Bonetti, Aline. Não Basta Ser Mulher, Tem Que Ter Coragem
Bonetti, Aline. Não Basta Ser Mulher, Tem Que Ter Coragem
Bonetti, Aline. Não Basta Ser Mulher, Tem Que Ter Coragem
CAMPINAS
2007
I
B641n
Ttulo em ingls: It is not enought to be a woman, one must have courage : and ethnography about
gender, power, popular feminine activism and the feminist political ground in Recife PE.
Palavras chaves em ingls (keywords) :
Gender
II
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras l de Alagoas fazem o seu ofcio.
Elas comeam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do
riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e
torcem uma, duas vezes. Depois enxguam, do mais uma molhada, agora jogando a gua
com a mo. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e do mais uma torcida e mais outra,
torcem at no pingar do pano uma s gota. Somente depois de feito tudo isso que elas
dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever
devia fazer a mesma coisa. A palavra no foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a
palavra foi feita para dizer.
Graciliano Ramos
IV
Ao Caettano, com o desejo de que habite num mundo futuro mais igualitrio.
AGRADECIMENTOS
Uma empreitada como essa no se faz sozinha. Nos quatro anos que durou esse projeto
contei com o imprescindvel apoio das mais diferentes pessoas nos muitos lugares por que
passei. A todas elas, a minha gratido. H algumas delas a quem eu gostaria de fazer um
agradecimento em especial, posto que marcaram indelevelmente essa parte da minha
histria.
Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) por ter financiado esse projeto.
minha orientadora, Maria Filomena Gregori, pela interlocuo e aprendizado.
s professoras e colegas do PPCS/Unicamp, rea Estudos de Gnero, pelo incentivo e
aprendizado, em especial s professoras Mariza Corra, Guita Debert e Evelina Dagnino.
minha famlia que sempre apoiou incondicionalmente as minhas escolhas e projetos de
vida.
s ativistas do FMPE pela generosa acolhida e imenso aprendizado.
A Leo Falco, Paula Viana, Zefinha, Slvio, Adriana, Cleiton, Andra, Priscila, Daniele,
Lourdes, Nirinha, Nicinha, Mateus, Maria do Carmo, Amlia, Ftima, Leandro, Ilca, Snia,
Leny, Vnia, novos amigos pernambucanos, que me permitiram compartilhar das suas
vidas, das suas casas, das suas vises de mundo e dos seus sonhos e por terem me
proporcionado conhecer as diversas Recifes contidas na Veneza brasileira.
Soraya Fleischer pela amizade, parceria, aprendizados e, sobretudo, por me fazer ver que
possvel sonhar e realizar os nossos sonhos juntas.
Karla Galvo e Pedro Nascimento, pernambucanos desterrados, pela presena, pelo
olhar, pelo cuidado e fundamental ajuda nos caminhos dessa pesquisa.
Mrcia Veiga pelo constante estmulo, pela mo estendida, pelas trocas, pela escuta, pela
em que se baseia a nossa grande amizade.
Helosa Paim pela presena constante, pela escuta e pela eterna disponibilidade em
ajudar nos momentos mais crticos desse projeto e da vida.
Claudia Fonseca pela eterna inspirao na paixo pela Antropologia.
A Angelo Adami, Gracco Bonetti, Ielena Azevedo, Nicole Reis, Luis Caon da Luz (in
memoriam), Eva Scheliga, Jean Aguiar, Mrcia Veiga, Soraya Fleischer, Helosa Paim,
Pedro Nascimento, amigos queridos, de sempre, pela pacincia, pela compreenso, pela
constante presena e, sobretudo, pelo muro de conteno feito de afeto em que me
refugiava quando o meu mundo particular, em especial no longo e difcil processo da
escrita, ameaava ruir.
Aos colegas do Ncleo de Antropologia e Cidadania NACI/UFRGS pela eterna parceria.
Ao Grupo Informal de Seminrio de Tese, Soraya, Mrcia Londero, Miriam Vieira, Helosa
Paim pela possibilidade mpar de construir conhecimento e amizade conjuntamente.
Creusa Lopes e ao Rafael Azize pelos incentivos na realizao desse projeto.
Aos amigos que encontrei em Campinas, Lis, Billy, Fred, Jacque, Pri, Ca, Marina,
Hiplita, Rafael, Sandra Brocksom, Luciano Avano e Gustavo Santos que me ajudaram a
colorir a Cidade Cinza.
Miriam Grossi por ter me inspirado na conjugao do feminismo e da Antropologia.
Ao Angelo Adami pela cuidadosa leitura e reviso desse texto.
VI
RESUMO
VII
ABSTRACT
Through an ethnographic research carried out in Recife PE about urban and working class
womens experience as activists of female quests, this thesis proposes a new view about the
female activism, especially the popular-based one, looking for new comprehensive
possibilities for this phenomenon, among these, a peculiar combination between the
appreciation for activism and the expectation of social ascension. The political ground
seems to configure itself in this light, and seems to be regarded as a space that presents a
potential for achievement of personal projetcs and transformation of life conditions,
revealing a pervasiveness of politics in daily life and its intrusion into activists sociability
and family relationships. This is why it is necessary to understand the constituition of the
specific feminist political ground where this experienced is located. This ground is
characterized by a system of unequal distribution of prestige and can be seen through the
juxtaposition of two crucial categories: the political articulation capital and the folk
notion to put the a large phallus on the table, that connotes gender attributes of the local
political praxis. New possibilities for the female popular activism appear in dialogue with
its codes and meanings. This analysis inspires itself on feminist anthropological theory,
considering the power and gender meanings that constitute the investigated universe.
VIII
SUMRIO
LISTA DE SIGLAS: ........................................................................................................... XI
INTRODUO ................................................................................................................ 13
2. CAPTULO
149
Velha e Eva
Guimares............................................................................................................... 156
4.3. No basta ser mulher, tem de ter coragem: Olvia Lima e a Associao PrMulher ................................................................................................................. 163
4.4. Com coragem e f em Deus: O Grupo de Mulheres do Conselho de Moradores
da Vila ................................................................................................................... 175
4.5. Ativismo feminino popular, o que h de novo? ............................................ 195
LISTA DE SIGLAS
XI
INTRODUO
O adjetivo popular do ativismo feminino implica num recorte analtico que se baseia no conceito de
grupos populares inspirado numa linha de estudos que enfoca a experincia de vida e os valores culturais de
grupos urbanos de baixa renda. Atento para os riscos de um conceito de cultura reificada - que apresenta
sistemas simblicos como se fossem isolados e homogneos - este recorte analtico procura sobretudo
compreender a coerncia interna de lgicas culturais distintas que convivem numa mesma sociedade. Situadas
numa sociedade de classes, marcada por profundas desigualdades sociais como a nossa, tais lgicas culturais
revelam modos de vida diferentes. E sobre tais diferenas que o conceito de grupos populares procura dar
conta (Fonseca, 2000, 1995).
Atuei como assessora tcnica da ONG no perodo de 2000 a 2003. Desta experincia resultou o projeto de
pesquisa para o meu doutoramento que ora realizo (Bonetti, 2002). Alm disso, realizei uma anlise sobre os
meandros dessa experincia profissional em Bonetti (2005).
13
Essa timidez talvez possa ser atribuda situao de liminaridade em que se viam as antroplogas feministas
face a uma dupla resistncia de que eram alvo. Por um lado, essa resistncia vinha do prprio movimento
feminista que via com desconfiana a produo acadmica. Por outro, da prpria academia cujas concepes
mais objetivistas do conhecimento sempre afirmaram o risco de que a identificao com o objeto nos
transformasse em pesquisadoras pela metade, e que o papel do intelectual estaria reduzido a instrumentalizar
transformaes sociais e, quando muito, a organizar ou divulgar teorias nativas (Gregori, 1999: 228).
14
Como j mencionei acima, a inspirao para essa pesquisa veio do contato com uma
experincia de ativismo poltico de mulheres das camadas de baixa renda no contexto
porto-alegrense, que buscavam um lugar de destaque no campo feminista local (Bonetti,
2000). Estas mulheres, ao adentrarem naquele campo, se apropriaram dos sentidos nele
produzidos, interagiram com eles e produziram novos sentidos, introduzindo ali a sua voz,
desafiando as suas formulaes e disputando os seus espaos. Desta experincia possvel
identificar um projeto poltico especfico, bem como o esboo de um sujeito poltico, que se
constitui de forma fluda e contingente, e se posiciona em relao a uma determinada
concepo de feminismo. Tal sujeito poltico aqui definido a partir da categoria nativa
mulherista.
Essa experincia teve lugar no contexto poltico de Porto Alegre, no perodo entre
1993 2003. Trata-se, portanto, de uma configurao poltico-cultural particularmente
aberta para o exerccio de novas formas de participao (Pinto, 1998:109) e caracterizada
pela presena de uma forte cultura de direitos e exerccio da cidadania (Baierle, 2000).
Cidade historicamente com forte tradio associativa, essa sua peculiaridade foi
potencializada ao longo dos ltimos 14 anos pelas sucessivas gestes municipais petistas
voltadas para a abertura e incentivo participao da sociedade civil. Apresentava, assim,
uma sociedade civil ativa e participante nas mais diversas instncias: Oramento
Participativo (OP), Conselhos Tutelares (CT), Conselhos nas mais diversas reas e ONGs
como a em questo. nesta configurao que se situa a ONG Themis.
O universo emprico do qual emerge o sujeito poltico mulherista est circunscrito a
um grupo de mulheres das camadas de baixa renda porto-alegrenses que entraram em
contato, de forma mais sistemtica, com o iderio feminista a partir de um processo de
capacitao legal denominado Formao de Promotoras Legais Populares (PLPs). Esta
capacitao legal encontra-se inscrita no interior de um projeto mais amplo de ampliao
15
Conforme nos ensina Lamas (1999), corrente interna ao movimento de mulheres mexicano, o mulherismo
uma concepo que essencializa o fato de se ser mulher, idealiza as condies naturais das mulheres e
mistifica as relaes entre mulheres. Uma tpica atitude mulherista a de falar em nome das mulheres, como
se estas tivessem uma posio uniforme na sociedade (Lamas, 1999: 02). Note-se que, curiosamente, a
descrio de Lamas acerca do mulherismo corresponde em alguns aspectos concepo do feminismo que
encontrei entre as ativistas gachas. Ao meu ver, esse jogo de atribuies de sentidos revela o quanto essas
categorias no so estanques, cujos significados podem mudar conforme uma combinao entre contexto,
situao e sentido.
16
17
algumas
estudiosas
como
emancipatria,
posto
que
no
conscientizava
O conceito de supermadre inaugural no campo de estudos sobre mulher e poltica na Amrica Latina.
Este conceito, criado por Elsa Chaney, busca descrever a experincia de mulheres latino-americanas eleitas
para cargos pblicos na dcada de 70, cuja presena na poltica era legitimada e explicada a partir da extenso
de seus papis de mes (Rakowski, 2003). Muito embora as motivaes mobilizatrias difiram entre as
Supermadres e as Madres de la Plaza de Mayo e as CoMadres, essas ltimas preocupadas em encontrar seus
filhos e maridos presos e assassinados pelos regimes autoritrios de seus pases, o elemento que as rene a
nfase nos papis de mes e esposas significados pelos atributos de gnero da abnegao, altrusmo e do
cuidado a partir de uma determinado repertrio de gnero que os associa ao feminino.
18
tradicional: a mulher no deve ficar somente dentro de casa, deve sair, conhecer, participar
(Caldeira, 1987:104).
No entanto permanecia uma busca pela compreenso do carter do engajamento
poltico das mulheres de baixa renda nestes movimentos, por vezes avaliando o grau de
conscientizao poltica alcanado pelas mulheres (Brito, 1995:62), tendo como pano de
fundo a relao com os movimentos feministas. Por sua vez, esses eram caracterizados
genericamente pela proposta de transformao das relaes de desigualdade entre homens e
mulheres, tendo como alvo principal a transformao da identidade social das mulheres
(Gregori, 1993; Grossi, 1988; Goldberg, 1989; Pontes, 1986).
Estudiosas do tema apontam para a especificidade da constituio dos movimentos
feministas na Amrica Latina, a partir da dcada de 70, como marcados pelo compromisso
com o processo de democratizao. Assim, as suas prticas caracterizavam-se pela
oposio poltica, pela postura antiestatista, pela autonomia defensiva e pela lgica de
confrontao aos regimes polticos ditatoriais (Alvarez, 1998). No processo de abertura
democrtica, o movimento feminista, assim como os movimentos sociais de forma geral, se
reconfigura. Com o retorno de militantes feministas exiladas, trazendo consigo a
experincia e a influncia de feminismos estrangeiros, os grupos se proliferaram, bem como
as bandeiras de lutas e os campos de atuao, levando a uma inevitvel pluralizao do
feminismo:
os anos 90 demonstram que o feminismo multiplicou os espaos e lugares em que
atua e, conseqentemente, onde circula o discurso feminista. As fronteiras entre o
movimento de mulheres e o feminista tm sido sistematicamente ofuscadas, com um
nmero crescente de mulheres pobres, trabalhadoras, negras, lsbicas, sindicalistas,
ativistas catlicas progressistas e de outros setores do movimento de mulheres
incorporando elementos centrais do iderio e do imaginrio feministas, reelaborados
de acordo com suas posies, preferncias ideolgicas e identidades particulares.
Assim, muitos feminismos so construdos. As mulheres dos movimentos
pertencem a grupos e classes sociais muito diversos, a raas e etnias diferentes, com
sexualidades e trajetrias polticas distintas. S. Alvarez (1988) usa o termo 'mosaico
de diversidade' quando descreve os movimentos presentes no processo da IV
Conferncia Mundial da Mulher, em 1995 (Soares, 1998:46).
recrudescente diversidade correspondem distintas concepes sobre o feminismo,
passando a ser referido no plural. O desafio de manter uma unidade nas reivindicaes e
lutas passa a ser problematizado, a ponto de se ter questionado o prprio conceito de
movimento feminista, como prope Alvarez (1998). No seu lugar, a autora prope o uso de
campo feminista, entendido como um campo discursivo de atuao/ao (p. 265). Esta
19
20
Frente a esse quadro que se pe o problema norteador dessa pesquisa, que visou
trazer novos elementos para se compreender o ativismo poltico feminino popular
contemporneo. A argumentao sobre esse ativismo, desenvolvida ao longo dessa tese,
leva em conta uma preocupao com as questes de gnero e poder, que marcam as mais
distintas relaes nas mais variadas situaes do campo analisado. Assim, para
compreender os sentidos associados ao ativismo faz-se necessrio compreender a
constituio do campo poltico feminista especfico, em que se insere tomado como
exemplar do campo discursivo feminista brasileiro contemporneo. no dilogo com esse
campo, com os seus cdigos e sentidos, que novas possibilidades para o ativismo feminino
popular surgem, escapando da gramtica restrita da maternidade militante.
Ao se afastar dessa matriz explicativa, trazem cena novos arranjos familiares,
conjugais e convenes de gnero. Em vista disso, a dimenso poltica pervasiva
experincia total de vida das ativistas, imiscuindo-se na vida cotidiana. Essa presena
profunda da poltica traz como conseqncias, por um lado, a constituio de uma
sociabilidade agonstica (Comerford, 2003), marcada por disputas, tenses e conflitos
reveladores das imbricaes das relaes de poder na rotina diria dessas mulheres no local
em que vivem e, por outro, a configurao de um tipo de relao social profunda e
duradoura com fora de parentesco entre as que possuem uma trajetria poltica comum
que pode ser interpretada na chave do que Carsten (2000) denomina de conexo em
substituio ao conceito tradicional de parentesco, tendo em vista a incorporao de outros
elementos, a poltica no caso em questo, que criam laos entre as pessoas e que concorrem
com os consangneos.
Passarei, agora, a situar as influncias tericas da minha anlise.
21
As duas antologias pioneiras, que foram responsveis pelo estabelecimento da Antropologia Feminista, so
Woman, Culture and Society organizada por Michelle Rosaldo e Louisie Lamphere e Toward an
anthropology of women, organizada por Rayna Rapp (Behar, 1993). Deve-se destacar que talvez a primeira
goze de maior popularidade na antropologia brasileira por contar com uma traduo para o portugus.
7
Atkinson (1982) situa aqui, dentre outros, os livros de Michelle Rosaldo (Knowledge and passion: Ilongot
notions of self and social life de 1980), Sherry Ortner e Harriet Whitehead (Sexual meanings: the cultural
construction of gender and sexuality, de 1981) e o de Carol MacCormack e Marilyn Strathern (Nature,
Culture and Gender, de 1980).
22
entre situao, contexto e sentido (Atkinson, 1982). Ou seja, a nfase na etnografia permite
revelar as complexidades das experincias culturais relativas ao gnero, as variaes de
sentidos atribudos ao gnero, os contrastes entre convenes constituitvas de repertrios e
as variadas formas como eles so vivenciados e re-significados. Enfim, as intricadas
relaes entre convenes e prtica. Nesse sentido, Moore (2000), resgatando o
comprometimento antropolgico com o empirismo e o implacvel processo de
contextualizao, base da etnografia, afirma que as interpretaes trabalham contra
qualquer tendncia de privilegiar pardia sobre a conveno (Moore, 2000:158). Ao se
contrapor noo de pardia e a favor da conveno, a antroploga, ao mesmo tempo em
que demarca a especificidade da antropologia no campo da teoria feminista, direciona uma
crtica teoria dos atos performativos de gnero de Judith Butler (2003), na qual a noo de
pardia ocupa um lugar privilegiado. Mesmo reconhecendo o impacto do pensamento desta
filsofa na teoria feminista contempornea, ela salienta que para o campo da Antropologia
Feminista tal teoria no se revelou to revolucionria frente fora e riqueza dos dados
etnogrficos, que j apontavam para a desontologizao do gnero e para o desempenho de
atributos de gnero (Moore, 1994).
Assim, as pesquisas etnogrficas, empenhadas na crtica feminista, voltam-se para a
explorao dos domnios de sentido de gnero, os contextos a que esto associados e os
usos situados, demarcando a sua especificidade e contribuio dentro do campo da teoria
feminista. Outro aspecto dessa crtica feminista relativo a essa virada etnogrfica a
problematizao das relaes de poder inerentes situao etnogrfica. O ponto central
dessa preocupao est na ateno ao posicionamento dos(as) pesquisadores(as) em campo
e nas relaes de poder envolvidas.
Em vista disto, pem-se como implicaes destas transformaes metodolgicas na
Antropologia Feminista a busca pela manuteno de uma postura crtica sobre o trabalho de
campo, o questionamento dos cnones, a transformao das noes convencionais sobre
pesquisa qualitativa atravs da imaginao e a luta por projetos e coalizes politicamente
significativas (Panagakos, 2004). A preocupao com as relaes de poder e com as
estruturas de desigualdade que marcam a Antropologia Feminista esto presentes na
postura crtica com que a etnografia encarada8.
Cabe ressaltar que as preocupaes acerca das relaes de poder em campo, assim como sobre o potencial
imperialismo terico da antropologia, o no reconhecimento de outras tradies antropolgicas que no as
euro-americanas e a autoridade do antroplogo enquanto aquele que escreve sobre outras culturas foram
23
A partir desse revisionismo crtico podemos nos aproximar do que seria o objeto da
Antropologia Feminista; elemento crucial para a delimitao das fronteiras do campo. Ono
(2003), num artigo provocativo, afirma que o desafio contemporneo para a Antropologia
Feminista a possibilidade de se constituir prescindindo das mulheres como o seu objeto.
Tal objeto parece-me se configurar por alguns elementos: uma noo de diferena
complexificada, relaes de poder e a preocupao com a produo de desigualdades.
A Antropologia Feminista, ao criticar a noo de diferena cultural caracterstica da
Antropologia, introduz uma certa noo de diferena que ganha outros contornos. H um
comprometimento com complexos feixes de diferenas que se interseccionam e cujas
combinatrias so variveis de acordo com os contextos e situaes investigados. Muito
embora o gnero tenha um lugar de destaque, ele no o nico produtor de diferena.
Deve-se, portanto, ser tomado no cruzamento com outros elementos tais como raa, etnia,
classe, nacionalidade e gerao.
Embora o gnero seja a pedra de toque para a Antropologia Feminista, a sua mera
apario no implica, necessariamente, no adjetivo feminista. Ou seja, fazer uma
Antropologia Feminista envolve a utilizao da categoria gnero ao invs da categoria
mulher, mas nem todo estudo sobre gnero na Antropologia feminista (Moore, 1988, e
Ono, 2003). Seguindo a caracterizao de Moore (1988), a Antropologia Feminista vai
alm do estudo da construo social da identidade de gnero e dos papis de gnero, tal
qual a Antropologia do Gnero. Gnero complexifica-se e entendido como um princpio
pervasivo da organizao social (Strathern, 1987: 278).
Neste sentido parece-me rentvel para a Antropologia Feminista acolher o conceito
de gnero tal como pensado por Strathern (1990), que prope pens-lo como uma
categoria de diferenciao (Strathern, 1990: ix) que tem como referncia a imagstica
sexual. Nas suas formulaes, esta categoria de diferenciao cria categorizaes, cujas
relaes entre si revelam possibilidades inventivas sobre relaes de gnero e sobre
relaes sociais. Assim, tal categoria de diferenciao perpassa e marca as mais diversas
aes sociais. Esta concepo de gnero, portanto, no se restringe relao corpo
biolgico-sexo-gnero; antes abarca e dota de sentido a organizao da vida social.
questes centrais da auto-crtica chamada ps-moderna por que passou a disciplina ao longo da dcada de 80
(ver Clifford e Marcus, 1986; Moore 1996; Marcus e Fischer, 1986, entre outros). No entanto, a crtica
feminista a essa produo aponta para o silncio em relao s mulheres e ao seu lugar secundrio nas
etnografias (Bell et al, 1993). Assim, parece haver um interessante avano da crtica feminista em relao
crtica ps-moderna direcionada Antropologia.
24
Segundo Gordon, Sanday foi levada a estudar esse tema em funo de aluna sua, estuprada por um grupo de
estudantes universitrios. A realizao da pesquisa fez com que a antroploga pudesse conhecer essa
realidade e contribuir na criao de mecanismos para combater essa violao nos campi estadunidenses.
25
10
Ortner (1996) exemplifica como prticas de poder atos de dominao, controle, violncia, exerccios de
autoridade, performances de humilhao, raiva, impotncia, dor, luta, resistncia, revolues (p. 4).
26
11
28
12
Na ocasio, Freyre enuncia o seu manifesto regionalista em que constam os principais princpios desse
movimento: Procurando reabilitar valores e tradies do Nordeste repito que no julgamos estas terras, em
grande parte ridas e heroicamente pobres, devastadas pelo cangao, pela malria e at pela fme, as Terras
Santas ou a Cocagne do Brasil. Procuramos defender sses valores e essas tradies, isto sim, do perigo de
serem de todo abandonadas, tal o furor neoflo de dirigentes que, entre ns, passam por adiantados e
"progressistas" pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira. A novidade estrangeira
de modo geral. De modo particular, nos Estados ou nas Provncias, o que o Rio ou So Paulo consagram
como "elegante" e como "moderno": inclusve sse carnavalesco Papai Noel que, esmagando com suas botas
de andar em tren e pisar em neve, as velhas lapinhas brasileiras, verdes, cheirosas, de tempo de vero, est
dando uma nota de ridculo aos nossos natais de famlia, tambm enfeitados agora com arvoresinhas
estrangeiras mandadas vir da Europa ou dos Estados Unidos pelos burgueses mais cheios de rique-fifes e de
dinheiro (Freyre, 1926:04, sic)
30
(FINOR) e das frentes de trabalho, quando da ocorrncia de uma seca (Duarte, 2002:02).
A SUDENE, ao longo dos anos, foi passando por transformaes e crticas tendo-se em
vista a persistente no resoluo do quadro das secas e do desenvolvimento do Nordeste.
Foi extinta em 2001 no governo Fernando Henrique Cardoso e reativada no governo Lula,
em meados de 200313.
A fora da idia do Nordeste e da necessidade criada de se pensar a especificidade
da regio e da sua gente ainda muito pregnante14. Nesse sentido, com todos esses
elementos reunidos, Recife pareceu-me conformar um contexto poltico instigante para as
questes dessa pesquisa. Essa impresso foi enormemente reforada pela efervescncia do
movimento feminista/de mulheres local. O meu interesse pelo contexto feminista
pernambucano vem j de algum tempo, tendo sido despertado pela grande participao de
entidades pernambucanas na Rede Nacional de Multiplicadores de Cidadania formada pela
ONG gacha Themis Assessoria Jurdica e Estudos de Gnero15. Essa presena marcante
despertou o meu interesse para o ativismo feminista/de mulheres local, em especial porque
havia a possibilidade de estabelecer nexos comparativos com a experincia gacha, que
havia sido foco das minhas pesquisas anteriores, como mencionei anteriormente. Tal
interesse foi tambm reforado pelo contato com a literatura sobre movimento de mulheres
em Pernambuco (Thayer, 1999 e Couto, 2002), em especial sobre o movimento de
mulheres trabalhadoras rurais (Thayer, 2001).
A partir de um mapeamento inicial realizado na internet, pude arrolar uma srie de
associaes e organizaes de carter feminista voltadas para mulheres das camadas
urbanas de baixa renda. A diversidade de organizaes feministas e de mulheres ali
existentes chama a ateno. Em conversa com ativistas do campo descobri que o Frum de
Mulheres de Pernambuco (FMPE) reunia mais de 60 entidades, dentre as quais se
encontram ONGs feministas e associaes de mulheres de base conforme classificao
nativa. Deste Frum participam ONGs tradicionais e reconhecidas no campo feminista
13
A Fundao Joaquim Nabuco, rgo de carter pblico federal, abriga grupos de trabalho interdisciplinares
para a constante anlise e monitoramento do desenvolvimento scio-econmico da regio. Anlises mais
detalhadas sobre o tema podem ser encontradas em Arajo (2002), Dias (2002), Duarte (2002) e Andrade
(2002) ou no http://www.fundaj.gov.br/observanordeste.
14
Vide, por exemplo, os seminrios internacionais realizados para a discusso do Nordeste e da influncia da
obra de Gilberto Freyre promovidos pela Fundao Gilberto Freyre (FGF, 2000 e 2005).
15
Em 1998, a ONG gacha capacitou 22 entidades de diferentes estados do Brasil para que realizassem o
projeto de Formao de Promotoras Legais Populares em seus locais. Destas 22 ONGs, 08 delas esto
situadas em Pernambuco, o que o configura como o nico estado da rede que possui uma grande
representatividade.
31
nacional, cuja estrutura congrega projetos com grupos de mulheres os mais diversos e com
grande insero em organizaes de mulheres rurais e urbanas de baixa renda. H tambm
um outro universo do campo poltico feminista local com grande insero nos movimentos
populares de mulheres, ligado gesto municipal: o Frum Temtico de Mulheres do
Oramento Participativo, organizado pela coordenadoria da Mulher da Prefeitura do Recife,
que estava ento na sua segunda gesto. Frente a essa riqueza e potencial rendimento para
os temas da minha pesquisa que vislumbrava nesse campo, decidi por realizar uma pesquisa
exploratria, que se transformou numa estadia de nove meses durante o perodo de outubro
de 2004 a julho de 2005, no qual convivi intensamente com os mais diferentes grupos de
mulheres e espaos do campo poltico feminista. Passarei a algumas reflexes sobre o
cotidiano da pesquisa, bem como sobre o universo que a compe.
Com exceo desses trs ltimos grupos, cujos nomes foram trocados com um intuito de preservao do
anonimato, os nomes originais das entidades foram mantidos. Mais adiante discutirei sobre a troca dos nomes.
33
protagonistas dessa etnografia, foram trocados, imperativo fazer uma pequena digresso
sobre a troca dos nomes e a tica na pesquisa.
primeira vista, o implacvel processo de contextualizao que a base da
metodologia antropolgica (Moore, 2000:158), e por isso mesmo revelador, impe um
obstculo na premissa tica da pesquisa etnogrfica acerca da manuteno do anonimato
dos grupos com que se pesquisa. A descrio minuciosa com o esforo de ser densa, de
acordo com a tradio antropolgica hermenutica - tende a revelar os sujeitos e os
contextos em que se inserem, mesmo com a troca dos seus nomes na tentativa de resguardar
a sua identidade. Esta importante questo, inerente ao mtodo etnogrfico, foi alvo de
reflexes ao longo do processo da minha pesquisa e tem se imposto fortemente desde os
primeiros ensaios analticos dos dados etnogrficos.
Num primeiro (e longo) momento optei por trocar todos os nomes, tanto das pessoas
com quem tive contato ao longo da pesquisa, quanto o das entidades que conheci. Criei um
sistema de nominao que procurasse manter alguma familiaridade com o princpio
onomstico tanto das instituies quanto das prprias pessoas. Para as entidades envolvidas
com a promoo dos direitos das mulheres, dei nomes que envolvessem esses referenciais,
como Instituto de Mulheres pela Cidadania, por exemplo. Em relao s pessoas, procurei
manter uma semelhana na origem: nomes de origem portuguesa, italianos e assim por
diante. Sobre o caso especfico dos nomes pessoais, voltarei mais adiante. Gostaria agora de
me concentrar nos nomes das entidades, um dos principais focos de discordncia e debate
no processo de orientao.
Como o tema geral da tese poder e gnero, cujo foco justamente os meandros
das relaes polticas, e dado o carter extremamente revelador do mtodo etnogrfico, fiz
a opo pela troca. O argumento para tanto se assentava basicamente numa preocupao
tica sobre os possveis e inimaginveis impactos polticos que a anlise sobre as relaes
de poder poderia ter entre o universo pesquisado. Mesmo tendo a conscincia de que, por
um lado, no h a mnima possibilidade de controle dos usos e interpretaes que as nossas
pesquisas possam ter quando passam ao domnio pblico, e, por outro, o implacvel carter
revelador do mtodo etnogrfico, tornando vs as mais requintadas tentativas de
manuteno do anonimato, acreditava ser um imperativo tico a sua busca. Talvez a haja
uma forte arrogncia intelectual embutida, que inconscientemente creia que a minha
verdade parcial em forma de anlise sobre o observado e vivenciado possa ter um cunho de
verdade absoluta, de retrato do real, que se prenda talvez tal busca pela objetividade
34
masculinista da cincia ocidental de que fala Haraway. Um paradoxo e tanto para uma
anlise que se pretende feminista, corporificada e situada.
Pacientemente a minha orientadora foi me mostrando, ao longo das nossas
conversaes, que chamar o SOS Corpo cujo nome guarda em si um potente carter
histrico do prprio desenvolvimento do feminismo brasileiro e, portanto, extremamente
significativo para se compreender a sua consolidao, o seu renome (Corra, 2003), no
campo poltico feminista de Instituto Mulheres pela Cidadania faria toda a diferena e
perdia muito do seu rendimento analtico. Convencida do seu argumento, voltei atrs no
meu e os nomes das entidades permaneceram os originais, com exceo de trs delas: o
Grupo de Mulheres do Morro da Velha, a Associao Pr Mulher e o Grupo de Mulheres
da Vila. Muito embora sejam facilmente identificadas atravs da descrio etnogrfica,
preferi resguard-las um pouco mais, o que remete a um paradoxo inerente a este aspecto
da escrita etnogrfica ainda no resolvido.
Nesse caso em especfico, dada a discrepncia de poder e prestgio entre essas
entidades e as outras, a proximidade com os detalhes da vida ntima e cotidiana desses
pequenos grupos e das suas integrantes, cuja existncia ainda claudicante dentro do
campo poltico local, entendo ser mais tico manter a sua identidade protegida e aqui me
valho da lio geertziana acerca da produo do texto etnogrfico, baseada na interpretao,
como uma fico. Segundo o autor,
os textos antropolgicos so eles mesmos interpretaes e, na verdade, de segunda e
terceira mo. (...) Trata-se, portanto, de fices; fices no sentido de que so algo
construdo, algo modelado o sentido original de fictio no que sejam falsas,
no-factuais ou apenas experimentos de pensamento (Geertz, 1989: 25-26).
Resguard-las, enfim, da minha imaginao antroplogica, das minhas construes,
das minhas interpretaes. E nesse mesmo argumento que se assenta a troca geral dos
nomes das pessoas com que pesquisei, sejam elas oriundas das ONGs profissionalizadas ou
dos grupos de mulheres de base. Mas h uma ressalva a ser feita aqui tambm. Ao longo do
texto, se encontrar algumas mulheres referidas pelos prenomes e sobrenomes, outras
apenas pelo prenome e algumas, ainda, somente pelo apelido, por vezes no diminutivo.
Essas distines devem-se manuteno do princpio onomstico que rege o campo
investigado, mesmo trocando-se o nome original. Tal princpio aponta para um importante
dado relativo ao lugar ocupado por essas agentes no campo poltico local.
35
38
CAPTULO I
MEDO E SANGUE NO OLHO: ETNOGRAFIA, ALTERIDADE E AS SUAS TRAMAS DE PODER EM
RECIFE
______________________________________________________________________
(...) quando comeou a afastar-se em passos rpidos descobriu de repente
que o medo estava dentro do seu estmago, movendo-se como um feto
esverdeado. O estmago, porra. Em operrio e negro no percam tempo
dando porrada na cabea, o ponto sensvel o estmago. O medo no o
fazia suar nem tremer as pernas nem baixar a presso. O medo dava-lhe
nuseas, o medo escalava o esfago, verde, apodrecido, cheirando mal, as
pequenas mos de ao e os olhos cegos, o medo o faria vomitar (...)
(Tabajara Ruas, O Amor de Pedro por Joo, 1998, p.125)
17
Muito embora os sentimentos que se imiscuem no processo de pesquisa etnogrfica, tais como a saudade, a
tristeza, o estranhamento j sejam, tradicionalmente, alvo de reflexo na disciplina (Lvi-Strauss, 1995 [1955]
e Da Matta, 1978), o sentimento do medo ainda sub-analisado.
18
Tais mitos podem ser depreendidos das crticas direcionadas aos textos antropolgicos clssicos e ao lugar
por eles destinado subjetividade do etngrafo em campo. Podemos citar como exemplo, a crtica acerca da
autoridade etnogrfica (Clifford, 1998) que se associa a um ideal de cincia e a apario dos dirios ntimos
como o de Malinowski (1997 [1967]), sobre o qual Geertz (1998) preconiza o mito do pesquisador de campo
semicamaleo, que se adapta perfeitamente ao ambiente extico que o rodeia, um milagre ambulante em
empatia, tato, pacincia e comospolitismo, foi, de um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez, um
dos maiores responsveis pela sua criao (p.85).
39
40
pela emergncia de distintas sensibilidades que se constituem como dados importantes para
a anlise do material etnogrfico.
o poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que s
funciona em cadeia. Nunca est localizado aqui ou ali, nunca est nas mos de
alguns, nunca apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se
exerce em rede. Nas suas malhas os indivduos no s circulam mas esto sempre
em posio de exercer este poder e de sofrer a sua ao; nunca so o alvo inerte ou
consentido do poder, so sempre centros de transmisso (p.183).
Nesse sentido, pensar como o poder constitui a produo etnogrfica implica em
levar em conta as prticas significativas (Comaroff & Comaroff, 1992) e, atravs delas, o
etngrafo chegar compreenso do universo pesquisado e do contexto mais amplo, sciohistrico, em que se encontra.
H ainda uma ressalva a ser feita. Creio que nesse quadro de distribuio dos
recursos de poder, o gnero ocupa um lugar fundamental. Aqui, gnero compreendido
como uma categoria de diferenciao (Strathern, 1990:ix) que tem como referncia a
imagtica sexual. Tal categoria de diferenciao cria outras categorizaes, cujas relaes
entre si revelam possibilidades inventivas sobre relaes de gnero e sobre relaes sociais,
e perpassa e marca as mais diversas aes sociais. Esta concepo de gnero, portanto, no
se restringe relao corpo biolgico- sexo- gnero, antes abarca e dota de sentido a
organizao da vida social. Gnero, portanto, aqui tomado como um princpio pervasivo
da organizao social (Strathern, 1987:278) e em todos os grupos humanos, deve ser
entendido em termos polticos e sociais com referncia no a limitaes biolgicas, mas
sim s formas locais e especficas de relaes sociais e particularmente de desigualdade
social (Rosaldo,1995:22). Assim, a concepo de gnero aqui trabalhada implica tambm
em relaes de poder.
1.2. Entrando em campo: A incauta branquela do sul perdida nos trpicos
A chegada, num dia de intenso sol e calor. Mesmo com o atraso na sada do vo, cheguei no
horrio previsto. Soraya estava j a minha espera com Jacar, homem dos seus 40 anos, negro,
artista local, guia turstico e motorista. Muito falante e simptico, Jacar disse que faria uma rota
turstica at a casa de Soraya, em Olinda, onde eu ficaria hospedada, para que eu tivesse uma idia
45
da beleza da cidade19. Atordoada com a viagem e com a intensidade da luminosidade local era a
primeira vez que estava em Pernambuco eu mal falava. O aeroporto fica prximo do bairro de
Boa Viagem, local da classe mdia alta da cidade e em que se concentra o fluxo turstico, onde est
a maioria dos hotis. Pela janela do carro avistava-se as inmeras placas alertando para o perigo dos
tubares e proibindo o surfe. Percebendo o meu espanto com tais placas, Jacar explicou-nos que os
ataques dos tubares devem-se construo do Porto de Suape, na regio de Recife, que causou um
desequilbrio ecolgico acabando com o alimento dos animais. Ele gentilmente ia nos mostrando os
lugares e tecendo comentrios sobre os hbitos locais. No final da imensa avenida que fica beiramar, passamos pela favela de Braslia Teimosa, situada no extremo oposto do bairro de Boa
Viagem. Jacar a caracterizou como uma favela com bastante quentura. Como no o entendi, ele
repetiu: favela quente, onde tem muita violncia! Os meus olhos sulistas estranharam o intenso
contraste seguido da grande proximidade entre o bairro burgus e a favela. Passamos prximo do
centro da cidade e ele foi apontando os pontos tursticos, os prdios histricos e as inmeras pontes:
Recife conhecida como a Veneza brasileira por ser cortada por dois grandes rios, o Capibaribe e
o Beberibe, e pelas suas pontes... Estava intrigada com o que me reservaria a Veneza brasileira.
(Dirio de Campo, doravante DC, Recife, 05.10.04)
J nesse excerto das minhas notas de campo, feitas logo minha chegada, aparecem
os primeiros sinais do estranhamento que me tomou e foi se reconfigurando ao longo da
pesquisa. O impacto da chegada conota um primeiro eixo de diferenciao que ir se reunir
a outros: a condio de estrangeira dentro do prprio pas. A minha condio de sulista, que
a princpio poderia ser um dado biogrfico contingente, assomou-se minha cor, minha
pertena de classe, ao meu grau de instruo, ao meu sexo e minha idade. Esse conjunto
de eixos de diferenciao, reunidos em mim, apontavam, desde o princpio, para as
dificuldades que enfrentaria advindas da diferena de universos, daquele de onde vinha
com aqueles pelos quais circularia.
Muito embora a minha idia inicial fosse a de viver nos bairros da periferia,
prxima das minhas principais interlocutoras, esse intuito se desfez logo nas primeiras
visitas e decidi viver num bairro classe mdia. Eu no conseguiria suportar por muito
tempo e de forma continuada determinadas condies de privao material com que no
estava acostumada: com a constante falta de gua, com o calor intenso, com a invaso de
insetos, com a constante msica alta, com a falta de privacidade e silncio para reflexo e
19
Soraya, minha amiga antroploga que me hospedou nas duas primeiras semanas em campo, e Jacar so
seus nomes reais.
46
escrita dos registros de campo. Por mais que eu ficasse dois, trs dias hospedada na casa de
uma informante atravs dos convites para passar os finais de semana ou para participar de
atividades polticas noturnas, eu precisava retornar para um espao mais familiar para
amenizar a falta de casa.
Se por um lado essa escolha me impossibilitou uma convivncia mais visceral com
o modo de vida na periferia de Recife, por outro me facultou circular e conhecer diferentes
mundos dentro de Recife e tambm me imps a condio de ser uma usuria assdua do
transporte coletivo local. Dependendo do meu destino, variava o nmero de nibus que
precisava tomar e o tempo das viagens: para as reunies do Frum de Mulheres de
Pernambuco (FMPE) que aconteciam regularmente na sede de uma importante ONG local
situada no bairro prximo ao que eu morava, eu tomava apenas dois nibus. J para o
encontro das mulheres dos outros dois grupos, eu tinha de tomar quatro nibus entre idas e
vindas. Assim, ao longo da minha pesquisa, estive exposta a rotinas de deslocamento pela
cidade semelhantes s de muitas das minhas principais informantes, embora de forma
inversa.
Elas se deslocavam do seu bairro para os bairros centrais nos quais participavam de
algumas atividades da sua agenda poltica e tambm trabalhavam; inclusive, uma delas era
diarista numa casa prxima minha. Eu, inversamente, ia do bairro classe mdia em que
me hospedara para os bairros em que viviam, em funo da pesquisa. Os trajetos eram
semelhantes, embora modificassem os dias e horrios. Como se pode perceber, passei boa
parte do meu campo dentro de nibus urbanos. Ali, naquele espao de sociabilidade
contingente e fugaz, aprendi muito sobre a cidade e sobre alteridade. Passarei a analisar os
meandros do encontro etnogrfico e os sentidos que deles emergem na negociao entre
alteridades e relaes de poder em campo. Vejamos.
J se passavam 20 dias da minha chegada em Recife quando conheci Lauro, filho de Olvia
Lima, presidente da Associao Pr-Mulher. Irreverente e contestador, esse jovem mulato de 19
anos desafiava-me com suas crticas burguesia branca e intelectual e profissionalizao e
sexismo dos movimentos sociais. Frente aos seus questionamentos, sentia-me desconfortvel por
estar sendo avaliada e enquadrada. Via-me, atravs dos seus olhos, uma burguesa-brancaalienada. Lauro queria me mostrar a verdadeira Recife, aquela do povo. Levou-me para um passeio
pelo centro da cidade. Comentei sobre os inmeros alertas que recebera acerca dos perigos do
centro da cidade. Ele, ironicamente, disse-me no ser bem assim. No centro, o cenrio me pareceu
47
desolador. Havia muita pobreza, muitos moradores de rua, famlias inteiras dormindo nas ruas. A
primeira viso que tive do lugar foi atordoante. Havia gente para todo o lado; muitos moradores de
rua e crianas maltrapilhas pedindo esmolas. Muitos vendedores ambulantes, alguns parados nas
esquinas. A cor das suas peles era predominantemente escura, diferentes tons de marrom e negro.
Olhava para tudo com ar de espanto e meu olhar era retribudo. Perguntei a Lauro se estava
parecendo turista. Referia-me a um certo ar meio tolo, meio de espanto, que s os turistas
conseguem se colocar. Ele, sem delongas, respondeu-me: oxe, tem sim! Deve ser porque no sul
vocs no tm muito sol, e da ficam... me desculpa, (lanou-me um olhar avaliador, em seguida fez
uma cara de nojo e complementou a sua frase) muito branquelas... e passou a rir. Olhei para a sua
expresso de nojo e fiquei atnita, sem saber como reagir. Segundos depois, entendi a brincadeira e
rimos juntos. Pela primeira vez, a minha cor era evocada explicitamente; justo ela que sempre me
parecera passar desapercebida. Lauro me ensinava que naquele contexto a minha cor pesava e
aparecia; mas tambm que ela no estava s; antes associava-se com a minha pertena de classe,
cujos sinais eu evocava sem o saber (DC 25.10.04).
20
Entre 1994-1999 realizei pesquisas de campo sistemticas em diferentes bairros de baixa renda da periferia
de Porto Alegre/RS. No perodo de 2000-2003 atuei como assessora tcnica do projeto de uma ONG portoalegrense voltada para populao feminina de baixa renda nos seus locais de moradia, como mencionei
anteriormente, e no perodo de abril a julho de 2004 realizei uma pesquisa piloto para fins dessa tese com
mulheres moradoras da periferia de Campinas/SP.
48
discreta, no Recife pouco faziam efeito21. Por mais que eu tentasse me mimetizar, a minha
figura destoava e era fatalmente percebida. A minha cor associada s minhas roupas (talvez
inadequadas para o clima local) e ao meu acento regional denunciavam a minha condio
de estrangeira, muito embora no uma gringa22.
Assdua usuria dos transportes pblicos coletivos da cidade, minhas rotas levavamme para lugares no propriamente tursticos, o que contribua para a minha imagem de
estranha-estrangeira: trazia comigo alguns traos que identificam os estrangeiros, como a
minha cor e um sotaque diferente, mas no cumpria as mesmas rotas. Guias atursticos
informais, alguns annimos, outros j meus conhecidos, os curiosos funcionrios das
empresas de transporte (cobradores e motoristas) mostravam-me, pela janela do nibus, as
interdies urbanas, enquanto me revelavam dados sobre as convenes que dotam de
sentido os mapas sociais locais.
Nessas situaes, eu era o sujeito marcado socialmente, a diferente. As
possibilidades de identificao com base na cor eram-me muito menores; brancas como eu
eram excees nas situaes em que regularmente eu me encontrava, onde a regra era ser
no branco. Conforme aprendera com Lauro, a minha cor e a minha origem de classe e
regional pesavam e a minha presena despertava curiosidade: O que ia fazer naquela vila?
De onde vinha? Por quanto tempo permaneceria? Viera sozinha? No sentia saudades de
casa e da famlia? Como eu podia ser to nova (aos olhos dos meus interlocutores) e to
aventureira?
O inqurito a que era disfaradamente submetida pelos meus interlocutores
indicava-me dados importantes sobre aquele universo e sobre como eu me colocava nele.
Mostravam-me que alm da minha cor e da minha origem de classe, o meu sexo tambm
importava. Neste enfrentamento, passei paulatinamente a perceber a queda do mito do
antroplogo assexuado, conforme descrito pela antroploga Miriam Grossi (1992), e o
quanto eu estava empenhada nele sem o saber.
Tal mito remete a uma postura adotada pelas pesquisadoras em campo, identificada
pela antroploga, as quais procuram escamotear os atributos de gnero sob a capa de um
terceiro gnero, nem homem, nem mulher, mas um ser neutro e assexuado (Grossi,
21
Em geral procurava usar roupas mais largas e em tons claros mais monocromticos, de modo a esconder o
corpo, na iluso de me tornar uma antroploga assexuada, o que j denota uma dimenso da sensibilidade
do medo evocada pela minha posio de gnero.
22
Categoria nativa para todo tipo de turista e/ou estrangeiro que aporta por ali, usada com muita freqncia no
cenrio de Recife e da Regio Metropolitana.
49
1992:13). Esse recurso parece ser posto em ao como uma forma de proteo aos
potenciais riscos advindos do imaginrio acerca de mulheres viajando sozinhas longe das
suas redes de parentesco e do seu cotidiano23. As perguntas que me eram feitas remetem a
esse imaginrio e me mostraram o quanto eu me iludia com uma suposta capa de proteo,
que se revelava incua, como explicitou o tio de Isabela, jovem de 19 anos, negra, ativista
do Programa Juventude, Cultura e Cidadania da Associao Pr-Mulher, a quem eu acabara
de conhecer. Ao ouvir nossa conversa sobre a minha pesquisa, num almoo de domingo em
famlia, o senhor, do alto dos seus 50 anos, comentou: Oxe, mas tu s to nova e corajosa!
Estou impressionado como tu andas sozinha por esses lugares perigosos! Eu mesmo, num
dia desses peguei um nibus, dormi e quando acordei tava dentro de uma vila no Ibura.
Era de madrugada... Vixe, nunca senti tanto medo na vida, mas nada me aconteceu, graas
a deus (DC 08.05.05)24.
Definitivamente eu era percebida como uma mulher, jovem, branca, sulista, letrada,
que estava a se embrenhar sozinha por lugares perigosos. Esse conjunto contingente de
categorias que me situavam aos olhos dos meus interlocutores, indicada pela curiosidade
que despertava, parece impor uma desorganizao ao mapa social local, pautado por
marcadores de classe e cor fortemente delimitados, alm de informarem sobre convenes
de gnero vigentes25. Tal organizao tcita criava territrios invisveis para olhos no
iniciados e fronteiras simblicas que eu, incautamente, insistia em transpor. Introduzia,
assim, uma desordem na forma como esse mundo estava organizado que recaa sobre mim
como uma potencial vulnerabilidade.
Mal chegara na cidade e j aprendera que quentura ali era um sinnimo de violncia
e que esquisito era um eufemismo para perigoso. Ao largo das pessoas com quem convivia
em funo estritamente da pesquisa, acabei estabelecendo uma rede de amigos. Com isso,
pude ter a oportunidade de circular pelos diferentes mundos encerrados em Recife:
estabeleci vnculos com pessoas ligadas universidade, elite artstica local e s ONGs
feministas, oriundas das camadas mdias e mdias altas, e com as ativistas das camadas de
baixa renda. Dos meus mais diversos interlocutores eu ouvia menes s favelas quentes da
23
Segundo Grossi, esse mito relaciona-se com os impactos subjetivos do trabalho de campo que atingem
diferencialmente pesquisadoras e pesquisadores, sendo que os segundos pouco explicitaram seus
questionamentos subjetivos s identidades de gnero (Grossi, 1992:13).
24
Ibura um grande bairro perifrico situado ao sul de Recife, h 9,3 km do marco zero da cidade.
localmente reconhecido como um bairro muito violento.
25
Ao usar a noo de convenes de gnero quero me referir aos modos como cada sociedade significa,
valoriza e organiza os atributos relativos ao gnero.
50
cidade e quentura das almas sebosas que habitavam por ali. Alertavam-me para os
lugares e os horrios esquisitos que deveria evitar. Aos poucos fui me familiarizando com
todo um lxico novo e identificando temas recorrentes.
Nas freqentes viagens de nibus de idas e vindas para as mais distintas franjas de
Recife, nas caronas que pegava dos amigos classe mdia para os cinemas e bares da
moda e no contato com os mais diferentes sujeitos eu fui, aos poucos, sendo introduzida a
uma nova pedagogia de como estar na cidade26. Aprendi, concomitantemente, trs
importantes questes sobre o novo universo em que adentrava: 1. que o medo, a violncia e
a segurana eram importantes temas locais; 2. a reconhecer a minha potencial
vulnerabilidade e 3. a cultivar a sensibilidade do medo.
As narrativas sobre assaltos, mortes, tiroteios e toda sorte de violncias eram temas
freqentes das conversas das pessoas, nos mais diferentes contextos. A corriqueirice desses
eventos chocava-me. No pude deixar de estranhar a incorporao desse repertrio no
cotidiano das pessoas. Todo mundo tinha uma histria para contar, cujas performances
variavam entre jocosas e dramticas: o roubo dos instrumentos de um msico quando
desembarcava no local para fazer o show; o assalto ao nibus que deixou cobradora e
motorista s de roupas ntimas; um suposto policial fardado que roubou a mochila de uma
estudante que voltava da faculdade; o tiroteio contra o nibus quando passava por uma
passarela da periferia da cidade; os estupros de mulheres dentro de nibus; o ataque dos
motoqueiros mascarados aos carros parados nos sinais; o assaltante de nibus que caiu
morto aos ps de uma informante aps trocar tiros com um policial paisana; enfim, uma
variedade de casos, situaes e contextos cujo elemento comum era a ameaa armada.
Com o passar do tempo, fui percebendo que, embora falassem de riscos concretos,
as narrativas pareciam tambm cumprir importantes papis nessa nova pedagogia urbana
em que estava me iniciando. As reiteradas menes violncia urbana e uma certa
associao aos riscos que uma mulher sozinha como eu corria pareciam revelar um alerta
para que eu no me aventurasse por territrios desconhecidos, para que respeitasse os
limites locais e para me colocar num lugar de estranha-estrangeira, como parece ter
ocorrido quando da minha visita ao Conselho de Moradores do Morro da Velha.
26
51
Avistei ao longe um pequeno prdio rosa direita, que destoava da esttica monocromtica
das casinhas volta. Desci e parei na entrada do conselho e no avistava Vanir, o nico rosto que
me era conhecido por ali. Ela uma mulher na faixa dos 35 anos, mulata, ativista do Grupo de
Mulheres do Conselho de Moradores do Morro da Velha; a conheci nas reunies do FMPE. Era dia
de festa e havia gente por todos os lados. Perguntei por Vanir para uma moa, que parecia estar
cuidando do lugar. Ela saiu imediatamente a procur-la. Avistamo-la no meio das crianas na praa
em frente ao Conselho. Vanir parecia meio atordoada e cheia de coisas a fazer. Recebeu-me de
maneira cordial, mas parecia desconfortvel com a minha presena. Passou a explicar sobre o
evento que ocorria: a gente fez um Cosme e Damio para as crianas hoje, dentro do projeto
Cuidando das Crianas27. Ela contou sobre as visitas que estavam a receber no evento, os
representantes da ONG que sustenta um dos projetos desenvolvido pelo conselho de moradores.
Pelo que entendi trata-se de uma ONG formada por um conjunto de igrejas protestantes e os
visitantes eram pastores. Disse-me que estavam acostumados a receber visitas, que todo o dia tinha
visitante para conhecer o projeto. Aps me familiarizar com o local, me apresentar s pessoas,
assistir s apresentaes culturais dos grupos de msica e dana do Conselho de Moradores, sa para
tentar conhecer os arredores. J tinha escurecido e na pracinha onde estavam antes os brinquedos e
crianas agora havia um jogo de futebol de homens adultos. O fluxo pela praa era grande.
Mulheres vestidas de jogging caminhavam em torno do local para fazerem exerccios fsicos.
Encontrei dois jovens que fazem parte do projeto do Conselho, para quem tinha sido apresentada, e
fiquei puxando papo. Comentei que era a primeira vez que ia at ali e que tinha gostado imenso do
clima do bairro, pessoas reunidas na praa, o espao aberto... Um dos jovens interrompeu-me e,
com olhos de quem desafia, disse-me: , bom morar aqui, mas tem violncia tambm. Tem muitos
cabras aqui que estupram as mulheres. Esse lado ruim. Antes que eu pudesse responder alguma
coisa, logo chegou Vanir, que parecia muito preocupada com o meu retorno para casa. Disse-lhe
que no se preocupasse, que o cobrador tinha me ensinado como tomar o nibus de volta. Rejeitou a
minha idia, dizendo achar melhor acompanhar-me at o ponto. No a contrariei. Logo depois ela
retornou com um sorriso, dizendo: Alinne, eu articulei uma carona pra ti com o Pierre! O recmchegado cooperante belga, enviado pela ONG financiadora, deixar-me-ia em casa com segurana,
para o alvio de Vanir (DC, 04.11.04).
27
A festa em homenagem aos santos Cosme e Damio, protetores das crianas, acontece tradicionalmente em
setembro nas religies catlicas e afro-brasileiras, com farta distribuio de doces e brinquedos. Fazer um
Cosme e Damio, na forma como foi empregado por Vanir, significa realizar uma festa para as crianas, com
distribuio de doces e brinquedos.
52
28
Pensava em situaes hipotticas que envolvessem riscos de morte mais concretos, como assaltos mo
armada ou estupros, como nos relatos que ouvia.
53
A crescente conscincia das convenes que organizam o mapa social local me fazia
temer e me vulnerabilizava. Ao mesmo tempo, mantinha uma postura de auto-vigilncia:
ser que no estava a sucumbir ao discurso do medo? A um discurso que, em certa medida
me muito familiar, posto ser pervasivo ao universo das classes mdias brasileiras, quer
estejam onde estivessem, como analisa criticamente Caldeira (2000) ao indicar as novas
formas de segregao espacial e discriminao social advindas do que chama de fala do
crime. E nesse momento que o conflito subjetivo que divide o pesquisador pessoa do
pesquisador antroplogo mencionado acima passa a fazer mais sentido. As evidncias
empricas eram recorrentes, a observao de situaes transformava o meu olhar,
bagunava os meus parmetros, aflorava as minhas sensibilidades: o medo se misturava
perplexidade. Nunca presenciara tantos assaltos e situaes de violncia to prximas a
mim como em Recife, que me imputavam um dilema entre o meu medo e os meus
princpios ticos:
Manh de uma quinta-feira, eu esperava o nibus que iria me levar at a casa de Olvia
Lima, presidente da Associao Pr Mulher, situada numa cidade da regio metropolitana de
Recife. Do ponto, lotado, vi o movimento de um grupo de meninos do outro lado da rua, que
estavam sentados no meio da pracinha, situada em frente ao ponto. Eram meninos negros, vestidos
com largas bermudas e camisetas, que ficavam esvoaantes nos seus corpos magros. Um deles
atravessou a rua e se misturou com as pessoas que esperavam o seu nibus. Postou-se bem atrs de
mim. Eu fiquei tensa, olhava de rabo de olho para ele, mas no queria demonstrar medo. Logo em
seguida chegou outra moa no ponto, que ficou ao meu lado. Notando a presena do menino, logo
passou a demonstrar desconforto e desconfiana. Olhava para trs e na sua direo com muita
freqncia. Nesse meio tempo, passaram trs policiais militares, de moto, com farda cinza que mais
parecia uma armadura, capacete, colete que parecia prova de balas e ostensivamente armados.
Passaram devagar, olharam bem para o ponto, pararam mais frente e desceram da moto. Um deles
aproximou-se da parada, com a mo na arma que estava na sua cintura. Apontou para o menino e
fez um sinal com a mesma mo para que se levantasse de onde ele tinha sentado assim que vira o
trio passar. Era evidente a sua postura de demonstrao de poder. O menino assim o fez. Como eu
estava ao lado do menino, a minha reao foi a de me afastar, lentamente, para o outro extremo do
ponto, como todos o fizeram. Estava quase sem ar, os meus lbios secaram, no sabia o que fazer. A
postura hostil do policial me fazia tremer. Resignado, o menino virou-se de costas e colocou as
54
mos na cabea. O policial revistou-o todinho, perscrutou as suas roupas atrs de imagino
alguma arma. No encontrando nada, foi procurar na lixeira que estava ao lado do ponto. Tambm
no encontrou nada. Assim, deu um tapinha, que eu descreveria como amistoso, o que me parecia
absurdo numa cena daquelas, no ombro do guri, e disse-lhe algo, saindo logo em seguida. O guri
virou-se para a praa, possivelmente comunicando-se com os seus amigos que deviam estar
assistindo a tudo, abriu os braos e deu de ombros, rindo-se para eles, numa atitude de como quem
dizia: fazer o qu? Logo foi se juntar com o grupo. As pessoas que estavam na parada no disseram
nada, assim como eu. Assistimos a tudo silenciosos. Quando o guri se afastou, ouvi comentrios do
tipo: ser que era s o nibus mesmo que ele queria pegar? Vestido daquele jeito... Enfim,
duvidavam da posio do guri e se sentiam protegidos pelo policial. Eu me sentia sem parmetros.
Senti muito medo e um misto de culpa. Medo por no saber o que estava acontecendo ali, porque
poderia a qualquer momento irromper um tiroteio, por me sentir vulnervel e desprotegida, por no
saber se temia o menino ou o policial. Culpa por ter sentido medo do menino, por no saber
decodificar se era assaltante ou no, por ter compactuado com aquela truculncia da polcia, por no
ter me manifestado em funo de no saber se sentia medo do guri ou dos policiais. Em seguida o
meu nibus passou e a viagem transcorreu bem, apesar do meu tremor. Quarenta minutos mais
tarde, cheguei na casa de Olvia e contei para Cia, uma ativista do grupo jovem da Associao PrMulher, a cena que presenciara. Miguel, marido de Olvia, se interessou pelo assunto e me
perguntou mais sobre o ocorrido. Contei-lhe com mais detalhes. Disse-me, em seguida, com uma
ironia fina, que Lauro, o seu enteado e filho mais velho de Olvia, era quem mais gostava desses
policiais, posto que sempre o atacavam para revist-lo, ainda mais em funo da sua aparncia: se
tem cabelo comprido e se usa brinco, eles vo longo parando e revistando. Fiquei mais atnita ao
imaginar Lauro, que conhecia e de quem gostava muito, no lugar do menino. Cia perguntou-me se
depois o policial tinha enxotado o guri, prtica comum entre os policiais (DC, 17.03.05).
Geertz (1989), no seu clssico Notas sobre a briga de galos balinesa, descreve
como passou a ser aceito no universo de pesquisa, aps instintivamente ter agido como os
nativos. Segundo afirma, a situao (...) colocou-me em contato direto com uma
combinao de exploso emocional, situao de guerra e drama filosfico de grande
significao para a sociedade cuja natureza interna eu desejava entender (p.283). Sua
atitude deu-lhe acesso a elementos cruciais do universo de investigao. maneira de
Geertz, na situao acima descrita, tambm agi como os nativos e pude aprender mais sobre
aquele universo, entretanto senti-me atravessada por um dilema tico.
Na situao de campo que vivenciei, como alguns nativos, senti medo, afastei-me e
me calei frente ao que me parecia um ritual pblico de humilhao e demonstrao de
fora, aos moldes dos roteiros pblicos (public transcripts) que James Scott (1990)
55
descreve na sua anlise sobre a interao entre os subordinados e aqueles que subordinam29.
Testemunhei o processo de uma pedagogia da desigualdade da qual discordo e combato e
contra a qual, naquele momento, no consegui me manifestar. O dilema se agudizou
quando imaginei o rosto conhecido do meu informante Lauro no lugar daquele adolescente
annimo. A pesquisadora, a cidad e a pessoa entraram em choque. Confrontava-me com
uma ambivalncia entre o medo e a dvida; estava entre dois cdigos que me embaralharam
os sentidos e a razo. O que fazer com o meu medo e com a injustia daquele ato?
Essa diviso mostrava-me, simultaneamente, mais dados sobre o mapa social local e
sobre mim mesma. Por um lado, aprendia sobre as sutis cises intra-classes, sobre as
hierarquias sociais vigentes e sobre como so tratados os encontros entre desiguais. Por
outro lado, percebia o quanto estava implicada nessas cises. Como recorda Grossi (1992),
todo mundo j disse mas nunca demais lembrar que s se encontra o outro, encontrando
a si mesmo (p.15-16); via-me cara a cara com os meus prprios preconceitos,
transformados ali em medo.
No embate com o outro no encontro etnogrfico, colocamo-nos em xeque. Zaluar
(1985), ao abordar diretamente o medo que sentiu ao iniciar seu trabalho de campo na
favela carioca Cidade de Deus, identifica nesse sentimento uma ambigidade em relao ao
rompimento do que chama de barreira que separa classe trabalhadora pobre das outras
classes sociais que gozam de inmeros privilgios (p.11). Pondera que o seu temor
advinha da conscincia crescente dessa barreira invisvel e da imprevisibilidade do
encontro em situaes que fugiriam do seu repertrio cotidiano.
A antroploga percebeu em si, com espanto, os tantos obstculos microscpicos a
entravar o contato social mais ntimo entre ns [pesquisadora e pesquisados] (Zaluar,
1985:11). Da mesma maneira, confrontei-me com dilema advindo da tenso entre a
antroploga-pesquisadora e a antroploga-pessoa (Schwade, 1992). O duplo processo de
deslocamento por mim empreendido, geogrfico e na hierarquia social, provocou-me um
descentramento vivido com angstia, revelado pela sensibilidade do medo. No encontro
etnogrfico, experimentamos a possibilidade de conviver com o outro e, em conseqncia,
de pensarmos a ns mesmos (Grossi, 1992). No enfrentamento dessa sensibilidade ao
retirar dela o seu proveito antropolgico, pude compreender um elemento fundamental que
29
Segundo Scott, podemos entender esse ato de humilhao como um ato pblico de subordinao (1990:
188).
56
No dia em que fui visitar Teresa na casa em que trabalhava como diarista, perto de
onde eu morava, ela estava muito ansiosa para ir-se, antes que anoitecesse. Teresa uma
mulher branca, de 55 anos, analfabeta funcional, me de uma menina de 12 anos. Trabalha
como diarista. Foi candidata a sucessora de Amelinha para a presidncia do Conselho de
Moradores da Vila nas eleies de 2005, no logrando sucesso; a conheci atravs de
Amelinha. Ela temia pegar o nibus muito tarde, porque no dia anterior seu nibus, a linha
Zumbi dos Palmares, fora assaltado por trs cabras armados. Contou-me que era em torno
de 18 horas, j escuro, e que ficaram somente na parte dianteira do nibus: Eles pegaram
um saco de dinheiro da cobradora e depois desceram; foi um horror, pegaram dinheiro,
bolsa e celular das pessoas que estavam sentadas na frente, todo mundo chorava. Sorte
minha que sentei no fundo porque o nibus estava cheio! (DC, 15.06.05).
Estvamos, todas, expostas aos mesmos riscos, mas compartilhvamos da mesma
vulnerabilidade e do mesmo medo? Mesmo nessas situaes de suposta horizontalidade
haveria como re-equacionar as relaes de poder? As lies que aprendera sobre a
alteridade e a contingente vulnerabilidade que representava, levava-me a crer que, se talvez
compartilhssemos a mesma vulnerabilidade, havia algo distinto na sensibilidade do medo.
Eu no conseguia me acostumar a conviver com o medo; no sabia muito bem como lidar
com ele. At que foi chegado o dia do meu batismo de fogo.
Era uma tera-feira de outono tropical, acabara de chegar na Vila e fui informada por Amelinha que
ela teria de sair para uma reunio no diretrio do PT e para a festa de inaugurao do tele-centro de
uma importante ONG local, no centro da cidade30. Acabei me engajando na programao e junteime ao grupo formado por Amelinha, a sua filha Raquel e Maria das Graas. Amelinha se entende
ser morena, tem 65 anos, aposentada da Federao dos Trabalhadores de Pernambuco, onde
trabalhava como secretria. Foi presidente do Conselho de Moradores da Vila por duas gestes
consecutivas. Amelinha tem quatro filhos, dentre os quais Raquel, a nica mulher. Ela a mais
30
Tele-centros so espaos criados na vaga atual por incluso digital e trata-se da disponibilizao de microcomputadores ligados internet para a populao que no tem acesso a esse meio de comunicao.
57
parecida fisicamente com a sua me, tem 32 anos, solteira e estuda numa escola para portadores de
necessidades especiais. Maria das Graas est sempre acompanhando Amelinha nas mais diversas
atividades polticas. Negra, analfabeta funcional de idade indefinida, especula-se que tenha entre 75
e 80 anos; trabalhadora domstica aposentada, milita no Sindicato das Trabalhadoras Domsticas
dentre outras entidades e fazia parte da diretoria do Conselho de Moradores da Vila junto com
Amelinha. Conheci-a nas reunies do FMPE.
No esperamos muito no ponto at passar o nibus meio vazio. Como Raquel tem a carteira
de Passe Livre porque tem um algum tipo de necessidade especial, Amelinha tem direito tambm
por ser sua acompanhante e Maria das Graas por ser idosa, apesar de odiar quando se menciona
algo a respeito da sua idade, as trs ficaram na frente do nibus. Passei a roleta e me sentei no
primeiro banco perto do cobrador ao lado de uma moa. O nibus seguiu o seu rumo.
Logo na segunda parada, percebo que dois homens discutiam e um subiu no nibus. Era
um rapaz negro, de seus vinte anos. Usava camiseta azul, uma bermuda cinza, chinelos e um bon.
Ele entrou de forma intempestiva no nibus. Parecia meio transtornado, agitado demais. Olhei bem
para ele e percebi o seu olhar transido, os olhos esbugalhados e sangneos. Ele lanou um olhar
avaliador para os passageiros, parou na roleta e levou a mo na cintura, levantando a sua camisa.
Fiquei olhando para ver o que viria na mo que buscava o lado esquerdo da cintura; pensei: ou a
carteira ou uma arma.
Foi tudo, curiosamente, muito rpido e demorado demais. Ele estava muito nervoso e
quando finalmente a mo subiu, revelou uma arma preta que apontou para o cobrador pedindo todo
o dinheiro que tinha, aos berros. Uma estranha calma e lerdeza me tomou, ao mesmo tempo em que
a minha respirao parecia ter parado. Ele pegou o dinheiro do cobrador, voltou-se e foi para cima
de Raquel, que se acuou num canto, escondendo a bolsa. Olhei para Amelinha que me olhava
apavorada e olhava para Raquel. Ele gritava e pedia as coisas, mas estava to transtornado que no
conseguia pegar nada alm do dinheiro do cobrador. Depois foi at o motorista e colocou o revlver
na sua cabea, mandando que parasse. Achei que fosse descer pela frente. Meu corao pinoteava e
o ar no vinha; estava gelada e tremia inteira. Olhava para os lados e no sabia o que fazer. Olhei
para a moa ao lado e fiz tudo o que ela fazia, to perdida quanto eu. Vi que ela jogara a sua bolsa
no cho, fiz o mesmo. Ele passou a roleta e veio em nossa direo; ela pegou a bolsa rapidamente.
Fiz o mesmo. Ele apontou a arma para o meu rosto e transitava a mira, nervosamente, de mim para
a moa ao meu lado. E o ar, que no vinha... e a moa que falava que ele tinha visto que tnhamos
escondido a bolsa (a minha cabea rodava: tnhamos? Ai, e esse ar que no vem...) e ia nos matar,
que dssemos tudo pra ele e ele gritando, passa tudo! E com a arma apontando para todos os lados,
e tudo isso girando na minha cabea como uma vertigem: no parecia ser verdade aquilo; e ele
pegando a bolsa da menina e percorrendo os bancos ao longo do corredor, ameaando todo mundo,
retornando, jogando a bolsa no colo dela e mandando que abrisse e jogasse tudo para fora e aquela
58
arma na minha cara e o medo de olhar diretamente para ele e o ar que no vinha e aquela estranha
calma e o meu tremor que no conseguia abrir a bolsa e retirar a minha moedeira... Baixei a cabea
e olhei para a moa ao meu lado, enquanto o cara percorria os bancos gritando e pedindo celular e
dinheiro. A moa chorando me dizia d tudo para ele, tudo que tu tiveres, ele vai nos matar, ele vai
nos matar; ele quer dinheiro, d dinheiro para ele. Peguei todo o dinheiro que tinha com as mos
trmulas que mal seguravam a nica nota de dez reais e algumas poucas moedas. Fiquei com a mo
estendida no ar com o dinheiro e ele no voltou. A cara de pavor da moa ao meu lado no me saa
da cabea e o seu mantra ele vai nos matar ressoava nos meus ouvidos. Virei-me, ele chegou no
fundo do nibus e gritou para o motorista abrir a porta e desceu.
A menina do meu lado entrou num choro convulsivo. Eu, trmula sem conseguir respirar e
suando frio, abracei-a e tentei acalm-la. Amelinha desesperada do outro lado da roleta perguntavame como eu estava. Logo comearam as reaes das pessoas no nibus. Uma senhora contou que
quando vira a arma, sentou-se em cima do seu celular. Um rapaz que estava voltando do trabalho,
disse que tinha dado as moedas e alguns reais que tinha na sua pasta. O mais prejudicado foi um
senhor que estava sentado atrs de mim, de quem o cara pegara a carteira e o celular. Ele dizia que
no tinha muito dinheiro, no mximo cinco reais, o seu Hipercard e os seus documentos. Mas
entregara tudo assim mesmo, porque quanto mais rapidamente o ladro conseguisse o que quisesse,
mas rapidamente livrar-nos-amos dele. O cobrador dizia que era a sua primeira corrida do dia e o
caixa estava quase sem dinheiro. Amelinha queria saber se ele tinha levado alguma coisa minha e da
moa que ainda estava em prantos. Disse-lhe que no, mas que ela estava muito assustada, por isso
chorava. A moa, que foi se acalmando paulatinamente, explicou que s chorava assim porque
estava com uma virose e porque nunca tinha sido assaltada, por isso estava to nervosa. Disse-lhe
que tudo bem, que podia chorar o quanto quisesse. Ela repetia, meio obsessivamente: ele ia nos
matar, era uma arma velha e o tambor estava solto e quando ele apontava para todos os lados e
achei que ele ia disparar...
A chuva caia fina, para tornar a situao mais confusa. Do nada apareceu um cara que se
escondera atrs do ltimo banco, no fundo do nibus, e perguntava se os estragos tinham sido
grandes. J em p, ele sinalizava para o nibus de trs sobre o assalto. Passamos por dois policiais
que estavam se protegendo da chuva num toldo de uma loja na grande avenida. A imagem dos
policiais parece ter despertado alguma sentimento de fria coletiva e uma sede de vingana tomou
as pessoas, que se jogaram nas janelas e passaram a gritar a plenos pulmes para eles irem atrs da
alma sebosa, do marginal. A impresso que dava, no gesto coletivo, era de que a impotncia frente
ameaa armada se transformara em sede de vingana. Os policiais acharam que o assaltante ainda
estava no nibus e o cercaram, mas o motorista indicou onde ele tinha descido e, dando meia volta
nas suas motos, foram atrs dele.
59
A indignao era geral. Cada um dava uma caracterstica do rapaz; diziam que ele era cego
de um olho, outros como Amelinha repetiam: s podia ser do Jordo, l s tem marginal!31 Uns
diziam que gente como ele tem de morrer, tem mais jeito no. Adianta prender, no. Tem mesmo
que matar logo. O senhor atrs de mim contava que j tinha voltado para casa, mas como esquecera
de buscar os exames do filho doente, tivera de sair novamente de casa. Dizia-nos que parecia ter
sido uma luz de deus que o fizera tirar o boleto dos exames da carteira e colocado no bolso e, em
gesto contnuo, tirava o papel amarfanhado do bolso e me mostrava. A senhora que escondera o
celular discursava sobre o absurdo da situao: no se tem mais segurana nenhuma! A gente s
pode contar agora com a ajuda de deus! E o cobrador quem mais sofre, porque o roubo sai do
bolso dele depois. O rapaz que estava ao meu lado, na outra fileira de bancos, consolava o senhor
que perdera o celular e a carteira: coisas materiais vem e vo; deus nos ajuda a ter de novo. Temos
de agradecer por ningum ter se machucado! Uma outra, desavisada, no entendia os comentrios
sobre o acontecimento porque, segundo ela, estava lendo concentradamente e no vira nada.
O motorista estacionou na delegacia mais prxima e, estressado, dizia: quem foi
prejudicado e queira dar queixa, que desa. Os outros que peguem outro nibus! Fui descendo e
rumando para delegacia. No perdera nada material, mas achava que deveria continuar com o
grupo, testemunhar, enfim. Foi quando Amelinha me puxou pelo brao e com olhar de interrogao
me interpelou: mas tu perdeste alguma coisa, foi? Meio atordoada e assustada, fiz que no com a
cabea. E ela continuou: Oxe, bora para reunio, ento, menina! Seno a gente vai se atrasar! Isso
vai demorar!, levando-me pelo brao e me fazendo entrar no outro nibus que parara mais frente.
O assunto rendeu at o centro. Uma das passageiras reclamava que no agentava mais essa
situao j que estavam assaltando muito nessa linha. Contou-nos que presenciara o roubo da mesa
do cobrador. Concluiu a sua histria, salientando que, por essas situaes, era a favor da pena de
morte: Se o Brasil fosse um pas srio, como os Estados Unidos, teria pena de morte e isso no
aconteceria. Vai ver se nos Estados Unidos as pessoas vivem assim, com medo de at entrar num
nibus, saindo para trabalhar com medo, sem saber o que vai acontecer com elas? Amelinha dizia
que era contra a violncia, mas que dava vontade de dar uma pisa bem grande num sujeito desses,
de pegar e bater com um pau bem forte na cabea. Passou a contar de situaes de assalto em
nibus que envolveram seu marido e seus filhos.
O foco da sua narrativa era as estratgias para se livrar do assaltante: um colocou o dinheiro
que tinha no cho e pisara em cima, outro afugentara o pivete com um croque na cabea. Comentou,
ainda, entre risos, que Maria das Graas estava resmungando e xingando o assaltante, dizendo que
tinha de dar com um porrete na cabea daquele vagabundo. Outras diziam que tinha de mat-lo,
porque gente desse tipo no tinha jeito e Amelinha tagarelava que a lei do desarmamento uma
31
Jordo um bairro vizinho ao Ibura, tambm conhecido localmente pelo seu carter violento.
60
porcaria, porque s quem entrega as armas so os cidados de bem; bandido no entrega arma
nenhuma32. E da o cidado de bem fica sem poder se proteger. Outra contou que at um
aposentado andava assaltando os nibus, mas que tinha sido preso.
Eu estava emudecida e continuava lvida. Amelinha perguntava se eu estava bem. Dizia-me
estar preocupada com as minhas coisas, que quando olhou o assaltante apontando a arma no meu
rosto se apavorou e comeou a rezar, mas no conseguia lembrar de nenhuma orao. Rindo-se,
disse-me: agora tu ests recobrando um pouco de cor, porque quando eu te vi, tu estavas plida,
que eu achei que tu ias desmaiar! Eu ouvia as conversas e no sabia o que dizer. Tudo parecia-me
to absurdo e surreal. Nunca vira uma arma to de perto. A sensao que me tomava agora era a de
no entendimento. No entendia o fato de termos corrido risco de morte por pouco mais que nada;
quase perdramos a vida por pouco mais que nada. No entendia a habilidade das pessoas em
esconder as suas coisas para evitar o roubo, a reao virulenta seguida da conversa entre jocosa e
descontrada de Amelinha. No entendia como a vida seguia o seu rumo, como estvamos indo para
uma reunio e depois para uma festa. Sobretudo no entendia o que se passava comigo: a
ambivalncia de medo e compaixo que sentia do/pelo rapaz. No sentia raiva dele e tampouco
sentia raiva das pessoas que falavam em pena de morte. A situao me parecia surreal e sentia-me
anestesiada.
Perguntei Amelinha como lidava com isso, porque a reao delas trs, assim como das
outras pessoas no nibus, me surpreendera. Disse-lhe que me parecia, pela reao delas, que
acontecera algo rotineiro, a ponto de no mais afetar o fluxo da vida cotidiana. Ela argumentou,
salientando que a violncia no era algo normal e que no se poderia achar normal aquilo. Disse-me
que nunca acontecera com ela algo como o que passramos, uma ameaa com revlver: somente
uma vez, quando eu estava num ponto de nibus, com os meninos. Raquel e Roberto ainda
pequenos e veio um cabra e deu um murro no meu peito, me derrubou e levou a minha bolsa. Foi
um susto que s, minha filha. Mas desse jeito, no, nunca aconteceu. Eu no sei como eu vou
acordar amanh; pode ser que eu acorde e no consiga tirar isso da cabea... Mas o melhor que se
pode fazer tentar esquecer, porque a gente vai fazer o qu? Eu no vou deixar de sair, de
participar das coisas por causa disso. A gente precisa pegar nibus, ento, tem que tentar esquecer
e entregar nas mos de deus...
Raquel, Maria das Graas e Amelinha continuaram a falar e repassar o ocorrido. Raquel
comentava que o cara tinha ido para cima dela, pegar a sua bolsa, mas escondera do outro lado.
Asseverou que no iria dar a sua bolsa porque carregava o seu carto de Passe Livre. Maria das
32
A lei do desarmamento a que se refere Amelinha o Referendo sobre o Desarmamento que se realizaria em
outubro de 2005. O referendo visava consulta popular para a ratificao ou no do Estatuto do
Desarmamento, que regulava a proibio de venda de armas de fogo no Brasil. Aps meses de intensa
campanha na mdia, o referendo foi realizado e os brasileiros decidiram pela no proibio do comrcio de
armas.
61
Graas contou-nos que quando viu a arma, colocou a bolsa dela embaixo do banco, bem escondida.
Amelinha no se cansava de repetir que o bandido tinha colocado o revlver no meu rosto e repetia
a narrativa para cada nova pessoa que encontrava, at nos despedirmos, s 21:30 h.
Mais tarde, j na festa, o assunto retornou e Maria das Graas deu mais um detalhe do
ocorrido: quando ele estava de costas para mim, com a arma apontada para baixo, eu quase que
pego a arma dele. Estava bem fcil, se eu fosse um homem forte, pegava. Sorri do jeito de Maria
das Graas, do contraste entre o seu jeito franzino e a fora do seu discurso, e salientei que era
muito corajosa. Ela se empolgou e continuou: o qu? Comigo no tem essa no! Eu j corri um
cabra vara do Sport num carnaval!33 No entendi o que queria dizer e ela me contou a histria em
detalhes: num carnaval, eu e minhas colegas, no sabe, tambm domsticas, que trabalhavam nas
casas prximas a que eu trabalhava, samos para brincar o carnaval. A um cabra veio nos
incomodar e eu no tive dvidas, peguei a bandeira do Sport que tinha nas mos e grudei na
cabea dele, que saiu correndo. A vara quebrou, mas tudo bem, era baratinha e depois eu comprei
outra! Logo nos despedimos e nos separamos; elas reiniciariam o trajeto inverso de volta para casa.
Fiquei angustiada em saber que elas estavam correndo o mesmo risco novamente. E, ao
chegar em casa, desandei no choro que sufocara o resto do dia. Um choro de alvio por ter chegado
em segurana, um choro de temor por saber que elas estavam ainda em risco, risco que no me
parecia ter prazo de trmino, e por no saber se conseguiria voltar l. Uma idia fixa me tomava: eu
tinha escolha e elas no. Eu poderia escolher no mais pegar o nibus, no mais ir vila, no mais
ficar em Recife e elas no. Mas essa sada, agora, me parecia sem sentido. De que adiantaria
encerrar a pesquisa e ir embora? Um estranho sentimento de compromisso e obrigao me faz ficar.
Mais tarde liguei para Amelinha, para saber como tinham chegado. Disse-me ter chegado bem e que
eu procurasse esquecer o que acontecera: a vida continua, o pior o cobrador e o motorista, que
esto sujeitos quilo todos os dias. Eu vou tentar dormir tambm e espero esquecer tambm. Deilhe razo, a vida continuava, a delas e a minha. Despedi-me com um nico pensamento: de onde
tiraria coragem para pegar aquele nibus novamente? (DC, 17.05.05)
62
Os meandros da disputa eleitoral e os sentidos ali produzidos sero analisados no captulo cinco.
63
modo como a maioria de meus informantes o faz. Mais difcil porque no diz
respeito apenas ao contedo imediato da relao entre ns, mas a seu sentido mais
amplo, as suas nuanas simblicas. (Geertz, 2001:37-38)
Ao usar a idia de ironia antropolgica, o autor refere-se ao estabelecimento da
relao entre pesquisador/pesquisado marcado por uma desigualdade material e de como
essa disparidade afeta o vnculo estabelecido e as interpretaes distintas sobre ele. Tal
idia parece-me til no caso analisado porque ajuda a esclarecer o forte impacto subjetivo
seguido do radical no entendimento por parte da pesquisadora que redundou no
sufocamento do choro e nas interpretaes que dele derivaram, sobretudo na iluso das
possibilidades e impossibilidades de escolhas (minhas e delas) de permanecer ou no em
risco. A conscincia da minha transitoriedade contrastada com a sua perenidade nessa
condio que me atravessava, embora revelasse a iluso de viver como o nativo
(Schwade, 1992), demonstrava tambm o quanto estava empenhada num olhar etnocntrico
e compadecido, enviesado pelas faltas.
O no entendimento radical que me tomara indicava um ndulo de sentido a ser
desvendado. A minha hiperbolizao dramtica do ocorrido, traduzida na lividez, no ar
atnito e na minha incompreenso, contrastava com o pragmatismo das minhas
interlocutoras frente ao episdio e parecia dizer algo mais sobre a alteridade e essas
mulheres com quem pesquisava. O riso, provocado pela lembrana da minha cor
caracterstica exacerbada pela lividez causada pelo susto do assalto, parecia querer dizer
alguma coisa a mais. Havia algo a mais a compreender dessa explicitao da diferena
entre ns, representada pelas nossas distintas formas de lidar com o medo. O investimento
retrico no ocorrido evocava um desprendimento e uma certa bravura em lidar com essas
situaes, que contrastavam, seno com a minha covardia, pelo menos com a minha
fragilidade ali naquele contexto.O enquadramento necessrio anlise antropolgica, de
que nos fala Fonseca (1999), que contextualiza pesquisadores e pesquisados e situa os
termos da sua interao, dispensado sensibilidade do medo permitiu-me abrir os olhos,
afinar a escuta para as convenes locais ao mesmo tempo em que me colocava em
perspectiva naquele contexto.
Como bem lembrou Grossi (1992), no forte impacto que a experincia
compartilhada do assalto me proporcionou, eu encontrava a mim mesma na mesma medida
que encontrava as minhas interlocutoras. Assim, essa convergncia de sensibilidades
supostamente compartilhadas e tratadas de maneiras distintas apresentava-me uma nova
64
65
tomou... Mas daqui a pouco j melhoro. Perguntei o que o seu marido tinha dito sobre o ocorrido.
Ela comentou que todos na sua casa ficaram muito preocupados, mas o contava era que nada de
mais srio tinha acontecido e ningum se ferira: a f que a gente tem que leva a gente!
Conversamos mais um pouco. Repassamos vrios assuntos, desde a notcia do seqestro de um
oficial da aeronutica que ouvira no rdio, elucubraes sobre os sinais da falta de deus na vida das
pessoas e da falta de f at a receita do bolo integral de banana que eu fizera e levara para ela. No
final da conversa, ela me desejou um bom final de semana: descanse bem, esquea do que
aconteceu e procure se distrair. V passear, minha filha! No trabalhe tanto, no! Ri do seu jeito
maternal, agradeci a sua ateno e disse-lhe que seguiria as suas sugestes, retribuindo o desejo de
um bom final de semana (DC 20.05.05).
66
da manh, pegou um cacho de uvas e comeu alguns gros. Raquel, observando o jeito da me,
comentou comigo: olha pra desde que aconteceu a tragdia com o meu irmo ela no come mais,
s fica assim35. Amelinha retrucou, explicando-me: no isso, que toda vez que fico nervosa sinto
dor de barriga, j fui no sei quantas vezes ao banheiro, por isso que no consigo comer. Ato
contnuo, tomou um remdio para o seu problema e saiu para o Conselho (DC 27.03.05).
A tragdia a que se refere Raquel foi o atropelamento sofrido pelo primognito de Amelinha, Ronaldo, o
qual ser analisado no captulo 5.
36
Pr a arapiraca na mesa um expresso nativa referente performance poltica e que traz um forte sentido
de gnero. Os sentidos de poder e gnero negociados e expressados no espao poltico do FMPE, tomado
como representativo do campo feminista local, sero analisados no captulo seguinte.
67
68
CAPTULO II
CAMPO POLTICO FEMINISTA DE RECIFE : PRXIS FEMINISTA E O CAPITAL DE ARTICULAO
POLTICA
____________________________________________________________________
Feminista eu acho j uma questo muito terica, elas usam muito a
teoria. Por exemplo o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher
(COMDIM) est to longe, to longe das mulheres populares. So
advogadas, so jornalistas, mdicas que tm um assunto terico,
sabe? Eu acho que muito terico, fazem muito relatrio terico.
Mas tu no vs elas na prtica. Tu no vs esses movimentos dentro
das vilas. E tu tambm no vs nem elas abrirem muito espao. Eu
acho que so mulheres que lutam mais pelos direitos das mulheres
feministas, independentemente dessa coisa de defender todas as
mulheres. Para mim feminista algo, sei l, uma pessoa terica. S
tem estudo do que a mulher. Digamos, seria diferente do que
uma mulher mulherista, que so as questes reais da mulher. Ento
feminismo para mim, seria algum de classe A ou B.
(Lia, Promotora Legal Popular gacha, apud Bonetti, 2000, p.144)
A posio da ativista dos direitos das mulheres gacha sintetiza alguns dos inmeros
velhos embates que constituem o campo poltico de mulheres/feminista: tenses de classe e
de nvel educacional37. Em especial, revela uma disputa por uma posio de destaque no
campo poltico. Em funo disso, ele digno de nota porque introduz um novo elemento
para se refletir sobre aquelas velhas tenses, subsumido na categoria nativa mulherista. Ela
denota uma relao de alteridade entre a feminista e uma de suas outras, que articula
principalmente eixos de diferenciao de gnero e classe, demarcando uma especificao
no campo poltico feminista atravs da busca de um lugar de destaque nele. Tal categoria
nativa abre novas possibilidades de compreenso do ativismo poltico das mulheres de
camadas urbanas de baixa renda.
Inspirada por esta experincia de ativismo poltico feminino popular gacho, eu
busquei investigar as possibilidades da sua generalizao para outros contextos do campo
poltico feminista/de mulheres e foi assim que me deparei com a experincia
pernambucana. Para se compreend-la, faz-se crucial entender como se constitui o campo
37
Utilizo o conceito de campo poltico tal como proposto por Bourdieu (1989), cuja caracterstica a de ser
marcado por uma distribuio desigual dos instrumentos de produo de uma representao do mundo social.
O campo poltico um campo de foras e de lutas; (...) o lugar onde se geram, na concorrncia entre os
agentes que nele se acham envolvidos, produtos polticos, problemas, programas, anlises, comentrios,
conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidados comuns, reduzidos ao estatuto de consumidores,
devem escolher (...)(p.164).
69
poltico feminista/de mulheres em que est inserida, com o qual dialoga e pelo as ativistas
qual transitam. Lancei mo do olhar vocacionado para o microscpico da etnografia a fim
de compreender os mecanismos internos de constituio desse contexto, as suas tramas
polticas, tratando-o como um campo discursivo fortemente marcado por relaes de poder
e gnero (Alvarez, 1998) e por um sistema de distribuio de prestgio e privilgios (Ortner
e Whitehead, 1981), cujo principal elemento constitutivo identificado o capital de
articulao poltica.
Neste captulo pretendo analisar a configurao do campo poltico feminista em
Recife, ressaltando os elementos compartilhados com o brasileiro, o seu lugar de destaque
regional, bem como as nuances das cores locais. Tal campo extremamente dinmico,
composto por diferentes agentes e disputas, o que desafia a todo momento a sua prpria
configurao, anlise a ser aprofundada no prximo captulo.
Meca a principal cidade santa do islamismo, centro de peregrinao dos muulmanos. Por derivao de
sentido, nos usos correntes na lngua portuguesa, Meca passou a ser sinnimo de um centro das atividades ou
ponto de convergncia das atenes, interesses ou aspiraes de um grupo de pessoas ligadas por algum
elemento comum (Dicionrio Eletrnico Houaiss). Devo antroploga Soraya Fleischer o bem humorado
insight sobre Recife como a Meca do feminismo no Brasil. No entanto, os meus dados me permitem falar da
influncia de Recife como Meca feminista na regio nordeste. Assim, cautelosamente restrinjo a sua
abrangncia.
70
que recebi de uma ativista feminista conhecida localmente. Foi ela quem me ensinou sobre
os cdigos do campo, alertando-me para observ-los cuidadosamente, e que intermediou a
minha introduo a ele. Segundo ela, eu deveria comear pelo Frum de Mulheres de
Pernambuco, posto ser o espao legtimo de entrada no campo feminista local. Ali deveria
me apresentar como sua amiga pessoal, apresentar meu projeto de pesquisa e meus
objetivos com transparncia, alm de contar sobre a minha trajetria de ongueira
feminista reforando o detalhe de que trabalhara com as mulheres na ponta, fato, segundo
ela, muito valorizado, posto que me colocaria num outro lugar, demarcando que tenho um
duplo pertencimento: academia e militncia. Sugeriu tambm que eu comeasse pelo SOS
Corpo Instituto Feminista pela Democracia, por ser a ONG mais antiga e influente do
local, em termos de prestgio poltico e recursos. O curioso que essa indicao surgiu
recorrentemente nos mais diversos espaos pelos quais circulei. Era como se todos os
caminhos me levassem a ele:
Conheci Samuel por intermdio de Eduardo, seu companheiro. Ambos fazem parte do
campo das ONGs recifense. Quando o conheci, Samuel, com seu jeito agitado, foi logo me dando
dicas para a pesquisa e alertando-me para as estruturas de poder dentro das ONGs, em especial do
SOS Corpo. Disse-me que estar na cpula me facilitaria. Indicou-me que falasse com Moema
Pereira, ativista da ONG, que, segundo ele, tem ampla circulao tanto na cpula quanto na base e
que seria um bom contato para mim. Sugeriu tambm Rita Portugal como outra da cpula do SOS,
que ela era muito dura, um pouco arrogante, mas que se ela gostasse de mim, seria um doce e me
abriria todas as portas. Estranhei a sua franqueza, j que mal nos conhecamos, e ele, rindo-se,
disse-me: eu no tenho papas na lngua. Tudo que eu te disse, eu falo para ela tambm. Elas no
gostam muito de mim, mas eu falo. Mesmo no gostando de mim, elas sempre me chamam para
fazer trabalhos para elas, traduzir textos, elas me respeitam muito. Contei-lhe que tinham me
indicado Augusta Botelho. E ele: xi, essa no, essa da ral. Te liga na cpula, da tu vais ter
todas as portas abertas (Dirio de Campo, doravante, DC, 06.10.04).
pesquisa. Em ambos os casos, na sua apresentao, descreveu-me como sua amiga, muito
tica e comprometida. Logo recebi um e-mail de uma ativista do SOS Corpo, respondendome que as reunies do Frum so abertas e acontecem praticamente todas as semanas.
No faltaro, portanto, oportunidades para voc estar conosco e, desde j, saiba que ser
muito bem-vinda. Na primeira visita que fiz ONG, no meu segundo dia em Recife, fui
apresentada s integrantes da equipe que estavam presentes. Eva Guimares, uma das
ativistas que comeou a sua carreira ativista no Grupo de Mulheres do Morro da Velha
quando era moradora do bairro, ao me ser apresentada, disse-me de forma muito
circunspecta: eu acompanhei a sua vinda pela internet, voltando-se logo para os seus
afazeres (DC, 07.10.04).
Frente a essa movimentao via internet, a parcela do movimento que tem acesso ao
mundo digital soube antecipadamente sobre a minha ida. O acesso diferencial ao mundo
digital parece seguir a diviso nativa interna ao universo do FMPE: as ONGs feministas,
com maior estrutura e recursos materiais e as associaes de mulheres de base, sem acesso
cotidiano ao mundo digital. Muito embora o foco de interesse imediato da minha pesquisa
fossem os grupos formados por mulheres das camadas urbanas de baixa renda, justamente
os que no tinham acesso imediato s informaes do mundo digital, essa insero foi de
muita importncia.
Lanar mo de recursos de indicao e de seguir redes de conhecidos para a
insero de pesquisadores nos seus campos de pesquisa parece ser uma prtica comum. No
entanto, a necessidade de afianamento parece-me ser uma peculiaridade do universo de
pesquisa no campo poltico, posto tratar-se de um espao de alta competitividade e disputa,
no qual a imagem pblica o grande bem poltico e que deve ser muito bem preservado.
Para alm disso, esse processo de negociao tambm denota os ndulos de fora e
prestgio dentro do campo. O reconhecimento da distino de determinados grupos dentro
do campo poltico est na base da relevncia do movimento feminista de Recife para a
regio nordeste. Em diferentes momentos ao longo da pesquisa, em conversas com algumas
representantes do movimento feminista nordestino sobre a efervescncia associativa de
Recife, essa relevncia imediatamente reconhecida39.
39
Estive em contato com representantes do movimento feminista Nordestino em especial no Frum Social
Nordestino, ocorrido de 24 a 28 de novembro de 2004, e no Seminrio Regional da Articulao de Mulheres
Brasileira (AMB), ocorrido de 09 a 12 de abril de 2005, tive a oportunidade de ter contato com ativistas de
outros estados do nordeste. Frum Social Nordestino (FSNE) foi uma verso regional e preparatria para o V
Frum Social Mundial (FSM), ocorrido em Porto Alegre, em janeiro de 2005. Acompanhei os dois eventos e
72
73
O primeiro dia foi marcado pela troca de experincias entre cada frum de mulheres
da regio nordeste. A dinmica de trabalho se deu da seguinte forma: cada frum se reuniu
e refletiu sobre a sua prtica de acordo com um roteiro sugerido pela secretaria executiva da
AMB. O roteiro continha as seguintes questes: 1. perfil poltico das militantes do frum, a
sua composio, tempo de existncia, descrever o melhor que puder; 2. Como cada frum
equaciona movimento social e governo, como se d a relao entre militncia e estado; 3.
Questo da relao capital interior, se de mbito estadual ou municipal; 4. Sobre a
institucionalidade dos fruns, se necessrio uma estrutura mais formalizada ou no; 5.
Como o processo de relao dos fruns com a AMB, as representaes, os
pertencimentos dos fruns e as suas representaes (DC, 09.04.05).
No final do primeiro dia de trabalho, os grupos passaram a socializar o produto das
suas discusses. No mapeamento da composio e experincia de cada frum, j se percebe
a consolidao do movimento feminista em Pernambuco. O frum de Pernambuco o mais
antigo da regio, com 17 anos de existncia, o que tem maior nmero de grupos nos seus
quadros e o que tem uma sistemtica de trabalho mais permanente. Enquanto a maioria dos
fruns se rene mensalmente, o de l prev no seu planejamento duas reunies mensais.
Alm disso, o nico que tem recursos prprios (a cifra citada foi de mais ou menos 60 mil
reais) oriundos de projetos financiados por agncias de cooperao internacional. Frente ao
relato da dificuldade de manuteno dos outros fruns, essa revelao causou frisson no
grupo. O que foi seguido por uma avalanche de pedidos de ajuda e de dicas ao grupo de
Pernambuco para construo de projetos bem sucedidos como o seu, j que no se faz
poltica sem dinheiro (DC, 09.04.05).
A presena da BEMFAM Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil em
alguns fruns de mulheres da regio nordeste, trouxe tona a polmica feminista histrica
sobre a ao dessa instituio no Brasil41. No posicionamento diferenciado frente a sua
presena nos fruns pode-se ter idia de como Pernambuco, e em especial Recife, tornou-se
a Meca do feminismo nordestino. Tal polmica situa-se no mbito dos debates e lutas
41
74
feministas acerca da Sade da Mulher que deram origem a muitas conquistas nesse mbito,
como o Programa de Ateno Integral Sade da Mulher (PAISM) e a defesa dos Direitos
Reprodutivos como elementos fundamentais na garantia da cidadania das mulheres. Cabe
salientar que o campo da sade feminina um dos mais fortes no movimento feminista
brasileiro em geral, e no nordestino em particular.
A BEMFAM, criada em meados da dcada de 60, esteve associada a prticas de
esterilizao em massa que atingiram particularmente a regio Nordeste. Apoiada pela
Federao Internacional do Planejamento Familiar, voltada ao financiamento de clnicas de
controle da natalidade, estabeleceu convnios com Estados e municpios ao longo das
dcadas de 60, 70 e 80 e implantou programas comunitrios de planejamento familiar,
especialmente no Nordeste (Silva, 2000; vila e Corra, s/d). O problema da esterilizao
em massa, que tinha um forte recorte de classe e de raa, redundou em diversas aes, tais
como a criao de uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) sobre o tema em
Pernambuco e no Brasil no incio da dcada de 90 e a posterior criao da Lei do
Planejamento Familiar - Lei n. 9.263 - 12/01/96 (vila e Corra, s/d e Jardim, 2005).
A seguinte discusso, travada entre diferentes atrizes do campo poltico feminista
nordestino, revela um protagonismo histrico do movimento feminista pernambucano e a
sua posio de destaque na regio:
75
Segundo ela, a nica entidade que d apoio ao frum. Por isso complicado no aceitar a
BEMFAM. Passou a fazer uma longa defesa, salientando que a BEMFAM tinha dado todo o apoio
ao frum, inclusive dispensando uma funcionria [que estava participando do seminrio]. Alm
disso, apia com recursos materiais, dando dinheiro e espao fsico. Salientou que no h um
movimento muito articulado no Cear e que se no contarem com a BEMFAM, no tero ningum
mais. Disse tambm que as entidades do Cear no tm acmulo feminista para discutir essa
questo e que seria importante que a AMB as subsidiasse.
O grupo do Piau, um dos mais silenciosos ao longo do seminrio, absteve-se de
comentrios mais diretos sobre os temas em pauta e sugeriu que se retornasse para os fruns, a fim
de discutirem essas questes. Uma das representantes do Maranho contou sobre como era a relao
da BEMFAM com o frum de mulheres local: no Maranho ela tem nos namorado, mas estamos
com cuidado porque ns, mulheres no frum, no temos claro o lugar da BEMFAM na histria das
mulheres. No Maranho, a BEMFAM est com Zequinha Sarney, deu dinheiro para a sade da
mulher, por isso esto fazendo coisas e as organizaes autnomas no. Mas a funo do estado,
a nossa de monitorar.
A secretria executiva da AMB, Las Albuquerque, passou a falar da BEMFAM e resgatou
a sua histria de associao poltica controlista norte-americana. Disse que enquanto SOS Corpo
(instituio pernambucana da qual ela faz parte), no estamos onde est a BEMFAM. E para isso h
dois argumentos. Primeiro: ns fomos o nico pas da Amrica Latina que se recusou a usar o
financiamento da USAID/BEMFAM para ir para Beijing. Quase que a gente no foi. Mas no
usamos. O posicionamento da secretaria da AMB o seguinte: o SOS Corpo no fica em espaos
onde est a BEMFAM. Se entrar no comit poltico (instncia deliberativa da AMB, formada por
representantes de diferentes regionais), a gente sai. Ela foi responsvel pela esterilizao em massa
no Brasil e at hoje no se retratou publicamente, no fez a autocrtica. Ento no podemos aceitar
a presena da BEMFAM e, segundo, no uma organizao da sociedade civil, o frum um
espao de articulao do movimento social e a BEMFAM uma organizao para-estatal. Mas at
hoje isso nunca foi para o comit poltico, para ser deliberado. Por enquanto uma questo de
cada frum, de deliberar. O dia em que for para o comit, ele ter de se posicionar sobre isso. Por
enquanto nada chegou.
Logo em seguida, uma das representantes de Pernambuco se manifestou, salientando que o
frum de Pernambuco nunca fez relao com a BEMFAM: Em 2003 eles fizeram contato com a
gente, chamaram para conversar. Mas a gente questionou sobre qual a poltica adotada por eles,
se tinha modificado e se eles iam fazer uma retratao. Como no era nada disso, a gente disse que
no podia fazer parceria. E fomos firmes em no aceitar negociao. Uma das representantes da
Paraba contou que na Paraba h uma feminista histrica trabalhando na BEMFAM que quis se
76
filiar Rede Nacional Feminista e foi recusada. A BEMFAM tem muita relao com o Estado.
Hoje tem uma feminista na Rede de Mulheres da Paraba que tem vnculo com a BEMFAM, mas
est como autnoma. Outra representante paraibana ponderou que se trata de uma questo muito
delicada. Devemos tomar uma deciso poltica e pensar no porqu de a BEMFAM querer entrar no
movimento de mulheres hoje. H muitas feministas que esto desempregadas e vo trabalhar na
BEMFAM, mas h limitaes. O que fazer? importante resgatar a histria para tomar uma
posio poltica. Dentro das redes de mulheres, h mulheres do movimento popular que esto
recebendo trabalho da BEMFAM.
Outra representante pernambucana contra-argumentou que o frum um espao de
articulao do movimento. A BEMFAM no uma organizao que faa movimento de mulheres.
Para ns s entra organizao de mulheres e feministas autnomas. A BEMFAM continua sendo
um brao do governo, ento estranho estar nesse espao, que do movimento.
A representante cearense, funcionria da BEMFAM, se manifestou, fazendo uma autodefesa: para mim muito complicado, difcil. No me vejo diferente hoje por estar trabalhando na
BEMFAM. No vejo diferena do trabalho da BEMFAM hoje e da AMB, do feminismo. A
BEMFAM est mudando, ajuda a fazer controle social. H que se dialogar, se abrir a possibilidade
de dilogo, antes de sair, de se retirar, importante dialogar. Dentro dos fruns no h somente
movimento social, h ONGs que ora esto no movimento e ora na execuo. No Cear no existem
grupos de mulheres feministas. Se o frum tiver de esperar pelo movimento, no vai existir a longo
prazo. Existem entidades mistas, que tm mulheres que esto tentando colocar a questo de gnero
e do feminismo. A gente sabe que tm grupos de mulheres na periferia, mas que no tm
perspectiva feminista e ns estamos tentando levar o feminismo para elas. J estamos fazendo
contato com elas. A secretria executiva interveio novamente, tentando encaminhar a discusso. Ela
orientou que se discutisse essa questo nos fruns e que depois fosse levada ao comit poltico para
deliberao (DC, 10.04.05).
78
Surgido em 1981 com esse nome, ao longo da sua histria mudou duas vezes de nome, o que demarca, por
um lado, a ampliao do seu escopo de ao e, por outro, reflete as transformaes do prprio campo de lutas
feministas. Em 1991 passou a ser SOS Corpo Gnero e Cidadania e, nos anos 2000, passou a se chamar
SOS Corpo Instituto Feminista pela Democracia (cf. http://www.soscorpo.org.br/).
80
Como se pode perceber, o SOS Corpo parece ocupar posio privilegiada neste
contexto, com poder de definio de pautas de ao e cuja voz parece ter maior peso. Uma
das mais antigas ONGs locais, recebe financiamento de muitas agncias de cooperao
internacional. Detentora de uma sede confortvel e ampla, com estrutura para realizao de
eventos, possui um acervo bibliogrfico de referncia na temtica feminista e de gnero e
oferece salas com infra-estrutura para movimentos sociais sem-teto. Sediava, no perodo da
pesquisa, o FMPE, oferecendo espao fsico para as suas reunies, a secretaria da
Articulao de Mulheres Brasileiras (AMB) e a Rede de Mulheres Rurais da Amrica
Latina e Caribe (Rede LAC). Tem uma grande produo bibliogrfica e audiovisual sobre
os mais diversos temas de atuao feminista, o que consoante prtica de estudar,
produzir conhecimentos e argumentos para o debate feminista, propalada pelas suas
representantes43.
Frente
essas
caractersticas
43
parece
encarnar
militncia
No seu catlogo de produes, edio de 2002, encontra-se publicaes nos mais diversos formatos sobre as
seguintes temticas: feminismo (com sub-diviso entre feminismo, movimento feminista e de mulheres),
gnero (com subdivises em gnero, gnero e desenvolvimento e gnero e trabalho), Sade, Direitos Sexuais
e Direitos reprodutivos (aborto, assistncia sade da Mulher e PAISM, Contracepo, Corpo e sexualidade,
Direitos reprodutivos e direitos sexuais, DST e AIDS). Rene 76 ttulos, o que d um panorama das reas de
atuao e interesse da entidade.
84
Paradigma da militncia bemsucedida, o SOS serve de mulo para pequenos grupos de mulheres do meio
popular, que sonham em ter uma infra-estrutura igual, um semelhante prestgio poltico e, qui, fazer parte
do seu quadro de funcionrias. Observei, ao longo da pesquisa de campo junto a grupos de mulheres do
movimento popular, uma forte disputa pelo seu apoio, questo a que voltarei mais adiante.
85
Normalmente as reunies do FMPE ocorrem no auditrio da sede da ONG. Como se pode perceber, h um
grande empenho no investimento no FMPE por parte do SOS Corpo, que est na base do seu funcionamento
desde a sua criao.
46
Destas 48, 26 so sediadas em Recife, 13 na regio metropolitana (Olinda, Paulista e Camaragibe) e 9 no
interior da estado, em cidades como Serra Talhada, Ouricuri, Catende, Joaquim Nabuco, Vitria de Santo
Anto, Cabo de Santo Agostinho e Palmares (FMPE, 2004).
86
poltica que rene representaes feministas, ONGs, universidade, meio rural, meio
urbano, mulheres de partido e de lutas comunitrias (DC, 09.04.05). Os temas variam
entre: controle social, direitos sexuais, DST/AIDS, educao, enfrentamento da violncia
contra a mulher, juventude/adolescncia, participao poltica, pesquisa, questo rural,
raa/etnia, sade, trabalho e renda (FMPE, 2004), sendo que h algumas entidades
participantes com mais de uma temtica de trabalho. O Frum pauta as suas aes em
concordncia com a agenda feminista, para alm do calendrio feminista de datas
comemorativas do movimento.
A sistemtica de funcionamento no formato de reunies quinzenais, uma temtica
e outra de encaminhamento, definidas no planejamento anual. H uma certa maleabilidade
nessa sistemtica. Devido s demandas, as reunies temticas podem ser transferidas, os
temas podem ser remanejados e as reunies podem ser, por muitas vezes como pude
observar, semanais. Nas reunies temticas so propostas discusses mais tericas, para a
formao dos quadros em questes consideradas importantes para a realidade do Frum.
Como por exemplo, as previstas para o calendrio de 2005: feminismo e trabalho
domstico; feminismo e plano nacional de polticas pblicas, feminismo e representao
poltica do FMPE (na qual seria discutido o recorrente tema das relaes de poder dentro do
Frum), feminismo e mulheres negras, feminismo e mes solteiras, feminismo e
lesbianidade, debate sobre aborto, feminismo, democracia e relao com partidos polticos,
feminismo e prostituio e, por ltimo, avaliao e planejamento do ano seguinte.
Durante o perodo em que estive na cidade, pude acompanhar algumas dessas
reunies temticas e muitas reunies de encaminhamentos. Observando-se a interao entre
a diversidade de sujeitos polticos dentro do Frum se pode perceber que os temas eleitos
para o ano de 2005 no so meramente casuais. Eles revelam as principais fontes de tenso
ali atuantes, que so tambm identificadas pelas coordenadoras: as principais tenses so
entre lsbicas e o frum, entre lsbicas e negras organizadas, entre mulheres do meio
popular e mulheres de ONGs, grupos com e sem recursos, com e sem estrutura, entre as
letradas, mulheres com estudo e sem estudo, entre as mulheres de partido e as mulheres
sem partido, as institucionalizadas e as autnomas, ou independentes... (DC, 09.04.05)
Boa parte dessas tenses vivenciadas no FMPE est relacionada com a inflexo
poltica da dcada de 90: com a instituio de uma cultura e abertura de canais de
participao da sociedade civil na co-gesto pblica ps Constituio de 1988 e o chamado
87
Antiga luta feminista, o combate violncia contra as mulheres uma das bandeiras
de luta de maior visibilidade e investimento no contexto de Recife. Essa bandeira
constituiu-se como o signo poltico por excelncia do movimento feminista no Brasil a
partir da dcada de 80 (L. E. Soares, 1996). A sua visibilidade passou a tomar corpo em
razo das vrias mobilizaes de grupos organizados contra a absolvio de assassinatos de
mulheres por seus cnjuges no incio da dcada de 80 (Barsted, 1995; Gregori, 1999 e
1993; Grossi, 1993; Heilborn, 1996; Heilborn e Sorj, 1999 e Pontes, 1986). Data da o
slogan quem ama no mata, signo da luta pelo combate violncia contra as mulheres
que se disseminou pela sociedade brasileira, a ponto de ser utilizado como ttulo de um
seriado de televiso, realizado pela Rede Globo, que abordava o tema (Franchetto et al,
1984).
A repercusso da mobilizao em torno do tema, como a criao de servios de
apoio s mulheres vtimas de violncia por grupos feministas, como o Centro de Defesa dos
Direitos da Mulher de Belo Horizonte, os SOS-Mulher de So Paulo e Porto Alegre,
criados no incio da dcada de 80 (Gregori,1993; Grossi, 1988; Pontes, 1986 e Montero e
Sorj, 1984), resultou na criao das delegacias especializadas em atendimento mulher, em
1985, em So Paulo (Corra, 2001). Trata-se de uma iniciativa brasileira pioneira que
47
Cabe destacar que a discusso sobre a sade das mulheres permeia os debates dos dois temas, de grande
investimento local.
88
passou a ser adotada por outros pases (Debert e Gregori, 2002). Dessas mesmas
mobilizaes surgiram os Conselhos Estaduais da Condio Feminina, os primeiros em So
Paulo e Minas Gerais, em 1983, e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, criado em
1985 (Corra, 2001 e Surez e Bandeira, 2002). Em vista disso, a politizao da violncia
contra as mulheres um dos maiores patrimnios polticos do movimento feminista
brasileiro, sendo que o lugar estratgico da violncia no feminismo brasileiro deve-se em
grande medida ao fato de ele ter sido o tema, dentro da larga agenda do movimento, que
permitiu ampliar a audincia do seu discurso para alm das fronteiras militantes (Heilborn
e Sorj, 1999:210).
Em Recife no poderia ser diferente. O tema faz parte da agenda do feminismo local
desde a dcada de 70. Seguindo o mesmo fluxo nacional, na dcada de 80 as mobilizaes
se deram em torno dos assassinatos de mulheres, da impunidade dos assassinos e do
investimento em projetos de lei e reviso dos cdigos civil e penal, tendo-se em vista a
convocao da Assemblia Nacional Constituinte. Nesse perodo, Recife testemunhou o
crescimento da oferta de servios de atendimento jurdico a mulheres vtimas de violncia e
uma grande mobilizao poltica para a implantao de delegacias especializadas. J na
dcada de 90, o movimento voltou-se para o monitoramento dos casos de violncia junto
s delegacias e imprensa; a ateno violncia sexual sofrida pelas mulheres que
trabalham no turismo sexual; o trfico de mulheres e prostituio infantil; a sensibilizao
de integrantes do poder judicirio no Recife e outros municpios (FMPE, 1995:26).
Logo que cheguei no campo de pesquisa percebi a importncia do tema localmente,
sendo mencionado nos mais diferentes espaos pelos quais circulava. Definitivamente,
combate violncia que acomete as mulheres estava na boca de todas. Como cheguei em
outubro, ms que antecede um dos mais importantes do calendrio feminista, pude
acompanhar a organizao de diferentes aes relativas ao 25 de novembro - dia
internacional da no violncia contra as mulheres. Seminrios, audincias pblicas,
campanhas marcaram o tom feminista da luta contra a violncia que acomete as mulheres
na cidade48.
A visibilidade desta bandeira teve o seu ponto forte na realizao do Frum Social
Nordestino, realizado de 24 a 28 de novembro de 2004 em Recife. A forte articulao do
48
89
A abertura foi feita pela ala das noivas, que representava a iluso do amor romntico
traduzido em noivas espancadas. Identifiquei Pilar Hernandez e todo o grupo de feministas atrizes
que compem o grupo Loucas de Pedra Lils, seguidas por um sqito de noivas. Dentre elas
consegui reconhecer Odete, Eva Guimares e Tina, do SOS Corpo; Nair e Leci, da Associao
Pernambucana de Profissionais do Sexo. A segunda ala era a da violncia, onde mulheres
carregavam pirulitos50 e faixas com frases e estatsticas sobre a violncia contra as mulheres. Nessa
ala estavam muitas das mulheres dos grupos dos movimentos populares. Estavam ali Olvia Lima e
todo o grupo da Associao Pr Mulher; Amelinha e Maria das Graas, do Conselho de Moradores
da Vila. Logo que as avistei, me juntei a elas. De onde fiquei no consegui ter uma viso geral da
passeata. Segundo relato de Letcia, da Associao Pr Mulher, as alas que se seguiam eram a do
aborto, a ala das lsbicas, a ala sobre AIDS e depois os outros movimentos sociais.
A passeata foi circunscrita por grandes faixas com frases sobre aborto legal e violncia
contra as mulheres. Carregando as faixas estava boa parte das mulheres do SOS Corpo. Passamos
pela Agamenon Magalhes [uma das principais avenidas da cidade] e dava para ver as cruzes
cravadas no gramado51. O trajeto era grande e parou uma parte da avenida, trancando o trnsito. As
pessoas no centro paravam para ver o que estava acontecendo. O clima era de festa.
Fui conversando com Amelinha que, encantada com aquilo tudo, foi repetindo para mim e
para as pessoas sua volta sobre a sensao de liberdade que este tipo de passeata lhe dava; sem
precisar de uma organizao nica, dentro de uma certa ordem, mas cada um fazendo as suas
manifestaes. Ela e Maria das Graas estavam animadssimas. L pelas tantas comearam a entoar
o clssico de esquerda Para no dizer que no falei de flores, de Geraldo Vandr, e logo
emplacaram um Maria, Maria. Inacreditavelmente sempre o mesmo repertrio. Chega a me soar
49
As mobilizaes locais em torno do tema da violncia contra as mulheres recrudesceram aps a minha sada
de campo frente ao crescimento do nmero de homicdios de mulheres no estado de Pernambuco: nos
primeiros oito meses de 2006, segundo dados oficiais, foram 220 mortes. Os nmeros reais devem elevar em
pelo menos 20% estas estatsticas (Biancarelli, 2006:25). Uma das frentes de ao levadas a cabo pelo FMPE
so as viglias mensais em frente ao Palcio da Justia, que se iniciaram no incio de 2006. A fora dessa ao
teve repercusso nacional e est registrada em Biancarelli (2006).
50
Cartazes, em geral, de formato redondo amparado por uma haste de madeira.
51
Idia de Pilar, do grupo Loucas de Pedra Lils, as cruzes tinham inscries com nomes de mulheres
vitimadas e o grau de parentesco do vitimizador. Havia mais de 200 cruzes cravadas no gramado central da
avenida, que foram confeccionadas por diferentes grupos que participam do Frum de Mulheres de
Pernambuco.
90
engraado. No consigo entender por que Maria Maria faz tanto sucesso entre as feministas, j
que me parece ser uma msica de ultra-vitimizao da mulher. Soa-me muito anacrnica. Amelinha
e Maria das Graas se engajaram ativa e emocionadamente na cantoria. Atrs de ns vinha o grupo
da Coordenadoria da Mulher carregando faixas dos servios e programas de atendimento a vtimas
de violncia da Prefeitura. A Coordenadoria parece ter investido bastante em peas de propaganda
para a passeata: distribuam fitinhas, panfletos, adesivos, porta-moedas e um im de geladeira com o
nmero de telefone (0800) do Centro de Referncia Clarice Lispector.
As pessoas estavam na passeata como se estivessem num desfile de carnaval. Havia grupos
muito criativos, como um grupo de mulheres que estava com caixinhas de papelo em formato de
casas na cabea, onde se lia: mais creches, mais hospitais, mais casas. Uma das coordenadoras do
Frum de Mulheres de Pernambuco, ao me avistar completamente integrada no meio da passeata,
brincou comigo dizendo que eu tivera muita sorte de ter a oportunidade de participar do FSNE;
perguntou se eu estava colhendo muitos dados e fazendo muita observao participante. Disse-lhe
que sim, que estava to legal que eu chegava a estar fazendo participao observante. Caminhamos
at a Praa do Carmo, no centro da cidade, onde haveria um show de uma cantora local, a
apresentao de um bal e o descerramento de um painel confeccionado por um grupo de grafiteiros
do movimento hip hop da cidade, em homenagem ao FSNE (DC, 25.11.04).
Essa passeata encerra algumas questes importantes que merecem uma maior
ateno. A primeira diz respeito fora do movimento feminista/de mulheres local, que
conseguiu pautar o tema da violncia contra as mulheres junto a outros movimentos sociais
da regio como central. O que foi percebido, no sem espanto, pelas prprias organizadoras
do evento, como pude registrar na reunio de avaliao sobre FSNE feita pelo Frum de
Mulheres de Pernambuco. Pilar Hernandez, do Loucas de Pedra Lils, que encabeou a
organizao da passeata, falou da sua surpresa em se deparar com o respeito que os
movimentos sociais de Pernambuco tm pelas mulheres organizadas. Ela comentou: Fui
chamada para uma negociao sobre a passeata, de ltima hora, e j cheguei dizendo que
a ala das noivas (que trabalhava plasticamente a questo da violncia contra as mulheres) e
do aborto no tinha negociao. E os caras dos movimentos, com o maior cuidado,
disseram que no se tratava disto, que o movimento feminista ia todo na frente da passeata
e que isto j estava acertado. Na realidade eles queriam mudar o trajeto da passeata e
fazer uma fala final! Todas as mulheres, entre satisfeitas e orgulhosas, riram da histria de
Pilar.
91
portanto, novas formas de aes polticas que se caracterizam pela articulao, pela
negociao e contingncia.
Outro fator a ser considerado nessas novas formas diz respeito influncia de
agncias de cooperao internacional: a exigncia de eficcia e eficincia, que caracteriza
mais amplamente a atualidade como o tempo da qualidade total, coloca-se tambm para
ONGs e movimentos sociais (Carvalho, 1998:18)52. Essa lgica da eficincia associada
reduo e mudana nos padres de financiamentos para a Amrica Latina, ao mesmo tempo
em que acirram a competio pelos recursos (Teixeira, 2003), impe a necessidade de
projetos que tenham resultados concretos que possam ser avaliados. So fatores importantes
a serem levados em conta, posto que contribuem para a mudana nas formas de ao
poltica ao mesmo tempo em que influenciam na identificao de como o prestgio poltico
se distribui no campo.
Outra questo suscitada pela mobilizao em torno do tema da violncia contra as
mulheres que se refletiu na realizao da passeata de abertura do FSNE diz respeito
permeabilidade do tema no campo poltico feminista de Pernambuco. Ao que parece, o
tema da violncia contra as mulheres est consolidado, no reconhecendo fronteiras,
sobretudo as de classe. O que contrasta com a temtica do aborto, tambm fonte de grande
investimento durante o perodo da pesquisa. Tema polmico, a adeso a ele mais
atravessada por resistncias, sobretudo quando se trata de mulheres oriundas do meio
popular, segundo classificao local. No entanto, h que se ponderar que no se trata de
uma prerrogativa do movimento feminista nordestino. O tema da violncia foi a primeira
bandeira de aglutinao das mulheres em relao a questes especficas das mulheres e a
sua disseminao fruto do processo poltico do movimento feminista em geral (Heilborn e
Sorj, 1999 e Gregori, 1999). Alm disso, um tema que favorece as coalizes e diminui as
distncias de pertencimento de classe entre as diferentes mulheres envolvidas no campo
poltico feminista. Atravs dessa bandeira de luta as mulheres, que so tomadas
genericamente, so tratadas como vtimas, o que cria indignao e impede um conflito
maior de valores.
Em contrapartida, o tema do aborto foi sempre uma questo polmica e subsumida
nas questes da sade da mulher. A sua apario neste momento parece mais um
52
Segundo Teixeira (2003), tratam-se de ONGs estrangeiras que financiam atividades de organizaes no
Brasil (p.105) e que, segundo pesquisa realizada pela ABONG em 1993, financiavam 75,9% das suas ONGs
filiadas.
93
94
53
Qualifico como estratgio tendo-se em vista o surgimento de outros grupos feministas no pas que adotaram
o nome de SOS-Mulher, cuja nfase se dava no combate violncia que acomete as mulheres. Comparandose esse dois processos de nominao, SOS Corpo de um lado e SOS-Mulher de outro, j percebe-se a nfases
distintas que remetem posies polticas distintas e investimentos em bandeiras feministas particulares.
54
H muitas organizaes do campo feminista que trabalham com o tema da sade das mulheres nas suas
mais variadas especialidades. Fleischer (2007) pesquisou uma dessas frentes de mobilizao poltica: a
humanizao do parto, atravs do treinamento de parteiras tradicionais realizado por duas ONGs locais.
55
Snia Corra (2004) faz um exame sobre desenvolvimento da questo do aborto no cenrio mundial e tece
relaes entre os fluxos e refluxos como resultado de um processo movimento mundial, resgatando as
conquistas do movimento feminista no Brasil e os entraves enfrentados.
95
Como previsto na pauta, passaram a discutir sobre as Jornadas Brasileiras pelo Aborto
Legal e Seguro. A secretria adjunta da AMB, educadora do SOS Corpo, coordenou a discusso,
iniciando com um breve relato sobre o que so as Jornadas, logo em seguida passando a fazer uma
rodada da situao em cada estado da regio nordeste. Segundo Augusta Botelho, a secretria
adjunta, as Jornadas so uma articulao do movimento de mulheres no Brasil, que tinha se iniciado
em 2004, com vistas a organizar a luta pela legalizao do aborto. A partir da apresentao da
proposta do Conselho Nacional dos Trabalhadores da Sade de incluir a possibilidade de aborto em
fetos anenceflos, houve um recrudescimento das foras conservadoras na mdia. Assim, o
objetivo das Jornadas era o de tirar o aborto do lugar oculto e colocar como debate na sociedade,
em evidncia. Falou da comisso tripartite que seria instalada, composta pela Articulao de
Mulheres Brasileiras, Central nica dos Trabalhadores, Articulao Mercosul [grupos que esto
no Conselho Nacional Direitos da Mulher]. A comisso teria 60 dias para construir um projeto para
apresentar sociedade, e estava assessorada por um conjunto de advogados e juristas.
Concomitantemente, as Jornadas fariam uma campanha de mdia. Ela falou da necessidade de se
reunir foras e da previso de audincias pblicas e reunies com parlamentares em cada estado do
pas. Contou, ainda, que o Instituto Patrcia Galvo [Ong feminista do sudeste]56 estava construindo
uma argumentao para apoiar a luta atravs de pesquisa sobre o tema, realizada em todo o Brasil.
Alm disso, a AMB faria o envio de pequenos boletins de acompanhamento e a ONG Catlicas
pelo Direito de Decidir (CDD-Br)57 programou oficinas sobre o tema em nove estados do Brasil
com distribuio de kits com material para a multiplicao da capacitao, com vdeos e panfletos
56
http://www.patriciagalvao.org.br/
Existente em outros pases da Amrica Latina e nos Estados Unidos, com trabalho articulado em rede, a
CDD-Br (...) uma organizao no-governamental feminista de carter ecumnico que busca justia social
e mudana de padres culturais e religiosos vigentes em nossa sociedade, respeitando a diversidade como
necessria realizao da liberdade e da justia. Desde a criao no Brasil, em 1993, CDD-Br promove os
direitos das mulheres (especialmente sexuais e reprodutivos), e luta pela cidadania das mesmas e pela
igualdade nas relaes de gnero, tanto na sociedade como no interior das religies, especialmente da
catlica (http://www.catolicasonline.org.br/institucional/quemsomos.asp).
57
96
explicativos. A proposta era a de que as Jornadas fariam uma cartilha sobre o tema para subsidiar as
discusses e unificar as aes. Aps a sua exposio, as representantes dos estados passaram a
relatar as aes realizadas por elas.
Uma das representantes de Pernambuco falou que o movimento local fez algumas aes,
trazendo a secretria das Jornadas [feminista paraibana, representante de uma das ONGs feministas
mais reconhecidas daquele estado] no dia 8 de maro, para uma palestra. Contou ainda do projeto
Mdia Advocacy, que prepara as mulheres para a fala pblica, e no qual estavam enfocando o tema
do aborto legal e das aes para o 28 de setembro, com seminrios locais e regionais58. A
representante cearense relatou as vrias aes planejadas que seriam discutidas na prxima reunio
do frum de mulheres de Fortaleza. Planejavam trabalhar no dia 28 de maio, dia de luta contra a
mortalidade materna, com a discusso sobre aborto. Alm disso, estavam articulando uma audincia
pblica com a Comisso de Cidadania e Direitos Humanos da Assemblia Legislativa do Estado e
com a Faculdade de Medicina. Falou sobre a importncia de se trabalhar a Norma Tcnica59 nos
estados e de propor seminrios de sensibilizao com mdicos e com o conselho de medicina. A
representante de Rio Grande do Norte falou do treinamento que o Frum local recebeu do Instituto
Patrcia Galvo para a realizao de grupos focais para trabalhar o tema do aborto e reforou o
intuito de que todos os grupos deveriam se articular para sensibilizarem a populao. A
representante da Bahia contou das aes realizadas ps oficina da ONG CDD-Br, em que
trabalharam o tema do aborto com os agentes dos servios de sade, dentre outras. A representante
maranhense mencionou as dificuldades enfrentadas ao tratar do tema, salientando que necessitar de
reforos para garantir o debate em So Lus: h pessoas muito boas, mas totalmente contra. Outra
ecumnica e no pode ouvir falar em aborto que se arrepia toda, a bichinha... A situao de
Alagoas no muito diferente. Segundo a representante alagoana havia uma reao muito forte no
frum de mulheres de Macei contra o aborto e preocupava-se por no ter nenhuma ao prevista
da ONG CDD-Br para Macei. As sergipanas, que chegaram atrasadas ao seminrio em funo da
Conferncia pela Igualdade Racial que estava acontecendo no estado, disseram que em Aracaju no
se fala sobre aborto, mas todo mundo toma um chazinho quando a menstruao est atrasada... No
Piau, segundo as suas representantes, no se fala em aborto.
Frente a este quadro, uma representante paraibana manifestou a sua preocupao em
identificar que h mulheres dentro da AMB que ainda no tm uma posio sobre o aborto. Sendo
58
De acordo com o calendrio feminista, 28 de setembro o Dia de Luta pela Descriminalizao do Aborto
na Amrica Latina e Caribe.
59
Trata-se da Norma Tcnica do Ministrio da Sade sobre Preveno e Tratamento dos Agravos
Resultantes da Violncia Sexual contra Mulheres e Adolescentes, de 1998, que regulamenta o atendimento
de vtimas de violncia sexual em hospitais pblicos, em que consta a previso da realizao do aborto legal
nesses casos. Para maiores informaes, ver em: http://www.cfemea.org.br/pdf/normatecnicams.pdf.
97
seguida pela secretria adjunta que, frente diferena de posicionamentos dentro dos fruns sobre a
questo, foi incisiva ao afirmar que a defesa do aborto um princpio feminista e que se deve
trabalhar a adeso das companheiras com mais veemncia. A secretria executiva veio em seu
auxlio, lembrando ao grupo que este o momento de agir. Sugeriu que se atentasse para os boletins
e os argumentos que estavam sendo feitos: tem de se estudar argumentao e se estar afiada! Tem
de se criar estudos de argumentao. A idia a de criar um ambiente de discusso no Brasil. E
isso foi uma conquista do feminismo. verdade que tem muita gente contra, mas temos espao e
ento estudar argumentos e ir para do debate. Outra representante de Pernambuco sugere que a
gente deve criar uma metodologia para a criao de argumentos polticos e para a adeso, realizar
oficinas nos bairros com grupos populares. Junto com outros grupos, fazer articulaes e garantir
a adeso de mulheres de grupos populares (DC, 10.04.05).
prxis poltica: produzir saberes, estudar para argumentar e enfrentar debates, e fazer
(sobretudo saber fazer) articulaes, angariar apoios e construir alianas polticas.
A nfase na produo de conhecimentos aqui no meramente casual, posto que
tem um valor inestimvel no campo feminista em questo. H que se apropriar da histria e
do pensamento feminista para poder ir para o embate. Ter conhecimentos confere uma
posio de prestgio no campo, seja para grupos que possuem um notrio saber aqueles
que fazem parte do processo histrico de constituio do movimento feminista local e
nacional, seja para militantes em especfico. Nesse sentido, curiosa a expresso de
reverncia que ouvi recorrentemente no campo. Em tom jocoso, algumas militantes se
referiam entre si e chamavam-se de gr-mestras. Associado a isso est a habilidade em
articular e construir alianas estratgicas. Todos esses elementos esto na base do que
denomino capital de articulao poltica, um importante recurso que organiza internamente
o campo poltico feminista local.
representante do SOS Corpo, a prxis feminista aqui se pauta por princpios democrticos
tradicionais do feminismo, tais como a autonomia, horizontalidade na participao e na
construo do consenso na ao. No entanto, esses princpios devem ser interpretados de
acordo com um contexto muito especfico, em que as diferentes agentes que esto em
relao possuem posies simblicas distintas, marcadas por valores que as distribuem
desigualmente no campo. Essa equao confere prestgios e privilgios distintos e define
quem tem o poder de falar e, mais ainda, de ser escutada. Sendo assim, a prpria idia da
horizontalidade passa a ter uma outra conotao, escondendo em si relaes desiguais de
poder.
E nesse contexto que a noo de articulao toma um sentido muito especial,
crucial para a compreenso desse campo. Muito embora a prtica da articulao seja
corrente no campo poltico em geral, nesse contexto assume uma conotao especfica,
posto que engendra uma organizao e distribuio desigual do poder poltico local.
Permeia fortemente o processo poltico histrico do campo feminista recifense, como se
pode perceber, desde a formao dos primeiros grupos feministas e do prprio FMPE como
procurei mostrar.
A necessidade de construir coalizes e, em especial, aes voltadas para os grupos
de mulheres do movimento popular, marcante e pode ser mais claramente percebida no
cuidado em buscar aliana estratgica com uma representante do movimento popular para
convocar a reunio de organizao e incio do FMPE. Na ocasio, a escolha do dia para a
realizao das reunies dias de domingo creio no ser meramente casual. Antes
parece refletir um cuidado em facilitar a presena de mulheres oriundas de grupos com
pouca infra-estrutura e recursos e que tinham apenas os finais de semana livres para a sua
militncia, ou seja, a militncia no profissionalizada que no fazia parte dos quadros de
ONGs emergentes. Aqui a prtica da articulao, percebida na justaposio entre os
marcadores de gnero e classe, desvenda um importante elemento da distribuio de
prestgio local. Contudo, na ateno aos meandros do processo de atribuio de
significados em ao articulao e na identificao das posies prestigiosas de
determinados grupos, como o SOS Corpo, que se chega ao que denomino aqui de capital
de articulao poltica.
A proposta terica de Bourdieu (1989) sobre o espao social e as posies relativas
que os agentes nele ocupam inspiradora para definir esse capital especfico que dota de
sentido o campo poltico feminista local. Segundo o autor, as posies dos agentes e as suas
100
60
Feministas histricas locais que fazem parte dos quadros do SOS Corpo, por exemplo, renomadas nacional
e internacionalmente, tm circulao entre as agncias de cooperao internacional, Conselhos nacionais e
projetos feministas nacionais de diferentes naturezas.
101
Essas situaes revelam a importncia dos encontros feministas como momentos de reafirmao de
alianas, estabelecimento de contatos para futuras aes, troca de apoios e sobretudo articulaes. A prtica
da articulao pervasiva ao campo poltico local de forma geral, como se pode perceber nas anlises sobre o
movimento feminino popular feitas por Mendes (2000) e Friedhoff, Andrade e Knauer (2001).
102
de conflitos e disputas. Como assevera Bourdieu (ibidem) o campo poltico , pois, o lugar
de uma concorrncia pelo poder que se faz por intermdio de uma concorrncia pelos
profanos, ou melhor, pelo monoplio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou
da totalidade dos profanos (p.185).
Assim, levando-se em considerao que a atribuio de significados s prticas
sociais em geral, e s polticas em particular, ocorre em um contexto caracterizado por
conflitos e relaes de poder. Nesse sentido, a luta por significados e por quem tem o
direito de atribu-los no apenas, em si mesma, uma luta poltica, mas tambm inerente
e constitutiva de toda a poltica (Dagnino, 2000: 75), cabe agora explicitar como essa luta
por sentidos se d em ao.
Olhando-se mais detalhada e demoradamente para os significados em ao,
produzidos por essa prxis feminista, marcada por essas caractersticas aqui analisadas,
pode-se perceber como essa luta por sentidos reflete-se nas articulaes dotadas de
distintos sentidos de acordo com as combinaes contingentes entre variados eixos
constituidores de alteridades que esto em relao, como classe, raa, orientao sexual,
sexo que esto em busca de re-equacionar a distribuio desigual de prestgio e privilgio
e as relaes de poder e gnero existentes dentro desse campo. Tais disputas podem ser
identificadas na concorrncia entre diferentes concepes de feminismo, que por sua vez,
refletem uma correlao de foras entre alteridades em embate nesse contexto, e na
ascendncia de uma determinada concepo de feminismo, que sempre alvo de
questionamentos. O que abre espao para existncia do que Fraser (1993) chama de
contra-pblicos subalternos dentro do prprio campo. Essas disputas ficaro mais
explcitas no captulo seguinte, no qual analisarei, atravs da etnografia das reunies do
FMPE, esses significados em ao.
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CAPTULO III
CONFRONTO DE ARAPIRACAS SENTIDOS DE GNERO, ALTERIDADES E DISPUTAS NO CAMPO
POLTICO DE RECIFE
_____________________________________________________________________
Alade contou-me de uma ocasio em que tivera de ir a uma reunio do Frum a fim de
reivindicar uma vaga para o Coletivo numa importante conferncia que ocorreria. Por estar
temerosa de enfrentar o grupo sozinha, a sua colega de trabalho Luana, mais acostumada
com os cdigos locais, incentivou-a que fosse reunio e colocasse a arapiraca na mesa.
Estranhei de imediato a palavra e ela, entre risos tmidos, me explicou: arapiraca o
simblico do pnis. mais do que colocar o pau na mesa, mais poderoso... Gargalhamos
juntas. Ainda rindo-se, agora despachadamente, Alade continuou a contar que elas e suas
colegas costumavam brincar com essa histria de arapiraca, questionando se no dava
para colocar o tero mesmo, ao invs da arapiraca, na mesa... (DC, 02.11.04).
campo. Tal reflexo importa ser realizada porque nos municiar de elementos para a
apreenso de como as ativistas das camadas urbanas de baixa renda, que so parte ativa
desse campo, se colocam nele, se apropriam dos seus cdigos e como eles as influenciaro
nas diferentes dimenses da sua vida.
Disse-lhe que no tinha muito talento para o jogo poltico, que me sentia intimidada de ter
que ficar brigando o tempo todo. Brinquei com ela, afirmando que se tivesse de passar por situaes
como as que eu presenciara de forte e, aos meus olhos, agressivo embate, eu teria sado correndo e
chorando. Alade, rindo-se muito do meu jeito, me sentenciou no merm! Nunca chore no Frum
de Mulheres que da mesmo que elas vm pra cima de tu com tudo! Nunca chore! Ali mulher no
chora! O meu comentrio a fez lembrar de uma situao que ela prpria vivenciara.
Contou-me que o Coletivo Mulher Vida esteve afastado do FMPE durante um tempo,
porque a presidente tinha rompido com o movimento feminista de Recife e tinha se retirado daquele
espao de articulao poltica. Em funo disso, a ONG tinha perdido o seu espao e, segundo a
minha interlocutora, at retom-lo foi muita disputa e eu levei muito na cabea. Foi bem difcil...
Mas fui insistindo, articulando e agora o Coletivo tem o seu espao novamente. Mas tem que estar
sempre na disputa para mant-lo (DC, 02.11.04).
106
Foi nesse contexto que me contou sobre como procedeu para a reconquista desse
espao perdido nas reunies do FMPE, exemplificando com a situao que abre esse
captulo. As formulaes de Alade sobre os cdigos que regem o FMPE so exemplares
para se refletir sobre os significados de gnero que dotam de sentido a prxis poltica
sintetizada no FMPE e sobre questes importantes acerca do campo feminista de forma
geral. Cabe ressaltar que a participao nessas conferncias alvo de grande disputa por
conferir prestgio s instituies e reforar o lugar de destaque delas no campo feminista.
Voltarei a esse ponto mais adiante.
O tom aguerrido e a assertividade estranhadas pelo olhar estrangeiro da
pesquisadora, somado assero ali mulher no chora, poderiam nos levar a interpretar
que essas mulheres teriam se masculinizado. Acusao recorrente direcionada s mulheres
que adentram o mundo poltico (Sartori, 1999), parece refletir a imagem de que esse no
um espao legtimo para a presena das mulheres.
Estudos que privilegiam os fenmenos polticos, em especial aqueles voltados para
a anlise da poltica institucional, salientam que o campo poltico marcadamente
masculino (Avelar, 1989; Heredia, 1996; Palmeira, 1996 e Pr, 1992), seja pela maior
presena de homens do que de mulheres, seja pelo fato de a poltica estar associada a uma
atividade masculina. Em estudo comparativo sobre eleies em duas comunidades rurais,
Heredia (1996) demonstra que a expresso ser da poltica, correntemente utilizada nos
contextos estudados, um atributo masculino, o que no significa que as mulheres no
estejam envolvidas no processo da poltica. Segundo Heredia (1996) elas comentam,
falam informalmente, mas a elas no socialmente reconhecida a legitimidade para opinar
e decidir acerca do voto da famlia, o que responsabilidade masculina. (p.61). Em vista
dessas concepes, Brito (1992) alerta para a necessidade de repensar a definio do
poltico como um domnio excessivamente masculino, indagando sobre as formas pelas
quais a populao feminina tem conseguido se expressar politicamente em determinados
contextos histricos (p.134).
Assim, esta relao entre mulher e poltica se relativiza se tomarmos o campo
poltico como um conjunto de significados simblicos, vises de mundo, divises que se
explicitam em linguagens, crenas e rituais (Barreira, 1998:132) e, a partir disto,
questionarmos sobre os significados de gnero que dotam de sentido o mundo da poltica.
A etnografia de Sartori (1999) no espao sindical indica pistas sobre os significados de
gnero que compe o campo poltico. Ele demonstra que nesse contexto so atribudos
107
108
Pode-se tambm entender que a expresso utilizada por Alade informa sobre um
modelo de feminilidade ali atualizado. Chorar frente ao conflito uma sada que remete a
um feminino frgil e dependente do qual parecem querer se afastar as mulheres que esto
nesse jogo poltico. Para se estar ali, faz-se necessrio ser valente e ter coragem para
enfrentar as disputas, para articular e para angariar prestgio que ser utilizado no
estabelecimento de alianas.
H, ainda, uma importante dimenso histrico-cultural que deve ser levada em conta
nessa anlise. Trata-se dos sentidos de gnero relativos identidade regional nordestina
que, ao que parece, pervasiva ao contexto analisado. Num instigante estudo de gnero
sobre a criao da regio Nordeste e da sua identidade regional pela elite intelectual da
regio na dcada de 30, Albuquerque Junior (2003) depara-se com o atributo da coragem
como o seu significante fundante. Na anlise ele demonstra que a identidade nordestina
pensada e construda no masculino, ressaltando-se as caractersticas de virilidade, destemor,
valentia e coragem: (...) o homem nordestino um homem, ou seja, macho, pensado no
masculino, no h lugar para o feminino nesta figura. No nordeste, at as mulheres seriam
masculinas, macho, sim senhor! (Albuquerque Junior, 2003:165).
Nessa configurao discursiva no h espao para o feminino. Aqui, a mulher
nordestina tambm masculina, tendo de incorporar as caractersticas da valentia e da
coragem para superar as adversidades de um meio to inspito. Segundo assinala
a valentia, a coragem, o destemor, inclusive por parte das mulheres; a resistncia
pelas armas, se necessrio, a todas as afrontas, partissem elas de vizinhos, opositores
polticos, representantes do governo e at de membros da famlia, vai ser uma
temtica recorrente nas memrias escritas por nordestinos (Albuquerque Junior,
2003:195).
Assim, o modelo de feminilidade nordestino, que constitui o imaginrio regional,
marcado pela fora, pela valentia, pela coragem; todos atributos masculinos. Elemento
recorrente na pesquisa, o atributo da coragem parece ser um importante trao que compe o
repertrio simblico do fazer poltico nesse campo, pervasivo s mais diferentes situaes
do contexto de pesquisa, conforme analisei anteriormente. Logo na chegada em campo, me
chamou a ateno o slogan de campanha vereana de Olvia Lima, presidente da
Associao Pr Mulher: No basta ser mulher, tem que ter coragem. inevitvel a
associao: nesse contexto pejado de conflitos, no basta ser uma mulher, h de se ser uma
mulher com arapiraca. Outra formulao, j mencionada anteriormente, de Amelinha, ao
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SOS Corpo. Alertou que deveriam ter esse cuidado, porque o frum era formado por instituies e
por pessoas, mulheres autnomas, e que deveria ser equilibrado. Cr, da Associao de Mulheres
Entendidas de Pernambuco (AME-PE), disse que seria importante que algum da sua entidade
participasse, mas como teriam uma atividade que se realizaria num dos dias do seminrio, ela no
poderia ir. Sugeriu, assim, que se deixasse uma vaga para a Articulao do Movimento
Homossexual do Recife e rea metropolitana (AMHOR), cuja representante, Noeli, estava ausente.
Violeta insistia no nome do Arte Feminista. Kelly, do DIVAS - Instituto em Defesa da Diversidade
Afetivo-sexual, tinha sado da sala nesse momento. Nair Valena foi at o refeitrio, onde ela estava
a conversar com outras mulheres, para saber do seu interesse a uma vaga. Kelly retornou
rapidamente e salientou que seria bom que o Instituto participasse, mas no tinha nenhum nome
para indicar, j que ela mesma no poderia. Aps muita discusso, a primeira lista foi montada:
Adlia, Odete, Carmem, Alade, Alessandra, Cinara e reservou-se vagas para o grupo Loucas de
Pedra Lils, para a AMHOR e outra para o DIVAS.
Quando tudo parecia resolvido, Alade se manifestou, dizendo que havia gente descontente
com os critrios. Carmem tambm se manifestou, salientando que todo mundo j sabia que seria
hoje a definio das vagas e por isso seria importante que todas estivessem presentes. E todas as
que estavam ali potencialmente seriam capazes de ir ao seminrio. Tem que consolidar quem est
aqui hoje. Natlia questionou sobre o critrio que tinham adotado, se o da presena ou no e qual
era o posicionamento do frum a esse respeito? Helena Rodrigues respondeu-lhe que no existia o
critrio de presena no FMPE, como ela estava colocando, no era dessa maneira que o frum
trabalhava. Odete interveio tambm e explicou: por situao de articulao poltica. Conforme a
necessidade e cada situao, se a gente considera que determinada pessoa mais adequada para a
representao, a gente vai e liga. o estilo de fazer poltica do frum, desde esses dois anos que
estou aqui, assim que funciona. No uma instituio em si, o que vale a articulao poltica.
Os critrios o de fazer acordos. No sei se certo ou errado, mas assim que a gente trabalha.
Alessandra ajudou, dizendo que as representaes do frum procuravam sempre ser plurais .
Nair Valena estava ansiosa para dar um encaminhamento para a discusso. Estvamos
todas cansadas e no se chegava a um acordo. Alade insistia em dizer que sentia que ainda no
estavam satisfeitas com a definio das vagas. Odete argumentou: se for falar eu vou me expor, mas
na poltica assim mesmo. Acho que as pessoas que devem ir ao seminrio tm de ser aquelas que
tm uma identidade com o frum e com a AMB. A companheira Natlia, por exemplo, ela no pode
ir como representao do frum porque ela est aqui h duas reunies. Natlia saltou da cadeira e
contra-argumentou, dizendo que a primeira coisa que ela tinha perguntado fora se o critrio era o de
representao: e disseram que no e por isso eu me candidatei, porque tambm acho que no estou
em condies de representar o frum com a participao em duas reunies! Odete: eu falo isso de
forma tranqila, nada pessoal, s estou questionando a histria do tempo e fico com o receio de
112
estar sendo injusta com as companheiras. Na real [o critrio] o de representao, mas a gente faz
dessa forma. Alade interveio e disse ser importante que o frum discutisse essas questes dos
critrios, que ficasse definido de antemo, para que no houvesse problemas nas outras vezes.
Violeta prope, ento, uma nova forma de distribuio das vagas: quem sabe a gente deixa
quatro vagas para as que esto aqui e quatro vagas para a consulta das ausentes interessadas em
participar do seminrio? Natlia insistiu: eu s estou insistindo porque uma questo de
princpios. Acho complicado enquanto Frum de Mulheres, escolher e indicar essas duas
instituies, estando elas ausentes. H muitas outras, do movimento popular, do movimento
sindical, que tambm no esto presentes aqui. Por que essas duas? Helena Rodrigues, tentando
encerrar a discusso, se manifestou: eu lamento muito que no estejam aqui, mas no adianta. A
gente no sabe porque essas pessoas no vieram e de repente a gente indica e elas nem podero
estar no seminrio. Eu tenho de sair com os nomes daqui, agora. E Violeta, a tua proposta
horrvel! No, chega de idias! Discusso vai, discusso vem e decidiram por privilegiar as
representaes que estavam presentes. A lista final ficou assim constituda: Adlia, Odete, Natlia,
Cinara, Carmem, Alade, Alessandra e Suelen. Nair Valena, entre aliviada e temerosa de que tudo
comeasse novamente, saltou e anunciou: Trabalhos encerrados! As mulheres que ainda restavam
na reunio, que j avanara em muito o horrio previsto para o trmino, comearam a arrumar as
suas coisas e ir embora. Levantei e me aproximei de Helena Rodrigues, que falava com Alessandra,
para resolver o meu caso, que no tinha entrado na disputa geral das vagas. Nair Valena se
aproximou no mesmo momento e se antecipou, dizendo: e tu ficas de observadora! Helena
Rodrigues disse-lhe: calma, no assim, primeiro eu preciso fazer uma consulta. Tentei falar com
ela, mas no me deu muita ateno. Pedi que me avisasse quando falasse com a secretria sobre a
possibilidade da minha presena. Ela, com certo ar de enfado, disse-me que avisaria. Perguntou,
novamente, qual era mesmo o meu nome, que nunca se lembrava. Disse-lhe pela ensima vez e
aproveitei para dar os meus contatos, coisa que no tinha me pedido. Adlia se aproximou de ns e
disse Helena Rodrigues que tinha sido eleita. Helena, sem esperar pelo trmino da estria,
antecipou-se dizendo que o seu nome no tinha entrado em disputa, que j tinha sido garantido
desde o incio. Adlia ento se explicou, contando que tinha sido eleita como delegada na regio em
que mora como delegada para a Conferncia pela Igualdade Racial que ocorreria nos prximos dias.
Deixei-as conversando e me afastei do grupo, me juntando a outro que iria para o ponto de nibus
mais prximo (DC 07.04.05).
Vejamos alguns dados sobre as principais ativistas e as entidades que representam,
63
Como se perceber, as informaes sobre essas ativistas e das entidades que representam no so
homogneas, posto terem sido recolhidas de forma assistemtica ao longo da pesquisa etnogrfica atravs da
observao participante e de conversas informais nas mais distintas situaes. As informaes sobre as
113
Ativistas
Entidades
entidades derivam-se, tambm, dessas mesmas fontes, alm de pesquisa em diferentes stios da internet, tais
como da ABONG e das prprias entidades, quando o caso. Essa peculiaridade deve-se, em grande medida,
relao entre a intensa proliferao de sujeitos no campo pesquisado, o tempo de permanncia em campo e o
foco da pesquisa, a experincia ativista de mulheres das camadas urbanas de baixa renda. Portanto, dado o
carter etnogrfico da pesquisa, no foi possvel realizar entrevistas formais com todas as ativistas, bem como
aprofundar a investigao nas inmeras entidades que compem o campo poltico feminista local. No entanto,
na primeira fase da pesquisa, em que estava a mapear as entidades que constituem o campo, realizei visitas
etnogrficas a algumas das entidades. Dessas possuo informaes mais homogneas e consistentes.
114
Idem
Idem
64
Tais como: tais como Fundao MacArthur, Fundao Ford, Unesco Programa DST/AIDS, Ashoka, Plan
Internacional, OXFAM, FNUAP, DED, Save the Children e Secretaria Especial de Polticas para Mulheres e
Ministrio da Sade, respectivamente.
115
116
117
autnoma no FMPE.
118
advindo desse capital, otimizado pelas relaes pessoais - na viso da informante, o que
dar o tom das relaes polticas ali dentro. E as gr-mestras so as detentoras desse
capital, seja pelo seu reverenciado acmulo na militncia feminista, seja por representarem
entidades de destaque na histria do feminismo local. Esse capital, como foi visto
anteriormente, tem dentre as suas caractersticas a produo de conhecimento, o estudo.
Uma outra situao de disputa por vagas contribui para tornar mais explcita essa
caracterstica:
120
Entidades
No relato de Iracema sobre essa outra disputa por vagas aparecem alguns elementos
importantes que merecem destaque. Sobre o contexto poltico mais amplo, o contedo
dessa contenda revela a importncia poltica da Conferncia Nacional de Mulheres. Tratase de um dos eventos de grande visibilidade para o movimento feminista nacional, no qual
121
Durante o intervalo do almoo juntei-me Iracema, Alade e Cinara, que conversavam entre
uma garfada e outra. Falavam sobre as relaes de poder dentro do FMPE e censuravam a postura
caracterizada como arrogante de algum ali dentro. Diziam que tal pessoa estava aprendendo
direitinho e imitando algumas figuras ali dentro. Curiosa, intervim e perguntei de quem falavam.
122
Alade, rindo-se da minha curiosidade, brincou comigo, mencionando o meu hbito de anotar tudo.
Entrei na brincadeira e fiz meno de pegar meu caderno de notas. Todas riram e Cinara me disse
que no o fizesse. Eu, continuando no registro da brincadeira, disse-lhes que mesmo que no
anotasse literalmente, o fazia mentalmente, dada a minha excelente memria e que, em sendo assim,
era melhor que no me revelassem. Novas risadas e finalmente elas revelaram de quem falavam:
Alessandra, uma jovem feminista. Iracema ponderou que a menina era vtima, que estava sendo
influenciada por algumas mulheres ali que gostavam da disputa de poder. Eu me intrometi, dizendo
que discordava, que no a achava to vtima assim. Arrependi-me imediatamente e me calei. Elas
quiseram saber mais da minha opinio. Disse-lhes que no a considerava vtima, pelo contrrio, que
se ela se espelhava no jogo de poder, era porque gostava desse poder. Iracema reviu a sua posio,
lembrando-se do tempo em que Alessandra fora coordenadora do FMPE e da postura que adotara no
incio, deixando a outra coordenadora, Simoninha Salomo, representante do Instituto Papai,
completamente sozinha no enfrentamento. Passaram a comentar sobre o processo de Simoninha
Salomo, que sofrera muito porque simplesmente elas (as gr-mestras) tiravam a sustentao e ela
ficava praticamente sozinha, se no fosse Pilar Hernandez a banc-la. Iracema disse-nos perceber
uma mudana no FMPE nos ltimos tempos, que vem mudando a sua cara. Mencionou algo a
respeito das configuraes de fora ali dentro, ponderando que tem que mudar mais, com a
indicao de uma popular para a coordenao: Devemos bancar agora uma popular, mas temos de
dar sustentao, seno no agenta! As trs passaram a problematizar a indicao da popular.
Cinara lembrou-se da fala de Nair Valena, que contara que Noeli, da AMHOR, tinha sido indicada
para a coordenao do FMPE e no tinha aceitado porque no se sentia em condies. Iracema
ponderou que sem sustentao no tinha como mesmo, que deveria ser uma deciso poltica e dar
apoio completo. Elas se lembraram de Cr, que sempre dizia que nunca tinha sido indicada.
Intrometi-me novamente, falando que essa sua atitude parecia-me fazer parte do jogo poltico, das
estratgias para se ganhar espaos. Iracema me olhou com ar de reprovao e disse-me: mas isso
muito perverso! Calei-me. Elas comentaram, em tom elogioso, que Cr e Noeli eram as nicas
populares que tinham a sua voz escutada, que colocavam a boca e no queriam nem saber.
Afirmaram que so escutadas porque so muito agressivas. Alade fala das articulaes que h ali
dentro: a gente tem que se articular, porque elas s conseguem as coisas porque costuram por fora.
assim que temos que fazer tambm, nos unirmos. Com a aproximao de uma outra feminista ao
grupo, identificada como gr-mestra, o assunto morreu (DC 11.04.05).
Vejamos alguns dados das novas protagonistas que aparecerem nessa situao:
123
Ativistas
Entidades
Simoninha Salomo uma mulher na faixa dos 3035 anos, branca, solteira, sem filhos, psicloga de
formao, mestre em lingstica e durante o perodo
da pesquisa estava vivendo fora de Recife em funo
do seu doutorado em Cincias Humanas. uma das
fundadoras do Instituto Papai e teve contato com o
feminismo a partir do Instituto. Foi coordenadora do
FMPE como sua representante.
questes de interesse das lsbicas ali dentro. Kelly, coordenadora do DIVAS, uma das
porta-vozes da luta pela visibilidade lsbica dentro do FMPE. Na grande maioria das suas
intervenes, ela manifesta uma crtica forma como a questo tratada socialmente; o
que, na sua concepo, se reproduz dentro do FMPE. Numa das vrias reunies em que
trataram do planejamento do FMPE para o ano de 2005, processo que no havia se
encerrado at o fim da minha pesquisa, ela explcita nesse sentido:
Kelly questionou a linha de ao do FMPE que previa lutas pela garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos. A sua crtica tomou a seguinte forma: se sabe que nessa categoria, Direitos
Sexuais, cabe tudo e no cabe nada. Considero importante garantir uma fala pblica do frum
contra a lesbofobia e homofobia, aos moldes da sua posio acerca do racismo. O frum deveria se
posicionar publicamente contra a invisibilidade das mulheres lsbicas (DC 30.03.05).
O pensamento dessa estudiosa tem grande influncia na produo feminista do SOS Corpo.
125
tabu para o feminismo; dentro dele no se discutem como se estabelecem essas relaes, como vm
se estabelecendo. At que ponto no reeditam o poder do masculino? Somos sujeitos mltiplos,
mltiplas identidades, como lidar com isso sem reeditar o poder da dominao masculina? As suas
intervenes foram longamente elogiadas pelo grupo que assistia ao colquio (DC 11.04.05).
Fazer linda uma expresso local utilizada para se referir a mulheres que fazem sexo com mulheres.
126
Em visita ao Coletivo Mulher Vida, conversando com Luana e Alade sobre o trabalho da
ONG e a sua relao com o FMPE, referi-me a ela como feminista. Luana, enfaticamente, corrigiume: a gente no se diz feminista, a gente trabalha com gnero. Quando eu cheguei aqui, o Coletivo
era feminista, socialista e muitos outros istas. Mas depois se brigou com todos os istas. Ns
trabalhamos num processo maior, com direitos humanos, mulheres, homens e adolescentes. O
movimento de mulheres e o movimento feminista em si tem enquadramentos que discordam. Frente
ao meu espanto, Alade, veio em seu auxlio e completou: para se dizer feminista, tem que se
assumir aportes do feminismo naquele momento, mas muda. Uma coisa da qual discordamos que
barrada a participao dos homens. Ns, como nosso foco a violncia domstica, no podemos
excluir os homens. O frum tem feministas, mas tem tambm movimentos de mulheres. Se outras
no estiverem atentas, vira s feminista. E h de tudo ali dentro, desde movimentos de mulheres
que lutam pelo empoderamento at aqueles que lutam contra o feminismo. H espaos de
lideranas de mulheres, por exemplo de partidos, que no participam do frum. E no tm espao,
porque tudo tido como feminista e no tem espao para discordar; tm muitas relaes de poder
l dentro do frum (DC 18.10.04).
127
Segundo ele, o Papai foi o primeiro ncleo feminista a trabalhar com homens. Na
sua avaliao, mesmo com dificuldades, a discusso feminista na academia outra, mais
conceitual e por isto mais permissvel de entrar um homem, por ser academia mais
fcil. Implicitamente aqui parece haver a reproduo de uma outra oposio, j antiga aos
movimentos sociais em geral, entre teoria e prtica. A nfase na origem acadmica do
Instituto e a sua filiao intelectual no gratuita. Parece estar lidando com um dos cdigos
de distino que compe o campo poltico local e, utilizando-se dele, procura angariar um
lugar de prestgio. Cabe ressaltar que a entidade fez parte da coordenao do FMPE durante
um perodo, o que no minimizou as tenses enfrentadas dentro desse espao, conforme
registrei:
Olavo contou-me que em 2000, ano em que o Instituto Papai foi para o Encontro Nacional
Feminista da Paraba, com uma proposta de oficina sobre masculinidade, eles passaram a participar
do FMPE. Como homens no poderiam participar do Encontro, as ativistas mulheres do Instituto
tiveram de ministrar a oficina. Afirmou que desistimos do embate, entendemos que o sujeito poltico
elas. No estamos pleiteando o lugar do sujeito poltico do movimento social; j que este o
grande medo delas. Tambm porque sabemos que ns, enquanto homens, somos a exceo num
contexto maior em que a hegemonia outra. Segundo ele, o FMPE um frum reconhecido como
combativo e que no foi um espao fcil para o Papai estar. Em virtude disso, a sua representante
conseguiu muito pouco ali dentro: ela no conseguiu colocar o problema dos homens ali, ficou uma
discusso muito perifrica. Ns nunca fomos chamados para uma reunio do frum; de reunio
oficial ns s fomos em duas: uma quando ela entrou como coordenao e outra quando saiu. A
gente queria assumir a gesto e ser reconhecido por aquilo que fazemos e no s pela capacidade
administrativa da gente. Passou, assim, a fazer consideraes sobre o feminismo: as mulheres
feministas tm um entendimento de que o feminismo para ser aplicado s mulheres apenas;
quando os homens aparecem, como contraponto, como cristalizado, como o dominador, como o
que subordina. aquela histria, dos estudos de mulheres e da passagem para os estudos de
gnero, que acabam tomando como se fosse mulher. Boa parte das feministas, para as radicais,
elas no conseguem fazer essa leitura de gnero ou das relaes sociais de sexo, para pegar as
francesas. O gnero prope um exerccio reflexivo e quando chegam num determinado ponto elas
no conseguem passar da fixao na mulher. Eu tive muito atrito com o SOS Corpo, foi horrvel
(DC 10.12.04).
Essa resistncia entrada dos homens no universo feminista parece estar associada
quilo que Corra e Vianna (2006) identificam como um patrimnio feminista do qual se
resiste em abrir mo: a categoria essencialista mulher. Na reflexo das autoras, essa
128
tendncia, forte no movimento feminista brasileiro, est por sua vez associada a uma viso
peculiar sobre a dominao, que parece ser predominante tambm no contexto investigado.
Segundo as autoras:
Na dinmica da militncia feminista ainda existe grande resistncia no que se refere
a abrir mo deste patrimnio, ou seja, do capital poltico construdo ao redor da
categoria de representao a mulher. (...) Predomina o apelo essencialista
associado a uma certa leitura da dominao que tenho chamado de vitria do quem
ama no mata sobre o nosso corpo nos pertence: a vitria da vitimizao e do
sofrimento (Corra e Vianna, 2006:03).
A viso do feminismo como sendo uma luta que somente diz respeito a mulheres e
que exclui os homens, posto serem contra quem se luta, denunciada por Olavo,
corroborada pela posio de uma ativista feminista de renome no campo. Ela expe, na sua
argumentao, a justificativa pela opo misndrica. interessante perceber que na sua
formulao, um outro eixo de oposio de fundamental importncia no campo aparece. O
contedo do ns x elas desloca-se novamente, entre um ns feministas negras X elas
feministas brancas. Vejamos:
Eva Basso, ativista histrica negra, uma das ento coordenadoras do FMPE e responsvel
pela organizao da discusso, introduziu o tema da reunio: feminismo e mulheres negras.
Apresentou como o objetivo de tal discusso o de tratar da questo racial, e encar-la como um
guarda-chuva com articulao com muitos temas dentro do FMPE. Logo apresentou a palestrante
da noite, uma estudiosa do tema e militante da luta racial em Pernambuco. A palestrante apresentou
um panorama da questo racial no Brasil, introduzindo novos conceitos que parecem ter feito
sucesso no FMPE. Um dos pontos que chamou a ateno na sua fala foi sobre a especificidade das
lutas das mulheres negras dentro do movimento negro, que os homens no conseguiam enxergar e
tambm dentro do movimento feminista, porque o feminismo no pautava as necessidades
especficas das mulheres negras. Algumas mulheres se manifestaram, asseverando que sentiam um
segregacionismo dentre os movimentos, ao separar as lutas. Cntia Dorneles, feminista branca do
Grupo Sade da Mulher e Aids, se manifestou em seguida, defendendo as especificidades das lutas
dos diferentes movimentos, comparando o movimento negro ao movimento feminista. Disse que o
movimento feminista no aceita homens, porque tem que ter o seu espao de privacidade. Assim o
movimento negro, que tambm quer ter o seu espao de privacidade, para ter uma discusso entre
eles. Isso no segregao, no. Mas tem uma coisa que voc disse que mexe muito comigo.
Quando voc diz que tem pautas do movimento feminista que no as inclui [as mulheres negras];
isso me incomoda bastante porque todas as questes do movimento feminista dizem respeito a todas
129
as mulheres. uma luta que tem de ser nossa e o desafio esse: como vai ser o dilogo do sujeito
mulher negra com esse sujeito universal do feminismo (DC 16.03.05).
Ativistas
Entidades
130
A Marcha Zumbi, realizada em 1995, foi uma manifestao nacional do movimento negro brasileiro em
prol da visibilidade das questes raciais no pas e presso ao governo federal para coibir o racismo.
131
frum. Helena Rodrigues se invocou e fez um discurso inflamado, chegando a ficar em p para
discursar. Disse que essa crtica no poderia ser feita e que no admitiria, porque sempre se
garantiu espao para essas questes, o que faltava era um maior protagonismo das companheiras
do movimento em trazer as informaes sobre a conferncia e de orientar a luta. Reclamou, ainda,
que nem sequer haviam disponibilizado a lista de reivindicaes e organizado a forma de
participao nas conferncias e que estavam desorganizadas (DC 07.04.05).
Harding (1993), ao criticar que o feminismo representa apenas um tipo de mulher: a branca, ocidental,
burguesa e heterossexual, prope que a teoria feminista acolha e trabalhe com a instabilidade das categorias
analticas. Ela defende que se trabalhe conscientemente com as categorias, sabendo que elas no so o retrato
fiel da realidade, posto que a vida social est em constante transformao. Para ela, a teoria feminista deve ser
marcada pela incoerncia, inconsistncia e instabilidade.
133
FMPE a fim de defender a sua bandeira poltica. No entanto, quando essa estratgia
discursiva justaposta s diferentes situaes etnogrficas de disputa e constituio de
alianas entre a emergente proliferao de alteridades contingentes, a noo de experincia
toma uma outra conotao, a de eventos discursivos, tal como prope Scott (1999).
Segundo a autora,
tratar a emergncia de uma nova identidade como um evento discursivo no
significa introduzir uma nova forma de determinismo lingstico, ou destituir
sujeitos de sua capacidade de agenciamento. Significa recusar a separao entre
experincia e linguagem e insistir na qualidade produtiva do discurso. Sujeitos so
constitudos discursivamente, mas existem conflitos entre sistemas discursivos,
contradies dentro de cada um deles, mltiplos sentidos possveis para os conceitos
que usam. E sujeitos tm agenciamento. Eles no so indivduos unificados,
autnomos, que exercem o livre arbtrio, mas ao contrrio, so sujeitos cujo
agenciamento criado atravs de situaes e posies que lhes so conferidas. (...)
Sujeitos so constitudos discursivamente, a experincia um evento lingstico
(no acontece fora de significados estabelecidos), mas no est confinada a uma
ordem fixa de significados. J que o discurso , por definio, compartilhado, a
experincia coletiva assim como individual (Scott, 1999:42).
Essa viragem discursiva possibilita, assim, perceber como as mltiplas alteridades
se constituem e agem dentro do campo poltico feminista local, tais como as mulheres
populares, as lsbicas populares, as lsbicas classe mdia intelectuais, os homens
feministas, as negras feministas, etc. Ao se depararem com um sistema de distribuio de
prestgio e privilgios, que pode ser sintetizado na figura das gr-mestras, lanam mo
destes recursos discursivos para entrar no jogo. Visam, assim, angariar para si, e para as
suas bandeiras, tambm o poder definio das pautas de lutas e reproduzem os esquemas
das relaes de poder e da distribuio de prestgios que dotam de sentido o jogo poltico
nesse contexto.
Em relao ao foco dessa anlise, interessa-me perceber como esse processo
interage com as mulheres das camadas urbanas de baixa renda ativistas do FMPE. Pareceme que h um impacto diferencial, com reelaboraes especficas, que tm reflexos na vida
poltica cotidiana dessas mulheres. Vejamos, ento, como essas mulheres se inserem em
meio s articulaes e s arapiracas e revelam a sua agncia dentro do FMPE.
134
Segundo Odete o Frum trabalha com a sociedade civil organizada, com grupos feministas
ou no. Congrega atualmente mais de 60 entidades e houve um movimento de tentar reverter a sua
composio. O movimento feminista, como voc sabe, historicamente mais de classe mdia, aqui
em Pernambuco e em todo o Brasil, e um dos ganhos polticos do Frum foi a participao de
mulheres populares. Se conseguiu essa participao a partir de aes das ONGs feministas que
trabalham com a dimenso mais poltica, formativa das lideranas populares. uma formao
para qualificar o acompanhamento de campanhas e discusses sobre aborto e violncia contra as
mulheres, para que as mulheres populares tambm tivessem domnio e argumentao, no s as
feministas. Isto possibilitou um fortalecimento na composio do Frum e foi um avano poltico
na qualificao da participao nele.
Perguntei como funcionava o FMPE, ela me respondeu que se reunia de 15 em 15 dias,
numa das reunies, a discusso era mais temtica, terica e outra mais para encaminhamentos.
Disse-me que, como a composio do Frum era diferente, os grupos tm ritmos diferentes e este
era um desafio para o seu funcionamento. O desafio das discusses mais tericas era para que as
mulheres mais populares se tornassem mais autnomas. Contou-me que foi um processo intenso
de articulao poltica para trazer as mulheres populares para o Frum: E isso bem processual
mesmo, a gente percebe que com o tempo algumas delas vo criando condies de pensar e de
agilizar questes. Muitas, em funo de morar longe, quando chega 21 horas, j querem ir embora,
mesmo porque tm que lidar com a violncia dos bairros populares. E da muitas questes de
deliberaes e decises ficam nos pequenos grupos, mais com a coordenao colegiada.
Como Odete tambm representante do Frum Temtico do Segmento de Mulheres do
Oramento Participativo da Prefeitura Municipal, perguntei-lhe se os mesmos grupos de mulheres
dos movimentos populares faziam parte dos dois fruns. Ela me explicou que eram poucas as
135
participantes nas duas instncias. Segundo ela, no Frum do OP a representao mais ampla,
mais poltica, participando mais ou menos 55 delegadas. Perguntei-lhe se ela tinha algum grupo de
mulheres populares que participasse dos dois Fruns para me indicar a conhecer. Ela lembrou-se do
Grupo de Mulheres do Conselho de Moradores da Vila, que fica no Ibura, zona sul da cidade.
Recomendou-me que fizesse contatos com Amelinha e Maria das Graas, j que ambas esto nos
dois fruns. Orientou-me que procurasse a sua colega de trabalho, Augusta Botelho, porque
conhecia melhor as mulheres dos grupos de base por estar ligada ao projeto de formao de
lideranas do SOS e trabalhar direto com as mulheres (DC13.10.04).
136
poder (infrapolitics of the powerless) (p. xiii). Dessa forma, a contestao dos termos da
subordinao no so feitas abertamente, antes feita nas brechas, nos bastidores.
Assim, para se compreender as relaes de poder entre alteridades marcadas pela
varivel de classe, preciso muito mais do que atentar para a relao de classe em si. H
que se fazer distines analticas mais refinadas e enfocar os interstcios das relaes de
poder. Para ele, a infrapoltica, essas formas elementares da vida poltica (idem, p.
200), o que sustenta a ao poltica mais visvel, aquela sobre a qual nossa ateno foi
geralmente focada. Trata-se de um conjunto de prticas silenciosas e escolhas tticas a
partir da conscincia, da compreenso dos cdigos das relaes de poder e da agncia dos
subordinados ou, melhor dizendo, daqueles que esto no plo de menor poder69.
A proposta analtica de Scott interessante para se entender a agncia das mulheres
de base nesse ambiente marcado por uma distribuio desigual de prestgio. No entanto, h
que se ter cuidado na anlise para no se criar uma dicotomia fixa entre os dominadores e
os dominados, arriscando-se a se recair numa contraposio entre dois plos antagnicos e
fixos, tendo-se de um lado os viciosos e de outro, os virtuosos, retirando-se a possibilidade
de agncia dos sujeitos em questo. Entendendo o poder como uma fora que circula
(conforme defendido no captulo um), dependendo das relaes estabelecidas, de acordo
com as situaes e os sentidos negociados, o pleito aqui o de situar a agncia das
mulheres de base num contexto mais amplo em que h uma distribuio desigual de foras.
Nesse sentido, h a tentativa de se perceber, nas prticas e nas inter-relaes, como surgem
os jogos de interesses e as resistncias.
Tendo-se em vista tais ponderaes, esse suposto silncio como a agncia das
mulheres de base interpretada naquela situao - parece-me ser um indcio de um roteiro
oculto, que revelar um potencial e estratgico jogo de alianas, de identificaes e de
diferenciaes com vistas a ganhos polticos, seja em prestgio ou em possibilidades de
financiamentos para garantir a sobrevivncia dos seus pequenos grupos e a de suas
militantes. O tema da sobrevivncia recorrente no campo, que revela uma outra
segmentao entre as militantes profissionais, oriundas de entidades com recursos que
possibilitam a militncia, e aquelas militantes oriundas de grupos que no possuem
recursos. A sobrevivncia entrar como um elemento importante no jogo de
69
Uma instigante anlise que parte da teoria dos roteiros ocultos de Scott encontrada em Brites (2000),
sobre os bastidores do servio domstico e a relao entre as empregadas e seus patres.
138
Em meio discusso, Noeli pediu a palavra e manifestou que considerava importante que o
Frum refletisse sobre uma forma de ajudar as companheiras que estavam na sua representao no
controle social e garantir a sua presena nas atividades com uma ajuda de custo, pelo menos para
o transporte. Citou o seu exemplo, dizendo que estava com dificuldades de acompanhar todas as
atividades em funo da falta de recursos. Ao ouvir a demanda de Noeli, Odete, do SOS Corpo, se
manifestou, chamando a ateno para as implicaes polticas mais amplas em relao ao seu
pedido. Segundo ela, o pedido de ajuda de custo das mulheres oriundas dos movimentos populares
um desafio a ser enfrentado pelo Frum. Entende que a falta de recursos um problema, mas que
no d para vincular a representao, a participao, com ajuda de custo, porque pode-se dizer
que as mulheres s vo para as mobilizaes se tiverem vale transporte (DC 30.03.05).
70
Cabe fazer uma ressalva a essa altura. No campo poltico feminista local h vrias ONGs mais estabelecidas
que possuem projetos voltados para a organizao e sustentao de pequenos grupos de mulheres dos
movimentos populares. No entanto, o projeto do SOS Corpo foi aquele com o qual tive mais contato e do qual
ouvi mais menes na etnografia junto aos grupos de mulheres de base.
139
Sindicato somos muito ajudadas pelo feminismo, pelo SOS Corpo e pelo Frum de
Mulheres. A gente feminista porque o feminismo atua junto da gente. Temos
solidariedade na luta, mas isso no quer dizer que no existam lutas de classes, porque a
feminista tambm patroa. E se ela feminista, ela tem de respeitar a empregada
domstica (DC 28.04.05).
Dulce uma figura pblica muito respeitada no meio por ter iniciado o movimento
de organizao das empregadas domsticas em Recife, a partir da sua ligao com o
movimento da Juventude Operria Catlica, na dcada de 60. uma mulher na faixa dos
60-65 anos, solteira, sem filhos, com ensino fundamental. Foi presidenta do sindicato por
muitos anos e, atualmente, a sua presidenta de honra. Tem a sua histria de vida
publicada. Trata-se de uma autobiografia escrita com a ajuda de uma cooperante alem
associada ao DED (Servio Alemo de Cooperao Tcnica e Social).
Segundo Dulce, o maior desafio da luta das domsticas no a garantia dos direitos
trabalhistas, mas sim a luta pela valorizao social da empregada domstica. Essa
dificuldade se potencializa, sobretudo, em meio a uma sociedade fortemente marcada pela
herana scio-cultural da Casa Grande & Senzala (Freyre, 1987). H um discurso corrente
no campo que associa trabalho domstico e raa, como um forte produtor de desvalorizao
social das empregadas domsticas. No entanto, Dulce parece discordar dessa viso.
Segundo ela o que cala fundo na alma no o fato de ser negra, mas o de ser domstica!
Disse ter sido muito humilhada como empregada domstica. A escravido acabou, mas as
empregadas domsticas continuam na escravido, para as feministas e as no feministas
fazerem o seu movimento. Elas precisam de ns para fazerem o seu trabalho social (DC
03.11.04)71.
Na interao entre esses dois grupos podemos perceber de forma mais aguda como
as alteridades se manifestam, quais os elementos que lhes dotam de sentido e, alm disso,
como a resistncia silenciosa a uma viso predominante posta em prtica a partir do
estabelecimento tambm silencioso de diferentes alianas, em diferentes espaos. O tema
do trabalho domstico parece ser fonte de preocupao das ativistas do FMPE de forma
geral. No ms em que se comemora o Dia da Trabalhadora Domstica, o FMPE empenhouse em apoiar a realizao de atividades comemorativas. Na reunio do dia 07 de abril, esse
foi um dos pontos da pauta de discusses.
71
Tal afirmao de Dulce remete ao que Brites (2000) menciona como uma desconfiana das lideranas dessa
categoria em relao s organizaes feministas (p. 44), o que torna o caso aqui em anlise mais complexo.
140
Nair Valena abriu a reunio salientando que a inteno era a de o FMPE ajudar a
organizar a proposta do Sindicato das Trabalhadoras Domsticas para as comemoraes do dia 27
de abril. Contou que a coordenao do Frum reunira-se com algumas entidades como a Casa da
Mulher do Nordeste, o SOS Corpo e com o prprio Sindicato e identificaram a necessidade de
pensarem conjuntamente as atividades para o Dia da Domstica. Logo em seguida, passou a palavra
para as representantes do Sindicato presentes na reunio para a apresentao das propostas que
tinham trazido.
Dilma passou a relatar as atividades previstas, enquanto Nair anotava-as no quadro. Dilma
falava muito baixinho, quase no dava para se ouvir. A primeira atividade pensada foi para
domingo, dia 10.04, s 15 h, no Sindicato, uma reunio com as sindicalizadas para discutir sobre o
modelo de contrato de trabalho. Nair perguntou se poderiam divulgar essa atividade para imprensa.
Dilma aquiesceu. A outra atividade em que tinham pensado, a ser realizada tambm num domingo,
mais precisamente no dia 24 de abril era um evento mais animado, mais festa, mas ainda no temos
nada, est em aberto. Nem local, nem formato. O espao do Sindicato muito ruim para fazer
festas. No dia 26.04, tera-feira, s 14 h, haver um debate sobre previdncia social no Sindicato
que abordar a relao das domsticas com o INSS, que j est confirmada. Dilma comentou ainda
que estavam pensando em fazer uma audincia pblica na Assemblia Legislativa para a discusso
sobre contrato de trabalho.
Helena Rodrigues, meio impaciente e sem escutar direito o que Dilma dissera, interveio e
afirmou que, como o Sindicato era estadual, a audincia deveria ser feita na Assemblia. Dilma a
corrigiu dizendo que o Sindicato metropolitano e disse-lhe ainda que tinham pensado em fazer na
Assemblia Legislativa mesmo e que, para tanto, estavam fazendo contato com a Assessoria da
deputada federal petista Teresa Leito. Nair aventou a possibilidade de convidar a presidente
nacional do Sindicato, que da Bahia, para a audincia pblica. Complementou o calendrio de
atividades falando sobre a reunio temtica do Frum, dia 28, sobre trabalho domstico. Segundo
Nair, a idia desta reunio era a de propor uma discusso feminista sobre o trabalho domstico de
forma geral, sobre a reproduo do trabalho domstico. Em vista disso, pensavam em trazer uma
feminista que entendesse desse assunto para falar. Helena Rodrigues interveio dizendo que se a
proposta do Frum era a de trazer para a discusso algum do sindicato das domsticas e uma
feminista que falasse do trabalho domstico em geral, poderiam tambm chamar algum
representante da CUT, para falar sobre a precariedade do trabalho. J que era uma discusso que
estava sendo feita na CUT, tendo-se em vista os funcionrios pblicos e que poderia ser estendida
ao trabalho domstico.
Natlia pediu a palavra para fazer uma problematizao. Palavra concedida, perguntou se o
Sindicato das Domsticas ainda estava filiado CUT, tecendo em seguida duras crticas CUT.
141
Disse que era uma central importante, mas que estava atrelada ao governo e comprometida com a
precarizao do trabalho. Contudo, se o Sindicato ainda estava filiado, era de se pensar tambm a
rentabilidade desse convite. Dilma continuou falando das outras atividades previstas. A reunio, a
esta altura, j estava meio confusa, com interrupes a todo momento. Dilma disse que no dia 18 de
abril estar em Braslia, como representante local de uma comisso nacional para discutir os direitos
trabalhistas e que no dia 27 haver, tambm em Braslia, a reunio de 25 trabalhadoras domsticas,
de todo o Brasil, para comemorar o dia. Natlia interveio novamente, propondo deslocar a
mobilizao do Frum de Mulheres do dia 28 para o dia 26, j que as domsticas no estariam no
dia 28 em Pernambuco, por estarem participando da atividade em Braslia no dia 27. Novamente
Dilma no fora escutada. Natlia argumentou que seria importante juntar a discusso feminista ao
Sindicato, que era um momento importante, de interesse das feministas de levar para l a discusso.
Helena Rodrigues interrompeu-a, dizendo que no concordava. Natlia reagiu. Nair interveio,
pedindo Helena que deixasse Natlia terminar o seu raciocnio. Assim, Natlia continuou dizendo
que era uma proposta, e que as domsticas tinham de ver se gostavam ou no. Dilma disse que no
se tratava de uma questo de gostar ou no e explicou que no dia 27 somente ela no estaria em
Recife, que seriam 25 mulheres de TODO o Brasil. Nair tentou encerrar esse ponto da discusso,
salientando que a reunio temtica do Frum tinha sido pensada a fim de sensibilizar outras
entidades dali para o fortalecimento dessa luta e para o debate do tema do trabalho domstico de
forma geral, DENTRO do Frum.
Logo passou a organizar a festa do dia 24. Ela e Helena passaram a pensar num local.
Aventavam vrias possibilidades e consultavam Dilma, que mal se manifestava. Pensaram em sedes
de sindicatos que se localizam no centro da cidade. Nair sugeriu que fosse feito no SOS Corpo,
dirigindo-se em seguida Odete, representante da entidade ali, perguntando se era possvel. Odete
disse que poderia ver. Depois Nair perguntou Dilma o que as domsticas achariam desse lugar.
Dilma disse que no era um bom lugar porque era muito distante, que seria melhor no centro. Nair e
Helena ficaram discutindo entre elas sobre o centro ser muito esquisito (eufemismo para perigoso)
aos domingos. Decidiram pela sede do Movimento de Trabalhadores Cristos (MTC), no centro da
cidade. Sobre a atrao, Nair sugeriu voz e violo, tocando MPB. Dilma falara em apresentao de
dana e algo para depois danarem. Nair no escutou e insistiu na voz e violo, acabando por deixar
isso mesmo. Alade, sentada ao meu lado, observava tudo sem comentrios. Comentou baixinho
comigo: elas gostam de pagode, essa histria de MPB e voz e violo no vai dar certo... Nair ainda
props s entidades do Frum que tivessem condies de fazer uma doao para a realizao de um
coquetel, que disponibilizassem o dinheiro para a assessora de imprensa do FMPE. Logo distribuiu
as tarefas para algumas mulheres ali: contato com o MTC, contato com o artista da voz e violo,
definio do coquetel e confeco dos convites para a festa, encerrando esse ponto de pauta (DC
07.04.05).
142
Liguei para Iazinha para saber se ela e Lucimar iriam festa das domsticas. Havia dias que
no nos falvamos. Ela foi gentil comigo e contou-me que tambm estava trabalhando bastante em
funo do trabalho acumulado na casa de Maria Helena (Andrade), sua patroa. As suas folgas no
seriam mais s teras, como de costume, porque a sua patroa queria que ela tambm trabalhasse nas
teras. Perguntei-lhe se ia festinha do Sindicato. Iazinha disse-me que no, mas que muitas dali da
Vila iriam, como: as Leilas, Celina e Piedade. Pelo seu tom, pareceu-me que as tenses da eleio
do Conselho de Moradores da Vila ainda no tinham passado. Disse-lhe que tinha encontrado Maria
das Graas e que ela iria festa. Iazinha me respondeu com um evasivo , ela adora uma festa...
Perguntei se ela sabia onde seria a festa. Respondeu negativamente e foi chamar Lucimar para ver
se ela sabia. Perguntei por que ela tambm no iria a festinha. Disse-me que tinha de ir com
Luciane, sua filha, numa atividade na igreja da UR5 e que no iria dar tempo. Pedi que ela me
explicasse como chegar at o local, que ela conhecia bastante. Explicou-me que o lugar se chamava
MTC, Movimento dos trabalhadores Catlicos, mas que quando o conheceu era ainda Ao
Catlica Operria (ACO). Lamentei as suas ausncias e agradeci as suas explicaes e desliguei,
rumando, em seguida, para a festinha das domsticas. Seguindo as explicaes de Lucimar,
encontrei facilmente o prdio do MTC, uma casa antiga, do centro da cidade. Em frente ao prdio
havia um grupo de jovens negros, meninos e meninas. Avistei uma escada que dava aceso a um
andar acima e fui subindo. Encontrei alguns rostos conhecidos de outros eventos locais.
Cumprimentei uma das domsticas da diretoria do Sindicato e perguntei se o pessoal da Vila j
tinha chegado; ela me abriu um sorriso e perguntou se eu era do SOS Corpo. Disse-lhe que no e
que conhecia o pessoal das reunies do Frum. Insisti na minha primeira pergunta que fora
ignorada, ela respondeu que o pessoal da Vila j tinha chegado e indicou-me que subisse. Fui
subindo. Era um salo de tamanho mdio com cadeiras de plstico brancas dispostas todas volta,
ocupadas por muitas mulheres, mais velhas, sendo a maioria negra. Percebia-se que tiveram um
cuidado especial com a aparncia; inequivocamente vestiram-se para um dia de festa. O intenso
calor dentro do salo tornava-o modorrento. A platia, entre sonolenta e entediada, assistia a uma
apresentao de um grupo de meninas, netas de algumas domsticas, que danava coreografias de
Brega72. Fui entrando e avistei Amelinha e Maria das Graas sentadas esquerda. Ambas me
72
Brega um estilo musical ao qual corresponde uma coreografia especfica muito difundido no norte e
nordeste do pas.
143
acenaram e me chamaram para me juntar a elas. Logo avistei Celina, que estava parada no fundo do
salo, prxima de uma mesa grande. A mesa, arrumada com uma toalha branca, acolhia o pequeno
aparelho de som porttil que garantia a msica, embora abafada e meio distorcida, para a
apresentao das meninas. Ela me avistou e veio em minha direo. Estava bem vestida, com cala
de seda preta e uma blusa de linha. Beijou-me sorridente e perguntou se eu era do SOS Corpo
(pensei, meio desenxabida: ah, no, de novo!). Disse-lhe que no, lembrando-lhe que nos
conhecamos do FMPE e que eu estava em Recife em funo da minha pesquisa. Ela faz Ah..., que
me soou desanimado e, ato contnuo, me levou at uma pequena mesa, disposta na porta de entrada
direita, onde havia trs listas de presena com ttulos distintos e uma domstica que as gerenciava,
caso no estivesse cochilando sentada. Celina pediu que eu assinasse uma das listas, intitulada
visitantes. As outras eram companheiras domsticas empregadas e companheiras domsticas
desempregadas. Na lista que assinara, percebi a presena de Pmela e Tamara, que haviam
assinado, respectivamente, como vice-presidente e presidente do Conselho de Moradores da Vila,
vencedoras da acirrada disputa contra a chapa de Amelinha. Logo as avistei sentadas ao fundo e as
cumprimentei.
Numa olhada geral identifiquei algumas mulheres que j conhecia da Vila; umas
domsticas, outras no. Rute, que estava sentada prxima da entrada, Lucinha, irm de Amelinha e
tambm moradora da Vila, e Adelaide. Maria das Graas tinha arrumado uma cadeira para eu me
sentar junto delas, colocando-a na frente da sua, me deixando sentada na sua frente e meio fora do
crculo. Aquilo me deixou constrangida e pedi que abrissem espao para que eu entrasse na roda,
sentando no crculo. Fiquei, portanto, entre das Graas e Amelinha. Ao seu lado estavam Eva
Basso, coordenadora do FMPE e da Uiala Mukaji Sociedade de Mulheres Negras, e Moema
Pereira, do SOS Corpo. Elas teciam comentrios sobre a coreografia das meninas, num certo tom de
condenao: ao invs de danarem um coco, estavam danando aquelas msicas enlatadas
horrveis.
Logo em seguida a dana terminou e Celina anunciou que Dulce, a presidenta de honra do
Sindicato, no havia comparecido porque estava na Bahia, num seminrio sobre gnero. Alertou aos
convidados que s estavam esperando o grupo de afox se aprontar para fazer a sua apresentao.
Enquanto o grupo no aparecia, as meninas continuavam danando. Quem cuidava do som era
Milton, morador da Vila e inimigo do grupo de Amelinha. Perguntei Maria das Graas se era ele
mesmo, ao que confirmou e mostrou-me uma menina que era filha dele. A ciso da Vila
ultrapassava os seus domnios, revelando-se naquele contexto, ou seria o contrrio? A desconfiana
de todas as mulheres do grupo de Amelinha, de que Celina teria votado e apoiado a chapa de
Tamara na disputa pelo Conselho da Vila, parecia se confirmar. Tamara, agora, retribua o apoio
recebido, prestigiando a festinha organizada pelo Sindicato, e Pmela fotografava o evento.
144
Perguntei a ela quem mais da Vila estava ali, ela foi listando: Lucinha, Adelaide, Vilma (que eu no
conhecia), Rute e mais algumas que estavam por ali. No mencionou Tamara nem Pmela.
Logo chega o grupo de afox, que era formado por muitos jovens homens e mulheres
negros, de um bairro da periferia de Recife. Um dos rapazes, que tocava um dos tambores,
apresentou o grupo, explicando que o seu objetivo era o de dar visibilidade cultura negra. Uma das
moas que faz parte do grupo estava tambm participando da Uiala Mukaji Sociedade de
Mulheres Negras, entidade atravs da qual entraram em contato com o Sindicato. O rapaz agradeceu
o convite Eva Basso, presidenta da entidade, comeando em seguida a apresentao. L pelas
tantas o grupo comeou a se empolgar e algumas das mulheres foram para o fundo da sala danar:
Celina, Rute, Tamara, Eva Basso, Moema Pereira e Piedade. A proximidade de Eva Basso e Moema
Pereira com as mulheres que compem a nova direo do Conselho de Moradores da Vila notada,
no sem censura, por Amelinha, que parecia desconfortvel com a situao. Quando eles estavam
quase finalizando a apresentao, convidaram a todos para entrarem na roda de dana. Todas
ficaram em p, batendo palmas e danando. Maria das Graas estava bem faceira danando dentro
da roda. Eu e Amelinha ficamos na borda observando a dana, enquanto Amelinha criticava as que
estavam danando. Terminado o show, as anfitris passaram a servir um coquetel: cachorro-quente,
bolo e refrigerante. Todo mundo permaneceu sentado enquanto as anfitris passavam com bandejas
servindo os comes e bebes (DC 24.04.05).
Nas palavras de Odete e Nair acima descritas, as mulheres de base aparecem como
mulheres sem agncia, sem voz, sem autonomia e sem capacidade reflexiva e propositiva.
Segundo essas feministas, no contato e convvio do FMPE que essas mulheres de base
vo criando condies de autonomia e reflexividade. No entanto, a anlise da organizao
da comemorao do dia da trabalhadora domstica ajuda-nos a compreender, por um lado,
o lugar que destinado s mulheres de base no campo poltico feminista sintetizado no
FMPE e, por outro, como elas se colocam nesse lugar e como o contestam, agindo nas
brechas e nos bastidores das disputas locais e do confronto das arapiracas. Na anlise da
situao da festa de comemorao do dia da domstica, as noes de autonomia e
reflexividade crtica, to caras s feministas e que contribuem para a homogeneizao das
mulheres de base, na agncia dessas ltimas passam a ser relativizadas.
Um primeiro elemento que chama a ateno relativo s pessoas que estavam
envolvidas na organizao da festa e quelas que efetivamente estavam presentes no dia. As
feministas que sugeriram e decidiram o formato da festa no estavam presentes no dia da
comemorao. Para alm das organizadoras, nenhuma das participantes do FMPE que
estavam presentes no dia da reunio, que foram convidadas para a festa, compareceram
145
festa. Essa disparidade parece-me remeter a indcios das alianas encobertas possveis de
serem feitas pela poro das participantes do FMPE que esto margem da distribuio
desigual de poder e que, naquele contexto do campo poltico, tem pouqussimo capital de
articulao poltica em relao s suas interlocutoras.
Outro elemento importante relaciona-se com a repetio da mesma compreenso
implcita acerca do lugar destinado s mulheres de base no FMPE. As feministas que
tomaram para si a tarefa de organizar a festa, o fizeram a partir de um repertrio de gostos e
convenes alheios ao universo das donas da festa. A sugesto da voz e violo como a
atrao principal da festa revelou-se mais como uma sugesto canhestra e deslocada do
repertrio de escolhas das mulheres de base, mesmo tendo sido sugerida com a inteno
genuna de animar a festa. Por mais estrangeiro que fosse ao seu universo de gostos e
escolhas, essa sugesto no foi contestada pelas representantes do Sindicato presentes na
reunio. Pelo contrrio, a sugesto foi decidida e aparentemente acatada. No entanto, qual
no foi a minha surpresa ao encontrar, ao invs da voz e violo, brega e afox. Muito
embora eu no tenha acompanhado os interstcios dessa mudana, e como se deu a sua
negociao, a prpria descrio da situao nos d indcios dela. Ali aparece uma outra
agente de grande importncia no campo, Eva Basso, que no estava presente no dia da
reunio do FMPE para a organizao da festa, mas que surgiu como a responsvel pela
sugesto da principal atrao: o grupo de afox. A conhecida proximidade e
comprometimento que essa feminista tem com o movimento de domsticas, associado ao
contraste entre o que foi planejado e o que foi efetivado e no contestao imediata das
donas da festa no exato momento da sua organizao e depois a festa ter sado do seu jeito,
apontam para aquilo que Scott chama de roteiros ocultos e nos d pistas sobre a
infrapoltica. Atravs desses elementos podemos supor as negociaes silenciosas
realizadas por trs dos bastidores e o modo de agncia dessas mulheres de base, que no
contexto do FMPE esto nas margens das disputas de poder, mas tem um savoir-faire de se
embrenhar pelas suas brechas e participar, de uma outra forma - talvez como protagonistas
secundrias desse contexto - das disputas ali dentro.
Mas como j havia chamado ateno anteriormente, fundamental nuanar essa
anlise com elementos relativos s combinaes peculiares entre contexto, situao e
sentido para no fixar dois grupos antagnicos - as poderosas e as sem poder - , e no
perder de vista como as relaes de poder so dinmicas e seus termos mutveis. Nessas
brechas, elas contestam a distribuio das relaes de poder daquele espao, bem como se
146
apropriam delas e as mimetizam, como parece ser o caso da expectativa das donas da festa
em relao presena de mulheres oriundas do SOS Corpo ao confundir a pesquisadora
com uma ativista da entidade o que parecia significar prestgio para a comemorao, por
mais que contestassem silenciosamente as definies sobre o formato da festa. Na prpria
descrio da situao aparecem outras segmentaes e deslocamentos internos alteridade
mulheres de base, tomadas anteriormente como um bloco homogneo, que podem ser
percebidas nas alianas entre algumas domsticas a presidenta Celina e feministas ali
presentes Eva Basso e Moema Pereira e o potencial apoio nova gesto do Conselho de
Moradores da Vila. Esses esquemas de disputas, cises, busca de apoios e de acmulo de
capital de articulao poltica emergiam ali, tendo-se originado noutro espao, no da
disputa poltica comunitria.
A ciso do Grupo de Mulheres da Vila, que ser analisada no captulo cinco e que j
revela seus contornos na festa das domsticas, muito embora tenha seus termos e roteiros
particulares, parece mimetizar no espao micro-poltico as disputas de poder e confrontos
de arapiracas do campo poltico feminista mais amplo. Essa relao nos mostra o quanto
os mais diferentes espaos do campo poltico mais amplo esto interligados e se alimentam
reciprocamente. Sendo assim, os cdigos que dotam de sentido o jogo poltico local bem
como os sentidos de gnero que lhes so atribudos so pervasivos a todas as dimenses do
campo poltico local.
Neste captulo procurei demonstrar como o sistema de prestgios e privilgios, o
capital de articulao poltica e a distribuio desigual de poder se do em ao, a partir da
etnografia do FMPE. Alm disso, nos significados em ao tambm se revelam as
alteridades que se posicionam contingencialmente, disputam as definies do prprio
campo e o dotam de sentidos de gnero. Nesse contexto de intensa proliferao de
alteridades e pejado de relaes de poder, interessa-nos de forma mais prxima a
experincia das consideradas mulheres de base.
A relao estabelecida entre essas mulheres de base e as ongueiras feministas,
ambas aqui tomadas propositalmente de forma genrica, pode ser compreendidas a partir da
chave interpretativa tomada de emprstimo de James Scott (1990) acerca das disputas
infrapolticas. Na etnografia do FMPE pudemos perceber as nuances existentes entre as
ongueiras feministas e a forma como percebem as mulheres de base. A no escuta, a
percepo homogeneizadora dessas ltimas pelas faltas (de autonomia, de reflexividade
crtica, de posicionamento pblico) so relativizadas j pela situao etnogrfica da
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organizao da festa das domsticas e indicam pistas de roteiros ocultos e agncia nas
brechas das relaes de poder.
A fim de aprofundar essas questes e compreender a heterogeneidade dessas
mulheres de base e das suas prticas polticas, bem como as formas como se relacionam
com o campo poltico feminista mais amplo e, reciprocamente, se modificam e interagem,
cabe agora uma anlise mais detida da multiplicidade desses ativismos femininos
populares. Passarei, no prximo captulo, a esta anlise, buscando revelar a diversidade
atravs da organizao analtica em trs diferentes modelos de prtica poltica feminina
popular, que se afastam da matriz explicativa da maternidade militante.
148
CAPTULO IV
PARA ALM DA MATERNIDADE MILITANTE: MULHERES DE BASE E OS ATIVISMOS
_________________________________________________________________________
Lucimar: Eu no queria ser me.
Alinne (com tom de espanto): No querias?
L: Eu no queria ser me. Mas quando voc se envolve com um homem e o homem no
quer compreender a contra-concepo... A voc corre esse risco e muito grande. Eu queria
estudar. Nessas alturas eu estava terminando a quarta srie e me iniciei na quinta srie. A
gravidez para mim, naquele perodo, era tudo de ruim. Podia atrapalhar os meus planos que
era estudar, terminar meus estudos, o primeiro grau, o segundo grau, fazer um curso assim
no meio popular... qualquer coisa no meio popular, de onde eu tirasse minha sobrevivncia,
entendeu?
A: No...
L: Assim: eu queria trabalhar em coisa feito o SOS Corpo. Ou outra instituio parecida, em
que eu tivesse um tempo para trabalhar, podia ser por hora, por exemplo... um perodo s,
um horrio, seis horas, oito horas, e os outros tempos era para eu estudar e participar de
congresso, de encontro, conferncia... do meio poltico. Tudo para eu crescer. A quando a
minha menstruao parou, meus sonhos tambm pararam. Quando eu peguei o teste e deu
positivo eu sai chorando de l da clnica feito uma doida. Eu chorei tanto nesse dia! Noutro
dia, eu cheguei no trabalho de cara inchada. A a filha da patroa disse assim: Que foi que
aconteceu? Voc est to diferente... Eu mostrei o resultado para ela. Ela disse: Voc no
est feliz, no? Eu disse: No, essa gravidez no estava nos meus planos. A ela me disse:
se voc quiser tirar... E eu disse: No! Eu sou contra o aborto. (DC, 28.05.05)
O excerto acima, retirado da entrevista feita com Lucimar, uma das participantes do
Grupo de Mulheres da Vila, exemplar para iluminar um dos principais pontos que esse
captulo quer tratar: a contestao da maternidade militante (conforme mencionado
anteriormente) como matriz explicativa para o ativismo poltico de mulheres das camadas
populares urbanas. Essa contestao passa, fundamentalmente, pela compreenso do campo
poltico mais amplo em que essas ativistas se inserem e das relaes que nele estabelecem
(como procurei demonstrar nos captulos anteriores) bem como pela identificao da
diversidade encerrada na categoria nativa mulheres de base. Tomadas como um bloco
homogneo, como vimos no captulo anterior, essas ativistas guardam muitas diferenas
entre si, as quais indicam distintos sentidos atribudos ao ativismo e, conseqentemente,
modelos alternativos de militncia feminina popular que, no entanto, tm algo em comum:
o afastamento do modelo da militncia a partir da politizao da maternidade.
A fim de analisar a possibilidade de uma nova forma de compreenso do ativismo
feminino popular, nesse captulo resgatarei brevemente a literatura especializada sobre o
ativismo de mulheres das camadas de baixa renda, buscando caracterizar e contextualizar a
matriz explicativa da maternidade militante, para em seguida demarcar os contornos de
novas possibilidades interpretativas para essa prtica poltica. Para tanto, e em seguida,
trarei os dados etnogrficos a fim de tomar, comparativamente, duas experincias de
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151
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protagonistas majoritrias, mas com algumas diferenas. Agora, elas so tidas como
presidentes preferenciais das organizaes; segundo a anlise,
o relativo predomnio das mulheres na diretoria (presidncia, secretaria, por
exemplo) das entidades de bairro parece estar vinculado trajetria de seu cotidiano
e s esferas de seu domnio e trnsito: o privado ou domstico-familiar, do qual o
bairro e suas organizaes locais parecem representar uma extenso das mesmas
(Knauer, Andrade e Friedhoff, 2001:40).
Outro dado relevante nessa anlise que, associado a esse relativo predomnio das
mulheres em cargos de destaque, h uma apropriao do modo caracterizado como
masculino de fazer poltica:
o modo como algumas lideranas femininas se comportam, seja numa reunio de
associao de moradores, seja num frum ou numa disputa de eleio poltica,
parece reproduzir o modo masculino de fazer poltica: usam das mesmas
artimanhas, tticas, estratgias polticas para aprovar suas propostas e conseguir que
sejam eleitas (...) (idem, p.37).
Percebe-se, nessa ltima anlise, a combinao de duas matrizes explicativas
importantes; aqui a maternidade militante associa-se ao ideal da sororidade feminista,
conforme discutido anteriormente. H, ao meu ver, nessas duas matrizes a reproduo de
um modelo ideal de feminino estereotipado, associado a uma tica do cuidado e a uma tica
da cooperao e solidariedade tidas como imanentes ao feminino75. Essa mesma
combinao aparece em outras anlises, como a de Mendes (2000). A autora, na busca de
compreender os sentidos produzidos na participao de mulheres das camadas urbanas de
baixa renda no PREZEIS Plano de Regularizao das Zonas Especiais de Interesse Social
, em Recife, afirma que
ainda sobre a diferena de postura e atuao entre mulheres e homens nos espaos
polticos do PREZEIS, pode-se dizer que por conceberem esses espaos enquanto
uma extenso do trabalho domstico junto famlia, o que implica num ethos
diferente, em um nvel de solidariedade e valores semelhantes (Manzini-Covre,
1997:108), elas tornam-se mais sensveis s questes discutidas e, portanto, mais
comprometidas enquanto agentes da luta cotidiana. Alm da atividade comunitria
ser concebida como extenso da casa, a convivncia diria com um pblico que
seu conhecido, com o qual se identificam na irmandade da pobreza e misria, as
fazem mais unidas, soltas, solidrias, aprendendo a compartilhar os problemas que
consideram iguais, famlia, o seu espelho [Sarti, 1996] (Mendes, 2000: 71-72).
75
Joan Tronto (1997) faz uma crtica, a partir de uma perspectiva feminista, tica do cuidado que
tradicionalmente dota de sentido um modelo hegemnico de feminilidade ocidental. Ao criticar algumas
anlises feministas, ela alerta para o fato de que elas no podem supor que qualquer atributo das mulheres
seja automaticamente uma virtude digna de ser defendida como causa. A no ser que adotemos uma posio
pr-feminina acrtica e digamos que, seja o que for que as mulheres faam, timo s porque feito por elas
(...) (p.187).
153
Muito embora na anlise anterior haja uma crtica adoo de uma postura poltica
masculina e nessa segunda haja um elogio sensibilidade e ao comprometimento femininos
nas causas polticas comunitrias, ambas tm em comum o compartilhamento de
pressupostos que embasam um ideal de irmandade entre mulheres, de um feminino
colaborador e abnegado, os quais se opem a um masculino competitivo e egosta. Pareceme haver novamente, em ambos os casos, a combinao dos dois ideais de perfis polticos
esperados para as mulheres: a sororidade e a maternidade militante.
No entanto, concentrando-se um pouco mais na pesquisa de Mendes (2000), mais
especificamente nos dados qualitativos que apresenta, podemos identificar outros elementos
que abrem novas possibilidades compreensivas para a experincia de ativismo poltico de
mulheres das camadas urbanas de baixa renda. O depoimento de uma ativista sobre o
sentido da sua participao poltica parece ser exemplar do que pretendo demonstrar, como
veremos.
Esse trabalho poltico de certa forma me valorizou, hoje eu tenho um trabalho no
Estado, trabalho na Secretaria de Imprensa, no Departamento de Pesquisa, quer
dizer, isso me trouxe tambm um suporte financeiro desse meu trabalho. Eu tenho
um cargo de confiana no governo. (...) Eu posso trabalhar na poca da campanha
como eu trabalhei pra Jarbas, fiz campanha para Cadoca que secretrio de poltica,
o outro representante j trabalha para outros candidatos, a outra Representante
trabalha pra outros, cada um trabalha para seus candidatos (Mendes, 2000:64).
interessante perceber que h, nesse depoimento, um elemento que destoa da
abnegao que caracteriza a definio da maternidade militante; antes h a indicao de
que o campo poltico, dentre outras coisas, tambm possibilita um investimento numa
carreira poltica pessoal. A autora interpreta esse depoimento como o estabelecimento de
uma relao de custo-benefcio e de escolhas racionais, uma espcie de pacto social (p.
63-64) sugerindo que h um clculo nessa investida, tendendo a interpretaes mais
tradicionais sobre personalismo e clientelismo, mesmo sem chegar a afirm-los.
Tal depoimento parece-me ser a indicao de que o campo poltico guarda uma
complexidade de sentidos, dentre os quais o de que tambm encarado como um novo
campo de possibilidades que se abre para a realizao de projetos pessoais. Essa
possibilidade interpretativa permite reinscrever a experincia de ativismo poltico de
mulheres das camadas urbanas de baixa renda em outros termos, sem aprision-la no
referencial da maternidade. Elemento esse que, contemporaneamente e tal como nos indica
o posicionamento de Lucimar que abre esse captulo, parece ganhar tons anacrnicos. Se a
154
fica a cada dia num ponto diferente do bairro, onde as mulheres que fazem parte do
projeto entregam preservativos e conversam, desmistificando o seu uso. Avalia como um
projeto interessante porque muitas pessoas no vo ao posto de sade pegar preservativos.
Segundo ela, essa idia tinha sido to inovadora que chegou a ser replicada numa cidade do
serto pernambucano (DC 15.10.04). Vanir, que se apresenta como sendo a terceira gerao
do projeto, contou-me que ao todo so oito mulheres nele envolvidas, que foi premiado e
ganhou um filme sobre a experincia. Segundo ela, atravs do projeto tentam disseminar o
hbito do uso de preservativos, transform-lo num hbito como o de usar a escova de
dentes (DC 04.11.04).
Como reafirmam Eva e Vanir, o Grupo de Mulheres do Morro da Velha um dos
grupos femininos populares mais conhecidos. Costumvamos nos encontrar nas mais
diversas atividades do campo poltico feminista local; num deles Vanir contou-me, com
orgulho, que o seu grupo havia sado no Dirio de Pernambuco (um dos maiores jornais
locais), em funo do projeto que realizam com as mulheres do bairro. As irms orgulhamse em mencionar a sua apario em reportagens de jornal e televiso e de ser tido como
referncia.
Essa notoriedade faz com que a agenda das mulheres nele envolvidas seja muito
cheia de compromissos, quase no tendo tempo disponvel. Logo que conheci Vanir numa
das reunies do FMPE, ela foi arrolando as inmeras atividades em que estava envolvida e
a sua falta de tempo: de manh trabalha no projeto com as mulheres, tarde no projeto com
crianas e noite divide-se entre as tarefas dos projetos, as atividades do campo poltico
feminista e a militncia petista. Logo aps a sua listagem, ela me questionou: mas de
quanto tempo tu precisas para falar comigo? (DC 03.11.04). Aps muita insistncia, acabei
visitando o Morro num dia em que o Conselho estava promovendo uma festa para as
crianas envolvidas no seu projeto. Na ocasio, muita gente de fora estava na festa, em
especial representantes dos financiadores internacionais dos projetos ali desenvolvidos76.
A sensao que tive era a de que Vanir parecia desconfortvel com a minha
presena, sem saber muito bem como lidar comigo naquele contexto. Essa certa resistncia
e desconforto atribuo ao fato de o grupo ser muito requisitado e, em funo disto, de ter
desenvolvido um determinado tipo de discurso para essas ocasies. A minha presena, e o
76
Na festa, quando apresentada ao representante da misso anglicana, financiadora do projeto que desenvolve
com as crianas do Morro, Vanir repetiu o mesmo discurso que anteriormente fizera para mim, listando as
suas atividades.
158
tipo de presena que representava, creio soar-lhe inesperada e sem sentido ao fugir dos
padres que lhes so conhecidos. Muito embora paream acostumadas com o assdio de
pesquisadores, da mdia e das agncias de cooperao internacional, o que resulta numa
forma mais pragmtica de se relacionar com esses agentes, marcada por uma constante
auto-promoo da imagem do Grupo de Mulheres do Morro da Velha, no parecia entender
muito bem o que mais eu poderia querer conhecer e saber do projeto, alm do que j tinha
me contado. Foi somente assim que consegui conhecer o Morro da Velha e o Conselho, em
meio a tantos visitantes maravilhados com os projetos sociais do Morro. J o Grupo de
Mulheres, conheci apenas atravs do filme e das histrias contadas por Eva e Vanir.
Para os propsitos dessa anlise, interessa ainda resgatar um aspecto que me parece
relevante na caracterizao do Grupo de Mulheres do Morro da Velha, bem como
elementos da trajetria militante de Eva Guimares. Segundo ela, o Grupo de Mulheres do
Morro da Velha foi um dos primeiros grupos de mulheres populares que se disseram
feministas, sendo muito atuante e parceiro do Frum de Mulheres de Pernambuco e da
Rede Feminista de Sade. Ponderou, ainda, sobre a insero poltica do feminismo em
Pernambuco, que muito grande. Lembrando-se do Encontro Feminista realizado em Porto
Alegre de que participou, disse-me que l bebeu dos diferentes feminismos e se deu conta
de que h diferentes feminismos, um do sul e outro do nordeste, reforando uma marca
distintiva de regionalidade na prxis poltica feminista:
o feminismo daqui um feminismo da democracia, de respeitar o jeito da outra, de
considerar as diferenas e de conviver com as diferenas. claro que no fcil de
se fazer, de se estar sempre pensando nas diferenas. Por exemplo, em casa,
quando eu brigo com a minha famlia, eu sou super autoritria e da eu estou
deixando de ser feminista e estou sendo me. um exerccio difcil, eu tenho a
conscincia de que estou sendo autoritria. Tenho que trabalhar isso, mas no
fcil. Na minha viso, o feminismo questiona as estruturas de poder, questiona as
estruturas econmicas do pas. Tem feminista que questiona o capitalismo brutal,
mas tem muita que consumista, que fortalece o capitalismo, e no d para dizer
que ela no feminista, ela . Tem tambm muitas mulheres que defendem os
direitos das mulheres sem serem feministas, que ficam mais naquele discurso
corporativo, ns as mulheres (DC 15.10.04).
Perguntei que tipo de feminista ela era. Foi logo me dizendo: eu sempre digo que se
tem uma coisa que eu no sou terica. A minha formao com a prtica. Tanto que fui
estudar bem mais tarde. Ser feminista para mim um modo de vida, ter uma posio no
mundo e de ter a obrigao de se comportar na sociedade como tal, estar atenta aos
preconceitos, no discriminar, estar atenta a todas as diferenas.
159
Eva Guimares uma mulher jovem, na faixa dos seus 40-45 anos, morena,
formada em Pedagogia. Aparenta ser uma mulher de opinies fortes e muito assertiva. Foi
uma das fundadoras do Grupo Mulheres do Morro da Velha, como contou: eu me metia em
briga de marido e mulher. Eu dizia mermo tu no pai dela pra bater nela assim! E
mesmo que fosse, no poderia bater. Olhe que eu dou parte de tu! O meu marido ficava
puto comigo. Eva tu me deixas to vulnervel quanto! Mas eu nem tava, me metia mesmo.
Quando comeou a trabalhar como educadora social no SOS Corpo, teve de sair do Grupo:
no incio eu achava que dava pra fazer as duas coisas, porque o meu trabalho a minha
militncia, mas quando eu entrei e comecei a trabalhar, vi que no dava; no dava conta
de fazer as duas coisas, eram muitas demandas. Agora, no SOS, presta assessoria ao
Grupo. Fez parte, tambm do Grupo Loucas de Pedra Lils, do qual est temporariamente
afastada.
Casou-se muito cedo, teve logo duas filhas (que hoje tm 25 e 22 anos) e pondera
que se tivesse deixado para ter mais tarde, acha que no teria filhos. A mais velha tem dois
filhos, um de seis e uma de dois anos; casou-se cedo porque estava grvida. Eva comentou
com pesar o ocorrido e disse nunca ter se conformado, porque trabalhava justamente com
sexualidade, orientava as meninas e a sua filha engravidou. E mesmo com todo o apoio
para abortar, quis ter o filho, casar e viver s para a casa. Incentiva a filha mais nova a sair
do pas, a estudar e ir fazer ps-graduao na Espanha. Conta muitas histrias, dentre as
quais salienta a da sua separao. Disse que a certa altura ela achou que a vida estava muito
pacata, precisava ser feliz e se separou do marido. Ela decidiu sair de casa, deixando-a para
ele e montando uma nova para si: hoje eu no moro mais no morro, moro num bairro mais
classe mdia, perto do morro. Quando comecei a trabalhar no SOS e a ganhar mais que
ele, foi muito difcil para ele. Contou-me que o marido sofreu muito com a separao, j
que estavam felizes e no entendia o porqu. Hoje ela e seu marido namoram, mas no me
sinto mais casada com ele. Um em cada casa. Ela riu e arrematou: eu sei que muito difcil
estar casado com uma feminista, com uma mulher como eu. Ainda mais l no morro (DC
15.10.04).
Creio que as histrias do Grupo de Mulheres do Morro da Velha e da trajetria
poltica de Eva e Vanir Guimares so interessantes j que, primeira vista, parecem
sintetizar e tornar real o ideal de militncia feminina popular referido por Lucimar, no
excerto que abre esse captulo. Ao se referir maternidade como uma interrupo dos seus
sonhos de estudar, se tornar uma militante profissional e trabalhar numa instituio feito o
160
SOS Corpo, Lucimar parece descrever uma parte da trajetria de Eva Guimares, que ao
que parece realizou um sonho acalentado pelas ativistas das camadas urbanas de baixa
renda. Tendo-se em vista essa posio de Lucimar, pode-se caracterizar a trajetria de Eva
Guimares como bem sucedida e notvel, nesses termos.
O Grupo de Mulheres do Morro da Velha foi um dos primeiros grupos que conheci
e a sua histria causou-me um certo impacto, sobretudo pela sua inadequao ao modelo de
maternidade militante. Alguns dados da biografia de Eva, em especial a sua relao com
o movimento feminista, com o SOS Corpo, os impactos que tiveram na sua vida, o
desenvolvimento de uma viso muito particular do feminismo muito ligada a sua vivncia
e a culminncia com o fato de se tornar educadora do SOS sugerem alguns elementos
para se pensar um novo modelo de ativismo feminino popular. Podemos dizer que Eva,
vista pela perspectiva de Lucimar, um exemplo de mulher do meio popular que deu
certo: ascendeu atravs da militncia, saiu do morro e foi morar num bairro classe mdia,
pde estudar, tem projetos para o futuro e angariou prestgio pessoal. Por sua vez, o seu
grupo originrio alcanou notoriedade e prestgio no campo poltico feminista local e
parece permanecer forte, atravs da continuidade de seu desenvolvimento levado a cabo
pelas outras militantes que continuam parte dele, como parece ser o caso de Vanir.
A experincia desse ativismo que caracterizei como notvel revela, por um lado, a
apropriao e a manipulao dos cdigos que regem o campo poltico feminista local e, por
outro, projetos de vida dessas ativistas que passam, sobretudo, pela militncia poltica.
Tomar os elementos dessas duas trajetrias (a de Eva e a do Grupo de Mulheres do Morro
da Velha) como um guia comparativo parece ser frutfero para se construir um outro
referencial analtico alternativo matriz da politizao da maternidade.
Pelo relato de Eva, sua militncia e a formao do seu grupo datam de meados da
dcada de 80, portanto, um momento de intenso desenvolvimento do feminismo em Recife.
Podemos imaginar que, talvez naquele perodo inicial, a ativista mais jovem e com filhas
pequenas, pde ter compartilhado da lgica da legitimao poltica atravs da maternidade.
Contudo, ela no mais aparece no seu discurso. Devemos considerar que a falta de um
contato etnogrfico mais aprofundado com ela, com Vanir e com o grupo de Mulheres do
Morro da Velha no possibilitou acesso a distintas prticas e discursos, no podendo, assim,
complexificar a anlise com diferentes combinaes entre contexto, situaes e sentidos.
No entanto, o relato de Eva traz elementos importantes para situar a especificidade do
161
A autora arrola quatro principais agentes externos que historicamente atuaram na organizao de
grupos/clubes de mulheres das camadas de baixa renda: igreja catlica, legio brasileira de assistncia (LBA),
o movimento de sade e as prefeituras municipais (Viezzer, 1989 apud Couto 1996).
162
fundamental, posto que dele que vir a base e o apoio para a insero das militantes nos
espaos de representao poltica e atravs do qual ficar conhecida. Assim, quanto mais
slido o grupo, mais possibilidades de inseres e, por sua vez, mais chances de estabelecer
alianas. Essa caracterstica pode ser percebida na relao entre o tempo de existncia dos
grupos e a sua maior ou menor exposio s relaes de prestgio e privilgio e redes de
articulao.
E, por ltimo, um elemento que permite explicitar o carter de gnero dessa matriz
de ativismo, a importncia do atributo da coragem para a militncia poltica.
Conforme analisado nos captulos um e trs, caracterstica que dota de sentido o fazer
poltico dessas mulheres e uma demanda do jogo poltico local, a coragem tem um
importante lugar na prxis do campo poltico feminista pernambucano. Trata-se de um
atributo de gnero e poder significado como masculino, mas que compe um modelo de
feminilidade local vigente, sendo utilizado recorrentemente na prtica poltica de todas as
mulheres. Narrativas de enfrentamento de situaes adversas e o no esmorecimento frente
a elas so os principais ndulos de sentido que fazem parte da gramtica da coragem como
atributo de gnero e poder constitutiva do campo poltico. No caso de Eva, esses ndulos de
sentido podem ser identificados na sua narrativa acerca do seu destemor ao enfrentar os
maridos violentos do bairro em que vivia ou seja, em meter a colher em briga de marido e
mulher onde a regra era no faz-lo - e frente s ameaas recebidas. Ou ainda, j aqui numa
derivao do escopo de abrangncia dessa coragem, no seu enfrentamento das normas
locais ao se separar, quando o suposto era permanecer casada, e o de sair do bairro, de perto
da sua rede de consangneos, quando a expectativa era contrria.
Definidos estes quatro termos, passemos s duas experincias de ativismo feminino
popular com as quais tive maior vnculo e proximidade etnogrfica para complexificar a
anlise acerca desses elementos. Poder-se- perceber que tais caractersticas no so
lineares e coerentes, antes revelam as ambivalncias e fluidez do vivido das biografias
particulares.
4.3. No basta ser mulher, tem de ter coragem: Olvia Lima e a Associao Pr-Mulher
Foi Lauro, filho mais velho de Olvia Lima, a presidente como ele costumava
ironicamente se referir, quem me introduziu ao grupo de militantes da Associao PrMulher. Levou-me para uma oficina sobre educao popular a partir da metodologia de
163
SOS,
comunitrio financia pequenos projetos todos os anos (para alm do grande projeto do Plo
Preventivo do qual a Associao faz parte). Neste ano financiou a participao no Frum
Social Nordestino (DC 28.12.04). Em meados de junho, o financiamento foi cancelado e as
78
Cursos como os de auxiliar de escritrio, recepcionista, telefonista, manequim, serigrafia e reforo escolar
com financiamento de diferentes entidades, tais como prefeitura local, SESI (Servio Social da Indstria) e da
ONG FASE (Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional). Dessa ltima instituio, a
Associao recebeu um financiamento de quatro mil reais para a realizao de um projeto de Complemento
Escolar em 2002.
79
O Programa 100% Mulher trabalha com a sade da mulher, controle social de polticas pblicas para
mulheres e controle do sistema de sade; o Programa Juventude, Cultura e Cidadania trabalha com os jovens
atravs de oficinas e teatro; o Programa Eternamente Jovens voltado a idosos mas que estava parado no
momento da pesquisa, e ainda o Programa Auto-Sustentvel, com produo de artesanato, de detergentes e
ungentos que so vendidos em feiras que acontecem na cidade e em Recife (DC, 26.11.04). No entanto, a
venda desses produtos no garante a sustentabilidade da entidade, foco de grande preocupao da presidente.
80
Uma das atividades realizadas pelas mulheres da Associao, ligadas ao Plo Preventivo de que participei,
foi a panfletagem sobre Aborto em comemorao ao Dia da Mulher, uma solicitao feita pelo financiador, o
SOS Corpo. As participantes do Plo reuniram-se e resolveram fazer a panfletagem sobre aborto numa Tera
Negra, no Ptio de So Pedro (importantes espaos da sociabilidade poltica dos jovens, dos quais falarei mais
adiante), com a distribuio de um material fornecido pelo SOS - Trilogos Feministas sobre Aborto e
preservativos (DC15.03.05). No dia combinado para o evento, rumei ao Ptio e ajudei Letcia, Cia e Isabela
na panfletagem.
81
O financiamento cobria gastos com passagens de nibus e alimentao das ativistas.
165
Curiosamente, no Frum Social Nordestino (FSNE) a Associao promoveu uma oficina sobre elaborao
de projetos e captao de recursos. No dia, quando cheguei na sala, assustei-me com a quantidade de pessoas
presentes. Olvia, entre sorrisos, me cochichou: Resolvemos fazer a oficina, pensamo-la para 30 pessoas e
abriram para 100! Tivemos que improvisar. A gente enxerida, mesmo, diga a! (DC 26.11.04). As
oficineiras eram Olvia e Letcia. Zora e Nenia estavam no apoio, distribuindo alguns materiais e
providenciando outros.
83
Na histria da entidade, a relao com o Estado varia de acordo com a conjuntura poltica. H diferentes
momentos de proximidade e distanciamento com as diferentes gestes do governo local, que so ditadas pela
proximidade ideolgica das gestes.
166
Dando prosseguimento oficina sobre Educao Popular, na segunda parte, o grande grupo
dividiu-se em outros menores. Num deles estvamos eu, Dona Bil, Clo, Cia e Almerinda. O
objetivo era o de construirmos um conceito de Educao Popular de acordo com nossas concepes.
Na discusso, Clo sugeriu que uma das caractersticas da Educao Popular era a de transformar as
pessoas, que passariam a ver as coisas de forma diferente. Almerinda deu exemplo de temas que
considerava polmicos, como o aborto ou a homossexualidade. A partir disto, Clo lembrou-se de
uma histria que passou a contar-nos: H alguns anos atrs estava fazendo um teatro na igreja
sobre aborto. Eu representava um feto que foi abortado. Eu dizia mame, eu poderia estar aqui
hoje, sorrindo, dizendo que te amava. Quando eu dizia o texto, uma menina, sentada bem na
frente, chorava foi bem muito! Na poca eu no me dei conta do mal que fiz para ela, mas agora,
que eu mudei o meu pensamento sobre o aborto, eu vi que deve ter sido muito traumatizante... Dona
Bil interveio: mas foi bom, assim ela no faz mais aborto, onde se viu! Cia saltou em seguida: a
senhora no sabe das condies dela! O namorado tinha deixado ela s, os pais no deram apoio...
No que eu ache certo que todo mundo faa aborto, mas acho que pode se escolher fazer se quiser.
Dona Bil mudou de assunto contando sobre uma irm sua que teve um filho solteira e que sofrera
discriminao no bairro em que moravam: foi muito triste, porque ningum se aproximava dela, os
pais no deixavam os filhos chegarem perto dela. V s, que ignorncia (DC 30.10.04).
167
est com Olvia desde o incio, na sua avaliao de final de ano fez questo de ressaltar
essas suas caractersticas: chefona, se no fosse a sua garra, a sua coragem... depois do
golpe que levou e continua a (DC 28.12.04).
Cheia de idias e iniciativas, est sempre pensando na promoo e desenvolvimento
da entidade e dos seus membros: Temos de aproveitar o momento do Frum Social
Nordestino para criar uma Rede Nordestina de Direitos, que vai ser encabeada pela
Associao Pr-Mulher. importante a gente promover essas atividades para que a
Associao aparea! um espao poltico que a gente tem de ocupar; a gente tem que dar
incio a esta rede de defesa dos direitos (DC 30.10.04). Nas horas vagas, ela faz bijuterias,
ungentos e detergentes para serem vendidos, alm de promover oficinas para passar
adiante o seu conhecimento.
ela quem cuida da casa, contando com a ajuda de Miguel, seu segundo marido,
funcionrio dos Correios, que estava em benefcio, recuperando-se de um srio acidente de
motocicleta. me de quatro filhos, Lauro (19), Luciano (18), Evandro (15), do primeiro
casamento, e Marlia (8 anos), do segundo. a penltima filha de uma famlia de cinco
filhos, trs homens e duas mulheres. Tem ainda uma meia-irm, por parte de pai, que foi
recentemente agregada Associao. Mora numa casa no mesmo ptio fechado e comum
casa dos seus pais e a da famlia do seu irmo mais novo. Conta com a ajuda da sua famlia
extensa tanto para os cuidados da casa e da filha menor, quanto para o desenvolvimento da
Associao. A sua casa ponto de referncia para a entidade. Estava sempre cheia de gente
e, nas reunies da Associao que duravam o dia inteiro, acolhia todos os participantes para
as refeies, preparadas por Olvia.
Dos seus quatro filhos, apenas Lauro seguiu os caminhos da me na militncia
poltica. Irreverente dentro das suas saias longas indianas desaprovadas pela famlia, usadas
sem cuecas como gostava de frisar, Lauro extremamente questionador, voltando sua verve
crtica presidente e ao movimento feminista. Seu alvo predileto o que denuncia como o
sexismo do SOS: l s tem mulher, se querem igualdade, tem que se trabalhar com o
homem e com a mulher; no s com a mulher, como se o homem no valesse; assim no
vai se ter mudana. A retrica afiada no perdoa tambm o que entende ser um
desvirtuamento dos movimentos sociais, diferentemente dos movimentos populares. Ele me
explicou a diferena: os movimentos sociais so profissionalizados, como o SOS, ganham
muito para militar; j o movimento popular pela militncia, pura. Acho errado um
169
educador ganhar 4.500 reais, como tem gente que ganha. uma contradio (DC
25.10.04)!
Os outros filhos de Olvia no gostam da poltica, mas participavam do grupo de
teatro organizado pela Associao, como conta a me: todos os trs participavam do teatro,
mas quando a gente veio para a ao poltica, s Lauro veio. Os outros no. Luciano
diferente. Esse ano inventou de ir trabalhar porque acha que esse negcio de poltica no
tem futuro, ele quer dinheiro no bolso! Mas nesse ano eu vou colocar Luciano, para ver
se ele consegue uma vaga no Curumim para fazer um curso l no programa, para comear
a desenvolver tambm (DC 30.12.04)84.
O senso de oportunidade poltica que est na origem da Associao Pr-Mulher fez
com que os jovens tambm fossem includos como objeto de ateno da entidade. O
trabalho com jovens, que surgiu meio casualmente, acabou se tornando um dos pontos
fortes da Associao, abrindo inmeras outras possibilidades de insero poltica para a
entidade e tambm para os seus jovens participantes, como contou Olvia:
Quando a gente abriu, pensamos em trabalhar s com as mulheres e a as mes j
vinham falando dos jovens e foi a que a gente pensou: vamos fazer um grupo de
teatro. Comecei a juntar, a chamar os jovens. Eles comearam a se interessar a
criar o grupo Nova Gerao. A gente participou do teatro e a a gente comeou a
trazer os jovens para dentro da instituio, mas para o teatro. Ningum nunca
pensou em poltica. A gente tinha 50 participantes, entre crianas de 7, 8 anos e
jovens at 20 anos, para fazer a Paixo de Cristo. Era gente que s. Ento no ano
retrasado, em 2002, teve o encontro do EPA, o Encontro Potiguar de Adolescentes.
A o frum disse: s voc trabalha com jovens, vamos levar os jovens, junto com o
Instituto pela Pluralidade Feminista, que convidou dois jovens da Associao e um
educador. Fui eu, Ceclia e Lauro. Foi quando despertou o interesse deles de
entrarem no movimento, de fazer polticas pblicas, porque at ento eles tinham
ido mesmo para passear... Quando voltamos do encontro, os dois vieram com a
cabea totalmente mudada e passaram a organizar o grupo. A gente conseguiu
fortalecer o grupo jovem. Hoje, eu acho que um dos orgulhos da Associao o
grupo jovem porque eles tm mostrado gente que... Antigamente eu no pensava
que o jovem tinha tanto interesse por polticas pblicas e a quando a gente v que
consegue mexer com os meninos, v eles deixarem um feriado para ficarem
discutindo, a eu vejo que realmente, que todo o trabalho que a gente tem tido vale
a pena. E a foi quando a gente comeou a trabalhar polticas pblicas com jovens
(DC 30.12.04).
84
Curumim uma ONG feminista formada em fins da dcada de 80 voltada para a promoo e defesa da
sade da mulher, em especial, atravs da humanizao do parto. Mais recentemente formou um projeto para o
trabalho com jovens a partir da capacitao feminista. Lauro iniciou a sua formao nesse projeto e
atualmente desenvolve um trabalho remunerado nesse programa dentro da ONG.
170
O grupo jovem era de longe o grupo mais dinmico dentro da Associao. Com eles
estabeleci um vnculo maior, em especial com Lauro, Cia e Isabela. Participava das suas
reunies, acompanhava-os em diferentes espaos. Recorrentemente ligavam para me passar
a sua agenda poltico-festiva e me convidar para compartilh-la. Sobretudo nas noites de
tera-feira, em que se encontravam no Ptio da Igreja So Pedro, no centro de Recife, para
onde convergiam militantes, intelectuais, artistas e bomios em funo da Tera Negra.
Esse evento, organizado pela prefeitura de Recife em parceria com o Movimento Negro
Unificado, acolhia diferentes manifestaes da Cultura Negra, como apresentaes de
grupos de Maracatu, Afox, Manguebeat, Hip Hop, entre outros, e onde os jovens
paqueravam, ficavam por dentro das atividades do movimento jovem e articulavam
politicamente entre os diferentes grupos. Foi ali que soube da organizao do Primeiro
Encontro das Jovens Feministas, apoiado pelo SOS Corpo, que buscava reunir a nova safra
de jovens militantes das diferentes entidades e dos grupos do movimento popular85.
A organizao poltica do grupo jovem da Associao Pr-Mulher, alm de
representar um ganho poltico para a prpria associao, numa conjuntura propcia para o
trabalho scio-poltico com essa parcela da populao, implicou numa ampliao de
horizontes e novas perspectivas para os prprios jovens, individualmente. Logo que os
conheci, estavam animadssimos com a possibilidade de participarem do Frum Social
Nordestino e de viajarem para o Frum Social Mundial que aconteceria em janeiro de 2005,
em Porto Alegre86.
No raro Lauro contava-me, com orgulho, das propostas de trabalho que recebia de
diferentes ONGs. No incio de 2005, ele passou a desenvolver um trabalho remunerado na
ONG feminista Curumim, da qual participou de um projeto de formao de lideranas
feministas. A sua dedicao a esse trabalho significou um afastamento das atividades da
Associao e, se por um lado amenizou os conflitos com sua me em funo da sua anterior
falta de trabalho, por outro recrudesceu os conflitos e disputas entre os jovens da
Associao. Esses ganhos advindos da militncia foram, na maior parte das vezes, origem
de tenses entre o grupo. Acusaes de falta de compromisso coletivo, da no incluso de
85
H inmeras ONGs que possuem projetos especficos voltados para a juventude, com nfase na promoo e
defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos.
86
Todos os jovens da Associao participaram da verso local do Frum, ministrando oficinas e festejando
entre os inmeros jovens que vieram de toda a regio Nordeste. Mas apenas Lauro, Cia e Isabela
conseguiram financiamento para participao no Frum Social Mundial em Porto Alegre, do qual retornaram
um tanto decepcionados.
171
Esse clima de disputa lembra em muito o clima das reunies do FMPE de que participei, descritas e
analisadas no captulo trs.
172
Olvia irritou-se e questionou como ela poderia no considerar aquilo importante: muito
importante, sim! Esse o problema da Associao, ningum aqui sabe o que o outro est fazendo.
Cada um deve fazer relatrios de cada participao e representao feita para ficar um registro
aqui dentro! Isabela passou a fazer os seus repasses. Falou da reunio do grupo de jovens
feministas, que aconteceu no dia 3 de maio, no SOS, e da combinao de se encontrar novamente
no SOS, no prximo dia 19.05 para a elaborao de um projeto sobre jovens feministas. Passou a
informar as datas dos encontros mensais das jovens feministas e as temticas de discusso previstas
at o final do ano, tais como controle social, aborto, sade e SUS, trabalho. Relatou ainda dos
outros eventos de que participara, como o seminrio sobre Cultura, Comunicao e Movimentos
Sociais, realizado na UFPE.
Logo passam a discutir sobre um encontro regional de adolescentes em cuja organizao
esto envolvidas. Eleonora, Lauro e Isabela estavam responsveis pela representao da entidade
junto ao grupo maior de organizadores. nesse momento que a tenso finalmente vem tona: na
diviso de tarefas, Lauro e Eleonora ficaram de ir a uma reunio decisiva para a organizao do
evento e na ltima hora Lauro teve de viajar urgentemente em funo do seu trabalho na outra ONG
e deixou Eleonora sozinha. Eleonora passou a falar de conflitos que existiam em torno de Isabela,
que, segundo o restante do grupo, tinha acesso privilegiado a informaes e Olvia e por isso
acaba tendo mais oportunidades de participar das atividades, como as reunies da Rede de Jovens
Feministas. Isabela defendeu-se, argumentado que se tinha informaes e participava de atividades,
era porque tinha mais interesse e ia atrs das coisas.
Intrometendo-se na discusso que comeava a se acirrar, Olvia desabafou: o problema
que est todo mundo muito voltado para fora. Eu brigo por espao, para que todo mundo tenha
espao, para que todo mundo cresa. Eu incentivo para que vocs estejam noutros espaos
tambm, mas no est certo deixar a Associao descoberta, j que esto nesses espaos por causa
da Associao. Ns temos que ter compromisso com a Associao. Ela est tendo uma viso l fora
e outra realidade aqui dentro. Mas esse problema no est acontecendo somente no grupo jovem,
tambm no 100% mulher. Todo mundo anda com a agenda cheia e tentam achar uma vaga para
Associao. Est na hora de parar para refletir sobre isso. Voc tem de comear a priorizar a
Associao (DC 13.05.05)!
Chama a ateno nessa passagem uma ambigidade que marca a trajetria e a atual
conjuntura da entidade, que parece ser consonante com a lgica do campo poltico
feminista mais amplo, no qual se insere, na busca de acumulao de um capital de
articulao poltica e prestgio (conforme analisado no captulo dois), que lhe proporcionar
maiores possibilidades futuras. No entanto, o investimento de Olvia na entidade e nos
jovens e o aproveitamento das oportunidades que vm lhes sendo abertas, implica um risco
173
174
A Vila e o seu cotidiano, sob a perspectiva das disputas polticas locais e do Grupo de Mulheres da Vila,
ser objeto do prximo captulo.
175
entre os dois municpios para ver a qual pertence a rea. A Vila foi constituda atravs da
demanda por habitaes populares do Sindicato das Trabalhadoras Domsticas do Recife,
fundado em 1989. Trata-se de uma vila pequena, onde h basicamente duas ruas principais,
sem calamento, as quais as mulheres do Grupo caracterizavam como a rua da esquerda
que a rua em que mora a maioria das mulheres do grupo, a rua A e a rua da direita
onde moram os opositores, a rua B. Alm dessas, h ainda a rua C, mais recente do que as
outras principais, e mais duas pequenas ruelas transversais.
Logo que se chega na Vila avista-se a construo em alvenaria branca e rosa, com
aberturas em lils, que abriga a sede do Conselho na entrada da rua B. O salo do prdio,
com um pequeno depsito anexado, a sede originria. Nele aconteciam as atividades
coletivas do Conselho: palestras, reunies, assemblias, eleies e a celebrao das missas
catlicas, no segundo sbado de cada ms. Como anuncia a placa de metal em homenagem
ao falecido Pe. Humberto89, afixada numa das paredes do grande salo, foi ele que
incentivou a organizao do conselho e a sua construo. Segundo Amelinha, o padre tinha
um dinheiro para construir uma igreja como era de desejo do povo daqui, mas ele achou
melhor construir um salo. Dizia que uma igreja ia ser somente para os catlicos. Vamos
construir um salo, que pode acolher toda a comunidade, catlicos e no catlicos. Ele
era um santo homem (DC 16.11.04). O restante do prdio, construdo mais recentemente,
abrigava, nas peas direita, uma sala de aula e uma biblioteca. Na pea relativamente
espaosa frente estava instalada uma cozinha e, esquerda, dois pequenos banheiros.
Todo o conjunto est disposto num formato de U, com um pequeno ptio interno. O
segundo prdio foi erguido na primeira gesto do Grupo de Mulheres no Conselho da Vila
com o financiamento do SOS Corpo, atravs do NOVIB, e da FASE, como se pode ver na
placa que Maria das Graas orgulhosamente lustrava enquanto dizia: tudo com o nosso
trabalho, com a Diretoria de Mulheres90.
A fundao do Conselho bem anterior gesto da Diretoria de Mulheres. Foi
formado pelos prprios moradores, j no incio da Vila, que se organizaram em funo da
falta de gua, luz e transporte pblico. Criado em 1990, foi dirigido pelo mesmo grupo,
formado por homens e mulheres, por quase uma dcada. Grupo que Iazinha chamou de
89
Padre da Congregao Redentorista, que segundo Amelinha foi um dos maiores incentivadores da
Comunidade Eclesial de Base da regio, a qual ligada.
90
Novib a sigla para Netherlands Organization for International Development Coope. Organizao
holandesa voltada para o combate pobreza, financia projetos de desenvolvimento entre outras coisas (ver
http://www.oxfamnovib.nl). antiga investidora no nordeste brasileiro, em especial, junto ao SOS Corpo.
176
turma da baguna, que no fez nada pela Vila e usava o Conselho para proveito prprio
(DC 21.03.05). Frente insatisfao com esse grupo e com a persistente falta de
saneamento e calamento, o Pe. Humberto incentivou-as a formarem um grupo e se
candidatarem s eleies do Conselho. J que a mista no deu certo, a gente formou uma
diretoria s de mulheres, como argumentou Maria das Graas (DC 16.11.04).
Assim, nas eleies de 2000 formaram-se duas chapas e, como contou Amelinha, a
nossa ganhou de lavagem: fizemos 176 votos, quase o dobro da outra chapa! Mas foi muito
difcil, muito preconceito. Diziam que as mulheres queriam mandar. Iazinha, vindo ao seu
auxlio, complementou: mas ns queramos a ajuda dos homens. amos trabalhar para os
homens tambm, no s para as mulheres, e eles no entendiam.... (DC 16.11.04).
Ao longo das duas gestes, a Diretoria de Mulheres promoveu muitas atividades no
Conselho, tais como festas de Carnaval e de So Joo, ambas festividades importantssimas
na cultura local. Realizou aes no campo da sade, como o do exame para identificao da
filariose91 e a instalao de um posto PSF (Programa Sade da Famlia) com um agente
comunitrio de sade que atende o bairro. Contudo, a ao mais importante, que me foi
muitas vezes indicada, diz respeito construo de 53 casas populares para abrigar famlias
vtimas do deslizamento de barreiras na Vila. Voltarei a esse fato mais adiante. A Diretoria
contou com a parceria e apoio de diferentes ONGs locais para a realizao de cursos
profissionalizantes, tais como as ONGs Etapas (Equipe Tcnica de Assessoria Pesquisa e
Ao Social) e FASE (Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional), Centro
Josu de Castro e ainda do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Em prol das mulheres,
mais especificamente e em especial sobre a temtica da violncia contra as mulheres, levou
para a Vila as campanhas promovidas pelo FMPE e pela Coordenadoria da Mulher, bem
como palestras com as meninas do SOS Corpo, que sempre nos deu muito apoio (DC
16.11.04).
Todas as atividades realizadas foram fartamente registradas em fotografias. Era
somente comearmos a falar no Conselho, seu assunto predileto, que Amelinha baixava as
vrias caixas de sapato cheias de fotos e me mostrava as atividades e as suas visitantes
ilustres. Havia fotos da palestra de Ivone Gebara, importante teloga feminista; das festas
de So Joo; das posses da Diretoria de Mulheres; da Conferncia Nacional e Municipal da
91
Conhecida popularmente como elefantase, uma enfermidade transmitida pela picada de mosquitos e
bastante comum na regio de Recife e Olinda, com nvel de prevalncia de 15% (Albuquerque, 1993).
Agradeo Soraya Fleischer por esse dado.
177
Mulher de que participou; do curso de liderana que realizou, promovido pelo SOS.
Segundo Amelinha, elas colocaram o Conselho de Moradores no campo poltico,
representando-o nos inmeros lugares e atividades por que passavam. Foi esse contato que
aumentava o acesso a novas possibilidades, como ela me explicou: na medida que a gente
foi participando dos cursos, de encontros, de debates, a gente foi conhecendo as pessoas e
da a gente foi partindo para eles contriburem com a gente, com o Conselho. A gente abriu
as portas para o mundo, para as outras meninas participarem (DC 31.05.05).
O Grupo de Mulheres contava com 12 participantes com diferentes trajetrias de
ativismo poltico. Aps a ciso permaneceram apenas sete. Muitas delas so oriundas de
Comunidades Eclesiais de Base e Pastorais da Igreja Catlica, simpatizantes de partidos
polticos, como PT e PCdoB, militantes do Sindicato das Trabalhadoras Domsticas
(algumas, inclusive, foram suas fundadoras), delegadas do Oramento Participativo,
conselheiras municipais da Sade. A maioria das mulheres do Grupo solteira e, ou vive
s, ou com algum parente consangneo (filho, irm, irmo) e ainda trabalha para o
sustento da casa. Amelinha, a nica que nunca foi empregada domstica e que casada,
ocupava o cargo de presidncia do Conselho. Vejamos cada uma dessas sete que
permaneceram no grupo, na sua especificidade.
Amelinha, que se entende ser morena, nascida no ano de 1940, na zona rural de
Jaboato dos Guararapes, cidade que, segundo ela, era conhecida como Moscouzinho, por
ser um importante reduto do partido comunista (DC 16.11.04). a segunda filha de uma
famlia catlica de quatro mulheres e de pais trabalhadores rurais. Freqentadora da Igreja,
no ano de 1962 engajou-se na recm-formada Juventude Agrria Catlica, a JAC, para
fazer um trabalho cristo poltico juntamente com os jovens no campo levando-os a dentro
do mtodo ver, julgar e agir (DC 31.05.05). Completou o ensino fundamental em um
internato de freiras na cidade do Recife, voltando a estudar e terminar o ensino mdio
atravs de curso supletivo quando j estava na JAC. Na Equipe Diocesana que reunia os
diferentes grupos ligados Juventude Catlica (a Estudantil, a Independente, a Operria e a
Universitria) conheceu muitos militantes ligados Igreja, com os quais trabalhou em
diferentes projetos, como a organizao do Sindicato de Trabalhadores Rurais no interior
do Cear. De volta a Recife, trabalhou no recm-criado Servio de Orientao Rural de
Pernambuco (SORPE), com o padre do mesmo grupo. Foi ele que a indicou para a vaga na
Federao dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (FETAPE) em que
178
179
ser padre. Nenhum deles estava mais diretamente envolvido com a poltica, muito embora
apiem a me nas suas atividades, sobretudo aps os episdios de ameaas e violncia que
ela e sua famlia sofreram, os quais analisarei no captulo seguinte.
Maria das Graas a fiel escudeira de Amelinha. Estavam sempre juntas nas mais
diversas atividades polticas. Negra, analfabeta funcional de idade indefinida, especulava-se
que tinha entre 70 e 75 anos. Nascida na zona rural de Glria do Goit, uma das filhas
mais novas de uma famlia de nove filhos. Filha de tacheiro de um engenho de acar e
uma agricultora, ela fugiu de casa aos 10 anos de idade porque apanhava muito da me e
foi para a cidade trabalhar em casa de famlia: eu ia batendo nas casas e perguntando se
precisavam de uma pessoa para ajudar. Naquele tempo a gente no ganhava dinheiro no;
era comida, alguma roupa... (DC 04.06.05). Veio para Recife aos 12 anos de idade, junto
com uma famlia na casa de quem trabalhava e perdeu completamente o contato com a sua
famlia consangnea. Contou-me que em toda nova casa em que ia trabalhar, tinha a
expectativa de que a colocassem na escola para realizar o seu maior sonho: estudar e ser
professora. Mas no consegui. Fiz MOBRAL, mas no aprendi direito. Eu sei ler um
pouco, sei escrever um pouco, mas a d para mim. Eu fui aprendendo mais participando
das coisas. (DC 04.06.05). me solteira, mas no pde criar o seu filho, que faleceu aos
trs anos de idade, vtima de sarampo, porque vivia em casa de patroa. Nunca se casou e
nem viveu amigada com homem nenhum. Muito catlica, freqentava a Igreja da Parquia
com Amelinha.
Ela comeou a participar das primeiras reunies para a formao da Associao das
Domsticas a convite de Dulce, que conheceu porque trabalhavam em casas vizinhas: a
gente passou 15 anos, como associao, como movimento poltico, participando das
coisas, exigindo as coisas, j deixando de agentar luxo dos outros. Exigindo e entrando
de cabea erguida. Para ningum pisar mais por cima da gente, sabe. A gente comeou
nesse trabalho poltico sem entender muito de poltica, mas agora j entendo mais.
Continuamos a luta e quando foi em 88, a gente passou a Sindicato; o primeiro Sindicato
da rea Metropolitana da Cidade do Recife. Atravs do Sindicato conheceu muitas pessoas
dos movimentos sociais locais trabalhando em muitas das suas casas, como a feminista e
ativista do movimento negro Eva Basso.
A sua relao com o FMPE derivou da sua insero no Sindicato das Domsticas e,
posteriormente, do Conselho de Moradores da Vila. Contou que esteve presente na reunio
de fundao do FMPE:
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Na primeira reunio, elas nos chamaram para participar, porque a gente j era
Associao. Dulce brigava que s porque elas chamavam a gente, como chamavam
o meio popular para participar, mas no davam valor. Voc via que aquele povo
que estava ali era o mesmo em cuja casa a gente trabalhava. No davam a vez para
voc; s vezes voc nem falar, voc no falava, porque no tinha condies, j que
as mulheres eram tudinho intelectual. A gente ia para aprender mais, sabe. E
aprendemos bastante, um bocado. Hoje em dia a gente lida com qualquer uma, de
lado a lado. Pelo SOS a gente foi descobrindo o que era feminismo. Eu acho que
feminismo os direitos iguais, voc lutar pelos direitos iguais, pelos direitos de
mulheres. voc ser uma feminista, sem deixar de ser feminina, porque a feminista
mulher. Voc no v um homem dizer que feminista, se bem que tem alguns j
dizendo que so. Porque j tem algum homem assumindo, ajudando a mulher
dentro de casa. Hoje em dia eu j me considero feminista, porque eu luto por mim e
pelos outros, pelo meu direito e pelo direito dos outros (DC 04.06.05).
Ela esteve desde o princpio nas mobilizaes por moradia que redundaram na
construo da Vila, onde vive desde a sua inaugurao na companhia do seu gato de
estimao. Agora, j aposentada, continua a participar do Sindicato, das reunies do FMPE,
das assemblias do OP, do qual foi delegada pela sua regio e eleita conselheira da
Temtica da Mulher pela sua regio por duas gestes consecutivas. Alm disso, scia da
Uila Mukaji Sociedade de Mulheres Negras, recentemente fundada por Eva Basso.
Assim como Maria das Graas, Adelaide antiga participante do Sindicato das
Domsticas, desde o tempo em que ainda era Associao. Soube da existncia da
Associao numa Festa de So Joo, em que foi a convite de uma colega tambm
domstica, que trabalhava prximo a ela. Ali, em meio a outras domsticas, foi convidada a
conhec-la. Desde ento, me engajei de corpo e alma na Associao (DC 09.07.05). Negra,
com ar tristonho e srio, analfabeta funcional, Adelaide nasceu em 1944, na zona rural de
Rio Formoso, interior de Pernambuco, num engenho em que seu pai trabalhava.
Pertencente a uma famlia de oito filhos, seis mulheres e dois homens, foi expulsa de casa
por seu pai aos 12 anos de idade, quando descobriu que no era mais moa: s sei que eu
arrumei um emprego e vim trabalhar numa casa aqui de Recife, que o cara era cabo
eleitoral e ajudava ao pessoal do interior. Da eu vim trabalhar na casa dele onde
trabalhei por muito tempo. J em 62, eu conheci um outro cara, que ele era da polcia, e
engravidei. A foi o meu fim. O cara no assumiu e nessa casa eu no podia ficar grvida.
Eu tive o filho, e no aceitaram que eu ficasse com o filho (DC 09.07.05).
Contou, com pesar, que deu o seu filho para os seus pais o criarem e que ele, aos 15
anos, envolveu-se com drogas e foi expulso de casa pelo av. Mandou-o para o Rio de
Janeiro para viver com uma das suas irms. L ele se envolveu no crime, foi preso e
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assassinado aos 17 anos. Adelaide casou-se com um vigilante com quem viveu por cinco
anos, no tendo mais filhos. Em meados da dcada de 80 foi trabalhar na ONG Centro
Josu de Castro, como Servios Gerais, ao longo de nove anos. Foi quando estava ali que
comeou a batalhar por moradia, moradia digna, que redundou na construo da Vila:
Quando a gente chegou aqui foi muito difcil. Tudo sem marido, sem companheiro. E o
pessoal, porque j tinha outras pessoas aqui, dizia assim: vamos ter cuidado que vem um
bocado de mulher sem maridos; vamos ter cuidado com os nossos maridos que tem um
bocado de mulher, 25 mulheres aqui, sem marido! (DC 09.07.05). Esteve presente tambm
na formao do Conselho de Moradores da Vila:
No tinha canto para gente se reunir para melhoria da vila, porque com o Conselho
a gente podia brigar, ir nos rgos pblicos e brigar pelo calamento, por
melhoria, por luz. A o pessoal se reunia aqui em casa, fazia reunio, tinha missa
aqui. Quando foi num fim de ano a gente foi na missa, tinha um padre, o Pe
Humberto, que eu j conhecia de outros movimentos, eu fui falar com ele a gente
quer fazer um conselho, uma casa para gente se reunir. Ele chegou e disse ento
vamos fazer uma casa, um conselho em que se renam e se celebre a missa. A ele
deu um dinheiro e a gente fez o Conselho de Moradores. Formamos a diretoria e
teve a eleio, se cadastrou na prefeitura e foi reconhecido. Por isso a gente
conseguia as coisas, no foi assim espalhado. A gente conseguiu porque a gente
estava junto (DC 09.07.05).
Nas gestes de Amelinha, participou da equipe de apoio diretoria do Conselho. Na
ltima eleio, foi candidata Conselheira Fiscal da chapa perdedora. Vive s, com seus
gatos e cachorros. Mantm um contato assistemtico com a sua famlia consangnea: eu
no me dou muito com as minhas irms porque elas tm o jeito delas e eu no gosto.
Adelaide tem muitos problemas de sade e, para os momentos de crise, conta com a ajuda
das meninas, as companheiras da luta. Participa de diferentes movimentos, mas no
freqenta o FMPE. Quando a perguntei sobre feminismo, ela disparou:
Eu no sou contra, assim, mulher com mulher, homem com homem. Eu no sou
contra. Mas tambm eu no aceito. Cada um que faa o que acha que deve fazer.
Na minha cabea o feminismo est relacionado com isso. E tem a igualdade, eu
tambm no sei, voc ficar com um cara e ficar trabalhando e ele no ajudar voc?
No! Ter um companheiro somente para a cama? Eu acho que isso no assim. A
gente tem um companheiro para a cama e para compartilhar as coisas. E se eu
fosse moa, jamais eu me casaria e teria companheiro. Eu podia ter namorado.
Mas certos tipos de homem que eu vejo por a, irresponsvel, para mim no faz
falta. Homem no me faz falta no... (DC 09.07.05).
Foi atravs do Sindicato das Domsticas que se inseriu no Movimento de Mulheres
porque, segundo ela,
183
nesse movimento voc conversa, voc chora, voc ri, voc grita... a quando voc
volta para casa, voc volta aliviada. Nesses cantos, voc sempre tem apoio. Mas a
gente [Sindicato] sempre foi engajada no Movimento de Mulheres, a gente lutava
assim pelas condies gerais das mulheres, das pessoas, pela questo da violncia
contra a mulher. No SOS Corpo sempre tinha seminrio, congresso, movimento do
sindicato, eu viajei, fui para So Paulo. Tambm participei do Movimento Sindical.
Eu no sou filiada CUT, mas eu participo dos movimentos, do Grito dos
Excludos. Fao parte do movimento de Igreja, o Encontro de Irmos, em que a
gente discute os problemas dos mais pobres, a situao das pessoas. Do Oramento
Participativo eu participei dois anos como delegada da regio, a prioridade da
gente aqui era o saneamento e o calamento. Eu sou do Conselho de Sade, da
Policlnica e da Maternidade do Ibura. Essas reunies so muito importantes (DC
09.07.05).
Maria Rita preferia ser chamada pelo apelido, Iazinha, dado pelo seu av materno,
trabalhador rural e sindicalista, com quem participava das reunies do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Limoeiro, interior de Pernambuco, onde nasceu em 1964. Sempre
muito falante, logo que nos conhecemos disse-me: tu vais ver, Alinne, eu no tenho papas
na lngua (DC16.11.04) e, de fato, no parecia ter mesmo. , como se costuma dizer em
Recife, galega: branca, de olhos verdes, cabelos lisos castanho-claro, de baixa estatura, a
mais jovem do grupo. Filha de uma famlia de seis filhos, trs homens e duas mulheres j
falecidas, foi criada pelos avs maternos, agricultores, como se fosse filha. Estudou at a
quarta srie e, aos 17 anos, conheceu uma mdica no posto de sade prximo do stio em
que vivia que a convidou para vir para Recife, trabalhar como acompanhante da sua me
idosa.
Conheceu a Associao de Domsticas pelo rdio, num programa em que davam
informes sobre o seu andamento. Conseguiu o seu contato atravs da rdio e comeou a se
relacionar com a Associao e as associadas: comecei a participar da Associao, em todas
as assemblias eu discutia, conversando e aprendendo. Eu dizia: Olha, gente, eu estou
aqui para aprender, eu quero aprender, porque eu sa do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, muito diferente, aqui outra coisa. Eu quero saber tudo de domstica. Primeiro
me botaram para fazer cursos, eu fiz cursos de culinria para me profissionalizar mais
(DC 11.06.05). Com a fundao do Sindicato, em 1988, fez parte da sua nova diretoria.
Contou-me que no tempo do seu maior engajamento no Sindicato viajava muito para
congressos, conhecendo outras cidades e pessoas: Para mim foi uma maravilha, porque eu
aprendi muito, tomei gosto. Sabe, voc tomar gosto com uma coisa, voc se empolgar,
querer ver mesmo aquilo crescer. No entanto, por divergncias internas acabou se
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UR a sigla para Unidade Residencial em que se organiza o bairro do Ibura. H mais de 12 UR no bairro.
A Vila situa-se dentro da UR-10.
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filho. Eu j sabia que tendo filho eu ia mudar minha militncia, ia mudar muita
coisa na minha vida. Eu saa todo final de semana. Eu passeava muito, ia muito
para a praia. Participava de tudo que era encontro, viajava. Viajei muito quando
estava no Sindicato (DC 11.06.05).
Vive s com o seu filho e conta com a ajuda de Lucimar, domstica, companheira
de lutas e de cuja filha madrinha. Tem parentes consangneos na Vila com quem no tem
muita ligao por estarem ligados ao outro grupo, com o qual Iazinha tem atritos. Tem
irmos que vivem em Recife, e a visitam de vez em quando. Seu filho o seu xod, investe
muito na sua educao, a fim de realizar o seu sonho de ter estudado mais, matriculando-o
numa escola particular, muito cara para os seus padres: s para a escola vo mais de 100
reais. Est bem que eu no ganhe um salrio, eu ganho um pouquinho mais, mas mesmo
assim para mim difcil, no d para juntar um dinheirinho para melhorar a casa (DC
21.03.05).
No movimento de mulheres, ela se engajou durante um tempo, a partir do Sindicato.
Mas a relao com o feminismo vem da convivncia com a sua patroa:
at ento a viso que eu tinha de feminista antes era assim, que nem gostar de
homem a mulher gostava e ela no. Tem uma viso tambm que a feminista
aquela mulher durona, aquela policial. Eu no acho ela assim. A foi a descoberta
dessa conscincia que eu tenho os meus direitos, de lutar por eles. Eu sou feminina
com minha conscincia feminista, porque eu luto mesmo pelos meus direitos. Eu
acho que a gente ter essa fora dentro da gente mesmo, essa vontade mesmo de
querer lutar e ir at o final pelos direitos. essa questo mesmo de voc ter
conscincia dos seus direitos, para voc no ter medo. Porque tem muitas mulheres
que tm medo dos homens, porque os homens dizem que quando a mulher trabalha
fora ela fica muito cheia de direitos, muito respondona, querendo ser mais do que o
homem. Eu digo por experincia prpria com o pai dele, ele disse que eu era muito
politizada, porque ele era acostumado a ter mulheres que quando ele falava as
mulheres ficavam com medo ou obedeciam. E ele dizia que eu era muito forte para
ele. E eu me considero, porque no momento que voc sozinha, assume uma casa,
um filho... eu me sinto assim (DC 11.06.05).
Apesar do seu afastamento, Iazinha pretende retomar a sua militncia e organizar
um grupo de mulheres e lutar pelos seus direitos, porque sozinha acha que no vai muito
longe: Eu sinto uma necessidade porque no meu dia a dia, nos nibus, nas paradas de
nibus mesmo, eu escuto uma mulher ser contra outras mulheres. s vezes quero entrar na
conversa, mas ela vai dizer A senhora o qu? E eu estou solta, sabe? Eu queria, como
diz Dona Amelinha, formar um grupo para ver se a gente pode fazer um trabalho com
essas mulheres. A minha viso essa, de passar essa conscincia para as mulheres, dos
direitos delas, do valor que a mulher tem na sociedade (DC 11.06.05).
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dignidade, enfrentando uma comunidade difcil que nem essa. Porque eu vejo nas
feministas um outro lado. Elas falam de gnero, e eu nem sei o que isso. Mas esse
comportamento, essa histria de mulher gostar de mulher, homem gostar de
homem, nem bblico, nem suave aos pensamentos de Deus. Eu no acho que a
pessoa que faz isso seja feminista, no. Eu quero l saber daquilo? Eu no sou
contra, nem a favor. Isso pode ser at outra coisa que eu nem sei explicar, mas eu
me vejo feminista, mas no uma feminista desse tipo. Agora sobre aborto eu vejo
assim, se for o caso de um estupro, eu acho muito normal. difcil criar o filho de
um marginal sem ela querer, muito cruel. A vai ser ruim para a me e para o
filho, porque a me no vai ter condies de amar, vai desprezar o filho. Ai vo
sofrer os dois. Agora se puder evitar, evite, porque uma vida que mata n (DC
11.06.05).
Teresa uma mulher branca, baixa, gorda, usa culos e est sempre vestida de
forma muito austera: saias compridas, blusas bem fechadas e com os cabelos presos num
coque. meio taciturna, muito observadora, de pouca fala e sorriso tmido. Nasceu em
Puxinan, zona rural de Campina Grande, Paraba, no ano de 1952. Saiu de casa aos 17
anos para trabalhar como domstica na capital. Integrante de uma famlia de sete filhos,
cinco mulheres e dois homens, de pais trabalhadores rurais. analfabeta funcional, muito
embora seu sonho fosse o de estudar e se tornar advogada: s estudei esse primeiro ano,
primeira srie. Eu era muito inteligente, eu s estudei esse pouquinho e com isso eu me
viro at hoje. Foi para Recife em 1974, junto com a famlia com quem trabalhava. Quando
chegou na cidade trabalhou em diferentes casas, numa delas, famlia de usineiros, foi
acusada injustamente de furto das jias da patroa e passou um tempo presa para que
confessasse o crime. Foi nesse momento que entrou para o Evangelho: eu passei uma
semana presa, apanhando, sem comer, sem dormir, sem ningum saber de mim. Foi a que
eu tive a minha escolha e eu agradeci muito a Deus! Eu sou corajosa, porque at naquela
Roubos e Furtos eu briguei at com o delegado. Ah, voc tinha que ver, ele batia mas eu
dizia para procurar a bandida da minha patroa, porque eu no tinha roubado nada; ele s
vinha bater em mim porque eu era domstica (DC 11.06.05). Foi quando conheceu e se
aproximou do Sindicato, que naquela altura era ainda Associao, onde encontrou apoio e
abriu um processo contra a madame, que no deu em nada.
No Sindicato chegou a ser vice-presidente, participando ativamente pela construo
da Vila. Mudou-se para a Vila na sua inaugurao, em 1989: foi muito difcil, a gente tudo
assim sozinha, ento a gente foi muito mal vista, as senhoras que tinham os seus maridos
ficaram com medo que a gente tomasse os maridos. Mas graas a Deus ningum tomou o
marido de ningum e at hoje nunca tivemos nossas casas apedrejada. Porque
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encontros porque tem que ter a responsabilidade e agora com esse problema de
sade, que fica pior (DC 11.06.05).
Por fim, deve-se ainda comentar a trajetria de Maria Cristina, domstica
aposentada, a mais idosa do grupo e, de longe, a menos imbuda do ethos da militncia.
Trata-se de uma mulher branca, baixa, gorda, grisalha, de olhos verdes e com olhar terno.
Nascida em 1932 na zona rural de Arco Verde, interior de Pernambuco, a caula de uma
famlia de agricultores com 11 filhos, trs mulheres e oito homens. Veio para Recife em
1962, fugindo da pobreza do campo, depois de perambular por diferentes cidades do
interior pernambucano, levada pelo pai de seu nico filho. Nunca freqentou a escola,
aprendeu a assinar o nome e ler uma besteirinha por conta (DC 05.07.05). O pai de seu
filho tinha uma outra famlia e a mantinha numa outra casa: aconteceu que ele combinou
comigo e arrumou essa casa e me botou dentro e pronto e a gente ficou. Ficou assim: ele ia
l em casa de 15 em 15 dias e quase no me dava nada, passei uma situao que s Deus
sabe! Ento ai eu fiquei grvida e ele desaparecia, passava dois, trs meses sem vir e sei
que o menino nasceu e ele dizia que o menino no era filho dele. Os homens tm essa
mania de viver com a mulher, quando ela engravida dele, ele diz que no seu filho,
oxente (DC 05.07.05).
Quando o seu homem migrou para trabalhar na construo de Braslia, a abandonou
prpria sorte. Passou por vrios empregos: a eu pedi, pedi mesmo com muita f a Deus
que me mostrasse uns meios de eu terminar de criar o meu filho perto de mim. Acabou na
casa de um casal recm-casado que foi viver em Recife e levou-a junto como domstica,
onde trabalhou 40 anos at se aposentar. Ajudada pela famlia, terminou de criar o seu
filho, dando-lhe estudo. Aos 18 anos ele migrou para So Paulo, onde vive at hoje com a
sua mulher e duas filhas.
Foi atravs de Dulce que conheceu a Associao das Domsticas e comeou a
participar das reunies, das festas e da mobilizao pela casa prpria. A sua insero no
Sindicato, ao qual at hoje ligada, tem um forte carter ldico: Eu j andei muito, j lutei
muito, agora eu fico em casa. Mas mesmo assim no segundo domingo de cada ms, aqui,
acol, eu vou numa reunio do Sindicato ou quando tem uma festinha. O seu maior sonho
era ter o seu prprio canto: foi atravs do Sindicato que eu consegui essa casa para mim.
Foi uma rosa que se abriu! Era a coisa que eu mais queria na minha vida, mas eu vivo
rezando, pedindo a Deus. Queria que Deus me desse os meios, mostrasse uns meios de eu
conseguir uma casa (DC 05.07.05).
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dos casos, frustrado e relegado prxima gerao, como no caso das que tm filhos ainda
pequenos. J na cidade, o contato com o mundo do trabalho via atravs da qual poderiam
realizar os anseios de mudana de vida propiciou tambm o contato com o mundo da
mobilizao poltica, que lhes abriu novas possibilidades, novos aprendizados, novos
contatos com outras realidades, atravs das viagens, e conseguir outros trabalhos mais
satisfatrios, que conjuguem o gosto pelo afazer e a garantia de uma sobrevivncia mais
confortvel e prazerosa. Assim, o campo poltico passa a ser compreendido tambm como
uma outra alternativa para a mudana de vida.
A recorrncia das questes da conjugalidade e da maternidade presentes nas suas
narrativas, de diferentes maneiras, nos levam a uma nova compreenso da relao entre
ativismo poltico e famlia. Chama ateno o fato de apenas uma delas ser casada, e me
parece que no por acaso ser a nica que conseguiu chegar presidncia do Conselho de
Moradores. Esse dado, por um lado, remete a uma tenso entre convenes de gnero e
prticas na vivncia cotidiana do ativismo poltico em termos micro-sociolgicos, que sero
melhor analisadas e exploradas no captulo seguinte.
Por outro lado, a evocao recorrente do tema da solteirice, da maternidade solteira
e das conjugalidades malogradas na maior parte das biografias dessas mulheres, associada
ao engajamento poltico, fornece dois eixos interpretativos. Ao contrrio do que assevera a
matriz explicativa da maternidade militante, a maternidade na vida da maioria dessas
mulheres, antes de ser um incentivo participao poltica, foi um impeditivo da militncia,
do seu desenvolvimento no ativismo e de desfrutar as distintas oportunidades que esse
campo potencialmente lhes abria. Revela-nos tambm que o engajamento nos movimentos
guarda, para elas, um sentido muito particular: a abertura de um mercado afetivo-conjugal
potencialmente promissor. No entanto, as experincias conjugais revelaram homens que
no se adequavam, que tambm atrapalhavam o seu desejo de ter uma vida mais
confortvel, como explicitou mais claramente Teresa. O que nos remete novamente quela
tenso acima mencionada. Esses elementos tambm implicam uma disponibilidade precria
para a entrega militncia, que redunda num enfraquecimento do Grupo.
O fato do Grupo ter se reunido em torno do Conselho, com demandas mais
direcionadas a questes relativas comunidade, mas que agrega tambm uma luta acerca
das mulheres, o expe instabilidade das conjunturas polticas da Vila e o coloca num
lugar de nefito no campo poltico feminista local, o que remete categoria de iniciante nas
redes de articulao poltica e tambm o caracteriza como pouco slido. A conscincia da
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dessas mulheres, tais como: da igreja catlica, sindical, de moradia e feminista. Talvez
esteja a situada a tenso que redundou na ciso do Grupo de Mulheres da Vila.
E finalmente, um ltimo comentrio acerca do atributo de gnero e poder que dota
de sentido esse ativismo. recorrente nas suas narrativas referncias s suas prprias fora
e coragem necessrias para o bom combate da vida cotidiana e da poltica, em especial, no
contexto adverso da poltica comunitria, em funo da forma como percebem a sua
comunidade e se estabelecem as relaes entre a vizinhana. O atributo da coragem, que se
constitui na trajetria poltica ligada militncia por moradia e com forte influncia do
movimento poltico catlico, na sua retrica, aparece relacionado a duas fontes. De um
lado, ele vem da inspirao divina, j que da f em Deus que retiram as foras e a
coragem para seguir adiante, o que revela a sua forte ligao com a politizao via Igreja
catlica. De outro, est ligado s condies de sozinhas, solteiras e mes, as quais requerem
uma fora e uma coragem maiores para darem conta das mltiplas demandas da vida, em
especial sem a ajuda dos consangneos, os quais tm um lugar muito perifrico nas suas
vidas.
Frente a tais experincias aqui expostas, o que podemos identificar como uma
novidade na forma de compreender o ativismo poltico feminino popular atualmente?
Vejamos.
4.5. Ativismo feminino popular, o que h de novo?
No seu estudo, Caldeira (1987) j chamava a ateno para a heterogeneidade de
formas de participao poltica das mulheres das camadas paulistanas de baixa renda com
quem pesquisou. A autora identificou quatro tipos de lideranas: 1. ligadas Igreja
Catlica, que era a maioria. Eram organizadoras de grupos, de clubes de mes, de trabalhos
pastorais e de reivindicaes e ligadas a instncias orgnicas da Igreja; 2. aquelas que
caracterizou como agentes externos, que no viviam no bairro e estavam ligadas a
partidos ou grupos feministas. Eram organizadoras de movimentos em prol da sade, pela
obteno de creches; 3. as lderes de Sociedade Amigos do Bairro (SABs), que eram em
menor nmero e presidiam as Associaes de Moradores e 4. aquelas ligadas a partidos,
que atuavam de duas formas: como cabos eleitorais exclusivas ou que realizam trabalhos de
reivindicao por conta prpria (Caldeira, 1987: 86-87).
Duas dcadas depois, e em especial no contexto investigado, com uma forte
preeminncia do movimento feminista, com a pluralizao de referenciais mobilizadores,
195
196
Atualmente,
percebe-se
uma
ampliao
197
das
possibilidades
discursivas
legitimadoras para o ativismo feminino popular, o que coloca a maternidade num outro
plano. Muito embora na prtica a famlia, os filhos, a maternidade, a conjugalidade estejam
presentes e a busca pela ascenso via poltica envolva essa dimenso da vida dessas
mulheres, parece no carecer mais da sua legimitao. Ou seja, nos dois casos (no analisado
por Caldeira e no por mim pesquisado) a famlia, na prtica, continua presente e os filhos
importantes, mas no centrais. Os dados etnogrficos que trouxe revelam uma adequao a
uma nova gramtica poltica definida pelo feminismo predominante localmente.
Em se tratando de mudanas no sentido atribudo maternidade como legitimao
para a militncia poltica, resta saber como a parentalidade, a conjugalidade e o parentesco
se configuram e se adequam a tais mudanas. Para refletir sobre essas questes, no prximo
captulo analisarei mais aprofundadamente a experincia das disputas polticas na Vila,
buscando estabelecer nexos entre o campo poltico feminista mais amplo, as suas estruturas
de prestgio e privilgio e os seus sentidos de gnero e poder, e o campo da micro-poltica
da vida cotidiana local, a repercusso nas convenes de gnero, de parentalidade,
conjugalidade e parentesco.
198
CAPTULO V
DA POLITIZAO DA MATERNIDADE POLITIZAO DO COTIDIANO: CONEXES, GNERO E
TRAMAS DE PODER NA VILA
________________________________________________________________________
Ele bebe ainda, mas agora no me bate mais. Porque se ele vem se
alterando eu j vou logo ameaando: te cuida, hein, agora as mulheres
no so mais comandadas, os homens que so. Outro dia a gente tava
vendo televiso e deu aquela propaganda da lei das mulheres e da eu
disse para ele: viste, agora o tempo da lei das mulheres, agora o
homem que tem que se cuidar, quem manda a lei das mulheres. Da ele
fica na dele. Qualquer coisa eu j digo, olha a lei das mulheres!
(Dona Vicentina, Porto Alegre, abril de 1999)
O nome fictcio.
199
ncleo central que aparece em todas elas. Segundo contam, a Vila partiu da necessidade da
empregada domstica sair do quarto da patroa, de ter a sua prpria casa (DC 16.11.04). A
ento Associao das Trabalhadoras Domsticas mobilizou-se para demandar Companhia
de Habitao do Estado de Pernambuco (COHAB) habitaes populares para as suas
associadas. No processo de negociao com a gesto do governador Miguel Arraes, eleito
em 1986, para cuja eleio se empenharam porque o consideravam um governador
popular, a categoria das empregadas domsticas conseguiu garantir 25 casas do conjunto
habitacional. O processo de negociao com o governo do Estado, bem como os termos em
que tais negociaes foram feitas, interessam ser analisados mais de perto, posto que
revelam, desde a sua origem, um confronto com um determinado modelo de famlia ao
qual esto associadas determinadas convenes de gnero no prprio processo poltico de
constituio da Vila, elementos que se repetiro no processo de disputa eleitoral pelo
Conselho de Moradores.
Collier, Rosaldo e Yanagisako (1992) lembram-nos de que o conceito de famlia se
consolidou no pensamento social ocidental como uma instituio humana universal, lugar
do afeto e da cooperao e que se constitui numa oposio simblica ao mundo pblico, do
trabalho, da poltica. Preocupadas em relativizar essa normatizao da famlia, que definem
como um construto ideolgico, as autoras sugerem que para entend-lo temos de mapear
o sistema mais amplo de construtos do qual ela somente uma parte. Levando-se em conta
essa sugesto, questiona-se sobre o construto ideolgico da famlia vigente no pensamento
social brasileiro.
Tema clssico nas Cincias Sociais brasileiras, os estudos sobre famlia
consolidaram o conceito de famlia patriarcal, [que] como tem sido utilizado at agora,
achata as diferenas, comprimindo-as at caberem todas num mesmo molde que ento
utilizado como ponto central de referncia quando se fala em famlia no Brasil (Corra,
1994: 27). Tendo-se em vista esse conceito normativo sobre a famlia brasileira, a nfase
recai sobre a idia de famlia como um valor (Peixoto e Bozon, 2001), ou mais como um
modelo cultural do que como instituio a ser investigada (Gregori, 2007: 02).
Contudo, desde a dcada de 80 os estudos sobre famlia no Brasil tm apontado
para o fato de que [ela] no deve ser pensada de maneira homognea, mas como universo
multifacetado e com mltiplos arranjos, e que, ao trat-lo, convm supor diferenciadores de
classe social, de gnero e de idade (Gregori, 2007: 03). A idia subjacente desde ento a
de que menos do que uma forma de famlia a brasileira ns deciframos arranjos
201
Lucimar: A proposta de campanha de Arraes era casa para quem ganhasse de zero a trs
salrios mnimos e a gente, que ganhava salrio mnimo, estava dentro. Ele era o nico que tinha a
proposta em que realmente a gente encaixava. A, no primeiro ano de governo, a proposta de cem
casas para a famlia das domsticas, com filho, marido, no saiu. No segundo ano a proposta
pulou para cinqenta e no saram as cinqenta, e a gente no p do homem. A no terceiro ano
pulou para 25 casas e da a gente apertou para assinar o convnio logo. A saram as 25 casas. O
critrio era ser associada, de preferncia alguns anos, e com famlia: filho, marido, pai, me...
Cada domstica que tivesse filho, marido, pai, famlia que dependesse dela. Tinha algumas que
no tinham filhos, como eu e a minha irm que vive hoje em So Paulo, mas a gente era associada,
pagava em dia a associao e estava na frente da luta... A gente foi e pegou no p da secretaria do
secretrio de habitao. Teve uma reunio e a gente foi l pro prdio da COHAB, um grupo
grande de domstica para conversar direto com o assessor de Miguel Arraes. Pense num ch de
cadeira. A gente comeou a gritar nos corredores se no nos receber a gente no faz mais
campanha! A gente comeou a fazer confuso nos corredores e j estava terminando o mandato
do homem, fazia trs anos...
Alinne Mas vocs conseguiram mudar o critrio para receber as casas, j que vocs no
se encaixavam no critrio, no tinham famlia nem filhos?
Lucimar Depois do convnio assinado com ele, que era o mais difcil, a gente foi tirar
entre as domsticas, aquelas que estavam mais na luta. Porque as que tinham famlia, nessas
alturas, j tinham comprado casa, tinha parente que tinha dado um pedacinho, outras que tinham
partido pra invaso... Outras domsticas no queriam vir praqui, queriam ficar perto do trabalho e
foram abrindo mo. Tanto foi que a maioria que ficou no tinha filho, e as que tinham, j eram
grandes ou tinha menino que era pequeno, mas morava com o pai... Foi tanto que ficaram cinco
202
domsticas que no tinham filhos porque as meninas no quiseram vir para c por ser muito
longe e muito feio. Tanto que veio uma domstica j aposentada e quis voltar a morar no emprego,
porque a casa era muito feia, a rua no era calada, no tinha gua encanada, a fossa era aberta.
Ela viu a situao e botou para chorar, ficou em depresso, no comia, no bebia, no dormia e
voltou pro emprego. Depois ela se arrependeu muito. Hoje ela mora no interior, pagando aluguel
de quartinho, porque a patroa no agentou mais. S sei que nessa poltica a gente cozinhou a
cabea da Secretaria dele e a gente conseguiu. Foram as meninas que estavam mais integradas no
movimento, engajada mesmo e queriam moradia (DC 05.06.05).
Essa mobilizao, que redundou numa conquista coletiva, contada com uma
riqueza de detalhes e orgulho, enfatizando o rduo processo de efetivao da construo e
da garantia de posse das suas casas. Iazinha contou-me mais alguns detalhes:
Depois da primeira invaso, a COHAB nos trouxe logo para morar aqui, para garantir as
casas e evitar que invadissem. As casas no estavam prontas, mas tivemos que ocup-las mesmo
assim. No tinha nada: sem energia, sem gua, eu usava luz do candeeiro. O pessoal nos ameaava
de 12. A gente ficava com medo de sair para trabalhar e quando voltasse no ter mais casa. Foi
uma baixaria, veio polcia, imprensa.... da o presidente da associao da UR-10 nos deu uma
ajuda. Chamou uma reunio na associao e fomos. O piv de tudo passou a ser as domsticas. O
pessoal da invaso que a polcia queria tirar se virou contra ns, ouvimos tudo quanto era
desaforo:essas mulheres sozinhas, essas peniqueiras95! Nos ofenderam muito (DC 21.03.05).
203
ocidental como demonstram criticamente muitos estudos voltados para o tema (Collier e
Yanagisako, 1992; Yanagisako e Delaney, 1995; Strathern, 1995; Carsten, 2000 e Franklin
e McKinnon, 2001). No entanto, como se pode perceber nos seus relatos, os arranjos
familiares mais comuns entre elas so o de mes solteiras e de respeito, como costumam
remarcar, com um filho. Os homens, com exceo do caso de Amelinha, so passageiros
em suas vidas. No entanto, quando permanecem parecem ter um lugar muito pouco
expressivo como o caso de Seu Jair.
Na tenso entre convenes culturais e arranjos prticos, experienciada por essas
mulheres - percebidas atravs da perspectiva da militncia poltica -, h muitos elementos
para os quais gostaria de chamar a ateno. Os seus arranjos familiares, muito embora
paream dissonantes com uma conveno de famlia e parentesco vigente, seguem um
padro de arranjo familiar encontrado entre a populao pobre de Recife. Scott (1990) em
pesquisa junto a populao semelhante, porm sem qualquer trajetria de militncia
poltica, identifica a predominncia do arranjo familiar matrifocal associado
responsabilidade feminina pelo sustento da casa e dos filhos.
O pesquisador, preocupado em analisar o ciclo do desenvolvimento domstico entre
essa populao, buscou compreender a dissonncia entre a assero recorrentemente
encontrada entre as mulheres de que uma mulher sem marido no nada e o padro de
separao. Segundo o autor, ter um marido reporta-se a uma estratgia que no passa,
necessariamente, pela questo de sobrevivncia e aumento das fontes de renda (p. 44).
No , necessariamente, a capacidade de provedor que est em jogo, j que o desemprego e
a falta de renda masculina uma constante (Nascimento, 1999). Antes, a presena do
marido est associada melhoria da auto-avaliao do status da mulher, sua reputao em
ser uma mulher respeitvel.
No entanto, se a escolha do marido no for bem feita, a reputao feminina no est
garantida, tanto em funo dos ganhos baixos e inseguros, como pelas atividades
recreativas e amorosas do marido (Scott, 1990:44). Assim, segue o autor:
evidente que, com a passagem do tempo, a presena de um marido que ao mesmo
tempo pobre, d trabalho e desrespeitador da casa desfaz qualquer garantia de
reputao para a mulher. Tudo isto , evidentemente, acompanhado por uma
diminuio na satisfao sexual. Na medida em que se torna pblico o desrespeito, o
casamento se modifica em algo que rebaixa a mulher e a separao se torna
inevitvel (p. 44).
205
Tal anlise pode ser comparada s interpretaes correntes sobre o universo moral
das camadas urbanas de baixa renda, que enfatizam uma organizao familiar baseada no
princpio da reciprocidade, como o elemento estruturante de sua moralidade a partir do
qual explicam suas regras e seu lugar no mundo social (Sarti, 1995:140). A ele se associa
o princpio da complementariedade como a regra sociolgica que funda o modelo de
conjugalidade, segundo a qual o feminino e o masculino possuem diferentes atribuies e
obrigaes dentro da relao familiar.
Do marido, espera-se o bom desempenho do seu papel ao prover a famlia tanto
material quanto simbolicamente - garantindo proteo e respeito social - enquanto que da
esposa espera-se a fidelidade sexual - atravs da demonstrao pblica da evitao a outros
homens -, o cuidado dos filhos e da casa (Sarti, 1989, 1996; Fonseca, 1987, 2000 e Zaluar,
1994). Assim, dentro do cdigo de moralidade destes grupos
vergonha, respeito e juzo so as medidas de avaliao das pessoas - avaliao de
seu comprometimento maior ou menor, de sua capacidade ou ensejo maior ou
menor de cumprir com as regras de uma reciprocidade social que muito ampla,
mas que encontra na relao homem/mulher seu palco fundamental, crtico,
dramtico - eventualmente trgico (Duarte, 1987: 220, grifos do autor).
No entanto, o padro de separao encontrado por Scott parece se relacionar
ambivalentemente com essa conveno moral de organizao familiar e conjugal,
apontando para um campo de escolhas femininas que passa pela avaliao da adequao
dos homens. Tomando-se o caso do Grupo de Mulheres, que tm em comum o fato de
terem tido um relacionamento conjugal, mas que se entendem como mes solteiras e de
respeito, a suposta inadequao dos seus arranjos familiares conveno de parentesco,
famlia e conjugalidade vigente aponta para uma ambivalncia nos termos sugeridos por
Peletz (2001).
Esse autor prope estabilizar o uso da noo de ambivalncia e as suas implicaes
na compreenso do parentesco, tal como compreendido contemporaneamente. Segundo
ele, os novos estudos tm dado considervel ateno analtica s ambivalncias antes
relegadas, posto que se preocupam com questes de poder, da socialidade, das prticas e
agncias, sob influncia da crtica feminista e de teorias como a Teoria da Prtica
(Bourdieu e Ortner). Para ele, a ambivalncia refere-se coexistncia simultnea de duas
ou mais emoes ou atitudes contraditrias poderosas, relativas a pessoas ou coisas (Peletz,
2001: 414). As pesquisas focadas no cotidiano e nas prticas de agentes sociais apontam os
206
Eram 10 horas da manh de uma tera-feira, a Vila estava deserta. Avistei um casal de
adolescentes conversando em frente ao prdio do Conselho fechado. Aproximei-me deles e
perguntei-lhes onde morava Amelinha. A menina, com certo ar de desdm, respondeu-me que era
na rua detrs, na A. O menino, em tom entre irnico e belicoso, completou: a maior casa a dela,
pode ver. Uma de primeiro andar. A menina riu-se. Sem entender muito seus tons, agradeci-lhes e
segui as indicaes. Estranhei ao ver que, logo na entrada da rua A, havia uma casa grande, de
primeiro andar, mas que no correspondia ao nmero da casa de Amelinha que trazia comigo.
Caminhei ao longo da rua; as casas da ruela de areia estavam, na sua maioria, fechadas.
Muitas eram gradeadas, mas deixavam mostra uma pequena varandinha o que depois descobri
chamarem de terrao com cadeiras organizadas em torno de uma mesa. Chamavam a ateno os
cartazes de propaganda poltica da eleio municipal, recm realizada, afixados nas fachadas das
casas revelando o apoio ao recm eleito prefeito petista e a um outro vereador petista, chamado
Mozart. Quase ao final da rua, avistei uma casa de alvenaria, cuja parte superior ainda estava em
construo e que estava igualmente fechada. Parecia no haver ningum ali. Em frente casa um
homem lavava um carro e me observava, dei-lhe bom dia e perguntei se ali era a casa de Amelinha.
Ele aquiesceu, dizendo achar haver gente em casa. Estimulada pela notcia, passei a bater palmas e a
chamar por Amelinha. L pelas tantas, um rapaz branco, muito magro e sisudo veio me atender.
208
Tratava-se de Ronaldo, o primognito de Amelinha. Identifiquei-me e ele abriu a grade para que eu
entrasse. Amelinha estava na cozinha, preparando o almoo. Conversamos um pouco e logo samos
para o Conselho.
No caminho de retorno, Amelinha me mostrava as casas em que moram as suas colegas de
diretoria. Parava na frente das casas, batia palmas e chamava pelos seus nomes. Aos poucos, fui
percebendo que nas casas fechadas e aparentemente vazias, havia gente. Amelinha explicava-me
que era o dia de folga de algumas das domsticas, por isso estavam em casa. As mulheres foram se
juntando a ns e fomos, juntas, para o Conselho, onde passamos o restante da manh. No final da
roda de conversa fui convidada a almoar na casa de Amelinha. A Vila parecia igualmente vazia,
com a exceo de algumas crianas indo ou voltando da escola. Ao final do dia, um pouco antes do
entardecer, quando retornei para casa, a Vila parecia um pouco mais movimentada, agora com o
trnsito de homens e mulheres retornando do trabalho e crianas correndo pela rua (DC 16.11.04).
Essa primeira impresso do cotidiano pacato da Vila nos dias de semana pouco se
modificou ao longo da pesquisa. O movimento costumava aumentar nos finais de tarde e
nos finais de semana, revelando alguns traos de um padro de sociabilidade mais pblica.
A sim, costumava encontrar pequenos grupos de mulheres conversando nas frentes das
casas, pessoas transitando pelas ruas, crianas brincando em volta das mulheres agrupadas.
Podia-se perceber, atravs de algumas portas escancaradas, o interior das casas mostra aos
passantes curiosos como eu, e muita msica em alto volume, na sua maioria de estilo brega
e calipso. Estilo esse que s homem mulherengo gosta, homem que tem duas ou trs
mulheres (DC 15.05.05), segundo Seu Jair, marido de Amelinha, ao comentar, desgostoso,
a invaso sonora feita pelo vizinho da frente.
Mesmo com essas mudanas na sociabilidade da Vila, percebe-se um padro
diferenciado entre as mulheres do Grupo e aqui o carter agonstico se v mais claramente.
Seja durante a semana, em que muitas passam a maior parte do dia fora de casa em funo
dos seus empregos, seja nos finais de semana, as suas casas esto sempre fechadas e elas
pouco esto nas ruas, conversando com as vizinhas. Parece haver entre o Grupo de
Mulheres um cuidado em preservar uma certa privacidade e um certo distanciamento em
relao s redes de sociabilidade da Vila, como se pode perceber mais claramente no
excerto abaixo:
209
na calada em frente a sua casa conversando animadamente. O filho adolescente de uma delas
andava de bicicleta na volta do grupo. Juntei-me a elas e logo o grupo engrossado por mais duas
meninas que se juntaram a ns, Tas, filha de Teresa, e outra moradora da rua B. O menino que
andava de bicicleta a nossa volta tinha ido para casa, e da janela continuava a acompanhar as
conversas. A sua me perguntou-lhe se ele j tinha aprontado o caf. Ele saiu correndo, dizendo que
tinha se esquecido da gua no fogo. A sua me comentou conosco que ele era muito grudado nela.
A vizinha da rua B sugeriu-lhe que aproveitasse bem esse grude, porque depois que arrumavam
namorada, eles no querem mais saber das mes; sempre assim!
A me do menino passou a falar que no incio do namoro, todas as namoradas se
aproximam da famlia, conquistam e depois viram o diabo. Com a minha cunhada foi assim. Vocs
conhecem mame. uma boa criatura, no arenga com nada, para ela est sempre tudo bem.
Quando o meu irmo se casou, ela mandou construir uma casa no seu ptio para a receber o casal
e logo em seguida a minha cunhada se transformou, arengava por qualquer coisa, tratava mal
mame. Eu perguntava para o meu irmo se ele no ia tomar uma atitude, e ele nada... Uma outra
a interrompeu e perguntou: vixe, ele dominado por ela? Ao que respondeu: Pense! E depois a
gente que ficava de ruim. Mas depois que foram morar longe, melhorou, porque no se v todo o
dia. E ela to ruim que sabe que todo mundo adora o menino l em casa e ela no deixa o menino
ir l. Vo fazer assim com o que vai nascer tambm, primeiro deixa a gente se apegar e depois no
deixa mais a gente ver. A terceira comentou: , mas assim mesmo. natural que a gente fique
perto da famlia, da me. L em casa eu digo que chega a ser gentico. Eu me intrometi: gentico?
Como assim? E ela: , todo mundo se casou e no sai de perto da casa da me. Eu que sou a mais
afastada por causa do meu marido, mas todo mundo grudado e com os meus filhos a mesma
coisa. To sempre na minha volta. Eu que digo para o meu filho, que j t na hora de ele casar. J
est com 20 anos, trabalhando, est namorando, eu digo para ele que se case logo, e (rindo-se) que
leve toda a roupinha para namorada lavar. Porque aquela criatura suja uma roupa que s, nunca
vi. Eu estou louca que ele se case logo e me tire um pouco de trabalho! Passamos todas a rir e a
brincar sobre as opinies expostas.
O clima estava bem descontrado. Logo em seguida despontaram na esquina Luciane com
sua madrinha Iazinha e Carlos Alberto. Quando eles se aproximaram do grupo, o assunto foi
morrendo, e um certo silncio desconfortvel foi tomando o lugar da anterior descontrao. Aos
poucos o grupo se dispersou. Iazinha perguntou a uma das mulheres se a gua tinha voltado. Ela
disse-lhe que sim, comentando sobre o fato de a gua estar muito suja. Iazinha comentou ainda que
estava sem gua para beber e que iria pegar um balde para buscar um pouco de gua na torneira que
havia ali na rua, para coloc-la no filtro. Voltou-se para mim e convidou-me para ir at a sua casa,
que ia preparar um caf com tapioca para ns. Aceitei o convite e me despedi do grupo.
210
Entramos e, mesmo com o calor intenso, deixou a porta e a janela fechadas. Parecia ciosa
em preservar o interior da casa dos olhares de fora. Enquanto a ajudava a preparar a tapioca e o
caf, continuamos conversando sobre o seu dia, falando do filho, da falta diria de gua, da pilha de
roupas que tinha para lavar e passar, do seu desejo de comprar uma mquina de lavar roupas, dos
seus planos de reforma da casa. Em seguida, Iazinha comentou sobre o fato de as vizinhas acharemna metida: s porque eu no fico sentada na frente fazendo fofoca com elas (DC 31.03.05).
Muito embora Maria Cristina esteja conversando entre a roda de mulheres, gostaria
de chamar a ateno para o arrefecimento da conversa descontrada com a chegada de
Iazinha e a sua rpida pernamncia no grupo, que se torna compreensvel luz do
comentrio que fez. Trocar comentrios sobre a sua vida, sobre as suas redes de relaes
como o caso contado por uma das mulheres acerca da tenso com a sua cunhada parece
ser, aos olhos de Iazinha, fofocar. Com essa atitude parece estar demarcando uma posio
distinta, introduzindo uma diferenciao entre ela e as suas vizinhas. Parece querer
resguardar a sua vida e a sua histria das possibilidades de avaliaes e comentrios
alheios.
Essa atitude parece no ser bem vista pelas suas vizinhas, que a retaliam com o
desconfortvel silncio. Dessa mesma maneira pode-se interpretar o tom entre irnico e
belicoso dos meninos ao se referirem casa de Amelinha e ao seu fechamento ao mundo
exterior da Vila. Sugiro que tanto a passagem sobre a casa de Amelinha quanto a de Iazinha
so indcios de um padro recorrente entre o Grupo de Mulheres da Vila, que busca
demarcar uma distino relativa ao padro de sociabilidade ali vigente. Com tal
mecanismo de distino, parecem se esforar em no serem confundidas com as pessoas da
Vila. Ele se associa a uma demarcao de prosperidade em relao rede de vizinhana, a
uma resposta em forma de nfase numa superioridade moral frente avaliao negativa e
potencialmente perigosa do status conjugal de solteira da maioria das mulheres do Grupo e,
sobretudo, a uma determinada posio poltica. No entanto, a tentativa de se resguardarem
dos comentrios e de terem uma vida mais privativa que as diferencia do universo feminino
local no vivida sem conseqncias.
211
Muito embora o prprio autor reconhea em seu texto a apario do tema e o interesse por ele de outros
autores anteriores, pode-se situar esse texto como um marco no tratamento antropolgico da fofoca. Para uma
anlise aprofundada sobre o tema ver a instigante etnografia de Fasano (2006).
97
Fasano (2006) demarca uma distino entre o seu estudo e o de Fonseca em relao aos estudos
antropolgicos tradicionais sobre a fofoca. Segundo a autora, os estudos anteriores, ao enfatizarem a fofoca
como um regulador social sugerem uma preeminncia da comunidade frente a essa prtica, que seria uma
funo ao seu servio. Aliando-se anlise de Fonseca (2000), Fasano prope uma perspectiva diferente
acerca da fofoca: ela (constitutiva) da vida social (p. 31) e no apenas uma funo dela.
98
A mesinha de centro do terrao de Amelinha tem sempre um vaso com um arranjo de Arruda e Espada de
So Jorge, plantas associadas ao combate da inveja e olho gordo. A Arruda que coisa de macumbeiro,
como me ensinara Iazinha parece-me ser um dos recursos dos quais a dona da casa lana mo para afastar a
212
A reiterada nfase que fazem na retido de carter no me parece ser casual. Antes
se encontra associada ao carter acusatrio que assume o seu status conjugal, de mulheres e
mes solteiras, em determinadas situaes desse contexto. Fonseca (2000), nas suas
pesquisas etnogrficas entre a populao de baixa renda porto-alegrense, demonstra que as
fofocas que constituem a trama social daquele universo tm como tema preferencial a honra
e a moral sexual local. Nesse mesmo sentido, as portas fechadas das casas das mulheres do
Grupo, a sua vida mais privada, parecem estar a servio de uma tentativa de resguardo das
regulaes sociais acerca da sua solteirice.
Podemos perceber, assim como Elias e Scotson (2000), que os mexericos de
censura apelavam mais diretamente para o sentimento de retido e virtude daqueles que os
transmitiam. (...) O fato de mexericar com outros sobre tal assunto era prova da prpria
irreprensibilidade. Reforava a comunho dos virtuosos (p.124). A relevncia desse
elemento faz todo o sentido quando nos deparamos com o seguinte comentrio de
Amelinha. Em certa ocasio, ao tematizar as dificuldades enfrentadas nas relaes polticas
locais, ela confidenciou-me que sofrera muitas crticas quando resolveu juntar-se s
domsticas, por serem domsticas e muitas mes solteiras: So pessoas que foram muito
subjugadas a vida inteira e no conseguem se impor, por isto que falaram muito aqui,
quando eu resolvi me juntar com elas. Mas eu no tenho disso, me dou bem com todas e
so pessoas maravilhosas (DC16.11.04)99.
Alm disso, as cises na Vila e a demarcao de uma distino do Grupo de
Mulheres em relao comunidade assumem uma forma mais contundente quando o
assunto se trata de poltica. A prpria forma como atribuem sentido organizao espacial
da Vila, entre a rua em que vive a maioria delas e as outras ruas, explicita as tenses locais
que reproduzem divises polticas extra-locais, bem como demarca a concepo poltica do
Grupo. Foi Amelinha quem me explicou essa organizao espacial e poltica da Vila:
Aqui tem como se fossem dois partidos, direita e esquerda. Direita o PMDB e o PFL e a
esquerda o PT. Nesta rua aqui [a rua B] mora a oposio, que de direita, e na outra rua [a rua
inveja atribuda aos vizinhos, queles que passam pela frente da casa e lanam olhares maldosos e destrutivos
sua prosperidade.
99
Interessa contrastar essa posio de Amelinha com uma acusao sua candidata da chapa adversria,
Tamara, em meio a uma conversa que tivemos, junto ao Grupo de Mulheres, as quais, no custa lembrar, so
domsticas. Na ocasio, perguntei se Tamara trabalhava e se era ligada a algum partido. Amelinha, em tom de
desprezo, disse: ela cozinheira, faz cafezinho, limpa, essas coisas, gorda do jeito que e trabalhou durante
anos com Miguel Arraes, como cozinheira, por isso ligada a eles, ao PSB. Um silncio constrangedor
seguiu-se a sua fala (DC 31.03.05).
213
A], a esquerda. Cada uma tem o seu partido e fica livre para escolher o que achar melhor. claro
que a gente d nossas dicas sobre como votar bem, sem colocar nome de candidato no meio, mas
s nas nossas casas, no no Conselho. Eu fao da minha casa um comit. Aqui tem muito cabo
eleitoral, que ganha para fazer campanha. A nossa posio poltica diferente; a gente apia
candidato pobre, que tem uma histria de luta; a gente exige que o candidato venha comunidade,
conhea a nossa realidade e que a comunidade conhea o candidato, para depois escolher. Eu
apoiei o Dr. Mozart, do PT. Muita gente daqui o apoiou... Nesta eleio ns tivemos seis
candidatos apoiados pela comunidade: dois do PT, um da Frente de Esquerda, que o Arraes, e o
resto da direita, do PFL (DC 16.11.04).
214
bebida para os jovens, por exemplo, como ns vamos abrir a sede para favorecer festinha para os
jovens beberem?
Iazinha: Teve uma festa de Halloween aqui em que rolou tudo: drogas, bebida e at
polcia. E a gente no ficou sabendo de nada! E a responsabilidade da gente... o Ibura est muito
violento, o primeiro lugar em violncia. Estamos cercados, uma questo at de preveno e
preveno no abrir espao para juntar essa gente.
Amelinha: A gente faz reunies aqui, chama todo mundo para expor os problemas, mas
ningum aparece. A comunidade desinteressada, s quer receber; reclamavam porque a gente
no arranjava cesta bsica, no arranjava emprego. Mas est dentro do prprio estatuto, o
Conselho no para isso; um movimento de reivindicao para que a comunidade viva a
cidadania, descubra os seus direitos e como promov-los; a gente queria fazer trabalho de
educao para a cidadania com os jovens, mas eles s querem saber de dana. Quisemos fazer um
trabalho de meio-ambinete, mas quando chega na responsabilidade ningum quer assumir. lento,
para transformar difcil (DC 16.11.04).
Chama a ateno nesse excerto o fato de que, para alm de concepes polticas
distintas em jogo, h tambm vises de mundo que regem modos de vida em tenso, como
se pode perceber na associao que fazem entre bebida-festa-violncia. Parece-me haver
aqui uma dissonncia entre modos de vida que se relacionam e a manuteno daqueles
mecanismos de distino que o Grupo de Mulheres procura reforar em relao
comunidade em que vivem. Contudo as cises no cessam a; antes elas se manifestam em
conflitos concretos protagonizados pelo Grupo de Mulheres. Resgatarei, em especial, dois
deles, posto que trazem uma combinao peculiar entre relaes polticas locais e extralocais.
5.2.2. A luta boa, mas corre sangue tambm: a dramatizao das cises
polticos extra-locais na Vila e a busca dessas instncias extra-locais para a sua resoluo.
Foi Amelinha quem relatou sobre o caso:
Em 2001, quando caram as barreiras, o pessoal da prefeitura veio colocar as placas para
que no se ocupasse mais aquela rea, porque era de risco. As pessoas que mesmo assim
construam casas, eles vinham e derrubavam. Tinham um helicptero para a fiscalizao. Teve um
homem daqui, que tem vrias casas para aluguel e um boteco em que todos se renem e de onde sai
muita fofoca, que teve uma das suas casas derrubadas. Disseram para ele que tinha sido eu que o
denunciara e eu nem sabia que ele tinha construdo a casa. Ele ficou brabo e tomou umas e foi l
em casa, queria me bater.
A sorte que eu no abri o porto; o Jair queria que eu abrisse o porto para dar no
homem. Eu dizia que no ia abrir; dizia que Deus est do meu lado, tem a justia para nos
amparar, tem que seguir o que certo; no vamos fazer justia com as prprias mos! Da eu tive
que chamar a polcia, mas esconderam o homem, ele entrou no meio da Vila e sumiu. Da ele
passou a me ameaar, dizia que ia dar sangue na canela, que algum ia amanhecer com a boca
cheia de formiga. Mas eu fui e registrei queixa na Delegacia da Mulher. E o problema da
Delegacia da Mulher que quem pega o depoimento homem e da ele me disse que era coisa
banal, que no precisava me preocupar, que eu esperasse que as coisas iam se resolver. Eu disse a
ele que se fosse uma coisa banal eu no iria at l! Oxe, o homem est querendo me matar e eu vou
esperar? Eu fui logo dizendo a ele que eu era da Temtica da Mulher do OP, do Frum de
Mulheres. Eu li o depoimento que ele escreveu e estava resumido, eu pedi que ele mudasse o
depoimento e que enviasse logo para o homem a intimao.
Fui ao Frum de Mulheres, mobilizar as companheiras e o pessoal dos Direitos Humanos
da Prefeitura. S sei que no dia eu estava com trs advogados l. Entrei sozinha na sala e ele
achando que eu estava sozinha. Aos poucos foram chegando e eu estava com trs advogados, alm
das companheiras do Frum para me apoiar. Eu pedi que a CODECIR100 fizesse uma carta dizendo
que foram eles que derrubaram a casa, que tinham visto pelo helicptero da fiscalizao e que eu
no tinha nada a ver com isto. A delegada leu a carta na frente dele e ele foi amarelando e ficando
vermelho como um camaro. Da eu aproveitei e disse tudo o que acontecia aqui, das perseguies
que faziam minha famlia por causa da disputa pelo Conselho. A patotinha se reunia na casa dele
para fazer fofoca e ficavam colocando coisa na cabea do homem. Ele disse que estava nervoso
porque a mulher dele o tinha abandonado. A delegada perguntou se eu queria abrir processo
contra ele, da eu disse que no queria; disse que eu tinha assumido o Conselho para fazer o bem
para a comunidade e que ia procurar os meus direitos (DC 16.11.04).
100
216
217
Imagina o meu estado de ver o meu menino naquele jeito, lavado em sangue. Foi horrvel para
mim. Agora ele est a, fazendo fisioterapia. Levamos ele no hospital e fomos dar queixa e ningum
quis ser testemunha, todo mundo tem medo do homem. E um vizinho meu, o seu Giba, ainda me
disse que acidentes acontecem, que foi por acaso e que presidente assim mesmo, visado. Imagina
s, ainda ter que ouvir isso. Mas que eles no podem fazer nada comigo porque sou mulher,
ento fazem com o meu filho. O homem logo se escondeu dentro da Vila, ajudaram ele a fugir da
polcia, a se esconder. Eu fiquei muito mal, s agora estou me levantando de novo, ver meu filho
daquele jeito...
Iazinha veio ao seu auxlio: foi horrvel, quando eu vi o menino assim todo ensangentado,
atirado no cho, eu gritei; e foi subindo uma fria na gente que eu logo sa gritando para linchar o
homem; foi o quanto ele escapou, seno a gente lincharia mesmo. Mas isso foi orientado por
mulher, tem mulher no meio, porque tem muita mulher que sabe dos seus direitos, sabe da
Delegacia da Mulher hoje, ento orientaram a fazer com o filho. Isso era para ns...
Maria das Graas, complementou: j estavam planejando alguma coisa para fazer, alguma
coisa ia acontecer porque teve a questo com o outro menino dela...
Amelinha: , antes disto, no domingo, teve um problema com o meu caula, de 20 anos.
Ele estava jogando futebol no campinho ali e brigou com um porque tinha entrado de mau jeito
nele, eles se bateram e brigaram. O meu menino veio me dizer que tinha acontecido isso, que ele
tinha batido e tinha apanhado tambm. Eu perguntei a ele se tinha ficado tudo resolvido, ele disse
que sim. Ento me tranqilizei e disse para ele ento entra e fica em casa e ficou por isso.
Quando foi de noite, eles estavam sentados ali na varanda de casa, veio a me do tal com um grupo
de pixote para linchar o meu menino. Ela veio e deu um tapa na cara dele. Ele ficou to humilhado,
aquilo me fez to mal, eu nunca bati no rosto de um filho meu e vem uma mulher sem moral, uma
vergonha de mulher e faz isso no meu filho, me doeu na alma! Da o Roberval pegou o brao dela e
um pixote quis se meter e Roberval disse para ele ficar na dele, j que no tinha nada a ver com
aquilo e nem deveria estar ali. Eu conversei com ela, perguntando porque ela tinha feito aquilo
com o meu menino. Ela disse que era porque ele tinha batido no filho dela. Eu disse que o filho
dela tambm batera no meu e eles tinham resolvido o problema entre eles, que no tinha porque ela
vir at ali fazer aquilo.
Maria das Graas: uma catimbozeira, macumbeira, safada, essa me do tal. Mas porque
ela est com raiva da gente, porque pagaram para ela fazer uma macumba para a gente perder a
eleio e a gente ganhou101.
101
Segundo minhas interlocutoras, no final da rua A h um terreiro de catimb de propriedade dessa mulher,
que vive fazendo batuque e colocando despachos. Questionadas sobre a religio do terreiro, elas dispararam:
no sei direito, mas uma coisa certa, coisa boa no . coisa ruim mesmo, magia para fazer mal para as
pessoas. No tem nada a ver com o afox, por exemplo, que uma dana (DC 11.06.05).
218
Amelinha: Da ela ficou desacreditada, porque a gente desafiou ela. Pagaram bode,
pagaram catimb e como no conseguiram nada, partiram para violncia; isto tudo a maldade
das pessoas, mas isto s nos ajuda a fortalecer mais. O grupo queria que eu desistisse; pensaram
, agora ela fica fraca e desiste. Mas eu j disse, estou determinada, s entrego quando terminar
o meu tempo. At as meninas do SOS me disseram como eu estava forte desse jeito, que se fosse
com elas teriam ido embora da Vila. Muita gente daqui disse isto para mim, que pensou que eu
fosse embora, mas eu no vou. Imagina se vou deixar a minha casa. Tive de enfrentar tudo sozinha.
Eu carrego uma mgoa muito grande do Frum de Mulheres e dessas ONGs a, porque ningum
veio aqui me dar um apoio, nem um telefonema eu recebi para saber se precisava de ajuda, como
se os errados fssemos ns, os marginais, eu, meu marido, meus filhos. Mas eu disse no Frum
outro dia e Pilar Hernandez no gostou. Ela disse que a gente que estava na comunidade tinha que
enfrentar os homens que batem nas mulheres. Da eu disse que quem est na comunidade a gente,
a gente que est com a cara mostra, no enfrentamento, e depois fica sem segurana. Elas ficam
s em reunies, mas a gente quem est na base. Como a gente vai enfrentar um marido que diz
que se algum se meter vai dar um tiro no p de quem entrar ali? Quero ver ela vir enfrentar e
continuar vivendo aqui. Se o Frum de Mulheres apoiar o novo grupo no conselho, eu me afasto de
tudo.
Iazinha: e tudo isso por causa do pessoal que perdeu a eleio; o filho dele foi candidato e
perdeu para ns. Pernambuco est muito violento, mas ns no entramos na diretoria do conselho
para sofrer isso.
Maria das Graas: Graas a deus ele est na chave, foi preso (DC 16.11.04).
219
Mulheres da rede de articulao poltica que compe o campo poltico feminista mais
amplo.
Alm disso, nesse caso podemos perceber mais alguns importantes elementos que
esto em jogo no confronto entre as faces opostas na Vila e marcadores sociais que se
imiscuem na demarcao da distino entre os grupos. Outro elemento relevante, que
apareceu recorrentemente ao longo da pesquisa, diz respeito religio como um desses
marcadores. Como se pode perceber na prpria trajetria da maioria do Grupo de Mulheres,
demonstrada no captulo anterior, o catolicismo parte importante das suas trajetrias
pessoal e poltica, direta ou indiretamente. Muitas comearam seu engajamento atravs das
Aes Catlicas nas dcadas de 60 e 70 e outras, indiretamente, comearam-no atravs do
Sindicato das Domsticas, cuja origem est intrinsecamente ligada aos movimentos
catlicos. Nessa situao, a oposio entre catolicismo e religies afro-brasileiras, como no
caso o catimb, termo utilizado com conotao pejorativa para se referirem indistintamente
umbanda e ao candombl102, reproduz uma associao entre bem e mal, utilizada como
recurso de distino que as marca positivamente e procura construir uma imagem negativa
da faco oposta.
Nessa mesma linha interpretativa, seguindo uma lgica de embate entre o bem e o
mal, se constitui a explicao para a utilizao de recursos exteriores s prticas polticas
usuais para as aes da faco oposta, como se pode perceber na idia de conspirao e
vingana que o Grupo de Mulheres atribui outra faco. Interessa ressaltar as convenes
de gnero que operam aqui. Na sua explicao do ocorrido, parecem dar margem
interpretao de que, por serem mulheres, estariam resguardadas de sofrerem diretamente
as agresses, seja pelo fato de as mulheres terem os seus direitos garantidos, como Iazinha
sugere no acionamento da existncia da Delegacia da Mulher o que em muito se
aproxima da lgica de Vicentina que abre esse captulo , seja por operarem com
convenes de gnero estritas que atribuem determinadas expectativas para homens e
mulheres.
O fato de fazer sentido para essas mulheres os filhos homens de Amelinha terem
sido o alvo preferencial das agresses que teoricamente deveriam ser direcionadas a ela
remete a noes de honra masculina, como o sentimento de humilhao frente ao tapa no
102
Muito embora se tratem de manifestaes religiosas distintas, guardam em comum rituais com
incorporao de espritos, muito disseminadas no contexto pernambucano (Brumana, 2005), as minhas
interlocutoras tomam-nas como sinnimos.
220
rosto sofrido pelo seu filho caula103. Tais noes de honra masculina convivem com o
constante acionamento de um outro atributo de gnero, que marca indelevelmente a sua
prxis poltica, contido na noo de coragem. Vejamos.
Numa das conversas no terrao de Amelinha, sobre o tema predileto, a eleio do Conselho,
Lucimar contou que falara com uma mulher da comunidade que lhe dissera que no estaria na
comunidade no dia da eleio porque tinha ficado decepcionada com Amelinha, por ela ter
murchado. Amelinha, indignada, comeou a esbravejar e dizer que se tivesse acontecido com
qualquer um dali o que acontecera com ela, ningum agentaria. Asseverando ser muito corajosa
em ter ficado na Vila, que s ela sabia pelo que tinha passado e que mesmo assim no desistira do
Conselho: todo mundo me diz que fui corajosa de permanecer na comunidade, mas para onde eu ia,
se a minha casa aqui? E ainda tenho que escutar isso, que eu murchei. Ainda exaltada continuou
no seu discurso inflamado sobre a poltica na comunidade, salientando que elas estavam comeando
a mudar a mentalidade poltica dali, mas que faltava muito trabalho ainda porque o povo dali tinha
uma viso errada, de troca de favores, daquele que d camiseta, que d coisas. Passou a mostrar
um discurso que estava escrevendo para o dia da passagem da diretoria, se fosse o caso. Leu para
todas, que escutaram atentamente. O discurso mencionava a fora de deus, a coragem delas no
enfrentamento das dificuldades e fazia um resgate das coisas que tinham feito. Todas concordaram
103
Aqui me valho da anlise de Fonseca (2000), por sua vez inspirada em Pitt-Rivers, da honra como
orgulho pessoal no sentido de esforo de enobrecer a prpria imagem (...) e como um cdigo social de
interao, em que o prestgio pessoal negociado como o bem simblico fundamental da troca (p. 15).
104
Fonseca (2000), no contexto gacho, encontrou expresso semelhante, com o mesmo uso: sangue
quente.
221
com o tom e Iazinha ponderou que talvez elas no tivessem espao para falar, mas que se tivessem
seria bom (DC 21.03.05).
A reao indignada de Amelinha frente fofoca sobre a sua coragem ter sido posta
em xeque digna de nota porque parece revelar a importncia conferida a esse atributo que
toma como um patrimnio poltico pessoal demarcador do seu diferencial no campo. O
tema da valentia e da coragem femininas tem sido objeto de anlise etnogrfica em
diferentes estudos. Seja entre mulheres das camadas urbanas de baixa renda como um
recurso para a manuteno das suas relaes conjugais (Fonseca, 2000 e Paim, 1998), seja
como postura adotada por mulheres garimpeiras em meio a garimpos (Grossi, 1999), a
valentia parece se configurar como uma caracterstica constitutiva de um modelo de
feminilidade que se forma a partir da justaposio de marcadores sociais de gnero e classe,
de acordo com um uso particular, mais prximo das camadas urbanas de baixa renda.
No entanto, enfocando um plano analtico que busca compreender as convenes de
gnero vigentes no universo investigado, gostaria de sugerir que a noo de coragem chama
a ateno por ter um carter de gnero ambivalente, no sendo propriamente uma
conveno do feminino, mas que na batalha propriamente poltica um requisito
fundamental para essas mulheres.
A coragem necessria para a participao no campo poltico foi tambm notada por
outros pesquisadores no contexto pernambucano, muito embora tenha sido interpretada de
uma maneira distinta da que eu proponho aqui. Mendes (2000), ao descrever a performance
de lideranas femininas no enfrentamento de debates e discusses com lideranas
masculinas em reunies, apresenta as mulheres como valentes e destemidas no
enfrentamento dos homens e sendo vistas por eles como o co de danada (p. 27). De
forma semelhante Friedhoff, Andrade e Knauer (2001), ao investigarem a massiva presena
de mulheres nos espaos de participao popular em Recife, asseveram que
no raro encontrar essas referncias dicotomia pblico/privado no discurso de
homens e de mulheres dos segmentos populares, a exemplo das/dos entrevistados/as
para efeitos dessa pesquisa. Ser domstica passa a ser como que censurado e
ridicularizado, principalmente, quando a domesticidade vai associada ao medo aos
espaos pblicos. Contrariamente, o domnio destes por parte das mulheres, a
coragem de enfrent-los e neles movimentar-se parece ser um dos aspectos de que
se orgulham as lideranas femininas, passando a ser essa coragem como um suporte
de seu reconhecimento e aceitao pblica local (bairro, associao, espaos
municipais de participao), o que, segundo as entrevistas, parece influenciar na
escolha das mulheres como representantes, delegadas (p.9).
222
Mesmo repetindo as anlises que separam a vida social em duas esferas, a pblica
dos homens e a privada das mulheres, esses dois estudos colocam a coragem como uma
demonstrao pblica das mulheres em no temerem assumir um espao numa esfera
dominada pelos homens e, por isso, essa qualidade passa a ser valorizada. Diferentemente
dessas anlises, o sentido que a coragem assume na anlise que empreendo aqui aponta
para uma importante porta de entrada para se compreender as convenes de gnero ali
vigentes, que encontra no campo poltico um referencial crucial, mas que no se restringe a
ele. Assume, portanto, um sentido mais amplo, como no caso de Teresa:
Passei-lhe a contar do assalto que presenciara na rua em que ela trabalha, prxima da minha
casa. Disse-lhe, pesarosa, que tinha ficado muito triste em ver um menino de 11 anos empunhando
uma arma, que no entendia como ele conseguia empunh-la de to franzino que era, e de ter visto
uma arma to perto de mim. Ela riu-se do meu jeito e passou a contar-me que ela mesma j tinha
atirado e que tinha gostado muito. Eu, espantada com inusitado nunca imaginaria que ela, por ser
evanglica e plcida daquele jeito, poderia ter esse precedente pedi-lhe mais detalhes. Ela, rindose muito, contou que antes de ter se tornado evanglica, tivera um namorado que era meio maluco e
que lhe ensinara a atirar de 32 e de 38, que o primeiro tiro que deu foi para o cho, mas que depois
mirou bem e atirou para frente. Divertia-se ao lembrar que andavam correndo de carro e atirando
pela janela, e que de fato, a arma era mesmo pesada. Empolgada com a histria, passou a contar do
faco que comprara e que mantinha escondido no seu quarto para alguma eventualidade. Contou-me
que no meio do ano passado ela passou por uma situao bem difcil na Vila. Tinha um cachorro,
que foi envenenado pelas pessoas da vizinhana com carne envenenada: Nesse dia, eu tinha dado
somente rao para ele, porque estava tentando acostum-lo a comer rao e senti que ele roa um
osso. Quando eu sa para trabalhar fiquei com aquilo na cabea. Quando voltei, vi que o varal de
roupas estava no cho e o cachorro morto, durinho, cado no ptio. A resolvi me prevenir e
comprei um faco, bem afiado, que guardo comigo, no seu quarto. Numa madrugada ouvi baterem
na janela. Fiquei com medo, mas como sou sozinha, tinha de defender a casa. Aqui ningum ia
entrar e se entrasse ia perder uma mo. Peguei o meu faco, acendi a luz e fiquei na janela da
porta da sala, esperando. Eu fui muito corajosa, porque a porta da minha casa frgil e qualquer
empurro a porta vem abaixo, e o cabra nada de aparecer. Resolvi apagar a luz e voltar para o
quarto. Foi quando bateram de novo na janela. Me levantei e no acendi a luz dessa vez, fiquei
espreita com o faco em punho. E nada. No dormi mais e quando amanheceu o dia fui ver como
estava o ptio e vi que tinham pulado o muro, porque tinha umas coisas cadas no cho e o porto
da rua estava entreaberto. O faco uma forma de me proteger, porque a Vila est muito violenta.
223
Aqui o povo tem muita inveja da gente, porque ns somos mulheres sozinhas e vivemos a nossa
vida, temos as nossas casas e as nossas coisas (DC 11.06.05).
224
cachaceiro, formada por um pessoal quente, gente baixa, perigosa. Todos da rua B que
querem tomar conta do Conselho para fazer baderna. A cabea da chapa, Tamara,
cunhada de Milton, candidato perdedor das eleies anteriores. Segundo o Grupo de
Mulheres, o seu empenho na campanha da cunhada esconde interesses escusos como o de
montar um negcio e encher o bolso de dinheiro (DC 21.03.05) a partir da cozinha
industrial do Conselho.
As atividades de campanha do Grupo de Mulheres ganharam mais intensidade na
semana anterior ao pleito, com a organizao de um bingo e de uma palestra com a
presena de uma ativista do SOS Corpo e de outra palestra com representantes da
Coordenadoria Municipal da Mulher sobre combate violncia contra as mulheres, em
comemorao ao Dia Internacional da Mulher. Nessa atividade o Grupo, coordenado por
Amelinha, preparou um lanche a ser oferecido s participantes no final do evento e sorteou
dois presentes: uma camiseta e um jogo de lenis de casal, comprados com os recursos do
Conselho.
A platia contava com a presena de mulheres da Vila, com as domsticas que
estavam afastadas do Grupo como Celina e Rute, com algumas mulheres do Grupo como
Adelaide, Maria das Graas, Maria Cristina, Lucimar e sua filha Luciane, Teresa, e
Amelinha e sua famlia: Roberval, Roberto, Raquel e a sua irm Lucinha. Alm delas,
estavam tambm presentes Dona Mila, liderana comunitria da UR 12 e da mesma
parquia a qual pertecem algumas mulheres do Grupo, as duas palestrantes da prefeitura e
Anaclia, assessora parlamentar do vereador petista Mozart, apoiado por Amelinha na
ltima eleio municipal. Aps a explanao das representantes municipais, iniciaram-se as
intervenes:
Amelinha abriu o debate e falou sobre a necessidade da luta contra a violncia que acomete
as mulheres na comunidade: Ns temos que nos unir, parar com essas picuinhas de mulheres, que a
gente sabe que existe aqui na comunidade. A gente sabe que tem muita inveja, intriga, tem muita
mulher que no quer que as outras mulheres tenham posio, querem que fiquem l embaixo,
submissas. E ns temos que nos unir. Celina interveio, lembrando-se de que h tambm o
225
componente familiar nessa questo: tem muito casal, casado e que mora junto e em que a mulher
resolve agentar porque se deixar o marido, o povo fala, a famlia no aceita em casa de volta. E
ainda a gente ouve muito as amigas aconselharem que assim mesmo, e que acabam se
acostumando. Dona Mila pediu a palavra e passou a falar sobre como a independncia das mulheres
incomodava os homens na comunidade: mulheres como Dona Amelinha, como eu e outras
companheiras aqui, incomodam muitos os homens na comunidade, porque no baixamos a cabea
porque somos de luta. Amelinha continuou: e mesmo assim, a gente que est na luta. Quando eu me
casei eu j era formada na poltica e tinha amigos e ele tinha cimes, mas eu disse que no era
assim. E ele teve que mudar, a gente tem que se impor. E tambm era uma outra poca, a gente teve
preparao, a gente tinha amigos que saiam juntos e se respeitavam. Hoje no. Eu trabalhava fora
quando me casei e continuei trabalhando e mesmo assim no deixei de fazer as minhas coisas.
Quando eu saio de casa, deixo o almoo pronto e tudinho. Tambm tenho o meu dever, mas no
sou escrava, mas deixo tudo pronto. Eles trabalham, batalham tambm e cada um faz o seu. A
gente tem que se impor. Quando um homem v que uma mulher de respeito, ele respeita. Ento a
gente tem que se respeitar e se impor. Lucimar pediu a palavra e comeou a falar da sua histria
com os homens: Conheci um cabra que queria controlar at o ar que eu respirava. Queria
controlar o meu dinheiro, eu comprei camisinha e ele no queria que eu comprasse, no queria
usar preservativo. Eu dizia que o dinheiro era meu e eu fazia com ele o que quisesse e que no
deixaria de trabalhar. E da no deu certo, botei ele pra correr. Da eu conheci o pai dela
(apontando para Luciane ao seu lado), queria que deixasse trabalho, vendesse a minha casa e fosse
morar perto da me dele. A famlia dele queria que a gente casasse logo, mas eu no queira, queria
primeiro morar junto pra ver se daria certo, se der certo deu, seno no. E tinha uma presso. Da
ele j foi logo dizendo que eu ia ter de deixar de trabalhar e ficar s cuidando da casa. Voc vai ser
s minha esposa. Me dizia pra deixar o sindicato porque l era uma mfia, eu dizia que prefiro
mais sindicato do que os homens. Quando ela estava com 5 meses, ele bateu em mim pela primeira
vez. Fui pedir ajuda para duas mulheres e s a segunda me ajudou. Depois disso nunca mais quis
saber de homem na vida. Minha filha eu levo pros movimentos desde cedo, fao estudar para
trabalhar e ser independente. E eu digo para ela que homem s para aquela hora e olhe l (a
platia riu). Eu vi a vida da minha me e no queria aquilo para mim, nem para minha filha, nem
para meus netos.
Logo em seguida a representante da prefeitura retomou a palavra e passou a falar da eleio
para o Conselho, aconselhando s mulheres analisarem bem as propostas das duas chapas, a gesto
e os componentes das chapas: o que uma pessoa for em casa, ela vai ser no Conselho. Tem que se
ver se as pessoas tm estrutura para isso. O conselho importante para tudo na comunidade, para
ir para cima ou para ir para baixo. Amelinha, aproveitando a deixa, passou a falar que aquela era a
ltima ao como diretoria do Conselho: tenho esperana que o grupo que esteve comigo d
226
continuidade ao trabalho. Mas se no for o caso, vamos continuar com dignidade, com coragem, a
luta pela comunidade. A gente tem uma preparao, uma experincia que ningum teve. Quando a
gente assumiu, caram as barreiras e a gente fez um trabalho que muita gente h tempos no teve
punho para fazer. Continuamos firmes, enfrentando ignorncia, agresso, violncia, piada. Onde a
gente ia, ia em nome da Vila, levamos a comunidade para todos os espaos de que a gente
participava. E no vamos desanimar, porque desnimo sinal de derrota. E ns vamos continuar
com o nosso grupo de mulheres, independente do conselho. E que vai trabalhar tambm pela
comunidade. Porque se a gente mora na comunidade, a gente quer que ela se transforme. Eu sofri
muitas agresses, que atingiram a minha famlia, e pensaram que eu ia desistir, mas no sei de
onde nem como, mas isso me deu mais coragem para enfrentar. Queriam que eu renunciasse e eu
disse no, eu fiz valer a democracia, lutei para que a democracia fosse um nome de respeito. Eu
no saio pela agresso de ningum, no tenho medo de ningum. Anaclia pediu a palavra e falou
abertamente em apoio chapa 1, dizendo no ter problema em assumir que a apoiava por acreditar
ser a melhor, a mais bem preparada para levar adiante o trabalho do Conselho, incitando as
mulheres a se unirem, a mostrarem que ser mulher ser forte e ser companheira. Vamos em frente
companheiras e vamos para o lanche (DC 23.03.05)!
Demonstra, na sua aplicao micro-poltica local, a apropriao dos elementos que dotam
de sentido a prxis poltica apreendida pela circulao no campo feminista. Parece ter o
objetivo de reforar o prestgio angariado pelo Grupo fora dali, entre instncias chave do
campo poltico. Contudo, essa apropriao passa por re-significaes luz das cores locais
que podem ser identificadas nas acusaes que permeiam a disputa poltica, as quais
reproduzem os mesmos mecanismos de distino do Grupo de mulheres anteriormente
assinalados. Vejamos os meandros dessa disputa mais detalhadamente na etnografia.
Ela desenvolve trabalho poltico nas comunidades da periferia de Recife, como me explicou, com o intuito
de organizar mulheres e jovens. Contou-me que gosta do trabalho comunitrio que fazia e que tem uma forma
diferente de fazer poltica, que no gosta de entrar na comunidade e j ir dizendo que assessora do deputado,
mas que gosta de ir aos poucos, criando vnculos, ajudando a comunidade a se organizar, debatendo questes
e depois do vnculo criado ela dizia que era assessora do deputado.
106
O panfleto trazia uma sntese dos trabalhos realizados pelas gestes anteriores da diretoria presidida por
Amelinha, uma lista das propostas para a nova gesto, bem como os nomes dos componentes da chapa.
228
229
230
o espao do Conselho. A chapa 1, a da situao, ficou trs anos e nunca bateu na sua porta, hoje
resolveu ir at a sua casa. No caia nessa, tem gente de fora da comunidade vindo pedir voto para
vocs. Eles ficaram no nosso encalo; por onde passvamos, vinham atrs.
Paramos na casa de uma mulher que estava indignada com a atual gesto do Conselho.
Queria um posto de sade ali na Vila e distribuio de leite, para evitar de subir a ladeira
cotidianamente a fim de buscar o leite para os seus filhos no PSF da UR-10. Teresa explicou-lhe
que ali no poderia ter posto de sade e nem distribuio de leite em funo do tamanho da Vila.
Mas que a gesto delas tinha conseguido um agente comunitrio de sade, e reforava quando o
qualificava como concursado, que levava as demandas e marcava as consultas do pessoal da Vila
no PSF. A mulher parecia irredutvel e Janice passou a argumentar, para o meu espanto, que a atual
diretoria fizera uma boa gesto, estivera preocupada em colocar o nome da Vila em todos os lugares
de que participaram e o trabalho fora to bom que a Vila tinha ficado conhecida em todo o Brasil,
cuja prova era a minha presena ali: essa companheira do Rio Grande do Sul veio de l s pra
conhecer a Vila e o trabalho que era feito. Argumento que no pareceu fazer grande sentido para a
mulher preocupada com o leite dos seus filhos. Depois que nos afastamos, Janice virou-se para mim
rindo e disse: te usamos como objeto poltico de campanha! No te esqueas de colocar isso no seu
relatrio! Pasmada, ri e disse-lhe que no me esqueceria (DC 26.03.05).
231
descrita, com o futuro da articulao poltica com o SOS e com a possibilidade de apoio
nova gesto de mulheres no Conselho.
Em relao ao jogo de acusaes, para alm daquelas que giram em torno das
marcas de distino destoantes do Grupo de Mulheres relativas ao uso do Conselho para
missas catlicas e a no realizao de festas para a comunidade e das expectativas
frustradas em relao a benfeitorias esperadas para a Vila, como se pode perceber na
descrio etnogrfica acima, h uma outra que se associa ao tema da conjugalidade e da
agncia sexual das mulheres envolvidas na disputa poltica.
A avaliao do comportamento sexual das mulheres locais atravessa a etnografia do
cotidiano na Vila, sendo alvo de ateno e controle da rede social, e nos meandros da
eleio passa tambm a ter uma conotao poltica. Como asseverou o vizinho de Tamara,
indo ao encontro do que apresentou Scott (1990) como uma conveno entre as camadas
empobrecidas de Recife, a ausncia masculina recaiu negativamente sobre Tamara. A sua
capacidade de ser uma boa presidente do Conselho foi colocada em xeque pelo fato de ser
separada. Em vista disso, pode-se compreender melhor a nfase que as mulheres do Grupo
colocam na sua retido de carter e na vida mais reclusa que levam, buscando se livrarem
da pecha de mulheres sem moral e, assim, diferenciarem-se do restante, j que a sua
condio de solteiras, desde os primrdios da Vila, guarda uma conotao negativa.
Ao mesmo tempo em que desafiam as convenes locais, em no terem um
parceiro, as mulheres do Grupo parecem ambivalentemente empenhadas nelas, quando
buscam garantir a sua respeitabilidade, reconhecida pela rede local como demonstra
Lucimar. Ela contou-me que quando o pai de Luciane viera morar com ela, ele fez amizade
com um antigo morador da Vila, muito observador e que conhecia todo mundo ali: ele disse
a Arlindo quem eram as vagabundas e quem eram as mulheres srias da Vila. E ele disse
que Arlindo tinha feito uma boa escolha, porque eu era uma moa sria, no trazia homem
para casa (DC 11.06.05).
A reputao das mulheres envolvidas na disputa poltica foi um dos temas candentes
da eleio, transformado em objeto de acusao poltica. Vejamos.
No dia da eleio, seguindo para o Conselho com Maria das Graas encontramos Teresa,
acompanhada por um grupo que estava a ajudando a fazer um porta a porta: Flix, um jovem,
assessor parlamentar do deputado federal petista Fernando Ferro e vice-presidente do Conselho de
Moradores da Imbiribeira, Eufrsia, uma mulher nos seus quarenta anos, ex-presidente do Conselho
232
de Moradores do Monte Verde, e Rodrigo, morador da Vila e participante da Chapa 1. Aps nos
afastarmos do grupo, Maria das Graas comentou que Rodrigo era um bom menino, mas era gay.
Filho de Lucrcia, domstica, ex-mensalista, que agora diarista e se dedica aos homens. No
entendi o comentrio e Maria das Graas disse-me que ela gostava de ganhar dinheiro com os
homens, os caminhoneiros l em cima, no posto.
A votao era no grande salo do prdio do Conselho e contava como mesrios: Evenise,
liderana comunitria, presidente do Conselho de Moradores da Imbiribeira e assessora parlamentar
do deputado federal petista Fernando Ferro, e Tubino, tambm liderana comunitria, presidente do
Conselho de Moradores vila 27 de novembro e assessor parlamentar do vereador petista Mozart,
companheiros polticos de Amelinha. A votao seguia tumultuada, com discusses sobre quem
poderia ou no votar. Lucimar e Maria das Graas ficaram a maior parte da manh entre o Conselho
e a casa de Amelinha, levando boletins parciais sobre o desenvolvimento da eleio s outras
mulheres do Grupo envolvidas com os preparativos para o almoo. Todas se empenham em falar
mal dos macumbeiros da chapa 2. Ao retornarmos ao Conselho, nos deparamos com uma grande
querela. Quando Lucrcia e o seu companheiro tinham ido votar, o pessoal da chapa 2 colocou o
voto dele em separado, porque duvidavam do fato de ele morar na comunidade. Alm disso, Ansio,
mesrio da chapa 2, queria colocar no envelope dela que ela era profissional do sexo. Evenise,
saindo em defesa de Lucrcia, interveio: De jeito nenhum, companheiro. Isso discriminao e
inconstitucional. Por que razo a profisso dela deve ser destacada e de que nos interessa a sua
profisso? Eu no vou aceitar isso de jeito nenhum. Amelinha ficou furiosa e virando-se para mim,
disse: voc est vendo a discriminao a que ponto chega? Isso s porque ns somos mulheres. H
muita discriminao, porque somos um grupo de senhoras, mulheres e domsticas! Todos passaram
a debater o ocorrido. Roberval disse haver muitas profissionais do sexo ali, inclusive na chapa 2,
acusando Tamara de profissional do sexo enrustida.
Continuaram a discutir a quantidade de profissionais do sexo que havia na Vila. Para
arrefecer os nimos, Amelinha ofereceu mungunz que havia feito, pedindo Lucimar que fosse
busc-lo em sua casa. Fui acompanh-la. No caminho passamos pelo grupo em que estava a
candidata da chapa 2, Tamara. Cumprimentei-a e Lucimar virou o rosto, num sinal ostensivo de
desagrado. Depois, entre dentes, comentou comigo: o negcio daquela ali chamar homens para
sua casa. Nisso ela boa. Eles j esto com um engradado de cerveja para comemorar a vitria.
Vo fazer uma festa. Ri do seu jeito e perguntei se Tamara chamava muitos homens s para ela.
Lucimar riu e, do seu jeito meio acanhado, aquiesceu. Continuei provocando-a: Suruba, mesmo?
Ela riu da palavra que usei e disse-me que sim, j que Tamara gostava de chamar muitos homens e
transar com eles: aqui, minha filha, so as mulheres casadas que mais aprontam. As solteiras so
todas comportadas. Quem mais apronta so as casadas e separadas. Precisa ver, tem cada histria
aqui. Tem muito gay que se faz de macho, mas que gosta de pegar homem.
233
Quando chegamos na casa de Amelinha, Lucimar foi correndo contar a fofoca do momento,
sobre a tentativa de discriminao de Lucrcia, acusada de profissional do sexo. Iazinha ficou
enfurecida e passou a discursar sobre as inmeras meninas que viviam ali na vila, se vendiam no
posto de cima para os caminhoneiros, ningum dizia nada e todo mundo fazia que no via. Ato
contnuo, saiu para o Conselho e quando chegou foi logo questionando, aos berros, sobre a
discriminao de Lucrcia, repetindo que havia muitas prostitutas ali e que ningum reclamava.
Nesse meio tempo Rodrigo, filho de Lucrcia, estava aos berros na entrada do Conselho, dizendo
que ia processar as pessoas que tinham discriminado a sua me (DC 27.03.05).
234
Amelinha:
A gente enfrentar uma eleio do jeito que foi, eu acho que foi um grande passo que a
gente deu. A gente est com o poder, no com um poder de mandar, mas a gente est com um
poder de ser respeitada, de servir comunidade. Eu acho que isso marcou a comunidade, mesmo
esses 70 votos que a gente teve, foram votos realmente conscientes, porque se voc for avaliar o
nmero de pessoas, de familiares, dessa turma que est a governando agora, quase o nmero
dos eleitores deles. E ns, qual a famlia maior que temos? O nmero maior que tem? Sou eu. O
restante uma s pessoa. Ento se a gente for avaliar esses 70 votos, a gente tirando Maria das
Graas, Iazinha, Teresa, Lucimar e Adelaide... Porque nas outras, eu no confio. At na dona
Celina, eu no confio, porque do jeito que ela est fazendo, eu tenho impresso que ela no votou
na gente. Ento, voc v essas companheiras, elas so sozinhas e a gente teve 70 votos!
Politicamente a gente no ganhou, mas a gente ganhou por outro lado, porque teve esses 70, que
esto a nosso favor. O pessoal da outra chapa, Tamara, por exemplo, quantas pessoas tinham na
casa dela? Quatro pessoas! Quatro pessoas dentro da casa dela, ainda mais o cunhado, o irmo do
cunhado, a irm, a mulher do cunhado, a sobrinha... quer dizer, uma famlia!
Alinne Tu queres dizer que famlia grande ajuda a ganhar a eleio?
235
Amelinha Ajuda ganhar a eleio. Mas no mesmo, me diga se eu estou errada? J a Pamela
tem ela, o marido, a me Piedade que eu tambm acredito que no votou na gente. Piedade estava
para olhar, para bisbilhotar. Ela no votou na gente. Tem a sogra da menina... Cada um com
cinco, seis, sete, oito. Quer dizer, a chapa tem onze e todas as onze tm famlias grandes. E ns
com onze, dos onze... Maria Cristina sozinha, Iazinha sozinha, Teresa sozinha, Lucimar sozinha,
Adelaide sozinha, entendeu? Se a gente for avaliar isso na ponta do lpis... (DC 310505).
Passamos pela frente da casa de Teresa e Amelinha, apontando para a sua direo,
comentou: Teresa ficava muito amedrontada de assumir o Conselho porque ela sozinha, s ela e
a filha, sem marido, e temia que fizessem alguma coisa contra elas. Espantada com o seu
comentrio, provoquei-lhe: tu achas que ter marido importante para se estar frente do Conselho,
d alguma garantia? Ela me olhou, pensou e redargiu: se bem que no adianta muita coisa, no
viste o que aconteceu comigo? Eu com marido e filhos dentro de casa, quase mataram Ronaldo?
Mas elas so muito sozinhas e ter marido sempre d mais segurana, tem algum que proteja...
(DC 31.03.05)
por Carsten (2000), surge como uma opo interpretativa para se compreender o lao que
une essas mulheres atravs do compartilhamento de uma trajetria poltica comum. Lao
constitudo historicamente, profundo, duradouro e ao mesmo tempo dinmico, que
desafiado pelas ingerncias das disputas polticas extra-locais e revelado pelo evento da
eleio pelo Conselho.
As infindveis fofocas que se seguiram aps a perda da eleio, a constante
avaliao dos motivos da perda, as recorrentes disputas por lugares nos espaos polticos e
pelos apoios, o acirramento das cises levam-me a apontar que a poltica se configura no
elemento que constitui o lao profundo e duradouro com fora de parentesco entre esse
grupo de mulheres. Contudo, antes h que se fazer uma ressalva sobre o uso que fao da
noo de conexo.
A proposta de Carsten (2000) de se utilizar o conceito de conexo (relatedness) em
oposio ou ao lado de parentesco (kinship), de modo a marcar uma abertura para idiomas
nativos de se estar conectado, implica num deslocamento dos aspectos formais, para os
sentidos atribudos ao que significa estar-se conectado. O que permite, segundo a autora,
uma viso mais ampla e imaginativa do que deve ser includo sob a rubrica do parentesco.
Essa reviso do campo de estudos de parentesco tributria da crtica de Schneider sobre o
carter naturalizado e de base biolgica, tomados como universais, dos estudos de
parentesco tradicionais, o que o autor atribui a uma etnoepistemologia da cultura
europia (Scnheider, 1984, 175 apud Franklin e Mckinnon, 2001:02).
Atravs da noo de conexo h uma mudana nas compreenses convencionais
sobre o parentesco; uma mudana de enfoque para a agncia, para as relaes de poder e
para a produo de significados em ao. O peso recai sobre a qualidade dinmica da
relatedness, nos processos contnuos de se tornar conectado a outras pessoas. Um bom
exemplo desse novo enfoque sob a rubrica da relatedness pode ser identificado nos novos
estudos de parentesco gays e lsbicos nos Estados Unidos. Nesses estudos, como
exemplifica Carsten, os laos de sangue so descritos como temporrios e incertos luz das
rupturas experienciadas por gays que se declararam homossexuais s suas famlias. Ao lado
dessa incerteza, as famlias escolhidas (chosen families), representadas pelos amigos, so
investidas de certeza, profundidade e permanncia. Essas so, portanto, referidas no idioma
do parentesco por aqueles cujas experincias de parentela biolgica foi completamente
disruptiva (Carsten, 2000:12).
237
238
indcio para se refletir sobre como a poltica se constitui em um elo entre as mulheres e
como a disputa de poder se imiscuiu como um elemento potencialmente disruptivo das
conexes entre elas. Vejamos a viso de Iazinha sobre esse problema:
Perguntei Iazinha sobre as eleies do Sindicato das Domsticas. Disse-lhe que a ouvira
comentar que queria concorrer diretoria do Sindicato. Ela confirmou e passou a me explicar:
Trabalho num prdio onde tem 30 apartamentos e converso muito com as domsticas que
trabalham ali. Vou fazer uma campanha para que elas se filiem e depois disso, vou colocar uma
chapa. Celina no trabalha muito pelo Sindicato, ela est mais interessada no movimento negro e
na escola de samba. Ns vamos colocar uma chapa para tirar Celina. Ela no votou na gente na
eleio do Conselho; foi votar bem cedo e, quando saiu da votao, recomendou vizinha que
votasse na chapa 2. Ela est descontente com a chapa e com a gente. Celina e Dulce, a presidente
de honra do sindicato, no gostam de Amelinha porque elas acham que desde que a gente se
juntou a ela, ns abandonamos a luta no Sindicato (DC 01.05.05).
Por mais que Iazinha critique a postura de Celina em relao ao Sindicato das
domsticas e atribua a sua falta de apoio sua proximidade com Amelinha, parece-me
haver aqui um importante n de sentido que liga os nexos entre a idia mulher sozinha e
famlia pequena no ganham eleio, a ciso no Sindicato das Domsticas - a disputa de
poder extra-local disputa local.
Como podemos perceber, a biografia de Amelinha e Celina esto entrecruzadas pelo
pertencimento, na juventude de ambas, a aes da igreja catlica, que redundou na relao
de compadrio entre Amelinha e o nico filho de Celina. O que parece ser um atenuante
explicao de Iazinha acerca da sua proximidade com Amelinha. H ainda um outro
elemento. Iazinha, Lucimar e Teresa explicam o seu afastamento do Sindicato das
Domsticas em funo de dissidncias internas relativas forma de relacionamento do
grupo dirigente com o poder. Essas cises que tiveram lugar no campo poltico extra-local,
mas que tem uma forte ingerncia na Vila, em funo da sua prpria origem, como
demanda do Sindicato por habitao popular, acabam por corroborar a hiptese de que o
que est em questo a natureza mesma da conexo que liga essas mulheres que tiveram
trajetria poltica em comum. A disputa de poder entra em cena para desafiar os laos que
as unem atravs do compartilhamento da luta poltica originria da Vila.
A demonstrao pblica do apoio de Celina, que ocupa um lugar de importncia no
campo poltico extra-local, pode ser interpretado como uma forma de afirmar um
240
descontentamento com a aliana das suas companheiras de luta, aparentadas pelos laos
da poltica, com uma pessoa como Amelinha, que no compartilhou, nos mesmos termos e
com a mesma garra, da luta pela construo da Vila, que no passou pelas mesmas
avaliaes morais por que passaram por serem mulheres sozinhas e peniqueiras. Nesse jogo
do estar-se conectado, Amelinha representa o elemento disruptivo do elo que as conecta,
sobretudo se levarmos em conta os signos de distino que procura demarcar em relao
rede de sociabilidades da Vila.
E somente quando percebemos essas nuances, subjacentes ao processo de disputa
eleitoral pelo Conselho de moradores da Vila, metfora das disputas de poder mais amplas
e exemplar da tentativa de reproduo da mesma estrutura de distribuio desigual de
prestgio do campo poltico feminista mais amplo pelo quais essas agentes circulam, que a
noo de conexo pautada pela poltica torna-se mais evidente. S a podemos perceber que
mulher sozinha e famlia pequena no ganham eleio quer antes e simplesmente dizer que
sem os laos profundos, duradouros e permanentes da conexo no se vai muito longe. ,
portanto, nesse palco micro-poltico, atravessado pelas disputas de poder, que se pode
perceber como o cotidiano est sobejamente marcado pelos cdigos que regem o campo
poltico mais amplo, que a macro-poltica se manifesta e reproduz.
Assim, a abertura a novas possibilidades analticas do ativismo feminino popular,
que transcende gramtica restrita da matriz explicativa da maternidade militante,
inserido num contexto poltico de grande efervescncia feminista, possibilitou a
compreenso desse outro fenmeno que integra de forma muito peculiar a poltica vida
cotidiana, reforando a inseparabilidade entre as dimenses da experincia total de vida e
apontando para a hiper-politizao do cotidiano, como tambm demonstra a posio de
Dona Vicentina que abre esse captulo.
241
NOTAS CONCLUSIVAS
Dentre as suas seis propostas para o prximo milnio, Calvino sugere a leveza como
um valor a seguir seguido na escrita literria. Mas o escritor empresta leveza uma
interpretao muito peculiar, associando-a com uma mudana de perspectiva, novas
possibilidades criativas de se obter conhecimento. Para a Antropologia, a mudana de
perspectiva j parte inerente do seu projeto epistemolgico. No entanto, no custa
relembrar que alm dessa mudana de perspectiva, h inmeras outras. A presente tese
investiu em pelo menos outras duas: a adoo de um ponto de vista antropolgico feminista
e uma outra sobre o prprio tema do ativismo feminino popular.
Quanto ao ativismo feminino popular, a tarefa que me impus ao longo desta tese foi
a de compreender as suas diferentes facetas contemporneas, explicitando o que me parece
ser uma novidade frente s explicaes tradicionais sobre esse fenmeno, que o associavam
politizao da maternidade. Para tanto, empreendi uma etnografia no lugar que
atualmente me parece ser altamente rico para compreender o ativismo feminino, nas suas
diferentes manifestaes, como a cidade de Recife frente sua intensa efervescncia
poltica feminista. Para chegar experincia das ativistas oriundas das camadas urbanas de
baixa renda, fez-se necessrio compreender como o prprio campo poltico feminista local
se constitui, as suas estruturas de prestgio e privilgio, e se agencia, as suas tramas
polticas e o seu capital de articulao poltica, e como essas mulheres nele se inserem e
agem, num intrincado jogo entre reproduo de modelos e introduo de novidades. Em
comum a todas essas diversidades de ativismo est a coragem, como o atributo que dota de
sentido de gnero e de poder essa prtica poltica.
Essa mirada sobre o campo poltica feminista local permitiu-me tambm perceber
alguns elementos do campo feminista contemporneo e a formao da matriz do
pensamento feminista brasileiro. A nfase bem-sucedida na bandeira de luta contra a
violncia que acomete as mulheres, verificada na sua pervasividade na sociedade de forma
243
Mas no joguemos o bbe fora junto com a gua do banho. Por um lado, conferimos
ao gnero a sua crucialidade dentro do campo. Gnero uma categoria fundamental para a
Antropologia Feminista tal como a entendemos aqui e eixo importante da noo de
diferena com que trabalha, lado a lado do escrutnio das relaes de poder inerentemente
incrustadas na constituio do social e dos sistemas de desigualdades. Por outro lado, este
comprometimento poltico no nos pode cegar para as especificidades locais, para os
processos contextuais de negociao de sentidos; da a importncia da vigilncia
epistemolgica em relao ao uso do mtodo etnogrfico para o questionamento e
escrutnio dos conceitos to caros Antropologia. Feitas as devidas ponderaes,
assumamos, a partir de ento, este adjetivo e este lugar dentro do campo da Antropologia e
da Teoria Feminista, para que, parafraseando Gregori (1999: 235), a Antropologia merea
tambm ser chamada de Feminista sem reservas. Espero, assim, que essa tese venha a
contribuir, por um lado, para a ampliao desse campo no Brasil e, por outro, na renovao
dos estudos sobre os ativismos femininos em geral, e nos populares em especial, numa
mudana de perspectiva, rumo leveza sugerida por Calvino.
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