revelando, por nove meses, diversos de seus crimes e seu imenso
prazer em matar e inculpar por seus crimes sujeitos inocentes.
Alm do uso do relato interno dentro do conto, ambos os escritores parecem
fazer ver a inverossmil lgica dos criminosos brbaros, que procuram se explicar
racionalmente. A crueza de seus argumentos assemelha-se em diversos momentos: a
desvalorizao da vida dos outros entes, a prostituta, no caso de Cristiano, e os
indigentes, os mortos de guerra ou os condenados guilhotina, no caso do juiz: Ltre
qui nest point enregistr ne compte pas; o uso de um argumento sobre a sua pretensa
superioridade: Me souponnerait-on, moi, moi; a frieza da conduta: On a dcouvert
le cadavre. On cherche lassassin. Ah! ah!; a inteno de inculpar outro ser por seu
crime: On na rien dcouvert. Quelque vagabond errant aura fait le coup; a ideia de
que um crime mais horrvel acalmaria sua obsesso: Si javais vu le sang couler, il me
semble que je serais tranquille prsent!.410 Enfim, so muitas as falsas razes que
aproximam estes dois criminosos, para o que contribui o fato atroz de um ser mdico e o
outro, juiz. Os dois escritores empregam essas personagens para elevar o pathos de suas
histrias trgicas e mostrar a vileza do ser humano que usa de sua profisso para
exterminar inocentes. Certamente, nesses casos, seus contos caracterizam-se como
contraexemplos de homens de elevada cultura, acometidos tambm por doenas
patolgicas.
Agripino Grieco (para quem Coivara uma das mais formosas collectaneas de
contos da lingua portuguesa)411 comenta que Ao embalo da rede contm paginas em
que o fantastico do real, aquillo a que eu chamarei os espectros do meio-dia, no so
menos bem vistos que os espectros da meia-noite dos discipulos de Poe e Hoffmann.412
409
MAUPASSANT, Guy de. Un fou. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 547.
Idem, p. 543 e 545.
411
GRIECO, Agrippino. Op. cit., p. 348.
412
Idem, p. 349.
410
313
413
314
Les murs de la cellule taient nus, peints la chaux. Une fentre troite et grille,
perce trs haut de faon quon ne pt pas y atteindre, clairait cette petite pice
claire et sinistre; et le fou, assis sur une chaise de paille, nous regardait dun il
fixe, vague et hant. Il tait fort maigre avec des joues creuses et des cheveux
presque blancs quon devinait blanchis en quelques mois. Ses vtements semblaient
trop larges pour ses membres secs, pour sa poitrine rtrcie, pour son ventre creux.
On sentait cet homme ravag, rong par sa pense, par une Pense, comme un fruit
par un ver. Sa Folie, son ide tait l, dans cette tte, obstine, harcelante,
dvorante. Elle mangeait le corps peu peu. Elle, lInvisible, lImpalpable,
lInsaisissable, lImmatrielle Ide minait la chair, buvait le sang, teignait la vie.
Quel mystre que cet homme tu par un Songe! Il faisait peine, peur et piti, ce
Possd! Quel rve trange, pouvantable et mortel habitait dans ce front, quil
plissait de rides profondes, sans cesse remuantes?
Le mdecin me dit: Il a de terribles accs de fureur, cest un des dments les plus
singuliers que jaie vus. Il est atteint de folie rotique et macabre. Cest une sorte de
ncrophile. Il a dailleurs crit son journal qui nous montre le plus clairement du
monde la maladie de son esprit. Sa folie y est pour ainsi dire palpable. Si cela vous
intresse vous pouvez parcourir ce document. Je suivis le docteur dans son cabinet,
et il me remit le journal de ce misrable homme. Lisez, dit-il, et vous me direz
votre avis.414
MAUPASSANT, Guy de. La chevelure. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 107.
315
A descrio de seu mal ao seu amigo pode ser posta em paralelo com a revelao
do dirio do interno de La chevelure:
Comme jaurais voulu la connatre, la voir, la femme qui avait choisi cet objet
exquis et rare! Elle est morte! Je suis possd par le dsir des femmes dautrefois;
[...]
Le pass mattire, le prsent meffraie parce que lavenir cest la mort. [...]
Pourquoi le souvenir de ce meuble me poursuivit-il avec tant de force que je revins
sur mes pas? Je marrtai de nouveau devant le magasin pour le revoir, et je sentis
quil me tentait.
Quelle singulire chose que la tentation! On regarde un objet et, peu peu, il vous
sduit, vous trouble, vous envahit comme ferait un visage de femme. Son charme
entre en vous, charme trange qui vient de sa forme, de sa couleur, de sa
physionomie de chose; et on laime dj, on le dsire, on le veut. Un besoin de
possession vous gagne, besoin doux dabord, comme timide, mais qui saccrot,
devient violent, irrsistible.416
415
416
316
317
Une nuit je me rveillai brusquement avec la pense que je ne me trouvais pas seul
dans ma chambre.
Jtais seul pourtant. Mais je ne pus me rendormir; et comme je magitais dans une
fivre dinsomnie, je me levai pour aller toucher la chevelure. Elle me parut plus
douce que de coutume, plus anime. Les morts reviennent-ils? Les baisers dont je la
rchauffais me faisaient dfaillir de bonheur; et je lemportai dans mon lit, et je me
couchai, en la pressant sur mes lvres, comme une matresse quon va possder.
Les morts reviennent! Elle est venue. Oui, je lai vue, je lai tenue, je lai eue, telle
quelle tait vivante autrefois, grande, blonde, grasse, les seins froids, la hanche en
forme de lyre; et jai parcouru de mes caresses cette ligne ondulante et divine qui va
de la gorge aux pieds en suivant toutes les courbes de la chair.
Oui, je lai eue, tous les jours, toutes les nuits. Elle est revenue, la Morte, la belle
Morte, lAdorable, la Mystrieuse, lInconnue, toutes les nuits.
Mon bonheur fut si grand, que je ne lai pu cacher. Jprouvais prs delle un
ravissement surhumain, la joie profonde, inexplicable, de possder lInsaisissable,
lInvisible, la Morte! Nul amant ne gota des jouissances plus ardentes, plus
terribles!
Je nai point su cacher mon bonheur. Je laimais si fort que je nai plus voulu la
quitter. Je lai emporte avec moi toujours, partout. Je lai promene par la ville
comme ma femme, et conduite au thtre en des loges grilles, comme ma
matresse...
Mais on la vue... on a devin... on me la prise... Et on ma jet dans une prison,
comme un malfaiteur. On la prise... Oh! misre!...419
419
MAUPASSANT, Guy de. La chevelure. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 112-3.
FINN, Jacques. La littrature fantastique: essai sur lorganisation surnaturelle. Bruxelles: ditions de
lUniversit de Bruxelles, 1980. p. 34.
420
318
Tanto Gasto Cruls quanto Maupassant abusam do narrador dito srio, que olha
o homem comum quase como um objeto cientfico. Isso aumenta a aparncia de verdade
do relato, a verossimilhana, o que ajuda a tornar o conto plausvel. A forma de dirio,
segundo Andr Vial,421 tambm um procedimento recorrente em Maupassant e que
permite, com maior efeito, marcar a gradao do progresso da ideia fixa do
protagonista; o que era inconsciente passa a ser organizado sob a forma escrita ou de
relato. Podemos notar isso nos dois contos aqui presentes, quando as duas narrativas so
assumidas pela primeira pessoa.
Todorov, em Introduction la littrature fantastique, diz que as narrativas
fantsticas de Maupassant primam pelo uso da primeira pessoa e que o narrador
heterodiegtico potencializa a hesitao do leitor quanto verdade do discurso do louco,
por mais verossmil que seja.
Mais dans ses meilleures nouvelles fantastiques Lui?, la nuit, le Horla, Qui sait?
Maupassant fait du narrateur le hros mme de lhistoire (cest le procd dEdgar
Poe et de beaucoup dautres aprs lui). Laccent est alors mis sur le fait quil sagit
du discours dun personnage plus que dun discours de lauteur: la parole est sujette
caution, et nous pouvons bien supposer que tous ces personnages sont des fous;
toutefois, du fait quils ne sont pas introduits par un discours distinct du narrateur,
nous leur prtons encore une paradoxale confiance. On ne nous dit pas que le
narrateur ment et la possibilit quil mente, en quelque sorte structuralement nous
choque; mais cette possibilit existe (puisquil est aussi personnage), et
lhsitation peut natre chez le lecteur.422
O escritor Henry James afirmou que o aspecto estpido e perverso dos fatos o
que primeiro interessa a Maupassant.423 Foi esse elemento que Gasto Cruls recuperou
do escritor francs no conto analisado: a capacidade do homem de ser seduzido por
qualquer coisa. O territrio do fantstico no est mais fundado no sonho, no estado de
semiviglia, mas na incapacidade psquica do homem, em meio sua racionalidade, de
distinguir a presena do outro que o habita, discusso que vemos se realizar
literariamente em Maupassant, justamente o escritor que Todorov afirma ser o ltimo
atrelado ao gnero. Constata-se que os fantasmas deste fantstico mais recente so
criaturas advindas de dentro do leitor, ou do homem em meio vida em sociedade. Por
isso, cada vez menos os autores pensam ser necessrio povoar suas narrativas com seres
inslitos, monstros ou fantasmas.
421
VIAL, Andr. Le lignage clandestin de Maupassant conteur fantastique. Revue dHistoire Littraire de
la France, n. 6, nov.-dc. 1973. p. 1000.
422
TODOROV, Tzvetan. Introduction la littrature fantastique. Paris: ditions du Seuil, 1970. p. 91.
423
JAMES, Henri. Guy de Maupassant. In: MAUPASSANT, Guy de. Novelas e contos. So Paulo:
Globo, 1951. p. IX-XXIII.
319
Observamos, nos dois contos, que a relao com o interdito, com o outro, de
horror e de atrao, e que h uma espcie de transferncia entre aquele que acometido
pela loucura e a testemunha de seu relato o mesmo ocorre no conto Tic-tac, de
Medeiros e Albuquerque. Gasto Cruls e Maupassant lidam com os limites da razo
humana e com uma hesitao do protagonista, entre a posio do louco e a do so,
tornando-os muito prximos.
Tanto Guy de Maupassant quanto Gasto Cruls misturam o fantstico com a
sobriedade do cotidiano. O elemento inslito trabalhado sob um ponto de vista
racional e objetivo, que julga o esprito humano capaz de tudo. O interesse de ambos
est em enredar o leitor pelo mistrio do assunto e da psicologia, no que contribui a
narrao em primeira pessoa. Tambm a estruturao do conto em gavetas, isto ,
com vrios nveis narrativos, e o final surpreendente e simples coincidem nos dois
contos e enriquecem o efeito fantstico.
preciso apontar que h quase um tom de humor na neurose de Otvio, que
brinca com o que em Maupassant mais misterioso, pelo lirismo da relao de seu
protagonista com a morta. Enquanto o personagem de Gasto Cruls se arrepende de
seus atos, o personagem francs est em total desalento, por ter sido privado do melhor
sentimento de sua vida.
Devemos reforar a ideia de que Gasto Cruls escolheu para epigrafar o contottulo de seu segundo livro justamente uma narrativa de Maupassant em que um dos
narradores mdico, funo que o prprio Gasto Cruls exerceu e que tambm de
muitos de seus narradores. Seu protagonista, o engenheiro Otvio, assume a funo de
quem narra para expiar seu mal, uma forma de buscar a cura para a sua obsesso, por
meio do julgamento do amigo. O contedo do dilogo, que no conto de Maupassant se
perfaz num monlogo, julgado externamente por um outro em pleno juzo, torna o conto
mais prximo do leitor e de uma situao que poderia envolv-lo. Por outro lado, o
personagem de Maupassant que ouve o diagnstico do mdico sente-se atrado, no final
do conto, de certa forma, pela cabeleira que pede para ver, como se sofresse o risco de
ser acometido pelo mesmo mal.
O terico Jacques Finn bem definiu o gnero por seu carter de jogo: Un conte
fantastique est un conte qui exploite du fantastique dans un pur but ludique; Tout jeu
320
possde ses rgles et ses tricheries. Lcrivain fantastique possde celles-ci et subit
celles-l. Il doit convaincre son lecteur.424
Enfim, Maupassant e Gasto Cruls parecem trabalhar com o sentimento de que a
loucura est mais prxima de ns do que imaginamos. Basta que o nosso esprito
humano ouse ser capaz de qualquer coisa. A menos que a literatura fantstica nos ajude
a superar nossos instintos.
Outro conto fantstico de Gasto Cruls que vamos discutir aqui foi publicado no
seu ltimo volume de contos, de 1938, Histria puxa histria. Desde o ttulo, observase que este livro se apresenta mais definido quanto a um modo prprio de contar, preso
narrativa oral. Meu ssia est entre os contos mais conhecidos do autor e foi
selecionado para a antologia de Oliveiros Litrento,425 assim como O espelho foi
escolhido para o volume de contos fantsticos organizado por Jacob Penteado para a
Livraria Martins, na dcada de 1950.426 Muitos contos dessa fase do autor enveredam
pelo universo do maravilhoso, empregando sucessivamente figuras do folclore
brasileiro, como o lobisomem e a me-dgua, de que so exemplos os dois primeiros
textos do livro, Contas brabas e Me dgua.
Meu ssia427 aborda a questo do duplo, tema comum ao gnero fantstico.
Antes da publicao de Histria puxa histria, j o autor tinha se dedicado a tratar do
tema do desdobramento da personalidade em Elza e Helena, de 1927. As questes da
psicanlise, fundadas sob a base cientfica de que dispunha o autor, foram as que mais
atraram o pblico e a crtica.428 Neste conto, o escritor Paulo Alencastro relata muito
racionalmente como um outro, em tudo semelhante a si, apareceu de repente em sua
vida, tirando-lhe o sossego, possuindo-lhe primeiro a obra que escreveria, depois a sua
amante e, enfim, levando-o a um ato alucinado de tentar matar essa viso. Uma vez que
o relato todo dado do ponto de vista do possudo, o leitor permanece na dvida quanto
verdade dos fatos narrados, para o que contribuem provas fsicas da presena do outro,
reiteradas pelo narrador. Embora o modelo de Willian Wilson, de Edgar Allan Poe
424
321
seja evidente (outro ser humano idntico e homnimo extrai as energias do protagonista,
que ao final tenta mat-lo), os elementos de comparao com a segunda verso de Le
Horla so muitos, e procuraremos aqui apont-los. Note-se, desde a denominao da
personagem e de seu ssia, Paulo Alencastro, a palavra alm em seu sobrenome,
como l, de Horla, ambos remetendo sua origem num lugar desconhecido. O nome
dos dois dado ao protagonista pelo prprio sujeito com que se defrontam.429
A personagem annima de Le Horla comea seu dirio no dia 8 de maio e o
finda em 10 de setembro, tendo, portanto a durao de aproximadamente quatro meses,
ao passo que os acontecimentos narrados por Paulo Alencastro duram apenas um ms.
A personagem de Maupassant observa que viu um navio brasileiro passando por Rouen,
mas s d ateno novamente a esse fato no final de seu relato. Ele est centrado em
detalhar como foi, pouco a pouco, acometido por um mal, que ao longo de todo o texto
tenta definir. Nesse perodo, consulta um mdico, usa medicamentos, viaja, mas a
sensao de ser dominado por um ser desconhecido se agrava. Tem pesadelos, sofre de
insnia, at chegar fase das vises. Alguns empregados so tomados aparentemente
pelo mesmo mal, o que refora a verossimilhana. No caso de Paulo Alencastro, outras
pessoas veem o seu ssia e apontam-lhe a semelhana (um bibliotecrio: le se parece
muito com o senhor e eu cheguei at a confundir os dois; os amigos: amigos meus o
tomavam por mim; sua amante: ela o confundiu comigo).430 Tambm ele tem o sono
interrompido e sofre de pesadelos: quase no comia e, noite, no podia ter por sono
uns cochilos rpidos, entremeado[s] de sobressaltos e pesadelos.431
Tanto no conto de Gasto Cruls quanto na novela de Maupassant, observa-se a
progresso da obsesso dos protagonistas por esse outro ou por un tre invisible432
que vem assombr-los. por esses termos que os dois os denominam, no incio de suas
narrativas, quando ainda no sabiam nome-los. Nos dois casos, a obsesso torna-se
cotidiana, privando os dois protagonistas do domnio da leitura: jessaie de lire; mais je
ne comprends pas les mots; je distingue peine les lettres; no caso da personagem de
Gasto Cruls, impedimento fsico, primeiro: Era a quarta ou quinta vez que eu pedia
uma obra para ler e, decorrido algum tempo, o funcionrio vinha me avisar que a
mesma j estava em mos de outro consultante; depois psicolgico: Eu que j no
429
MAUPASSANT, Guy de. Le Horla [2e version]. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 933. CRULS,
Gasto. Meu ssia. Contos reunidos. Op. cit., p. 297.
430
CRULS, Gasto. Meu ssia. Contos reunidos. Op. cit., p. 289, 291 e 292, respectivamente.
431
Idem, p. 294.
432
Idem, p. 288. MAUPASSANT. Op. cit., t. II, p. 921.
322
pude mais ler. Tdas as minhas idias convergiam para a pessoa do meu ssia.433
Ambos ficam to dominados pela busca da origem desse outro que no conseguem ser
absorvidos por nenhuma outra distrao. Quando o personagem de Maupassant
consegue ler, busca somente livros que esclaream a presena de tous les tres
invisibles rdant autour de lhomme, mas aucun deux ne ressemble celui qui me
hante434 e tambm o Horla se interessa pela sua leitura:
[...] tout coup, il me sembla quune page du livre rest ouvert sur ma table venait
de tourner toute seule [...] Au bout de quatre minutes environ, je vis, je vis, oui, je
vis de mes yeux une autre page se soulever et se rabattre sur la prcdente, comme
si un doigt let feuillete. Mon fauteuil tait vide, semblait vide; mais je compris
quil tait l, lui, assis ma place, et quil lisait.435
Observe-se que ambos so escritores, com objetivos diversos, uma vez que a
novela de Maupassant escrita sob a forma de dirio. Mas, o que era secundrio em
Maupassant, a dificuldade de leitura e de escrita, passa a ser principal no texto de
Gasto Cruls:
[...] no sem muito constrangimento que me reporto ao livro que estava
escrevendo e era sem qualquer dvida a minha mxima preocupao de todos os
instantes, pelo menos at um ms atrs, quando fiz a atroz descoberta. Mas como
no falar nle se foi por le, justamente, que conheci o meu ssia, o homem que
passou a infernar a minha vida, que me impede de escrever, e at roubou as minhas
idias? Por outro lado, que me importa agora falar num livro, que j sei
irremedivelmente perdido, ao qual nunca mais, pelo menos eu, pude ajuntar uma
s linha, e que se algum dia vier a ser publicado, mesmo trazendo meu nome, no
ter sido concludo por mim?437
433
MAUPASSANT, Guy de. Op. cit., t. II, p. 915. CRULS, Gasto. Op. cit., p. 287 e 290.
MAUPASSANT, Guy de. Le Horla. Op. cit., t. II, p. 931.
435
Idem, p. 931-2.
436
Idem, p. 935.
437
CRULS, Gasto. Op. cit., p. 287.
434
323
Maupassant (que, conforme vimos, migrou por meio de ensaios em Lettre dun fou e
a primeira verso de Le Horla) e apenas sugerido como tema, ao longo da segunda
verso de Le Horla.
Nos dois casos, as personagens passam a viver fechadas a maior parte do tempo
num ambiente antes familiar que se torna opressivo: o quarto, em Le Horla, e a sala
de leitura da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em Meu ssia. H uma grande
diferena entre o ambiente privado e o pblico, mas, guardadas as propores, ambos
eram at ento lugares amenos e tornam-se lugares hermticos para o terror psicolgico
das personagens, que no conseguem se ausentar de l, atradas pela tentao de ver o
outro. As ausncias acabam por reforar a ambientao fantstica, trazendo novos
elementos que incidem sobre as personagens: em Maupassant, a viagem ao Monte
Saint-Michel, o ambiente gtico da abadia, e uma experincia de hipnose com um
psiquiatra em Paris; em Gasto Cruls, a visita amante e o encontro com amigos
reforam a existncia do outro na vida de Paulo Alencastro. A personagem de
Maupassant tem a oportunidade de dialogar com um monge (o discurso religioso) e com
um mdico (o discurso cientfico), mas ambos mais contribuem com a sua crena no
sobrenatural do que o trazem razo.
No ambiente fechado, os dois protagonistas buscam provas da presena do outro,
fazendo experincias: em Maupassant, de tudo o que oferecido ao Horla (como a uma
entidade que o personagem alimenta), ele consome apenas gua e leite; Paulo
Alencastro muda seus horrios de visita biblioteca, troca de leituras, espreita seu ssia,
a fim de identific-lo. A partir de determinado momento, no conseguem mais
abandonar o lugar assombrado: Tout le jour jai voulu men aller; je nai pas pu; [...]
deixei de ir Repartio [...] Isto porque queria freqentar a Biblioteca nas horas que
coincidiam com o meu expediente [...] Pois l iria tambm das onze s cinco e, se
possvel, sem arredar p da sala de leitura. Disso possesso e alienao, um
passo: Je ne peux plus vouloir; mais quelquun veut pour moi; et jobis [...] Je suis
perdu! Quelquun possde mon me et la gouverne!; quando ouvi meu nome, lhe
pulei ao pescoo e rolamos juntos a escada.438
Os dois personagens percebem o desdobramento de sua personalidade no outro.
No incio, creem numa iluso; depois, a certeza da existncia de outro ser:
438
MAUPASSANT. Op. cit., p. 929. CRULS, Gasto Op. cit., p. 294 e 297.
324
Ce ne pouvait tre que moi? Alors, jtais somnambule, je vivais, sans le savoir, de
cette double vie mystrieuse qui fait douter sil y a deux tres en nous, ou si un tre
tranger, inconnaissable et invisible, anime, par moments, quand notre me est
engourdie, notre corps captif qui obit cet autre, comme nous-mmes, plus qu
nous-mmes.439
Paulo Alencastro tambm categrico sobre sua sanidade: Podem dizer o que
quiser. Falar numa alucinao. Ambos, no final, tentam (em vo) matar o outro: je le
tuerai!; lhe pulei ao pescoo e rolamos juntos a escada.443
Apesar dos elementos apresentados na construo das personagens e de sua
obsesso, a concluso dos dois textos muito diversa. A do protagonista de Maupassant
recai sobre um novo ser que vir domin-lo. A ideia de que o Horla brasileiro desceu do
navio que partiu do estado de So Paulo e o dominou a suposta explicao racional
para a novela. E a atribuio a um domnio no conhecido Le rgne de lhomme est
fini (p. 933) converge para a ideia de que o subconsciente, os fantasmas da mente
sobrepujaram a razo humana. Aprs lhomme, le Horla. A nica sada, para o
protagonista de Maupassant, o suicdio: Alors... alors... il va donc falloir que je me
tue, moi!...,444 vendo nisso, o fim do outro mas, como em Willian Wilson, de Poe,
o prprio fim que est em jogo.445 Na novela de Maupassant, a cena do incndio da
casa do protagonista, em que morrem seus empregados, simboliza o extermnio dos
homens e a incerteza sobre o fim do Horla.
439
325
Enquanto Le Horla se funda nas diferenas desse ser com o ser humano, o
fantstico do outro Paulo Alencastro gerado sobre a excessiva semelhana. No entanto,
ambos so consumidos pela sensao de que o outro quer tomar seu lugar, j assumindo a
casa de um e a vida literria e amorosa do outro. Acabam num outro quarto (do hotel, em
Maupassant; do hospital, e Gasto Cruls), com a certeza de no os terem matado: Non...
non... sans aucun doute, sans aucun doute... il nest pas mort...; Para mim, o outro est
gravemente ferido, e est aqui. Ainda ontem, quando eu ia para a sala de curativos, num
carrinho, ao passar pelo corredor, ouvi algum que gritava com a minha voz.446
evidente que Gasto Cruls cria uma narrativa inovadora sobre o tema do
duplo, ainda que recupere muitos elementos de Le Horla e de William Wilson. O
afrontamento de Paulo Alencastro com seu ssia, com quem dialoga, e de quem recebe
a seguinte resposta, sobre escreverem um livro sobre o mesmo assunto, parece uma
resposta ao leitor de Poe, Maupassant e do prprio Gasto Cruls:
Mas, meu amigo, as idias andam no ar e os assuntos, at que sejam
aproveitados, no so de propriedade de ningum. O senhor est com mdo que os
nossos livros saiam iguais? De fato, estou escrevendo um romance, apoiado numa
grande documentao histrica e que ter como ncleo a tribo das Amazonas.
sse tambm o seu? Mas isso no tem nenhuma importncia. Pelo contrrio. Ser
at curioso. O senhor no vai dizer que o seu entrecho seja o meu, que as minhas
personagens sejam as suas.447
446
MAUPASSANT, Guy de. Op. cit., p. 938. CRULS, Gasto. Op. cit., p. 298. Grifo do autor.
Idem, p. 297.
448
ARARIPE JNIOR, Tristo de Alencar. Romancistas, o demonismo no romance... Movimento
literrio de 1893. Obra crtica de Araripe Jnior. Org. e dir. Afrnio Coutinho. Rio de Janeiro:
Ministrio da Educao e Cultura, Casa de Rui Barbosa. 1963, v. 3. p. 166 e ss.
449
Cf. a seguinte antologia, que confirma o ocaso de diversos textos fantsticos, esquecidos do pblico e
da crtica brasileira: BATALHA, Maria Cristina (Org.). O fantstico brasileiro: contos esquecidos. Rio de
Janeiro: Caets, 2011.
450
MAIA, Cludio Silveira. Gasto Lus Cruls: uma nova recepo. Op. cit., p. 54.
447
326
7.3 O escritor-mdico
Histria puxa histria, e foi por a que me veio a
tentao de contar-lhe tudo.451
Diletante, com certa vocao literria, Gasto Cruls dividiu-se entre escrever
para os amigos como se verificam as dedicatrias presentes em cada conto dos dois
primeiros volumes e para dar vazo s provocaes literrias que lhe inspiraram
diversas obras da literatura universal o que se prova com as epgrafes que ps na
cabea de cada um dos contos desses primeiros livros. Leitura diversificada, de Rabelais
a Molire, de Proust e a Maeterlinck, entre os francfonos, sem esquecer outras obras
clssicas como a Bblia, peas de Shakespeare ou de autores brasileiros como Euclides
da Cunha. Maupassant teve tambm o seu lugar predileto na biblioteca desse escritormdico, atrado em especial pelo contador tradicional e pela forma do conto
surpreendente, em que bem cabiam o gnero fantstico, os temas mrbidos de sua
preferncia e as sadas inesquecveis. Seu mdico-personagem mais um narrador
benjaminiano que tem o que contar,452 seguindo a tradio tambm do narrador que
prorroga a morte, como a Xerazade, de As mil e uma noites, ou que usa o ato de narrar
para aliviar as dores, segundo Walter Benjamin, descrito no texto Narrar e curar.
[...] A cura pela narrao, conhecemos das frmulas mgicas de Merseburg. Elas
no apenas repetem a frmula de Odin, mas narram o assunto que deu margem a
que ele utilizasse pela primeira vez a frmula. Tambm se sabe que a narrao que
o doente faz ao mdico no incio do tratamento pode tornar-se o comeo de um
processo de cura. E a se coloca a pergunta, se a narrativa no pode constituir o
453
clima adequado e a condio mais propcia de uma cura.
Seus narradores usam de sua profisso no s para relatar casos conhecidos que
possam servir de exemplo, para a cura do ouvinte, como para dar vazo s suas
prprias obsesses e revelar crimes ou mortes trgicas que ocultam, mostrando em si
mesmos seres que requerem cuidados.
Nada genial, mas nada tambm inteiramente medocre, conforme a expresso
de Edgard Cavalheiro,454 acreditamos ainda que necessria a reviso deste escritor e
451
CRULS, Gasto. Carta de outro naipe. Contos reunidos. Op. cit., p. 302.
Para ele, tanto as pessoas que viajam, como os caixeiros, quanto as que ficam, como os mestres
artesos, trocam experincias e conselhos por meio da arte de narrar, uma faculdade que, a seu ver,
estava em vias de extino. BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios
sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 197-201.
453
BENJAMIN, Walter. Erzaehlung und Heilung. Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972. p.
430. Conhecemos o texto na traduo no publicada da Profa. Dra. Adlia Bezerra de Menezes.
454
CAVALHEIRO, Edgard. Evoluo do conto brasileiro. Boletim Bibliogrfico, So Paulo, jul./set.
1945, p. 113.
452
327
sua presena neste trabalho se faz fundamental, uma vez que ainda revela uma releitura
da obra maupassantiana. A expresso equilibrada e clara e a observao racional sobre a
variante fantstica so trabalhadas num estilo medido, que persegue o termo justo, o que
s vezes o faz recair em rebuscamento puro. Tudo nele intelectualmente bem
equilibrado e solidamente construdo,455 definiu Cavalheiro no artigo citado. Para
Litrento, tanto nos romances quanto nos contos, o que parece mais ocupar este escritor
a atrao do misterioso e do fantstico em unio com a vida de sobriedade vulgar,456
pelo crime e pela loucura, onde guarda, assim como Maupassant, tambm a objetividade
e o ponto de vista racionalista. Seu interesse est em enredar o leitor pelo mistrio do
assunto primeiramente por meio do exotismo do espao (nos primeiros livros), depois
pelo mistrio da psicologia humana (em Histria puxa histria, de 1938) e pela
narrao ficelle, de final surpreendente, mas simples.
Sem buscar intencionalmente uma expresso prpria, talvez sem a preocupao
da celebridade, esse escritor alcanou o conhecimento do pblico e o reconhecimento da
maior parte da crtica de seu tempo, mas acabou, como Medeiros e Albuquerque,
bastante esquecido. Entretanto, melhor que o escritor pernambucano, o carioca produziu
contos fantsticos mais bem realizados e, no conjunto, sua obra foi mais feliz, na
medida em que sua produo se faz menos variegada e mais centrada. Podemos, enfim,
definir Gasto Cruls como um amador que se dedicou a um propsito literrio j
ultrapassado, para a sua poca, mas que rendeu homenagem, revisitando clssicos como
Maupassant, segundo um critrio bastante prprio. Mais uma vez se demonstra a
presena desse contista modelar, resistente ao tempo.
455
456
Idem.
LITRENTO, Oliveiros. Op. cit., p. 193.
328
CAPTULO 8
Um Maupassant azul: Ribeiro Couto e o conto de seduo457
[...] guardo com pudor a profunda meiguice dste
minuto. Ningum sabe. Pisando no cais, meu
primeiro passo como uma carcia. Tomo posse
de um corpo maravilhoso.458
329
O mesmo crtico considera que, em Ribeiro Couto, tudo se lhe dilue em poesia
e, mais adiante, diz que Ribeiro Couto no momento um dos primeiros manejadores
da prosa brasileira.464 Se a metfora do brasileiro como um Maupassant azul fora
um conclio entre o dom do narrador compadecido que relata fatos cruis e no julga
suas personagens, por outro lado, espanta tanto quanto a associao de uma velha ama
com um bomio de caf. No entanto, se pensarmos no largo espectro de cores dos
assuntos e a tipologia das personagens narradoras de Maupassant, possvel
compreender a alegoria criada pelo crtico brasileiro, conforme faremos ver pela anlise
de O crime do estudante Batista e de outros contos de Ribeiro Couto.
O largo elogio de Agripino Grieco encontrou eco na opinio de Austregsilo de
Atade, que julgou Ribeiro Couto o melhor entre os contistas do primeiro Modernismo:
a partir de 1922, j possvel identificar a linha modernista de que Antnio de
Alcntara Machado e Mrio de Andrade, Ribeiro Couto e Menotti-del-Picchia foram a
primeira legio, sendo que dos quatro reservo a Ribeiro Couto a posio mais
461
Romance que foi adaptado em novela televisiva, em 1979 e em 2004, por Benedito Ruy Barbosa.
Cf. sobre esse livro o artigo de Sandra Nitrini, Viagens reais, viagens literrias: escritores brasileiros
na Frana. In: Literatura e Sociedade, So Paulo, n. 3, p. 51-61, 1998.
463
GRIECO, Agrippino. Ribeiro Couto. Gente nova do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1935. p.
386-7. Grifo nosso.
464
Idem, p. 395.
462
330
construtiva no conto. Para ele, Ribeiro Couto vai sempre mais longe e mais fundo.
Fere alto e forte.465
J Alberto Venancio Filho diz que obrigatria a referncia a Maupassant e a
Machado de Assis, mas que em Ribeiro Couto essas referncias no aparecem to
ntidas.466 Como disse Srgio Buarque de Holanda, na prpria vida, sobretudo em
sua experincia pessoal, no nos livros ou na pura fantasia, que ele vai buscar a
substncia de suas histrias, das quais Ribeiro Couto soube retirar autnticas obrasprimas.467
Com seus contos de intenso lirismo e de to funda sensibilidade, Herman
Lima o considerou um renovador do conto [...] pelo teor potico de suas pginas,
impregnadas do mesmo sentimento que empresta s narrativas de Katherine [Mansfield]
aqule tom de irrealidade transfiguradora do cotidiano [...].468
Ainda que mais de um crtico indique sua semelhana com a escritora
neozelandesa ou com o russo Tchekhov (o que faz Srgio Buarque de Holanda),469 ao
realismo francs que Ribeiro Couto se reporta em alguns de seus contos, como A
amiguinha Teresa e Clube das esposas enganadas (em que cita Balzac), Largo da
Matriz (menciona A educao sentimental, de Flaubert, e o final do conto passa-se em
Paris) e, finalmente, O crime do estudante Batista em que citada a antologia de
contos Boule de Suif. Srgio Buarque de Holanda apontou tambm outros dilogos
literrios de Ribeiro Couto. O historiador, em sua verve antinaturalista frequente,
observou que o autor da Casa do gato cinzento portanto um realista, mas que o seu
realismo no , porm, o realismo anti-higinico de Zola e da escola de Medan; mas o
realismo fino e aristocrtico de Jean de Tinan, de Marcel Proust e de Max Jacob.470
Enfim, tentando apresentar a obra de Ribeiro Couto, a crtica usou de diversos
referenciais para medir sua importncia, mas nenhum restringe, de fato, os seus
processos criativos. Seus contos e novelas retratam histrias passadas na capital, Rio de
Janeiro, ou no interior do estado, bem como no sul de Minas. Suas personagens
465
331
COUTO, Ribeiro. O crime do estudante Batista. So Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1922. p. 6. Em
todas as citaes, mantivemos a grafia do original.
472
Idem, p. 13.
473
Idem, p. 14 e 15.
474
Le lys rouge um romance de Anatole France, publicado em 1894. Dun pays lointain um volume de
contos publicado por Rmy de Gourmont, em 1898.
332
333
frisou que amo acima de mim.479 O amigo do pai diz que precisa ter pacincia,
promete uma posio, mas Batista nada consegue. Depois, vai ao colega Clodomiro,
tentar alguma coisa no Dirio do Rio, mas sai humilhado.
A progresso da misria e do dio de Batista ao livreiro, por sua repetitiva
necessidade de vender diariamente aqueles livros que so pedaos de si mesmo; e, por
fim, uma carta recebida da irm menor, relatando a pobre vida que a famlia levava em
Gois e pedindo-lhe dinheiro, confluem para o desfecho trgico do conto. Em uma
nsia frentica, meio selvagem,480 num dia de chuva, Batista leva ao sebo tudo o que
possua, mais de trezentos livros, colocados num carrinho e cobertos por um oleado. O
judeu oferece a msera quantia de quarenta mil ris. Batista ento tomado de um
impulso e estrangula o livreiro. Enquanto tem as mos no pescoo do homem, todas as
suas expectativas passam pela mente, mas ele no se arrepende do ato. O autor ainda
coroa o final da narrativa com uma curiosa ironia, colocando o prprio Batista no lugar
do vendedor de livros: antes de abandonar sua vtima e levar o dinheiro, Batista atende a
uma criana, que entra na loja, pede um lpis e nada percebe. S ento o jovem pe o
chapu e vai embora, sob a chuva.
A decada de Batista, que passa a pensar como um bandido (ningum tinha
visto, fugiria), apresentada por um narrador irnico, revela o drama de um jovem
desiludido que, no perodo de um conto, perdeu tudo: o pai, os estudos, uma carreira, a
honradez, alm de seus livros. Como nos romances, sua histria se imiscui de Julien
Sorel, de Stendhal; Lucien de Rubempr e Rastignac (um arrivista bem-sucedido), de
Balzac; bem como a dos diversos arrivistas de Maupassant, como Georges Duroy, de
Bel-Ami (tambm bem-sucedido). Sua perdio, como tambm a de Boule de Suif (que
o estudante leu), provm dos sucessivos ultrajes que sofre ao tentar guardar seus
princpios do bem e da justia. Ao vender seus livros, violando assim seus bens mais
preciosos, uma parte de si, Florncio Batista (cujo nome remete tambm s Flores do
Mal) acaba transferindo todo o seu dio ao sujeito que promove a sua separao desse
universo que lhe era ideal e feliz, no incio da narrativa. As circunstncias e o meio
decidem sobre si, da pior maneira possvel. Como em Boule de Suif.
A repercusso desse conto no foi pouca no entorno de Ribeiro Couto. Sobre o
efeito de O crime do estudante Batista, Rodrigo Melo Franco de Andrade opinou na
poca em que foi publicado:
479
480
334
[...] o primeiro conto de seu livro recente, o que lhe deu o ttulo e , sem dvida, o
mais vivo e impressionante do volume.
a histria dolorosa do Crime do estudante Batista, em que o tom singelo e
natural da narrativa concorre poderosamente para aumentar-lhe a intensidade
dramtica. No h, a, frases de efeito ou descries estilizadas de paisagens e
estados de alma. Nenhuma eloqncia. E quando o sr. Ribeiro Couto chega ao
episdio capital desse conto, o de um assassinato, experimenta-se a violenta
impresso de viver aquele momento trgico. Esses perodos sem ritmo, sem
esmeros de vernculo, sem um toque literrio, so cheios de uma profunda verdade
humana. Raras sero as pginas de nossa literatura de hoje que lhes possam ser
comparadas.
Todo o conto, alis, admirvel pela lucidez dolorosa da observao, a sobriedade
rara da forma e a fora de vida que o anima.481
481
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. A prosa do senhor Ribeiro Couto. O Dia. Rio de Janeiro,
17/02/1923. Citado de ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e seu tempo. Rio de Janeiro:
Fundao Nacional Pr-Memria, 1986. p. 220-1.
482
Idem, p. 219-21.
483
CAVALHEIRO, Edgard. Op. cit., p. 116.
335
Lida a novela de Couto, entrou para a sala mais um o judeu mulato do Catete, tipo
de tal vida que uma suspeita me tomou: Este diabo existe. No pde ser fico. Ha
nele traos que se no inventam. E se existe, hei de v-lo.484
Em A denncia do sangue, Benjamin Pereira, narrador heterodiegtico, inserenos na trama, que ter mltiplos pontos de vista. Durante uma viagem de navio,
reencontra um amigo de infncia e juventude, Carlos Passos, agora mdico. Assim
484
LOBATO, Monteiro. Duas cavalgaduras. Negrinha. 3.ed. So Paulo: Brasiliense, 1950. p. 191.
Idem, p. 197-8.
486
Idem, p. 200.
485
336
como em Un sage (1883, Les Surs Rondoli), os dois amigos estavam um pouco
afastados pelas circunstncias: no conto de Maupassant, o casamento de um dos
personagens, Ren Blrot; no de Ribeiro Couto, a atuao de profisses diversas em
Estados diferentes. Nos dois textos, os colegas tm intimidades que lhes permitem
voltar a saber tudo um do outro. Tambm em A denncia do sangue, do outro (o
narrador homodiegtico) que provm o caso digno de ser contado, um tanto exposto ao
ridculo: Carlos, tendo-se especializado no tratamento da sfilis, nutre enorme pavor
pela doena e averso vida bomia. Preferia a companhia dos livros de prostitutas e,
por isso, mantinha relaes com a mesma moa desde a poca de estudante, pois sabia
que ela no havia tido outros namorados.
No conto de Ribeiro Couto, os dois amigos se reencontram aps seis anos de
afastamento. O primeiro narrador, Benjamin, vai Bahia para o recebimento de uma
herana (elemento tambm comum nos contos de Maupassant, como Le testament e
Le legs, e que reaparece em A herana, de A casa do gato cinzento, do autor
brasileiro). Carlos e Benjamin conversam sobre isso, no bar do navio, e da obtemos a
histria interna ao conto, por meio da fala de Carlos. Seu relato, como em alguns contos
de Maupassant, entrecortado por pausas para a descrio da paisagem vista do navio.
Carlos narra como herdou a clientela de seu antigo mestre, Dr. Soeiro, especialista em
sfilis e sifiltico, sem prognie. Como o jovem era ntimo do velho mdico e de sua
jovem esposa, o mestre, de tempos em tempos, fazia-lhe um exame de sangue, movido
por cimes e j alucinado pelos sintomas da doena. Explica-se, assim, o ttulo do
conto: movido por sua ideia fixa, o mestre esperava obter uma denncia da traio por
meio do diagnstico da doena. Nesse momento, que o clmax tanto do conto de
Ribeiro Couto quanto da histria de Carlos, este narrador interrompe o fluxo do relato,
usando-se ironicamente da metalinguagem; em seguida, o narrador heterodiegtico,
Benjamin, quebra tambm a expectativa de nossa leitura, que se prorroga com mais uma
descrio:
Chegando a este ponto da narrativa, o meu querido amigo de infancia parou para
perguntar-me:
Est interessante o caso?
Eu esperava o resto, de olhos fixos, todo atteno, os cabellos ao vento, no
tombadilho oscillante do vapor. De baixo, do poro, vinha o rumor surdo e
monotono das machinas. E a hlice, atrz, dava a impresso de que golfes dgua
estivessem a se despenhar nas ondas, incessantemente.
Continue.487
487
COUTO, Ribeiro. A denncia do sangue. O crime do estudante Batista. Op. cit., p. 63.
337
Carlos conta-lhe que D. Eullia o teria aconselhado a afastar-se deles, mas que
nada foi preciso, pois o velho mdico enlouquecera de vez e tivera de ser internado,
morrendo no ms seguinte. O esprito prtico e a ambio de Benjamin estimulam no
amigo o desejo pela viva, ultrapassando a ojeriza doena. o final do conto:
Alm da clientela, herdars a mulher do Dr. Soeiro, que naturalmente
millionria...
Deu um pulo na cadeira de lona:
Que sacrilegio! Uma senhora que me trata como um filho!
Acredito. Mas que te ama! Apezar da doena cerebral do Dr. Soeiro, o ciume
delle, que no era homem de natureza ciumenta, devia ser baseado numa
observao longa e fundamentada... Essa mulher ama-te.
Ora, que absurdo! Depois...
Fez um silencio discreto. E, suavemente:
Ella doente.
No dizes que linda? Linda e millionaria...
Mas doente. Com um marido como o dr. Soeiro, coitada!
No tem importancia. Demais, j tempo de acabares com essa infantilidade do
teu medo... de um ridculo liquidante. Principalmente num especialista.
Elle sorriu:
Tens razo.
E fomos tomar um grog no bar do navio, saude do lindo futuro do meu querido
inspector...488
COUTO, Ribeiro. A denncia do sangue. O crime do estudante Batista. Op. cit., p. 65-6. Numa edio
pstuma, trocou-se grog por aperitivo, que de fato mais usual. Resta saber se a mudana foi feita por
indicao do autor, em alguma edio intermediria, ou se coube ao organizador de seus contos. Cf.
COUTO, Ribeiro. Melhores contos de Ribeiro Couto. Sel. Alberto Venancio Filho. So Paulo: Global,
2002. (Coleo Melhores Contos). p. 59.
489
preciso lembrar que esse dado da vida de Maupassant era largamente conhecido no fim do sculo
XIX e incio do XX, no Brasil, uma vez que a sua primeira crtica no Brasil o divulgou no momento de
sua morte, em 1893, e nos anos subsequentes.
490
MAUPASSANT, Guy de. Un sage. Contes et nouvelles. Op. cit., t. I, p. 1091.
338
com un aspect dhercule mondain. Aps o jantar, Pierre e Blrot deixam os dois
amantes a ss e vo dar uma volta. Blrot, muito disposto, justifica-se: Ctait trop bte
de se laisser crever comme a, la fin e convida o amigo: Si nous allions voir des
filles, hein?.491
Conforme se observa, o esprito prtico e o carter sedutor das personagens de
Ribeiro Couto e de Maupassant as aproximam. O dom de convencimento dos
narradores-personagens so condizentes com seu esprito de vida. Pierre, que no
gostava de casamentos e havia se afastado de Blrot aps a unio deste, aconselha o
amigo segundo sua filosofia, de que o outro passar a compactuar. Benjamin, que
tambm ia desfrutar de uma herana, instiga Carlos no interesse pela viva, D. Eullia.
Ao comentar Largo da matriz e outras histrias, Srgio Buarque de Holanda
mencionou a secreta preferncia [de Ribeiro Couto] pelos ambiciosos, que vimos
neste conto e em O crime do estudante Batista.492 Em A denncia do sangue,
observamos homens oportunistas e sedutores, que vo buscar heranas, num conto que
se forma numa conversa entre amigos, com pausas para descries. So diversos os
elementos dos contos maupassantianos, reunidos nesse texto, que ainda aborda os
efeitos da doena que acometeu o escritor francs.
igualmente possvel que, publicando pela editora de Monteiro Lobato, Ribeiro
Couto se sentisse vontade para publicar um ou outro conto que seguisse a tradio do
Meu conto de Maupassant. A mesma leitura pardica ocorre na retomada de
elementos maupassantianos, reunidos num mesmo texto, como em A conquista, que
recupera em diversos pontos Linconnue (de 1885, inserido em Monsieur Parent).
Tanto este conto de Maupassant quanto o de Ribeiro Couto se constituem num
ritual masculino entre amigos, que narram histrias sobre encontros amorosos fortuitos.
On parlait de bonnes fortunes et chacun en racontait dtranges: rencontres
surprenantes et dlicieuses, en wagon, dans un htel, ltranger, sur une plage. Les
plages, au dire de Roger des Annettes, taient singulirement favorables
lamour.493
339
Mais voil, celles quon chrirait perdument, on ne les connat jamais. Avez-vous
remarqu a? cest assez drle! On aperoit, de temps en temps, des femmes dont la
seule vue nous ravage de dsirs. Mais on ne fait que les apercevoir, celles-l. Moi,
quand je pense tous les tres adorables que jai coudoys dans les rues de Paris,
jai des crises de rage me perdre. O sont-elles? Qui sont-elles? O pourrait-on les
retrouver? les revoir? [...]494
Logo comea a narrao da histria: Barbosa relata que estava parado, espera
num ponto de bonde, quando foi atrado por uma bela moa que, curiosamente, estava
acompanhada de uma velha. Ele foi seduzido pela jovem, que o conquistou com um
olhar provocante, gerando-lhe uma enorme expectativa e um grande desejo. Como
hipnotizado, ele a seguiu pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, desde o Largo da
Carioca, passando pelos Arcos da Lapa, at o jardim do Campo de Santana, numa
caminhada de mais de uma hora, acreditando que ela carregava-me para algum amavel
retiro.496
Impaciente, Barbosa diz que interrogou a me da moa, que os acompanhava, e
ela ento revelou a obsesso ertica da filha:
A minha filha louca... A sua loucura d para andar assim pela cidade a olhar os
homens daquella maneira... No tem remedio. Tenho feito tudo para que ella sare.
J vi que mesmo impossivel. S por um milagre, dizem os medicos. Ento tenho
que me submetter vontade della: obriga-me a comprar vestidos caros e sae pela
rua como uma pessoa que pde. No entanto, ns no podemos. No imagina os
meus sacrifcios! E como si eu no a acompanhar capaz de soffrer um desastre, ou
encontrar quem abuse della, tenho que me sujeitar a este papel que o senhor v...
Est ouvindo?497
494
MAUPASSANT, Guy de. Linconnue. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 443.
COUTO, Ribeiro. A conquista. A casa do gato cinzento. So Paulo: Monteiro Lobato, 1922. p. 169.
496
Idem, p. 175.
497
Idem, p. 177-8.
495
340
A descrio da passante difere muito nos dois contos: em Ribeiro Couto ela
toda o olhar (tinha olhos luminosos, cada olhar transmittia o mysterio de um
fluido);499 enquanto em Maupassant ela extremamente detalhada, revelando um
padro de gosto muito particular do XIX e de Maupassant , que servir construo
da figura estranha da moa: Ctait une brune, une brune grasse, avec des cheveux
luisants, mangeant le front, et des sourcils liant les deux yeux sous leur grand arc allant
dune tempe lautre. Un peu de moustache sur les lvres faisait rver.... O seu olhar
tambm caracterstico: Ce ntait pas un il, mais un trou noir, un trou profond
ouvert dans sa tte, dans cette femme, par o on voyait en elle, on entrait en elle. Oh!
ltrange regard opaque et vide, sans pense et si beau!; Elle me regardait fixement,
de son il trange et mort.500
Ambos olhares revelam um abismo em que os narradores caem, vinculado a uma
alucinao dos sentidos, e prenunciam uma desiluso. Vera Lins, que estudou o olhar
em Ribeiro Couto, comea seu estudo sobre a poesia do escritor brasileiro com um
comentrio sobre o conto A conquista. Sua comparao parte, entretanto, de une
passante, de Baudelaire. Para a estudiosa, no conto, narra-se o percurso de um flneur
fascinado por um par de olhos na travessia do centro da cidade e, como no poema de
Baudelaire, olhar, andar e desejo compem imagem e configuram a cena.501 Ela
tambm menciona o aspecto da narrativa tradicional:
Uma narrativa tradicional, armada a partir de um caso contado numa roda de
amigos, guarda um final-surpresa com o absurdo irrompendo no meio da multido:
o que parece a conquista de uma mulher sedutora se mostra iluso. O olhar da
moa, que atrai e promete, vazio, vai se revelar uma mania, uma loucura. O que
anunciado pela presena grotesca da velha que a acompanha na sua magreza
decrpita, maquinalmente andando a seu lado. O grotesco, a sensao de mal-estar
vai tomando conta da narrativa, em que pouco acontece, a no ser uma caminhada
que vai se tornando infindvel, levada pelo fascnio do olhar.502
341
MAUPASSANT, Guy de. Linconnue. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II, p. 444.
Idem, p. 446-7.
342
moa do conto de Ribeiro Couto, ensandecida por sua obsesso ertica, e por sua velha
me, que tenta proteg-la das consequncias de sua prpria fria.
Sabemos que encontros amorosos fortuitos do margem a diversos outros contos
de Maupassant, como Le pre (1885) um encontro num nibus leva a uma
paternidade , Linconnue (1885) tambm um caso que se inicia num encontro num
ponto de nibus , Lenfant (1882) e Bombard (1884). E a seduo feminina, que
conquista por um olhar (ou pelo sinal, que faltou conquistadora brasileira) assunto
de Le signe (1886) e Joseph (1885). Alm de Linconnue, A conquista, de
Ribeiro Couto, est muito prxima de outros contos de seduo enquadrados, como
Nuit de Nol (1882) e Les tombales (1891), em que homens contam a amigos como
foram atrados para um grande engano ertico.
Em Nuit de Nol, o narrador, Henri Templier, diz aos ouvintes que, no ltimo
Natal, como se sentia sozinho, buscou uma profissional disponvel para passar a noite
com ele; achou-a um pouco gorda, mas de nada desconfiou. Ela, de sua parte, acabou
conseguindo mais do que o dinheiro de um programa: grvida, a prostituta deu luz na
casa do personagem-narrador; ele custeou as primeiras semanas de cuidados com a
parturiente e com o beb e ainda a revia sempre, pois ela o procurava, dizendo-se
apaixonada.
Em Les tombales, lorateur du dner,505 em mais uma roda de amigos, conta
sua singulire aventure: acostumado a flanar por Paris, Joseph de Bardon confessa
que tem o hbito de entrar nos cemitrios para meditar. Como uma ex-amante falecida
jazia no Cemitrio de Montmartre, num desses passeios, ele entrou para visitar seu
tmulo. Nas ruas do cemitrio, encontrou uma bela mulher, de luto, chorando prximo
dele, e que se dizia viva recentemente. Joseph de Bardon a consolou e ela foi se
acomodando, at que ele a convidou para jantar e depois acabaram dormindo juntos na
casa dela. Cette liaison noue sur les tombes dura trois semaines environ. Mais on se
fatigue de tout, et principalement des femmes.506 Acabado o relacionamento e passado
algum tempo, ao visitar novamente o tmulo da ex-amante, Joseph de Bardon cruzou
com a mesma mulher, sendo amparada por outro sujeito, que certamente acreditava ser
ela uma pobre viva precisando de consolo. Elle me vit, rougit, et, comme je la frlais
en la croisant, elle me fit un petit signe, un tout petit coup dil qui signifiaient: Ne me
505
506
MAUPASSANT, Guy de. Les Tombales. Contes et nouvelles. Op. cit., t. II. p. 1238.
Idem, p. 1244.
343
reconnaissez pas, mais qui semblaient dire aussi: Revenez me voir, mon chri.507
Este outro narrador de Maupassant, ao contrrio do de Ribeiro Couto, no obtm uma
resposta para suas questes sobre aquela estranha mulher: tait-elle unique? Sont-elles
plusieurs? Est-ce une profession? Fait-on le cimetire comme on fait le trottoir?. O
fascnio de Maupassant pelo universo feminino permanece sem respostas.
Esses estranhos e cmicos casos de seduo, como em Ribeiro Couto, levam a
sondagens do amor e da mulher comuns na obra de Maupassant, que tambm tinha em
Baudelaire um paradigma. Tanto o escritor paulista quanto o normando oferecem um
olhar sobre os vcios e as taras, sem abusar da anlise psicolgica. Ao tratar do escritor
brasileiro, Srgio Buarque de Holanda observava que:
Seus processos so sempre os da sugesto, como nos poetas, nunca os da anlise,
como nos romancistas. Os personagens no chegam a definir-se extensamente e
sobre um plano abstrato. Esboam-se apenas em seus sentimentos mais fundos, em
suas aspiraes primordiais, em seus impulsos dominantes, e ainda assim o quanto
baste para que se possam criar situaes determinadas, que o autor previu
rigorosamente.508
A seduo est nos temas diletos para seus contos, mas tambm no modo de
narr-los. Agripino Grieco captou essa caracterstica de Ribeiro Couto, que o vincula
aos demais contistas aqui estudados: Numa prosa fluida, correntia, o sr. Ribeiro Couto
tudo sabe contar, com uma attraco por assim dizer de presena, como um conversador
fascinante.509 Austregsilo de Atade d seu depoimento, igualmente a favor da
fluncia e oralidade dos textos de nosso autor: O estilo da prosa escrita de Ribeiro
Couto o mesmo de sua conversa e eu, uma vez, ouvi-o narrar A Casa do Gato
Cinzento da maneira lmpida, corrente e saborosa que depois saiu no pequeno
volume.510
Largo da Matriz, por exemplo, rene contos-impresses de um narrador que se
lembra da infncia passada em torno de um espao comum, o largo referido no ttulo,
em que cruzava com pessoas simples, pescador, boleira, professor, colegas, alguns
deles com dons de narradores, como Balbino, ou a Sinh Maria do Bolo, que Sabia
507
MAUPASSANT, Guy de. Les Tombales. Contes et nouvelles. Op. cit., p. 1245.
HOLANDA, Srgio Buarque de. Contos. O esprito e a letra. Op. cit., p. 341.
509
GRIECO, Agrippino. Ribeiro Couto. Gente nova do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1935. p.
385.
510
ATADE, Austregsilo de. Op. cit., p. 179.
508
344
511
COUTO, Ribeiro. Sinh Maria do Bolo. Largo da Matriz e outras histrias. Rio de Janeiro: Getlio
Costa, 1940. p. 130.
512
COUTO, Ribeiro. Preldio pernambucano. Largo da Matriz e outras histrias. Op. cit., p. 147.
513
Ribeiro Couto trazia ao gnero [conto] a sua sensibilidade de poeta. LIMA, Alceu Amoroso. A
evoluo do conto no Brasil. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Curso de conto: Conferncias
realizadas na Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 1958. p. 27.
514
HOLANDA, Srgio Buarque de. Contos. O esprito e a letra. Op. cit., p. 340-1.
345
andar arrastado, nas sus [sic] cs, no seu riso, nas suas amarguras da vida, escondia
todo um pedao da histria local a histria da nossa terra praiana.515
Seja como uma velha ama ou como um bomio de caf (conforme Agripino
Grieco), o contista Ribeiro Couto, tanto quanto Guy de Maupassant, seduz seu leitor por
meio de seu dom de narrao e suas histrias supreendentes. Assim, podemos
aproximar os dois autores por suas personagens sedutoras, como Sinh Maria do Bolo e
Clochette, Benjamin e Pierre, Barbosa e Roger des Annettes, seja por suas narraes,
seja por seus olhares. Ou por seus livros, como Florncio Batista.
515
COUTO, Ribeiro. Sinh Maria do Bolo. Largo da Matriz e outras histrias. Op. cit., p. 133.
346
CONCLUSO
Nenhuma ponta de ferro pode atingir o corao
humano to gelidamente como um ponto
colocado no lugar certo.1
BABEL, Isaac. Guy de Maupassant. Contos escolhidos. Trad. Ceclia Prada. So Paulo: A Girafa, 2008.
p. 526.
2
ANDRADE, Mrio de. Contos e contistas. O empalhador de passarinho. 3. ed. So Paulo: Martins;
Braslia: INL, 1972. p. 8.
3
O prprio Mrio, no inqurito que menciona em Contos e contistas, elegeu entre os melhores contos
brasileiros Meu ssia, de Gasto Cruls; A vingana da peroba, de Lobato; A Nova Califrnia, de
Lima Barreto; Boi velho, de Simes Lopes Neto; e Baianinha, de Ribeiro Couto. Cf. RUFFATO,
Luiz. As escolhas de Mrio de Andrade. Mrio de Andrade: seus contos preferidos. Rio de Janeiro: Tinta
Negra, 2011. p. 7-13.
347
Carta de 17 de janeiro de 1877, cujo destinatrio provvel Paul Alxis. MAUPASSANT, Guy de.
tudes, chroniques et correspondance. Ed. de Ren Dumesnil. Paris: Librairie de France/Grnd, 1938. p.
224-5.
5
BENHAMOU, Nolle. Faiseur ou prcurseur. Magazine Littraire, Paris, n. 512, oct. 2011, p. 59.
6
Richard Fusco comenta a importncia dessa tendncia na obra de Maupassant: Thus, the challenge to
Maupassant as writer was not to create parallel realities in light of one artistic theory or another, but to
report life as it was. As a critic rather than creator, he could select, isolate, focus, and dilate only those
aspects of life that interested him for the moment without excessive concern about how they belonged in
any larger philosophical context. FUSCO, Richard. Maupassant and the American short story: the
influence of form at the turn of the century. [s.l.]: The Pennsylvania State University Press, 1994. p. 97.
348
Carta de 10 de maio de 1917. LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. Obras completas de Monteiro
Lobato. So Paulo: Brasiliense, 1964. v. 2. p. 137.
8
PERRONE-MOISS, Leyla. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. Vira e mexe nacionalismo:
paradoxos do nacionalismo literrio. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 51.
9
Idem, p. 67.
349
narrativo, esto includas questes formais e temticas como o uso do fait divers para a
construo do conto, a narrativa em camadas ou em moldura; o aspecto regional, para o
que contribuem o espao e a oralidade dos contos normandos.
A narrativa oral recuperada carreia tradicionalmente consigo a mistura de
discursos (o dialeto normando caracterizado por Maupassant; o interiorano traado por
Lobato e Viriato Correia) e de gneros, bem como o gosto popular pela temtica ertica.
Segundo Eric Auerbach, que, como dissemos na introduo, aponta a origem de
algumas novelas do Decameron em narrativas medievais francesas, como os fabliaux,
Bocaccio gosta deste jogo com as variadas locues que tm sua origem na fora
enrgica e inventiva da fala popular e ele observa a uma ironia maliciosa de
Bocaccio, assim como uma malcia sutil nas novelas.10
O conto compartilhado e a narrativa enquadrada supem um conceito de
literatura comparada, no sentido de uma universalidade da literatura e do no
pertencimento autoral. Diversos escritores encantaram-se com a possibilidade de narrar
histrias comuns, colocando-se no lugar de personagens que carregam em si a memria
e a tradio. A situao primeira, de um grupo reunido para trocar experincias,
mantm-se, seja no ambiente rural, seja no urbano (a velha ama contadora ou o bomio,
segundo Agripino Grieco, no comentrio sobre Ribeiro Couto); seja entre nobres, seja
entre pessoas humildes. Para Walter Benjamin,
[...] o narrador figura entre os mestres e os sbios. Ele sabe dar conselhos: no para
alguns casos, como o provrbio, mas para muitos casos, como o sbio. Pois pode
recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que no inclui apenas a prpria
experncia [sic], mas em grande parte a experincia alheia. O narrador assimila
sua substncia mais ntima aquilo que sabe por ouvir dizer).11
A personagem que ouve a narrativa, por sua vez, est muito prxima do leitor
que l um conto breve, em que uma histria de vida contada, num tempo e num
espao delimitados. Ela simboliza esse leitor, ainda no estado de recepo, absorvido
pela intriga, que poder se tornar tambm narrador, ao relat-la a um colega.
Diversos aspectos de composio dos textos aqui estudados so elencados para
descrever o conto maupassantiano: o relato que parte de uma conversa informal; a
clareza da linguagem empregada; a inverso e a surpresa no final dos contos; a ironia e
10
AUERBACH, Erich. Frate Alberto. Mimesis: a representao da realidade na literatura ocidental. 3. ed.
So Paulo: Perspectiva, 1994. p. 192 e 195.
11
BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da
cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, v. 1). p. 221.
350
12
351
poque francesa no Brasil ou do momento que Bosi convencionou chamar de PrModernismo, entre final do sculo XIX e incio do XX. Os contos de Lcio de
Mendona foram publicados em livro ainda no perodo realista e os de Gasto Cruls, na
poca do Modernismo, mas, nos textos que abordamos, ambos se aproximam mais das
experincias pr-modernistas de Monteiro Lobato e Lima Barreto que de seus
coetneos. O fato de Monteiro Lobato ter sido editor de mais da metade deles (Lima
Barreto, Gasto Cruls, Medeiros e Albuquerque, Viriato Correia e Ribeiro Couto) j
resume em parte a proximidade esttica desses autores. Ribeiro Couto comenta Viriato;
Viriato, Medeiros; Lcio de Mendona dedica um conto a Medeiros; Lobato estuda um
conto de Ribeiro Couto; Lima Barreto, de Gasto Cruls. S Simes Lopes Neto escapa
ciranda.
No estamos longe de concluir que o modelo de conto de Maupassant mostrouse uma via de fcil divulgao de novos escritores, por meio de um valor reconhecido
pela crtica e pelo pblico. Isso o que expressa a teoria da esttica da recepo de
Jauss. Para o terico alemo:
Le rapport du texte isol au paradigme, la srie des textes antrieurs qui
constituent le genre, stablit aussi suivant un processus analogue de cration et de
modification permanentes dun horizon dattente. Le texte nouveau voque pour le
lecteur (ou lauditeur) tout un ensemble dattente et de rgles du jeu avec lesquelles
les textes antrieurs lont familiaris et qui, au fil de la lecture, peuvent tre
modules, corriges, modifies ou simplement reproduites. La modulation et la
correction sinscrivent dans le champ lintrieur duquel volue la structure dun
genre, la modification et la reproduction en marquent les frontires. Lorsquelle
atteint le niveau de linterprtation, la rception dun texte prsuppose toujours le
contexte dexprience antrieure dans lequel sinscrit la perception esthtique: le
problme de la subjectivit de linterprtation et du got chez le lecteur isol ou
dans les diffrentes catgories de lecteurs ne peut tre pos de faon pertinente que
si lon a dabord reconstitu cet horizon dune exprience esthtique intersubjective
pralable qui fonde toute comprhension individuelle dun texte et leffet quil
produit.
La possibilit de formuler objectivement ces systmes de rfrences correspondant
un moment de lhistoire littraire est donne de manire idale dans le cas des
uvres qui sattachent dabord voquer chez leurs lecteurs un horizon dattente
rsultant des conventions relatives au genre, la forme ou au style, pour rompre
ensuite progressivement avec cette attente [...]13
JAUSS, Hans Robert. Lhistoire de la littrature: un dfi la thorie littraire. Pour une esthtique de la
rception. Traduit de lallemand par Claude Maillard. Prface de Jean Starobinski. Paris: Gallimard,
1978. p. 56.
352
conto do romance, numa poca em que este gnero era ainda considerado um objetivo
comum.
Assim, ao evocar num ttulo (Lobato), num conto (Ribeiro Couto e Lobato),
numa epgrafe (Gasto Cruls), o nome de Maupassant, considerado j um mestre do
conto, esses escritores apresentam-se para o leitor em meio ao universo do artfice
francs ou querem de imediato que seu leitor realize uma operao de dilogo com a
obra dele, o que o alerta para um tipo de leitura, que, na maioria das vezes, recupera
somente em parte a contstica do autor de Boule de Suif. Eles transportam para seus
textos um vasto universo potico do conto e como na evocao musa que Henry
James fez ao mestre, citada na epgrafe de nossa introduo evocam para seus textos o
reconhecimento de uma esttica, por parte do leitor.
Nossa metodologia de leitura, parfrase e anlise dos contos, no procurou
esgotar a abordagem de seus diversos elementos para discusso. Afinal, intrnseca
prpria tarefa de leitura dos contos uma dificuldade de perfazer todo o seu contexto.
Mrio de Andrade comenta, em Contos e contistas, certo fastio de ler livros de
contos: A leitura de vrios contos seguidos, [sic] nos obriga a todo um esfro penoso
de apresentao, recriao e rpido esquecimento de um exrcito de personagens, s
vzes abandonados com saudade.14
Por meio da sugesto de Jos Verssimo, colocamos em confronto o conto Um
hspede, de Lcio de Mendona, com contos de Maupassant e observamos que o
intertexto com o autor francs no era apenas temtico e formal. A conciso da
linguagem do narrador, a iseno de julgamentos, o claro-escuro da ambientao da
narrativa mostram a hospedagem do conto maupassantiano na contstica de Lcio de
Mendona. Um dilogo entre contistas malditos atrados pela morte trgica e pela
punio do destino contra os gananciosos e os adlteros. O uso do fait divers, da
personagem leitora e narradora dos fatos (a mistura entre fico e realidade), permite ao
narrador de Lcio de Mendona eximir-se de julgamentos, que, no entanto, aparecem
como tomada de posio dos protagonistas quando a voz narrativa passada ao
personagem-narrador: Aqui o dou pelo custo, sem nada de meu.15 Recurso que o
assemelha ao mestre Maupassant, que tambm forjava um narrador isento. Nosso
interesse em resgatar esse contista brasileiro esquecido est em evidenciar a qualidade
14
15
353
16
DEABREU, M. Meu conto de Pe. A casa do pavor. So Paulo: Monteiro Lobato, 1922. p. 67-88.
PATI, Francisco. Um conto de Maupassant. As bruxas de sexta-feira santa: histrias curtas. [s.l.]: rede
Latina Editora, [s.d.]. p. 137-46. O texto, datado de 1939, consiste muito mais num pastiche de Le pre,
que num conto original. De qualquer modo, merece ainda estudo.
18
LINS, Osman. Lima Barreto e o espao romanesco. So Paulo: tica, 1976. p. 20.
17
354
355
19
CANDIDO, Antonio. Formao da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 8. ed. Belo Horizonte;
Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997. v. 1. p. 10.
20
JAUSS, Hans Robert. Op. cit., p. 51-2.
356
357
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