Co-Construindo Pontes Entre A Gestalt-Terapia

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CO-CONSTRUINDO PONTES ENTRE A GESTALT-TERAPIA E AS TERAPIAS

SISTMICAS CONSTRUTIVISTAS CONSTRUCIONISTAS SOCIAIS:


SUBJETIVIDADE E INTERSUBJETIVIDADE EM QUESTO.
Miriam May Philippi
Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de Braslia como
requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre em Psicologia.
RESUMO

Este trabalho estabelece um dilogo entre a Gestalt-Terapia e as Terapias


Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais (Grandesso,2000). O foco desse
dilogo so os conceitos de subjetividade, intersubjetividade. Percebemos que estas
abordagens trabalham com o ser em relao, saindo de uma perspectiva mais individual
para uma perspectiva de ser-no-mundo. Discutimos como os paradigmas emergentes
nas cincias tambm se fazem presentes nessas perspectivas e o papel da crtica
fenomenolgica cincia neste processo. Construmos relaes tericas mantendo as
diferenas e apontamos onde estas abordagens podem trocar experincias: realizando
um processo que seja uma co-constituio, co-construo de todas as pessoas
envolvidas; fazendo uma psicoterapia em movimento, do vir a ser, da imprevisibilidade;
resgatando a experincia, a compreenso, as mossas possibilidades de trabalharmos com
os mltiplos significados e sentidos. Percebemos a necessidade de estarmos sempre coconstruindo psicoterapias para acompanhar o vivido e as nossas possibilidades de
teorizar sobre ele.

Palavras-chave: Gestalt-Terapia, Fenomenologia Psicoterapia Sistmica, Coconstrutivismo, Construcionismo Social, Subjetividade, Intersubjetividade.

Captulo 1
Concepo de Sujeito e Subjetividade

Nos mesmos rios entramos e no entramos, somos e no somos.


(Cf. 49a, Herclito, Alegorias, 24, em Coleo Os Pensadores PrSocrticos, 1999, p. 92)

No compreendem como o divergente consigo mesmo concorda;


harmonia de tenses contrrias, como o arco e a lira. (Fragmentos de
Herclito, 51, Hiplito, Refutao, IX, 9, em Coleo Os Pensadores Pr
Socrticos, 1999, p. 93)

s importante para ti, porque a ti que te sentes,


s tudo para ti, porque para ti s o universo,
E o prprio universo e os outros
Satlite da tua subjetividade objetiva.
s importante para ti porque s tu s importante para ti,
E se s assim, mito, no sero os outros assim?
(Fernando Pessoa, 1986, p. 357).

No h ao, por pequena que seja e quanto mais importante


isso certo , que no fira outra alma, que no magoe algum,
que contenha elementos de que se tivermos corao, nos no
tenhamos que arrepender. (Fernando Pessoa, 1986, p. 52)

Vivemos em um constante processo de alterao figura-fundo. Herclito j descrevia


este fenmeno cerca de 400 anos antes de Cristo. O sistema de trocas entre os povos foi
se intensificando e atingindo possibilidades jamais imaginadas. Como nossas
experincias mudam, mudam tambm nossas articulaes sobre o ser humano e sobre o
processo de conhecer. Hoje, todo esse processo parece mais claro que nunca.
H muito, o homem vem articulando o seu saber atravs dos mitos, da religio,
da filosofia e da cincia. Estas so formas de expresso do fato de sermos seres de
compreenso, procurando dar sentido nossa experincia. A procura dessa
compreenso antiga e respostas diferentes tm surgido com o tempo. E, como
veremos, os conceitos de sujeito e subjetividade tambm foram e continuam sendo
modificados com o tempo. Mas diante de questes como de que forma tais conceitos
foram se alterando e de que maneira foram recebendo significados, cabe-nos,
primeiramente, perguntar: de que sujeito e de que subjetividade estamos falando?
Os termos sujeito e subjetividade foram cunhados na modernidade para falar de
um eu onde o pensar era privilegiado, e hoje os usamos mais em oposio

objetividade. Heidegger, para sair dessa ambigidade, optou por falar do ser, suas
grandes questes j envolviam o questionamento da metafsica. Metafsica ao tempo em
que criou e glorificou o sujeito como ser pensante, tambm o colocou como a grande
fonte de erros.
As abordagens que dialogam neste trabalho desenvolveram-se tambm pelo
questionamento dos modelos da cincia moderna, que afastou o sujeito observador do
seu objeto de observao. E por caminhos um pouco diferentes, como veremos nos
prximos captulos, procuram reconectar aqueles que conhecem com o que conhecem.
Procurar conhecer aquele que conhece, e continuar fazendo cincia incluindo aquele que
conhece, um dos temas centrais das duas abordagens utilizadas: Gestalt-Terapia e
Teorias Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais.
Como pretendemos ter como elo o conceito de subjetividade no dilogo entre as
duas abordagens, consideramos importante refazer um pouco o caminho de como foram
sendo construdos os conceitos-objetos do presente captulo, para contextualizar as
questes levantadas sobre o tema. Assim como o que tem sido discutido na
contemporaneidade, para podermos comear a refletir como estas novas experincias
que estamos vivendo esto marcando a nossa relao no mundo.
Vivemos em um mundo que ficou mais amplo, e hoje o corao v muito
mais coisas de forma on line, o que provavelmente modifica o nosso modo de sentir.
Com tantas informaes, parece que a questo do sentido ficou ainda mais mutvel e
tais experincias esto chegando ao contexto psicoteraputico, enquanto questes
antigas permanecem, como a fome, por exemplo.
Ento, contextualizaremos um pouco a histria da concepo de sujeito, o que
tem se chamado de crise da subjetividade privatizada, e as discusses sobre a
subjetividade no que se tem chamado de ps-modernidade.
Muito se tem falado de subjetividade. A maioria dos textos parte para falar de
subjetividade como se j estivesse claro para o leitor o seu significado. No entanto, na
prpria histria do pensamento ocidental, a concepo de subjetividade foi adquirindo
significados diferentes. Por isso, para compreender o conceito de subjetividade temos
que compreender como se deu a construo do que hoje entendemos por subjetividade,
ou subjetividades, j que no h uma nica forma de descrev-la.
A concepo de sujeito e a chamada crise de identidade s podem ser
compreendidas dentro de um processo mais amplo de mudanas, que questiona alguns
alicerces da sociedade moderna e abala os quadros de referncias que davam aos

indivduos uma ancoragem estvel no mundo social. Pois, como observa Mercer (1990,
em Hall, 1992/2002, p. 9), a identidade somente se torna uma questo quando est em
crise, quando algo que se supe como fixo, coerente e estvel deslocado pela
experincia da dvida e da incerteza. Tanto que o prprio conceito de identidade por
ser to complexo tambm no encontra na Sociologia uma clara compreenso.
Podemos ver que as conceitualizaes sobre o sujeito foram mudando e,
portanto, tm uma histria. E assim como podemos perceber de que forma nasceu este
conceito, tambm poderemos contemplar a sua morte. Para tornar mais didtica a
exposio, usaremos as trs concepes muito diferentes de identidade usadas por Stuart
Hall (1992/2002) para expor estas mudanas: sujeito do Iluminismo, sujeito sociolgico
e sujeito ps-moderno.

1.1 A inveno do sujeito no Iluminismo e sua crise

A partir do sculo XIX, muitos historiadores tm reconhecido as profundas mudanas


que ocorreram na ideao humana ao longo da evoluo. Ainda que possa parecer
estranho, o modo atual de entendermos nossa experincia como indivduos autnomos
no natural, e sim parte de um movimento de transformaes pelas quais o homem
tem passado. De qualquer modo, passaremos rapidamente por essa histria, recortando
os principais pontos que, posteriormente, poderemos conectar a alguns aspectos da
Gestalt-Terapia e das Abordagens Sistmicas Construcionistas Sociais.
Parece-nos que as mudanas no processo de ideao humana ocorreram
principalmente em algum ponto do sculo sexto a.C. Nesse sculo, ocorreu a superao
das crenas primitivas, dos mitos e surgiram dois novos caminhos de conceitualizao:
a religio organizada e a filosofia racional. Nos dois sculos seguintes, foram fundadas
vrias religies, no ocidente e no oriente, e os primeiros filsofos gregos comearam a
se concentrar no poder do intelecto e da razo. Vemos questionamentos polares nesse
perodo, como o de Herclito (540-475 a.C.), que tal como Buda (563?-483 a.C.) e
Confcio (551?-479 a.C.), pregava que a aparente estabilidade do mundo era uma iluso
e que tudo estava em constante mudana, tudo era um vir-a-ser. J Parmnides (539-469
a.C.) e outros filsofos do mesmo perodo acreditavam que nada mudava.

Foi com Tales (640-546 a.C.) e com outros dos chamados filsofos prsocrticos que se deu, de forma mais clara, a aplicao da razo natural aos mistrios
previamente considerados sobrenaturais. Tales introduziu a filosofia da natureza, na
qual a gua era considerada o princpio ou a causa material de todas as coisas, um
princpio elementar, emprico e palpvel. Com Pitgoras (570-500 a.C.), Scrates (469399 a.C.), Plato (427-347 a.C.) e Aristteles (384-322 a.C.), passaram a ser delineados
os contornos de todas as reflexes que tanto libertaram quanto emperraram as mentes
pesquisadoras pelos quase 25 sculos subseqentes. Temos aqui, ento, uma mudana
em direo razo e um distanciamento em relao ao corpo (Mahoney, 1991/1998).
Protgoras (480-411 a.C.) foi outro filsofo que tambm marcou o pensamento
ocidental e que props um humanismo baseado em um subjetivismo e em um certo
relativismo. O seu pensamento pode ser sintetizado pela mxima: o homem a medida
de todas as coisas, das coisas que so enquanto so e das coisas que no so enquanto
no so. Neste fragmento, Protgoras sintetizou duas idias centrais dos sofistas: o
humanismo e o relativismo (Marcondes, 1997/2002). Assim, pretendia negar a
existncia de um critrio absoluto de discriminao, sendo o nico critrio o prprio
homem. As coisas so tais quais elas parecem ser a minha verdade individual ou a sua.
Mais tarde, na Idade Mdia, os pensamentos desses principais filsofos foram
revisitados por Santo Agostinho (354-430) e por So Toms de Aquino (1225-1274).
Naquela poca, ficaram pequenas as distncias entre Filosofia e Teologia, pois
acima das verdades da razo estavam as verdades da f. Santo Agostinho afirmava que
na filosofia anterior a Cristo havia um erro fundamental: o de celebrar o poder da razo
como o maior poder do homem, pois j que a razo era incerta, ento o homem s
poderia sab-la depois que a revelao divina viesse ilumin-lo. Na mesma linha, So
Toms de Aquino, valorizava a razo, mas afirmava que s poderamos usufruir dessas
faculdades quando estivssemos sendo iluminados pela graa divina. Desse modo, a
epistemologia medieval procurou atender aos padres de racionalidade assim como os
teolgicos.
Alm das mudanas no processo de ideao humana, a questo da subjetividade
pode ser melhor percebida por meio das interessantes descries sobre o modo de vida
medieval. Segundo Philippe Aris e Georges Duby em A Histria da Vida Privada (em
Mahoney, 1998), o surgimento da vida privada foi lento. Os autores revelam que nas
residncias feudais, entre os sculos 11 e 13, no havia a possibilidade de isolamento.
Somente por volta do sculo 12 que comearam a aparecer expresses dos primeiros

desejos de autonomia e, ao mesmo tempo, as interpretaes das sagradas escrituras


comearam a enfatizar a autotransformao em detrimento das expresses rotinizadas
dos rituais de prece.
A emergncia das noes de individualidade passam a ser percebidas a partir do
colapso do sistema medieval, pois no movimento contra o feudalismo que foi
conferida uma outra nfase existncia pessoal. nfase reforada pelo Protestantismo,
que colocou a possibilidade da relao direta e individual com Deus. E foi na passagem
do Renascimento para a Idade Moderna que a noo de subjetividade privatizada foi se
consumando. Isto no significa que nos tempos pr-modernos as pessoas no eram
indivduos, mas a individualidade era vivida de forma diferente. Os indivduos no
estavam sujeitos a mudanas fundamentais, j que estes acreditavam que as coisas eram
divinamente estabelecidas. Provavelmente, o homem sentia-se parte de uma ordem
superior que o amparava e o constrangia ao mesmo tempo.
Com o incremento do sistema mercantil e com as trocas mais intensas entre as
comunidades, que deixam de ser to auto-suficientes, os indivduos passaram a entrar
em contato com o diferente, surgindo a necessidade de falar sobre as suas prprias
experincias (Figueiredo, 1994). Isto exigiu, ainda, que cada comunidade encontrasse a
sua prpria especialidade, nela se aperfeioasse e com ela se identificasse. O fomento
do mercado e da competio pelo lucro instigaram as pessoas, que passaram a defender
seus prprios interesses em detrimento dos da sociedade. Tal situao ainda perdura em
nossa sociedade mercantil.
No perodo pr-capitalista, a produo era sempre social, pois cada um dependia
de sua vinculao com o grupo. Alm desta relao, havia outra entre senhor e servos
ou escravos, que tambm recebiam proteo, apesar dos ltimos serem explorados. J
com o aparecimento do trabalho livre, tudo se modificou. A prpria liberdade recebida
era ambgua, dado que, ao ganh-la, o homem perdia a proteo de seu grupo e seu
destino passava a depender exclusivamente dele, pelo menos teoricamente. O homem
passou a poder lutar por uma condio melhor de vida, pois a sociedade tornou-se
menos estratificada, porm ficou mais vulnervel misria.
Por tudo isso, as transformaes associadas modernidade libertaram o
indivduo de seus apoios estveis. Experincias de perda de referncias j eram descritas
no perodo do Renascimento, pois o indivduo teve que lidar com a falncia do mundo
medieval decorrente da abertura dos mercados. Mais que isso, o indivduo teve que lidar

com a sua liberdade e nesse contexto que o homem passou a ser pensado como centro
do mundo.
Interessante constatar que no desapareceu a crena em Deus como criador da
ordem do mundo, mas passou a caber ao homem o controle e o conhecimento desse
mundo. Um novo mundo, que deixou de ser visto como sagrado e passou a ser visto
mais como um objeto de uso a servio do homem. E essa grande valorizao e
confiana no homem fizeram nascer o humanismo moderno.
O nascimento do homem indivduo soberano, entre o Humanismo
Renascentista do sculo 16 e o Iluminismo do sculo 18, representou uma ruptura
importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o
sistema social da modernidade em movimento (Hall, 1992/2002, p. 25). A Reforma e
o Protestantismo, com Martinho Lutero (1486-1546), foram movimentos importantes
para a emergncia da nova concepo, medida que libertaram a conscincia individual
das instituies religiosas e a expuseram diretamente aos olhos de Deus. O Humanismo
Renascentista colocou o homem no centro do universo e as revolues cientficas
conferiram ao homem a capacidade para investigar os mistrios da natureza. O
Iluminismo, centrado na imagem do homem racional, cientfico, libertou-o do dogma e
da intolerncia.
Para a interioridade das pessoas, principalmente as leitoras, muito contribuiu a
literatura do sculo 16, em que surgiram diversas figuras ou personagens, reais ou
fictcios (como Leonardo da Vinci, Dom Quixote, Hamlet, por exemplo), donos de um
mundo interno rico e profundo (Figueiredo, 1994; Figueiredo e Santi, 2002). E com o
nascimento da imprensa, originou-se a leitura silenciosa. O trabalho e a experincia
religiosa passaram a ser atividades mais individuais, pois as pessoas puderam ter acesso
a textos sagrados sem a intermediao dos sacerdotes.
Tambm na obra de Michel de Montaigne (1533-1592) vemos a valorizao da
interioridade, pois o seu prprio eu passa a ser assunto de sua obra. Com ele, temos o
surgimento da valorizao de cada indivduo e a construo da individualidade nica.
Mas Montaigne simultaneamente denunciou a grande iluso do homem de querer
conhecer e dominar toda a natureza. Nesse perodo, comeamos a ver o renascimento do
ceticismo grego, que considerava impossvel que pudssemos ter um conhecimento
seguro sobre o mundo. E como vimos, em sua poca, Protgoras j afirmava que o
homem era a medida de todas as coisas.

Tal descrena e individualismo que estava nascendo foram o bero de duas


reaes distintas: o racionalismo e o empirismo. Ambas queriam estabelecer bases mais
seguras para as crenas e para as aes humanas, onde uma nica ordem reinasse. Mas
essa nova ordem agora deveria incluir a nova crena na liberdade. A questo era como
articular a crena em um Deus onipotente e o livre-arbtrio humano. Foi o humanista
Pico Della Mirandola (1463-1494) que chegou concepo de liberdade como um
grande e exclusivo dom que Deus teria dado ao homem. E o homem que fizesse bom
uso desta liberdade seria recompensado, colocando assim a imposio de dirigir esta
liberdade com muita disciplina. Mais uma vez o sujeito deveria se submeter a uma
ordem superior, desvalorizando os seus desejos, controlando as necessidades do corpo.
Nesse perodo, nasceram a individualidade e as formas de controle sobre ela.
O racionalismo tem como seu principal marco Ren Descartes (1596-1650), que
foi atingido pela profunda dvida que se seguiu ao deslocamento de Deus como centro
do universo. Descartes queria estabelecer as condies para a obteno de um
conhecimento seguro da verdade, queria superar o ceticismo. Utilizou-se da dvida
metdica, onde as idias erradas eram descartadas. Descartes foi ao extremo da dvida e
ento percebeu que tudo que tomava como objeto de seu pensamento parecia incerto,
mas no momento mesmo em que duvidava, algo se mostrava como uma idia
indubitvel; conclua que enquanto duvidava, existia ao menos a ao de duvidar, ao
essa que requeria um sujeito. Neste contexto, nasceu a frase penso, logo existo. Todo
esse movimento de duvidar trouxe tona o ser que pensava (e duvidava). Esta passou a
ser a nica certeza, pois ainda no sabia se os outros existiam. Descartes concluiu que
existia um eu e ele passou a ser o fundamento de todo o conhecimento (Figueiredo e
Santi, 2002). Podemos perceber que sujeito moderno nasceu no meio da dvida e do
ceticismo metafsico e isto nos alerta para o fato de que talvez o sujeito nunca tenha sido
estabelecido e unificado como muitas vezes o descrevemos (Hall, 1992/2002).
Com Descartes, o homem moderno no buscava a verdade num Alm, em algo
transcendente, a verdade significava estabelecer uma representao correta do mundo.
Essa representao interna, ou seja, a verdade reside no homem, d-se para ele.
O sujeito do conhecimento (o eu) tornado agora um elemento transcendente,
fora do mundo, pura representao sem desejo ou corpo, e por isto
supostamente capaz de produzir um conhecimento objetivo do mundo.
(Figueiredo & Santi, 2002, p. 31)

Por tal razo, o moderno caracterizado pela ideologia da representao, que


se apia nos seguintes mitos: o do conhecimento vlido como representao correta e
confivel do mundo, o dos objetos como constituinte deste mundo, o da realidade
independente do observador e o da verdade como critrio decisrio. Essa tradio divide
sujeito e objeto, tendo o primeiro uma posio privilegiada de acesso realidade como
contexto de validao de todo o conhecimento (Ibaez, 1992, em Grandesso, 2000;
Figueiredo, 1995).
Assim como o racionalismo identificado pela figura de Descartes, o moderno
empirismo pode ser representado por Francis Bacon (1561-1626) e por John Locke
(1632-1704). Bacon considerado o fundador do moderno empirismo e tambm
procurava estabelecer bases seguras para o conhecimento. Mas, para ele, era necessrio
dar razo uma base nas experincias dos sentidos, na percepo purificada pelos erros
e iluses do cotidiano. A grande contribuio dele em relao identidade foi que esta
permaneceria a mesma e que seria contnua com seu sujeito.
O perodo de Bacon representou uma drstica mudana de volta s sensaes e
em direo a uma expanso do engajamento do homem com o mundo, principalmente
em 1543, quando Coprnico publicou o seu modelo de sistema solar. A partir da, o
firmamento nunca se viu mais to firme, pois soubemos que estvamos em
movimento. Alm disso, em 1687, Isaac Newton (1642-1727) publicou suas leis do
movimento e da gravidade. O universo de Newton trabalhava como um relgio e a
Filosofia que dava sustentao cincia era um hbrido de neo-racionalidade combinada
observao e experimentao sistemtica.
Todo esse objetivismo racionalista, que s recentemente comeou a erodir-se,
presumia a existncia de uma realidade estvel e nica independente da percepo;
primava a razo explcita e a matemtica, para conduzir o conhecimento vlido;
distinguia precisamente sujeito e objeto, com nfase na determinao de um
conhecimento independente do sujeito conhecedor; diferenciava cuidadosamente os
fenmenos fsicos dos no-fsicos. Esse modelo de cincia trouxe grandes discusses
para a Psicologia, medida que foi sendo adotado para defini-la como cincia, apesar de
ter sido abandonado pelas cincias fsicas e biolgicas (Mahoney 1991/1998). Mas estes
modelos representacionais tm sido reavaliados no somente em Psicologia como
igualmente nas Cincias Sociais.
Auguste Comte (1798-1857) foi um filosofo francs que fundou o que
conhecemos por positivismo. Comte introduziu a Sociologia como cincia positiva e

props que ela deveria seguir o exemplo das outras cincias e transformar-se em fsica
social, onde o sujeito faria tbula rasa de seus juzos e valores, para deixar as coisas
falarem. Assim, o positivismo refere-se a um sistema baseado exclusivamente em fatos
objetivamente observados e indiscutveis. Tudo que fosse especulativo, inferencial ou
metafsico era rejeitado como ilusrio. O procedimento positivista das Cincias Naturais
mostrou-se inicialmente frtil para as cincias do homem.
Neste ponto, podemos perceber, ento, que a idia de homem indivduo
soberano est em cada uma das prticas centrais que fizeram o homem moderno, o
sujeito da modernidade, aquele que era a origem ou sujeito da razo, do
conhecimento ou da prtica e aquele que estava sujeitado a elas. Hall (1992/2002)
sintetiza essa concepo como sujeito do Iluminismo, pois se baseia na concepo de
pessoa humana como um indivduo totalmente centrado, unificado, dotado das
capacidades de razo, de conscincia e de ao, cujo centro consiste num ncleo
interior, que emerge pela primeira vez quando o sujeito nasce e com ele se desenvolvia,
ainda que este permanea essencialmente o mesmo.
Esse racionalismo das luzes era humanista ao respeitar e cultuar o homem, ser
livre e racional. Neste contexto, que comeam a ser fomentadas as lutas pela
emancipao dos escravos e oprimidos e da igualdade do direito dos cidados. Ao
mesmo tempo este homem no pode ser livre, pois tem que obedecer aparente
racionalidade do Estado, da burocracia e da indstria. E com o tempo o trabalhador
deixou de ser pessoa para se tornar fora fsica de trabalho. E esta razo enlouquecida
passa a se tornar uma das fontes do totalitarismo moderno (Morin, 1990/2000).

1.1.1 A crise da modernidade, do sujeito e da subjetividade


Com o decorrer do tempo, as sociedades foram se tornando mais complexas e
adquiriram uma forma mais coletiva e social. E as teorias clssicas liberais de governos
tiveram que passar a dar conta das estruturas de Estados-nao e de grandes massas que
fizeram e fazem a democracia moderna. Comearam a surgir as grandes formaes de
classe do capitalismo moderno. O cidado individual tornou-se vinculado s mquinas
burocrticas e administrativas do Estado moderno. E dois importantes eventos
contriburam para articular um conjunto mais amplo de fundamentos conceptuais para o
sujeito moderno: a biologia darwiniana e o surgimento das Cincias Sociais. Dessa

forma, o sujeito humano foi biologizado a razo tinha uma base na natureza e a
mente um fundamento no desenvolvimento do crebro humano. Por sua vez, as
transformaes provocadas pelo advento das Cincias Sociais desencadearem aes
diversas: o homem indivduo soberano permaneceu como figura central nos discursos
de economia e da lei moderna, e em funo do dualismo cartesiano estabeleceu-se a
diviso entre as Cincias Sociais e as outras cincias, como a Psicologia.
Mas, como bem vimos anteriormente, a crena de que o homem poderia atingir a
verdade absoluta e indubitvel, desde que seguisse o mtodo correto, passou a ser
abalada j no sculo XVIII pelo prprio Iluminismo. As grandes conquistas do
racionalismo foram articuladas com as das experincias individuais. Comeou-se a
colocar em xeque a soberania do eu, tanto o da razo como o dos sentidos purificados.
Assim, filsofos como Locke (1632-1704) e Berkeley (1685-1753) discutiram a
natureza subjetiva da percepo, afirmando que nem sempre h ou freqente haver
uma correspondncia exata entre a natureza de um objeto e a percepo que uma pessoa
tem dele. David Hume (1711-1776) tambm negou que o eu fosse algo estvel, que
permanecesse idntico a si mesmo ao longo da diversidade de suas experincias, posto
que seria muito mais efeito de suas experincias do que senhor delas. E por tais
motivos, principalmente pelo fato de o eu ser algo que se forma e se transforma, este
referente no poderia mais ser a base de sustentao dos conhecimentos.
Outro filsofo que abalou as proposies modernas foi Immanuel Kant (17241804), apesar de no ter sido to radical quanto Hume. Kant tambm aceitou a
problematizao da crena em conhecimentos absolutos. Em A Crtica da Razo Pura,
afirmou que o homem s tem acesso s coisas tais como se apresentam para ele: a isto
Kant chamou de fenmeno. A nica forma de produzirmos algum conhecimento
vlido seria nos restringirmos ao campo dos fenmenos, pois as coisas em si,
independentes do sujeito, so incognoscveis. Assim, Kant no acreditou na capacidade
de o homem conhecer a verdade absoluta das coisas em si do outro. Toda a questo
do conhecimento foi colocada em termos subjetivos, pois o conhecimento repousava na
subjetividade humana. Essa subjetividade, contudo, no seria a particular de cada
indivduo, mas transcendental e universal do homem, que deveria ser valorizada como
condio de possibilidade de todas as experincias. E as subjetividades empricas e
particulares deveriam aprender a viver em um mundo de incertezas onde as hipteses
nunca seriam totalmente confirmadas, procurando sempre um controle racional sobre
seus impulsos, seus desejos.

A grande preocupao de Kant, ento, no era tanto com os objetos, mas com o
nosso modo de conhecimento do objeto. Ele props uma nova revoluo copernicana
na Filosofia (Marcondes, 1997/2002), na qual no seria mais o sujeito que se orientaria
pelo objeto (o real), mas o objeto que seria determinado pelo sujeito. Portanto,
Sujeito e objeto eram termos relacionais, que s poderiam ser considerados como
parte da relao de conhecimento, e no autonomamente. S haveria objeto para o
sujeito, s haveria sujeito se este se dirigisse ao objeto.
Kant considerado um dos pais do construtivismo. Para compreendermos
melhor o porqu desse ttulo, valemo-nos de um trecho do prprio autor:
O idealismo consiste apenas na afirmao de que no existe outro ser seno o
pensante; as demais coisas, que acreditamos perceber na intuio, seriam apenas
representaes nos seres pensantes, s quais no corresponderia, de fato,
nenhum objeto fora deles. Eu afirmo, ao contrrio: so-nos dadas coisas como
objetos de nossos sentidos, existem fora de ns, s que nada sabemos do que
eles possam ser em si mesmos, mas conhecemos apenas seus fenmenos, isto ,
as representaes que produzem em ns ao afetarem nossos sentidos. (Kant,
Prolegmenos, 13, Observao II, em Marcondes, 2002, p. 210)
Manifesta-se ainda Kant sobre a unidade sinttica originria da apercepo para
mostrar como nossas experincias devem ser sempre remetidas a um eu penso que lhes
d unidade. Portanto, somente pelo fato de que posso conectar, em uma conscincia
um mltiplo de representaes dadas, possvel que eu prprio me represente, nessas
representaes, a identidade da conscincia (Marcondes, 2002, p. 211/212). Vemos,
pois, que o eu penso kantiano no puro, nem anterior conscincia como o de
Descartes, e tambm no apenas um feixe de percepes como o de Hume, pois se
consiste na unidade originria da conscincia.
No entanto, mesmo depois de Kant, os cientistas continuaram procurando uma
verdade, o conhecimento do mundo tal como ele . Esse panorama comeou a mudar
com os filsofos da no representao Schopenhauer (1788-1860), Nietzsche e
Heidegger , que se colocaram contra o discurso da modernidade (Grandesso, 2000). E
sem a pretenso de hierarquizarmos as contribuies destes filsofos, deteremo-nos em
Nietzsche (1844-1900) pelo fato de que, por suas idias, a crise da modernidade
comeou a ficar mais aguda. No Captulo 2 estaremos falando de Heidegger por sua
forte presena na Fenomenologia e nas questes atuais da Gestalt-Terapia.

As idias de eu ou sujeito passaram a ser interpretadas como fices por


Nietzsche, pois, para ele, se algo foi criado ao longo do tempo, no era eterno, dado que
a idia platnica, que Deus e que o sujeito moderno de Descartes ou de Bacon so
revelados como criaes humanas. Para Nietzsche, a crena em algo fixo e estvel seria
uma necessidade humana, na tentativa de crer que se tem o controle do devir. Assim,
alm de deslocar o homem da posio de centro do mundo, Nietzsche destruiu a idia de
que o mundo tinha um centro. Ao denunciar o carter ilusrio do fazer humano, no
props nada, pois a iluso no poderia ser substituda por nada melhor. O incmodo
niilista se deu por sabermos que nossos valores mais estimados so insustentveis e no
somos capazes de desistir deles. Nesse sentido que se coloca que Nietzsche um dos
primeiros a propor a possibilidade de um viver sem fundaes (Varela, Thompson &
Rosch, 1991/2003).
A questo para Nietzsche saber o quanto cada iluso em cada contexto se
mostra til expanso da vida (Figueiredo & Santi, 2002). Nietzsche j foi um psmoderno no fim do sculo 19. Ele j questionava a Razo, o Estado, a Cincia e a
organizao social moderna por domesticarem o homem. A obra de Nietzsche lembranos que a suposta unidade do cosmo levou a cincia a opor o homem (o conhecedor)
natureza (o conhecido), ao mesmo tempo em que fragmentou a natureza. O homem
ocidental quis governar sua existncia s pela Razo, quando, na verdade, a vida
tambm instinto e emoo, fora e imaginao, prazer e desordem, paixo e tragdia.
Sendo assim, um olhar sinttico sobre a crise do sujeito moderno permite-nos
perceber que o colapso da viso teocrtica provocou a questo sobre a autoria do
mundo. Surgiu, ento, o humanismo renascentista propondo o paradigma da
individualidade como subjetividade, que j nasceu com tenses entre a subjetividade
individual e a subjetividade coletiva e entre a subjetividade concreta, ou contextual, e a
subjetividade abstrata, sem tempo e espao definidos. Estas tenses no esto resolvidas
at hoje.
Quando concebemos um mundo produzido pela ao humana no h como no
perguntarmos pelo contexto em que ele ocorre. No entanto, no momento em que surgiu
o paradigma da subjetividade, estava havendo a falncia da communitas medieval, o que
criou um vazio, que em parte foi preenchido pelo Estado moderno (Santos, 1995/1997).
A tenso entre a subjetividade concreta e a abstrata j havia sido ilustrada por
Montaigne, que como vimos era contra a teorizao abstrata falsamente universal e

tinha a preocupao de centrar-se na escrita sobre si prprio. Descartes, por sua vez,
representou a subjetividade abstrata, terica, desespacializada e destemporalizada.
Entretanto, dentro do quadro da identidade moderna, temos priorizado a
subjetividade abstrata e a subjetividade individual em detrimento das outras duas
polaridades, a concreta e a coletiva. E estas so legitimadas pelo princpio do mercado e
da propriedade individual, regulado por um grande Estado que dirige a autoria social
dos indivduos, revelando a tenso entre individual e social, onde muitas vezes a
subjetividade do outro negada.
O movimento romntico tentou contestar essa identidade abstrata do sujeito,
descontextualizada, cientfica e econmica, ao propor uma busca radical de identidade,
uma revalorizao do irracional, do inconsciente, do mtico e do popular, glorificando a
subjetividade individual pelo que havia nela de irregular e de imprevisvel. Em
contraposio, o marxismo props uma recontextualizao da identidade, questionou o
individualismo e o poder do Estado. Mas o marxismo tambm acabou criando um
supersujeito no lugar do Estado, que passou a ser a classe social (Santos, 1995/1997).
No clima capitalista, as mltiplas identidades e os respectivos contextos
intersubjetivos que se formaram foram engolidos pela lealdade ao Estado. Nos ltimos
anos, algo vem mudando, apesar de no sabermos ao certo se no o olhar sobre isto
que vem mudando. Provavelmente, ambas as coisas tm acontecido, pois percebemos
que o processo histrico de descontextualizao muito menos homogneo do que se
havia pensado (Santos 1995/1997).

1.2 O sujeito sociolgico

A relao entre o individual e o social sempre foi descrita e vivida como ambgua. Na
histria do pensamento moderno, foi se construindo a possibilidade de um indivduo
emancipado e autnomo, que tinha como funo principal defender os homens da
ameaa da natureza. Uma autonomia que deveria levar em considerao o controle da
natureza e as regras sociais. Temos, ento, uma individuao que se d no meio de uma
cultura, onde a funo da formao cultural a de socializar para individuar.
A subjetividade assim define-se por um terreno interno que se ope ao mundo
externo, mas que s pode surgir deste. Sem a formao do indivduo, este se

confunde com o meio social e natural. Tal subjetividade se desenvolve pela


interiorizao da cultura, que permite expressar os anseios individuais e criticar
a prpria cultura que permitiu sua formao. A subjetividade implica a
adaptao para poder ir alm dela, o que significa que pela prpria mediao
cultural o indivduo pode pens-la. Assim, as leis psicolgicas, se que se pode
empregar este termo, so intrinsecamente relacionadas s leis da sociedade e da
cultura. Isso no implica que se reduzam umas s outras, pois uma vez que o
indivduo se diferencia, passa a se distinguir da cultura, embora esta continue a
exigir dele a adaptao. (Crochik, 1998, p. 2)
Nesse contexto, uma cultura que no respeite a individualidade gera uma certa
ambigidade, ou o que a Escola de Palo Alto chamou de duplo vnculo. Exigindo do
indivduo autonomia, inclusive para reproduzir os valores culturais, e ao mesmo tempo
restringindo-a. Isto gera sofrimento, onde a prpria cultura que se organizou para
proteger o indivduo o ameaa. Hoje, vemos um homem individualizado, mas que
corresponde s expectativas do econmico (Mancebo, 2002). Ento, uma Psicologia que
negue esta relao do indivduo com a sua cultura, ou que afirme que o indivduo tenha
uma lgica prpria e independente da cultura, no auxilia na percepo que o indivduo
tem de si mesmo. Ao contrrio, impede que o indivduo perceba o que o dificulta ser
senhor de si mesmo, colaborando ainda mais para sua alienao (Crochik, 1998).
Como no possvel descontextualizarmos o homem do seu mundo para
compreendermos os processos de subjetivao individual sem considerar os processos
de subjetivao coletiva e vice-versa, ento tambm temos que visitar a Sociologia
(Chaves, 2000). Compreender a subjetividade tambm compreender a formao das
identidades sociais e como elas estabelecem um processo dinmico. A constituio da
subjetividade no est isolada dos contextos filosfico, social, poltico e econmico.
Como vimos, dentro da modernidade, j se organizava uma concepo de um
sujeito sociolgico (Hall, 1992/ 2002), que refletia a crescente complexidade do
mundo moderno e a conscincia de que este ncleo interior do sujeito no era autnomo
e auto-suficiente, pois era formado na relao com outras pessoas importantes para ele.
Assim, a Sociologia passou a procurar e a desenvolver uma explicao de como os
indivduos so formados subjetivamente nas relaes sociais mais amplas.
Tal concepo interativa passou a ser elaborada de forma mais clara pelo
psiclogo americano George Herbert Mead (1863-1931), por C. H. Cooley (1869-1929)
e pelos interacionistas simblicos. Segundo eles, o sujeito ainda tem um ncleo ou

essncia interior que o eu real, formado e modificado num dilogo contnuo com os
mundos culturais exteriores e as identidades que o mundo oferece. As identidades, por
sua vez, preenchem o espao entre o interior e o exterior e projetamos a ns
prprios nas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus
significados. Esta troca contribui para alinharmos nossos sentimentos subjetivos com os
lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade estabiliza
tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente unificados e pr-dizveis. E quando os pesquisadores passam a falar
mais desse sujeito em interao social, algumas questes de nomenclatura surgem. Mas
j vimos que no h um consenso em torno do que subjetividade e do que de
identidade. Tambm no o h em torno do conceito de indivduo (Mancebo, 2002).
Um exemplo claro sobre a no unanimidade na conceituao de indivduo
dado por Bendassolli (2002), um estudioso de Rorty e da filosofia neopragmtica da
linguagem. Para ele, a Psicologia confunde em muito as noes de sujeito e de
indivduo e esta confuso se d quando se misturam as noes filosficas de sujeito
introduzidas por Descartes com a sociolgica de indivduo. Esta ltima noo se refere a
homens e mulheres que agem segundo as pressuposies do sujeito filosfico, aquele
que se refere a um ideal metafsico, ao passo que indivduo seria formado nas diversas
pocas e estruturas histricas. Ento, o sujeito, no contexto da filosofia, um ideal
abstrato e universal, ideal que todos devem alcanar para serem verdadeiramente
humanos. Este sujeito no tem um rosto, no tem uma histria, no contingente e no
pode ser visto, no um ser concreto. Dentro das perspectivas do Iluminismo e do
Humanismo, aquele que consciente de seus pensamentos e responsvel pelos seus
atos, a razo, a conscincia, o eu.
J o surgimento do indivduo se d fora de ideais metafsicos a priori, constituise na base de distintas regras socializatrias, que variam ao longo do tempo e em funo
de grupos sociais concretos (Norbert Elias, 1982/1993 em Bendassolli, 2002). O
indivduo, ao contrrio do sujeito, no fundamenta nada, no serve de base para o
estabelecimento da verdade dos diversos saberes, circunscrito, tendo assim uma face.
Ele, inclusive, descrito num outro vocabulrio e segundo outras orientaes, a saber,
o vocabulrio das Cincias Sociais, originalmente preocupadas em trazer o sujeito
(filosfico) para o cho, em dar-lhe corpo e substncia (Bendassolli, 2002, p. 9).
No entanto, as Cincias Sociais, fundem as duas noes, mesmo falando de
indivduos concretos, o que faz respingar no indivduo a metafsica que deu origem ao

sujeito ou subjetividade moderna. E tambm, a Psicologia, mesmo sendo uma cincia


voltada para o estudo de indivduos, pode dizer que o indivduo a incorporao de um
tipo ideal que deve ser alcanado, ao invs de descrever a subjetividade como algo
contingente e gerido dentro de uma prtica lingstica histrico-social particular. A
expresso ratificadora da falta de consenso entre o que indivduo e o que sujeito
surge das palavras de Bendassolli:
Estamos diante de uma confuso entre as noes de indivduo e sujeito sempre
que acreditamos que nossas definies do humano, da subjetividade so mais do
que descries motivadas por interesses e finalidades prprios, concretos,
disciplinares (no sentido de Foucault), toda vez que acreditamos que so
verdadeiras descries do Humano, partilhveis por todos os seres dotados de
razo, sentimento, de um Eu ou de uma identidade. (Bendassolli, 2002, p. 9)
J Mancebo, ao falar da construo de uma subjetividade individualizada, coloca
que:
Encontramos-nos mergulhados numa cultura individualista, no interior da qual
definimos nossas prticas e concepes, nos socializamos e educamos. Desse
modo torna-se difcil perceber que o indivduo possa ser uma categoria do
esprito humano (Mauss, 1974), uma categoria no inata, mas construda
histrica e socialmente. Torna-se difcil apreender que o individuo apenas um
dos modos possveis de subjetivao de cada poca, cada sociedade pe em
funcionamento alguns desses modos, sendo a categoria indivduo, o modo
hegemnico de organizao da subjetividade na modernidade. (...) No entanto,
esse processo de constituio da subjetividade moderna foi longo e continua
sofrendo modificaes intensas at a atualidade. (Mancebo, 2002, p.101)
E nesse cenrio de confuso entre as noes sociolgico-psicolgicas de
indivduo e as noes filosficas de sujeito que muitos percebem as crticas em relao
noo filosfico-metafsica como uma tentativa de matar o sujeito. Isto nos parece
ser muito mais um questionamento concepo de subjetividade moderna inventada
pela Filosofia, constituda a partir dos fundamentos da teoria do conhecimento, que cr
na representao. Uma representao compreendida como um espelhamento mental da
realidade, no qual representar uma atividade consciente, e onde o sujeito o juiz do
verdadeiro e do falso, o detentor da linguagem e do pensamento conceitual. Nessa
perspectiva iluminista, sujeito e objeto esto metafisicamente separados: o primeiro age
e o segundo, alm de sofrer a ao, pode ser manipulado. neste sentido que

questionamos a manuteno da metafsica da subjetividade na Psicologia, uma vez


que motivada por crenas sobre um mtodo que procura garantir um conhecimento
puro, universal, e que alcance as coisas tal como elas so (Bendassolli, 2002).

1.3 O sujeito ps-moderno

Hoje, ouvimos falar muito de crise da identidade ou da crise da subjetividade


privatizada e estas crises, em geral, so vistas como parte de um processo mais amplo
de mudana. Alm disso, tambm percebemos que esto ocorrendo processos que
abalam as referncias que temos sobre a relao indivduo/mundo, o que nos exige um
processo de produo de significados muito gil. De sua parte, o homem sempre teve
que lidar com o caos e por isso criou uma srie de mecanismos de sobrevivncia,
inclusive a cincia, visando diminuir essa sensao de descontrole, de insegurana.
Porm, esse mesmo homem est tendo que assumir tal sensao, inclusive na cincia. E
ao se retirar a certeza e a sensao de controle do homem, mesmo considerando que o
caos comea a ser visto como menos aterrador, uma ansiedade enorme gerada. Como
coloca Rolnik (1994, p. 13/14):
Com isto, vai deixando de fazer sentido uma subjetividade constituda na base da
dissociao da experincia do caos e da indissocivel idealizao e uma suposta
completude. E o que vai nascendo um modo de subjetivao constitudo na
base da abertura para o outro e, portanto, para o caos. Uma subjetividade
intrinsecamente processual.
nesse sentido que os tericos argumentam que as identidades modernas esto
entrando em colapso, que um tipo de mudana estrutural est transformando as
sociedades modernas no final do sculo 20. Essa perda de sentido de si estvel tem
sido chamada de deslocamento ou descentrao do sujeito. Uma estrutura deslocada
quando o seu centro deslocado, no sendo substitudo por outro, mas por uma
pluralidade de centros de poder (Laclau, 1990, em Hall, 2002). Por isso, as sociedades
e as pessoas esto tendo que lidar com a falta de um centro, de um princpio articulador
ou organizador. Esto constantemente sendo descentradas ou deslocadas por foras
fora de si mesmas.
Apesar de que ter colocado a subjetividade privatizada em crise tambm, a
cincia passou a demonstrar cientificamente a impossibilidade de separar o

pesquisador do seu objeto de observao, caracterizando o incio da permisso do


sujeito na cincia. Um marco neste processo foi Heisenberg (1901-1976), com seu do
seu princpio da incerteza. J no sculo 19, quando o calor introduz na Fsica a
desordem, a disperso, o acaso, a regularidade que a cincia moderna procurava no ser
humano passou a ser ainda mais questionada. A partir das pesquisas do qumico
Prigogine (Premio Nobel de Qumica de 1977), as possibilidades de se falar de
previsibilidade, reversibilidade e controle despertaram mais questionamentos. As suas
pesquisas sobre os sistemas que funcionam longe do equilbrio mostraram que um
pequeno desvio poderia ter um papel decisivo no funcionamento subseqente do
sistema. Da desordem que surgia no sistema, surgiria a ordem. Ento, o que antes era
vista como um desvio, a instabilidade, agora era reconhecido como condio necessria
para a organizao de uma nova ordem. Tratava-se, assim, de um processo de autoorganizao, em que o sistema escolheria entre mltiplas solues possveis
(Vasconcellos, 2002).
O interessante notarmos que falar que algo subjetivo passou a ter uma
conotao negativa contemporaneamente, at na linguagem corrente, mesmo num
mundo com grandes avanos cientficos. Talvez seja justamente por isto mesmo que
falar de subjetividade ainda um tabu. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que
negada no mundo atual, podemos ver o impacto de sua existncia diariamente na
economia, por exemplo, onde as bolsas de valores sobem e descem em funo de medos
e especulaes (Gonzlez Rey, 2003). Esta negao da subjetividade atingiu a
Psicologia diretamente, pois muitos quiseram fazer dela uma cincia objetiva.
Entretanto, negando a subjetividade, estamos negando a experincia humana diria.
A propsito, ao longo do sculo 19, comeamos a ver a deposio do eu de seu
lugar privilegiado por meio de vrias fontes. E vemos que na atualidade perodo que
vem sendo denominado tambm por modernidade tardia , a concepo de sujeito
moderno tem sido no simplesmente desagregada, mas deslocada (Hall, 1992/2002).
Entretanto, vemos tambm que, neste mesmo perodo, comea a se configurar, nos
movimentos estticos e intelectuais ligados ao modernismo, a figura do indivduo
isolado, annimo, alienado, s que agora no meio da multido. E esse processo de
deslocamento da concepo de sujeito comeou com as questes colocadas por Darwin,
por Marx e por Freud, entre outros, mas foi ascendendo realmente a partir da segunda
metade do sculo 20.

Um dos grandes impactos da teoria da evoluo, foi o fato de Darwin (18091882) ter colocado o homem como um ser natural como os demais, no possuindo uma
origem distinta ( imagem e semelhana de Deus).
J Marx (1818-1883) afirmava que o comportamento do homem era
determinado por leis que ele prprio desconhecia. Afirmava, ainda, que o homem seria
capaz de fazer histria, mas apenas sob as condies que lhes eram dadas. No sculo 20,
esta afirmativa recebeu um novo sentido: os indivduos no poderiam ser os autores ou
agentes da histria. como se a teoria de Marx tivesse questionado proposies chaves
da filosofia moderna, que havia uma essncia universal de homem e que esta essncia
era um atributo de cada indivduo singular. Marx representou a passagem da idia de
um sujeito universal, fechado dentro de um conjunto de categorias metafsicas, para um
sujeito concreto.
Freud (1856 - 1939), em sua descoberta do inconsciente, destruiu a idia de
sujeito cognoscente e racional de Descartes. E a Psicanlise, mais adiante, com Jacques
Lacan (1901-1981) deixou claro que a imagem do eu como inteiro e unificado algo
que a criana aprende apenas gradualmente e formada na relao com os outros,
especialmente nas complexas relaes psquicas inconscientes.
No trabalho de Lacan (1901-1981), alm dessa linha de proximidade ao
pensamento freudiano sobre o sujeito, podemos sentir

uma forte presena dos

lingistas, principalmente quando seu pensamento expressa que o inconsciente est


estruturado como a lngua. E dentre os lingistas, vale destacarmos um, cujo trabalho
muito colaborou para o deslocamento do sujeito: Ferdinand de Saussure (1857-1913).
Saussure, um lingista estrutural, argumentava que em nenhum sentido ns no
somos os autores das afirmaes que fazemos ou dos significados que expressamos na
lngua. A lngua, vista como um sistema social, no nos possibilita gerar significados
individuais, apenas posicionamentos no interior dos sistemas de significados de nossa
cultura. Alm disso, assim como a identidade, os significados no so fixos, pois
surgem das relaes entre as palavras, surgem na medida em que sabemos quem ns
somos nas relaes com os outros.
A influncia de Saussure est presente nos discursos dos filsofos da linguagem
atuais, como Derrida (1930), que argumentam que o falante individual no pode fixar o
significado de uma forma final, incluindo o significado de sua linguagem, apesar de
muito esforo. O significado inerentemente instvel, procura pelo fechamento (pela
identidade), mas constantemente perturbado (pela diferena) e est constantemente

escapulindo de ns. Tambm temos que perceber que existem sempre significados
suplementares sobre os quais no temos qualquer controle, que surgiro e subvertero
nossas tentativas para criar mundos fixos e estveis (Derrida, 1981 em Hall,
1992/2002).

1.3.1 A desconstruo do sujeito moderno


O descentramento da identidade e do sujeito foi tema relevante na obra de Michel
Foucault (1926-1994). Pois para ele, essa subjetividade, datada como fonte da certeza
em Descartes e ratificada por Kant, recebeu seu atestado de bito com Freud, Nietzsche,
Marx e por todo movimento filosfico que tomou estes autores como fonte de
inspirao. Falando de um cogito e de um sujeito, Descartes e Kant consideraram a
conscincia como o espao de representao do mundo exterior. Essa episteme clssica,
fundada sobre a noo de representao, embasou todo o modelo explicativo das
Cincias Naturais. E neste modelo que vemos a separao entre sujeito e objeto, onde
o primeiro se constituiria pela capacidade de representar, atravs de idias, todas as
informaes adquiridas pela percepo do objeto. Tal representao operava por
separao, a comear pela separao sujeito/objeto (Mariguela, 1995).
Os fundamentos das Cincias Naturais passaram a ser criticados quando do
deslocamento da representao para uma nova episteme que possibilitasse o
estabelecimento da subjetividade como construo interpretativa,
onde a noo de homem emerge das relaes nos modos de produo da
subjetividade e do desenvolvimento das foras produtivas no capitalismo
industrial; destruindo, assim, a noo de subjetividade como espao de
representao. A conscincia deixa de ser espao de representao dos
fenmenos naturais, passando a ser atividade interpretativa dos mesmos. A
conscincia interroga a si mesma como espao de representao. (Mariguela,
1995, p. 51).
Nesse sentido, Foucault (1978, em Mariguela, 1995, p. 54) afirmou na
introduo de As Palavras e as Coisas:
(...) um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem no
passa de uma inveno recente, uma figura que no tem dois sculos, uma
simples dobra de nosso saber, e que desaparecer desde que houver encontrado

uma forma nova. Profetizou, ainda, na ltima pgina da mesma obra: O


homem uma inveno cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento
mostra facilmente. E talvez o fim prximo.
Consoante o pensamento de Foucault, o homem no existia como pensado, at o
sculo 19, mas somente como pensante. A esse respeito, firmou o filsofo francs:
(...) nenhuma filosofia, nenhuma poltica ou moral, nenhuma cincia emprica,
qualquer que fosse, nenhuma observao do corpo humano, nenhuma anlise da
sensao, da imaginao ou das paixes, jamais encontrou nos sculos 17 e 18,
alguma coisa como o homem; pois o homem no existia (assim como a vida, a
linguagem e o trabalho). (Foucault, 1978, em Mariguela, 1995, p. 55)
Por conseguinte, os discursos cientficos estabelecendo a linguagem, a vida e a
economia como elementos estruturantes da empiricidade elaboraram uma nova
cartografia da subjetividade moderna, que gerou uma concepo de homem como objeto
de saber e como sujeito do mesmo. Tais discursos das cincias humanas basearam-se no
primado da representao, que, por sua vez, tambm passou a ser o prprio campo e o
suporte das Cincias Humanas.
Analisando as novas formas de interpretao inauguradas por Nietzsche, Freud e
Marx, que partiram de dois tipos de suspeita que remontavam histria da cultura
ocidental, Foucault percebeu que a linguagem quer dizer algo diferente do que diz, que
h linguagem dentro da linguagem e que as tcnicas de interpretao s puderam existir
com a ruptura da noo de representao. Para ele, os mencionados autores levaram a
srio discusses sobre os fundamentos do conhecimento, partindo de uma crtica da
finitude e dos pressupostos de verdade com os quais as cincias edificaram seus
discursos, onde as tcnicas de interpretao possibilitaram uma srie inesgotvel de
possibilidades. Por isso, essas tcnicas de interpretao romperam com o primado da
representao (Mariguela, 1995).
Muito se tem discutido sobre Foucault e a morte do homem e sobre Nietzsche e
a morte de Deus. O que pretendiam estes grandes pensadores com afirmativas to
fortes? Podemos entender que Nietzsche, ao falar da morte de Deus, estava falando da
morte de homem-sujeito que s encontrava apoio ontolgico, epistemolgico e tico
com referncia a Deus.
A morte de Deus nietzschiana preludia um novo nascimento do homem: o
superhomem (sic) (...) O novo homem de Nietzsche j no tem espelho para se
olhar, est fora de qualquer tipo de transcendncia. Trata-se de um homem que,

em relao ao seu presente, deve construir a si mesmo. E transforma-se no


humano com superao do homem. (Roger, 1999, p. 94, grifos do autor).
O pensamento de Foucault parece ter seguido o mesmo caminho. Nele, o que
tende a desaparecer a imagem do homem produzida pelo humanismo clssico. Para
Deleuze (1992/2000, p. 114/115), o filsofo nunca negou o sujeito e quando Foucault
chega ao tema final da subjetivao, esta consiste essencialmente na inveno de
novas possibilidades de vida, como diz Nietzsche, na constituio de verdadeiros estilos
de vida: dessa vez, um vitalismo sobre um fundo esttico. E sobre a expresso de
Nietzsche, inveno de novas possibilidades, podemos entender o fato de o homem do
sculo 21 enfrentar desafios diferentes e ter que dar luz novas formas de viver. Parece
que para Foucault a subjetividade seria a terceira dimenso, alm do poder e do saber.
Ainda no mbito de nossas leituras de Deleuze sobre Foucault, interessante notar
que o filsofo francs afirmou que s poderamos evitar a morte e a loucura quando
fizssemos da existncia um modo, uma arte. No haveria sujeito, mas uma
produo de subjetividade, que deve ser produzida, quando chegar o momento,
justamente porque no haveria sujeito. E esse momento chegaria quando, passando
pelas etapas do poder e do saber, colocssemos novas questes. Por isso, uma arte de si
mesmo seria totalmente o contrrio de si mesmo, ou, se existisse um sujeito, seria um
sujeito sem identidade.
Alm do pensamento de Foucault, ainda podemos estabelecer relaes entre o
descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociolgico e os movimentos sociais
que emergiram durante os anos sessenta, e em especial o feminismo. Este movimento
questionava a distino entre o dentro e o fora, o privado e o pblico, ao
afirmar que o pessoal era poltico. A subjetividade foi politizada quando passou a
enfatizar o como somos formados e produzidos como sujeitos genricos.
Desde ento, o que se tem descrito um sujeito composto no apenas de uma,
mas de vrias identidades, onde o processo de identificao que se estabelece com as
identidades culturais tem se tornado cada vez mais provisrio e instvel, um sujeito
definido historicamente e que no tem uma identidade fixa, essencial. Segundo Hall
(1992/2002), este processo produz o que ele denomina de o sujeito ps-moderno, cuja
identidade formada e transformada continuamente em relao s formas pelas quais
representado ou interpelado nos sistemas sociais que o rodeiam. O sujeito assume
identidades diferentes e contraditrias que o empurram em diferentes direes e, se
sente que tem uma identidade unificada, porque construiu uma cmoda histria sobre

ele prprio. A identidade, plenamente unificada, completa e segura, uma fantasia. As


palavras de Hall expressam muito bem sua concepo de sujeito ps-moderno: Se
sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento at a morte apenas
porque construmos uma cmoda estria sobre ns mesmos ou uma confortadora
narrativa de eu` (1992/2002, p. 13).
Outro aspecto que est relacionado s mudanas de identidade o que
conhecemos como globalizao, processo no qual as transformaes so profundas,
tanto em extenso como em intensidade. A globalizao no um processo recente,
porm inerente modernidade, pois conhecer o diferente, ir s margens e conhecer
outros povos so aes que fizeram com que a questo quem sou eu? comeasse a ser
mais discutida, fato que no era to presente nos tempos em que um indivduo nascia e
morria em torno de uma mesma regio, nos tempos em que viver circunscrito a uma
determinada rea era o usual. E, mesmo com o surgimento dos Estados-nao, estes
nunca foram to independentes, no tiveram uma identidade nacional to rgida, porque
o capital precisava circular. Com base nesses aspectos, podemos afirmar que o processo
de globalizao tem reflexos profundos, tanto nas identidades individuais como nas
identidades nacionais, posto que na grande aldeia global as notcias chegam cada vez
mais rpido, as distncias ficam mais curtas, o que tornado o mundo menor
paulatinamente. Por isso, possvel percebermos que os nossos esquemas em relao a
tempo e espao esto mudando e que, conseqentemente, de mesma forma esto
mudando os nossos esquemas de representao. E estes tm a ver com a forma como
fazemos as representaes de nossas identidades (Hall, 1992/2002).
A globalizao tem formado uma identidade global que comea, em algum
sentido, a apagar as identidades nacionais. No entanto, os cientistas sociais tm descrito
um outro lado da tendncia homogeneizao, que a fascinao pela diferena. E
assim temos visto uma nova articulao entre o global e o local, que gera novas
identificaes globais e locais. Alm disso, tambm vemos que o processo de
globalizao no uniformemente distribudo ao redor do mundo, pois o processo de
proliferao das escolhas de identidade mais amplo no centro do sistema global. J na
periferia do sistema, esse efeito pluralizador mais lento, muito em decorrncia do fato
de que a migrao de sua populao para o centro grande. De qualquer modo, vemos
esses migrantes formando e passando a fazer parte de outras culturas, mas, ao mesmo
tempo, tambm vemos que formam fronteiras ao redor de suas tradies.

A forma como o sujeito vem sendo representado nas artes tambm tem mudado.
O sujeito masculino era representado nas pinturas do sculo 18 por meio de formas
espaciais clssicas, o que muito diferente do sujeito que v a si prprio nos
fragmentados e fraturados rostos, de uma pintura de Picasso, que olham planos e
superfcies partidos. Por meio da arte, e suas manifestaes, percebemos como as
identidades esto localizadas no espao e no tempo simblicos, como o espao e o lugar
eram coincidentes nas sociedades pr-modernas, o que j no ocorreu as sociedades
ps-modernas. Nestas, podemos estar fixos em algum lugar, por exemplo, e
simultaneamente estar navegando pela internet por um espao infinito. (Hall,
1992/2002).
(...) parece ento que a globalizao tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as
identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Ela tem um efeito
pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e
novas posies de identificao, e tornando as identidades mais posicionais,
mais polticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou transhistricas. (...) Em toda parte, esto emergindo identidades culturais que no so
fixas, mas que esto em transio entre diferentes posies; que retiram seus
recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradies culturais e que so produto
desses complicados cruzamentos e misturas culturais. (Hall, 1992/2002, p. 87)
Muitos fenmenos tm sido descritos na contemporaneidade. Destacamos o do
fortalecimento de identidades locais pela peculiaridade que encerra. Podendo ser
entendido como uma reao defensiva presena de outras culturas por grupos que
retm fortes vnculos com suas tradies, mesmo distantes de sua terra natal, e que
passam a negociar com as culturas em que vivem, sem serem engolidas por elas, tal
fenmeno se configura em algo que no era previsto nem pelo liberalismo nem pelo
marxismo. Sim, pois a globalizao no parece estar produzindo o triunfo do global,
to pouco a persistncia de velhos nacionalismos. E, ainda, a globalizao pode gerar
um lento descentramento do ocidente, apesar de ser alimentada por ele (Hall,
1992/2002).
Diante de fenmenos como o do fortalecimento das identidades locais, a questo
da relao do social com o individual tem trazido uma srie de perplexidades. Santos
(1995/1997) ressalta que, apesar da intensa globalizao, temos visto o regresso ao
indivduo por meio da anlise da vida privada, do consumismo e do narcisismo, dos
modos e estilos de vida, do espectador ativo da televiso, das biografias.

Contudo, em aparente contradio com isto, o indivduo parece hoje menos


individual do que nunca, a sua vida ntima nunca foi to pblica, a sua vida
sexual nunca foi to codificada, a sua liberdade de expresso nunca foi to
inaudvel e to suspeita a critrios de correo poltica, a sua liberdade de
escolha nunca foi to derivada das escolhas feitas por outros antes dele. Ser tos aparente esta contradio? Ser que a distino indivduo-sociedade outro
legado oitocentista de que devemos nos libertar? Ser que pelo contrrio, nos
libertamos cedo demais do conceito de alienao? Como fazer vingar a
preocupao tradicional da sociologia (sic) com a participao e a criatividade
sociais numa situao em que toda espontaneidade no minuto um se transforma,
no minuto dois, em artefato meditico de si mesma? (Santos, 1995/1997, p.21)
Outro fato interessante que as grandes diferenas polticas entre o capitalismo
e o socialismo esto desaparecendo e fazendo surgir um consenso em torno da
democracia. No entanto, percebemos esta democracia atrelada ao neoliberalismo
econmico, que lhe d um enorme poder de fazer grandes intervenes, em nome de
uma organizao maior. Assim no podemos deixar de perguntar: como esto ficando a
liberdade das naes e dos indivduos?
Podemos perceber em Hall (1992/2002) e em Santos (1995/1997) o quanto as
teorias sociais tm uma preocupao quase que obsessiva com a questo da identidade e
que h uma tendncia para que esta questo continue dominando. Para a teoria social,
tm sido importante os conhecimentos sobre os processos de identidade e identificao
para que se possa avaliar as transformaes que se do nas prprias teorias sociais. E
ns, psiclogos, no podemos estar alheios a estes paradoxos que permeiam a
constituio da identidade de um indivduo ou comunidade para compreender a
constituio da subjetividade. Pois, para Santos (1995/1997), o primeiro nome moderno
para identidade foi subjetividade.

1.3.2 A subjetividade no que tem sido chamado de ps-modernismo


Ps-modernismo o nome aplicado s mudanas ocorridas nas cincias, nas artes e nas
sociedades avanadas desde 1950. Simbolicamente, o ps-modernismo nasceu s 8
horas e 15 minutos do dia seis de agosto de 1945, quando a bomba atmica destruiu
Hiroxima.

Ele nasce com a arquitetura e a computao nos anos 50. Toma corpo com a arte
Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como crtica
a cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na
msica e no cotidiano programado pela tecnocincia (cincia + tecnologia
invadindo

cotidiano

com

desde

alimentos

processados

at

microcomputadores), sem que ningum saiba se decadncia ou renascimento


cultural. (Santos, J., 1980, p. 8)
Para Lyotard (1979/2000), decidiu-se chamar de ps-moderno as sociedades
mais desenvolvidas. Ento ps-moderno designa o estado da cultura aps as
transformaes que afetaram as regras dos jogos da cincia, da literatura e das artes a
partir do final do sculo 19. Dessa forma, o ps-modernismo tpico das sociedades
ps-industriais baseadas na informao. A matria se desintegrou em energia e a
sociedade ps-industrial est envolta por informaes. Como fato decorrente, o mundo
est ficando cada mais pulverizado em signos, transformando o planeta em uma rede
pensante, enquanto o sujeito torna-se um feixe intrincado de clulas nervosas a
processar mensagens fragmentadas. Na condio ps-moderna, o indivduo passa a ser
algum submetido a um bombardeio de informaes, que nunca formar um todo. A
sociedade a do espetculo, pois o ambiente ps-moderno um show constante do
design, da moda, da publicidade, dos meios de comunicao. Para Santos, J., (1980)
esta realidade no tem muito a ver com o Brasil, mas j vemos indcios dela por aqui.
Considerando

que o

conceito

de ps-modernismo

adquire diferentes

interpretaes para diversos autores, Gergen (1989a, em Grandesso, 2000), entende que
o trao mais comum da ps-modernidade seja a preocupao com a linguagem. Assim,
coloca em xeque os pressupostos milenares da cultura ocidental da lngua como
principal veculo de representao do mundo e de comunicao dos contedos mentais.
Nesse sentido, a ps-modernidade descarta o dualismo mente e natureza e toda a busca
pelos fundamentos do conhecimento. E todo e qualquer conhecimento passa a ser
percebido como o resultado do intercmbio social, isto , da interdependncia e no da
individualidade das mentes. A linguagem seria compreendida, ento, como um processo
de pessoas em relao (Grandesso, 2000). Para Ibaez (1992, em Grandesso, 2002), o
que vai marcar o discurso ps-moderno que a existncia do objeto do conhecimento
implica a presena de um sujeito cognoscente, o que no acontecia no discurso da
modernidade, pois nele se concebia um processo de conhecimento sem sujeito.

Interessante percebermos que, apesar de deixar de ser um sujeito fixo, o sujeito e a


subjetividade assumem um papel importante no processo de conhecer.
Devemos lembrar que o ps contm o moderno. No podemos pensar o psmodernismo sem pensar o mundo moderno. Por isso, Santos, J. (1980) coloca que o
ps-modernismo um fantasma que passeia por castelos modernos. Essa relao
ambgua, pois h mais semelhanas do que diferenas, mais prolongamentos que
rupturas. Um bom exemplo disso e constatarmos que o individualismo atual nasceu com
o modernismo, mas seu exagero narcisista j um acrscimo ps-moderno.

1.3.3 O ps-modernismo na Filosofia


O ps-modernismo chegou Filosofia no final dos anos 60 com a proposta de
desconstruo do discurso filosfico ocidental, que desde a Grcia antiga procurava
fazer discursos globais, totalizantes. Apostou no adeus ou no declnio das grandes
filosofias explicativas, dos grandes textos esperanosos, como o cristianismo, o
Iluminismo (com sua crena na tecnocincia e no progresso), o marxismo (com sua
aposta numa sociedade comunista). Descontruir o discurso no destru-lo, nem
mostrar como foi construdo, mas por a nu o no-dito por trs do que foi falado. Com os
pensadores ps-modernos, a filosofia e a prpria cultura ocidental caram sob fogo
cerrado (Santos, J., 1980, p. 71). Deu-se adeus s iluses.
Os choques entre a racionalidade produtiva e os valores morais e sociais j
comeavam a aparecer no mundo moderno, mas ficaram mais agudos no psmodernismo porque a tecnologia invadiu o cotidiano com mil artefatos e servios,
porm no ofereceu nenhum valor moral alm do hedonismo consumista. O que temos
hoje uma sociedade produzindo medo de desastres ecolgicos, terrorismo, crise
econmica, terror urbano e insegurana psicolgica. Com toda tecnologia e
conhecimento a sociedade ps-industrial quer lucro e poder. (Santos, J., 1980; Santos,
1987/1999; Lyotard, 1979/2000).
Muitos dos filsofos ps-modernos, como Jacques Derrida (1930), Gilles
Deleuze (1925-1995), Franois Lyotard (1924-1998), Jean Baudrillard (1929), Santos,
J.(1980), foram buscar maneiras de questionar valores antigos procurando revelar sua
falsidade e sua responsabilidade nos problemas atuais. E buscaram em Nietzsche (o
primeiro a descontruir os valores ocidentais), na semiologia (que ataca as sociedades

ps-industriais baseadas na informao, no signo) e no ecletismo de Marx com Freud.


Para tal, utilizaram-se de duas frentes:
1) Desconstruo dos princpios e concepes do pensamento ocidental Razo,
Sujeito, Ordem, Estado, Sociedade ; promoo da crtica da tecnocincia e seu
casamento com o poder poltico e econmico nas sociedades avanadas.
2) Desenvolvimento e valorizao de temas antes considerados marginais na
Filosofia: desejo, loucura,

sexualidade, linguagem, poesia, sociedades

primitivas, jogo, cotidiano.

Estes elementos abrem perspectivas para a

libertao do individual e aceleram a decadncia dos valores ocidentais.


Neste contexto aberto por Nietzsche, o filsofo Jacques Derrida passou a usar a
palavra desconstruo para referir-se ao sujeito e atacou o Logocentrismo ocidental.
Pois o Logos a Razo e a palavra falada que transforma as coisas em conceitos
universais, isto , tornando idnticas todas as coisas ao eliminar a diferena entre elas. E
esta tendncia passou a marcar o jeito ocidental de agir: os jesutas convertiam as
diferentes tribos brasileiras a uma idntica religio, os brancos europeus submeteram
diferentes povos a uma nica economia, a linha de montagem imps a diferentes
personalidades gestos idnticos. Isso expressa o quanto o ocidente sempre teve
dificuldades com as diferenas (Santos, J., 1980).
Derrida vem denunciar que a Razo, a Cincia e o Logos s se promoveram
reprimindo e silenciando: corpo/emoo/poesia/inconsciente/desejo/acaso/inveno.
Derrida e outros filsofos, agindo assim, querem injetar vida nova nas diferenas contra
a identidade, na desordem contra a hierarquia, na poesia contra a lgica.
O filsofo Gilles Deleuze e o psicanalista Felix Guattari cruzaram as posies de
Marx e Freud e escreveram, em 1972, o Anti-dipo, onde o inconsciente deixa de ser o
cenrio das imagens e emoes recalcadas para virar a mquina desejante, energia
produtora de desejos. Consideravam que estas mquinas estavam com suas energias
domesticadas, dirigidas para outros fins que no a liberdade e o prazer. Nesse contexto
que propuseram a promoo do Anti-dipo, o esquizofrnico, a pura mquina desejante,
que a famlia no programou. Assim, a Psicanlise foi centro da crtica, pois trazia a
fora do desejo nica instncia do dipo, eixo invarivel da neurose. Segundo
Deleuze, ao contrrio da essncia da crtica Psicanlise, o desejo criao de vida,
motivo de inveno e de diferena, transgresso de normas (Enciclopdia Encarta,
1993/1999). , tambm, uma forma de Revoluo Molecular, pois a idia fragmentar
o Sistema (em Estados, empresas, sindicatos e escolas, por exemplo), composto de

grandes mquinas onde as energias seguem programaes repressivas. Uma revoluo


que no vir mais da massa reunida, mas que vir despedaando as normas, os centros
de comando (Santos, J., 1980).
Alm das contribuies de Deleuze e Guattari para o pensamento ps-moderno,
a contribuio do filsofo Jean-Franois Lyotard tambm merecer destaque. Sua obra
mais importante Condio Ps-Moderna (1979/2000). Nela, Lyotard deixa claro que
no faz apologia ps-modernidade, por isto o termo condio importante no ttulo.
O autor procurou descrever como a tecnocincia, concentrada em reas ligadas
linguagem comunicao, ciberntica e informtica , busca a melhor performance, o
melhor resultado. O estatuto do saber cientfico parece mais subordinado do que nunca
s grandes potncias e s grandes empresas que controlam as tecnologias. O
conhecimento passa a ser visto como um modo de organizar e distribuir certas
informaes e, igualmente, passa a ser considerada como conhecimento cientfico
certo tipo de informao, traduzvel na linguagem que essas mquinas impem ou que
so compatveis com elas.
Logo, vemos que Lyotard alerta-nos a perceber que o saber no cincia, o
saber no se reduz cincia, nem mesmo ao conhecimento. A cincia seria um
subconjunto do conhecimento que impe duas condies suplementares sua
aceitabilidade: que os objetos aos quais se referem sejam acessveis recursivamente e
que se possa decidir se cada um desses enunciados pertence ou no linguagem
considerada como pertinente pelos experts.
Os jogos propostos no cenrio ps-moderno so jogos cuja pertinncia no
nem o verdadeiro, nem o justo, nem o belo, etc., mas o eficiente: um lance tcnico
bom quando bem-sucedido e/ou quando ele despende menos que um outro
(Lyotard, 1979/2000, p.80). E desta forma, os jogos de linguagem cientfica vo
tornando-se jogos de ricos, onde os mais ricos tm mais chances de ter razo. Traa-se
uma equao entre riqueza, eficincia, verdade (p.81).
E fica o alerta de Lyotard: o consenso deixa de ser suficiente para orientar o
problema da legitimao da cincia, mas a justia no. Porque, muitas vezes, no
consenso embute-se o terror: Diga ou faa isto, seno no falars mais, entra-se no
terror, destri-se o vinculo social (p.83). O conhecimento, portanto, passa a ser cada
vez mais vendido e consumido. E a cincia deixa de falar de quanta criatividade, esforo
e tentativas so exigidos para cri-la, e passa a exigir apenas eficincia.

1.3.4 Para onde estamos indo?


Na atualidade, vemos cada vez um indivduo consumidor, que busca a satisfao
aqui e agora, extremamente individualista. Vivemos em uma sociedade consumista,
onde a liberdade est na escolha do que vamos consumir. Esse individualismo
exacerbado est conduzindo desmobilizao e despolitizao das sociedades ditas
avanadas. O indivduo que consagra o Sistema tambm cria problemas, pois entra em
choque com uma sociedade programada, uma massa ps-moderna que vive no
conformismo, em naes sem ideais. O que tal massa quer, principalmente, o
espetculo com bens e servios, ao invs do poder. A essa mudana, os socilogos esto
chamando desero do social, onde as instituies sociais, que orientavam o
comportamento individual, esto sendo esvaziadas. Ento, vemos um Estado que apia
esse individualismo, mas que tambm precisa manter em cena as instituies,
principalmente a Ptria.
Mas no h apenas uma desero do social, h tambm uma desero da histria.
A massa moderna acreditava que a histria (e seus pases) caminhava para o progresso e
para a democracia. J a ps-moderna no tem mais esse otimismo e vive sem as
tradies do passado e sem um projeto de futuro.
Na sociedade ps-moderna, estamos saturados de informaes, cada indivduo
se transformou em um terminal de informaes, onde cada um pode receber notcias
individualmente. Essas mensagens que recebemos so lanadas de forma a
espetacularizar a vida, que se transforma em um show contnuo e as pessoas em
espectadores permanentes, sempre esperando algo novo. Pode-se exibir a foto de um
filho com mais admirao do que apresentar o prprio filho. Temos a a operao bsica
da ps-modernidade: a transformao da realidade em signo. E talvez, mais do que
nunca, estejamos na Caverna de Plato.
Em uma cultura dominada por imagens, no qual a mdia tem um papel
fundamental na produo de narrativas que criam um universo de iluso, o espetculo
miditico atinge as diversas esferas sociais, produzindo uma realidade parte ou o
hiper-real, conforme a expresso de Baudrillard (Fridman, 1999). Produz-se uma
coleo de cpias cujos originais foram perdidos ou, dito de outra forma, onde o
referente vivido pelos homens desapareceu. A Sociedade do Espetculo, como bem
alude o ttulo homnimo do livro de Debord (Fridman, 1999), uma adequada forma de

tratamento para a sociedade ps-moderna. Um bom exemplo disso so as transmisses


on line das guerras, onde no vemos sangue nem as vivncias de horror, e a guerra vira
um espetculo, uma realidade parte onde a conscincia do espectador entra em
regies estranhas de cognio.
Por tal razo, Giddens, Beck e Lash (Fridman, 1999) chamam a ateno para um
fato do mundo atual que o aumento do potencial destrutivo, tanto na relao do
homem com a natureza, quanto na dos homens entre si. Para Habermas (1980, em
Fridman, 1999), temos visto a colonizao do mundo e da vida pela razo instrumental,
j que a cincia e a tcnica se transformaram na principal fora produtiva no campo do
agir.
Assim, segundo Jameson (Fridman, 1999) a cultura ps-moderna interfere
profundamente na cognio e na constituio da subjetividade. No meio dela,
produzem-se tipos de pessoas que incorporam em seu cotidiano a substituio da
realidade pelo espetculo, onde o teleassistir passivamente necessrio, mais necessrio
que o viver. Presenciamos o fenmeno de que, por um perodo significativo de suas
vidas, mentes so invadidas por imagens que prescindem da experincia. Essa
linguagem ou esttica televisiva favorece o cancelamento da memria e o
distanciamento crtico, com danos subjetividade, que no so pequenos. De forma
bem contrastiva, estamos assistindo de forma muito prxima a fome e a propaganda do
supermercado.
No entanto, isto no significa apenas passividade, pois estamos vivendo um
mundo de reflexibilidade intensificada onde muitas coisas se movem por desacordo e
crtica permanentes. Resulta da que a informao tem permeado a nossa atuao no
cotidiano de forma ampla. E nesse contexto que a linguagem assume um papel
importante na constituio das atividades concretas da vida e a base do exame e
reforma das prticas sociais por fora da informao renovada.
Quanto mais se expande o que Giddenns (Fridman, 1999) chama de
modernizao reflexiva, mais os agentes (sujeitos) adquirem a capacidade de refletir
sobre as condies sociais de sua existncia. Mas isto significa que os agentes tambm
se tornam responsveis pela inveno permanente da poltica e da sociedade de
resultados incertos. Essa liberdade pode ser assustadora tambm, j que gera novas
situaes subjetivas, tal como deve ter acontecido com a popularizao do automvel,
por exemplo.

1.4 A Cincia e a Subjetividade ou Como fazer cincia


de um mundo em permanente mudana.

No podemos desqualificar os avanos significativos formulados a partir da cincia


moderna, que permitiram inclusive que estivssemos escrevendo em um computador o
presente trabalho. No entanto, na cincia moderna, a posio do sujeito que produz
conhecimento bastante contraditria. Por um lado, o cientista sente-se com o poder e
com o direito de lidar com todos os fenmenos naturais, partindo da suposio de que o
homem o senhor que tem o direito de colocar a natureza ao seu servio. Por outro, os
procedimentos cientficos exigem que os cientistas sejam objetivos, que deixem de
lado seus preconceitos, seus sentimentos e seus desejos para obterem o conhecimento
verdadeiro. Por conseguinte, o sujeito moderno vive uma dicotomia: ao mesmo tempo
em que o senhor de todas as coisas, de mesmo modo apontado como a fonte
primordial de seus prprios erros e desatinos (Figueiredo, 1995).
A tradio da cincia ocidental baseou-se na noo de sujeito, mas no o
alicerou ao mundo da vida. A cincia determinista dissolveu a noo de sujeito, a
filosofia positivista e a filosofia estrutural perseguiram-na. Contudo este sempre volta,
aqui e ali, mas sempre sem fundamentao (Morin, 2001/2002). A cincia perdeu sua
capacidade auto-reflexiva (Morin, 1990/2000).
So essas contradies que tm levado a cincia a viver uma fase de transio,
mas certas questes permanecem. Usufrumos os avanos tecnolgicos que a cincia
nos trouxe e estes mesmos avanos foram nos dando os elementos para question-la. E,
aos poucos, temos visto emergir um outro paradigma, que questiona a cincia moderna.
A cincia moderna foi presidida por um modelo global de racionalidade e que,
por ser global, tambm um modelo totalitrio, que possibilita uma e s uma forma de
conhecimento verdadeiro. Uma cincia que desconfia sistematicamente das evidncias
da nossa experincia imediata, baseia-se na reduo da complexidade. J que o mundo
complicado e a mente humana no pode compreend-lo integralmente, vamos conheclo e dividi-lo para classific-lo. Procedendo assim, a cincia interioriza o sujeito custa
da exteriorizao do objeto, tornando-os estanques e incomunicveis. Esta cincia,
ento, opta por romper com o conhecimento do senso comum, com o conhecimento
prtico no qual se traduz. Procura a determinao da causa formal, que obtida com a

expulso da intencionalidade e que procura a formulao de leis partindo da idia de


ordem e de estabilidade do mundo (Santos, 1989). Uma cincia onde o conhecer
tornou-se sinnimo de dividir, simplificar, e a quantificao tornou-se medida
privilegiada. O conhecimento passou a ser uma representao do mundo vivido, fruto da
observao sistemtica e descontaminada dos valores do sujeito que conhece (Ferreira
& Cols. 2002).
O modelo de cincia que denominamos de moderna ainda dominante. Mas um
novo paradigma est emergindo. Estamos vivendo um perodo de revoluo cientfica
que se iniciou com Einstein (1879-1955) e a mecnica quntica. A partir da, a crise do
modelo de racionalidade tem sido profunda e irreversvel E na medida em que o
paradigma cientfico foi avanando que foi revelando suas prprias fragilidades. A
propsito, um dos pensamentos mais profundos de Einstein propriamente o da
relatividade da simultaneidade: no havendo simultaneidade universal, o tempo e o
espao absoluto deixam de existir, pois dois sistemas simultneos num sistema de
referncia no so simultneos noutro sistema de referncia.
Depois de Einstein, Heisenberg (1901-1976) e Bohr (1885-1962) demonstraram
que no possvel observar um objeto sem interferir nele, a tal ponto que o objeto que
sai de um processo de medio no o mesmo que nele entrou. Tal como vimos no
inicio do captulo, este princpio da incerteza de Heisenberg demonstrou no somente a
interferncia estrutural do sujeito no objeto observado, com igualmente a idia de que
no conhecemos do real seno o que nele introduzimos. Ento, a distino sujeito/objeto
perde seus contornos dicotmicos e assume a forma de continuum.
Nos ltimos anos, outros estudos, no domnio da Microfsica, da Qumica e da
Biologia tm nos levado na mesma direo. Um destes, que usaremos como exemplo,
o do qumico Ilya Prigogine. Ele estabeleceu que em sistemas abertos, que funcionam
nas margens da estabilidade, a evoluo se explica por flutuaes de energia que em
determinados momentos nunca so inteiramente previsveis. Reaes so desencadeadas
e, por via de mecanismos no lineares, pressionam o sistema para alm de um limite
mximo de instabilidade, conduzindo-o a um novo estado macroscpico. Ocorre uma
transformao irreversvel e termodinmica como o resultado da interao de processos
microscpios segundo uma lgica de auto-organizao numa situao de no-equilbrio,
mostrando a potencialidade do sistema de ser atrado para um novo estado de menor
entropia. Temos ento: em vez da eternidade, a histria; em vez do determinismo, a
imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetrao, a espontaneidade e a

auto-organizao; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evoluo; em vez da


ordem a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (Santos,
1987/1999, p. 28). Esta teoria no um fenmeno isolado, pois faz parte de um
movimento convergente que atravessa as vrias Cincias Naturais e at as Cincias
Sociais, numa espcie de vocao trans-disciplinar a que Jatsch (em Santos, 1987/1999)
denomina de paradigma da auto-organizao.
Com seu trabalho, Prigogine deixa cair por terra a distino entre o orgnico e o
inorgnico. Tal como os avanos recentes da Fsica e da Biologia pem em questo a
distino entre os seres vivos e a matria inerte e mesmo entre o humano e o no
humano. Deixaram de ter sentido as distines entre Cincias Naturais e Cincias
Sociais. E os cientistas deste novo paradigma tm:
uma vocao holstica e algumas especificamente orientadas para superar as
inconsistncias entre a mecnica quntica e a teoria da relatividade de Einstein,
todas estas teorias introduzem na matria os conceitos de historicidade e de
processos, de liberdade, de autodeterminao e at de conscincia que antes o
homem e a mulher tinham reservados para si. como se o homem e a mulher se
tivessem lanado na aventura de conhecer objetos mais distantes e diferentes de
si prprios, para, uma vez a chegados, se descobrirem refletidos como num
espelho (Santos, 1987/1999, p. 38)
Por tudo isso, temos visto o declnio da hegemonia da legalidade de modo
concomitante ao declnio da causalidade e o causalismo, enquanto categoria de
inteligibilidade do real e que tem perdido terreno para o finalismo. Tal cincia procura o
senso comum pois este faz coincidir causa e inteno, alm de ser prtico e pragmtico,
transparente e evidente, desconfiado. S assim ser uma cincia clara que cumpre a
sentena de Wittgenstein, tudo o que se deixa dizer deixa-se dizer claramente. S
assim ser uma cincia transparente que faz justia ao desejo de Nietzsche ao dizer que
todo o comrcio entre os homens visa que cada um possa ler a alma do outro, e a lngua
comum a expresso sonora desta alma comum (Santos, 1987/1999, p. 57). neste
sentido que a transio paradigmtica tolera a imperfectibilidade das palavras e dos
clculos, caso eles proporcionem uma maior razoabilidade e equidade das aes e das
conseqncias.
Outro fruto desta reflexo epistemolgica tem sido trazer vida novamente
cincia, pois o conhecimento cientfico moderno desencantado, triste, transformou a

natureza em um autmato e no foi feliz ao afirmar que a personalidade do cientista


destri a personalidade da natureza.
Esta atual fase de revoluo cientfica tem exigido criatividade e transgresso
metodolgica por parte dos cientistas, pois percebemos que no mais possvel apenas
um mtodo para entrar em contato com uma multiplicidade de fenmenos. Afinal, cada
mtodo uma linguagem e a realidade responde na lngua em que perguntada. S uma
constelao de mtodos pode captar o silncio que persiste entre cada lngua que
pergunta (Santos, 1997, p. 48). Destarte, comeamos a ver a personalizao do
trabalho cientfico.
Quando percebemos a presena dos cientistas em seus trabalhos, que no
possvel separar o sujeito que pesquisa do objeto pesquisado, que o ato de conhecer e o
produto deste so inseparveis e, ainda, quando percebemos que j que fazemos parte de
uma s natureza, podemos ento perceber que todo conhecimento autoconhecimento e
que todo desconhecimento autodesconhecimento. Hoje, faz-se necessrio um
conhecimento compreensivo e ntimo que no nos separe, que antes nos una
pessoalmente ao que estudamos. A incerteza passa a ser a chave do entendimento de um
mundo que, mais do que controlado, tem que ser contemplado (Santos, 1997,
1987/1999).
Outro fenmeno interessante a percebermos neste paradigma emergente que o
contedo terico das cincias, que mais tm progredido no conhecimento da matria,
tem conceitos, teorias, metforas e analogias das Cincias Sociais. Por exemplo, quer na
teoria das estruturas dissipativas de Prigogine, quer na teoria sinegtica de Haken, os
comportamentos das partculas so explicados por meio dos conceitos de revoluo
social, violncia, escravatura, dominao, democracia nuclear.
Em resumo, medida que as cincias naturais (sic) se aproximam das cincias
sociais (sic) estas se aproximam das humanidades (...) Mas esta revalorizao
no ocorrer sem que as humanidades sejam elas tambm profundamente
transformadas. O que h nelas de futuro terem resistido separao
sujeito/objeto e terem preferido a compreenso do mundo manipulao do
mundo (Santos, 1995/1997, p. 43/44).
A cincia que est emergindo prope uma concepo humanstica, colocando a
pessoa:
enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao
contrrio das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por

natureza no centro da pessoa. No h natureza humana porque toda a natureza


humana. , pois necessrio descobrir categorias de inteligibilidade globais,
conceitos quentes que derretam as fronteiras em que a cincia moderna dividiu e
encerrou a realidade. A cincia ps-moderna uma cincia assumidamente
analgica que conhece o que conhece pior atravs do que conhece melhor. J
mencionei a analogia textual e julgo que tanto a analogia ldica como a analogia
dramtica, como ainda a analogia biogrfica, figuraro entre as categorias
matriciais do paradigma emergente: o mundo de hoje natural ou social e
amanh ser ambos, visto como um texto, como um jogo, como um palco ou
ainda como uma autobiografia. (Santos, 1997 b, p. 44/45)
Esta cincia emergente, por muitos denominada de ps-moderna, sabe que
nenhuma forma de conhecimento , em si mesma, racional e que s a configurao de
todas elas racional. Porque no h apenas uma forma de conhecimento vlida. O
conhecimento, nesse contexto, validado pelo poder de convico dos argumentos em
que traduzido. Ento, nesse sentido, temos que garantir democracia e princpios ticos
comuns na constituio destas comunidades interpretativas. (Santos, 1997). Remetendonos a Lyotard (1979/2000), temos que evitar o terror nestas comunidades
interpretativas.
Em oposio ao que o novo paradigma prope a multidimensionalidade da
subjetividade j que cada contexto cria uma forma ou dimenso de subjetividade . na
subjetividade engendrada pelo velho paradigma existe uma nfase no indivduo
unidimensional, maximizado da utilidade que escolhe racionalmente segundo o modelo
arquetpico do homo economicus.
Sendo assim, percebemos que a distncia entre as cincias est diminuindo.
Cada vez fica mais claro que para compreender o humano preciso compreender a
natureza e vice-versa. Pois, como j registramos anteriormente, todo conhecimento
autoconhecimento e todo desconhecimento autodesconhecimento.

1.5

A Gestalt-Terapia, as Teorias Sistmicas


Construtivistas Construcionistas Sociais e o
paradigma emergente

A Gestalt-Terapia parte da Fenomenologia de Husserl (1859-1938), e das teorias


psicolgicas dela derivadas Psicologia da Gestalt, Teoria do Campo e da Teoria
Organsmica , que so os frutos da crtica de Husserl cincia moderna e de sua
tentativa de compreender a relao ser-no-mundo. Friedrich (Fritz) Perls (1893-1970) e
Laura Perls (1905-1989), fundadores da Gestalt-Terapia, tambm eram psicanalistas de
longa data. Do encontro entre a prtica clnica individual e grupal, e tambm das
pesquisas com Goldstein (1878-1965), foi se organizando a Gestalt-Terapia.
J os Tericos Sistmicos Construtivistas Construcionistas Sociais tambm
colocaram o ser-no-mundo a partir da Teoria de Campo de Kurt Lewin (1890-1947),
que foi ampliada pela Teoria Geral dos Sistemas e pela Ciberntica. Estas teorias foram
utilizadas, inicialmente, para a compreenso do processo de comunicao dos
esquizofrnicos com suas mes, e logo em seguida foram ampliados para o que foi
denominado sistema familiar. Um pouco depois, esse contexto terico foi enriquecido
pela entrada do que chamaram de o olhar do observador, a partir das propostas dos
neokantianos e da Biologia do Conhecer. As duas procuraram descrever o homem em
interao, saindo assim do modelo de cincia que procurava por estabilidade.
A Gestalt-Terapia, com base na Fenomenologia, quer descrever o vivido, a
experincia. E os Co-Construtivistas querem provar cientificamente a subjetividade,
mostrando que eu vejo apenas aquilo que acredito. Para ambas, no faz sentido
conhecer sem conhecer aquele que conhece.
Um dos grandes pontos de contato entre a Gestalt-Terapia e as Teorias
Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais est nas propostas do que se tem
como cincia. Consideramos ser possvel incluir ambas no que Boaventura Santos
(1987/1997) tem chamado de paradigma emergente da cincia.
So teorias que j nasceram procurando compreender o que Hall (1992/2002)
colocou como sujeito sociolgico e at mesmo como sujeito ps-moderno. Nelas, no
fazem sentido as dicotomias sujeito-objeto, interno-externo, j que aquele que observa
est inserido no campo. Ambas pensam a questo do sujeito e da subjetividade longe

das questes das estruturas psquicas invariveis. Propem uma Psicologia que
questiona os mtodos cientficos, mas que procura fazer cincia, no aquela que exige
um conhecedor ideal, neutro. Muito pelo contrrio, a cincia que procura trazer a
vida para seu campo de interesse. A proposta de co-construir pontes faz sentido, j que
as referidas teorias no chegaram atual forma de fazer cincia pelo mesmo caminho. O
fato de terem feitos caminhos diferentes, no confluentes, mas que se cruzam em alguns
instantes, que possibilita o dilogo, a troca.
Precisamos esclarecer, ainda, que em ambas as abordagens tambm no h
consenso e unidade, muito menos respostas prontas. So teorias em constante
construo e acreditamos que o dilogo entre elas possa permitir uma prtica
psicoteraputica mais rica. Vivemos esta experincia em nossa prtica clinica, mas
teorizar sobre isto por demais importante, possibilita-nos perceber se as conexes que
temos feito entre as duas abordagens tm resultado em uma colcha de retalhos
harmoniosa, esttica. Do contrrio, caso esta colcha no resulte bela, existe a
possibilidade de tambm no ser tica. Sim, porque podemos produzir uma relao
psicoteraputica onde exista um duplo vnculo, uma dupla mensagem. Por exemplo,
colocarmos que acreditamos no poder de um sistema de se auto-organizar e, ao mesmo
tempo, propormos uma srie de frmulas de mudana para as pessoas desse sistema.
Sobre o paradigma da cincia na modernidade, o que percebemos que, apesar
de haver questionamentos envolvendo-o, as questes que por ele foram levantadas ainda
permanecem. Isto porque, apesar do homem ser visto em outras perspectivas,
continuamos a viver o que Mancebo (2002) denomina de uma subjetividade
individualizada. No adianta apenas descrevermos o homem em interao se a sensao
de ciso entre o ser e o mundo permanece. Temos o ser cindido com o seu prprio corpo
e com a Natureza. Um ser que ganhou a liberdade de encontrar o seu lugar, mas que se
v levado a criar outros significados e sentidos em um mundo que chama muito pela
razo e pelo individual.
Nesse mundo, vemos homens cindidos dentro de e entre si. Eles tm uma fuga
do sentir, que os leva a renunciar o amor, apoiando-se em idias de autonomia e
independncia. Mesmo depois de Nietzsche, Darwin e Freud terem colocado por terra a
idia de que a conscincia racional a herana mais valorizada do homem (Perls,
1969/1979), a demanda por este ser racional se faz presente todos os dias. A busca por
objetividade saiu da cincia e solicitada na vida diria, onde os homens so obrigados
a encontrar uma justificativa racional, at para as coisas que simplesmente gostamos de

fazer. E muitas vezes uma postura cindida eu-mundo proposta inclusive nos processos
psicoteraputicos.
Mesmo quando os terapeutas falam da necessidade de sentido e de amor,
definem eles amor e sentido simplesmente como preenchimento das
necessidades emocionais do paciente. Dificilmente ocorre-lhes (...) encorajar o
sujeito a subordinar suas necessidades e interesses aos de outras pessoas, a
algum ou a alguma causa ou tradio fora dele mesmo. (Lasch, 1984, p.34, em
Marolla, 2002, p. 128)
Pertinente lembrarmos que o ps contm o moderno, at mesmo o prmoderno e a idade da pedra, j que estamos apenas comeando o nosso processo de
auto-regulao (Smuts,1926/1996). Nos diversos perodos da humanidade, parece-nos
que uma perspectiva de ver o homem eliminou as outras. No entanto, ainda
necessitamos dos mitos e das religies para compreender o mundo, porque a cincia no
nos d todas as respostas, apesar de ela prpria ter se tornado um mito.
As constantes transformaes que se sucedem no mundo em que vivemos, no
permitem que percebamos claramente alguns contrastes importantes, que ocorrem
naturalmente, passveis de observao quando de uma anlise cuidadosa: ao mesmo
tempo em que a dinmica transformacional se processa com velocidade, temos pessoas
que vivem de uma forma particular, que mais se aproxima do modo de vida das
comunidades medievais, sem muito ou nenhum contato com o mundo virtual. E mesmo
os que vivem no mundo virtual, quase sempre tm um desejo de se conhecerem
pessoalmente, de preferncia tendo um sol bem real por testemunha.
Acontece, portanto, que cada vez estamos mais sem desculpas, cada vez estamos
mais informados do mundo do outro. Sabemos o percentual de brasileiros que passam
fome e os que passam fome vem o mundo dos ricos na TV. Essa quantidade de
informaes est transformando nossa forma de ver e viver o mundo, e tambm
modificando nossos processos de subjetivao. Ao menos teoricamente, deveramos ter
um mundo mais tico, j que temos acesso a um espectro maior de perspectivas, no
entanto, isso no est acontecendo. Mas porque no? A Gestalt-Terapia e as
perspectivas Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais comearam a teorizar
sobre um mundo em constate transformao h apenas cinqenta anos e novas questes
vm chegando desde ento. O que fazer com essas transformaes? Que subjetividade
est sendo co-construda na contemporaneidade e quais seus reflexos na prtica
psicoteraputica? Temos conseguido levar o dilogo para o processo psicoteraputico

ou ainda estamos colocando uma perspectiva de uma cultura dominante? Estamos


respeitando as perspectivas de mundo das comunidades em que temos trabalhado?
O fato que no viver as coisas acontecem com e e no com ou. Viver isto
no significa que no estamos vivendo aquilo, e as possibilidades de termos diferentes
tipos de vivncias em um mesmo dia so enormes. Simultaneamente, as possibilidades
de escolha para a maioria da populao mundial que luta para sobreviver so mnimas.
O mundo da Psicologia precisa se preparar para compreender toda esta diversidade e
percebemos que as duas abordagens esto procurando faz-lo no mbito da psicoterapia,
buscando recursos nas diversas cincias, com o objetivo de ter uma compreenso mais
ampla dos fenmenos.
Por encerrarem em si tantas possibilidades, que as novas perspectivas so
complexas, difceis de serem digeridas. Talvez nos levem mais conservao do que
mudana. O que tambm seria sbio, j que no faria sentido absorverem apenas uma
teoria, uma nova perspectiva, se esta no se fizer presente na relao psicoteraputica.
Ultimamente, uma destas questes que tem levado a algumas discusses se faz sentido
um psicoterapeuta, que tenha uma perspectiva sistmica do homem em interao, fazer
um atendimento que no envolva as pessoas presentes no campo do problema. Ainda,
se seria tico o psicoterapeuta ter uma perspectiva de totalidade e fazer apenas
atendimentos individuais (Minuchin, 1999, em Vasconcellos, 2003). Talvez, a questo
mais relevante seja como elaborar uma prtica psicoteraputica que no apenas fale do
ser em relao, do ser processual, mas que trabalhe com as pessoas em relao. No
temos uma resposta pronta, mas acreditamos e esperamos que, ao menos, o dilogo
ajude-os a levantar novas questes e, ao mesmo tempo, auxilie-nos a perceber sobre
outras perspectivas.
Tanto a Gestalt-Terapia quanto as Teorias Sistmicas Construtivistas
Construcionistas Sociais questionam a descrio do sujeito moderno, encapsulado, ao
apresentarem um modelo de self relacional. O interessante que so vises diferentes,
apresentadas para descrever a relao pessoas-mundo, onde dentro das prprias
abordagens h mais ambigidade do que consenso. Muitas questes no esto
resolvidas ainda e talvez nunca se fechem, porque provavelmente so questes de
figura-fundo, onde uma perspectiva no exclui a outra.
Assim, os prximos dois captulos pretendem ser uma escuta do que colocam
alguns tericos e psicoterapeutas a respeito das abordagens ora tratadas, pois esperamos

mostrar que as questes levantadas at aqui esto muito presentes para os autores
escolhidos para o dilogo que estabeleceremos.

Captulo 2
Da Fenomenologia a Gestalt-Terapia

2.1 A Fenomenologia

Fenomenologia cincia objetiva (rigorosamente objetiva)


da mais pura subjetividade. (Petrelli,1999, p. 15)
A essncia (wesen) da pre-sena (dasein) esta em sua
existncia. (Heidegger, 1927/2000, Ser e o Tempo, 9, p. 77)
Vivemos querendo ser o mais igual possvel aos
outros para podermos ser ns mesmos (identidade
impessoal/plural) e, ao mesmo tempo, querendo ser
o mais diferente possvel dos outros, para tambm
sermos ns mesmos (identidade singular). (Critelli,
1996, p. 122)

A fenomenologia a postura do conhecer que medra


na angstia, na insegurana do ser. (Critelli, 1996, p.23)
Podemos falar numa postura fenomenolgica, isto , numa
conscincia de ser que dispe o pensar e o prprio existir,
ou ser no mundo, em sua historicidade. (Critelli, 1996, p.31,
grifos da autora)

A verdade no habita apenas o homem interior, ou


antes no existe homem interior, o homem est no mundo,
no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a
partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo
da cincia, encontro no um foco de verdade intrnseca,
mas um sujeito consagrado ao mundo. (Merleau-Ponty,
1945/1976, p. 6 - Prefcio)

Enfim, para um fenomenlogo a verdade no se cria, no


dada a priori, no um dogma. A verdade se busca, se
colhe e se respeita. No se cultua, pois provisria,
histrica, submetida a mutaes do devir temporal. (Petrelli,
2001, p.37)

A impossibilidade de se definir o ser no dispensa a


questo do seu sentido, ao contrrio, justamente por isso a
exige. (Heidegger, 1927/2000, Ser e Tempo, 1, p. 29)

Comeamos pela Fenomenologia, pois a partir dela que Frederick Perls apreende as
grandes questes sobre sujeito, subjetividade e intersubjetividade. Estas questes foram
levantadas no apenas a partir da Fenomenologia de Husserl, mas tambm de seus
frutos, como a Fenomenologia Existencial de Heidegger, da Psicologia da Gestalt, da
Teoria do Campo de Kurt Lewin, da Teoria Organsmica de Kurt Goldstein.
As grandes preocupaes da Fenomenologia so: possvel conhecer? como se
processa este conhecimento? possvel a correspondncia no conhecimento entre o que
eu conheo e o que os outros conhecem? (Petrelli, 2001,1999). A partir destas questes,
surgem outras: podemos separar o que conhecer daquele que conhece? Ou, nos termos
da Gestalt-Terapia, como fazemos contato com o mundo? Assim, as questes da
Fenomenologia e do Construtivismo se encontram na pergunta de como se d o
processo do conhecer e reintegrar ao conhecer aquele que conhece.

2.1.1 O tema da Fenomenologia

Para Husserl (1936/1984), o tema central da Fenomenologia o mundo, mas no o


mundo simplesmente, e sim o mundo que nos est constantemente e previamente dado
no cmbio de suas maneiras de dar-se. A tarefa consistiria em captar precisamente a
essncia, o estilo de um rio, como o descrito por Herclito, meramente subjetivo e
aparentemente inapreensvel.
Segundo Giovanni (1991), nas ocasies mais dspares, podemos ouvir os sons
mais diversos, mas neles reconhecemos uma essncia em comum. Quando a conscincia
capta um fato aqui e agora, ela capta tambm a essncia, o quid, desse fato particular e
contingente. Por exemplo, uma cor o caso particular da essncia da cor, um som o
caso particular da essncia do som. A essncia no um dado mediato, para comparar
vrios fatos preciso que se j a tenha captado, isto , captado um aspecto pelo qual so
semelhantes. Dessa forma, o individual se anuncia na conscincia por meio do
universal. A Fenomenologia a cincia das essncias, dos modos tpicos do aparecer e
manifestar-se dos fenmenos conscincia. Essncia, para a Fenomenologia, um puro

possvel, ou seja, podem haver tantas essncias quantas significaes nosso esprito for
capaz de produzir (Holanda, 2002).
Para a Fenomenologia s faz sentido compreender o homem e o mundo a partir
do vivido, ela repe a essncia na existncia (Merleau-Ponty, 1945/1996). A
Fenomenologia, portanto, a cincia da experincia, no de dados de fato. Logo,
(...) buscar a essncia do mundo no buscar aquilo que ele em idia, uma vez
que o tenhamos reduzido a tema de discurso, buscar aquilo que de fato ele
para ns antes da tematizao (...) Portanto, no preciso perguntar-se se ns
percebemos verdadeiramente um mundo, preciso dizer, ao contrrio: o mundo
aquilo que ns percebemos. (...) O Mundo no aquilo que penso, mas aquilo
que eu vivo; estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele,
mas no o possuo, ele inesgotvel. (Merleau-Ponty, 1945/1996, p.13/14)

2.1.2 O significado de Fenomenologia e o significado da busca da


Fenomenologia

A palavra Fenomenologia significa o estudo do fenmeno. Por sua vez, fenmeno vem
da expresso grega fenomenon e deriva do verbo fainestai, que quer dizer mostrar-se a
si mesmo, aquilo que vem luz, que se mostra, a manifestao daquilo que se
esconde. Fenomenologia (phenomenon + logos) significa o discurso sobre aquilo que se
mostra como . A partir desta definio, pode-se dizer que todo aquele que se prope a
descrever ou estudar aquilo que aparece, ou que se prope deter-se em sua cincia,
chamado de fenomenlogo.
A Fenomenologia proposta por Husserl (1859-1938) comeou a se organizar no
final do sculo 19 com Franz Brentano (1838-1917). J no sculo 20, Husserl buscou
atender aos reclamos de uma poca em relao a duas ordens de fenmenos: os
fenmenos objetivos estudados pelo mtodo experimental, consagrado pelo ideal de
cientificidade alcanado pelas cincias da natureza, e os fenmenos subjetivos da
conscincia, indagados pela Filosofia (que ainda no era considerada cincia pela
ausncia de objetividade e mtodos precisos). No entendimento de Abbagnano (Bruns,
2001), a cincia, na qualidade de cincia dos fatos, nada diz a respeito do sentido ou da
falta dele na existncia humana, e isto foi, exatamente, o que constituiu a busca de
Husserl.

Husserl retomou o conceito de intencionalidade proposto por Brentano. Este


postulado bsico permitiu Fenomenologia contrapor duas correntes:
- a Racionalista, cujo principal expoente foi Ren Descartes (1596 1650), que
defendia a existncia de um nico mtodo, o qual poderia explicar a causalidade de
todos os fenmenos naturais ou humanos e priorizava o valor da razo e do intelecto no
processo de conhecimento.
- a Empirista, representada por Francis Bacon (15611626), que enfatizava a
importncia da experincia sensvel do objeto conhecido por meio dos sentidos.
Essas duas correntes foram o contraponto clssica questo da relao sujeitoobjeto, segundo a qual se d nfase ora ao sujeito cognoscente, ora ao objeto conhecido.
A Fenomenologia, ento, no prioriza nem sujeito e nem objeto, pois ressalta a
indissocializao de um aspecto e outro na prpria estrutura da vivncia da experincia
intencional. Husserl, assim como Brentano, afirmou que toda conscincia intencional
e, portanto, no h conscincia desvinculada de um mundo para ser percebido,
tampouco h mundo sem uma conscincia para perceb-lo. Dessa forma, no h
conscincia pura, separada do mundo, como afirmavam os racionalistas e igualmente
no h objeto em si, independente de uma conscincia que o perceba, conforme era a
viso dos empiristas. Para a Fenomenologia, o objeto sempre para um sujeito que lhe
atribui significado. Segundo Giorgi (1978, p. 78 em Bruns, 2001, p. 60) o significado
o resultado do encontro entre os homens e o mundo, um encontro onde ambos esto
essencialmente envolvidos.
Com estes argumentos, a Fenomenologia questiona a Filosofia positivista pela
sua nfase em viabilizar um conhecimento exato, objetivo e neutro. Husserl foi um
crtico das Cincias Naturais propostas em sua poca. Pois a especificidade do mtodo
experimental no abria caminhos quando objeto de estudo era o homem, que
subjetivo, dotado de psiquismo, cuja essncia a plasticidade. Caractersticas que o
tornam afetivo, opinativo, contraditrio e ambguo. Nesse contexto que Husserl
passou a defender a construo de uma Psicologia eidtica, cujo objetivo fosse o
domnio das evidncias originrias, isto , a revelao do objeto no seu ser ou na sua
essncia, permitindo assim a anlise das experincias vividas pelo homem (Bruns,
2001, p.60).
Husserl resgatou a subjetividade denunciando o positivismo ingnuo de uma
cincia que se perdeu no mundo, entre os entes que procurava conhecer (Wuensch,
1993). Tambm falou da necessidade de trazer novamente vida para a cincia, de um

retorno ao mundo da vida onde todos vivem, inclusive os cientistas (Husserl,


1936/1984). O nosso conhecimento comea com a experincia segundo Husserl. Iniciase com a experincia de coisas existentes, de fatos.
O que entendemos hoje como Fenomenologia diz respeito a uma corrente de
pensamento cujas razes esto calcadas na preocupao com os rumos da cincia e com
a colocao do ser humano nesta situao (Holanda, 1997). A Fenomenologia de
Husserl caracterizou-se, especialmente, por constituir uma forma de se acessar a
realidade de um modo sistemtico e, como tal, implica uma especfica viso de mundo.
O retorno coisa mesma tem o sentido de encontrar a essncia dos fenmenos tal como
manifestados na conscincia. E a conscincia, sempre entendida como conscincia de
alguma coisa, sempre intencional. A tarefa da Fenomenologia , assim, analisar as
vivncias intencionais da conscincia, para compreender como os sentidos so
produzidos. A intencionalidade funciona como uma regra correlacional, indicando que
algo est ligado a algo (Dartigues, 1973).
Vemos, portanto, que na Fenomenologia o conhecimento humano s aparece
como intencionalidade. E empregando o termo intencionalidade, ela rompe com a idia
de sujeito isolado do mundo. Revela a ns mesmos a nossa subjetividade como
necessidade de algo que condiciona a nossa vida. Desse ponto de vista, o sujeito toma
conscincia de si no momento em que se descobre dependente. H um retorno s
operaes concretas do sujeito, quando percebemos que precisamos respirar o ar, que
aparece no nosso e como nosso, mas como prprio da nossa subjetividade (Valentini,
1994).
O conhecimento, portanto, no a morada de imagens cognitivas na
interioridade do sujeito, mas a presena imediata do sujeito como uma espcie
de luz numa realidade presente. Como modo de ser-homem o conhecimento
humano uma maneira de existir, uma maneira de ser-envolvido-no-mundo, isto
o sujeito mesmo. (...) O conhecimento no algo entre duas coisas por si,
nem uma relao entre duas realidades diversas, mas o prprio sujeito envolvido
no mundo. (Luijpen, 1969/1973, p. 99)

2.1.3 A crise de sentido das cincias

A Fenomenologia nasce como uma crtica epistemolgica, ou seja, como uma crtica ao
conhecimento (Critelli, 1996), como um questionamento acerca da crise das cincias.
E desta crtica que derivou um mtodo que, mais tarde, tornou-se a Filosofia
propriamente dita (Holanda, 2002), j que a cincia libertadora costuma trazer, tambm,
possibilidades terrveis de subjugao. E sob esse aspecto de ambigidade, de
complexidade, que devemos compreend-la. A propsito desse aspecto dual, Husserl j
o questionava na Europa entre as guerras, onde, apesar de todos os avanos cientficos,
os homens presenciavam a ascenso de um irracionalismo na Alemanha. E sob esse
irracionalismo, que iria fazer sofrer o prprio Husserl, definiu-se a sua principal
questo, que era qual o papel dos filsofos e dos cientistas nessa grande crise, j que a
tarefa destes seria a de servidores da razo, pelo menos a princpio.
Sobre esse questionamento, Husserl (1936/1984) colocou em um dos seus
ltimos escritos, editado postumamente, que a crise das cincias no a crise de sua
cientificidade, e sim a crise de que se as cincias em geral tm significado e o que
podem significar para a existncia humana. Na segunda metade do sculo 19, Husserl
procurou chamar a ateno para como a viso de conjunto do homem moderno se
deixou influenciar pelas cincias positivas e como, tambm, deixou-se deslumbrar pela
prosperidade que da derivava. Isto significou o afastamento das cincias dos problemas
decisivos para uma autntica humanidade. Ao criticar essa cincia, afirmando que ela
exclua aqueles problemas que eram os mais candentes para o homem, os do sentido e
do no-sentido da existncia humana, Husserl esclareceu que no se referia a uma crise
de verdades, mas a uma crise de sentido. Perguntava Husserl, ainda, o que tinha esta
cincia a dizer sobre a razo e sobre a no-razo, j que as categorias cientificas
substituram o concreto, o mundo-da-vida e houve um esquecimento das origens,
consolidou-se a tendncia de considerar a cincia como realidade autnoma e mais
objetiva que o mundo da vida ou como nico aspecto do mundo da vida.
A grande crtica que Husserl fez s cincias foi sobre a ignorncia dessas
cincias em relao aos seus prprios fundamentos.
A cincia a conscincia que se perdeu no mundo, abandonou-se entre os seus
prprios objetos, alienou-se entre seus prprios objetos, alienou-se no seu
prprio conhecimento e enfeitiou-se pela tese da existncia. O esforo de
Husserl resgatar o sentido prprio da racionalidade, no apenas como
conhecimento, mas tambm como reflexo. ai que entra a Cincia de Rigor. Se
por um lado a cincia busca a exatido, o clculo de possibilidades, a Filosofia

busca, por outro lado, o rigor e o exame criterioso das possibilidades. (Wuensch,
1993, p. 94, grifos da autora)
Cincia de Rigor pelo fato de Husserl no pretender renunciar objetividade da
cincia, mas reintegr-la ao mundo da vida.
A fenomenologia no nem mesmo uma oposio metafsica; ela apenas a
busca de tornar acessvel ao pensar aquilo que atravs da metafsica se manteve
em ocultamento para o pensar, se manteve esquecido. Merleau-Ponty fala do
pensar impensado. Husserl chama o pensar para que se volte coisa mesma.
Heidegger indica a superao da representao e a aponta para a apropriao
do ser. (Critelli, 1996, p.31, grifos da autora)

2.1.4 A reduo fenomenolgica


O esforo da Fenomenologia est na tarefa de ir s coisas mesmas, apreender o
mundo tal qual este se apresenta para ns enquanto fenmeno. E esta tarefa, por sua vez,
marcada pelo irmos s coisas mesmas desvinculados de preconceitos, implica uma
abstrao das idias preestabelecidas em prol de um contato direto com o observado e
com o vivido, deixando-nos abandonados compreenso desta realidade, em uma
experincia anti-predicativa, anterior a toda formulao de conceitos e juzos. Realizar a
reduo, a poch, a busca do significado, uma procura pelo subjacente, em
detrimento do simples aparente. procurar sair do pr-conceito, que produto de
uma antecipao, da anteviso de uma possibilidade, e ir ao conceito, que fruto da
relao do sujeito com sua realidade vivencial, um produto a posteriori. A
conseqncia da poch a intuio das essncias e no a simples descrio do
fenmeno, do aparente, pois isto seria puro fenomenismo (Holanda, 1997). Fazer
Fenomenologia realmente se embrenhar por dentro da realidade, para desvendar o que
est por trs dela.
Interessante verificarmos que, sobre o comeo de uma interpretao
concreta dos dados da intuio sensvel, Husserl (1936/1984) descreve que,
enquanto realizamos a poch, a primeira reduo fenomenolgica, samos de uma
atitude natural, ingnua (ou dogmtica) do modo de apreenso dos fenmenos, e
observamos desinteressados o mundo, o mundo subjetivo-relativo em que se
desenvolve toda a nossa vida comum, nossos esforos, preocupaes, realizaes.

Olhamos ao redor, no no sentido de investigarmos, mas sim no de observarmos


tudo que vale para ns, considerando o nosso ponto de vista subjetivo. Procuramos
ver algo com todos os sentidos: viso, tato, audio... Com efeito, passamos a ter
uma certeza do ser dessa coisa, que lhe so prprios todos os lados
simultaneamente, e que temos um modo em que a vemos mais favoravelmente.
Cada lado nos d algo da coisa vista. Na verdade, o cmbio continua o do ver, e
algo visto deixa de ser visto, mas retido juntamente com os lados anteriormente
retidos e desta forma como aprendemos a conhecer essa coisa. Em cada
perspectiva, em cada fase, d-se um sentido, enquanto intencionamos algo. Estes
sentidos se enlaam em um progressivo enriquecimento de sentidos e numa
contnua formao de sentido. Assim, tudo recebido em uma unidade vlida. Em
cada percepo da coisa est implcito todo um horizonte de maneiras de
aparecer e snteses de validade no atuais, contudo co-operativas.
E desta forma que o processo permitido pela reduo fenomenolgica
pode oferecer um caminho para sair do impasse entre objetividade e subjetividade.
Na reduo fenomenolgica, o pesquisador procura suspender temporariamente
o conhecimento que possui a priori acerca do fenmeno, inclusive dito cientifico, o
que no significa uma atitude de neutralidade, mas uma postura intencional em
relao ao fenmeno, no intuito de aproximar o sujeito pensante da efetiva
realidade do objeto, e no da concepo suposta deste. por intermdio da
reduo fenomenolgica que podemos procurar retornar s coisas prprias, ao
mundo da experincia original, ao mundo da vida. Essa postura evidencia que os
fenmenos no existem em si mesmos como realidades neutras e objetivas, mas
existem para uma conscincia que lhes atribui significados, os quais envolvem a
percepo que a pessoa possui de si mesma, de sua relao com os outros e com o
mundo num determinado momento histrico.
Segundo Merleau-Ponty (1945/1996), do assistente de Husserl, Eugen Fink, a
melhor maneira de falar de reduo uma admirao diante do mundo. Na reduo,
no nos retiramos do mundo, apenas tomamos distncia para ver brotar a
transcendncia, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao mundo para faz-lo
aparecer, ela s conscincia do mundo, pois o revela como estranho e paradoxal. (...)
Para ver o mundo e apreend-lo como paradoxo preciso romper nossa familiaridade
com ele (p.10). Ento, porque somos ser-no-mundo, para nos apercebermos disto
temos que suspender esse movimento, recusarmos momentaneamente tal cumplicidade,

para que o que evidente, aquilo que passa despercebido, possa aparecer. E
justamente pelo fato de sermos ser-no-mundo que no h possibilidade de uma reduo
completa.
A reduo no significa absteno ou anulao dessa relao. O que a poch
possibilita uma desconstruo da experincia, em nveis cada vez mais profundos. a
nica forma de reflexo que no anula o irrefletido, mas o manifesta (von Zuben, 1994).
Na reduo, h aniquilamento,
(...) uma destruio ou uma perda do mundo tal como o vivenciamos
espontaneamente. No se trata, porm, de nenhuma agresso emprica ao mundo
mesmo, nem existncia em geral. O que ocorre a criao de um estado de
conscincia, onde o mundo est em suspenso, enquanto fato, enquanto tese
ingnua, ou, conhecimento ignorante de seus prprios fundamentos (...). O
mundo esta a para ns, porm agora entre parnteses. proibido fazer
afirmaes sobre a existncia. permitido fazer e encaminhar investigaes,
des-construes e descries daquela experincia sobre a qual se produzem
teses. (Wuensch, 1993, p. 21, grifos da autora)
Segundo Vanni-Rovighi (em Giovanni, 1991), uma questo importante que
surge em funo do pensamento de Husserl que preciso vermos se dar significado
significa criarmos ou revelarmos o significado. Para Giovanni (1991), Husserl nem
sempre claro neste sentido, parecendo oscilar do primeiro para o segundo significado
em perodos diversos do desenvolvimento do seu pensamento.
Assim, a reduo nunca acaba de operar, pois, para a Fenomenologia, o ser que
aparece e desaparece no aparecer dos entes deve ser compreendido como um vir-a-ser
na cotidianidade da existncia. O que resiste aos ataques da poch, ou seja, o que no
se pode pr entre parnteses, a conscincia ou a subjetividade. A conscincia no
apenas a realidade mais evidente, o fundamento de toda a realidade. O mundo segundo
Husserl constitudo pela conscincia no sentido de que a conscincia que d
significado ao mundo. Segundo Cabrera (no prelo), da essncia de toda conscincia
intencional abrigar coisas que chamamos de sentido (sinn), e eventualmente um
mltiplo sentido. Inclusive em Husserl, sentido vai ser retirado da esfera da linguagem e
colocado no plano do ato intencional: intencionalidade dirigir-se a algo por meio de
um sentido, ter em mente, mentar, meinem. Inicialmente Husserl em Idias I sentido
identificado com significado (bedeutung). Mas depois coloca que: A Bedeutung no
possui originariedade, a intencionalidade primordial vem do Sinn, mas por outro lado, a

Bedeutung possui um privilgio, o de proporcionar expresso a todos os Sinne


intencionais, vinculado-os com a universalidade (Cabrera, no prelo, p. 120 - Parte II.
1.1).

2.1.5

questo

do

ser

Provisoriedade,

mutabilidade

relatividade
As crticas realizadas por Husserl s cincias chegam s ltimas conseqncias com
Martin Heidegger, em sua obra Ser e Tempo. Ao questionar o saber metafsico, que
pressupe que a verdade seja estvel e absoluta, bem como a via de acesso a ela,
Heidegger, tal como Husserl, props a Fenomenologia como uma cincia das essncias.
No entanto, sua grande preocupao era a questo do ser, esquecida pela Filosofia
ocidental.
Para deixar clara a sua preocupao, Heidegger preferiu falar de ser (dasein, sera) ao invs de subjetividade, pois esta ltima foi forjada na modernidade e se reporta
mais a respeito do homem visto como Cogito, como Razo (Critelli, 1996; Marcondes,
1997/2002). Heidegger pretendia expressar no apenas o homem sujeito epistmico,
mas existencial, realizador de cuidados.
Heidegger acaba por propor uma nova ontologia. J que o conhecimento do
mundo deixa de ser tratado como uma questo cognitiva para ser tratado sob o prisma
da existncia. Em funo disso, a Fenomenologia embasada em Heidegger
denominada de Fenomenologia Existencial ou mesmo Filosofia da Existncia.
Ou melhor, subordina a possibilidade do conhecimento s possibilidades
existenciais; o pensar se estabelece sobre o ser, evidenciando-o. Assim, a tarefa
de se pensar a possibilidade de uma metodologia fenomenolgica de
conhecimento , em ltima instncia, uma reflexo sobre o modo humano de
ser-no-mundo, inclusive tal como desdobramento na tradio da civilizao
ocidental. (Critelli, 1996, p.16)
Toda interrogao ou investigao do real tem por fundamento, explcita ou
implicitamente, uma compreenso do que seja ser. O ser no est por trs das
aparncias, mas nelas mesmas. O ente carrega em si seu ser, seu aparecer e desaparecer,
seu estar luz e estar no escuro. O ser no est na sombra do que est luz, mas est no
ente. Portanto, est naquilo que se mostra. Assim a aparncia, para a fenomenologia,

legtima (Critelli, 1996, p. 29). O ser se manifesta no mundo, e no em uma zona


escura, invisvel, como prope a metafsica.
Na metafsica, o que objetivo no a coisa, mas a sua representao. O seu
empenho superar a fluidez do mundo, do pensar, do existir, considerando que este o
caminho para o conhecimento. A metafsica faz uma confuso entre objetividade que
pertence representao e a objetividade que pertence s coisas mesmas (Critelli,
1996, p.107). O que objetivo para a metafsica acaba sendo a representao que
fazemos das coisas, e no as coisas. E isto tambm requer uma ateno aparncia dos
entes, mas uma aparncia de permanncia, de estabilidade, de unicidade. Aparncia que
vai ser construda por meio da representao.
Enquanto a metafsica se preocupa com a representao, com a aparncia estvel
das coisas, a Fenomenologia s aceita a possibilidade do conhecimento a partir da
fluidez de um mundo em que tudo muda, inclusive as nossas idias, sensaes e
emoes, mudando assim o sentido e o significado das coisas. Esta no uma
deficincia do existir, mas nossa condio de existir. E em funo disto que
continuamos a perguntar pelo sentido do nosso existir, porque este vai embora.
S diante de um vazio de sentido para ser, que torna insignificantes os
significados tcitos e outrora claros de todas as coisas, que o pensamento se
lana na aventura de saber, de conhecer. O pensar se lana como propriamente ,
interrogante, se angustiando; ele posto pela angstia de ser diante do nada, da
inospitalidade do mundo, da liberdade da existncia (Critelli, 1996, p.22/23).
O retorno ao mundo-da-vida recoloca o sujeito no seu lugar e no permite que
ele seja objetificado, por si mesmo ou pelos outros. No permite que o sujeito seja
reduzido a um aspecto, tornando-se alheio a si mesmo (Valentini, 1984). Tanto assim,
que, como j vimos, h a aceitao da impermanncia na Fenomenologia.
A Fenomenologia sabe da relatividade que se instaura e a considera, por
compreender que esta relatividade imposta pelo ser mesmo. Desta maneira, a
relatividade no vista como algo a ser superado, mas como uma condio que os entes
tm de se manifestarem, pois a relatividade diz respeito provisioriedade das condies
em que tudo o que vem a ser e permanece sendo. E este o bero da Fenomenologia,
um pensar crtico do pensar metafsico, que hoje se manifesta nas cincias e na
tecnologia.
A Fenomenologia coloca claramente que o problema da perspectiva invoca
provisoriedade, mutabilidade e relatividade. O mundo nos constantemente dado no

cmbio de suas maneiras de dar-se. A proposta da Fenomenologia no substituir um


ponto de vista pelo outro e compreende esta determinao da perspectiva metafsica
como um limite e no como uma inverdade. E como uma perspectiva relativa e
provisria que a Fenomenologia mesma se autocompreende.
Na coincidncia ser e aparncia, proposta pela Fenomenologia, o ser s pode ser
compreendido no seu aparecer/desaparecer. Assim h uma prvia compreenso de que
os entes tm diferentes poderes de manifestao, em que residem suas diferenas
ontolgicas. Em uma investigao fenomenolgica, iremos atrs desse movimento de
vir-a-ser do existir, pois na existncia que as coisas so e chegam a ser o que so como
so (Critelli, 1996). Nosso saber relativo devido prpria relatividade imposta pelo
ser. Este ser pode se manifestar nos modos-ser-no-mundo, e, neste mundo, ele aparece
em plenitude e a mesmo desaparece. Um aparecer para o outro, e ento este aparecer
vai variar de acordo com o ponto de vista de algum (indivduo ou coletividade). Esta
ambigidade de aparecer/ocultar no significa que algo no foi visto, mas nos mostra
que o se ocultar pertence ao mostrar-se da prpria coisa. Na relao aparecer/ocultar
podemos perceber que as aparncias importam sim, pois alm delas exporem os entes,
elas os protegem.
A opo da Fenomenologia pela aparncia, segundo Arendt (Critelli, 1996), dse pelo fato de no vivermos no mundo das causas, mas das aparncias. Uma emoo ou
uma cadeira, s podem s-las na medida em que se manifestam, em suas mltiplas
possibilidades. O que no se manifesta no existe. Quando falamos de aparncia, no
pensamos em presena fsica, mas tambm em todos os significados fincados no
fenmeno. Por isso, o significado no est nas coisas, e sim no nosso mundo. E
valendo-nos mais uma vez de Arendt, nada do que aparece, aparece sozinho, nada tem
uma aparncia no singular, porque a pluralidade a lei da terra (em Critelli, 1996,
p.43). Nesta perspectiva, o significado de cada coisa descoberto e no atribudo s
coisas pelos homens. Por conseguinte, o que as coisas so no est nelas mesmas, mas
na relao entre o olhar e as coisas. E este olhar no individual, exclusivo a um
indivduo, pois mesmo o olhar do indivduo composto por todo o referencial das
relaes significativas do mundo em que habita. Podemos perceber que no universo
cultural em que vivemos as coisas mudam de significado, e no os objetos que deixaram
de ter presena.
Assim, para a Fenomenologia, a qualidade de objetividade do real no pertence
nem coisa, nem mera representao, pertence relao que se estabelece entre o

homem e a coisa, manifestando-se mutuamente. Os modos de objetividade do real


mudam em funo do vivido e no do pensar ou do conhecimento. No vivido, lidando
com as coisas e pela sua ao no mundo, o homem se realiza, desenvolve-se como serno-mundo (Critelli, 1996).

2.1.6 A possibilidade de uma comunidade intersubjetiva e a coconstituio de um sentido de mundo objetivo

A tematizao da intersubjetividade uma prtica recente na Filosofia, e devemos muito Fenomenologia de Husserl pela sua
contribuio, no sentido de pr o outro como uma questo para a reflexo (Wuensch, 1993). Por isso, apresentaremos, em linhas
gerais, como Husserl chegou ao tema da intersubjetividade.

A questo que levou Husserl a suspender a atitude natural e abrir o campo para
uma investigao transcendental foi: como opera a conscincia ou como, por meio de
suas operaes conhecemos o mundo e a ns mesmos? E, ao efetuarmos a reduo,
temos o plo subjetivo (o fluxo da conscincia do eu transcendental) e o plo objetivo
(que compreende tudo que aparece conscincia). Podemos perceber que a
Fenomenologia no fica apenas em um solipsimo ( solus ipse, que quer dizer um s si
mesmo). Nesse contexto, tornou-se imprescindvel Fenomenologia a questo do outro
eu, do alter ego (Villela-Petit, 2001).
Assim surgiu o tema do compreender. Segundo Dartigues (1973), compreender e intencionalidade esto ligados, j que
compreender procurar pela inteno desaparecida, perguntando-se: o que se quis dizer? O que se quis fazer? O
comportamento humano pode ser compreendido porque exprime uma inteno que nos acessvel. Compreender , portanto,
resgatar a dimenso subjetiva, intencional, que nos torna humanos. O homem compreende uma coisa quando sabe o que fazer
com ela, do mesmo modo compreende a si mesmo quando sabe o que pode fazer consigo, isto , quando sabe o que pode ser
(Giovanni, 1991).
Compreender , ainda, reapoderarmo-nos da inteno total, o que se distingue da inteleco, da representao. E procurarmos
perceber de todas as formas ao mesmo tempo, onde todas as vises so verdadeiras quando no as isolamos. quando as
perspectivas se confrontam e um sentido aparece na interseco de nossas experincias com as do outro. Por tal razo, no
podemos separar subjetividade de intersubjetividade (Merleau-Ponty, 1945/197).

Para a Fenomenologia, o outro no acessvel a ns de modo direto, pois do


outro, aquele corpo fsico que est ali, no temos acesso direto. Ento temos que operar
um vnculo intencional de semelhana entre aquele corpo fsico e o nosso prprio. ,
ento, por analogia que constitumos o outro como alter ego, primeiro como corpo
fsico e depois como uma unidade que possui um ego como ns, e, ento como um
homem capaz de reduzir-se sua prpria conscincia e de ter acesso ao campo
transcendental, da mesma forma que ns. Desta forma, o outro conhecido buscando

conformar-se, por semelhana, quilo que foi originalmente conhecido. a partir da


que vamos estabelecer um novo patamar de anlise, em busca da possibilidade de uma
comunidade intersubjetiva, ou seja, fazer a passagem do outro para um ns (Wuensch,
1993). Pelo corpo do outro, o mundo me escapa enquanto meu mundo, polariza-se em
torno do outro e se torna a-para-todos (Schmidlin, 1999, p. 114). Temos um mundo
comum no privado, e estamos abertos a ele.
Destarte, o corpo se revela essencial para a elucidao da experincia de
outrem, desde as primeiras experincias com a me. Esta transferncia aperceptiva no
requer nenhum pensamento, pois se d graas a uma sntese passiva, no refletida, que
acasala o meu corpo com o do outro (Villela-Petit, 2001).
Em virtude dessa associao, o corpo prprio do outro me apresenta, me
presentifica aquilo que me essencialmente inacessvel e jamais se tornar
presente para mim, isto , o seu eu com a esfera de experincia que lhe prpria.
D-se a o que se chama tambm de empatia. Mediante a experincia que fao
do corpo do outro, este se apresenta a mim como um outro-eu (p.136).
Segundo Husserl (Wuensch, 1993), uma vez colocada a possibilidade da
experincia do outro em nossa esfera primordial quando constitumos o sentido do
outro na intencionalidade da nossa conscincia a possibilidade dos outros em geral e
da comunidade intersubjetiva tornam-se uma conseqncia. E esta comunidade
intersubjetiva tem como propriedade co-constituir o sentido do mundo objetivo como
mundo comum para ns mundo nico e idntico que se oferece nossa experincia.
Ns podemos nos autoconstituirmos como subjetividade, mas no podemos, sozinhos,
constituirmos o sentido do mundo objetivo. Isto porque, fenomenologicamente, o
mundo objetivo e os outros transcendem nosso prprio mundo objetivo. O mundo
objetivo co-constitudo, ou seja, constitudo intersubjetivamente, ao contrrio do
mundo subjetivo, a esfera mondica ou campo da conscincia transcendental, que
segundo Husserl, auto-constitudo (Wuensch, 1993, p.66).
Sobre o trabalho de Husserl acerca da constituio da pessoa e das comunidades
pessoais de ao, utilizamo-nos de um interessante trecho do autor, em Villela-Petit
(2001). No referido trabalho, Husserl considera a origem da personalidade na sociedade
e mostra a interpenetrao intersubjetiva que caracteriza a vida subjetiva enquanto vida
pessoal. O texto abaixo se refere s anlises husserlianas sobre a famlia:
(...) so maneiras de estar junto, maneiras de se estar em relao mtua com um
outro em aspiraes vitais, na ao, na influncia recproca, em relaes

funcionais recprocas, por meio de que a ao de um se insere na ao do outro;


cada sujeito intervm de um modo pessoal na vida e na ao de um outro, e vive
por conseguinte nele sob a forma de uma comunidade, se une a ele enquanto
pessoa em relaes mltiplas que ns encaramos juntos enquanto Eu e Tu;
em suma, uma unidade, um todo constitudo, construdo a partir de sujeitos
egicos que se interpenetram reciprocamente na medida em que a vida de um
acompanha a vida do outro e dela participa; a egoidade de um no est ao lado
daquela do outro, mas vive e a age nela. (Husserl, 1973/2001, p. 279, em VillelaPetit, 2001, p.139)
Profundamente tica, a Fenomenologia de Husserl prope uma unidade
intersubjetiva, que se estende da unidade entre duas pessoas at a unidade ideal da
humanidade. Esta unidade no significa nem uniformidade e muito menos unanimidade.
Assim, por mais unida que seja uma famlia, no se espera que todos os seus membros
pensem da mesma forma, mas que se motivem uns aos outros. Husserl prope uma
unidade atravs do mltiplo ou da pluralidade. E neste sentido faz um convite para
refletirmos sobre o que intervm como obstculo constituio de uma
intersubjetividade mais autntica, mais verdadeira. Um convite chamado pelo amor
cristo a entrar em relao com os homens, a se abrir a eles e a abr-los a eles prprios,
etc tudo isto segundo uma possibilidade prtica cujos limites so ticos e, sendo
assim, eles prprios fixados pelo amor tico (Husserl 1973/2001, p. 275, em VillelaPetit, 2001, p. 142).
Heidegger explora com mais clareza este conceito ou possibilidade da intersubjetividade que nos leva compreenso.
Augras (1986) coloca que a Fenomenologia Existencial postula que o mundo da coexistncia no se estrutura em termos de
oposio ou de complementaridade entre um sujeito e os diversos objetos que o rodeiam. A autora completa, citando Heidegeer:
Os outros no designam a totalidade daqueles que no sou, dos quais me separo, pelo contrrio, os outros so aqueles dos quais a
gente no se distingue, e entre os quais se encontra tambm (Augras, 1986, p.55/56). Mesmo sem a presena do outro, o ser-nomundo ser com os outros. Esta caracterstica fundamental da existncia propicia a compreenso da existncia alheia. Dessa forma,
a compreenso de si fundamenta-se no reconhecimento da coexistncia, e, ao mesmo tempo, constitui-se como ponto de partida para
a compreenso do outro.

Mas a compreenso de si marcada pela estranheza, e esta estranheza vai


acompanhar a compreenso do outro, ou seja, a coexistncia tambm estranheza.
Ento, integrar a duplicidade de ser anlogo e de ser estranho que se torna o problema
central do indivduo procura de sua verdade. A propsito, Morin (1969, em Augras,
1996) coloca que o Homo Duplex um ser histrico, onde cada unidade construda
destruda e reelaborada dentro do processo de individuao. Assim, o estudo do modo

da coexistncia exige o exame da duplicidade individual, nos diversos aspectos que


pode revestir o outro dentro de si, encontramos-nos atravs do outro.
A compreenso, para Heidegger, uma caracterstica essencial do existir
humano, j que o seu objetivo revelar at que ponto do seu ser o existente se encontra
consigo mesmo. No entanto, a compreenso inconclusiva, pois esbarra nos limites da
existncia e da liberdade existencial; todos os fenmenos so infinitamente
interpretveis e reinterpretveis; o compreensvel pode no s revelar-se, mas tambm
se ocultar no fenmeno, ou seja, a compreenso sempre ambgua, iluminao ou
desmascaramento. (Augras, 1996, p. 84). Assim surge a questo, colocada por Augras:
ser que a compreenso no pode ser objetiva? Para a autora, no caso da Psicologia, a
objetividade s se encontra no reconhecimento dessa ambigidade, que a fundamenta na
intersubjetividade. Somente a Fenomenologia permite superar o paradoxo da
compreenso, mostrando que compreender no modo de conhecimento, modo de
ser. Citando Ricoeur (1969), a autora ainda completa: Aquilo que fora paradoxo o
fato de o interpretador fazer parte do seu objeto torna-se trao ontolgico (Augras,
1996, p. 84/85).
Diante de tais consideraes, temos que considerar, ento, que a pesquisa
fenomenolgica-existencial no pode deixar de considerar que o pesquisador, ele
prprio, tambm um sujeito da pesquisa e que a significao buscada transparece no
encontro de suas vivncias com as vivncias do(s) outro(s) sujeito(s). E ai que a
objetividade cientfica se fundamenta na intersubjetividade. Alm disso, Husserl (2001,
em Villela-Petit, 2001) j reconhecia a unidade da cincia como o correlato de uma
prxis intersubjetiva, que transgride os limites das comunidades culturais s quais,
originalmente, pertencem os homens de cincia. Nesse sentido, o eu no pode ser jamais
individual, plural, pois exatamente igual a todos os homens, carrega em si tudo o que
est presente nos outros homens. E o , tambm, por condio ontolgica singular,
posto que no pode ser repetido. Assim, nunca o eu pode cuidar da vida, tornando-a
um acontecimento exclusivamente seu. Sua vida um acontecimento que implica os
outros. Os outros tambm acontecem junto e atravs do eu (Critelli, 1996, p. 65, grifos
da autora). Por conseguinte, nenhum olhar absolutamente individual, pois, como
temos visto, a coexistncia (pluralidade) o fundamento de toda a possibilidade humana
de compreender e de conhecer, inclusive a si mesmo. O ente pode manifestar-se para
um olhar e, ao mesmo tempo, ser o olhar.

A produo da vida e do nosso prprio eu uma produo coletiva. Este eu pode


vir a ser uma obra conjunta de si mesmo e dos outros, mas pode se tornar o que os
outros desejam que ns sejamos. O fato de sermos com os outros pode insuflar a
construo do quem como imprprio ou inautntico, impessoal. Mas esta condio de
impropriedade no depreciativa do carter do homem, pois esta uma condio
ontolgica, assim como o compreender e o coexistir. E tal como o homem pode
construir uma existncia inautntica, igualmente tem a possibilidade de construo de
uma existncia prpria ou autntica (Critelli, 1996).
nesse ser-no-mundo-com os outros que o fenmeno recebe a possibilidade de
ser. desse ser-no-mundo que brota a possibilidade de ser real, pois, quando o ente
aparece, de alguma forma foi forjado como real. A prpria percepo de algo depende
desse algo ter sido o resultado de um movimento de realizao, depende desse algo ter
se mostrado em vrias de suas possibilidades desveladas. E quando desocultado, esse
algo acolhido e expresso, revelado, por meio de uma linguagem, pois o algo passa
realmente a s-lo quando recriado atravs da fala (sons, gestos, grafismo).

2.1.7 O mundo da linguagem


Habitamos o mundo da linguagem e desta forma o homem. O ser do homem, enquanto
ente singular, construdo nos moldes de sua linguagem, que se alimenta da vida, do
cotidiano, e os modifica. Com foco na linguagem, Heidegger nos coloca como seres
sociais inseridos no mundo da gente, pois, para o homem, aquilo que no se fala
simplesmente no existe. Nas palavras de Heidegger, a linguagem a casa do ser e,
nas de Merleau-Ponty, a palavra o duplo do ser (Critelli, 1996).
A palavra permite que ns guardemos o sentido do ser. A linguagem a
conservao do aparecer e a possibilidade de se cuidar dele, pois o que foi desocultado,
e no foi registrado, volta a seu ocultamento. Pela linguagem, tambm trazemos o
significado e o ser tona. E, para Heidegger, fora das palavras as coisas podem at estar
por a, mas no so o que so e como so. importante colocarmos, ainda, que a fala
para a Fenomenologia, assim como nos relatos mticos, no se serve de conceitos, mas
revela e toca o sentido mesmo do existir. Uma fala que, alm de ter a funo de
conservar, tem a funo de comunicar, e em funo da comunicao que os homens se
humanizam, tornam-se comuns em sua humanidade.

Quando algo visto e ouvido por outros, testemunhado (Critelli, 1996).


Necessariamente falamos com algum e esta fala confirma a existncia daquilo que
entramos em contato. E assim como se d o desocultar deste algum para quem falamos,
o aparecimento da coisa compreendida tambm o aparecimento daquele que
compreendeu. E o que compreende passa a ser um co-elaborador, que medida que
compreende passa a ser outro por meio do desvelamento, podendo passar a conferir
outras compreenses. Assim, o testemunho nos mostra que no h a possibilidade de
alguma percepo individual, se esta no for previamente uma percepo plural. Isto
porque aquilo que um indivduo sente passa a ser sentimento quando confirmado pelo
testemunho de outros e, em virtude disso, algumas emoes ficam relegadas ao domnio
do privado. S quando algo considerado como publicamente relevante que
referendado como verdadeiro. Desse modo, mais uma vez a coexistncia se oferece
como elemento preponderante para a determinao da verdade. Podemos perceber,
entretanto, que o que tornado pblico est envolvido em grandes articulaes de poder
e o papel dos meios de comunicao de massa neste movimento de relevncia pblica.
O que foi o desvelado, revelado e testemunhado s adquire consistncia por
meio da vivncia afetiva e singular dos indivduos. As coisas s passam a ter
consistncia pela experincia individual, que se d pelo crivo da emoo, ou do que
Heidegger chamou de estados de nimo. Temos aqui delineada, de forma clara, a
importncia da singularidade dada pela Fenomenologia, pois foi pela afirmao do eu
que esta cincia se props a superar o idealismo, uma vez que o universal s se torna
real quando vivenciado pelo indivduo. Quando um sentimento no confirmado pelo
mundo pblico, a confirmao se d por sua negao.

2.1.8 A singularidade e a questo do sentido


O estado de nimo sempre evidencia a forma pela qual, em nosso ser-no-mundo,
somos tocados ou afetados pelas coisas e/ou pelos outros que a nesse mundo
esto. (...) Nosso entendimento , sempre de alguma forma, emocionado. A
compreenso sempre transcorre em um estado de nimo. (...) Tudo o que ele
(homem) v, a que se refere, visto, referido falado sob uma certa animosidade,
atravs de um certo estado de nimo. Os estados de nimo abrem para ns outros

significados mais verdadeiros (porque existenciais e no meramente lgicos).


(Critelli, 1996, p.93)
Os estados de nimo, o humor, no esto no reino dos significados lgicos e sim
no reino dos sentidos. Precisamos das emoes para que as coisas passem a ser reais a
partir do sentido, para que os significados das situaes estejam sempre se
transformando. As emoes libertam as coisas e ns mesmos para que sejamos o que
somos. No h como os estados de nimo no nos remeterem a ns mesmos como
singularidade, j que o indivduo concreto que sente. E quando temos uma maior
noo da nossa existncia, mais aberta ela est para a existncia do outro.
Estes estados de nimo nos abrem a possibilidade de dar um significado mutvel
ininterruptamente no tempo, expressando o sentido e a direo que damos nossa
existncia. Este sentido a base das escolhas que fazemos para ser (Critelli, 1996, p.
98). na nossa relao com as coisas que aparece o sentido da nossa existncia.
Quando olhamos o nosso guarda-roupas, as peas que l esto revelam o que nos atrai,
como nos relacionamos com o nosso corpo. Assim escolhemos e somos avaliados nestas
escolhas, sem nos darmos conta dos estados de nimo. Ou como colocava Pascal
(Critelli, 1996, p. 99), o corao tem razes que a Razo no conhece. Da decorre o
valor que a Fenomenologia confere s sensaes/emoes, pois estas que possibilitam
as formas peculiares de compreenso.
Como vimos, tanto o homem como o mundo so partes e frutos de um
movimento de realizao, e nesse movimento que se manifestam. No entanto, aquilo
que no for testemunhado pela relevncia pblica s tem identidade e valor provisrios,
apenas aquilo que perdura que se torna histrico. Sabemos que o que se torna
relevncia pblica est envolvido em um inesgotvel jogo de poder. E neste movimento
de realizao que se torna patente um sentido de ser, pois nele as coisas, sentimentos,
sensaes e idias apresentam-se como o que so (Critelli, 1996, p.101). Assim, o real
o produto deste movimento e, ao mesmo tempo, seu fundamento. Falamos, assim, de
uma circularidade. O modo de o homem habitar o mundo realizando o mundo, os
outros, a si mesmo. Atravs desta realizao ele cuida de ser, d conta de ser. Cuidando
de ser, ele realiza a si mesmo e ao mundo (p.102). Quando algo se torna real, est
continuamente em movimento de realizao e formando uma rede significativa de
relaes, a que Heidegger denomina de mundo. Sendo assim, o que chamamos de
histria o trnsito imprevisvel e inesgotvel desse movimento de realizao.

Ento, para a Fenomenologia Existencial os seres humanos tm a possibilidade de vir a


ser eles mesmos, podem vir a ser de inmeras maneiras, como um feixe de
possibilidades. O ser humano o nico ente que d conta do ser. Nenhum outro ente
tem a possibilidade de compreender o ser. E ao dar-se conta do ser, o homem percebe
que tem que dar conta de ser, que o seu ser est sob os seus cuidados. diante desta
condio ontolgica de ser cuidando de ser, ou incrustado nela, que o sentido de ser se
d para os homens (Critelli, 1996, p. 49).

2.1.9 O questionamento das certezas

Para a Fenomenologia, um ponto de vista apenas um ponto de vista, uma perspectiva


apenas uma perspectiva entre outras. E o que caracteriza a pesquisa fenomenolgica
uma perspectiva processual, pois a prpria Fenomenologia, tal como o existir humano,
est sempre se renovando. Segundo Amatuzzi (2001), a pesquisa fenomenolgica
basicamente uma pesquisa de natureza (Husserl falava do conhecimento de essncias).
Pretende dar conta do que acontece, pelo clareamento do fenmeno. No pretende
verificar, mas construir uma compreenso de algo, constituir um sentido.
Em decorrncia disso, o paradigma fenomenolgico est presente quando o pesquisador se dirige busca da compreenso de
um fenmeno, quando se baseia na premissa de que o homem sujeito e objeto do conhecimento, vivencia intencionalmente
sua existncia, atribuindo-lhe sentido e significado. O paradigma est presente quando no h um ser escondido, uma
realidade em si mesma, objetiva e neutra atrs das aparncias do fenmeno, uma vez que a intencionalidade da conscincia
que permite as mais variadas perspectivas acerca do objeto. Dessa forma, as verdades so consideradas relativas e temporrias e
nada considerado objetivo que no tenha sido subjetivo (Bruns, 2001).

Assim sendo, a Fenomenologia, com Heidegger, desloca sua ateno ainda mais
para o sentido do ser e passa a colocar que o sentido do ser no abandona o homem. E
lembra que as cincias que procuram por controle no desvelam o sentido da existncia,
no falam sobre a condio no mundo, o homem continua se perguntando sobre o
sentido do ser, porqu este vai embora. Somente a partir da perda do sentido do ser
que o pensamento encontra seu apelo para pensar. Apenas diante de um vazio de sentido
para o ser, que torna insignificantes os significados tcitos e outrora claros de todas as
coisas, que o pensamento se lana na aventura de saber, de conhecer. o sentido de
ser-no-mundo, como homens, cuidando concreta e expressamente de habitar o mundo e
interagindo com os outros homens, o que provoca o pensar fenomenolgico. o sentido
do ser o que preocupa a Fenomenologia, porm, compreendendo de antemo que todo

saber a seu respeito nunca seno relativo e provisrio (Critelli, 1986, p. 23). No faz
sentido, portanto, um saber que conhece, mas no conhece quem conhece.

2.2 A Gestalt-Terapia

A Gestalt-Terapia uma fenomenologia aplicada.


(Fromm & Miller, 1997, p.28)

E existe alguma concepo cientfica, porventura, que


se atreva, a priori, a abranger toda a gama das
singularidades humanas? (Perls & Goodman, 1951/199, p. 93
- IV, 101)

Assim, na Gestalt-Terapia, o espao entre o self e o


outro um vcuo, como na maioria das outras teorias
psicolgicas. (Fromm & Miller, 1987, p. 25)
Gosto de pensar em qualquer teoria, inclusive a
Gestalt, como sendo mais como uma hiptese de
trabalho, um construto auxiliar que construmos e ao
qual aderimos com propsitos de comunicao,
racionalizao e justificao de nossa abordagem
pessoal especfica. (...) Mas como toda Gestalt fixa, sob
diferentes circunstncias eles podem se tornar um
bloqueio definido no desenvolvimento de uma pessoa,
de um relacionamento, de um grupo ou de toda uma
cultura. (Laura Perls, 1972, p. 129)

Apesar de Frederick (Fritz) Perls no ter sido um estudioso da Fenomenologia, a


crtica fenomenolgica fundamenta a Gestalt-Terapia. Fritz e Laura Perls viveram
uma Europa onde a Psicologia experimental, proposta inicialmente por Wundt,
estava sendo questionada principalmente pelas idias de Brentano e de Husserl. E
o prprio Wundt, mais tarde, prope uma outra perspectiva para a Psicologia. Ele
escreveu nos ltimos anos de sua vida, Volkerpsychologie, um livro sobre Psicologia
social ou dos povos.
O movimento que representa estes questionamentos foi surgindo e se
organizando nas universidades da Alemanha e da ustria e foi sendo denominado
Psicologia da Gestalt. Mesmo sendo muito apegados necessidade de uma
1

Estamos nos referindo a obra de Perls, Hefferline e Goodman. No entanto, no incluiremos o nome de
Hefferline nas citaes da segunda parte da obra, a que foi traduzida para o portugus, j que sabemos
que foi elaborada apenas por F. Perls e Goodman. Das citaes desta obra, constam o captulo e a seo
correspondentes.

Psicologia experimental, a uma objetividade, os psiclogos da Gestalt plantaram as


primeiras sementes de uma Psicologia unitria.
A Psicologia da Gestalt, a que temos mais acesso hoje, foi introduzida por
Wertheimer, Koffka e Klher, talvez pelo fato de eles terem migrado para a
Amrica entre as duas grandes Guerras e influenciado muito o movimento
humanista americano. Outros que inicialmente publicaram com os Gestaltistas,
que mais tarde foram adquirindo notoriedade prpria, foram Kurt Goldstein, com
sua Teoria Organsmica, e Kurt Lewin, com sua Teoria do Campo.
No laboratrio de Kurt Goldstein, trabalharam F. Perls e Laura Perls e l
estabeleceram contato com a Psicologia da Gestalt e, conseqentemente, com a
Fenomenologia. E foi com Goldstein que apreenderam a viso de organismo como
um todo, to presente na Teoria Holstica de Smuts. Talvez por isso, Laura Perls
tenha colocado que sempre havia sido uma gestaltista e que Fritz Perls havia sido
primeiro um psicanalista, depois um gestaltista.
O que queremos registrar que Fritz e Laura Perls tinham todas as
condies de trazer a viso da Fenomenologia para a nova abordagem
psicoteraputica que estavam construindo. O movimento existencialista j estava
presente nos questionamentos destes jovens europeus. Fritz e Laura Perls j
mostravam que percebiam o ser em relao. Contudo, os Perls procuraram ir alm
da Fenomenologia, buscaram integr-la ao holismo de Smuts, procurando eliminar
dicotomias como: corpo e mente, self e mundo externo, emocional (subjetivo) e real
(objetivo), infantil e maduro, biolgico e cultural, poesia e prosa, espontneo e
deliberado, pessoal e social, amor e agresso, inconsciente e consciente (Perls &
Goodman, 1951/1997 II, 5). Propuseram, assim, um mtodo contextual onde
deveramos incluir o meio e as defesas pessoais do observador, j que um erro
ntido era um ato criativo e deveria estar resolvendo um problema importante
para quem o sustentava (II, 7).

Um mtodo de pesquisa ou de psicoterapia

contextual no poderia deixar de incluir a atitude, o carter e a tcnica escolhida


pelo terapeuta, assim como o contexto social em que vivia e o tipo de pacientes que
ia atraindo em funo destes fatores.

Essa nova viso de ser-no-mundo j comeava a ser articulada por Fritz e


Laura Perls em Ego, Fome e Agresso (1947/2002).2 Na obra, os Perls abordam a
mastigao e descrevem a possibilidade da criana interagir com o meio, desde
cedo, de forma ativa, podendo apenas introjetar os seus valores ou agir de forma
agressiva, a fim de digerir, morder, os modelos propostos pelo meio a que pertence.
O beb, j ao nascer, interage com o meio pelo que denominaram de resistncia
oral e os Perls, a partir dessa viso de resistncia, passaram a introduzir uma idia
de criana que comea a se autodeterminar por um processo natural de autoregulao. Alm disso, ao falar de uma resistncia oral, os Perls trouxeram a
relao entre o indivduo e o mundo para um local de encontro mais bvio (From
& Miller, 1997). Os Perls, portanto, ampliaram a percepo positiva que Adler
apresentou sobre a agresso (Fadiman & Frager, 1979), entendida como necessria
para que os indivduos absorvessem as partes que precisavam e se livrassem das
que no precisavam. No entanto, em Ego, Fome e Agresso (1947/2002) temos
ainda um indivduo encapsulado em seu centro (Fromm & Miller, 1997).
A noo de um indivduo, organismo em incessante troca com o meio, vai
ficar mais clara na Parte II do livro de F. Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman,
Gestalt Therapy: Excitement and Growth in the Human Personality (1951/1997),
escrita por F. Perls e Goodman.Tudo nos parece indicar que Paul Goodman teve
uma atuao fundamental ao descrever o papel das foras sociais e ambientais.
Quando colocou que a experincia ocorre na fronteira entre o organismo e o seu
ambiente, mais do que em qualquer outra perspectiva precedente, chamou a
ateno para o fato de que a Psicologia que limita o seu interesse no indivduo
isolado distorce a maneira como o mundo vivido.
Goodman era um erudito, um apaixonado pelo teatro, mas que no
alcanou o sucesso sonhado (Stoerhr, 1994/1999). Quando conheceu Fritz Perls, j
era muito versado em Psicanlise clssica e nos novos movimentos que estavam
surgindo. Muito interessado em Filosofia, principalmente em Aristteles e Kant,
ministrou aulas de ingls para Goldstein, quando este chegou Amrica, e j
conhecia os escritos de Perls em revistas anarquistas, antes mesmo de este ter ido
visit-lo. Logo, Goodman j compartilhava de muitas das perspectivas de Fritz e

Apesar de Laura Perls no aparecer como autora do livro, sabe-se que ela escreveu alguns dos artigos
dele constantes, e que as observaes sobre a relao me-filho so fruto de suas pesquisas sobre os
mtodos de alimentao infantil (Rosenfeld, 1977).

Laura Perls, ainda sem conhec-los. Parece-nos, assim, que seria impossvel para
Goodman apenas dar forma s anotaes de Perls. Goodman passou a ser um coconstrutor da Gestalt-Terapia e acabou por fazer mudanas radicais ao trazer
para a Gestalt-Terapia um enfoque ainda mais relacional psicoterapia.
E esse novo enfoque tambm pode ser considerado ecolgico, posto que
Goodman parece-nos ter sido mais reconhecido pelo movimento ecolgico
americano do que como psicoterapeuta. Mas, mesmo com essas novas perspectivas,
a Gestalt-Terapia permaneceu ligada Psicanlise ao no perder de vista o
indivduo (From & Miller, 1997).
A Gestalt-Terapia lanou-se formalmente em guas distantes daqueles onde
a psicanlise, o behaviorismo e qualquer outra teoria durante esse perodo
pescava suas verdades. Uma mudana radical no posto de observao para
o entendimento psicolgico est proposta nesta passagem. O self agigantado,
egocntrico da psicanlise no o nico objeto de psicoterapia; de fato,
freqentemente diminui de tamanho e quase desaparece de vista, tornandose parte do fundo, de onde pode ser retirado, contudo, quando preciso. O
local primordial da experincia psicolgica, para onde a teoria e prtica
psicoteraputicas tm de dirigir sua ateno, o prprio contato, o lugar
onde self e ambiente se organizam seu encontro e se envolvem mutuamente.
(From & Miller, 1997, p. 23)
Podemos perceber, ento, a presena de uma teoria amplamente compatvel
com as grandes discusses contemporneas, em 1951, no livro que funda a GestaltTerapia. As idias e a perspectiva de ser-no-mundo propostas nesta obra so to
novas que mesmo Gestalent-Terapeutas de longa data voltam ao texto que
inaugura a Gestalt-Terapia para procurar compreender uma teoria que questiona
vrios de nossos paradigmas. Do referido texto j constavam vrios temas que hoje
so colocados como novidade para muitas abordagens psicoteraputicas, como a
perspectiva Sistmica Construtivista Construcionista Social. A Gestalt-Terapia
nasceu apontando para uma nova perspectiva, em uma poca que levava frente
os questionamentos de Nietzsche, como vimos no Captulo 1. Os autores
procuraram descrever as relaes no mundo em constante transformao, em um
momento em que se assumiu o mundo cada vez mais sem fundao, bem como foi
retomado o papel do corpo, das emoes, da imprevisibilidade e do vivido, antes
colocados de lado pela cincia.

Mesmo abordando as relaes no mundo, F. Perls, em Esalen3, adotou uma


perspectiva um pouco diferente. Distante de Goodman, de Isadore From e de
Laura Perls, parece-nos que Perls apresentou uma Gestalt-Terapia mais egotista,
com grande nfase no auto-apoio, onde o viver aqui-agora foi alm de uma
proposta de viver a relao teraputica e passou a ser um slogan para a vida. E a
necessidade de digerir, de se diferenciar do que foi aprendido, passou a ser visto
como uma obrigao de se livrar de todos os deverias. Nesse perodo, Perls
escreve a orao da Gestalt:
Eu fao as minhas coisas, voc faz as suas.
No estou no mundo para viver de acordo com suas expectativas
E voc no est neste mundo para viver de acordo com as minhas
Voc voc, e eu sou eu.
E se por acaso nos encontramos, lindo.
Se no, nada h a fazer. (Perls, 1969/1977, p. 17).
Parece-nos que esta orao, quando lida com carinho, pode ser percebida
como um respeito, uma aceitao das singularidades individuais, o que talvez Perls
quisesse deixar claro diante da presso de uma sociedade americana. Entretanto,
lida em um tom mais assertivo, pode parecer uma celebrao ao individualismo,
uma obrigao de rejeio do externo, onde aparece novamente a dicotomia
interno/externo, alm de um certo narcisismo.
Ao mesmo tempo em que F. Perls rejeitava o pragmatismo americano,
parece t-lo aceitado ao realizar uma srie de demonstraes teraputicas que
difundiram muito a Gestalt-Terapia. Reduziu-a, para muitos, a uma simples
aplicao de tcnicas. Paradoxalmente, Perls parecia atender necessidade de um
mundo vido por desenvolver tcnicas de mudana ao tempo em que fazia uma
srie de alertas sobre isto no Gestalt Therapy Verbatim (1969/1977). Em termos
tericos, o que passou a ser conhecida foi uma Gestalt-Terapia distante do texto de
1951, mas que no deixou de fazer parte de um movimento de contra-cultura de
uma Amrica ps-guerra, caracterizada tambm por questionar o status quo, uma
das bandeiras do movimento hippie, ao qual Perls foi fortemente associado.
E mesmo tendo sido conhecido de uma forma um pouco distanciada do que
se props em seu surgimento, o foco da Gestalt-Terapia no deixou de ser sempre
3

Esalen ficou conhecido por ser um centro formador do potencial humano, na dcada de 60, e onde Perls
morou e divulgou a Gestalt-Terapia, nos ltimos anos de sua vida.

uma tentativa de teorizar a experincia, algo inapreensvel, em constante


movimento, que se altera em termos de figura/fundo. Isso permaneceu claro em
toda obra de F. Perls. A tentativa da Gestalt-Terapia teorizar sobre a vivncia,
sobre a experincia, sem desvitaliz-la. E no fcil teorizar sobre o espontneo, o
transitrio sem categorizar ou colocar a experincia humana em esquemas
(Spagnuolo-Lobb, 2001a).
Existem dois conceitos em Gestalt-Terapia, contato e self, que nos ajudam a
compreender melhor a nfase na questo da subjetividade, na perspectiva de serno-mundo em constante mudana e interao e, assim, na intersubjetividade. A
teoria proposta no texto de 1951 continua sendo muito discutida, e as muitas
tentativas de aperfeio-la tm desvalorizado a natureza inerentemente relacional
e holstica da Gestalt-Terapia (McLeod, 1983). No entanto, tais tentativas parecem
tambm expressar as dificuldades que discutimos no Captulo 1 em relao s
questes individual e social, interno e externo, permanncia e mudana. E por
isso que apresentaremos, de forma detalhada, os conceitos de self e contato,
apresentados principalmente por Perls,

e Goodman (1951/1997), pois estes

conceitos nos ajudam a explicitar a forma criativa da Gestalt-Terapia falar de serno-mundo e de suas implicaes psicoteraputicas. Por meio deles, os criadores da
Gestalt-Terapia conseguiram sintetizar os fundamentos bsicos da referida
Psicoterapia.

2.2.1 O self e o contato na Gestalt-Terapia

Apesar de muitos colocarem que a Gestalt-Terapia no tem fundamentao


terica, ela comeou a ser gerada com Herclito (Clarkson, 1993). Todos os seus
conceitos procuram descrever a relao dos homens com o rio, que se reconhecem
e se do a conhecer, nesse processo de constante mudana. Perls e Goodman
(1951/1997) procuraram descrever as constantes mudanas na relao do ser e a
introduo do conceito de contato expressa bem esta dimenso.
O conceito de self4, j presente nas teorias da personalidade, redefinido
por F. Perls e por Goodman para torn-lo compatvel com o conceito de contato.

Definio do vocbulo self no Cambridge Dictionary (2001, p.576): your characteristics, including
your personality, your abilites, our sense of self. Definio do vocbulo self no Dicionrio Houaiss
Ingls/ Portugus (1982, p. 701) eu, ego, pessoa, a prpria pessoa, si mesmo, personalidade,

Como utilizaram um conceito antigo para propor algo novo, isso trouxe uma certa
dificuldade, como veremos adiante. Por meio dos conceitos de self e contato
poderemos perceber como a Gestalt-Terapia, introduzida por Perls e Goodman,
fundamentalmente relacional.
Assim, comeamos levantando as definies propostas no texto de 1951 e,
concomitantemente, trazemos algumas das reflexes mais atuais sobre a questo
relacional na Gestalt-Terapia e os novos paradigmas que esto sendo propostos.
Perls e Goodman (1951/1997) iniciam o primeiro captulo colocando: A
experincia se d na fronteira entre organismo e ambiente (...) Falamos do
organismo que se pe em contato com o ambiente, mas o contato que a realidade
mais simples e primeira (p.41 I, 1). Da termos que partir da interao entre o
organismo e o ambiente em toda investigao biolgica, psicolgica ou sociolgica.
Os contatos esto na fronteira (mas de forma natural a fronteira muda e pode
at, nas dores, estar bem dentro do animal), e eles essencialmente entram em
contato com o novo (p.205 - XII, 1).
Para Perls e Goodman o tema da Psicologia deve ser a operao da fronteira de
contato no campo organismo/ambiente, lembrando que a fronteira de contato no separa
o organismo do seu ambiente; em vez disso limita o organismo, o contm e protege, ao
mesmo tempo, que contata o ambiente (p.43 - I, 3).
O propsito da Gestalt-Terapia analisar a funo de entrar em contato e
intensificar a awareness de entrar em contato. A palavra awareness passou a ser um
conceito fundamental em Gestalt-Terapia, tanto que os tradutores das obras de GestaltTerapia para o portugus tm optado por no traduz-la. Segundo Laura Perls (em
Rosenfeld, 1977) a palavra grega para awareness, aisthanomai, significa I am aware,
percebo, o caminho para a esttica. Essa palavra uma forma intermediria entre o
ativo e o passivo. A pesquisa da palavra no idioma grego revela a seguinte equivalncia:
aisthanomai - perceber, ato de perceber com os sentidos corporais, com a mente,
compreender (Barros, 1999), compreender como se estabelecem relaes de sentido
entre os diferentes elementos do campo.
O contato exige um processo criativo onde o novo vai ser assimilado ou
rejeitado. Todo contato ajustamento criativo do organismo e ambiente (Perls &
Goodman, p. 45 I, 5) e por meio deste ajustamento h mudana e crescimento, assim
individualidade. Ou sense of self: someones consciousness of being separate person, different from
otrher people ( Longman Dictionary of Contemporary Enghish, 1987/2000, p. 1292)

como conservao ou preservao. O conceito de contato procura descrever, assim, o


processo de construo e destruio de figuras que se d a cada momento na relao
organismo/ambiente e que possibilita uma nova configurao desta relao. Podemos
perceber que contato um processo, uma atividade e neste sentido que Miller (2001)
prope que utilizemos a palavra como um verbo, para expressar esta dimenso da
mudana. No Brasil, os Gestalten-Terapeutas usam muito as expresses fazer contato,
entrar em contato.
Assim Perls e Goodman (1951/1997) definiram self como o sistema de
contatos a qualquer momento.
Como tal, o self flexivelmente variado, porque varia com as necessidades
orgnicas dominantes e os estmulos ambientais presentes; o sistema de
respostas; diminui durante o sono, quando h menos necessidade de reagir.
O self a fronteira-de-contato em funcionamento, sua atividade formar
figuras e fundos. (...) o self precisamente o integrador; a unidade
sinttica, como disse Kant. o artista da vida. s um pequeno fator na
integrao total organismo/ambiente, mas desempenha o papel crucial de
achar e fazer os significados por meio dos quais crescemos. (p.49 I, 11)
E quando h inibio ou outros acidentes desse processo de ajustamento
criativo que temos os processos considerados no saudveis. Um homem que se
identifica com o self em formao no inibe seu processo de ajustamento criativo
podendo assim reintegrar as partes dissociadas. Desse modo, o objetivo do
processo teraputico que se reviva espontaneamente a sensao de que sou eu
que estou pensando, percebendo, sentido e fazendo isto (p. 49 I, 11).
Podemos perceber, entre as duas ltimas citaes, a ambigidade presente,
at mesmo nesta obra, entre self contato e um self mais encapsulado.

2.2.1.1 As caractersticas do self contato

Antes de continuarmos a abordagem sobre self e contato, consideramos importante


ressaltar que entendemos self e contato como conceitos utilizados para expressar os
processos incessantes de trocas entre organismo e ambiente. Em alguns momentos,
entretanto, estes conceitos acabam ganhando vida nos textos tericos, assim como
outras abstraes que fazemos, como a que se segue.

Como este self se recria? As solues que so inventadas ou descobertas no


surgem apenas do organismo, pois este tende a dar respostas mais conservativas, e
tambm no surgem apenas das novidades do ambiente. A resposta surge no novo
campo formado e por isso o self no sabe o que vai surgir como resposta. O self
fica entre as necessidades de preservao e as de mudana. Isso porque, para que
o organismo cresa, tambm tem que se conservar.
O self, o sistema de contatos, integra sempre funes perceptivo-proprioceptivas,
funes motor-musculares e necessidades orgnicas. consciente e orienta,
agride e manipula, e sente emocionalmente a adequao entre ambiente e
organismo. (...) Expressando isso de outra maneira: o rgo sensorial que
percebe, o msculo que se movimenta, o rgo vegetativo que sofre de
excedente ou de dficit, mas o organismo como um todo em contato com o
ambiente que consciente, manipula e sente.
Essa integrao no ociosa; um ajustamento criativo. Em situaes de
contato, o self a fora que forma a gestalt no campo; ou melhor, o self o
processo de figura/fundo em situaes de contato. (...) Em resumo, onde h mais
conflito, contato e figura/fundo, h mais self; onde h mais confluncia (fluir
junto), isolamento ou equilbrio, h um self diminudo. (Perls & Goodman,
1951/1997, p. 179/180 X, 2)
nesse sentido que podemos colocar que a Gestalt-Terapia fundamentalmente
uma teoria do campo, onde o self, longe de ser algo encapsulado em algum, um
processo emergente. Desse modo, um erro procurar pelo self como surgindo dentro de
ns, mas no o como surgindo de um processo relacional na fronteira de interao,
onde est presente o conceito original de Goldstein de self-atualizao: self atualizando
na fronteira de contato (Philippson, 2001).
Alguns autores tm chamado a nossa ateno para o fato de que a GestaltTerapia uma teoria do campo. No estamos apenas no campo, somos do campo. J que
nascemos do campo, no estamos apenas dentro do campo, somos do campo (Robine,
2001c; Yontef, 2001). Quando falamos do campo, queremos expressar a percepo do
indivduo e a percepo do ambiente. As foras do campo so dadas pela percepo de
todos os elementos que so do campo, onde as fronteiras distinguem processos que
tambm esto em constante mudana.
Por conseguinte, Perls e Goodman procuraram colocar no livro de 1951 um self
percebido como processo, em constante mudana, j que este necessita estar em

processo de auto-regulao, auto-atualizao, para poder viver e crescer. Um self que,


alm de ser descrito do ponto de vista do espao (fronteira organismo/ambiente), um
conceito que integra a temporalidade (Perls & Goodman, 1951/1997, p. 178 X, 1), um
self processual, que est em constante atualizao. O self identifica partes do campo
como sendo suas e aliena outras como no suas. Percebe a si mesmo como um processo
ativo, uma deliberao de determinadas carncias, interesses e faculdades que tm uma
fronteira definida, mas que se desloca. No entanto, isso tudo o deixa perdido, com
dificuldade de administrar suas fronteiras (XV, 1). Ainda assim, este processo o
melhor que o organismo conseguiu com o ambiente. A no sade seria a dificuldade do
organismo fluir espontaneamente, de procurar novos ajustamentos criativos.
Tal proposta radical ao propor a fundao de uma Psicologia sem psique,
profundamente compatvel com a colocao sartriana de que a existncia precede a
essncia. Sintetizando, quando falamos que o self pode ser criado e destrudo, significa
que ele no uma coisa e sim um processo, que se d na experincia, no contato. O self,
assim, no se aplica apenas a um indivduo, mas a um indivduo-no-mundo (McLeod,
1993).

2.2.1.2. O self integrador

O self, descrito como um sistema de integrao das diferentes possibilidades que


aparecem na fronteira de contato organismo/meio, foi uma forma que os
fundadores da Gestalt-Terapia encontraram para procurar romper com os
conceitos de self dicotomizantes, j que a fronteira de contato que limita o
organismo, ao mesmo tempo, contata-se com o ambiente (Perls & Goodman,
1951/1997 - I, 3).
Para a Gestalt-Terapia, o self sempre intencional, est sempre em contato
e s faz sentido em relao, pois:
o self no tem conscincia de si abstratamente, mas como estando em
contato com alguma coisa. Seu Eu polar com relao a um Tu e a um
Isso. O Isso a sensao dos materiais, dos anseios e do fundo; o Tu o
carter direcionado do interesse; o Eu tomar as providncias e fazer as
identificaes e as alienaes progressivas. (Perls & Goodman, 1951/1997,
p.183, X, 4).

Tal como Laura Perls colocou na sua definio de awareness, o self


espontneo, nem ativo, nem passivo e engajado nas situaes (Perls & Goodman,
1951/1997 X, 4). O fato de funcionar neste modo intermedirio que permite
que, em sua forma passiva, ele possa se tornar tambm aquele outro. Se fosse
completamente passivo, ele no permitiria o crescimento do organismo. Um self
assim produz um contato, uma awareness espontnea. E esta conscincia
espontnea a forma psicolgica da auto-regulao organsmica (IV, 1). Quando o
self est funcionando neste modo mdio (nem passivo, nem ativo), rompe a
compartimentalizao entre mente, corpo e mundo externo (XI, 2). Exatamente
nessas situaes que o self est em pleno exerccio de suas funes, onde a
awareness mais patente, ao contrrio do que poderamos pensar (XI, 1).
Quando o organismo e ambiente esto em harmonia, o trabalho criativo da
awareness est mais presente. A capacidade sintetizadora e integradora do self est,
nessas ocasies, funcionando de modo espontneo, fluido, e h uma sensao de
propsito sem propsito. Como bem colocam Perls e Goodman (1951/1997, XII, 4),
citando Kant, essa criatividade gratuita da awareness verdadeiramente re-criativa.
Quando o self funciona de modo espontneo, est expressando toda a sua criatividade,
pois h fluidez, e as novidades geradas nas fronteiras demandam uma intencionalidade
operativa a partir dos dados da sensoralidade. Em uma awareness espontnea, a
integrao do campo rapidamente refeita e surgem outras fronteiras. Vemos, assim,
uma awareness que nunca est ociosa (XI, 1) e que mantm este funcionamento do
campo como um todo, mas que, por ser to bvia, esquecemos at de teorizar sobre ela.
E este o foco da Gestalt-Terapia: partir do bvio, da experincia e da fluidez para
compreender o ser.
Perls traz para a Gestalt-Terapia, por meio do conceito de awareness espontnea, o que Husserl e Merleau-Ponty denominaram
de intencionalidade operante ou em exerccio, que a visada no objeto em ato, ainda no refletida, nossa awareness sensrio
motora. Para Merleau-Ponty a intencionalidade operativa uma relao espontnea em que a subjetividade, o outro e as coisas
sensveis entrelaam-se e se diferenciam sob um fundo de indeterminao e ambigidade (Muller-Granzotto, 2003, p. 19).
Algo que por ser to natural, intuitivo, pr-reflexivo, manifesta-se compreensvel, sem explicaes.

No entanto, em vrias situaes de emergncia, o campo se torna por demais


complexo e h uma tendncia de que simplifiquemos as fronteiras de contato. Apesar de
no deixarmos de estar em contato, perdemos certa espontaneidade (Spagnuolo-Lobb,
2001b). So estas tenses, alm das simplificaes que fazemos para lidar com elas, que
nos do a sensao de um mundo onde mente, corpo e mundo externo esto divididos. E
desse modo, em geral, o comportamento que no conta com a unidade do campo

impede o surgimento de evidncias contra a teoria corrente. H pouca criatividade


aparente, est faltando contato, a energia parece vir de dentro e as partes da gestalt
parecem estar na mente (Perls & Goodman, 1951/1997, p. 197, XI, 4). Nesse
contexto, a awareness espontnea no se faz to presente, faz-se necessria uma
awareness deliberada, a qual podemos relacionar com o que Husserl denominou de
intencionalidade temtica, que o saber do objeto e o saber deste saber sobre o objeto.
Essa intencionalidade refletida se esfora para alcanar a irrefletida, a dimenso da vida
que j sentido, mas um sentido ainda no formulado e que afinal de contas, nenhuma
frmula poder nem recuperar nem conter (Dartigues, 1973, p. 54).
Apesar de no haver dicotomias entre os aspectos colocados, parece-nos que
experienciamos essa dicotomia. Quando o contato bom, no h nenhum problema
entre mente e corpo, ou self e mundo externo (Perls & Goodman, 1951/1997,
p.65 - III, 1). No h separao, portanto, entre a nossa sede e a gua. No entanto,
quando o contato no pleno, produz um sentimento de desconexo e de no sermos
ns mesmos ao experienciarmos o corpo e o mundo.
As situaes de tenso nos exigem uma awareness deliberada, o que tambm
faz parte do ajustamento criativo. As fixaes se estabelecem quando este processo
deliberado se torna inconsciente, alienado. H uma sensao de fronteira fixa.
Nesse sentido, a proposta da Gestalt-Terapia experienciar estas situaes de
emergncia em um campo seguro, possibilitando que a atitude deliberada possa ser
relaxada (Perls & Goodman, 1951/1997 - III, 10). Pois, quando o self puder se
manter em contato e prosseguir na emergncia, a terapia estar terminada (p.
266 - XV, 14). Ou, como coloca Laura Perls, (Rosenfeld, 1977), sem suporte no h
como ter contato. E por esta capacidade de sntese que deve caminhar o processo
psicoterpico, em busca de uma nova sntese, a partir das possibilidades do campo
e no simplesmente um arranjo adaptativo s para eliminar conflitos. Ao
contrrio, nessas situaes, a sensao de dicotomia permanece. Pois, um
organismo que permanece muito tempo necessitando de uma awareness
deliberada, tentando o controle do organismo por um grande perodo, quase uma
normalizao, tende a conferir pouca nfase criatividade e acaba sendo levado
a uma posio egotista.
Abordando eticamente a presente questo, no faz sentido uma psicoterapia
que busque o controle. A proposta da Gestalt-Terapia a retomada do contato

espontneo, que possibilite a convivncia social e que integre a criatividade


individual e as regras comunitrias (Spagnuolo-Lobb, 2001). O objetivo da
psicoterapia assim seria ajudar o neurtico dessensibilizado a procurar recobrar
sua awareness total, isto , seu sentir, sua capacidade de estabelecer
espontaneidade no contato (Perls & Cols., 1951/1997 - Prefcio). Da, falar em cura
em Gestalt-Terapia, se for este o caso, s faz sentido se esta for compreendida
como a capacidade de ser espontnea e totalmente presente na fronteira de
contato, superando as resistncias que constituem nosso ajustamento criativo.
E por essa perspectiva integradora, Perls e Goodman (1951/1997) colocam
trs funes para o self, que somente so percebidas quando h necessidade de
simplificao do campo. O self pode deixar como figura, em um determinado
momento, uma destas funes: id, ego e personalidade. Porm, raramente
distinguimos estas trs funes quando a awareness espontnea, pois o self
funciona de forma to integrada, que se altera entre figura e fundo. Essa descrio
do self em trs funes pode expressar a nossa capacidade de organizar
criativamente nossas vrias capacidades, sensoriais, motoras e cognitivas. Fazemos
isto de forma to espontnea que, na maioria das vezes, no nos damos conta. Mas,
por outro lado, essa descrio do self em trs funes tambm pode expressar uma
certa incongruncia com a sua funo integradora.
Por relevantes, procuraremos descrever as trs funes do self. Para tanto,
e com o intuito facilitar o entendimento, utilizaremo-nos de um exemplo. Quando
estamos lendo e sentimos uma dor, devemos agir de alguma forma, como o self
exerce o papel de sintetizador de todas as nossas demandas? A funo id
informaria funo ego as possibilidades do corpo de lidar com esta sensao para
continuar ou no a leitura, j que a funo id se refere s habilidades do nosso
organismo em fazer contato, que so experincias e necessidades corporais, a
experincia de assimilar os contatos, incluindo as situaes inacabadas. Dado que a
funo personalidade o sistema de atitudes que adotamos em nossas relaes
interpessoais, a forma como explicamos nosso comportamento para os outros, ela
informa funo ego se, de acordo com a percepo que temos de ns, com a
forma que nos percebemos, ns queremos, podemos ou devemos, ou no, continuar
a leitura. Em decorrncia dessas informaes da funo id e da funo
personalidade, a funo ego decide fazer ou no fazer algo. Identifica-se com
algumas possibilidades, aliena outras e decide continuar ou no a leitura. Esse

processo vai exigir da funo ego uma maior ou menor deliberao em funo do
que aparece como figura. Podemos, ento, deliberadamente, deixar no fundo as
nossas necessidades fisiolgicas, pois a nossa imagem de bom profissional informanos que devemos terminar o nosso trabalho. Este tambm um processo saudvel,
pois difcil trabalhar com vrias figuras ao mesmo tempo. No entanto, tal
deliberao pode se tornar um padro mais fixo de comportamento e o ego pode se
transformar em uma abstrao, onde passamos a ter uma conscincia de ns
mesmos em um isolamento determinado, e nem sempre em contato com alguma
coisa (Perls & Goodman, 1951/1997 X, 7), no permitindo a reatualizao
constante.
A funo self, portanto, parece-nos ficar privada da totalidade de
informaes do campo, j que este percebido como dicotomizado, e no como
algo em que nos transformamos pelo crescimento. Perdendo a conscincia da
totalidade, temos dificuldade de estabelecer o sentido de nossa experincia, o
sentido da ao vai ficando pouco claro ao deixar de ser alimentado pelas nossas
sensaes corporais, no sendo percebido como uma atividade integradora com o
meio.

2.2.1.3 Crtica teoria da remoo do conflito interno

Visto o self como integrador, percebemos que uma teoria que proponha a remoo
de conflitos internos no faz sentido para a Gestalt-Terapia, j que os conflitos so
do campo. Para a Gestalt-Terapia, a distino entre intrapessoal e
interpessoal pobre, porque toda personalidade individual e toda sociedade
organizada se desenvolvem a partir de funes de coeso, que so essenciais tanto
para a pessoa quanto para a sociedade. No entanto, a expresso conflito interno
contm uma verdade importante, j que:
so todos em geral confiveis e no-neurticos; pode-se confiar em que
sejam auto-reguladores; demonstram sua eficcia h milhares de anos e no
se modificaram muito. Os conflitos internos, nesse sentido, no so o tema
da

psicoterapia;

quando

esto

inconscientes

pode-se

deixar

que

permaneam assim. , ao contrrio, a intromisso de foras sociais de fora


da pele que perturba deliberadamente o sistema interno espontneo e
requer psicoterapia. (Perls & Goodman, 1951/1997, p. 162 IX, 2)

Por outro lado, o conflito exerce um papel fundamental, pois nos leva
elaborao de algo novo, faz-nos procurar por um ajustamento criativo, e, por isso,
tambm no faz sentido querer remov-lo. a partir desse conflito, que gera
sofrimento, que se tenta ajudar o self a se integrar j que o self refreia seu
prprio desenvolvimento. Consoante para Perls e Goodman (1951/1997, p. 172
IX, 8), s o self que realmente est disponvel para ser ajudado. As normas
sociais no podem ser alteradas pela psicoterapia, e os instintos no podem ser
alterados de maneira alguma.

2.2.1.4 A relevncia de uma psicoterapia que enfatiza a auto-regulao, o ajustamento


criativo como funo essencial do self?

Uma abordagem psicoteraputica que perceba a capacidade de auto-regulao no


considera que a pessoa que a procura no seja capaz de ajudar a si prpria. Ao
contrrio, nesse tipo de abordagem, o cliente percebido como um parceiro ativo,
que pode ampliar o nvel da awareness de si prprio para continuar sem ajuda
psicoteraputica. Uma vez que o self s encontra a si prprio e se constitui no
ambiente, a relao teraputica pode ser a oportunidade para experienciar essa
interao com o ambiente de forma ativa, com o psicoterapeuta que procura
propriciar o encontro.
Quando consideramos que a awareness criativa, as defesas so
consideradas tambm respostas criativas que, em vez de liquidadas, devem ser
aceitas e experienciadas no processo psicoteraputico, para que possam ser
percebidos o sentido e a necessidade dessa forma de atuar no mundo. Entrando em
contato com as nossas aflies, surgem tambm outras possibilidades. E a grande
questo do processo psicoteraputico passa a ser como arregimentar o poder do
ajustamento criativo do paciente sem for-lo a encaixar-se no esteretipo da
concepo cientfica do terapeuta (Perls & Goodman, 1951/1997, p. 90 IV, 7).
Ento, uma abordagem psicoteraputica que perceba os indivduos e a
natureza com uma capacidade de auto-regulao nos aconselha a postular o menos
possvel a normalidade, j que os ajustamentos so singulares e inseridos em um
contexto. De mesmo modo, devemos estar atentos ao corpo e s emoes que so
unificadoras entre certas tenses fisiolgicas e situaes ambientais.

A nfase da Gestalt-Terapia no corpo e nas emoes no significa que


deixemos de lado o cognitivo ou a linguagem, mas mais um contraponto diante de
um humanismo renascentista, que valorizou o homem a partir do pensar, do
controle dos impulsos. No entanto, a Gestalt-Terapia um humanismo, mas sob
uma perspectiva que devolveu o homem natureza, que valorizou o humano, mas
no o idealizou (Ribeiro,1985). A Gestalt-Terapia um humanismo que nos faz
lembrar que somos um pequeno ponto em um imenso universo que pouco
conhecemos, lembra-nos que no temos o controle, e nos lembra que
provavelmente nunca o teremos.
Assim, nossa capacidade de criar e de dar respostas novas uma habilidade
que vai ser sempre requisitada. E, talvez, hoje mais do que nunca, pois expandindo
a percepo do nosso universo, o nosso campo fica maior, aumentando a nossa
responsabilidade tica sobre ele. E como nos lembra a Teoria do Caos de Lorenz
(1993/1996) no sabemos ainda se o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode
ou no desencadear um tornado no Texas.

2.2.2 O ser-no-mundo

2.2.2.1 Para qu usar o conceito de self e organismo para falar da relao


homem/mundo?

O questionamento que intitula este segmento argumentativo expressa a dificuldade


que temos encontrado desde o comeo deste trabalho.

Perls e Goodman

(1951/1997) j a expressavam:
instrutivo perceber como, ao discutir este tema, comeam a surgir
dificuldades verbais: homem, pessoa, self, indivduo, animal humano,
organismo so s vezes intercambiveis e s vezes necessrio distingulos. Por exemplo, enganoso pensar os indivduos como sendo primitivos e
estando combinados nas relaes sociais, porque no h dvida de que a
existncia de indivduos surge como conseqncia de uma sociedade muito
complexa. (...) Essas dificuldades podem ser naturalmente evitadas de modo

parcial por uma definio cuidadosa e um emprego consistente e tentamos


ser to consistentes quanto podemos. Contudo, elas so parcialmente
inerentes ao tema Homem, que cria a si prprio de diferentes maneiras.
(...) Se a teoria freqentemente confusa e ambgua, provvel que a
natureza tambm o seja. (p.123 VI, 8)
Parece-nos que com o conceito de self, bem como com o de contato, Perls e
Goodman procuraram dar uma compreenso da psique de forma a no violar a
indivisibilidade de mente, corpo e mundo (McLeod, 1993). O self um conceito que
procura descrever o que liga, conecta-se a em um processo de incessante
movimento. Por isso, o self no pode ser visto como uma entidade, mas como uma
habilidade do organismo de fazer contato.
Ainda em Perls e Goodman. (1951/1997), podemos perceber que os autores
optam por falar de relao organismo/ambiente. Mas para qu usar organismo e
no ser humano, pessoa? Esta terminologia j estava presente na obra de Smuts
(1926/1996), Holism and Evolution, e foi muito adotada por Goldstein. Dessa
maneira, Smuts e Goldstein parecem ter resolvido a questo da dicotomia
sujeito/objeto, no por meio da Filosofia, mas pela Biologia. Ao adotarem a
expresso organismo estavam colocando o homem como mais um elemento da
natureza, que tem como todos os outros organismos da natureza a capacidade de
se auto-regular em busca de preservao e mudana, em contato direto com o
universo. Destarte, temos, nos conceitos de self e de contato, assim como no de
auto-regulao a presena de uma matriz darwiniana (Spagnuolo-Lobb, 2001,
Wymore. 1998). Isto est muito claro em Smuts, j que sua argumentao parte do
pensamento de Darwin e do conceito de evoluo criativa de Brgson (1859-1941).
Ento, a crtica que se faz terminologia utilizada para nos referirmos relao
que ela muito biolgica, esquece-se do ser social (Tellegen, 1984). Acreditamos que,
ao usarmos a palavra organismo, lembramo-nos de que fazemos parte da natureza. Pois,
mesmo quando falamos de natureza humana, j estamos separando o homem da
natureza. E, de outro modo, sabemos que somos um organismo assim como uma
bactria, fazemos parte do mesmo holos, no somos diferentes na maioria dos aspectos,
porque tambm somos do campo. E, talvez, uma bactria at seja mais complexa que
ns, pois est no planeta Terra h muito mais tempo, vivendo apenas com uma clula.
Da o fato de Smuts (1926/1996) ter reforado sempre que no h distino entre
matria, vida e mente.

2.2.2.2 Os fatores sociais

Apesar de termos visto at aqui muitas das caractersticas que delineiam a GestaltTerapia, no poderamos deixar de mencionar e de concordar com o pensamento de
Tellegen (1984). Para ela falta Gestalt-Terapia expressar-se de forma mais clara sobre
os aspectos sociais do contato. Interessante constatarmos, no entanto, que Goodman e F.
Perls, unidos pelos seus escritos anarquistas, no poderiam construir uma abordagem
psicoteraputica sem que considerassem os fatores sociais como essenciais na formao
da personalidade. E Perls e Goodman (1951/1997) nos lembram que, apesar de termos
muitos comportamentos considerados anti-sociais, existem muitos costumes e
instituies que so antipessoais, ou, como em suas prprias palavras, se tivssemos
instituies sensatas, no haveria nenhum neurtico (p. 117 VI, 3). Costumes e
instituies so antipessoais na medida em que no permitem o que Perls colocou como
agresso, que no permitem a destruio (desestruturao) de um todo para assimil-lo
como partes de um novo todo. As crticas de Perls ao social ficam claras em sua fase de
Esalen, talvez por isso a nfase que conferiu necessidade de auto-suporte.

2.2.2.3 A linguagem

Neste ponto, cabe-nos admitir que no pretendamos abordar este tema


inicialmente, mas o fato que este um tema bastante presente nas teorias
Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais, com as quais nos propusemos
dialogar, e tambm o em Heidegger. Assim, a deciso de abordamos o tema
firmou-se claramente. E Perls e Goodman (1951/1997- VII) nos ajudaram a
perceber como a linguagem marca o processo de contato.
A postura ereta do homem nos levou a uma maior autonomia das mos e da
cabea, porm com a atrofia de alguns sentidos. Ampliou-se, em muito, o campo
organismo/ambiente e o processo de contato tornou-se mais problemtico. Isto
porque, com o desenvolvimento da nossa habilidade de isolar objetos, teve incio o
nosso processo de abstrao, permitindo que o nosso prprio corpo pudesse passar
a ser objeto. Surgiram mais instrumentos e a linguagem.

A partir do momento em que pudemos fazer abstraes, pudemos passar a


fazer relaes habituais, deliberadas e fixadas com o self. Com o uso dos
instrumentos e da linguagem, o risco das abstraes serem consideradas a base
original do contato passou a ser possvel, de modo que as relaes interpessoais
tornaram-se primordialmente verbais, e hoje tambm virtuais. E, sem a
possibilidade do uso de um instrumento, o trabalhador passou a se sentir
impotente. Assim, o contato pode diminuir, a fala pode perder o sentido e o
comportamento pode perder a graa. O comportamento verbal se integra ao prverbal, mas pode passar a perturbar o equilbrio j existente para o bem estar
animal.
Por meio de suas abstraes, a sociedade se torna portadora das
propriedades definidoras da humanidade, de uma cultura, de uma herana social
que sobrevive s geraes. As vantagens de tudo isso so bvias, mas ao mesmo
tempo, podem levar a sociedade a estar contida no self, a invadir o organismo. As
pessoas tornam-se meramente pessoas em lugar de serem tambm animais em
contato. A autoridade internalizada deixa caminho aberto para a explorao
institucional do homem pelo homem e de muitos pelo todo (Perls & Goodman
1951/1997, p. 123 I, 8).
No podemos desconsiderar a fala no aperfeioamento evolutivo do gnero
humano. No entanto, segundo Perls e Goodman, h o abuso neurtico da fala a
partir do momento que passamos a us-la em lugar de, em vez de junto com,
as faculdades subjacentes, levando-nos, assim, a um isolamento da personalidade
verbal, onde a fala prosaica, sem afeto ou significado.
H tambm uma fala criativa, que segundo Goodman (VII), a poesia, j
que esta, ao contrrio da verbalizao neurtica, uma fala com atividade
orgnica que soluciona problemas. Outros tipos de falas plenas podem ser
grosseiros, mas em geral dependem de expresses no verbais e nos levam a
comportamentos no-verbais. O que nos conduz a uma das mximas da GestaltTerapia: no devemos estar atentos apenas ao que se fala, mas ao como se fala, j
que como vivemos em uma comunidade que tem substitudo a verbalizao pela
experincia.
Ao nos remeter a Husserl e a Merleau-Ponty, talvez Cabrera (no prelo) nos
esclarea melhor essa necessidade de nos prevenirmos contra a objetificao da
linguagem, j que assim, objetificada, obstrui de imediato a temporalidade e a

abertura da intersubjetividade. Alm disso saber uma idia no ter uma


representao da mesma, mas ter adquirido um certo estilo de pensamento,
saber movimentar-se nela, transformando uma conscincia pura em uma
conscincia historicamente situada. Esse carter no-representacional da
significao

foi

vinculado

intencionalidade corporal.

por

Merleau-Ponty

ao

que

ele

denomina

A proposta da Gestalt-Terapia sobre a linguagem

parece semelhante colocada pelo autor como Fenomenologia da palavra viva, que
supe uma conscincia temporal, uma corporalidade como constituinte de
significacidade, e uma intersubjetividade como outricidade co-constituinte
(Cabrera, no prelo, p.186 II.2.1)
Na descrio das funes do self a linguagem no foi esquecida. Ao
descrever a funo personalidade do self, Perls e Goodman. (1951/1997- X, 8) a
colocam como essencialmente uma rplica verbal do self (p.188). Portanto, a
linguagem so as representaes que fazemos de ns mesmos e a forma com que
nos apresentamos e nos responsabilizamos diante do mundo. Neste sentido, um
aspecto bastante conhecido. E quando o comportamento interpessoal no est
fluindo, o que denominavam neurtico, a personalidade consiste em alguns
conceitos fixos a respeito de ns prprios. Alguns autores da Gestalt-Terapia tm
associado esta funo a narrativas que fazemos sobre ns (Robine, 2001a).
Provavelmente, h muito se tem vivido esse conflito entre a harmonia social
e uma expresso individual. Talvez o sofrimento concomitante e o movimento em
direo a uma soluo desconhecida sejam as bases do excitamento humano
(Perls & Goodman, 1951/1997, p. 126- VI, 11).

2.2.3 A relao psicoteraputica

Quais as implicaes psicoterpicas de uma teoria como a Gestalt-Terapia que


parte do conceito de contato para explicitar a mxima de Heidegger; ser-nomundo? Quais as implicaes da adeso a uma teoria que descreve o ser e o mundo
como tendo a habilidade de se auto-regular de forma criativa e que prope como
foco do processo teraputico a restaurao da awareness espontnea?
Como uma abordagem que fruto da crtica fenomenolgica, a GestaltTerapia se realiza por meio da regra bsica da Fenomenologia: ver, observar,
descrever e interpretar o vivido (Ribeiro, 2003). No partimos de representaes

sobre o vivido, mas da experincia, principalmente a que se d aqui-agora na


relao psicoteraputica. Observando tudo que est presente no campo em todas
as suas dimenses afetivo-emocional, cognitiva e motora , de todos os envolvidos
no processo. A Gestalt-Terapia procura ver algo com todos os sentidos, assim como
Husserl descreveu a poch (veja item 2.1.4).

2.2.3.1 O corpo no processo psicoterpico

Observar com todos os sentidos envolve o corpo em psicoterapia. O corpo o nosso


grande instrumento, tal como o psicoterapeuta o seu principal instrumento da
psicoterapia. Por isso, o corpo do psicoterapeuta no pode deixar de estar presente
no processo. Zinker (1994/2001) coloca que o treinamento de um terapeuta deveria
comear pela observao e pelo treinamento de todos os sentidos. O processo de
restaurao da awareness espontnea tambm comea pela observao do vivido,
isto que permite que o cliente possa estar aware do seu prprio processo de ver,
de observar e de descrever o vivido.
Falamos em corpo, em organismo. por meio dele que a intersubjetividade
comea. inicialmente por analogia que podemos operar um vnculo intencional
de semelhana entre o corpo fsico do outro e o nosso prprio (Husserl em VillelaPetit, 2001; em Wuensch, 1993; Schmidlin, 1999). O primeiro contato com o
corpo do outro. A este corpo, que um campo que tem uma capacidade de se autoorganizar, que a Gestalt-Terapia d uma ateno especial. Pois tendo o corpo
como presente, estamos trazendo a emoo, a imprevisibilidade. Sem a dimenso
corporal, no temos a dimenso passiva, espontnea da awareness, uma
conscincia que estabelece sentidos e no apenas cognitiva. Desse modo, torna-se
sem sentido um processo psicoteraputico, no qual estejamos procurando
restaurar um processo de auto-regulao fluido e uma awareness espontnea, em
que o corpo no esteja presente.
Aqui, consideramos que o processo psicoteraputico pode possibilitar a
restaurao de um sentido, uma direo que nosso corpo coloca na ao, que s
vezes j est to automatizado e bvio, como diria F. Perls, que precisamos
redescobrir a sua intencionalidade. Estarmos atentos ao corpo estarmos atentos
singularidade dos estados de nimo, que, segundo Heidegger (1927/2000), no esto

no reino dos significados e sim no dos sentidos (veja item 2.1.8), pois toda
compreenso est sempre sintonizada com o humor (p.198, 31).
Como a Gestalt-Terapia busca a totalidade, a integrao, isto exige do
psicoterapeuta e do cliente o trnsito por vrias partes do campo, j que o sentido
emerge da relao. Estarmos atento s emoes, e no apenas s verbalizaes,
uma forma de estarmos na fronteira de contato do organismo/ambiente. Assim
tambm o com o que chamamos de mental, j que as emoes so unificaes ou
tendncias unificadoras de certas tenses fisiolgicas com situaes ambientais,
conectando as nossas necessidades e os nossos sentimentos com os objetos do
mundo. As emoes so meios de cognio, posto que so a maneira pela qual nos
tornamos conscientes da adequao de nossas preocupaes (Perls & Goodman
1951/1997-XII, 6). A Gestalt-Terapia acredita que o seu papel de restaurar a
awareness espontnea parte do organismo e de suas emoes, pois, como so
genunas, fazem-nos procurar sempre pela fluidez.
importante ressaltarmos aqui, tambm, a presena da Fenomenologia, j
que alguns crticos desta acham que quando se prope a suspenso dos a priori
inclui-se a emoo, o corpo. Outros percebem a Fenomenologia apenas como uma
teoria idealista. O que vemos justamente o contrrio, dado que a prpria
possibilidade de intersubjetividade se d a partir do corpo. O que a Fenomenologia
se prope a colocar como a priori so as representaes j prontas, as categorias
cientficas, tudo que nos afasta da experincia, do vivido. Neste ponto, temos a
ligao da Fenomenologia de Husserl com o Holismo de Smuts e com a Teoria
Organsmica de Goldstein. Essas relaes esto muito claras nas obras de MerleauPonty, como Fenomenologia da Percepo (1945/1996) e A Natureza (1995/2000),
por exemplo. Tambm a obra de Heidegger, Ser e Tempo (1927/2000), deixa-as
claras ao abordar os estados de nimo.

2.2.3.2 Uma relao do campo

A relao psicoteraputica uma situao do campo, na qual psicoterapeuta(s) e


cliente(s) so do campo. E a Gestalt-Terapia,
em lugar de deixar o terapeuta semi-oculto nos bastidores para estimular
a regresso e a transferncia no paciente (o cerne do mtodo
psicanaltico), colocou o terapeuta e o paciente juntos no centro das

atenes para iluminar tanto quanto possvel seu relacionamento


concreto. (From & Miller, 1997, p.15)
Em funo disso, a relao que se estabelece deve ser o foco de nossa
ateno. Uma relao que est em constante mudana, todos mudam na relao.
Provavelmente, se o psicoterapeuta tambm no muda com a relao, podemos
dizer que no houve um contato efetivo e que as pessoas no se encontraram na
fronteira. Cada contato, relao psicoteraputica, nica e exige de todos os
envolvidos um olhar singular sobre este campo, em especial do psicoterapeuta.
Este olhar de novidade que nos faz entrar em contato. Quando acreditamos que
j sabemos tudo em uma relao, perdemos o olhar admirativo e acabamos por
ficar totalmente confluentes, ou totalmente em retirada, no consideramos a
possibilidade de criar, de aprender.

2.2.3.3 A compreenso

Agora, neste ponto de nossas consideraes, a questo no mais distanciar o


sujeito do objeto de suas pesquisa, pois a teoria do campo nos mostra que no h
como no interagirmos com aquele que procuramos compreender. A questo passa
a ser, sim, como construir uma metodologia de pesquisa, ou um processo
psicoteraputico que facilite a experincia na fronteiras de contato de forma mais
clara, para que os sentidos possam emergir. Assim, no temos respostas
interpretativas prontas. No queremos apenas explicar os fatos, queremos
restaurar o ser de compreenso.
Quando h compreenso, h um reapoderar-se da inteno total, captamos
a essncia do que est acontecendo no campo. Mais uma vez, a Gestalt-Terapia
quer restaurar algo que inerente ao existir, compreenso. A capacidade de dar
sentido continuamente. Quanto mais estamos em contato pleno, mais os dados do
campo vo sendo costurados com fluidez, h uma compreenso mais clara, as
coisas fazem sentido. E ao fazerem sentido, as informaes que chegam da relao
organismo/ambiente agora tambm revelam um sentido de direo para a nossa
ao. A compreenso que permite a aceitao do outro, pois aceitamos quando
percebemos o sentido do outro, o que faz com que ele organize a sua ao ou a sua
no ao de determinada maneira.

Os significados, alm de emergirem da relao, vo fluir com o tempo. O


tempo, de certa forma, o guardio da nossa possibilidade de estarmos
constantemente re-significando nossas relaes com o mundo. O grande sentido do
processo psicoteraputico em Gestalt-Terapia a restaurao do poder das pessoas
do campo poderem estar continuamente re-significando o sentido do viver,
atualizando o para qu e o como estamos aqui. E nos parece no fazer sentido
darmos significados sozinhos, como somos do campo, estamos espontaneamente coconstruindo significados com o campo, nem sempre nos dando conta de como
influenciamos e somos influenciados pelo campo. No contato, na diferena, que os
sentidos emergem. Assim, o sentido e o significado no so produtos de uma
subjetividade, mas o so da intersubjetividade.
Na Gestalt-Terapia, h possibilidade de os significados e os sentidos irem
sendo redescobertos, criados ou inventados na relao. Parece-nos que, dentro
desta perspectiva, novamente no h sentido em falarmos de psicoterapeutas e
clientes, parece-nos que uma vez mais estamos separando aqueles que sabem dos
que no sabem. O que se prope para a relao psicoteraputica a integrao de
saberes entre psicoterapeutas e clientes. Neste encontro de diferenas h contato,
encontro, reconhecimento dos diversos saberes que vo se integrando ao processo
psicoteraputico procurando que por uma ampliao de horizontes, tanto dos
psicoterapeutas quanto dos clientes.
Por conseguinte, o psicoterapeuta no deve ter interpretaes prontas sobre
um dado fenmeno. H interpretao no processo psicoteraputico, mas o cliente
que ser o autor, o ator e o intrprete do seu prprio vivido. Ento, quais outros
nomes poderamos usar para expressarmos melhor essa relao to singular de
contato, de encontro, de co-construo do campo, onde todos so especialistas
sobre diferentes perspectivas? Impe-se, aqui, mais uma questo de nomeao em
aberto.

2.2.3.4 A questo do sentido

Uma

das

implicaes

dos

princpios

da

Fenomenologia

no

processo

psicoteraputico que a realidade do psicoterapeuta no mais objetiva ou vlida


do que a do cliente A crena bsica da Fenomenologia que h uma multiplicidade

de realidades fenomenolgicas (Yontef, 2001) e, quando as colocamos entre


parnteses (veja item 2.1.4.), procuramos refinar o nosso processo de awareness,
apresentando mais uma perspectiva entre as tantas possveis. A tentativa de voltar
as coisas mesmas para nos ajudar a perceber como esquecemos. Por exemplo,
tornamos-nos tensos e esquecemos como organizamos esta experincia, ela vira
rotina. Nossa intencionalidade no est funcionando apenas de forma espontnea,
os sentidos ficam fixos. Assim, um dos objetivos do processo psicoteraputico
que:
A rotina tem de se tornar uma vez mais uma necessidade totalmente
consciente, nova e excitante, para que recobre a habilidade de lidar com as
situaes inacabadas. (...) precisamente no bvio que encontramos a sua
personalidade inacabada; e o paciente pode recobrar a vivacidade da
relao figura/fundo (Perls & Goodman, 1951/1997, p.36 Prefcio).
Alm disto, o principal seja perceber o sentido desta rotina, j que no
podemos

abrir

mo,

at

mesmo

do

que

chamamos

resistncia,

sem

compreendermos o sentido da estrutura do sintoma, j que o melhor self do


paciente est investido nela. (...) ao dissolver as resistncias, o paciente torna-se
menos do que era (p. 95 - IV, 11). As nossas resistncias fixas tm sua sabedoria,
que no deve ser jogada fora, muitas vezes, aquelas que so resistncias em uma
rea do campo, so transformadas em nossa maior habilidade em outra rea. Por
exemplo, uma criana que exerceu durante muitos anos o papel do diplomata da
famlia para se proteger das discusses, pode usar com criatividade esta habilidade
em seu trabalho, lidando com discusses de forma criativa. Apreender o sentido da
resistncia apreender a sabedoria da nossa auto-organizao, o como nossa
awareness operativa funciona, inclusive para nos proteger. Percebermos isto
parece-nos trazer um grande alvio. Percebermos que na resistncia h cuidado do
ser e percebermos que o processo de organizao das nossas aes singular so
aspectos que se relacionam a um contexto especfico, j que somos singulares e
cheios de possibilidades.
Por outro lado, quando no temos a totalidade, o sentido, a ao, fica sem
sentido, sem direo. Como colocou Husserl (1936/1985), quando estabelecemos
correlaes, faz sentido estarmos no mundo. A compreenso do sentido passa a
implicar uma ao, um contato com o mundo mais fluido. Ento, mesmo que
inicialmente apenas constitua um sentido, que doe um sentido, este passa a ter uma

direo, passa a ser operacionalizado. E isto leva-nos construo, ou melhor,


co-construo de um mundo. De alguma forma, o constituir, como colocado por
Husserl, parece-nos levar a uma co-constituio, pois sempre relacional. Ao
estabelecer um sentido singular, tambm estamos dando uma direo a nossa ao
no mundo e a busca de um significado para o fato de estarmos no mundo.

2.2.3.5 O ser de possibilidades

O fato de descrevermos o ser como possibilidade, tal como Heidegger o fez, produz
mudanas radicais no processo psicoteraputico. O problema deixa de ser estarmos ou
no em contato com o que realmente somos, ou com a nossa mais profunda identidade.
Mas passa a ser, de preferncia, recuperarmos a flexibilidade em nossas fixaes, em
nossos discursos, em nossas histrias, em nossas narrativas e nos mitos que usamos
todos os dias ao cont-las para ns mesmos e para os outros (Epstein, 1995, em Robine,
2001a). Sob esta perspectiva, ns perdemos as certezas de que temos riquezas
internas, identidades fixas, possibilidade de objetividade, os padres de normalidade e
todas as tcnicas que derivaram das idias normativas. Na clnica e na relao
teraputica, perdemos a posio de poder e de dominao e nossos pacientes perdem a
vergonha de no saberem, de serem controlados sem saber por foras escondidas e por
verdades invisveis (Robine, 2001a). E o psicoterapeuta convidado a se posicionar
como um curioso, como um ingnuo, dialogicamente exposto subjetividade de outra
pessoa, e a no manter a postura de um especialista.
Quando mudamos o foco para uma teoria processual de um self fludo, a
questo que nos colocada como ele se estabiliza. E nas teorias que esto
baseadas em uma percepo intrapsquica de self, a questo como as mudanas
ocorrem (Philippson, 2001). Esta questo muda por completo a viso, pois
partirmos

do

funcionamento

saudvel,

fluido.

funo

do

processo

psicoteraputico passa a ser no apenas a de dar suporte interno, mas sim a de ser
a restaurao desta awareness espontnea. Ajudar a experienciar a incerteza, a
mudana e a angstia da eterna novidade do mundo.
Falarmos de possibilidades, ento, falarmos de contato. E e temos que nos
remeter responsabilidade tica de cuidar deste contato que nos fora a lidar com
mltiplas perspectivas. Contato sinnimo de cuidado (Ribeiro, 1997). Temos que dar
conta de cuidar do nosso ser possibilidades e do ser do mundo que est sob os nossos

cuidados. Assim, temos presente uma tica do encontro no conceito de contato, o


cuidado conosco e com o universo. Para termos uma atitude tica, temos que procurar
estarmos atentos a todas as possibilidades de ao para podermos escolher entre as que
contemplem mais todos os elementos do campo. Um dos objetivos da Gestalt-Terapia
ampliar esta percepo, entrar em contato com os conflitos do campo, para que da surja
uma resposta criativa. Uma resposta que deve ser fruto da observao e da sensao do
campo, mesmo a pessoa estando em psicoterapia individual.

2.2.3.6 O encontro, a intersubjetividade

Como psicoterapia fazer contato, intersubjetividade quando comeamos um


processo, temos que estar preparados, disponveis para ele, inclusive teoricamente.
Mas a nossa teoria tambm pode nos afastar do vivido, da experincia aqui-agora
com os outros, e tambm vai ter que ser suspensa, pelo menos por alguns
momentos, para que o encontro acontea. Talvez o primeiro encontro no seja
difcil, j que tudo novo, as fronteiras esto claras. Nossa grande dificuldade
talvez seja permanecermos em contato, sem perdermos o olhar admirativo ao
longo dos diferentes encontros, ou ao longo de anos de trabalho, pois podemos
acreditar que no iremos escutar nada de novo. Muitas vezes, cedemos tentao
de baixarmos nossas ansiedades e transformarmos o que relao em apenas
representao. Precisamos das representaes, sim, para que estes universais nos
ajudem a compreender a relao singular que estamos vivendo. O risco, porm, e
esta era uma das grandes preocupaes de Husserl, que o mundo da vida seja
abandonado em nome das representaes, ficando apenas no que Buber
(1974/2000) descrevia como relao Eu-Isso.
O processo psicoteraputico exige que todos os envolvidos percebam e
compreendam o sentido da relao e desta em relao ao universo. O processo de
compreenso por parte do psicoterapeuta contnuo, nunca termina e no
suficiente que se limite ao psicoterapeuta. Um dos objetivos do processo
psicoteraputico em Gestalt-Terapia o resgate do processo natural de
compreenso daqueles que, por falta de uma denominao mais adequada,
continuamos a chamar de clientes. Quanto mais percebemos sobre mltiplas
possibilidades, mais nos aproximamos da totalidade. E a totalidade nos conduz

compreenso. Quando todos no campo esto aware, restauram-se as vrias


possibilidades dos indivduos criarem no campo.
assim que o sentido vai se revelando na relao. O sentido no o dos
psicoterapeutas e nem o dos clientes, mas algo co-construdo a partir das
narrativas e do vivido na relao. A relao psicoteraputica vai se transformando
em uma relao amorosa quando a totalidade vai sendo percebida por todos no
campo. Buber colocava que o amor da palavra-princpio Eu-Tu no cego, pois
s amamos quando vemos a totalidade, j que no podemos deixar de odiar
quando vemos apenas uma parte do ser. H uma restituio do olhar de admirao
quando percebo a totalidade, ou quando continuamos trabalhando para isto. A
necessidade do processo psicoteraputico nasce em funo de havermos perdido,
ou acharmos que perdemos, a possibilidade de admirar o encontro. H a perda do
sentido. Isso pode ser percebido em um processo psicoteraputico individual, assim
como quando trabalhamos com comunidades, onde h uma sensao de falta de
poder, de possibilidade de mudar a nossa relao com o mundo.
Quando a fronteira de contato percebida como muito angustiante, muitas
vezes preferimos nos afastar. Em termos de preservao, o procedimento muito
criativo, muitas vezes adequado, mas quando se torna fixo, as relaes adoecem.
Dar apoio para que se possa entrar novamente em contato com a fronteira uma
das propostas da Gestalt-Terapia, mas depois que entramos no sabemos qual
caminho a relao vai tomar, e s resta aos psicoterapeutas esperar, esperar,
esperar por nada (Robine b: 97). Resta-nos uma espera que acolha a criatividade e
a flexibilidade do ser em permanente mudana. Uma espera que no aguarda por
certezas.

2.2.3.7 O processo de conhecer

Para a Gestalt-Terapia, assim como para a Fenomenologia, o contato, o processo


de conhecer, no algo que se d entre as coisas, mas o prprio envolvimento do
ser-no-mundo. O conhecer no apenas um ato de cognio, e sim uma questo da
existncia que envolve todos os sentidos. No um processo solitrio, pois aquele
que conhece, conhece alguma coisa, h sempre uma intencionalidade no conhecer.
O conhecer, a compreenso, um processo em que cada ponto de vista apenas
mais um ponto de vista, uma das muitas possibilidades.

Nesse sentido, acreditamos que temos que pensar que um processo de


conhecer pode ser muito rico quando envolve um maior nmero de pessoas.
Apesar das dificuldades que possamos ter na escuta compreensiva quando temos
muitas pessoas envolvidas, percebemos que a co-construo mais significativa
quando envolve mais do que um cliente e um psicoterapeuta, j que realmente
uma co-construo de um sistema ntimo, seja ele um casal, uma famlia ou uma
comunidade.
A Gestalt-Terapia inicialmente se caracterizou por uma psicoterapia de grupo,
mas em funo de nem sempre os grupos terem levado a uma intersubjetividade e sim
imposio de algumas perspectivas, este modelo foi bastante abandonado no Brasil.
Contudo, acreditamos na possibilidade de podermos organizar uma prtica clnica que
no fale apenas do ser em relao, mas que tambm trabalhe com esse ser em relao
Entretanto, a prtica clnica deve trabalhar o ser em relao com cuidado, para que todo
o grupo possa se expressar procura de um encontro, no qual a intersubjetividade no
signifique uniformidade, muito menos unanimidade, como prope Husserl para
intersubjetividade (veja item 2.1.6).

2.2.4 A Gestalt-Terapia pode ser considerada uma teoria psmoderna?


A Gestalt-Terapia parece expressar o que acontece quando uma nova idia vai se
organizando no campo geral do conhecimento. Novas perspectivas so apresentadas,
mas no h uma ruptura com as idias e paradigmas do passado. O mesmo acontece
hoje, vemos que est se construindo o que alguns tm chamado um paradigma psmoderno, mas as mesmas idias dele so fruto da modernidade (Robine, 2001a). A
Gestalt-Terapia nasceu juntamente com esses novos paradigmas, e Perls, Hefferline e
Goodman (1951/1997- Prefcio) deixaram claro o quanto estavam conectados a estas
mudanas.
Na Psicologia, a Gestalt-Terapia parece ter influenciado e sido influenciada
pelos novos paradigmas no que se chamou de Psicologia Humanista. Fruto desse
momento de transio, a Gestalt-Terapia parece expressar vrias ambigidades,
colocando elementos tanto do chamado paradigma moderno, quanto do ps-moderno.

Ao mesmo tempo, expressa toda a dificuldade de teorizar sobre a experincia, sobre o


vivido e sobre a relao ser-no-mundo.
Mesmo ao propor um self relacional, processual, podemos perceber que a
Gestalt-Terapia o faz com incerteza, com uma certa ambigidade. Podemos perceber
algumas delas na definio de self e de contato. Em vrios momentos, o self colocado
como estando na fronteira de contato, mas, em outros, ele sutilmente aparece como
interno (Robine, 2001). Estas dubiedades esto expressas em trechos como: o self
pequeno, mas desempenha um papel crucial. Ou em num certo sentido, o self nada
mais do que uma funo fisiolgica; em outro sentido, no faz em absoluto parte do
organismo, mas funo do campo, a maneira como o campo inclui o organismo
(Perls & Goodman, 1951/1997, p. 206 XII, 1).
A Gestalt-Terapia que foi divulgada por Perls, segundo Robine (2001a), enfatiza
mais o self como interno, mais do que relao. Nos textos de Perls, encontramos
algumas discusses que podem legitimar estas idias de Robine. Perls (1969/1977)
props uma teoria das camadas da neurose, onde utilizou o conceito de verdadeiro self,
j utilizado pela Psicologia Humanista. Isto pode nos levar a pensar em um modelo de
self mais fixo, em um ideal de self, ao invs de um self em permanente mudana. O
mesmo parece acontecer quando enfatizou a noo de self suporte, que estaria em
oposio suporte ambiental (Perls, 1969/1975). Nesse ponto, Robine (2001a) coloca
que a Gestalt-Terapia, ao enfatizar o self-suporte e no o suporte ambiental, tira o self
do meio e assume uma viso moderna e assume uma viso ps-moderna quando
considera o self como contato. Tal fato o leva a questionar se a Gestalt-Terapia
elaborada por Perls e Goodman poderia ter o mesmo nome do que a divulgada por Perls
em Esalen.
A nosso ver, Perls nunca abandonou a perspectiva do contato. Talvez apenas no
a tenha a enfatizado com todas as letras em sua teoria depois que foi para Esalen. No
entanto, Perls no apenas falou de contato, tambm o presenciou muito, no contato com
seus clientes. Em alguns momentos, talvez tenha se colocado como figura da relao,
sempre assumiu seu lado narcisista. Mas temos que lembrar, mais uma vez, que Perls
estava fazendo demonstraes e no psicoterapia. A questo do contato para ele tambm
estava no fato de ser um grande incentivador da psicoterapia de grupo, chegando mesmo
a dizer que a psicoterapia individual era obsoleta. Procurou integrar a terapia individual
terapia grupal em seus grupos de encontro (Perls, 1969/1975). Mas o que percebemos
nos relatos de sesso, feitos por Perls (1973/1977), que a sua proposta estava mais

para o que Ribeiro (1994) descreve como psicoterapia individual em grupo, do que para
psicoterapia do grupo, dado que o seu foco no eram as relaes grupais. Todavia, Perls
sempre colocou, assim como tambm os behavioristas, a necessidade de estarmos muito
atentos ao meio. Alm disso, Perls mostrou que ao formar um campo com o cliente,
surgem fronteiras nesse campo, que podem ser as que emergem como figura para serem
colocadas como figura/tema no processo psicoteraputico.
A noo de uma continuidade e de uma regularidade do self tambm est
presente na obra de Perls e Goodman (1951/1998), inclusive formando parte do self
saudvel, j que, igualmente, a preservao um aspecto da auto-organizao criativa.
Portanto, o contato no pode aceitar a novidade de forma passiva ou meramente se
ajustar a ela, porque a novidade tem que ser assimilada (p. 44/45 - I, 5 ), porque a lei
bsica da vida auto-preservao e crescimento (...), o que mais vulnervel e valioso
defendido primeiro, como um cisco no olho sensvel a dor mais intensa e exige
ateno; esta a sabedoria do corpo (p. 88 - IV, 5). Para Smuts (1926/1996), no
contnuo da evoluo h mais preservao que mudana. E, como j vimos, um self
flexvel o que est mais ligado idia de sade e criatividade em Gestalt-Terapia, no
entanto, preserva-nos tambm uma resposta criativa.
Assim, no h como no colocarmos a Gestalt-Terapia como uma psicoterapia
do campo, apesar de todas as suas variaes. Para tanto, e para deixarmos nossa
afirmao mais clara, adaptamos a comparao feita por Wheeler (1996, em Robine,
2001a, p. 76/77) entre uma psicoterapia mais centrada em uma perspectiva do
paradigma individual e uma mais centra no paradigma do campo. Nossa adaptao
constitui o Quadro1, abaixo.

Paradigma individual

Self
Outro
Natureza
humana
Relao
Fronteira
Posio do
observador
Viso
da
Realidade
Terapia

Paradigma do campo/da GestaltTerapia


Pr-existente,
separado, H integrao entre as experincias interna
precede a relao.
e externa, incluindo as relaes.
Separado do self, objeto da Fundamentalmente conectado.
experincia do self.
Liberao dos instintos, A construo do significado como
isolada do campo.
necessidade primria.
Secundria: sujeito-objeto Primria: sujeito-sujeito.
ou objeto-objeto.
Separao self/campo.
Conecta o eu ao outro, local do processo
do self.
Perspectiva
objetiva, Perspectiva fenomenolgica, a experincia
experincia vista de fora.
do outro vista de dentro.
Positivista, objetivista
Construtivista, fenomenolgica

Remoo
de Suporte de um processo de self mais
bloqueios/distores
da robusto, para o contato intersubjetivo.
descarga de tenso.
Hierarquia,
expert, Consensual, processo dialgico.
Natureza
orientao
de
certoda
autoridade errado.
Expresso mxima do self. Contnuo processo de significao.
Sade
Autoritrio, de mo nica. Dividido, colaborativo.
Poder
Quadro 1 - Adaptao do trabalho de Wheeler (1996, em Robine, 2001a).

A respeito dos elementos que caracterizam a psicoterapia centrada em um


ou em outro paradigma, Robine acredita que Wheeler prope uma psicoterapia do
campo, mas prxima do Construtivismo (veja Captulo 3). J o que o prprio
Robine (2001) prope uma teoria do campo onde no h outra realidade que no
aquela construda na relao, e coloca que este um claro sinal que devemos
mudar de paradigma. Entendemos que Robine, assim, prope para a GestaltTerapia a perspectiva Construcionista Social (veja Captulo 3), pois considera que
a afirmao de que no h outra realidade, a no ser a que cada sujeito constri,
solipisista. E por assim entender, Robine aponta alguns caminhos para
desenvolvermos nossa teoria e nossa prtica como Gestalten-Terapeutas e para
que nos aproximemos mais de uma proposta Construcionista Social:
1 - Enfatizar o estudo das narrativas, o que de certa forma j se fez
relevante quando Goodman props a funo personalidade do self a rplica

verbal do self. Acreditamos que temos que valorizar o fato da Gestalt-Terapia


fazer isso integrando a funo personalidade com a funo id (que mobiliza a
direo do desejo e do significado) e da funo ego (que a capacidade de orientar
o contato com o mundo e construir a experincia). A perspectiva ps-moderna tem
se caracterizado na Psicologia pelo interesse nas histrias pessoais (veja Captulo
3), onde a questo no o porqu de vrios significados, mas estarmos atentos a
como as mudanas podem ocorrer. O interesse se d nas narrativas, posto j que
nossas conversaes esto constantemente mudando, nossos selves esto em
perptuo movimento, so mltiplos como as situaes.
2 - Revisitar a teoria do campo. Para Robine, Lewin foi um visionrio do
ps-modernismo, procurando pensar tambm no que seriam as funes do campo
e no apenas as funes do self. Devemos refletir sobre o fato que no h introjeo
sem que sejamos alimentados pelos outros ou que no h retroflexo sem que
sejamos incitados pelo(s) outro(s). O conceito de pesquisa-ao de Lewin tambm
nos ajuda a elaborar o nosso papel de psicoterapeutas ao lembrar que no h
sujeito independente de sua ao. O psicoterapeuta tambm do campo e um coconstrutor.
3 Enfatizar o processo e a temporalidade. Como j sabemos, no h
temporalidade em termos cronolgicos, mas ela existe no sentido de organizao
da experincia, da construo do significado nas relaes com os outros. H uma
temporalidade como a colocada por Perls e Goodman (1951/1997, p. 158 VII, 9):
A passagem do tempo, a mudana no tempo, no algo que se acrescenta a
um animal original que tem um princpio interno isolado no tempo do
campo, e que de algum modo se ajusta a situaes sempre novas. o
ajustamento de situaes sempre novas, que modificam tanto o organismo
como o ambiente, que o crescimento e o tipo de tempo que os organismos
tm porque cada objeto cientfico tem seu prprio tipo de tempo. Para
uma histria, a novidade e a irreversibilidade so essenciais.
Assim, a nfase est na evoluo do contexto e o interesse em estabelecer
perspectivas que substituam a fascinao com a histria pessoal pela ateno ao
como ocorrem as mudanas de significados. Podemos perceber que as nossas
perspectivas sobre um determinado tema mudam e com isto as nossas
conversaes sobre ele tambm esto sempre mudando.

4 Estar atento questo do significado, pois a Gestalt-Terapia


construda, acima de tudo, no conceito de experincia e o significado um de seus
constituintes.
5 Estar atento experincia que no se refere a apenas ao significado
individual, pessoal da subjetividade, mas de uma experincia-no-mundo, j que a
relao no composta de duas partes, existe apenas como totalidade.
Consideramos

que,

ao

apresentarmos

Construtivismo

Construcionismo Social com mais detalhes, no prximo captulo, teremos mais


elementos para analisar a proposta de Robine. Porm, desde j, valemo-nos da
posio de McNamee (2002) que, em sua proposta Construcionista Social, no v
sentido falarmos em processo de auto-regulao.
No fcil colocarmos um outro paradigma que reverta totalmente o paradigma
individual, mesmo porque, apesar de vivermos em relao com o meio, podemos relatar
a ele a nossa prpria histria enfatizando-a em maior ou menor escala e, ao mesmo
tempo, s podemos separar a pessoa e o meio apenas por abstrao (Ribeiro, 2003).
Ento, que fenmeno este que, apesar de estarmos em constante mudana, falamos na
primeira pessoa e contamos uma histria sobre ns? Temos dificuldade de expressar, de
teorizar sobre um ser-no-mundo, sem distinguir, por exemplo, entre interno e externo.
Podemos levantar vrias hipteses: a dificuldade surge pelo fato de ns ocidentais a
termos inventado e estarmos to acostumados a pensar pela perspectiva do paradigma
individual que, para ns, complicado mudarmos de paradigma? Ou, estamos falando
em termos de campo, onde as partes apesar de estarem em constante interao se
distinguem uma das outras, pois sem distino no h fronteira e sem fronteira no h
contato? Ou, pelo fato das distines surgirem no campo, quando h uma tenso maior,
somos obrigados a eleger figuras e isto nos provoca a sensao de diviso? Temos uma
percepo de um eu porque na mudana h preservao? Mudar faz parte da essncia do
ser, j que a existncia precede a essncia? Ou, a passagem do tempo no algo que se
acrescenta a um animal, pois a novidade e a irreversibilidade so essenciais para uma
histria? Ou, ainda, a possibilidade de podermos narrar uma histria que nos
possibilita essa percepo de permanncia?
Provavelmente, mais uma vez estejamos falando sobre possibilidades, sobre
pontos de vista. O cuidado talvez deva ser no sairmos de um dogma e entrarmos em
outro, j que a proposta lidarmos com incertezas. O individual e o social parecem-nos
estar ligados, como em um processo de figura/fundo. Focalizarmos tanto em uma

perspectiva como em outra pode nos levar a no percebermos o todo. So estas questes
que continuaremos a discutir no prximo captulo a partir da perspectiva de alguns
autores que tem marcado bastante a Psicoterapia Familiar e Comunitria,
principalmente depois da articulao da perspectiva sistmica com o Construtivismo e
com o Construcionismo Social. Poderemos perceber que esto presentes para estes
autores as questes da subjetividade e da intersubjetividade. Tambm veremos quais as
questes que tem sido levantadas pelos Construcionistas Sociais para questionar o
conceito de intersubjetividade.

Captulo 3
Do Sistema, do Olhar do Observador
Compreenso

Sem contexto, palavras e aes no tm qualquer


significado. (Bateson, 1979/1986, p. 23)
Construtivismo = quando o conceito de descoberta
substitudo pelo conceito de inveno. (von Foerster em
Ceruti, 1991/1995, p. 31)

Todo compreender interpretar, e todo interpretar se


desenvolve no mdium de uma linguagem que pretende
deixar falar o objeto e , ao mesmo tempo, a linguagem
prpria do seu intrprete. (Gadamer, 1986/1997, p. 566/7 [392])

3.1 A Psicoterapia Familiar Sistmica

Como vimos no primeiro captulo as Cincias Humanas, inclusive a Psicologia,


comearam a estar mais atentas perspectiva social como um modelo alternativo
perspectiva individual. Na dcada de 20, a Psicologia Social comeava a decolar e
William McDougall passou a falar de como a continuidade do grupo depende, em parte,
do grupo ser uma idia importante nas mentes dos seus membros. Os trabalhos com
grupos, de Bion e de Foulkes, por exemplo, passaram a ser muito importantes e
marcaram presena na construo de uma teoria e prtica com famlias
Na dcada de 40, Kurt Lewin, psiclogo da Gestalt e introdutor da Teoria do
Campo, passou a estudar as interaes grupais de uma forma mais sistemtica, inclusive
as relaes familiares. Sobre o tema, encontramos textos de Lewin, datados de 1940,
como A Origem do Conflito no Casamento (Lewin, 1940/s/d). Lewin desenvolveu o
conceito de que o grupo, como um todo, diferente da soma das partes e analisou o que
chamou de equilbrio social quase estacionrio. Acreditava que algo precisava abalar e
desestabilizar as crenas e os comportamentos habituais do grupo, pois s assim os
membros estariam preparados para aceitar a mudana. Esta perspectiva de Lewin foi

bastante considerada pelos terapeutas de famlia que passaram a procurar estratgias


para desestabilizar a homeostase familiar e, assim, prepar-las para a mudana. Isto
implicou uma postura bastante ativa por parte do terapeuta, objetivando principalmente
a mudana, que no precisava passar pela conscincia (Zinker, 1994/2001).
No mesmo perodo, tambm estava se estabelecendo, devagar, uma Psicologia Existencial por meio das propostas de Ludwing
Biswanger, Medar Boss e Rollo May, na Europa, e por Carl Rogers, Carl Whitaker, Thomas Malone e F. Perls nos Estados
Unidos. Dentro desse cenrio, comearam a surgir vrios outros grupos procurando compreender o ser humano em relao. Na
Psicologia, outras abordagens estavam procurando compreender as pessoas na sua relao com o mundo, principalmente
aquelas que eram utilizadas para terapias do comportamento infantil, da delinqncia e da esquizofrenia. Os psiclogos foram
percebendo que precisavam ampliar sua percepo do fenmeno que estava ocorrendo para alm da dinmica individual.

Ao tempo em que tais mudanas iam se delineando e, particularmente, em torno


de Gregory Bateson, foi se desenvolvendo um grupo multidisciplinar interessado em
compreender os processos de comunicao na esquizofrenia. Entre outros, nesse grupo
de Palo Alto, Califrnia (EUA), estavam Jay Haley (terico da comunicao), Don
Jackson (psiquiatra) e Virginia Satir (assistente social). Satir era uma humanista que
enfatizava a necessidade de uma melhor comunicao e expresso de sentimentos e uma
estimulao do clima de aceitao mtua. O grupo estava preocupado em relacionar os
possveis conflitos entre a mensagem e a qualificao da mensagem, ao que chamaram
de duplo vnculo. Naquele momento, ainda estavam propondo um modelo linear,
pragmtico, de causa e efeito, para compreender a comunicao da famlia
esquizofrnica. No entanto, j era um modelo relacional, apesar de focalizado na
relao me-filho.
Dentro do grupo havia vrias discordncias, mas todos concordavam com a necessidade de um modelo sistmico, como o de
von Bertalanffy, para compreender a relao do organismo com seu meio ambiente. von Bertalanffy desenvolveu um modelo
sistmico que criticava a viso mecanicista dos sistemas vivos, pois sabia que esses sistemas so criativa e espontaneamente
ativos e podem usar muitos mtodos para manter sua organizao. nesse sentido que a Teoria Geral dos Sistemas antecipou e
influenciou o movimento ambiental.

Apesar de um referencial sistmico em comum, as prticas de teraputicas da


derivadas foram singulares. No entanto, a importncia do contexto para a compreenso
dos dilemas humanos comum a todas. Passou-se a compreender o comportamento
humano dentro de um contexto inter-relacional. Quando os terapeutas comearam
perceber as pessoas no seu contexto social, os comportamentos passaram a ser mais
compreendidos como fruto de uma interao entre as pessoas. O sintoma, por exemplo,
deixou de ser percebido como individual e passou-se a procurar a sua funo na relao
com o meio, o que significou uma mudana para uma epistemologia organizada em
torno do conceito de causalidade circular. O mundo dos seres vivos no poderia ser
mais descrito como se apenas uma parte pudesse exercer uma influncia causal linear

sobre outra. No campo da psicoterapia, implica que no se poderia excluir o terapeuta


dessa circularidade, pois ele e a famlia constituam um sistema onde a ao de um
retroagia sobre o outro, de forma circular.
Com base na Teoria Geral dos Sistemas, a famlia pde ser definida como um
sistema aberto, devido ao movimento de seus membros dentro e fora de uma interao
uns com os outros e com sistema extrafamiliares, em um fluxo recproco e constante de
informao, energia e material. Dentro desta perspectiva, o sintoma de um indivduo era
considerado o porta-voz da disfuno familiar, funcionando como um mecanismo
homeosttico para restabelecer o equilbrio do sistema perturbado. Percebemos, ento,
que a famlia passou a ser definida pelos padres de interao e no pelas caractersticas
individuais de seus membros. Inclusive, houve um reducionismo ao sistema e os
indivduos e seus sentimentos ficaram um pouco esquecidos (Nichols e Schwartz,
1995/1998 e Hycner 1988/1995).
Foi com o grupo multidisciplinar de Palo Alto que comeou a se organizar o que tem sido chamado de Teorias Sistmicas
Construtivistas Construcionistas Sociais (Grandesso, 2000), procurando romper com diversas epistemologias dominantes na
poca (Neubern, 1999) e superar diferentes dicotomias como: sujeito/objeto, individual/coletivo, psicolgico/social,
intrapsquico/interpsquico, objetivo/subjetivo, real/simblico. Buscando superar tais dicotomias, foi criando um novo espao,
que a intersubjetividade (Sudbrack, 1995).

3.1.1 As razes cibernticas da Psicoterapia Familiar

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Teoria Ciberntica de Norbert Wiener passou a


envolver os interesses de Kurt Lewin e de Gregory Bateson (Seixas, 1992). A Teoria
Ciberntica se propunha a estudar os processos de comunicao e controle, tanto dos
sistemas naturais como dos artificiais.

Bateson passou a utiliz-la para dar maior

inteligibilidade suas teorias. Cabe-nos ressaltar que a Teoria Ciberntica uma busca
pelo controle e no da compreenso.
Por meio da Teoria Ciberntica, Bateson reconheceu, principalmente, o fato da
chamada Teoria Ciberntica de Primeira Ordem descrever a idia de retroalimentao
(feedback) e de circularidade. Este conceito foi desenvolvido, entre outros, por Wiener,
Rosenblueth, Kurt Lewin, Margareth Mead e pelo prprio Bateson (Capelo, s/d/2002).
A idia de crculos retroativos questionou a causalidade linear ao mostrar que os fatos
podem se tornar causadores ao retroagirem sobre a causa. Tambm questionou como o
sistema consegue a informao necessria para se autocorrigir em seu esforo para

manter um estado firme ou para se movimentar em direo ao objetivo programado. O


interesse de Bateson na ciberntica era o de estudar os significados que as pessoas
extraram da comunicao e de seu contexto, por isso objetou-se fortemente ao uso de
metforas do poder e do controle para compreenso do sistema teraputico.
At a Ciberntica, os fenmenos naturais eram explicados principalmente a
partir da noo de energia, central na fsica newtoniana. A Ciberntica representou uma
troca de tipo de explicao, adotando a noo de informao como base para a descrio
dos fenmenos naturais. A teoria da informao permite um tratamento mais adequado
de sistemas abertos que, diferentemente dos sistemas conservativos da mecnica
newtoniana, so acoplados a um meio ambiente do qual recebem impresses e sobre o
qual podem agir. Alm da Teoria Ciberntica propriamente dita e da teoria da
informao, as discusses nomeadas como Ciberntica de Primeira Ordem no campo da
Psicologia/psicoterapia incluem teorias como as dos jogos (von Neumann) e a dos
sistemas gerais (von Bertalanffy). Este conjunto de teorias prope-se a estudar os
princpios que regem a organizao de mquinas, organismos vivos e fenmenos
psicolgicos e sociais.
A Ciberntica introduziu o pensamento conectivo e apontou que diversas dimenses esto envolvidas em uma mesma
problemtica. Implicou uma ruptura com o empirismo e com o pensamento disjuntivo (sujeito/objeto, mtodo/teoria),
proporcionando um grande salto epistemolgico e anunciando uma mudana de paradigma. Criticou, ainda, a postura de
algumas teorias, que tendem a centralizar o foco de anlise sobre o indivduo em detrimento de suas relaes com o contexto do
qual parte integrante. Introduziu importantes conceitos como o da circularidade, da retroalimentao, da globalidade e da
homeostase, que possibilitaram a viso do ser humano como sistema que se auto-organiza em prol de sua manuteno, com
movimentos complementares e simtricos em busca do equilbrio.

Esta perspectiva, apesar de nova, permanecia mecanicista, positivista. No


entanto, foi assimilada por alguns terapeutas de famlia, que viam a necessidade de se
fazer intervenes que viessem a quebrar o processo de homeostase familiar. Para tanto,
a tica proposta era a de mudana, ou a da necessidade do terapeuta desestabilizar a
famlia para que ela mudasse, uma vez que estava envolvida em um estado de
homeostase, resistindo mudana. Ento, at o final da dcada de 70, a terapia familiar
concentrou seu desenvolvimento em tcnicas pragmticas para compreender e domar
esse novo animal estranho o sistema familiar. Todavia, o que acontecia, de fato, era a
famlia resistindo a seus esforos de mud-las, j que as famlias mudam quando acham
que vai ser prazeroso e seguro mudar (Nichols & Schwartz, 1995/1998).
Em um segundo momento, na chamada Segunda Ciberntica, procurou-se
enfatizar o fato de que os sistemas vivos necessitam ser capazes de modificar suas
estruturas bsicas para sobreviverem e no s de manter a homeostase, para se

adaptarem-se s situaes de mudana do meio. Esta Ciberntica passou a ser apoiada


pelas contribuies de Prigogine sobre os sistemas que funcionam longe do equilbrio
(Vasconcellos, 2002). Com essa nova contribuio, foi possvel explicar as mudanas
descontnuas, resultantes das escaladas de ampliao do desvio e da conseqente
reorganizao do sistema. As correes de desvio que resultam em mudanas
reversveis, mantendo o padro do sistema, foram chamadas de mudanas de primeira
ordem, passando-se a chamar de mudana de segunda ordem s de natureza
irreversveis que, pela sua descontinuidade, resultam em um salto qualitativo do sistema
para um outro nvel de organizao. Trata-se, ento, de um processo de autoorganizao, no qual o sistema escolhe um novo caminho a partir de uma instabilidade,
de uma desordem transitria. No caso dos sistemas afastados do equilbrio, as suas
histrias singulares so fundamentais na seleo de novas formas de organizao.
Portanto, o acaso, como contexto gerador das perturbaes para alm do equilbrio, e a
histria, como um conjunto das singularidades do sistema, determinam novas ordens de
sua organizao em um processo recorrente,

o qual Prigogine chamou de

retroalimentao evolutiva (Prigogine e Stengers, 1984, em Grandesso, 2000).


Assim, uma nova perspectiva, a Ciberntica de Segunda Ordem, foi se
organizando em torno da Ciberntica em funo da sua integrao a vrios domnios de
estudo, como a Antropologia, a Neurologia e a Sociologia, por exemplo. Dessa nova
perspectiva resultou a discusso das peculiaridades das mquinas no triviais, mquinas
que so dependentes de sua histria, indeterminveis e impredizveis. Maturana (2001)
coloca que o que diferencia os seres vivos das outras mquinas no nem o fato de
termos uma organizao autopoitica, e, sim, o fato de termos uma histria. Ento, aos
poucos, a Ciberntica foi deixando de querer compreender o processo de conhecer dos
seres vivos por meio da mquina.
von Foerster (Vasconcelos, 2002) introduziu a expresso sistema observante,
para se referir ao fato de que, em sua relao com o objeto, o sistema que observa
tambm objeto de observao. E isto porque, a partir do momento em que o observador
comea a observar um sistema, cria-se instantaneamente um sistema que integrar
ambos, observador e sistema. O sistema como objeto de observao estabelece uma
conexo no trivial em que no se pode dizer quem foi o primeiro, quem foi o ltimo e
em qu se necessita dos trs - o observador, o observado e o sistema - para ter cada um
dos trs. Assim, von Foerster definiu objetividade como a iluso que as observaes
podem ser feitas sem um observador (von Glasersfeld, 1991/1995).

Outra idia de von Foerster a de ordem a partir do rudo. Essa idia


comeou a se organizar a partir das suas experimentaes com cubos imantados
em um dos lados que eram colocados em uma caixa e agitados. Aps serem
agitados, desordenados, os cubos chegavam a uma arquitetura organizada. A esse
fenmeno ele chamou de auto-organizao (Morin, 1998).
Ento, reconhece-se na Ciberntica que no possvel afastar ou colocar entre
parnteses a subjetividade do cientista, que temos que lidar com a complexidade, com a
instabilidade, imprevisibilidade, dado que o mundo um processo de tornar-se, com a
intersubjetividade, uma co-construo. E o que quer que entendamos por conhecimento
no pode ser a imagem ou a representao de um universo independente daquele vivido
(von Glasersfeld, 1991/1995).
Esse movimento no deixa de ser uma volta a Protgoras, que j dizia que o
homem a medida de todas as coisas, pelo fato de considerar que as percepes e as
observaes so o resultado de um sujeito ativo. No entanto, von Foerster vai alm ao
demonstrar que os sinais de nossas faculdades de percepo sequer distinguem algo
visto de algo ouvido ou percebido atravs do tato. Como no temos acesso direto a um
mundo exterior, vamos primeiro cri-lo como imaginao em nosso corpo, por meio da
atuao conjunta de todos os seus rgos. Assim, os universos que criamos vo
depender da estrutura da qual nos encontramos (Krieg, 1991/1995).
Do ponto de vista construtivista a no-diferenciao da codificao do sistema
nervoso uma oportuna confirmao da afirmao que todo o conhecimento no
universo experiencial deve ser construdo, se relacionar exclusivamente nesse universo
experiencial e no pode ter qualquer pretenso ontolgica em relao objetividade.
(von Glasersfeld, 1991/1995).
Nessa perspectiva, o conhecimento deixa de ser a imagem ou a representao de
uma realidade intocada pela natureza para ser definido como a capacidade de agir
adequadamente. von Glasersfeld (1991/1995) acrescenta que o conhecimento a
capacidade de compreender, porque o raciocnio muitas vezes nos mais importante
que a ao. Ento, para os construtivistas, criamos modelos ou formas de
inteligibilidade que nos ajudam a agir ou compreender algo.
Aos poucos, e em funo de todas essas crticas, houve uma volta a Bateson, que
nunca havia concordado com a viso pragmtica ou com as metforas de poder,
adotadas por alguns terapeutas de famlia, com base nos conceitos de homeostase e da

Primeira Ciberntica. Pela influncia de Bateson, a Terapia Familiar adotou o termo


epistemologia como sinnimo para sistema de crenas ou viso de mundo. E uma
grande ateno passou a ser dada ao modo como as pessoas construam suas suposies
sobre os seus problemas. A questo do significado passou a ser o principal objetivo. Um
significado muda em relao ao contexto e ao tipo de relao estabelecida entre duas
pessoas, num dado momento, em um sistema que est em constante processo de
retroalimentao. Bateson, assim como Fritz Perls, gostava de citar Alfred Korzybski
(1879-1959), o mapa no territrio, para mostrar que no podemos achar que a
relao entre duas mensagens direta e simples, pois podemos ter diferentes
representaes da realidade por diferentes observadores.

3.1.2 Perspectivas psicoteraputicas atuais


Com o decorrer do tempo, os terapeutas foram se tornando mais humildes em sua
maneira de lidar com a famlia, muito em funo do movimento ocorrido na Terapia
Familiar, que teve sua base na Ciberntica. Essa postura passou a ser conhecida como
movimento ps-Milo, pois o grupo de Milo que redescobriu Bateson ou a Terapia
Familiar de Segunda Ordem. Para Nichols e Schwartz (1995/1998) e Jones (1992/1999),
esses grupos de Segunda Ordem envolveram a terapia familiar para lev-la de volta a
uma posio rogeriana, no-diretiva, embora Carl Rogers tenha sido pouco citado.
A mudana epistemolgica implicou mudanas fundamentais no papel do
terapeuta e na prpria concepo de terapia (Grandesso, 2000; Fruggeri 1995/1998,
Nichols & Schwartz, 1995/1998, Cecchin, 1995/1998). Isso porque os terapeutas
deixaram de ser vistos como interventores que operavam sobre o sistema, procurando
mud-lo, para posicion-lo naquilo que acreditavam ser a mais funcional, passando a
serem vistos como mais um do sistema. Destarte, o terapeuta passa a ser co-participante
do sistema, atuando para uma transformao co-evolucionria, que conta com o
imprevisvel medida que os sistemas produzem sua prpria mudana. O terapeuta no
mais apontado como um expert, mas como um facilitador. Seu conhecimento, assim
como o de qualquer outro, auto-referencial. Podemos perceber que sujeito criativo
presente na Teoria Geral dos Sistemas de von Bertalanffy, que j reconhecia que o ato
de observao tem efeito sobre o fenmeno, novamente retomada pela Ciberntica de
Segunda Ordem.

Ideologias fortes que antigamente competiam uma com a outra agora esto
sendo combinadas. Tcnicas agressivas esto dando lugar a mtodos sutis, mais
cooperativos, medida que um deslocamento da ao para o significado provoca
uma menor urgncia para se controlar as famlias com a desculpa de ajud-las.
(Nichols & Schwartz, 1995/1998, p.vii)
A partir dessas mudanas, podemos perceber a introduo de um novo
paradigma e, com isto, caracterizar uma terapia dentro dos parmetros da psmodernidade (Grandesso, 2000). O Grupo de Milo foi marcante nesse processo
(Cecchin, 1995/1998), que props um retorno ao pensamento de Bateson. Mas foi
somente a partir dos trabalhos de Tom Andersen, Harold Goolishian, Harlene Anderson,
Lynn Hoffman e Michael White que o pensamento ps-moderno passou a estar mais
presente na prtica clnica (Lax, 1995/1998). Estes terapeutas propuseram a entrada do
terapeuta no sistema familiar e sua sada da posio de especialista, de normatizador do
desenvolvimento. As verdades universais do lugar a uma pluralidade de idias sobre o
mundo. A relao teraputica deixa de ser percebida como uma guerra de poder, na qual
a famlia no queria mudar e o terapeuta deveria introduzir a mudana a qualquer custo.
As abordagens teraputicas dentro desse novo paradigma consideram que as
metforas tericas que usamos so apenas construes sociais teis, e, sendo assim, no
podem ser consideradas como representaes da realidade ou ideologicamente neutras.
As teorias so consideradas lentes provisrias e seu valor no determinado pelo seu
valor de verdade, mas sim por sua utilidade como marco gerador e organizador de
significados teis para a compreenso dos dilemas humanos (Grandesso, 2002).

3.1.3 O Construtivismo
As abordagens teraputicas foram se organizando em torno de um conjunto de
princpios de derivaes prticas organizadas pelos enfoques Construtivista e
Construcionista Social (Grandesso, 2002). Estes enfoques no formam um grupo
homogneo e recebem uma srie de denominaes: Construtivismo Radical,
Construtivismo Crtico ou Psicolgico, Construtivismo Moderado, Construtivismo
Dialtico, Construtivismo Cultural, Construtivismo Epistemolgico, Construtivismo
Hermenutico, Construtivismo Teraputico, Construtivismo Social, Construcionismo
Social, Construcionismo Social Responsivo-retrico, entre outros (Grandesso, 2000;
2002).

Apoiado em torno dos princpios de imprevisibilidade e incerteza, da


impossibilidade de um conhecimento objetivo, da auto-referncia, da linguagem
e da autopoiese, o campo da terapia sistmica organizou-se nas chamadas
terapias sistmicas construtivistas, construcionistas sociais, desenvolvidas
nos modelos conhecidos como conversacionais, dialgicos ou narrativos. Em
comum, pode-se destacar que todas questionam os modelos diagnsticos
tradicionais, as teorias clnicas e teorias de mudana, tradicionalmente centradas
nos modelos apriorsticos de disfuncionalidade e patologias, ou do
funcionamento saudvel. (Grandesso, 2000, p. 135, grifos nossos).
Os vrios tericos construtivistas, entre eles Paul Watzlawick, Humberto
Maturana, von Foerster e von Glasersfeld, assumiram a posio kantiana de que a
imagem do mundo que carregamos em nossa mente no uma rplica direta do mundo
l fora. Pois, como vimos no Captulo I, Kant j argumentava que a mente humana
um rgo ativo que impe sua prpria estrutura inerente sobre as particularidades do
pensamento e da experincia, transformando a multiplicidade catica da experincia em
uma unidade ordenada de pensamento.
Giambattista Vico (1668-1744) considerado o pai do Construtivismo, porque
foi um dos primeiros a considerar que a nossa idia de mundo e acerca de ns mesmos
vem sendo construda a muito tempo, muito antes da linguagem escrita, e que ainda
estamos procurando compreender completamente a evoluo de nossas prprias idias
ao longo dos anos de evoluo. Vico, no incio do sculo 17, tambm foi um dos
primeiros a procurar descrever o processo de ideao humana, enfatizando que os seres
humanos criam uma ordem em suas experincias, projetando categorias familiares sobre
as particularidades no familiares. Concluiu que a caracterstica primordial do
pensamento humano era a sua habilidade de transcender a realidade imediata, isto , a
habilidade de suspender ou alterar o tempo presente. Imaginava que, inicialmente, tudo
era corpo e movimento corporal, e, no corpo, todo pensamento humano era ato corporal
da sensao. Segundo Vico, tendemos a criar uma ordem na nossa experincia. E,
antecipando as palavras de Piaget de que saber fazer pois fabricamos os mundos
experienciais que vivemos, fazendo com que paream estveis , Vico considerou a
mitologia como a primeira cincia, j que nela as construes humanas acerca da
ordenao do mundo so poderosas (Mahoney, 1991/1998).

3.1.4 A Gestalt-Terapia e o Construtivismo


A partir da Segunda Ciberntica, o que passou a ser conhecido como a entrada do olhar do observador nas Psicoterapias
Sistmicas, e com um afastamento da Ciberntica que buscava por controle, podemos perceber um reencontro dos caminhos
que estavam sendo trilhados pela Perspectiva Sistmica e pela Gestalt-Terapia. Com a ampliao do modelo construtivista por
outros autores, essas conexes foram ficando muito mais claras, ainda que as diferenas permaneam. Vrios dos autores
construtivistas tambm tm dedicado especial ateno intersubjetividade por meio da nfase na linguagem. E chegamos ao
Construcionismo Social pelo grande foco nas construes sociais que fazemos. Nesse sentido, interessante dialogarmos com
essas perspectivas, j que apresentam questionamentos semelhantes aos da Gestalt-Terapia.

Dado ao imenso mar de teorias produzidas nessas perspectivas, tornou-se


necessrio selecionarmos alguns autores para dialogarmos com a Gestalt-Terapia.
Selecionamos os que apresentavam, em uma primeira leitura, um ar de familiaridade
com a Gestalt-Terapia. Este ar de familiaridade emergiu da totalidade das teorias, no
de detalhes. Originou-se, em grande parte, de uma sensao de que as questes se
repetiam e, principalmente, de que algumas coisas que eram colocadas como novidades
pelos autores pesquisados, j faziam parte do mundo da Gestalt-Terapia.
Para o processo investigativo, caminhamos a partir:
- da Biologia do Conhecer de Maturana e Varela, que h muito so estudados
pelos psicoterapeutas familiares (Cecchin, 1995/1998), e tambm pelo fato de
terem sido alunos de Gregory Bateson e von Foerster.
- da Teoria da Complexidade de Edgar Morin, que procurou fazer a
integrao: das contribuies de uma tradio filosfica de enfrentamento que
vo de Herclito Jung; das teorias da informao, da ciberntica e do sistema;
com as teorias da auto-organizao e da auto-produo de von Foerster,
Maturana e Atlan; com as reflexes filosficas sobre a natureza da cincia a
partir de Husserl e Heidegger; completando com a reflexo epistemolgica sobre
a primeira revoluo cientifica do sculo 20, efetuada por Bachelard, Popper,
Lakatos, Kuhn, Holton, Fereyabend acrescidas da ecologia cientfica, cincia da
terra e cosmologia (Morin, 1994/1997). Edgar Morin tem sido estudado por
vrios psicoterapeutas (Sudbrack, 1995 e 2003; Schnitman e Fuks,1995) com a
expectativa de poderem introduzir a Teoria da Complexidade no processo de
compreenso da relao psicoteraputica.
- do Construcionismo Social. O principal terico desta perspectiva K. Gergen,
que procurou mostrar como as nossas construes so marcadas pelo social. Esta
perspectiva tem atrado importantes terapeutas de famlia da atualidade, como
Andersen (1995, 1996, 1995/1998), Anderson e Goolishian (1995/1998).

Os autores citados sero o foco deste captulo, entretanto, vale o nosso registro
de que constituem apenas um recorte do muito que se tem discutido sobre sujeito,
subjetividade e intersubjetividade nas Psicoterapias Familiares ou nos sistemas ntimos.

3.2 Maturana e Varela e a Biologia do Conhecer.


A subjetividade chegando pela cincia

Conhecer ao efetiva, ou seja, efetivamente


operacional no domnio do ser vivo. (Maturana & Varela,
1987/1995, p.71)

Nosso ponto de partida foi a conscincia de que todo


conhecer um ao da parte daquele que conhece. Todo
conhecer depende da estrutura daquele que conhece.
(Maturana & Varela, 1987/1995, p.76)

Todo aquele que est ensinando algo ao outro est


negando o outro. (Maturana, 2001, p.120)
O conhecimento no leva ao controle. Se o conhecimento
leva a alguma parte, ao entendimento, compreenso, e
isto leva a uma ao harmnica e ajustada com os outros
meios. (Maturana, 1998, p.55).
Maturana e Varela so bilogos chilenos, que deram continuidade aos trabalhos de Bateson e de von Foerster, procurando
compreender o processo de compreender. Partiram do princpio que para compreendermos o processo de compreender temos
que conhecer aquele que conhece (Maturana, 1998, Maturana e Varela, 1987/1995). Tambm consideraram a necessidade de
devolver o homem e a mente natureza (Bateson, 1979/1986).
Maturana (2001) procura partir da Biologia, e no da Filosofia, para provar cientificamente a subjetividade. Acredita
que a Filosofia e a Biologia tm pontos em comum e se cruzam mesmo em planos diferentes. Segundo ele, os cientistas tm a
vantagem de que, partindo das experincias, no precisam gerar um sistema explicativo logicamente consistente. No entanto,
acabamos por us-las para justificar nossas tentativas de forar os outros a fazerem o que no querem fazer.

Em funo destes interesses, Maturana e Varela esto includos em um grande


projeto das Cincias Cognitivas de unificao disciplinar, inspirado nas leis da natureza.
Um projeto que inicialmente buscava por leis a priori, mas que nas ltimas dcadas tem
enfatizado o constante vir-a-ser dos seres vivos. Tomam a nossa experincia enquanto
seres humanos como um foco e que consideram a linguagem e a cognio como
atividades que observamos no espao de interaes em que vivemos e no como
propriedades intrnsecas do humano. Ao mesmo tempo a autonomia e a identidade dos
seres vivos uma questo central para esse modelo (Magro & Paredes, 2001). E nessa
relao entre interao e autonomia que estamos procurando novas reflexes que
possam ampliar a nossa viso de sujeito, subjetividade e intersubjetividade.
Desse modo, o sujeito, o indivduo que Maturana e Varela apresentam no nem
determinado pelo meio, como tambm no uma entidade completamente independente

deste ltimo. Estes autores falam de um indivduo como uma entidade autnoma e que
encerra em si uma temporalidade. A distino entre organismo e meio ser produzida de
maneira correlata da operao de instituio da unidade. Esse ato de instituio da
unidade o prprio ato cognitivo. Desse modo, a cognio sempre produtora, e o
indivduo que se produz o resultado, nunca definitivo, de uma srie de perturbaes
que ele prprio sofre enquanto ser vivo. Assim, o processo de individuao
permanente, o que implica que no possamos falar de um indivduo produzido, mas
sempre a produzir-se. Um indivduo que dependente de sua histria, mas seus estados
anteriores nada podem informar a respeito dos rumos que o sistema ir tomar uma
histria de imprevisibilidades (Leal, 1993).

3.2.1 Conhecer o conhecer. Contra a tentao da certeza


Para Maturana e Varela (1987/1995), o processo de conhecer o conhecer no se ergue
como uma rvore, ao contrrio, h uma circularidade cognitiva. E o conhecimento do
conhecimento compromete-nos a adotarmos uma posio de permanente vigilncia
contra a tentao da certeza. A partir do momento que Ado e Eva comeram o fruto da
rvore do conhecimento, do bem e do mal, passaram a ser seres diferentes, pois nunca
mais tiveram a antiga inocncia.
Adotarmos uma posio de permanente vigilncia acaba implicando uma atitude
tica, pois a reflexividade nos permite olhar mais adiante, e s podemos chegar a este
raciocnio motivado pelo encontro com o outro como um igual em um ato de amor.
Como veremos, para Maturana e Varela, os fundamentos biolgicos do fenmeno social
so o amor e a aceitao do outro, pois sem eles no h socializao. Sem socializao,
no h humanidade. Muitas vezes cegos, diante da transcendncia de nossos atos,
fingimos que o mundo est a, independente de ns. Assim, eu sou maravilhosamente
irresponsvel sobre o que vocs escutam, mas sou totalmente responsvel sobre o que
eu digo (Maturana, 2001, p. 75).
Maturana e Varela (1987/1995), assim como os psiclogos da Gestalt,
interessaram-se pelos fenmenos de percepo. Procuraram agregar a estes estudos o do
sistema nervoso, para compreenderem como capturamos, distinguimos e manipulamos
os objetos. A partir da Biologia, encontraram um espao para reflexes sobre a
linguagem, sobre o conhecimento e sobre o social. (Maturana, 1998). H muito

Maturana (2001) procurava entender o que acontecia com uma salamandra, um anfbio
com alto poder de regenerao, caracterstica que possibilitava sua manipulao e o giro
de seu olho em 180 graus. Quando os bilogos faziam tal procedimento, o animal
passava a colocar sua lngua para trs, na tentativa de pegar um inseto que passava sua
frente. Para Maturana, o que este experimento nos ensina que o ato de lanar a lngua
e capturar o bichinho no um ato de apontar para o objeto externo, mas de fazer uma
correlao interna. Ou, ainda, no apenas o externo que determina nossa experincia.
Percebemos algo semelhante quando temos a sensao de que estamos partindo,
quando, de fato, o trem ao lado do nosso que est.
Quer dizer, ao perguntarmos pela origem das nossas capacidades cognitivas do
observador no podemos deixar de ver que estas se alteram ou desaparecem ao
alterar-se nossa biologia, e que no podemos desprezar mais nossa condio de
seres que na experincia no podem distinguir entre iluso e percepo
(Maturana, 1998, p. 47).
Com outros experimentos de percepo, Maturana e Varela (1987/1995)
procuraram mostrar com os experimentos de pontos cegos que no vemos que no
vemos. Outro fato que nos chama a ateno que os estados de atividade neural, como
enxergar o verde, por exemplo, podem ser desencadeados por uma variedade de
perturbaes luminosas distintas. As pesquisas mostram que possvel correlacionar o
nomear de cores com estados de atividade neural, mas no com comprimento de onda.
Os estados de atividade neural que so desencadeados pelas diferentes perturbaes em
cada pessoa so determinados por sua estrutura individual, e no apenas pelas
caractersticas do agente perturbador. E partindo assim, de pesquisas experimentais,
Maturana e Varela vo reforar a posio de von Foerster de que todo conhecer depende
da estrutura daquele que conhece. Colocam, ainda, que, ao examinarmos a forma como
chegamos a conhecer o mundo, sempre descobriremos que no podemos separar nossa
histria de aes - biolgicas e sociais - de como o mundo nos parece ser. Refletindo
sobre o nosso processo de conhecer, descobrimos nossas cegueiras e reconhecemos que
as certezas e os conhecimentos dos outros so to nebulosos quanto os nossos.

3.2.2 Objetividade-entre-parnteses e a intersubjetividade

Maturana e Varela (1987/1995) partem do princpio de que o fenmeno do conhecer


um fenmeno biolgico. Alm disso, ns, seres humanos, somos conhecedores ou
observadores no observar, e ao sermos o que somos, o somos na linguagem ou o somos
fazendo reflexes sobre o que nos acontece. Se no estamos na linguagem, no h
reflexo, no h discurso, no dizemos nada, simplesmente somos sem s-lo, at
refletirmos sobre o ser (Maturana, 1998). Segundo os autores, fazemos coisas fora da
linguagem, mas nos encontramos nela. A nossa digesto s vai surgir para ns ao ser
distinguida na linguagem. Quando realizamos alguma explicao, tambm a fazemos na
linguagem. Ento, explicar uma operao distinta da experincia que se quer explicar.
O explicar uma reformulao, na linguagem, da experincia que se explica,
aceita por um observador (Maturana, 1998). interessante notarmos que a validade do
nosso explicar no depende apenas de mim, mas das pessoas que vo aceitar ou no a
nossa explicao. Uma criana pode aceitar a explicao de que foi trazida por uma
cegonha, mas em outro momento de sua vida, pode no aceitar mais esta mesma
explicao. E tal como ocorre na nossa vida cotidiana, os cientistas, por sua vez, so
pessoas que sempre tentam explicar, mas a validade da explicao deles tambm vai ser
dada por outras pessoas.
No entanto, temos dois modos fundamentais de escutar e aceitar as
reformulaes da experincia (Maturana, 1998, 2001). Em um dos modos, rejeitamos
perguntas sobre o observador, e, no outro, essas perguntas j so aceitas. Na vida
cotidiana, agimos do primeiro modo e no refletimos sobre o observador e sua
capacidade de conhecer, comportamo-nos como se fossemos capazes de fazer referncia
a entes independentes de ns. Colocamo-nos na condio de possuidores de um acesso
privilegiado realidade, como se houvesse apenas uma realidade. Este caminho
Maturana chama de objetividade-sem-parnteses (ver Diagrama 1, lado esquerdo).
O que estou dizendo vlido porque objetivo, no porque seja eu quem diz;
a realidade, so os dados objetivos, so as medies, no eu, os responsveis
pela validade do que eu digo, e se digo que voc est equivocado, no sou eu
quem determina que voc est equivocado, mas a realidade. (Maturana, 1998, p.
46)
J a objetividade-entre-parnteses, como Maturana a denomina, caracterizada
como a segunda possibilidade, um outro modo, de escutar e aceitar as reformulaes de
experincia quando nos perguntamos como podemos fazer as observaes que fazemos
(ver Diagrama 1 - lado direito). Este modelo parte do princpio de que, como seres

vivos, no podemos distinguir iluso de percepo. Colocando a objetividade-entreparnteses, me dou conta que no posso pretender que eu tenha a capacidade de fazer
referncia a uma realidade independente de mim (Maturana, 1998, p. 45). Desse modo,
damo-nos conta que, quando aceitamos uma explicao, o que aceitamos no uma
referncia a algo independente de ns, mas uma reformulao da experincia com
elementos da experincia que satisfaa algum critrio de coerncia que ns mesmos nos
propomos explcita ou implicitamente (p. 47). Nesse caminho aceitamos que h vrios
domnios explicativos. No h uma realidade absoluta nem verdade relativa, mas muitas
verdades diferentes. Assim podemos entender que a noo de realidade, tanto num
como em outro caminho, uma proposio explicativa. Exemplificando: as explicaes
cientificas apenas tm validade porque tm a ver com as coerncias operacionais da
experincia no suceder do viver do observador.
prxis do viver
suceder do viver
experincia

Observador
Observar

?

na linguagem

reformular

explicar
(a existncia precede
a distino)
Objetividade

Uma realidade
Universo

(a existncia se constitui
na distino)
emocionar

(Objetividade)

Muitas realidades
Multiversa

Diagrama 1 Diagrama Ontolgico. (Maturana, 2001, p.31).


No caminho da objetividade-entre-parnteses, as diferenas que existem entre
ns so aceitas, pois ao considerarmos um ponto de vista no o consideramos como a
verdade. Aceitamos uma explicao, j que ela faz sentido, mas isso no nos impede de
aceitar a legitimidade do mundo do outro. Somos responsveis quando negamos o outro
e o seu mundo. Apesar de Maturana no citar Husserl, no podemos deixar de perceber

que ele faz uso de alguns termos da Fenomenologia de Husserl para organizar o que ele
chama de Fenomenologia Biolgica (Maturana e Varela, 1987/1995).
A objetividade-entre-parnteses nos permite refletir em como a mudana na
nossa biologia, na nossa dinmica emocional, vai marcar o modo como raciocinamos e
como os sistemas racionais se baseiam em premissas aceitas a priori, a razo se funda
nessas premissas. Pois, se a Biologia se altera, altera-se o raciocinar; mais ainda, se
mudamos de domnio emocional, muda o nosso raciocinar. A aceitao apriorstica
das premissas que constituem um domnio racional, pertencem ao domnio da emoo e
no ao domnio da razo, mas nem sempre nos damos conta disto (Maturana, 1998, p.
51, grifos do autor), pois ...no nos damos conta de que todo sistema racional tem um
fundamento emocional (Maturana, 1998, p. 15).
As emoes so disposies corporais dinmicas que definem os diferentes domnios de ao em que nos movemos.
Logo, quando mudamos de emoo, mudamos de domnio. Aceitando nossa biologia, podemos perceber que no o nosso
corpo que limita, mas ele que possibilita a nossa observao, a nossa conscincia e a nossa linguagem. Ao aceitarmos nossa
corporalidade, integramos novamente mente e corpo na questo do conhecimento. Ento, para compreendermos o conhecer,
temos que compreender as condies biolgicas e ontolgicas constitutivas do observador. Inclusive, acabamos por aceitar
certos a priori, pois ainda vivemos as divergncias como ameaadoras nossa existncia. Esta uma marca da nossa cultura,
que confere ao racional uma validade transcendente e no considera o emocional.

Quando nos perguntamos qual a emoo est presente, estamos fazendo uma
distino para percebermos em que domnios de ao a(s) pessoa(s) esta(o).
Ento as emoes surgem como disposies corporais que especificam domnios
de ao. E isto compreensvel biologicamente. As emoes so apreciaes do
observador sobre a dinmica corporal do outro que especifica um domnio de
ao. Nessas circunstncias nada ocorre nos animais que no esteja fundado
numa emoo. (Maturana, 2001, p. 46)
Na objetividade-sem-parnteses no aceitamos a legitimidade do mundo do
outro, acreditamos que se tenha a verdade ou a toleramos, mas no aceitamos o mundo
do outro. E consideramos a iluso como um limitador ou falha no olhar do observador.
S aceitamos a realidade do outro quando estamos na objetividade-entre-parnteses.
necessrio ressaltarmos que Maturana (2001) frisa que objetividade-sem-parnteses e
objetividade-entre-parnteses no so a antinomia objetivo-subjetivo. A objetividadeentre-parnteses significa apenas que no podemos fazer referncias a entidades
independentes de ns para construir o meu explicar. Ficam, ento, algumas perguntas:
como se d a possibilidade de concordncia e convivncia quando no podemos
distinguir entre iluso e percepo? Como podemos ter uma convivncia social?

Para Maturana (1998/2001, Maturana e Varela 1987/1995), a aceitao mtua


que permite e que constitui o social, o espao da preocupao com o outro, a emoo
que denominamos amor, uma disposio que se aceita o outro nessa convivncia. Ento,
vemos organismo e ambiente mudando juntos, e nesta histria de interaes
recorrentes que surge a linguagem. no fluir da histria com o outro que entra a
linguagem. Inicialmente, para Maturana e Varela (1987/1995), a linguagem surge no
homo sapiens pela sua capacidade biolgica de compartilhar alimentos e foi a cultura
que introduziu a competio. Nesse sentido que Maturana (2001) coloca que as
preocupaes ticas no dependem da razo, pois somente quando estamos na emoo
da aceitao do outro que o que acontece passa a ter importncia para ns. Cabe-nos a
ressalva, entretanto, de que Maturana no considera as relaes de trabalho e os
sistemas hierrquicos como sociais. neste contexto das relaes sociais que tambm
poderemos compreender os fenmenos da linguagem e da conscincia, pois estas no
so apenas fenmenos biolgicos.
Primeiramente, devemos lembrar que, quando falamos de linguagem, falamos de
interao. Quando falamos de linguagem das abelhas, por exemplo, a cincia nos mostra
que h uma interao por meio da dana ou de seus movimentos em relao
orientao do vo para a coleta de plen. De modo que o central na linguagem so
coordenaes de ao como resultado de interaes recorrentes (Maturana, 2001,
p.70). Os autores avanam um pouco mais alm da interao ao colocarem que, quando
um grupo de pessoas ou animais est na linguagem, eles no esto apenas coordenando
sobre suas aes, mas tambm esto em um espao de reflexo. E esse consenso fruto
de um conversar, de algo aprendido, mas com base na ontogenia de cada espcie. E
justamente porque somos determinados estruturalmente que no podemos distinguir
entre o que iluso e o que percepo (Maturana, 1998/2001).
medida que conseguir fazer parte desse mundo e no deixar de fazer parte do
meu, vou fazer uma interseo de dois mundos que me permite fazer uma
reflexo a partir de um sobre o outro. s vezes isto pode ser feito. Mas eu tenho
que aceitar como algo primrio a legitimidade do outro. (Maturana, 2001, p.
120),
Quando h interao, h linguagem, tocamos o outro. E sabemos que as palavras
doces mudam nossos hormnios, nossa fisiologia, desencadeiam mudanas estruturais.
A linguagem toca o crebro e o crebro que temos hoje foi se estruturando ao longo de

nossa historia da linguagem. Nosso conversar tem conseqncias em nossa fisiologia, o


que nos traz conseqncias, apesar de sermos cegos sobre este fenmeno.
Importante ressaltarmos que, para Maturana (2001), a linguagem no
constituda apenas de verbalizaes, pois h muito mais dimenses que as verbalizaes
nas coordenaes consensuais. tambm na linguagem que surgem os objetos, ou todas
as entidades que podemos manejar e surgindo os objetos podemos fazer histria.
Tambm podemos refletir sobre ns mesmos, pois a linguagem nos permite distinguir
entre fora e dentro. Ento, para Maturana, na linguagem que surge o eu, um eu que
tambm muda no operar da linguagem.
A linguagem no uma fantasia discursiva, um espao de coordenao de
ao, e o que fazemos com ela tem a ver com a experincia. A experincia nos
acontece, nos encontramos nela e nos encontramos na linguagem, e em seguida
explicamos o que fazemos. De modo que, de certa maneira, a vida uma poesia
contnua. Infelizmente costumamos ser cegos a isso (Maturana, 2001, p. 101).
Maturana e Varela (1987/1995) colocam que no apenas o homem que se
comunica, mas ele o nico que tem linguagem. E essa abre um mundo em que no h
limites para o que podemos descrever, imaginar, relacionar. O operar recursivo da
linguagem condio sine qua non para a experincia que chamamos de mental e, por
outro lado, as experincias fundadas no lingstico se organizam com base no sistema
nervoso. O operar da linguagem nos mostra, mais uma vez, que somos inseparveis da
trama de acoplamentos estruturais, j que a linguagem nunca foi inventada por um
sujeito isolado na apreenso de um mundo externo. O que temos em comum como seres
humanos, ento, uma tradio biolgica e, devido a isso, a no estranhamos que o cu
seja azul para todos os seres humanos. De nossas heranas lingsticas diferentes
surgem os diferentes mundos culturais nos quais podemos viver como seres humanos,
mas, dentro dos limites biolgicos, essas heranas tambm so muito diversas.

3.2.3 Autopoiese
A mais reconhecida contribuio de Maturana e Varela a de descreverem o que
chamaram de organizao autopoitica, caracterstica fundamental de todos os seres
vivos. Autopoiese deriva dos vocbulos gregos auto si mesmo e poiesis criao,
produo, significando, assim, criar a si mesmo. Segundo os autores, os seres vivos

como entidades autopoiticas, so sistemas fechados do ponto de vista informacional. E


isso d aos seres vivos humanos uma caracterstica de autonomia, pois o operar desses
sistemas s pode se dar a partir do modo como esto constitudos. Dessa forma,
qualquer mudana que possa ocorrer em um sistema vivo responde a um determinismo
estrutural. Quando um organismo interage com seu ambiente, o que vai determinar a sua
resposta a sua estrutura, sendo que o ambiente se configura como contexto instigador.
Em funo desse determinismo estrutural, no possvel a interao instrutiva entre
dois organismos, somente um acoplamento estrutural, que vem a ser um encaixe
ntimo ou um ajuste recproco entre as aes estruturalmente determinadas de um
indivduo e as do outro, caracterizando uma ao recproca entre ambos. Portanto, o que
caracteriza as organizaes autopoiticas que os seus produtos so elas mesmas,
inexistindo separao entre o produtor e o produto. O ser e o fazer de uma unidade
autopoitica so inseparveis (Maturana e Varela, 1987/1995, p. 89).
O conceito de acoplamento estrutural nos ajuda a explicar a sensao de
permanncia, as regularidades anatmicas e funcionais. No entanto, tambm nos
permite perceber a ampla capacidade de improvisao e aproveitamento de
circunstncias, pois acoplamento no significa apenas adaptao. O organismo, apesar
de estar em acoplamento estrutural com o meio, mantm uma organizao, uma certa
clausura operacional que condio de sua autonomia. O ser vivo apresenta
regularidades, mas tambm cria possibilidades de mudana, de imprevisibilidade, pois
sua estrutura vai mudando.
Para Maturana e Varela (1987/1995), o ser vivo no se define apenas como
sistema auto-regulador, nem por sua tendncia ao equilbrio, mas como um sistema
autopoitico, o que significa que o sistema est em constante processo de produo de si
mesmo, em incessante engendramento de sua prpria estrutura. A individuao um
processo que ocorre desde a clula, onde cada indivduo tem sua membrana de limite.
Entretanto, uma das caractersticas fundamentais da organizao autopoitica que ela
no tem um centro organizador, pois essencialmente acentrada, mas conectada por
diversas redes, e isso que permite que as organizaes autopoiticas se reproduzam.
Uma reproduo onde h mudana estrutural, sem perda da organizao (Maturana e
Varela, 1987/1995).
Desse modo, Maturana e Varela procuram mostrar como a evoluo dos seres
vivos se processa na associao inerente entre diferenas e semelhanas e como, em
cada etapa reprodutiva h conservao da organizao, h mudana estrutural. Afirmam

eles, ainda, que todo ser vivo (com ou sem sistema nervoso) funciona sempre em seu
presente estrutural. O passado e o futuro so dimenses valiosas, mas no participam do
determinismo estrutural do organismo a cada momento. A dinmica dos estados do
sistema nervoso depende de sua estrutura, da o fato de um animal se comportar de certa
maneira revela que seu sistema nervoso se tornou diferente.
Talvez tivssemos a iluso de que quando conhecssemos muito sobre o sistema
nervoso pudssemos chegar a fazer previses sobre o nosso comportamento ou sobre o
de outros seres vivos, ou, ainda, que realmente estaramos a par dos determinantes
biolgicos do comportamento. No entanto, o que a Neurobiologia tem apontado para
uma enorme plasticidade cerebral, o que faz cair por terra toda essa iluso. Essa
plasticidade do sistema nervoso explicada pelo fato de no nascermos com todas as
conexes nervosas estabelecidas.

Portanto, a conduta dos seres vivos no uma

inveno do sistema nervoso, e no est associada exclusivamente a ele, pois o


observador observar condutas em qualquer ser vivo em seu meio. O que o sistema
nervoso faz expandir o domnio de possveis condutas, ao adotar o organismo de uma
estrutura tremendamente verstil e plstica. Por isto no faz sentido aceitar a metfora
do crebro como um computador, (Maturana e Varela, 1987/1995), uma mquina com
inmeras peas de funes e conexes pr-definidas.

3.2.4 A mente incorporada


A proposta de Maturana e Varela contrasta com a posio da Filosofia moderna que
coloca o conhecer como representar, pois, a idia de um mundo predeterminado
diminui o valor da experincia e da reflexo, favorece o condicionamento e a
padronizao e, no limite, a dominao. Um mundo assim no desvelado, no
construdo (Mariotti, 2000/2003).
Apesar disso, Maturana e Varela no negam que fazemos representaes, j que
encontramos certas regularidades no mundo que experimentamos a cada momento, mas
estas no podem se dar sem nenhum ponto de referncia independente de ns. Varela
(1992, em Kastrup, 1999) denomina esse tipo de representao em sentido fraco ou
pragmtico. Nessa representao enfraquecida h recorrncia, constncia, mas no
invarincia. H a possibilidade de inventarmos problemas e no apenas resolv-los.
Como vivemos uma certa estabilidade, pode nos parecer que a cognio representa um

mundo preexistente. Quando vamos para outro espao, samos do bvio, das nossas
tradies, sentimos falta no das representaes que fazemos e que eram percebidas
como constantes, mas de um mundo que fruto do nosso corpo em ao. Porm, como
somos capazes de inventar um novo domnio de existncia, essa nostalgia logo passa.
Varela, Thompson e Rosch (1991/2003), ampliaram o aforisma Todo fazer
conhecer e todo conhecer fazer (Maturana e Varela, 1987/1995), e desenvolveram o
conceito de enaction, enao5. O conceito de enaction nos remete a uma cognio,
reflexo encarnada, distinta da cognio entendida apenas como processo mental. A
corporificao do conhecimento inclui tambm acoplamentos sociais, inclusive
lingsticos, o que significa que o corpo no s uma entidade biolgica, j que capaz
de se inscrever e se marcar histrica e culturalmente (Kastrup, 1999).
Para a abordagem atuacionista (enactive), a percepo consiste em ao
perceptivamente orientada e as estruturas cognitivas emergem dos padres sensoriomotores recorrentes que possibilitam a ao ser perspectivamente orientada. O ponto
central desta abordagem como podemos orientar nossas aes em uma situao local,
pois, j que elas mudam constantemente, no podem ser compreendidas a partir de
nossas representaes.
Na perspectiva da enao, no h mais necessidade da representao de um
mundo anterior percepo do observador. No se trata de uma estrada j aberta, mas
sim da construo de um caminho pelo prprio caminhante, que interage com ele
momento a momento (Mariotti, 2000/2003). A nfase na ao no significa uma
aprendizagem no refletida. Para Varela (1998, em Mariotti, 2000/2003), a experincia
uma forma de conscincia, mas uma conscincia da qual falta reflexo. Quando s
temos a experincia no somos mais que um gorila. Ainda bom ressaltarmos que o
que os autores o definem como ao bem amplo. Aes so tudo o que fazemos em
qualquer domnio operacional que geramos em nosso discurso, por mais abstrato que
possa parecer. Assim, pensar agir no domnio do pensar, andar agir no domnio do
andar (Maturana, 2001).
Como sempre, Maturana e Varela procuram na cincia experimental um apoio
para as suas propostas.Varela e Cols (1991/2003) descrevem o experimento de Held e
Hein (em1958) para nos mostrar a relao entre ao e conhecer. Nesse experimento,
gatos foram criados no escuro e expostos de forma controlada iluminao. Os gatos
5

Este conceito foi traduzido por Kastrup (1999) e Mariotti (2000/2003), j o tradutor de Varela,
Thompson e Rosch (1991/2003) optou por atuao ao invs de enao.

que andavam no tiveram problemas de se movimentar algumas semanas depois. Os do


outro grupo que se deslocavam apenas dentro de cestas, a partir dos dados transmitidos
por sensores acoplados aos dos gatos do primeiro grupo, comportaram-se como cegos.
Diante disso, podemos refletir sobre a importncia da ao efetiva no ambiente no
processo de conhecer. Podemos verificar que aprender a tocar um instrumento no
apenas executarmos uma representao, pois a aprendizagem realmente s acontece
quando substitumos a representao por um acoplamento direto.
Aprende verdadeiramente aquele que cria permanentemente na relao com o
instrumento, reinventando-se como msico de maneira incessante. (...) O melhor
desempenho no assegurado pelo domnio de uma tcnica. A performance no
repetio mecnica, ela implica um agenciamento de fluxos (...) Aprender
antes de tudo, ser capaz de problematizar, ser sensvel s variaes materiais que
tm lugar em nossa cognio presente (Kastrup, 1999, p. 150/152).
Mesmo no nos dando conta, estamos sempre envolvidos em um processo de
aprendizagem, o que para Maturana (1998/2001) a transformao de nossa
corporalidade que se d em um meio particular de interaes recorrentes. Aprendemos a
ser de uma maneira ou de outra na convivncia com os outros. Aprendemos quando
aceitamos viver em um certo domnio e, se aceitamos, ento temos esse conhecimento.
Ento, aprendizagem tem a ver com viver nas coordenaes de ao em um domnio
particular. Mas para aceitarmos um domnio particular, h a necessidade do
envolvimento da nossa emoo. Por outro lado, difcil mudar por que incorporamos
modos de vier, inclusive corporalmente.
Ns seres humanos temos um domnio de plasticidade muito maior do que
acreditamos, mas entrarmos nas mudanas ou no depende da emoo. O
discurso racional que no seduz emocionalmente no muda o espao do outro.
(Maturana, 2001, p.124)
A ateno que conferimos ao conceito de enao advm das relaes que
fazemos entre este e os conceitos de intencionalidade operativa e de awareness
espontnea que colocamos no Captulo 2. A relao deste conceito com a Biologia
completa uma perspectiva da Gestalt-Terapia de procurar restabelecer o livre fluxo da
awareness espontnea, por meio da conscincia corporal.

3.2.5 Permanente mudana e a experincia de um si mesmo

No podemos deixar de perceber que o processo de aprendizagem, inveno do mundo,


obstaculizado muitas vezes, impedindo novas formas de conhecer. O sintoma , por
muitas vezes, o sentimento de impossibilidade de operarmos sua autopoiese ou a
angstia diante de um problema para o qual no vemos soluo. Podemos ver um
indivduo marcado pelo automatismo e no pelo processo de soluo de problemas, mas
essa mesma crise pode criar um mal estar indito, que exige a criao de novas formas
de expresso da nossa subjetividade. Ao mesmo tempo, quando a barreira da
estabilidade rompida, alguns sujeitos podem entrar em pnico por no entenderem que
as rupturas so inerentes ao processo. Ento, porque, apesar de estarmos em constante
mudana, entramos em pnico quando h alguma ruptura? Apesar de nossa experincia
ser marcada por um movimento contnuo, o sujeito humano tem a sensao de que todas
as suas experincias pertencem a um si mesmo (self), um vivido como permanente no
fluxo das variaes contnuas da experincia.
Para Varela e cols. (1991/2003), esse si no uma existncia concreta, mas uma
inveno, um efeito emergente da rede autopoitica. E apesar desse si no ter uma
existncia concreta, a sua presena produz efeitos. A origem do sofrimento humano
exatamente essa tendncia para apegar-se a e para construir um sentido de self, um ego,
onde no h nenhum (p.75). Agimos como se houvesse um self a ser preservado, por
meio de impulsos instintivos, automticos, e poderosos. Para os autores, o que nos leva
a esse apego a um mundo interno a mesma instncia que nos fez procurar por uma
fundao externa do mundo. Ento, nossa ganncia por um alicerce, seja ele interno ou
externo, a origem profunda de frustrao e ansiedade (p.152).
Quando partimos da idia de um self com fronteiras, colocamos que o objetivo
do nosso self trazer para dentro das fronteiras tudo de bom e colocar para fora tudo
que consideramos ruim. Passamos, pois, a competir pelas poucas coisas boas que
queremos. Quando descrevemos um self, como o faz a cincia cognitiva da atuao
que coloca que a cada momento esse self somente ocorre na relao com o outro , a
fora do interesse pessoal est sempre dirigida ao outro na mesma medida em que se
dirige ao prprio self. J uma preocupao planetria nos exige que compreendamos a
falta de fundao, no sentido de Nietzsche, pois essa, por sua vez, exige-nos a
preocupao com o outro, sem cair em niilismo.

A proposta de Varela e cols. (1991/2003) passa ser mais do que descrever um


self incorporado, o objetivo tornar-se incorporado a partir da compaixo pelo mundo
(p. 254). No entanto, cada indivduo deve encontrar o seu caminho e pessoalmente
descobrir e administrar o seu prprio sentido de self, sem esquecer que so muitas as
implicaes de sua atuao na sociedade.
Como j vimos, os sistemas autopoiticos esto em constante automodificao,
no operam por representao. Em vez de representar um mundo independente, eles
atuam em um mundo com um domnio de distines inseparvel da estrutura
incorporada pelo sistema cognitivo (Varela & cols., 1991/2003, p.149). exatamente
essa ausncia de fundaes a condio para um mundo estruturado e interdependente da
experincia humana. A maior habilidade cognitiva que tem o ser vivo essa capacidade
de se colocar as questes relevantes a serem abordadas a cada momento e atuar a partir
de um background de aes ou de nossas capacidades incorporadas para a ao. Ento,
a nfase na ao revela a importncia dos processos sensorio-motores (percepo e da
ao) na cognio vivida, dado que estes evoluram juntos.

3.2.6 Mundo sem fundao


A grande questo que surge para Varela e cols. (1991/2003) como em constante
mudana tendo a experincia do inabalvel e do imutvel, pode parecer que h um self
coerente se no existe self nenhum?
Esta descoberta profunda e penetrante requer que o cientista cognitivo reconhea
que a conscincia e a identidade do self no oferecem alicerce ou fundao para
o processo cognitivo; apesar disso, esse cientista compreende que ns
acreditamos, e devemos continuar a acreditar, em um self eficaz. A resposta
habitual do cientista cognitivo ignorar o aspecto experencial ao fazer cincia, e
ignorar a descoberta cientifica na conduo da sua vida. Como resultado, a
inexistncia de um self que

responda a nossas representaes objetivas

tipicamente confundida com a inexistncia de um self relativo (prtico) como um


todo. De fato sem os recursos de uma abordagem gradual da experincia restam
poucas alternativas, a no ser reagir ao colapso de um self objetivo
(objetivismo), declarando a inexistncia objetiva do self (niilismo). (Varela &
cols., 1991/2003, p. 243)

Varela e cols. sugerem que devemos escolher o caminho do meio, que devemos
construir uma ponte entre as cincias cognitivas e a experincia. Inclusive pela
necessidade de redefinir a prpria cincia como no necessitando de fundaes, j que a
tica da cincia objetivista est sustentada pela noo de self. Devemos refletir o que
pode ocorrer na cincia quando desafiamos a prpria idia deste self. Quando
consideramos a perda de fundaes como negativa, podemos nos alienar, desesperarmonos ou perdermos o corao. Varela e cols. (1991/2003) encontraram no Budismo
essa possibilidade, pois este mostrou que, quando a ausncia de fundao abraada, o
produto um sentimento incondicional de bondade que se manifesta no mundo como
compaixo espontnea. Como vivemos em uma cultura ocidental muito cientfica,
temos que encontrar um caminho de viver uma cincia sem fundao, um caminho
coerente com nossas premissas culturais e cientficas at o ponto de no precisarmos
mais de fundaes. As possibilidades que colocamos at agora como cultura foram a do
objetivismo ou a do niilismo, todavia, as duas so expresses de uma mente apegada,
pois ao no encontrarmos objetividade sugerimos a polaridade oposta.
Diante disso, a questo : podemos aprender a viver em um mundo sem
fundaes, como o podem alguns que praticam alguns tipos de meditao? Essa
ausncia de fundaes j comeou a ser discutida, como vimos no Captulo 1, por
Nietzsche e pelos chamados pensadores ps-modernos.

3.2.7 Biologia do Conhecer e suas interaes com a Fenomenologia


Varela e cols. (1991/2003) se consideram cientistas cognitivos de inclinao fenomenolgica. O que isso significa? Significa
que percebem a mente despertando em um mundo onde nos descobrimos com ele e no o projetamos. Significa, tambm, que
assumem a relevncia que Husserl conferiu ao vivido. Em funo disso, podemos perceber semelhanas entre a viso de Varela
e as de Husserl, de Heidegger e de Merleau-Ponty, j que todos procuraram conhecer a partir da experincia.

Segundo Varela (em Mariotti, 2000/2003), Husserl deu um grande passo ao


afirmar que para compreender a cognio no podemos ver o mundo ingenuamente. No
entanto, Varela e cols. (1991/2003) consideram que apesar de colocar que estava
fazendo uma filosofia encarnada a experincia, acabou seguindo Descartes e procurando
pelo estudo das essncias.
A tarefa da fenomenologia era a de retornar de uma anlise de nosso mundo da
vida cientificamente permeado para o mundo da vida original ou
preconcebido. Mas Husserl se apegou idia de que esse mundo da vida

original poderia ser exaustivamente explicado retornando-se as estruturas


essenciais da conscincia. (p.36)
Para Varela e cols. (1991/2003), faltou a Husserl a dimenso pragmtica,
dimenso esta que passa a estar presente tanto na Fenomenologia Existencial de
Heidegger quanto na Fenomenologia da experincia de vida de Merleau-Ponty.
Heidegger e seu discpulo Gadamer sempre procuraram compreender como se d o
fenmeno da interpretao, compreendido como atuao ou produo de significado a
partir de um background de compreenso ou, ainda, como o conhecimento depende de
estarmos em um mundo inseparvel de nossos corpos, de nossa linguagem e de nossa
histria. E estas idias de Heidegger tm inspirado os cientistas da cognio, que
percebem que o conhecimento o resultado de uma interpretao contnua que emerge
de nossas capacidades de compreenso (p.157). Eles destacam que a idia de
percepo e atuao j estava presente em Merleau-Ponty que j observava que o
organismo tanto inicia o ambiente quanto moldado por ele. O esforo desses cientistas
questionar, ento, os pressupostos de que o mundo independente daquele que
conhece. E isso ocorre quando admitimos que a nossa cognio no pode ser entendida
sem a nossa histria corporal ou social.
Nas obras de Maturana, h uma terminologia fenomenolgica, mas este autor, na
bibliografia consultada no a cita. Este papel de fazer a ligao entre a Biologia do
Conhecer e a Fenomenologia ficou a cargo de seu parceiro em outros trabalhos,
Francisco Varela.

3.3 Edgar Morin e a necessidade do Pensamento Complexo

O ser sujeito nasceu num universo fsico, que ignora a


subjetividade que fez brotar, que abriga e, ao mesmo
tempo, ameaa. O indivduo vivo vive e morre neste
universo onde s o reconhecem como sujeito alguns
congneres vizinhos e simpticos. , portanto, na
comunicao amvel que podemos encontrar o sentido de
nossas vidas subjetivas. (Morin, 1990/2000, p.327/8)
A conscincia da complexidade nos faz compreender que
no poderemos nunca escapar a incerteza e que no
poderemos ter um saber total. A totalidade a no
verdade. (Morin, 1985/1990, p.100)
Ao olhar o que temos ante os olhos somos capazes de
concentrar o olhar num elemento, de ver o conjunto,
de fazer uma panormica, de estabelecer a conexo
entre diferentes coisas. Com nossos olhos somos
capazes de ver de maneira complexa. Mas no somos
capazes de pensar de maneira complexa. (Morin,
1994/1996a, p. 285)

Para qu um pensamento complexo para falarmos de sujeito e subjetividade? Segundo


Morin (1994/1996b), para falarmos de sujeito e subjetividade temos que unir conceitos
que se rechaam entre si e que devem abranger diferentes dimenses do indivduo. Estes
so conceitos complexos, pois esto envolvidos em processos que envolvem aes,
interaes e retroaes. No podemos falar de sujeito sem falar do universo, pois, como
colocava Pascal (1623 -1662)
Todas as coisas so ajudadas e ajudantes, todas as coisas so mediatas e
imediatas, e todas esto ligadas entre si por um lao que conecta umas s outras,
inclusive as mais distanciadas. Nestas condies considero impossvel conhecer
o todo se no conheo as partes... Tudo est em tudo e reciprocamente. (em
Morin, 1994/1996b, p. 274/5)
Percebemos, assim, que o sujeito est no universo e ao mesmo tempo
contm o universo, tal como cada clula do nosso corpo contm a totalidade do
nosso ser por meio do nosso patrimnio gentico. Portanto, apesar de cada parte
manter sua individualidade, de algum modo, tambm contm o todo.

Morin (1983) reconhece que o pensamento complexo j estava presente em


diversos pensadores, naqueles que, de Herclito a Hegel, enfrentaram o problema
da contradio, e naqueles que viram que, na relao entre a parte e o todo, no
apenas a parte que est no todo, mas o todo que est igualmente na parte, como em
um holograma, em que cada parte contm a totalidade. A preocupao de Morin
nos sensibilizar para as enormes carncias do nosso pensamento e fazer
compreender que um pensamento mutilador conduz necessariamente a aes
mutiladoras. Ainda estamos cegos, na pr-histria do esprito humano, j que
ainda percebemos a partir de um paradigma que disjuntivo, reducionista,
deixamos de ver por mltiplas perspectivas, mesmo na atual era de globalizao.
Destarte, precisamos de um pensamento que contextualize, religue. E para o
paradigma da disjuno/reduo/unidimensionalizao foi surgindo um outro de
distino/conjuno, que permite distinguir sem separar, permite associar sem
identificar ou reduzir.
A proposta no de uma nova lgica, mas mostrar que possvel promover
um incessante jogo de circularidade entre nossa lgica tradicional e as
transgresses necessrias ao progresso de uma racionalidade aberta. A proposta
como organizar um pensamento que de conta de compreender o que Herclito
pretendia ao colocar que: Vivemos da morte, morremos de vida. Hoje sabemos
que a nossa vida continua graas morte celular, e que a sociedade vive da morte
de seus indivduos (Morin, 2003). Assim, o pensamento complexo procura tecer e
construir meta-pontos de vista, apesar de frgeis e limitados, que nos ajudem a sair
do total relativismo ou do pensamento simplista.

3.3.1 Problematizando a cincia

Morin problematiza o uso da cincia e nos coloca a necessidade de refletirmos


sobre a cincia que estamos fazendo, pois, apesar de estarmos vivendo uma era
histrica em relao aos desenvolvimentos cientficos, essa cincia que
libertadora nos traz, tambm, possibilidades terrveis de subjugao. E nessa
ambigidade e complexidade que devemos compreend-la. Morin no desqualifica
a cincia, mas alerta que o conhecimento cientfico um conhecimento que no se
conhece (Morin, 1990/2000, p. 20), j que essa cincia, que desenvolveu

metodologias to surpreendentes e hbeis para apreender todos os objetos, no


dispe de nenhum mtodo para se conhecer e pensar. E vai mais longe ao colocar
que o retorno reflexivo do sujeito cientfico sobre si mesmo cientificamente
impossvel, porque o mtodo cientfico se baseou na disjuno sujeito e objeto.
Segundo Morin (1990/2000), foi Husserl que diagnosticou, inicialmente, a
eliminao desse sujeito observador, ao no priorizar nem sujeito, nem objeto,
ressaltando a indissocializao de um aspecto do outro.
Com o prprio desenvolvimento da cincia, descobriu-se um princpio
hemorrgico de degradao e de desordem no universo fsico (segundo princpio da
termodinmica). Depois, descobriu-se a extrema complexidade da microfsica, onde a
partcula no algo encapsulado, mas uma fronteira sobre uma complexidade talvez
inconcebvel, alm de revelar a interdependncia do sujeito e do objeto, a insero do
acaso no conhecimento. Por sua vez, a brecha da Macrofsica uniu, em uma mesma
entidade, os conceitos at ento absolutamente heterogneos de espao e tempo. Ento,
o cosmo no pode ser mais visto como uma mquina perfeita, mas sim como um
processo em vias de desintegrao e de organizao simultneas. Percebemos que a vida
no uma substncia, mas um fenmeno de auto-eco-regulao muito complexo que
produz autonomia.

A proposta do Pensamento Complexo, assim, a


integrao das realidades banidas pela cincia clssica,
assim como articular as Cincias com as Artes e a
Filosofia. Uma cincia que foi ficando parte da natureza e
da sociedade e que ficou muito tempo sem pensar sobre os
reflexos de suas aes. bem verdade que grandes
invenes da cincia salvaram vidas e causaram mortes, e
a cincia no estava produzindo conhecimento cientfico
com conscincia. Em funo disso, uma srie de
questionamentos sobre a tica na cincia surgem, mas, no
momento, no so o foco de nossa ateno.
Nesse dilogo com as diferentes cincia, Morin avanou muito, e tem percebido
que um mtodo utilizado para a compreenso de algo no mundo pode ajudar outro
pesquisador a transgredir os mtodos considerados cientficos por sua cincia.
3.3.2 As partes e os todos

Alm da problematizao da cincia, Morin nos apresenta um outro interessante


questionamento, que se refere ao princpio de totalidade, a partir das reflexes de
Pascal, de que no conhecemos o todo se no conhecemos as partes. Sua grande crtica
idia de holismo, pois considera que estas nos levaram a um outro reducionismo: o
de que o todo tem propriedades que no tm as partes quando so separadas.
O todo pode ser mais e menos que a soma das partes, sob efeito das coaes
organizacionais do sistema. Um bom exemplo so as grandes organizaes sociais que,
ao imporem tantas constries sobre as partes ou aos indivduos, podem tornar tais
organizaes menores que a soma das partes. No podemos compreender o social se no
tivermos contato com as partes. Assim o sistema no poder ser considerado uma
unidade global, mas como uma unidade multiplex. O todo realmente uma
macrounidade, as partes no esto fundidas nele. Temos uma unidade que organiza uma

diversidade e uma diversidade que organiza a unidade (Morin, 1990/2000). Com estes
argumentos, Morin critica o paradigma holstico, pois considera que este esquece que
um sistema no constitudo de partes, mas de aes entre unidade complexas,
constitudas, por sua vez, de interaes. As partes so eventualmente mais do que o
todo, pois muitas vezes neste processo de globalizao, de progresso, a riqueza pode
estar em pequenas unidades reflexivas desviadas e perifricas que nele se constituram.
Nesse contexto, no podemos deixar de ver a vida e a questo do sujeito e da subjetividade como um feixe de qualidades
emergentes resultantes do processo de interaes e de organizaes entre as partes e o todo. De mesmo modo, quem procura
realizar um pensamento complexo tambm deve levar em conta que este no completo, que se est fazendo um recorte, que
seu conhecimento local e temporalmente limitado. Temos que aprender com a incerteza que tantas vezes a cincia clssica nos
ajudou a evitar, devemos ter a percepo que a histria do pensamento humano est apenas comeando e, mais, precisamos ter
conscincia de que pouco sabemos sobre o processo do conhecer.
A preocupao de Morin, portanto, propor um novo mtodo para o saber, que detecte as ligaes e as articulaes entre partes
e todos. Um mtodo que procure por um princpio organizador do conhecimento, que associe a descrio do objeto com a
descrio da descrio e a descrio do descritor, que outorgue a fora tanto articulao e integrao quanto distino e
oposio. Para Morin (1990/2000), a procura por um mtodo no para encontrarmos o princpio unitrio de todos os
conhecimentos, at porque isso seria uma nova reduo. O seu mtodo um convite a pensarmos na complexidade. A teoria
no nada sem o mtodo, pois no mtodo que est o pleno emprego das qualidades do sujeito, um assumir a subjetividade
com toda a sua criatividade. Ele apresenta, assim, uma proposta de transgresso metodolgica, na qual temos que trabalhar as
possibilidades de no engessarmos os mtodos, as possibilidades de eles serem criados para que facilitem a compreenso de um
fenmeno. Morin (1990), em uma de suas propostas, considera que a Ciberntica trouxe grandes contribuies para a cincia,
quando passou a aceitar a impreciso, a ambigidade, medida que os estudos preliminares sobre o crebro indicavam que uma
das superioridades do crebro sobre o computador o poder de trabalhar com o insuficiente e o vago. Foi preciso passarmos a
aceitar uma certa ambigidade e uma ambigidade certa (nas relaes sujeito/objeto, ordem/desordem, auto/heteroorganizao). Foi preciso reconhecermos fenmenos inexplicveis fora do quadro complexo, como liberdade ou criatividade
por exemplo.

3.3.3 A noo de sujeito


Ser sujeito supe um indivduo, mas a noo de indivduo s ganha sentido ao
comportar a noo de sujeito. A definio primeira do sujeito deve ser biolgica. Trata-se de uma lgica de auto-afirmao do indivduo vivo, pela
ocupao do centro do seu mundo, o que corresponde literalmente noo de
egocentrismo. Ser sujeito implica situar-se no centro do mundo para conhecer e
agir. (Morin, 2001/2002, p. 74/5)
Morin procura desenvolver, ao mesmo tempo, uma teoria, uma lgica e uma
epistemologia da complexidade que possam nos levar compreenso do conhecimento
humano a partir da restituio do sujeito cincia e da restituio da cincia aos
sujeitos, j que a cincia clssica no nos oferece nenhuma sustentao para a noo de

sujeito. Vivemos um paradoxo desde o sculo 17, pois, apesar de que quase em todas as
lnguas temos a presena da primeira pessoa do singular, apesar de nos sentirmos
sujeitos e apesar de vermos os outros como sujeitos, o paradigma de cincia que
adotamos dissolve esse sujeito ou, no mnimo, o divide.
Descartes viu que havia dois mundos: um que era relevante ao conhecimento
objetivo, cientfico o mundo dos objetos; e outro, um mundo que compete
outra forma de conhecimento, um mundo intuitivo, reflexivo o mundo dos
sujeitos. Por um lado, a alma, o esprito, a sensibilidade, a filosofia, a literatura;
por outro, as cincias, as tcnicas, a matemtica. Vivemos dentro desta oposio.
Isso quer dizer que no podemos encontrar a menor sustentao para a noo de
sujeito na cincia clssica. Em troca, enquanto abandonamos o campo cientifico
e refletimos como fez Descartes em seu cogito, o sujeito se torna fundamento,
fundamento da verdade de toda a verdade possvel. (Morin, 1994/1996b, p. 46)
Assim, a cincia clssica eliminou o observador de sua observao e o sujeito
ora a fonte de erros, ora a fonte da verdade absoluta e suprema. Chegamos ao sculo
20 com a cientificidade invadindo a Cincias Humanas e expulsando o sujeito da
Psicologia, que o substituiu por estmulos, respostas, comportamentos; a Histria o
substituiu por determinismos sociais; na Antropologia, surgiu a noo de estrutura. Mas
esse sujeito nunca deixou de ser discutido, problematizado. A cincia nos ajudou e
tambm nos dificultou a compreenso do humano. O homem permanece sendo esse
desconhecido. Hoje, mais por conta de uma m cincia do que propriamente por
ignorncia. Sabemos sobre o objeto, mas quem o conhece no se conhece. E o
pensamento complexo no acredita que possamos conhecer o objeto sem conhecermos a
ns mesmos. O mais grave que so as Cincias Humanas que oferecem a mais fraca
contribuio ao estudo da condio humana no momento atual. Da o paradoxo: quanto
mais conhecemos, menos compreendemos o ser humano. Para deixar isso claro, Morin
(2001/2002) cita Heidegger:
Nenhuma poca acumulou sobre o homem to numerosos e diversos
conhecimentos como a nossa (...) Nenhuma poca consegui tornar esse saber to
pronta e facilmente acessvel. Mas nenhuma poca tampouco soube menos o que
o homem. (p. 16)
Assim, precisamos de uma revoluo paradigmtica que nos permita possibilidades de comunicao e de dilogo, at ento
impossveis entre as concepes de mundo e as diversas cincias. Esta uma condio de sobrevivncia da humanidade, pois
uma condio de verdadeira tolerncia, nem ceticismo mole ou frio relativismo, mas compreenso (Morin, 1990/2001, p. 290).

3.3.3.1 A noo de sujeito discutida a partir da Biologia

Morin (1994/1996b) se prope a discutir de maneira cientfica a noo de sujeito, mais


especificamente de forma biolgica, o que corresponde lgica do prprio ser vivo
segundo ele. O ser humano no apenas fsico porque composto por tomos e
molculas, mas por se originar de uma organizao fsico-qumica que no obedece a
leis estritas e que, ao mesmo tempo, no apenas desordem e caos. Ento, a histria
humana que comeou a quase sete milhes de anos uma torrente de criaes e
destruies, mistura de racionalidade organizadora, rudo e furor, tem algo de brbaro e
esplndido. Somos todos frutos do cosmos, que nos criou sua imagem. O universo,
por sua vez, fruto da catstrofe e parece rumar para a disperso. Assim, no podemos
fugir de discutirmos o nosso enraizamento biolgico.
Um dos principais argumentos de Morin sobre a noo de sujeito que a
Biologia atual organiza uma noo de autonomia, uma noo que no exclui a noo de
dependncia. a prpria idia de sistema que nos permite falar de autonomia, porque
do todo emergem propriedades que no existem em partes isoladas. O todo da primeira
clula viva nasceu de condies aleatrias que, enquanto existirem, sero capazes de
autoproduo e de auto-reproduo. Vale registrarmos que o que permite essa
reproduo no so apenas as condies do meio externo, mas tambm de sua prpria
organizao, o que significa uma autonomia. Mas tal autonomia deve ser
constantemente construda na relao com o meio, na troca de energia e de informao
de modo contnuo. Sendo assim, nosso conhecimento apenas traduo e reconstruo.
Nesse sentido, Morin (1994/1996a) se considera um co-construtivista.
O sujeito emerge, sobretudo, a partir da auto-organizao, onde a autonomia, a
individualidade, a complexidade, a incerteza e a ambigidade se tornam quase
caractersticas prprias do sujeito (Morin, 1985/1990). Para Morin, o termo auto traz
em si a subjetividade, pois os sistemas que passaram a desenvolver uma alta capacidade
de organizao passaram a produzir uma conscincia de si. O sujeito tambm traz
consigo todas as suas caractersticas existenciais, como a suficincia e a insuficincia, a
ruptura, a morte.
Assim o nosso ponto de vista supe o mundo e reconhece o sujeito. Melhor,
coloca-os a um e a outro de maneira recproca e inseparvel; o mundo s pode

aparecer enquanto tal, quer dizer, horizonte de um ecossistema, horizonte da


physis, para um sujeito pensante, ltimo desenvolvimento da complexidade autoorganizadora. Mas tal sujeito s pode aparecer no termo de um processo fsico
atravs de mil etapas, sempre condicionado por um ecossistema tornando-se
cada vez mais vasto, o fenmeno da auto-organizao. O sujeito e o objeto
aparecem assim como duas divergncias ltimas inseparveis da relao sistema
auto-organizador/ecossistema. (Morin,1990, p. 57/8)
nesse contexto que Morin introduz o termo eco (oikos = casa) no conceito
mais antigo de auto-organizao, que expressava assim somente a percepo de
autonomia. Quando falamos em auto-eco-organizao, temos mais explcita essa
relao com o meio. Estamos em constante interao com o meio e, nesta interao,
estamos em incessante renovao. Em verdade, estamos em um processo de
recorrncia organizacional, onde o individuo produzido por um ciclo de
reproduo, que vai novamente ser reproduzido pelos indivduos que ele produz
(Morin, 1980/1999).
O ser humano , portanto, um metavivo, que a partir de suas aptides cria novas
formas de vida, psquicas, espirituais e sociais. A humanidade, assim, no se reduz
animalidade, mas sem animalidade no h humanidade (Morin, 2001/2002). Nosso
patrimnio gentico difere em apenas 2% do dos chimpanzs. Parece-nos que essa
pequena diferena aumentou nosso perodo de formao cerebral e que a nossa infncia
prolongada aumentou nossa plasticidade cerebral, o que permitiu a aprendizagem
cultural. E a cultura foi necessria para a continuao da hominizao, do neandertal ao
sapiens. Aqui, comeamos a perceber a recursividade entre natureza e cultura. Outro
fator interessante que provavelmente o fato do homem ter um corpo generalista fez
com que se tornassem necessrias novas adaptaes. A nossa insuficincia pode ter nos
possibilitado organizar novas virtudes. E o ser mais desviante, o mais marginal de toda
a evoluo biolgica, tomou um lugar central.
Hoje, a Biologia Molecular e a Gentica tm apontado dados para
compreendermos a questo da organizao, apesar de se esquecerem de tratar
dessa relao do organismo com o meio. A partir das descobertas nos DNAs e
RNAs de algo equivalente informao, ao programa e memria, podemos
perceber algo cognitivo que ocupa um papel em todos os processos da organizao
viva. Temos nas bactrias um sistema computante, que articula a relao do
interno com o externo de uma forma muito mais complexa que um computador

artificial. A grande diferena que a bactria compara, enumera, associa e ajusta


as informaes por si mesma. Aqui, j aparece um sujeito com a capacidade de
computar e egocentrico, onde a noo de sujeito est indissoluvelmente unida a
esse ato, no qual no s a prpria finalidade de si mesmo, mas em que tambm
autoconstitutivo da prpria identidade (Morin, 1994/1996b, p. 49).
A computao no ser vivo realizada na primeira pessoa que a realiza
funo de si mesma, que o faz para viver, que se auto-organiza incessantemente.
Uma bactria capaz de computar, e o fato de ela ter gravado em si que eu sou eu
mesma permite que cuide de si mesma. Dessa forma, o ser que tem a capacidade
de tal ao pode objetivar a si mesmo. Mais adiante, essa caracterstica vai
adquirindo a capacidade de falarmos na primeira pessoa, do singular e do plural,
dado que, se no existisse o outro, ns no poderamos falar. E como falamos com
o outro passamos a viver a incerteza de quem fala, pois no sabemos quem fala: se
somos ns que estamos falando ou se algo que fala por ns. Dentro desse
princpio da incerteza, o sujeito oscila entre tudo ou nada. Ora experiencia o
extremo egocentrismo, ora se sente mnimo nesse imenso universo.
E com isso, a vida conhece o risco do erro. Um erro que pode levar morte,
assim como pode levar ao aparecimento da diversidade e a possibilidade de evoluo.
O erro to humano que, com o aparecimento da linguagem, surgiu uma nova forma de
induo do erro: a mentira. Usamos a palavra, a idia, para traduzirmos e nos
comunicarmos com o mundo externo e esta mesma palavra nos induz a nos enganarmos
sobre o mundo externo. Passamos a organizar verdades em forma de crenas ou idias
dogmticas e, com isso, vamos ficando mais insensveis aos erros.
Os estudos de Imunologia, no final dos anos 60, tambm nos do
argumentos biolgicos em relao a essa distino entre o si e o no-si, onde o que
tem a mesma identidade gentica aceito e o que no passa a ser rechaado. O
interessante aqui verificarmos que, como em todo processo de informao, h
possibilidade de erros. Isso ocorre, por exemplo, quando um vrus com um mesmo
signo molecular no identificado como estranho. E, mesmo antes de um sistema
imunolgico complexo, os indivduos sempre realizaram processos de assimilao e
rejeio de alimentos. A natureza tambm tem nos ajudado a observar que apesar
das constantes variaes mantemos uma invarincia do eu sujeito. Por exemplo,
em quatro anos trocamos todas as nossas clulas e verdade que no somos a

mesma criana, mas descrevemos a nossa identidade de forma contnua. Temos


uma certa iluso de possuirmos uma identidade estvel.
Morin ainda considera necessrio que discutamos as relaes entre
indivduo e espcie para falarmos da noo de sujeito. Segundo ele, muitos
afirmam que s faz sentido falar de indivduos, pois no vemos a espcie. Outros
argumentam que a espcie sobrevive e os indivduos morrem. Para Morin
(1994/1996b, 2001/2002), temos delineada, ento, uma discusso parecida com a da
Fsica em relao contradio corpsculo e onda, onde um e outro se impem
segundo as condies de observao. H uma complementaridade entre indivduo e
espcie, onde o indivduo produto e produtor do processo. E desse modo a
sociedade o produto da interao de indivduos. As interaes criam uma
linguagem e uma cultura que vo retroagir sobre os indivduos.

3.3.4 O que caracteriza a linguagem humana


Morin acredita que podemos falar de sujeito como uma qualidade fundamental do
ser vivo e o faz com base nos argumentos levantados at aqui. Mas o sujeito
humano no se reduz a essas caractersticas. Temos um sistema neurocerebral que
no exclusivamente nosso, mas que em ns se expressa de forma diferente. Um
sistema em que, assim como em outros mamferos, o desenvolvimento da
afetividade anda junto com o desenvolvimento da inteligncia. Outro aspecto
prprio do sujeito humano est ligado linguagem e cultura.
O indivduo-sujeito pode tomar conscincia de si mesmo atravs do
instrumento de objetificao que a linguagem. Vemos aparecer a
conscincia de ser consciente e a conscincia de si em forma claramente
inseparvel da auto-referncia e da reflexibilidade. na conscincia que nos
objetificamos ns mesmos para re-subjetivarmos num anel recursivo
incessante. (Morin, 1994/1996b, p. 53)
A objetividade vem de um sujeito. Alm de se objetificar o sujeito pode
objetificar o outro enquanto o reconhece como sujeito. Tambm capaz de perder a
subjetividade dos outros e v-los apenas como objetos. E foi ao longo do processo
histrico que foi surgindo uma conscincia de nossa prpria subjetividade. Uma
conscincia que um anel que une o refletor e o refletido, que sempre duplicada

sem deixar de ser uma. Reunindo refletor e refletido, estabelece a unidade na


duplicidade de uma conscincia da conscincia.
Podemos ver a conscincia apenas como fruto de uma organizao cerebral ou
como uma extraordinria qualidade do crebro, pela qual o eu emerge do esprito. Mas
essas duas perspectivas ignoram a aptido de autocrtica, de retroao da conscincia.
Ao mesmo tempo, a capacidade de retroao da conscincia pode ser ou no
transformadora.
A conscincia s pode ser subjetiva, mas sua operao que nos permite
considerar objetivamente nosso prprio pensamento, unindo o mximo de subjetividade
com o mximo de objetividade. Porm, a fragilidade da conscincia a torna sujeita a
muitos erros, que podem ser reforados pela prpria conscincia. As fontes de erros
da conscincia esto no interior do esprito (recalcamento, memria seletiva, mentira
para si mesmo) e na sujeio do esprito por uma cultura. Alm disso, a conscincia
inconsciente de todo nosso inconsciente corporal, assim como tem uma conscincia que
apenas parcial de ns mesmos. Apesar de vigilante, frgil e incerta como a chama de
uma vela, que pode parar de iluminar o ambiente a qualquer instante.
Outro argumento de que se utiliza Morin (1996b, 2001/2002) para falar de
um princpio de identidade parte dos lingistas. Estes afirmam que qualquer um
pode dizer eu mas ningum pode diz-lo por ns. Ser sujeito implica assumir-se
como centro do mundo para conhecer e agir. Cada indivduo vive e experimenta-se
como sujeito, essa unicidade singular a coisa humana mais universalmente
partilhada. Mas esse princpio de excluso no impede um princpio de incluso,
que nos permite integrar nossa subjetividade pessoal em uma mais coletiva. Assim,
o sujeito humano pode oscilar entre um egocentrismo absoluto e uma abnegao
ou sacrifcio pessoal. Dentro do princpio de incluso podemos descrever um
princpio de intercomunicao com semelhantes.
Na natureza, os sujeitos se auto-organizam em interao com outros sujeitos
ou, melhor dizendo, o sujeito surge para o mundo se integrando na
intersubjetividade. Na intersubjetividade, produz-se convivncia. A possibilidade
de compreenso permite reconhecer o outro como outro sujeito e senti-lo,
eventualmente, no amor como alterego (sic), outro si mesmo (Morin, 2001/2002,
p.78). Atravs destas integraes Morin procura apresentar uma concepo de
sujeito que supera a viso egocentrada do sujeito, apresentada segundo ele por
Descartes e Husserl e a viso que o define, antes tudo na relao com o outro, como

faz Levinas. Procura englobar as duas vises para reconhecer que a fundao deste
sujeito se d quase que simultaneamente da relao da auto-afirmao do Eu e da
relao com o outro.
Morin (2001/2002, 1990/2001) considera que a linguagem est no
cruzamento dos aspectos biolgico, humano, cultural e social. O esprito humano
emerge do crebro com e pela linguagem. Apesar da diversidade, as lnguas
obedecem a estruturas comuns. Assim:
A linguagem uma parte da totalidade humana, mas a totalidade humana
est contida na linguagem. (...) O homem faz-se na linguagem que o faz. A
linguagem est em ns e ns estamos na linguagem. Somos abertos pela
linguagem, fechados na linguagem, abertos ao outro pela linguagem
(comunicao), fechados ao outro pela linguagem (erro, mentira), abertos s
idias pela linguagem, fechados s idias pela linguagem. (Morin,
2001/2002, p. 37).

3.3.5 O esprito humano


O esprito humano (mind, mente) emerge da relao entre a atividade cerebral e a
cultura e passa ser o organizador do conhecimento e das aes humanas.

potencialmente aberto ao mundo e, paradoxalmente, nada mais fechado que o esprito


humano. Temos um crebro fechado em uma caixa craniana, que se liga ao exterior por
terminais sensitivos. Esses terminais recebem as informaes, codificam-nas e as
transmitem para diferentes regies do crebro. Nesse ponto, so novamente traduzidas e
transformadas em percepo.
O crebro e o computador so duas mquinas. No entanto, nenhum esprito
emerge de um computador. O crebro se percebe mquina, mas no capaz de ter a
performance de um computador em muitos aspectos. capaz de ligar a linguagem
digital e com a linguagem analgica. Tem a capacidade de dividir e discernir-se da
linguagem digital. E tambm tem a capacidade de ligar, associar e conectar-se da
linguagem analgica. A est uma das grandes riquezas das lnguas: a capacidade de
combinar e traduzir a complexidade racional/afetiva do ser humano. Temos a
capacidade de dialogar entre o racional e o emprico, entre a certeza e a incerteza, entre
o racional e o mtico.

Outro fato relevante levantado por Morin que o conhecimento no evolui na


mesma medida da experincia. Conservamos uma mesma estrutura cognitiva mesmo
experimentando coisas diferentes. Fato igual acontece com uma sociedade, apesar de
nossa capacidade de pensar ser individual, ser original e criativa, ela pode ser inibida,
limitada por imprinting, paradigmas e verdades e normas pr-estabelecidas. Ao
contrrio do que pensam muitos cientistas, essa uma marca que afeta a todos e no
apenas a algumas camadas ditas inferiores da sociedade. Esse determinismo pesa sobre
o conhecimento, ele nos impe o que devemos conhecer e o como devemos conhecer.
Os paradigmas comandam esquemas e modelos explicativos os quais nos impem
uma viso de mundo e das coisas e governam/controlam, de modo imperativo e
proibitivo, a lgica dos discursos, pensamentos e teorias (Morin 1990/20001,
2001/2002). Assim, ser sujeito no impede que este tambm esteja sujeitado. Estamos
submetidos a um Estado, a uma Ptria, a um Deus, a um Mito ou mesmo a uma idia.
Tambm temos disposies individuais para resistir ao imprinting, para
transgredir, para imaginar e para conceber. Resistir ao imprinting pode fazer com que
nos sintamos como o Patinho Feio, mas temos condies de fazer isso. Essa condio
nos dada pela prpria linguagem, que sempre comporta a possibilidade de negar.
Obedecer sempre nos remete a desobedecer. Para fazermos isso precisamos de certas
condies para que o esprito individual se revele. Por tal razo, h tanto gnios que no
alcanaram a sorte de Mozart ou de Einstein, o fsico acreditava que foi o seu
desenvolvimento mais afastado do social que o possibilitou problematizar sobre a
relao espao/tempo. Relao que sempre muito bvia para os que esto muito
inseridos no cultural. Esse o motivo pelo qual tantos criadores so ignorados enquanto
vivem, porque incomodam com suas novas formas de pensar (Morin, 1990/20001).
No podemos negar a criatividade na evoluo dos seres vivos, assim como no
podemos elimin-la da histria humana. A criatividade continua sendo um dos grandes
mistrios de um outro mistrio, o esprito humano. Uma criatividade que aumenta o
poder do ser humano tanto para cuidar quanto para aniquilar, que assim como genial,
tambm possui capacidades que podem ser terrveis na falta de conscincia e
responsabilidade (Morin, 2001/2002, 1990/2001).
O esprito e a alma humana no podem ser descritos apenas como uma
superestrutura, mas manifestam surpreendentes poderes atravs das magias, dos xams
e dos desenvolvimentos inusitados das tcnicas. (...) O esprito um complexo que
comporta o psiquismo, noo que revela a sua subjetividade afetiva. A alma humana

emerge a partir das bases psquicas da sensibilidade, da afetividade; em


complementaridade ntima com o esprito (animus), ela anima (Morin, 2001/2002, p.
108). A alma no tem fronteiras, no tem fundo. S pode ser percebida por meio da
afetividade, da emoo, da intuio. Mas muitos seres humanos ainda no puderam
realizar essas virtudes. Para Morin, esprito e alma so virtudes primeiras, mas que
emergem de virtudes complexas, de fenmenos de totalidade e por isso no podem
sobreviver morte.

3.3.6 O homo sapiens e o homo demens


Ns, seres humanos, temos uma identidade comum, gentica, mas esquecemos
dela e nos tornamos estranhos uns aos outros, desde que os primeiros homos partiram da
frica para todo planeta Terra. Com o processo de globalizao atual esta identidade
tem sido aos poucos reconquistada. Cada vez mais o mundo todo est em cada um dos
indivduos. Mas, mesmo assim, no formamos um conjunto unificado que podemos
chamar de humanidade. Hoje, vivemos duas globalizaes: uma tcnica, econmica,
baseada no lucro, e outra na qual se cultiva uma conscincia de cidadania planetria.
Aos poucos, uma sociedade planetria tem sido esboada. No falta tecnologia para
formao dessa sociedade, o que falta percebermos que somos filhos da Terra.
A unificao global tambm conflituosa. Hoje vemos antagonismos
religiosos sendo potencializados por interesses econmicos e estratgicos. Os
conflitos locais passaram a ter um pblico global. E a sabedoria humana no est
dando conta da insustentvel complexidade do mundo hoje. A infinidade de
informaes e de conhecimentos nos tem levado a um saber fragmentado e que no
acessvel a todos. Temos visto a desqualificao de culturas, aumento da solido e
da vida privada. Apesar de novas formas de solidariedade estarem aparecendo o
mundo est vivendo uma enorme violncia e os povos continuam inimigos. E uma
nova forma de guerra nos parece estar se estabelecendo desde 11 de setembro de
2001. A humanidade no consegue parir a humanidade (Morin, 2001/2002).
Desde o incio da nossa histria, o instrumental sapiens serviu ao assassinato do
demens. E at o excesso do sapiens, a racionalizao, pode levar ao delrio, que muito
comumente difcil de identificar. A intermediao entre o homo sapiens e o homo
demens realizada pela afetividade. A afetividade no humano surge pelo

prolongamento da infncia e juventude e com isto a intensificao do contato com os


pais. a afetividade que d valor ao vivido. Neste contexto s faz sentido falar em cocriao quando h um encontro entre fantasia, afetividade e a racionalidade e esse caos
pode levar tanto genialidade, quanto ao delrio ou destruio. Vivemos uma
dialgica criadora e destruidora.
Ao falarmos desse homo complexus, sapiens, demens, afetivo, ldico,
imaginrio, potico, prosaico, sonhador, objetivo, racional, religioso, mtico, podemos
nos perguntar qual a finalidade desse indivduo. A finalidade do indivduo se insere na
relao indivduo-sociedade-espcie. Assim suas finalidades vo alm dele e so
destinadas a ele. A pluralidade de fins nos remete a uma pluralidade de meios e a uma
pluralidade de conflitos. As finalidades individuais podem devorar ou no as sociais.
Dentre as mltiplas possibilidades de escolha, Morin (2001/2002) prope que
escolhamos viver poeticamente. Viver poeticamente significa viver intensamente a
vida, viver de amor, viver de comunho, viver de comunidade, viver de jogo, viver de
esttica, viver de conhecimento, viver de afetividade e de racionalidade, viver
assumindo plenamente o destino de homo sapiens-demens (p.156).

3.3.7 Plurideterminismo e liberdade


Quando falamos de sujeito e de subjetividade, a grande questo se temos liberdade, a
possibilidade de escolha ou se somos determinados e as nossas possibilidades de
escolha no passam de iluses. A cincia nos parece ter decidido pela segunda
possibilidade, pois seus princpios objetivos a impediram de conceber um sujeito
autnomo. Realmente no podemos negar que somos ecolgica, gentica, social e
intelectualmente determinados. Nesse contexto que Morin (2001/2002) diz ter
enfatizado que a nossa autonomia dependente.
Somos plurideterminados e nessa pluridependncia que se vai construindo
nossa autonomia. Por exemplo, a nossa dependncia gentica nos d certa autonomia
em relao ao meio e nossa dependncia em relao ao meio favorece nossa autonomia
em relao ao biolgico. Essa herana gentica tambm vai se debater com a herana
cultural, assim nossa determinao gentica nos ajuda a resistir a ditadura do imprinting
cultural (Morin, 1990/20001, 2001/2002). Ento, aquilo que nos possui permite a nossa
existncia, impede-nos de sermos livres e ao mesmo tempo, permite-nos a liberdade

(Morin, 2001/2002, p. 283). Apenas esta complexidade nos ajuda a compreender a


autonomia do esprito/crebro individual.
A complexidade da relao entre indivduos, espcie, sociedade, cultura e
idias a condio de liberdade. Quanto maior a complexidade da trindade humana,
maior a parte de autonomia individual, maiores as possibilidades de liberdade (Morin,
2001/2002, p. 279). Isto que nos torna mquinas no triviais, pois nossa afirmao como
sujeito dispe de inmeros programas. Muitas vezes somos repetitivos como as
mquinas triviais, mas que se comportam como no triviais quando o acaso e a incerteza
esto presentes. Temos uma liberdade de escolha que se expressa de forma mais clara
em situaes de acaso e incerteza. Somos marionetes e ao mesmo tempo um ser que se
auto-afirma na sua qualidade de sujeito transgredindo.

3.3.8 Paradoxos atuais


Morin, em toda a sua obra, em especial no Mtodo 5 A Humanidade da Humanidade
Identidade Humana (2001/2002), vai procurar romper com a tentativa irracional do
conhecimento racional, de dissolver a noo de homem, de consider-lo como uma
inveno arbitrria. A racionalidade um aspecto claramente reconhecido como
humano, mas, por outro lado, animais tm comportamento racional. Talvez a
originalidade humana se expresse melhor na magia e na religio, que foram expulsas da
cincia. As culturas ditas primitivas j inventavam, j faziam cincia, mas no
separavam o simblico-mtico-mgico do conhecimento racional e emprico.
Apesar de toda a cincia, o mito e a religio no foram expulsos do pensamento
humano. Ao contrrio, aparecem de forma diversificada em todas as sociedades
humanas, e participam de modo reflexivo do circuito auto-organizador da sociedade e
do indivduo. O mito d uma inteligibilidade ao mundo pela narrao e no pelas leis,
pelo singular e no pelo plural, pelo concreto e no pelo abstrato. Podemos ver que um
pensamento se utiliza do outro. O pensamento racional utiliza analogias e smbolos e
tambm cria mitos em torno de si.
Hoje, o nosso principal mito a Razo. Ela se tornou um mito que a transformou
em uma entidade onisciente e providencial. Algumas idias cientificas foram

divinizadas. Os mitos modernos em torno da Razo, da Cincia e do Progresso,


dispensam Deus e at mesmo a narrativa, e pretendem realizar a salvao da
humanidade. Vemos a f religiosa nos ajudando a suportar e a combater a crueldade do
mundo, ao mesmo tempo, que os mitos e religies tambm tm criado uma srie de
obstculos ao destino dos homens. Apenas quando falamos da morte que colocamos
juntos o esprito, a conscincia, a racionalidade e o mito. O ser humano tem conscincia
da morte como um aniquilamento e nem todos vem nela a possibilidade de
renascimento de um novo ser. No entanto, a morte que trabalha o esprito humano e o
leva a questionar os mistrios de sua existncia (Morin, 2001/2002).
Outro grande paradoxo: a mente humana tem um grande poder de
manipulao e totalmente frgil em poder de compreenso. Possui o maior
poder, mas frgil em relao ao poder que ela prpria produziu. Por exemplo, a
mente humana no se percebe funcionando e controlada pela lgica das mquinas.
Esquecemos dos nossos outros poderes, como o de criar deuses e demnios, de dar
vida s idias. Outras habilidades no desenvolvemos totalmente, como a
possibilidade de curar por meio do esprito/mente. A humanidade ainda est em
construo e j nos aproximamos da ps-modernidade. A aventura mais do que
nunca desconhecida (Morin, 2001/2002, p. 259).
Estamos na pr-histria do esprito humano, muitas potencialidades da mente
ainda no foram expressas, as nossas conscincias so subdesenvolvidas. Apesar de
todo o nosso conhecimento, o universo e o ser humano esto ainda carregados de
mistrio. Tambm temos muitos caminhos a seguir. Ser que conseguiremos
transformar o processo de hominizao em humanizao? Poderemos assumir o
destino dialgico de sapiens-demens, ou seja, manter a razo sem ficar encerrados nela,
conservar a loucura sem nela cair? (Morin, 2001/2002, p. 295). A razo pode se
desenvolver e se tornar complexa? (Morin, 1990/2000).
Morin (2001/2002) prope um retorno ao homem que tem aptido para
gerar vrias habilidades que so descritas como suas, assim como outras no
realizadas. Devemos beber da nossa origem comum, hoje enriquecida com a
diversidade, pois, para progredirmos, devemos reencontrar a fonte geradora, que
ficou escondida com o progresso. S podemos conservar nossas aptides se estas
forem cuidadas continuamente, pois tudo que no se regenera, degenera. Talvez
assumindo a relao inicial, indivduo/sociedade/espcie, possamos retornar a

origem e trabalharmos por uma liberdade que no seja apenas pessoal, mas
tambm da espcie e da sociedade.
Os meios de comunicao tambm tm criado o desdobramento dos meios de
iluso. E a cada progresso de elucidao corresponde a um incremento na possibilidade
de diversificao e tambm de enganos. Caracteriza-se, assim, mais um paradoxo,
porque apesar do aumento nas possibilidades de comunicao, no h uma diminuio
de conflitos, pois estas no eliminam a necessidade de intercmbios humanos (Morin
em Schnitman & Fuks, 1995).

3.3.9 Intersubjetividade
A Fenomenologia, como vimos, prope uma compreenso a partir da intersubjetividade,
que acreditamos ser semelhante ao que Morin prope ao colocar a necessidade de
compreender a outra concepo, pensando a partir do universo epistmico do outro.
Morin (1990/2000, p. 58) repete que se quisermos achar alguma coisa importante,
crucial (embora no haja UM fundamento da objetividade) esta seria a livre
comunicao; a crtica intersubjetiva o ponto crucial e nodal da idia de objetividade.
Parece-nos que a resposta do que cincia talvez caminhe por a, pois Morin
(1990/2000, 1983) coloca que a ltima descoberta da epistemologia anglo-saxnica
afirma ser cientfico aquilo que reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso
quer dizer que no existe nenhum mtodo objetivo para considerar cincia objeto de
cincia, e o cientista, sujeito (Morin, 1990/2000, p. 119). Talvez, uma das grandes
descobertas cientficas dos ltimos tempos seja a de que a cincia no totalmente
cientfica.
A idia de objetividade o resultado de um processo crtico desenvolvido por

uma comunidade/sociedade cientfica num jogo, num consenso de pesquisadores.


Vemos que a objetividade dos enunciados cientficos est no fato de poderem ser
intersubjetivamente submetidos a testes. No h como eliminarmos a subjetividade,
dado que a objetividade no uma qualidade do esprito sbio. E o conhecimento
apenas um recorte que fazemos da realidade e que vai depender dos instrumentos que
escolhemos para observar, assim como dos instrumentos mentais que so os conceitos.

Vamos organizando uma teoria cientfica que nos d inteligibilidade sobre


algum fenmeno, mas precisamos de teorias que estejam em constante dilogo, em
constante construo, em um processo recursivo auto-ecoprodutor. No entanto, a cincia
constantemente inibida, abafada por manipulaes de prtica e de poder (Morin,
1990/2000). Muito disto acontece devido a nossa angstia de lidar com a incerteza, com
o conflito. Temos que construir uma cincia nova, que comporte a capacidade da
cincia de refletir sobre si prpria, que comporte um autoconhecimento.
Por fim, podemos considerar Morin um anti-humanista, no sentido de que
necessrio abandonar o humanismo que faz do homem o nico sujeito num
universo de objetos e que tem como ideal a conquista do mundo. Mas, igualmente,
podemos considerar que Morin humanista, no sentido que procura compreender
o homem, no a partir do mito do homem sobrenatural, mas sim no anti-mito
complexo do homem biocultural (Roger,1999).

3.4 Construcionismo Social e a construo social da


subjetividade
O objetivo da filosofia construtivista manter a
conversao em andamento, mais do que encontrar a
verdade objetiva. (Rorty, 1979, em Lax, 1995/1998, p.100)
A voz do cliente no meramente um instrumento
auxiliar na confirmao da narrativa pr-determinada pelo
terapeuta, mas serve nestes contextos como constituinte
essencial de uma realidade construda em conjunto. (...) a
nfase est na relao de colaborao entre o cliente e o
terapeuta, medida que estes se empenham em
desenvolver formas de narrativas que possam capacitar o
cliente a ir alm da sua crise momentnea ou contnua.
(Gergen & Kaye, 1995/1998, p. 211)

A linguagem um centro em que se renem o eu e o


mundo, ou melhor, em que ambos aparecem em sua
unidade originria. (Gadamer, 1986/1997, p. 686 [478])

Os Construcionistas so um grupo que vem crescendo, principalmente, a partir da


dcada de 90. Seus principais divulgadores, entre os terapeutas de famlia, so Gergen
(Rasera e Japur, 2001), Anderson e Goolishian, Adersen, Lax (Hoffman, 1995/1998).
Segundo K. Gergen (1985, em Rasera & Japur, 2001) o Construcionismo uma
forma de investigao social que se preocupa em explicar os processos pelos quais as
pessoas descrevem, explicam o mundo em que vivem, incluindo elas mesmas. um
movimento que de certa forma se alinha com o que se tem chamado de psmodernismo, pois desafia qualquer referencial que pressuponha algum tipo de estrutura
interna. Para Shotter (2000, em Guanaes & Japur, 2003) o Construcionismo Social
busca investigar o contnuo fluxo da atividade comunicativa humana, dando destaque
aos processos lingsticos e relacionais que possibilitam a produo do conhecimento
sobre o self e sobre o mundo em que vivemos.
O Construcionismo e o Construtivismo se encontram na perspectiva de contestar as idias modernistas de que existe um mundo
real que pode ser conhecido com exatido objetiva. E se diferenciam pelo fato dos Construtivistas tenderem a promover a
imagem do sistema nervoso como uma mquina fechada ao colocarem que as percepes e os construtos se formam quando o
organismo colide com o ambiente. Os tericos da construo social vem as idias, os conceitos e as recordaes como surgidos
do intercmbio social mediado pela linguagem, onde todo conhecimento se produz no espao entre as pessoas e que somente
pela conversao permanente que o indivduo desenvolve o seu senso de identidade (Hoffman, 1995/1998).

Assim como os outros autores que temos apresentado neste trabalho, os Construcionistas Sociais tambm percebem a
necessidade de encontrarmos outras formas de compreenso da sade mental fora dos modelos que se originaram na perspectiva
Iluminista. Juntamente com o construtivismo e a fenomenologia, o construcionismo forma (ainda que em bases distintas) um
desafio crtico ao dualismo sujeito-objeto sobre o qual se fundamenta a viso tradicional do terapeuta-cientista (McNamee e
Gergen, 1995/1998, p. 8). Isso implica uma modificao na viso de conhecimento como representao. O conhecimento passa
a ser percebido como algo que produzido na relao entre as pessoas (Rasera & Japur, 2001).

Como as idias ps-modermas e ps-estruturalistas tiveram origem na Semitica


e na crtica literria, os autores que se agregaram a esse contexto partiram para o estudo
do campo social, assim como o uso de narrativas (Hoffman, 1995/1998). Segundo Lax
(1995/1998), a teoria da desconstruo literria est enraizada em uma tradio
filosfica que se origina nos trabalhos de Kant, Husserl, Heidegger e Wittgenstein.
Estes pensadores estiveram continuamente envolvidos com a questo de como
conhecemos o mundo e qual o papel da linguagem em nossas descries. Os autores
Construcionistas compartilham tambm com Foucault e Derrida um conjunto de temas
importantes: a linguagem como campo da construo psicolgica, a morte do sujeito e a
substituio da dimenso histrica por uma ordem simblica discursiva na constituio
da psique.
Os Construcionistas Sociais no formam um bloco homogneo e poderiam ser
divididos em dois grupos: os de abordagem narrativas e os de abordagem colaborativas
(Grandesso, 2002). O primeiro grupo pressupe que as pessoas vivem suas vidas por
meio de histrias, que organizam e do sentido experincia. Essas histrias so
capturadas nas histrias dominantes da comunidade lingstica em que o indivduo vive.
No contexto teraputico, as narrativas desse grupo vo ser trabalhadas de forma
diferente. Sluzki (Grandesso, 2002), por exemplo, enfatiza as micro-prticas
transformativas, nas quais trabalha pontos de bifurcao das histrias que podem ser
desestabilizadas pela conversao teraputica.
Anderson, Goolishian, Hoffman e Andersen so os principais representantes da
abordagem colaborativa, o segundo grupo dos Construcionistas Sociais, onde a nfase
est mais no cuidado que na cura (Nichols & Schwartz, 1995/1998). Estes autores
propem que o processo teraputico seja uma conversao na qual o terapeuta um
participante ativo, mas o especialista o cliente (Grandesso, 2002).

Anderson e

Goolishian (1995/1998) propem um trabalho por meio dos processos reflexivos, no


qual cada participante conecta a sua fala interna com o que viu e ouviu durante a sesso
teraputica (Grandesso, 1995, Andersen, 1995), alm de tornar a sua conversao
interna em externa, aberta para as palavras e para os processos por eles construdos.

Para Nichols e Schwartz (1995/1998), esses terapeutas esto permitindo que os


terapeutas sejam novamente humanos, o que significa sermos compassivos, humildes e
honestos.
Podemos dizer que h, ainda, outro grupo de Construcionistas Sociais,
representado por Michael White, David Epston, Jill Freedman e Gene Combs
(Grandesso, 2002) que propem a desconstruo das histrias dominantes e as prticas
subjugadoras do self, a reconstruo ou re-autoria da autobiografia. Michael White,
muito influenciado por Foucault, procura ajudar os indivduos a desconstruirem
realidades a priori. White extremamente poltico, pois quer liberar histrias
alternativas que foram reprimidas pela cultura dominante (Nichols & Schwartz,
1985/1998).
Burr (2000, em Guanaes & Japur, 2003) classifica os Construcionistas em
funo de como descrevem a natureza discursiva do self:
1) a proposta de uma Psicologia discursiva de Potter e Wetherell pretende
investigar o modo como as diferentes explicaes e descries de self so constitudas e
so um esforo de deslocar o lcus de significaes individuais para a esfera do social.
Estes autores chamam a nossa ateno para as relaes de poder e a importncia dessa
categoria na regulao dos relacionamentos em nossa sociedade, pois delimitam as
possibilidades de significao dentro de uma determinada cultura.
2) a teoria do posicionamento de Harr e van Langenhove. Estes autores
colocam que as pessoas esto sempre engajadas em atividades discursivas onde
posicionam a si mesmas e aos outros, no entanto, as formas que estes posicionamentos
assumem vo diferir de acordo com as normas sociais e as situaes especficas em que
elas ocorrem, pois o self construdo nas prticas discursivas, por meio das posies
que as pessoas negociam ativamente em seus relacionamentos. Sendo assim, a noo de
identidade como unidade substituda pela possibilidade de mltiplas descries de
selves.
3) a noo de self narrativo de Gergen, em que as narrativas so recursos
conversacionais, construes abertas contnua alterao na medida em que a interao
progride. No somos livres para construir qualquer histria pessoal, pois estamos
envolvidos em convenes sociais que valorizam ou desencorajam certas descries de
self, enfatizando, ento, que na construo do self realizada em co-autoria.
Portanto, o que liga estes autores uma concepo no essencialista do self,
dado que este lingstica e socialmente construdo na prxis discursiva e sujeito a

transformaes ao longo de sua existncia, sendo assim definido a cada momento da


interao atravs dos modos pelos quais as pessoas descrevem a si mesmas (Grandesso,
2002; Guanaes & Japur, 2003).
Protagonista de sua prpria histria, autor da existncia, este self se compreende
como competente para a ao e para o agenciamento de eleies a partir de um
posicionamento moral e tico e com capacidade para criar e expandir suas
possibilidades existenciais. (Grandesso, 2002, p. 24, traduo nossa)

3.4.1 O papel da linguagem


Os Construcionistas partem do princpio de que nossas formulaes da realidade so
guiadas e limitadas pelos sistemas de linguagem nos quais vivemos, ou de que o que
pode ser dito a respeito do mundo o resultado de convenes compartilhadas no
discurso. Quando achamos que estamos descrevendo um fato, estamos sim contando
uma histria a partir de um repertrio que j temos de formas de narrativas ou de
artifcios para contar histrias que j esto impostos pelo nosso contexto social. Assim,
a perspectiva ps-moderna assumida pelos Construcionistas sociais renuncia ao
conceito de identidade pessoal (Gergen, 1995/1998). Acreditam que, ao focarem na
linguagem, focam na interao entre as pessoas na construo de seus mundos.
Lembram que, quando utilizamos a metfora da viso (olhar), esta implica uma
distncia, objetividade, enquanto que a metfora do som implica proximidade
(McNamme, 1995/1998).
Aquele que ouve de algum modo interpelado, e no pode deixar de ouvir. No
h como desviar seus ouvidos da mesma forma que desvio o olhar. (Gadamer,
1986/1997, p. 670 [465])
A nfase na linguagem se d por considerarem-na uma atividade compartilhada e sua anlise deve focalizar o relacionamento
entre as pessoas. Por esta perspectiva dialgica que podemos perceber como as pessoas se constroem, pois a significao no
tem origem em uma mente individual, j que vai sendo construda na relao entre as pessoas. Os enunciados passam a ter
significado quando os outros adicionam alguma forma de ao suplementar. Ento, no se trata de ao-reao, mas de ao
conjunta.

Essa ao suplementar que vai garantir o potencial de significao do


enunciado e vai delimitar temporariamente o significado. Este pode ser alterado por
novas suplementaes, mas tambm est submetido a potencialidades de significaes
j estabelecidas pela sociedade em que vivemos. As nossas aes tm significados a
partir de determinadas descries de mundo que vo determinar o que ou no

pertinente. E o que vai ser entendido como entendimento ou desentendimento vai ser
definido pelos padres sociais. Tais padres no garantem total entendimento, pois as
pessoas esto sempre envolvidas em novos contextos que envolvem riscos de
desentendimento e criao de novas re-significaes (Rasera & Japur, 2001).
Isso no significa que nada exista fora da linguagem, mas o ser que pode ser
compreendido linguagem (Gadamer, 1987/1996). Com essas argumentaes, os
Construcionistas colocam que, para operarmos mudanas sociais, necessrio
penetrarmos nos vocabulrios culturais, ao mesmo tempo em que buscamos a sua
transformao. E como somos eminentemente relacionais, essas transformaes no se
do individualmente. As palavras que usamos vo influenciar os significados a que
chegamos, ou as buscamos para encontrar o pensamento, pois as palavras no so
inocentes. E a que podemos perceber a influncia de Wittgenstein em toda essa
proposta (Andersen, 1995).

3.4.2 As narrativas O sentido de self produzido no dilogo


A narrativa, ou sentido de self, produzida no dilogo com os outros e o nosso prprio
dilogo com os outros. No existe self oculto a ser interpretado. Ns nos revelamos a
cada momento de integrao pela narrativa presente que mantemos com os outros
(Lax, 1995/1998, p. 89). O self a expresso de um ser e um devir atravs da
linguagem. Assim, a natureza do self e de nossa subjetividade devem ser vistos como
fenmenos intersubjetivos. O que no significa que estejamos passivos a fenmenos
internos ou externos, j que toda conduta humana intencional. Esta viso exige que o
terapeuta procure compreender o sentido ou a inteno de qualquer comportamento
(Goolishian & Anderson, 1994/1996).
O self, numa perspectiva ps-moderna, pode considerar-se uma expresso desta
capacidade para a linguagem e a narrao. De uma forma mais simples, os seres
humanos sempre contaram coisas entre si e escutaram o que os demais lhes
contavam; e sempre compreendemos o que somos e quem somos a partir das
narraes que nos relatam mutuamente. Na melhor das hipteses no somos
mais que co-autores de uma narrao em permanente mudana que se transforma
em nosso si mesmo. E como co-autores dessas narraes de identidade

estivemos desde sempre na histria de nosso passado narrado e nos mltiplos


contextos de nossas construes narrativas. (p. 193).
importante ressaltar, que estas histrias textuais no so independentes das
pessoas que as contam. So produto das relaes humanas e s ganham sentido pela
forma que so usadas. Apesar de serem construes limitadas por nossa linguagem, no
significa que no temos o poder de alter-las (McNamee & Gergen, 1995/1998). As
histrias ou narrativas que temos sobre ns mesmos ou sobre o mundo, comportam
mltiplas vozes. Nossas narrativas sobre ns mesmos sempre incluem os outros, que
tambm so construdos por essa narrativa. O outro tambm vai ser co-autor da nossa
narrativa sobre ele (Rasera & Japur, 2001).
Essa teoria relacional e dialgica tem implicaes ontolgicas relativas noo
de eu. Apresentando uma viso de self socialmente construdo na linguagem e
descentrando o indivduo como autor nico de si mesmo, este passa a ser compreendido
como uma construo social de mltiplos autores. O eu no comea em um momento
puro de autoconscincia autnoma, mas em relao com o outro, por quem permanece
para sempre responsvel (Levinas em Lax, 1995/1998, p. 89).
Hoffman (1995/1998) coloca que, como ela, outros terapeutas familiares
passaram dcadas tentando fazer desaparecer o indivduo, mas, na verdade, apenas o
substituram pela unidade familiar. No entanto, acredita que o que necessrio um
afastamento da noo de estrutura e a adoo de uma perspectiva do self como um
segmento da histria em movimento, tal como um rio ou uma corrente. Nessa
perspectiva, um indivduo emerge atravs dos processos de interao social, no como
um produto final relativamente fixo, mas como algum, que constitudo e
reconstitudo atravs das prticas discursivas nas quais participa (Davies & Harr,
1990, p. 90, em Rasera e Japur, 2001).
Portanto, para os Construcionistas (Anderson, 1997, em Rasera & Japur, 2001;
Hoffman, 1995/1998), a possibilidade de mudana do self inerente ao dilogo, j que
mudana o contar e recontar de histrias familiares. As mudanas so fruto das
redescries que se desenvolvem por meio da conversao. Nesta, uma tenso entre o
dito, e o no dito cria uma tenso potencial para que uma nova compreenso possa
emergir. Pela desconstruo do nosso mundo como o conhecemos e pela procura do
inesperado, podemos substituir nossa viso (Derrida em Lax, 1995/1998; Grandesso,
1995).

3.4.3 O processo psicoteraputico


Por conta dessa nova perspectiva, no havia como os Construcionistas no contestarem
a prpria idia de psicoterapia e de mitificao em torno do papel transformador do
terapeuta. Isso porque um terapeuta que muito ajuda, ou exerce muito poder, pode
simplesmente estar comunicando famlia o quanto so inadequados ou errados os seus
membros (Fruggeri, 1995/1998). E as principais questes que os construcionistas
levantaram foram as necessidades de:
-

estarmos atentos para as ideologias presentes em cada abordagem


teraputica;

desfocarmos os indivduos como centro das disfunes e a necessidade de


adotarmos uma perspectiva sistmica;

expandirmos nossa ateno para a comunidade, instituies, contexto


econmico, pois no podemos separar o indivduo do seu contexto;

questionarmos as prticas de sade mental que so opressivas em relao s


mulheres, colocando-as como responsveis por uma srie de transtornos
mentais;

contestarmos a separao tradicional entre o conhecedor e o conhecido


(McNamee & Gergen, 1995/1998).

Os Construcionistas questionam, assim, as psicoterapias em que a busca do que


o self, sua natureza, sua essncia, era o tema central. Psicoterapias que procuravam
demarcar o que self do no-self, descrevendo cada pessoa como se fosse um
acontecimento independente, ao que denominaram de self encapsulado (Goolishian &
Anderson, 1996).
Questionando a viso de conhecimento cientfico como racionalmente superior,
passaram a identificar os processos culturais e histricos que favorecem certas
concepes da natureza em detrimento de outras. Como resultado, argumenta-se que
aquilo que entendemos como descries objetivas e precisas da natureza e do self so o
resultado de processos sociais (McNamee & Gergen, 1995/1998, p.7).
Alm dos pontos em comum com a postura sistmica em geral, os
Construcionistas Sociais enfatizam o uso de metforas e narrativas, a enfatizam o
dialogismo (Rasera & Japur, 2001). A relao teraputica colocada como uma
possibilidade de co-construo, pois o terapeuta no tem a verdade. No entanto, no

dilogo teraputico podem surgir alternativas teis para a construo do cliente. A


proposta no enfatiza a produo de mudanas, mas antes de tudo, a abertura para
espaos de conversao, nos quais possamos negociar novos entendimentos como
premissas a respeito dos sentidos. O terapeuta passa a ser apenas um artista da
conversao, perguntando a partir de uma posio do no saber, ao invs de fazer
intervenes baseadas em um mtodo que demande respostas especficas. (Anderson &
Goolishian, 1995/1998).
Dessa forma, quando os Construcionistas Sociais propem uma relao teraputica dialgica, eles se retiram, de certa forma, do
modelo sistmico ciberntico, em que a proposta era de mudana da famlia a partir das intervenes teraputicas, e se
introduzem em uma postura reflexiva, ou que se dobra sobre si mesma. Esta mudana, segundo Hoffman (1995/1998), amplia a
viso de circularidade para uma viso de infinito, representado graficamente pelo smbolo . Nessa nova perspectiva, h
espao para o dilogo interno das pessoas, assim como uma interseco onde as pessoas se encontram.

Andersen (1995) e Anderson e Goolishian (1995/1998) propem o conceito de


Crculo Hermenutico dentro dessa postura reflexiva, um conceito relacionado s
teorias de Heidegger e Gadamer. Este conceito procura expressar a idia de que estar no
mundo uma constante busca de significados. Desse modo, o que viermos a entender
ir influenciar o que passamos a prestar ateno, formando novos a priori, pois
tendemos a simplificar quando estamos empenhados no ato de criar significados. Cada
um vai reorganizando os seus pr-conhecimentos na relao com algo novo, singular,
pois nesse contexto temos a possibilidade de dar uma nova perspectiva ou mudar o
nosso conhecimento. E a essa relao entre o singular, o novo e o pr-conhecido, os
nossos universais, que se denomina Crculo Hermenutico.

Na concepo

hermenutica, o significado sempre est em processo (Goolishian & Anderson, 1996) e


o dilogo uma prtica social transformadora para todos os envolvidos, sejam eles
clientes ou terapeutas. A compreenso co-construda intersubjetivamente.(Grandesso,
2002).
A partir do momento em que o terapeuta percebe que tem um a priori e no sabe
o que a sua interveno tem de melhor do que as dos clientes, no h como permanecer
em uma postura hierrquica. Passa, ento, a trabalhar em funo de uma postura
reflexiva, um dilogo, entre as singularidades trazidas pelos clientes e o conhecimento
que j tinha. Esperando que, olhando de mltiplas perspectivas, surjam idias e
significados novos (Andersen, 1995), mudando o papel da equipe de observao, que
deixa de ser a que tem a fala mais correta, como ocorria no incio da terapia familiar
(Grandesso, 2002). Assim, no saber significa aprender a singularidade da verdade

narrativa de cada cliente naquele momento (Anderson & Goolishian, 1995/1998), o que
permite uma atitude cuidadosa e de respeito.
A nfase narrativa sempre conferida pela possibilidade de gerao de sentido
pela via do dilogo, que no processo teraputico passa a implicar a substituio de uma
narrativa principal disfuncional por uma mais funcional, porque no significa a
aceitao das premissas dos clientes, e sim uma investigao desinteressada. A
psicoterapia pode ser pensada como um processo de inveno de sentido no contexto do
discurso colaborativo, no qual o sentido da experincia transformado por formas
alternativas de pontuar a experincia por meio da percepo que surge ao vermos que
no podemos ver (Gergen & Kaye, 1995/1998). Seguindo a mesma postura, Penn
(1999) fala da necessidade do cliente encontrar uma voz nova ou livre para que possa
contar sua histria de modo diferente no contexto de pessoas vitimas de estupros.
Acredita que a histria nova, com novos personagens, tem o efeito de alterar a memria
e renovar sua direo de vida e crena em si mesmo eventualmente.
Ao reconsiderarmos a utilidade da narrativa, ns nos deslocamos para fora da
mente individual para as relaes constitudas pela narrativa em ao. (...) Cada
narrativa de self pode funcionar bem em certas circunstncias, mas levar a
resultados infelizes em outras. Ter apenas um meio de se fazer compreender ,
portanto, limitar a gama de relacionamentos ou situaes nas quais se pode
funcionar satisfatoriamente. (Gergen & Kaye, 1995/1998, p. 215/216)
Em outra perspectiva, Packman (1999) coloca que no h possibilidade de se
evitar o papel ativo do terapeuta que pensa e atua em termos construtivistas, pois seu
papel no apenas de criar alternativas atravs de conversaes, mas tambm o de criar
alternativas para conversaes frteis e vivas. Seu objetivo a ampliao de espaos
para a construo de identidades alternativas, baseadas em elementos que j estavam
presentes, mas que precisam ser ampliados. Acredita que os processos pelos quais novas
histrias se tornam possveis, e eventualmente dominantes, social. Para ele, h
necessidade de criarmos estruturas micro-sociais para que aparea o protagonista de um
novo tipo de histria. Assim, o Construtivista ou o Construcionista Social um designer
que vai projetar maneiras de como o mundo pode ser se operarmos para transform-lo
em direes consensualmente desejveis. Esse designer usa a fora dos grupos
teraputicos no s para a introspeco compartilhada, mas para que tenhamos
conscincia do sentido de conhecermos juntos, sobretudo sobre o que nos assombra.

A terapia pode ento ser uma prtica social crtica e a conversao teraputica
torna-se reflexiva, permitindo que aqueles que esto em conversao olharem
para si mesmos atravs dos olhos dos outros, como Heinz von Foerster gosta de
dizer. A reflexo no modelada aqui sobre O Pensador isolado de Rodin, mas
como um processo que s pode ser social. (Packman, 1999, p. 13)

3.4.4 A emoo

Pelo fato de que nos propusemos a estabelecer um dilogo entre os Construcionistas e


os Gestalten-Terapeutas, temos que buscar qual a percepo dos primeiros no que diz
respeito emoo. Rom Harr (1986, em Hoffman, 1995/1998) no acredita que as
emoes existam dentro das pessoas como traos ou estados distintos ou que elas sejam
comuns no mundo inteiro. A partir da, alguns Construcionistas percebem as emoes
como mais uma das partes da complexa teia de comunicao, no atribuindo nenhum
significado especial a esses estados interiores. No consideram que todos os
sentimentos devam ser expressos e no acreditam que a represso das emoes pode
produzir sintomas na vida posterior.
J para Andersen (1995), existem emoes dentro das palavras, e devemos escutar o como as pessoas falam, alm do que elas
falam. Hoje ele no acredita que os movimentos, sentimentos e a linguagem esto dentro de ns. Ns que estamos inseridos
neles: nos movimentos, nos sentimentos e na linguagem. No os modelamos, eles nos modelam (p. 9). Tambm aprendemos
que devemos sentir de determinada maneira, por exemplo, se bom ou no aceitar ajuda.

Penn (1999) tambm sente necessidade de dar ateno ao que ela chama de voz
corporal, pois esta freqentemente comunica mais que as prprias palavras. Da mesma
forma, procura explorar as palavras que expressam os sentimentos conflitantes, pois
quando algum fala de raiva pode estar tambm falando de tristeza, solido. Esta mesma
autora prope sempre aos seus clientes que eles escrevam, principalmente cartas, para
outras pessoas. O registro por escrito ajuda os clientes a retornarem a sua nova narrativa
sempre que acharem necessrio. Para Penn, a mudana de narrativa vai gerar, uma
mudana na emoo. E Packman (1999) afirma que as histrias no so apenas relatos
verbais, mas so narrativas encarnadas nas estruturas culturais e biolgicas das quais
fazemos parte.
Mais uma vez, fica claro que os Construcionistas Sociais formam um grupo
heterogneo, e o lugar da emoo para estes autores tambm vai ser diverso. Entretanto,
o que chama a nossa ateno que a emoo sempre colocada quando eles fazem
relatos clnicos, principalmente aqueles que inclumos na abordagem colaborativa.

Parece haver diferenas tambm significativas quanto postura dos psicoterapeutas,


alguns so mais diretivos do que outros na construo das novas narrativas. Uns optam
por uma postura mais voltada para o dilogo e para o encontro e outros parecem mais
ligados ao neopragmatismo americano. Mas a tendncia geral o deslocamento do
processo teraputico da ao para o significado. Esta nfase contempornea ao
significado especialmente presente nos que propem uma abordagem cooperativa.
Todavia, Nichols e Schwartz (1995/1998) questionam se no h possibilidade de se
trabalhar com os significados e tambm com a ao, ao invs de trocar um pelo outro.
Algumas criticas tm sido feitas s teorias Sistmicas Construtivistas
Construcionistas Sociais, principalmente no que se refere ao Construcionismo Social.
Para Nichols e Schwartz (1995/1998), Gergen desafia a noo de que somos indivduos
autnomos que mantm crenas independentes. Dentro da sua perspectiva, nossas
crenas so muito plsticas, mudam drasticamente com as mudanas em nosso contexto
social. J para Neubern (1999, 2000), essas propostas ps-modernas tm contribudo
para o debate epistemolgico, assim como para a possibilidade de uma construo
complexa. Acredita que tal perspectiva hipertrofia o papel da linguagem e acaba
desprezando praticamente qualquer participao ativa do real, desconsidera processos
que no se esgotam nas construes lingsticas, como as emoes, as motivaes, a
histria e um conjunto de experincias indizveis, como a experincia do xtase
religioso.
Gonzlez Rey (2003) coloca que a nfase na co-construo, nas narrativas e na
linguagem proposta pelo Construcionismo Social faz com que o sujeito aparea como
um momento sem histria constitutiva prpria.
Neste sentido, a idia de subjetividade desaparece, pois o sujeito no tem
capacidade generativa dentro dos contextos de sua ao. De fato, um sujeito
totalmente determinado, ainda que essa determinao aparea agora como
fluxos conversacionais vivos um fluxo sem sujeito, em que a expresso da
pessoa est determinada por um posicionamento contextual (Harr) do qual o
outro sempre parte. (p.150)
Gonzlez Rey ainda coloca que reconhecer o aspecto social compartilhado pelos
processos de percepo de nenhuma forma pode nos conduzir a ignorar os outros
aspectos constitutivos: bioqumicos, biolgicos, processos de sentido subjetivos da
percepo comprometidos simultaneamente com a configurao subjetiva do espao
social e com o sujeito do processo.

3.5 Da metfora construtivista metfora hermenutica

O mundo lingstico prprio, em que se vive, no uma


barreira que impede todo conhecimento do ser em si, mas
abarca fundamentalmente tudo aquilo a que se pode
expandir-se e elevar-se nossa percepo. claro que os
que se criam numa determinada tradio lingstica e
cultural vem o mundo de maneira diferente de como o
vem os que pertencem a outras tradies. (Gadamer,
1986/1997, p. 648 [450/1])

Podemos perceber que um processo teraputico que inicialmente utilizava somente da


metfora sistmica foi incorporando as mudanas que estavam acontecendo em vrias
cincias, principalmente as introduzidas pelo pensamento ps-moderno. Isso foi se
refletindo nos tipos de metforas que iam sendo utilizadas pelos terapeutas para a
compreenso da famlia ou da comunidade com a qual estavam em contato. As
metforas de homeostase da Primeira Ciberntica e as metforas sobre o poder foram
dando espao a metforas mais ecolgicas em torno dos conceitos de co-evoluo, de
co-criao e de co-participao. O que significou uma mudana na postura teraputica
com um compromisso de um processo auto-reflexivo e com o abandono da noo de
descoberta por uma noo de co-construo, tanto do problema quanto da soluo
(Grandesso, 2002).
Essas mudanas nas metforas usadas refletem as mudanas na concepo de
sujeito e de subjetividade presentes nas abordagens teraputicas. Como vimos, com a
chegada da Ciberntica de Segunda Ordem, o sujeito observador introduzido no
sistema, e passamos ver alguns terapeutas de famlia com preocupaes semelhantes s
da Fenomenologia, buscando compreender como as pessoas constroem ou constituem
sentido. Ento, quando se adota uma perspectiva que d nfase construo dos
significados, aos modelos dialgicos e s metforas narrativas, a metfora passa a ser
hermenutica. (Grandesso, 2000). A grande diferena que essas metforas so
temporais e fluidas, e no estticas e espaciais como as organizadas em torno do
conceito de homeostase.
Tal fato leva alguns Construcionistas, como Hoffman (1990 em Grandesso,
2000), a afirmarem que as metforas do futuro sero auditivas, organizadas em torno de
diferentes vozes. Anderson & Goolishian (1998a, em Grandesso, 2000) ressaltam que

os problemas psicolgicos surgem, mudam de forma e desaparecem, conforme mudam


o vocabulrio e as descries dos terapeutas. Por isso, como j vimos, alguns terapeutas
foram levados a abandonar a bandeira da Ciberntica e a adotar a da Hermenutica,
substituindo os crculos de feedback pelos crculos intersubjetivos do dilogo.
A mudana conceitual dentro desse enfoque ps-moderno, no meu entender,
organiza suas teorias e deriva suas prticas em um interjogo recursivo em que os
problemas so vistos no como coisas a serem eliminadas, mas como dilemas
resultantes da participao dos indivduos nas prticas interativas e discursivas
de seus contextos sociais. (...) Colocamos nossa nfase nas prticas discursivas
usadas pelos tericos, pesquisadores e clnicos, em interao com seus clientes
dentro de um determinado domnio cultural e ideolgico, na construo do que
vem as ser o problema e o que nos vivel como uma hermenutica dos
fenmenos humanos. (Grandesso, 2000, p.142)
Assim, cada terapeuta vai estruturar o dilogo teraputico em torno da teoria de
sua preferncia em determinado perodo. Nenhuma conversao a mais verdadeira,
pois diferentes conversaes podem ser geradoras de mudanas teraputicas. As
construes que uma pessoa, uma famlia ou uma comunidade trazem, bem como as
construes tericas por parte dos psicoterapeutas, vo ser integradas em uma produo
colaborativa entre psicoterapeutas e clientes em um espao intersubjetivo do dilogo
(Grandesso, 2000).

3.5.1 A perspectiva hermenutica


Dentro da perspectiva hermenutica, o sistema teraputico passa a ser definido por
aqueles que esto envolvidos em conversaes em torno do problema. Tal concepo
coloca uma intensa nfase na linguagem. Dessa forma, toda uma concepo sistmica
abandonada, principalmente pelos que tem o enfoque do Construcionismo Social, por
uma compreenso dos sistemas humanos como sistemas lingsticos (Anderson &
Goolishian, 1988a, em Grandesso, 2000). Tal concepo estende o territrio da Terapia
Sistmica para incluir o indivduo, as comunidades e outras organizaes sociais,
envolvidas em uma trama significativa.
A Hermenutica comeou a se estruturar pelos que tinham necessidade de
interpretar e traduzir os textos bblicos. O termo vem do grego hermeneuikos, que nos

remete a Hermes cuja tarefa era a de interpretar e explicar aos humanos os


significados ocultos, implcitos nas mensagens dos deuses. A Hermenutica tem
ajudado cientistas sociais a compreenderem textos seculares. Wilhelm Dilthey foi uma
figura central no estabelecimento da Hermenutica. Nela existe um permanente debate
entre os objetivistas, que localizam os significado no texto e que consideram o mesmo
como sendo independente da interpretao, e aqueles que consideram a interpretao
ativa como primria a toda interpretao. Hans-George Gadamer um dos
representantes desta segunda Hermenutica, afirma que a compreenso uma
interpretao entre o horizonte proporcionado pelo texto e o horizonte pessoal do seu
leitor. o que ele denomina como crculo hermenutico, isto , o significado do texto
determinado (contextualizado) pelo horizonte do interpretador e pelo momento da
interpretao. O horizonte do interpretador produto de uma histria anterior de
interaes lingsticas, cada uma das quais representando um texto que pode agora ser
compreendido luz da pr-compreenso do interpretador naquele momento. Com forte
influncia de Heidegger e de Rudolf Bultmann, Gadamer prope que a significao no
reside no significado estabelecido no texto, mas o significado estabelecido a partir de
nossa pr-compreenso. Como a perspectiva hermenutica proposta por Gadamer tem
forte influncia de Heidegger, temos, mais uma vez, uma aproximao das propostas da
Gestalt-Terapia quanto questo do sentido e do significado, e de todas as questes
relativas ao papel do indivduo e do contexto social nessa questo.
Para Mahoney (1991/1998), a Hermenutica tem contribudo em muito para a
perspectiva construtivista, pois o problema do significado permanece central para o
desenvolvimento da nossa compreenso do processo de como conhecemos. Como
vimos, a questo dos sentido e do significado no abordada da mesma forma pelos
Construtivistas e pelos Construcionistas Sociais. Em um enfoque construtivista, os
significados de um usurio da linguagem so construes subjetivas, derivadas de suas
experincias individuais e de seus sucessivos processos de acomodao e adaptao. E
compreender no significa conseguir reproduzir estruturas conceituais idnticas s das
outras pessoas, mas um processo de construir ativamente. J os Construcionistas
Sociais, como Gergen, propem que analisemos o relacionamento humano como
gerador de linguagem e compreenso, pois o intercmbio humano que confere
linguagem sua capacidade de significar.
Para Gadamer (1986/1997), a compreenso surge como um acontecimento na
fuso, no encontro dos horizontes entre o intrprete e o texto. Nesse encontro, o

significado decorre da relao, do crculo hermenutico, entre aquilo que se procura


compreender com aquilo que j sabemos, assim compreendemos aquilo que j sabemos
ou entre os universais que j temos e o singular que est chegando. No existe
significado em si, passvel de ser capturado de forma correta. O que podemos expandir
nossos horizontes de compreenso, deixando que os pr-conceitos do texto influenciem
os pr-conceitos do leitor. Nessa fuso de horizontes, possvel que o leitor se torne
consciente de seus prprios pr-conceitos. A interpretao hermenutica vai se dar nesse
interjogo dialgico, no qual compreender sempre mais que a mera recriao dos
significados de algum. E, em uma conversao, ao que se chega uma transformao
para o comum, h a transformao dos envolvidos. Para que essa conversao acontea,
temos que estar abertos ao novo, surpresa, diferena, que quebremos nossos
preconceitos e que permitamos que todos os envolvidos se sintam autores e intrpretes
do vivido. Talvez, na linguagem da Gestalt-Terapia, para compreendermos precisamos
fazer contato, e o contato s se d na diferena.
Todo compreender interpretar, e todo interpretar se desenvolve no mdium de
uma linguagem que pretende deixar falar o objeto e , ao mesmo tempo, a
linguagem prpria de seu intrprete. (Gadamer, 1986/1997, p. 566/7 [392])
A importncia colocada na linguagem pela perspectiva ps-moderna imensa e
se justifica por estarmos em um perodo em que as narrativas tradicionais e os
entendimentos que tnhamos sobre ns mesmos foram todos questionados. Parece-nos
uma volta redescoberta do que j antigo na tradio, uma volta ao ouvir histrias.
Assim, dependemos da linguagem para gerar nossas prprias narrativas, mesmo
que cannicas, para conferir um sentido nossa prpria existncia. Como seres
humanos, estamos sempre envolvidos em gerar um sentido para as nossas vidas,
e fazemos isso interpretando a ns mesmos e ao mundo nossa volta, dentro do
nosso sistema de linguagem e dos campos de sentido em que vivemos.
(Grandesso, 2000, p. 181).
Aqui, registramos outras questes: como fica a questo do sujeito, da
subjetividade e, agora mais do que nunca, da intersubjetividade em um contexto em que
as mudanas parecem se dar de uma forma ainda mais rpida? Como ficam essas
questes em um contexto em que outros meios de contato esto surgindo e fazendo
parte de nossa vivncia diria, onde o sentido chega e logo vai embora e em que temos
que procurar novamente por um novo sentido?

3.5.2 As Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais


O fato de alguns psicoterapeutas hoje adotarem um nome to extenso para
procurar denominar o que fazem revela uma tentativa de integrao de saberes.
Sistema expressa a necessidade da perspectiva da totalidade. Em muitos, ao falarem
de sistema, subentendem sistemas cibernticos e, com isso, incluem a linguagem e a
perspectiva da circularidade. Uma circularidade que hoje j no a melhor metfora
para falarmos de caos e de sistemas dissipativos. Outros muitos psicoterapeutas, entre
eles: Grandesso, 2000 e Rapizo, 1999, ao invs de se sentirem obrigados a optarem
entre o Construtivismo ou Construcionismo Social, utilizam-se da possibilidade de
conjuno e, no consideram a disjuno ou. E passaram a refletir sobre a
perspectiva de auto-eco-regulao proposta pelo Construtivismo e tambm sobre os
argumentos que enfocam o social apresentado pelos Construcionistas Sociais, optando
por um enfoque que privilegia tanto o indivduo como o contexto social. Para expressar
essa conjuno e, Morin e Maturana se dizem co-construtivistas, sendo este co no
sentido de agregar o outro, o processo de intersubjetividade. E, para eles, a linguagem
algo ligado ao biolgico, faz parte do processo de auto-eco-regulao dos homens no
mundo. E o caminho para o encontro tambm por meio da linguagem, j que esta
emergiu do contato com o outro, porque, se fosse apenas para estarmos em guerra, no
precisaramos ter desenvolvido a linguagem.
Apesar de hoje o enfoque estar caminhando para uma perspectiva de encontro e
dilogo, de compreenso, interessante no abandonar as outras metforas j colocadas
ao longo do desenvolvimento da Psicoterapia Familiar, pois, quando temos um
fenmeno complexo para compreender, no podemos nos dar ao luxo de abandonarmos
perspectivas em nome de certos modismos (Sudbrack, 1995). No demais lembrar que
as metforas devem ser vistas apenas como uma representao, como sempre nos
lembraram Perls e Bateson, ao citarem Korzybski: o mapa no territrio. Mas na
Terapia de Famlia, durante muitos anos, as metforas usadas refletiam a forma com que
o terapeuta se relacionava com a famlia. Quando se comparou o homem a uma
mquina, talvez o psicoterapeuta tenha assumido o papel de programador. Hoje, o
grande foco das prticas psicoteraputicas a linguagem, muito por conta de estarmos
vivendo o mundo da linguagem Ciberntica e de que hoje o programador quer

compreender a flexibilidade da linguagem que utilizamos no dia-a-dia, que nos faz


diferentes das mquinas.
A Hermenutica tem ajudado os psiclogos clnicos a ampliar mais as reflexes
sobre o nosso principal instrumento de acesso a compreenso, a escuta, o dilogo, pois
sempre pesou sobre a Psicologia, mais especificamente sobre as Psicoterapias, a
cobrana de ser uma cincia que gerasse certezas. E, hoje, vrias cincias, da
Lingstica Fsica, falam-nos de incertezas.
Talvez a Hermenutica na Psicoterapia Familiar tenha apoiado a volta ao
encontro teraputico do ver, do ouvir, do compreender, mas que agora nasce de uma coconstruo, talvez depois uma interveno. Uma interveno que vai se co-construir a
partir das tentativas do psicoterapeuta entrar na acepo do mundo do outro, falar a
linguagem de quem o procura.
Como coloca Gadamer (1986/1997), cada lngua expressa uma determinada
acepo de mundo e a aprendizagem de cada lngua estrangeira tem que ser a conquista
de mais um ponto de vista. Quando entramos no mundo da linguagem do outro, j o
compreendemos. Compreendemos quando entramos na linguagem dos outros,
compreendemos o sentido e o uso que do para as palavras, assim como para as suas
vidas.
O grande avano destes tericos e terapeutas de famlia, de casal e de comunidades foi procurar pesquisar os sistemas ntimos e
no apenas trabalhar com as representaes que as pessoas trazem para a pesquisa ou para o contexto psicoteraputico de suas
relaes sociais. No contexto de uma Psicoterapia Familiar ou de pequenos grupos, o questionamento que se faz questo da
representao como proposta pela metafsica vivida na prtica, j que temos a possibilidade de no estarmos falando sobre o
outro, mas falar para o outro. O que se co-constri em Psicoterapia Familiar passa pelo vivido das pessoas envolvidas, inclusive
do psicoterapeuta. H um resgate do vivido, da subjetividade e da possibilidade de se co-construir um intersubjetividade durante
o processo psicoteraputico, principalmente quando se adota uma perspectiva mais conversacional. A pesquisa e a relao
teraputica partem da perspectiva do no saber para que se construa junto uma certa inteligibilidade sobre determinado
fenmeno, neste momento. Nesse contexto psicoteraputico, esto juntos para conversar vrias pessoas que, apesar de falarem
uma mesma lngua, de terem vises de mundo semelhantes, onde os significados so comuns, nem sempre conseguem
compreender o sentido para o outro de determinada palavra ou fato. E talvez o papel do psicoterapeuta seja o de catalisador de
um processo de interpretao/compreenso do outro, para que esse sistema aumente suas possibilidades de construir uma
intersubjetividade. Ser testemunha ocular desse processo o maior privilgio do psicoterapeuta de sistemas ntimos. Um
processo que no fcil, pois esperamos que as pessoas que vivem e experienciam muitas coisas juntas falem a mesma lngua e
sintam as mesmas coisas, mas isso no acontece, mesmo que a identidade de cada um esteja sendo construda nas relaes
sociais. Contudo, um processo que cria alternativas e desenvolve a curiosidade pelo mundo do outro. A crise deixa de ser
percebida como algo individual e passa tambm a ser vista como uma construo social.
Pela a narrao ou pela descrio do vivido das pessoas em interao, os fatos so re-significados, e o sentido do outro fica mais
claro para todos. O que no significa que passemos a dar o mesmo sentido, apenas que compreendemos que o seu diferente do
meu. H a possibilidade de uma reconstruo de identidades (McNamee, 1995/1998) e que os grupos redescubram as suas
competncias.

3.5.3 O encontro

No caminho percorrido, podemos perceber alguns pontos de encontro entre a GestaltTerapia e as teorias apresentadas neste captulo. Desde a perspectiva de totalidade
apresentada pela Teoria Sistmica inicial, passando pelo conceito de circularidade da
Ciberntica, at chegarmos ao Construtivismo e o Construcionismo Social.
A Ciberntica trouxe para a Terapia Familiar a nfase na troca, nas relaes.
Algo que chegou Gestalt-Terapia pelo conceito de contato, pela Fenomenologia e pelo
Existencialismo. E, com a chegada do olhar do observador proposto por von Foerster, a
questo da subjetividade de Kant chega perspectiva sistmica pela Biologia. E, assim,
os prprios bilogos, como Varela, procuraram a Fenomenologia para dialogar.
Podemos perceber que Maturana, Varela e Edgar Morin partem da subjetividade e
tambm chegam intersubjetividade.
Com a chegada do sujeito observador, as portas ficaram abertas para os
questionamentos cincia clssica. Passou-se a questionar como se d o processo de
conhecer, ou de como fazemos contato com o mundo. E assim como na Fenomenologia,
procuramos compreender o ser fora dos paradigmas que procuravam por objetividade,
por leis universais, por previsibilidade, por controle e por predio. As questes da
subjetividade, do sentido, do significado, da imprevisibilidade foram sendo trabalhadas.
E tanto a Gestalt-Terapia como as Terapias Sistmicas Construtivistas Construcionistas
Sociais esto procurando maneiras de apreender e compreender este ser-no-mundo de
possibilidades. No prximo captulo, procuramos compor outros pontos de contato entre
estas duas abordagens.

Captulo 4
Co-construindo pontes
O meu olhar ntido como um girassol,
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trs...
E o que vejo a cada momento
aquilo que nunca antes tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criana se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como um malmequer,
Porque o vejo. Mas no penso nele
Porque pensar no compreender...
O Mundo no se fez para pensarmos nele
(Pensar estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
(Alberto Caeiro, em Fernando Pessoa, 1986, p. 205)

4.1 Como esto sendo co-construdas as pontes?

Na presente dissertao, nossa inteno foi a de adotarmos uma postura


fenomenolgica para compreendermos as abordagens psicoteraputicas com as
quais procuramos estabelecer um dilogo, a Gestalt-Terapia e as Terapias
Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais. E o poema de Alberto Caeiro,
heternimo de Fernando Pessoa, reproduzido acima, resume ao nosso ver a
verdadeira inteno de uma perspectiva fenomenolgica. Nele, podemos perceber a
proposta de olharmos o vivido, de escut-lo como se fosse pela primeira vez, para
deixarmos emergir novos significados. Ainda, a proposta de estarmos abertos a
essa eterna novidade do mundo, onde no terminamos de explorar as inmeras
possibilidades e sempre temos uma perspectiva finita de um mundo infinito.

E, sobre possibilidades, verdade que a maioria dos textos com os quais


trabalhamos era conhecida, mas o fato de l-los em conjunto produziu novas
perspectivas. O ato de organiz-los e reorganiz-los permitiu-nos perceber novos
sentidos, permitiu-nos novas interpretaes. Como coloca Gadamer (1986/1997), os
textos continuaram os mesmos, o que mudou foi o sentido que foi sendo
estabelecido entre eles.
Procuramos compreender/traduzir os textos tanto para os que esto no
mundo da Gestalt-Terapia, quanto para os que transitam pelo que se tem
chamado de Terapias Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais.
Esperamos ter conseguido faz-lo. Procuramos entrar no mundo e no contexto de
cada abordagem, procuramos falar a sua especfica lngua, pois para compreendla, como j colocavam os criadores da Gestalt-Terapia, precisamos de uma acepo
gestltica do mundo (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997 - Prefcio). De igual
modo, para compreendermos os outros autores, tivemos que ter uma acepo de
mundo construtivista, co-construtivista ou construcionista social. Tentamos fazer
uma leitura compreensiva, que no a repetio de algo passado, mas a
participao num sentido presente. A compreenso de um texto ampliou a
percepo de outro, o que nos convidou a reler um texto antigo com outros olhos e,
assim, novas perspectivas foram surgindo.
A proposta de trabalharmos com os textos passou a ser muito interessante,
pois, de certa forma, foi como se os autores tivessem passado a participar da
pesquisa. Tambm, muitas vezes, um aspecto levantado por um autor nos obrigava
a retornar a outro e procurarmos por outros autores que j faziam um dilogo
semelhante de algum modo. Foi como se os autores estivessem se perguntando uns
aos outros. J a respeito de uma determinada questo, um mesmo texto, como o de
Perls e Goodman (1951/1997), foi interpretado procurando nos remeter ao perodo
em que foi escrito, mas tambm procuramos interpret-lo a partir do que se tem
escrito sobre ele. Vale registrarmos que o fato de os autores no estarem presentes
discusso possivelmente produziu compreenses que os deixariam surpresos
provavelmente (Ricouer, em Amatuzzi, 2001b). O dilogo inicial, ento, foi se
estabelecendo e percebemos que no era difcil conversarmos com as abordagens,
pois elas mesmas abrem vrios pontos de vista. So abordagens que, pelo seu
prprio aporte, no cobram muita lealdade terica, j que surgem da articulao
de muitos saberes que provocam uma necessidade de, no mnimo, escutar o novo.

Levantam questes semelhantes por caminhos diferentes, chegam a concluses


diferentes, mas, ao mesmo tempo, colocam que o conhecer no fixo e imutvel.
Durante o caminho, alguns temas que pareciam muito relevantes foram para o
fundo e outros emergiram como figura. E foi dentro dessa abertura que os
caminhos foram traados e re-traados ao longo do trabalho. Como resultado da
leitura desses diversos autores, foram sendo elaborados textos muito longos, mas
que realmente pretendiam procurar levantar as principais idias de cada uma das
abordagens com muitas citaes, pois, como psicoterapeutas, estamos interessados
em escutar. Procuramos no ir apenas atrs de dados, mas procurar
compreender cada um dos temas centrais. Em um segundo momento, esses dados
tiveram que ser organizados e sintetizados, procurando dar uma forma mais clara
a perspectivas complexas, do que decorreu que muitos aspectos foram deixados
para serem discutidos em outras oportunidades. Privilegiamos os dados que
ajudavam a construir relaes entre as duas perspectivas, principalmente no que
se referia questo da subjetividade inicialmente e, ao longo do trabalho, um
espao em relao intersubjetividade foi se organizando, j que estamos falando
de abordagens relacionais. Isto no significou que as discordncias desapareceram,
mas procuramos us-las para aquecer o dilogo, no para impossibilit-lo.
Depois de terminados os textos iniciais, de rel-los muitas vezes, percebemos
que era possvel organizar todo o material em grandes temas de interseo entre as
abordagens, j que estvamos trabalhando com a perspectiva do e e no do ou
e que os temas no so ilhas isoladas e que estavam muito relacionados entre si.
Alguns temas que j apareciam no projeto inicial deste trabalho foram emergindo,
outros foram se organizando, emergindo como relevantes ou sintetizadores de
reflexes importantes, como a questo da linguagem.
Mesmo sempre tentando contextualizarmos os textos lidos, no houve como no
fazermos recortes, dada a impossibilidade de expressarmos toda a riqueza das
perspectivas colocadas em dilogo. Mas tais recortes procuram por um novo contexto.
Neste captulo, em especial, procuramos perceber, mais uma vez, se possvel coconstruir relaes entre a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistmicas Construtivistas
Construcionistas Sociais a partir desse amplo material composto pelos recortes. Cada
uma destas perspectivas est em territrios diferentes, mas vizinhos, tem certas
descendncias em comum, mas foram colonizados por povos diferentes.

Como procuramos por uma discusso que nos ajude a refletir a prtica clnica,
pensamos este trabalho como uma ponte, ou melhor, como pontes, j que no temos
apenas um caminho para ligar um territrio ao outro. Os artesos e os mestres de obra,
para construir, precisam prestar ateno em seus materiais para perceberem se estes
podem ser trabalhados juntos, tanto no sentido de dar uma organizao construo
quanto na possibilidade de formarem uma obra de arte e de serem teis populao.
Para co-construirmos pontes, tambm precisamos de um material que seja o elo entre
todos os demais materiais. Essas pontes podem ser co-construdas porque tm como elo
uma viso de homem como ser-no-mundo e uma necessidade de trazer novamente vida
a cincia, trabalhando com a imprevisibilidade, com o novo, com a totalidade.
Comeamos a perceber que algumas pontes j foram co-construdas, que j
transitamos por elas, mas que no sabamos de sua histria. Algumas so mais largas e
claras do que outras, umas so de madeira, outras de concreto, umas so para carros,
outras para pedestres, e, em alguns trechos do rio, talvez precisemos de barcos que se
adaptem s constantes mudanas no leito e nas margens, que nos ajudem a experimentar
novos caminhos. Outras pontes esto sendo co-construdas e outras esto ainda sendo
co-projetadas neste trabalho. E esses processos de troca no podem ser interrompidos
para que possamos ampliar a compreenso do ser e as possibilidades de cuidado e de
interveno nos processos psicoteraputicos, j que a psicoterapia tem que ser
constantemente reinventada para acompanhar o vivido.

4.2 As pontes...

Percorrendo os temas que colocamos a seguir, esperamos poder propor algumas


relaes para que possamos organizar uma rea de conhecimento onde a Gestalt-Terapia
e as Terapias Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais possam dialogar para
refletirem sobre suas teorias e prticas psicoteraputicas, e que este tambm seja um
convite ao encontro com outras perspectivas, j que no faz sentido Psicologias que
visitem outros territrios, outras cincias, e que no se visitem.

4.2.1

Encontros e desencontros entre os Gestalten-Terapeutas e os


Terapeutas Sistmicos Construtivistas Construcionistas Sociais

Podemos perceber que nas duas abordagens h a presena marcante de Kurt


Lewin e sua Teoria do Campo. Lewin est sendo sempre sendo apontado como um
dos que levou a Psicologia a perceber sua dimenso social (Levy, 1997/2001).
Apesar de Lewin ser um terico muito marcante para todos os GestaltenTerapeutas, ele participou diretamente da construo da Teoria Sistmica. Hoje, a
volta dos Gestalten-Terapeutas Teoria do Campo tem ajudado a ampliar o
conceito de relao na Gestalt-Terapia. Lewin, por exemplo, props uma
metodologia de pesquisa-ao que at hoje no foi totalmente explorada pelas duas
abordagens, onde se tem a possibilidade de atuar e fazer uma pesquisa em que
todas as pessoas envolvidas no campo co-constroem um conhecimento. Essa forma
de pesquisar nos parece fazer mais sentido, inclusive para quem est como
participante da pesquisa, ajudando-nos a ter uma atitude tica na pesquisa em
psicoterapia e a deixar claro para os todos os participantes o seu papel. E assim
como h a necessidade dos pesquisadores partilharem os conhecimentos
adquiridos com aqueles que participaram da sua co-construo, existe a
necessidade de continuarem prestando o apoio psicoterpico necessrio mesmo
aps de terminada a pesquisa. Essa proposta de Lewin nos parece compatvel com
o mtodo fenomenolgico, assim como para uma perspectiva co-construtivista, j
que possibilita deixar explcita a participao ativa de todas as pessoas do campo
na construo do conhecimento.

De outras formas, os primeiros Terapeutas Sistmicos e os GestaltenTerapeutas se encontraram. Um dos pontos de encontro foi Esalen. Em Esalen, F.
Perls dividia as atenes do pblico com Virginia Satir, uma Assistente Social, que
em muito contribui para a abordagem sistmica e que manteve sua postura
humanista mesmo com o fortalecimento dos Terapeutas Estrategistas (Nichols &
Schwartz, 1995/1998). Satir e Perls agradecem um ao outro, em seus livros, a
convivncia e as trocas tericas que fizeram (Perls, 1969/1979; Satir, 1967/1980).
Outros especialistas eminentes tambm se deslocaram mais tarde para
Esalen. Entre eles, Gregory Bateson, que termina de redigir o seu livro Mente e
Natureza A unidade necessria (1979/1986) em Esalen. Alm disso, os trabalhos
dos antroplogos culturais americanos, R. Benedict, M. Mead, A. Kardiner e o
prprio Bateson influenciaram o movimento de Psicologia Humanista, a chamada
terceira fora, ao apontarem a fragilidade do conceito de normalidade, varivel de
um pas a outro, de uma poca a outra (Ginger & Ginger, 1987/1995). A Teoria
Sistmica de von Bertalanffy tambm marcou a Psicologia Humanista ao colocar o
homem como aberto s influencias do meio (Erthal, 1989).
Paul Goodman, co-autor da Gestalt-Terapia (1951/1997), foi aos poucos se
afastando da psicoterapia e suas grandes questes passaram a ser sobre o homem e
a natureza. Goodman acabou por se aproximar de Bateson, com quem
compartilhava a paixo pela Antropologia Filosfica (Stoehr, 1994/1999) e o seu
crescente interesse pelo movimento ecolgico. O projeto ecolgico definido por
Morais (1993, p.28) como: A recuperao do sentido humano do espao habitado
o projeto que percorre desde a dimenso estritamente biosfrica e de
ecossistemas, at as dimenses scio-institucionais e mentais. Assim, no achamos
surpreendente que dois dos grandes co-construtores da Gestalt-Terapia e da
Terapia Sistmica se encontrem mais tarde em torno do movimento ecolgico, que
tem como uma de suas bandeiras: pensar globalmente, agir localmente. As
Gestalten-Terapias e as Teorias Sistmicas, alm de estarem atentas relao dos
homens entre si, procuram reintegrar o homem natureza, questionando mais
uma das dicotomias criadas pela cincia moderna. Acreditamos que no faz
sentido uma psicoterapia que tambm no seja uma ecologia.
Ginger e Ginger (1987/1995), gestalten-terapeutas franceses, dedicam um
captulo de seu livro, Gestlat: uma Terapia do Contato, para explicitar o quanto a
Gestalt-Terapia est prxima do pensamento sistmico. Tellegen (1984), na primeira

obra sobre Gestalt-Terapia escrita no Brasil, denominada Gestalt e Grupos Uma


Perspectiva Sistmica, afirma que a perspectiva sistmica de von Bertalanffy pode nos
ajudar a compreender a complexidade de um grupo, j que a Gestalt-Terapia pouco
enfatizou a perspectiva social, priorizou o organismo. Este namoro entre a GestaltTerapia e a Perspectiva Sistmica antigo. Kempler (1970), Resnikoff (1995) e Zinker
(1994/2001) tm procurado construir pontes entre a Gestalt-Terapia e as Terapias de
Famlia. Alguns deles estiveram muito prximos de Whitaker e formaram o que Nichols
& Schwartz (1995/1998) chamaram de Psicoterapia Familiar Experiencial. H muito, os
Gestalten-Terapeutas procuram por outras teorias que possam ajud-los a trabalhar com
sistemas naturais, j que esses grupos apresentam peculiaridades diferentes daqueles
grupos em que os integrantes, a princpio, no tinham um contato freqente antes do
processo psicoteraputico e no trabalho com os sistemas naturais o psicoterapeuta se
afasta do grupo, mas o grupo permanece j que tem uma matriz grupal. Nesse sentido,
os tericos de Psicoterapia Familiar que adotaram inicialmente uma perspectiva
sistmica tm muito a contribuir, pois temos que estar atentos a cuidados ticos, por
exemplo, que so diferentes de uma psicoterapia individual ou de um grupo no
natural. Os sistemas ntimos j vm construindo uma intersubjetividade, mas que por
algum motivo no est sendo re-atualizada em algum aspecto.
O grande ponto de discordncia entre a Gestalt-Terapia e a Perspectiva
Sistmica foi a Ciberntica, pois esta tinha, inicialmente, uma perspectiva unitria no
princpio tudo ou nada e tambm pelo fato da Gestalt-Terapia preferir explicar as
mquinas pela funo humana e no vice-versa (Perls, Hefferline & Goodman,
1951/1997 Prefcio). A Teoria Ciberntica, assim como a percepo de que os
sistemas queriam manter a sua homeostase, como j vimos, marcou a postura
teraputica mais diretiva durante muitos anos na Psicoterapia Familiar, no sentido dos
psicoterapeutas assumirem bastante o poder de mudar o sistema. Apesar de F. Perls ter
assumido tambm uma postura mais pragmtica no processo teraputico, o processo de
mudana na Gestalt-Terapia sempre passou pela conscincia, e no apenas por uma
estratgia de mudana (Resnikoff, 1995 e Zinker, 1994/2001).
O interessante que ambas as psicoterapias foram mudando e estas mudanas
que tm levado essas abordagens a se encontrarem. A Gestalt-Terapia tem falado cada
vez mais em psicoterapia pelo encontro e percebemos o mesmo nos autores sistmicos.
Podemos ver at com surpresa um autor sistmico importante, como Minuchin, escrever
Famlias: Funcionamento e Tratamento em 1980, obra com uma postura bastante ativa

e intervencionista. E, em outro livro, escrito com Nichols em 1993, A Cura da Famlia,


podemos perceber uma terapia bastante centrada no encontro, mais do que na mudana.
Igualmente Andolfi (1994/1996), com seu livro A Linguagem do Encontro Teraputico,
surpreende a quem esperava encontrar um terapeuta estrategista como em suas obras
anteriores.
Hoje, percebemos alguns terapeutas de famlia adotando uma postura muito
influenciada pela perspectiva rogeriana, apesar de no deixarem-na explcita (Nichols &
Schwartz, 1995/1998; Jones, 1992/1999). E isso acontece inclusive entre os
Construcionistas Sociais, que adotaram muito a expresso utilizada por Anderson e
Goolishian (1995/1998) - O Cliente o Especialista A Abordagem do No-Saber. O
que vemos que hoje se tem cuidado muito para acolher a sabedoria dos sistemas
ntimos, ou como coloca, Ausloos (1996), A Competncia das Famlias.
Ao mesmo tempo, tambm percebemos a presena da psicoterapia
cognitivo-comportamental em alguns Construtivistas e Construcionistas Sociais.
Mahoney (1991/1998), por exemplo, um construtivista crtico que tem algumas
publicaes no mbito da perspectiva cognitivo-comportamental (Beck, 1997, em
Cordiolli, 1998), mas que tambm est interessado na Hermenutica. A prpria
nfase na linguagem se d, para alguns Construcionistas Sociais, em funo da
possibilidade de uma compreenso mais ampla por meio da Hermenutica e se d,
para outros, em funo do comportamento verbal ser um comportamento
observvel. E isso muito interessante, pois nos ajuda a perceber o
comportamento do sujeito sujeito s contingncias do ambiente fsico (Costa,
2002). Por outro lado, os terapeutas que tm um foco mais cognitivista procuram
mostrar que, mudando as teorias privadas que temos sobre ns mesmos, mudamos
nossas atitudes diante do mundo (Cordiolli & cols, 1998). Considerando que uma
histria nova, com novos personagens, eventualmente pode ter o efeito de alterar
nossa memria e renovar nossa direo de vida e de crena em ns mesmos (Penn,
1999), as teorias privadas e pessoais acerca de ns mesmos e de nossos mundos
residem no corao de todas as nossas experincias (Mahoney, 1991/1998). A
crtica que se faz a essa perspectiva que, muitas vezes, mudamos nossas
narrativas sobre nossas relaes ou reconstrumos seus significados, mas no
conseguimos efetuar a mudana planejada (Vasconcellos, 2002).

4.2.2 Trazer a vida para a cincia

Podemos perceber que, no desenvolvimento dos captulos anteriores, tanto a GestaltTerapia, como a perspectiva Sistmica Construtivista Construcionista Social tm teorias
que passaram a questionar as formas de se fazer cincia. Procuraram colocar junto o
conhecer e aquele que conhece, questionando as propostas da cincia moderna. Os
Construtivistas partem de Kant, que, como vimos, foi um dos primeiros a estabelecer a
crise na cincia moderna, ao questionar a possibilidade de apenas um conhecimento. Os
Construtivistas radicais deixam claro que qualquer tipo de conhecimento depende da
estrutura do conhecedor. E, em funo disso, cada um deve ser respeitado como
legtimo outro.
Partindo de uma posio mais kantiana, o olhar do observador colocado dentro
de uma perspectiva sistmica, que j falava de feedback, levou os terapeutas a falarem
em co-construo, a construo deixa de ser apenas uma construo de uma
subjetividade para ser uma intersubjetividade.
Nesse ponto, ressaltamos as intersees com a Fenomenologia de Husserl, por
criticar a cincia que dicotomizava a relao sujeito/objeto desde o primeiro momento,
querendo resgatar a subjetividade, a vida para a cincia. No decorrer da sua construo
terica, Husserl passa a desenvolver o seu conceito de intersubjetividade.
Um dos pontos que tem dificultado o dilogo de outras perspectivas com a
Gestalt-Terapia caracterizado pelos esteretipos que envolvem a Fenomenologia como
uma teoria idealista. Apesar do reconhecimento explcito da Gestalt-Terapia, de Morin
(1985/1990) e de Varela e cols. (1991/2003), a Fenomenologia de Husserl tambm
bastante criticada por outros. Santos (1987/1999) coloca que a Fenomenologia
permanece como um paradigma moderno, pois acredita que ela divida as cincias entre
humanas e naturais. No percebemos Husserl fazendo isso, talvez o chamado primeiro
Husserl. Varela e cols. (1991/2003), apesar de reconhecerem a importncia de Husserl,
colocam que ele acabou se voltando para Descartes, buscando o estudo das essncias.
Em funo disso, estes autores propem que voltemos a ateno tambm para
Heidegger e sua Fenomenologia Existencial, assim como para a Fenomenologia da
Experincia de Merleau-Ponty.
Apesar de Husserl realmente propor essa volta ao vivido e intersubjetividade, a
proposta de reduo de Husserl passa por uma etapa solipsista, mas esse um momento
e no um fim da Fenomenologia (Wuensch, 1993). isso que parece que vai ficando

mais claro na Quinta Meditao, que termina as Meditaes Cartesianas de Husserl


(Wuensch, 1993). H textos escritos entre 1905 e 1935, editados a partir de 1970, que
tambm expressam a preocupao de Husserl pelo outro (Villela-Petit, 2001). O
objetivo da reduo fenomenolgica, segundo Merleau-Ponty (von Zuben, 1984) no
nos retirar do mundo para uma conscincia pura, no um empreendimento idealista,
mas sim uma frmula de uma Filosofia Existencial.

A conscincia, para a

Fenomenologia, no deve ser compreendida como interioridade pura e sim como sada
de si.
A estrutura da reflexo radical ou fenomenolgica tem finalidades bem precisas;
antes de tudo superar o solipsismo de cunho intelectualista; em seguida superar a
construo do objeto por parte do sujeito defendida pelo intelectualismo,
afirmando enfaticamente, contra esta posio intelectualista, a preexistncia do
mundo sobre a reflexo. (von Zuben, 1984, p. 63)
A Fenomenologia continua a se caracterizar por ser uma filosofia, um mtodo
indutivo. E por ser uma filosofia da experincia, anterior a qualquer explicao
cientfica, procura compreender as vrias cincias, possibilitando um dilogo com elas e
com as filosofias. Uma compreenso que se d no dilogo, pois so sempre construes
que no esto prontas e nem acabadas. Cada vez fica mais claro que, para
compreendermos o humano, precisamos compreender a natureza e vice-versa. Pois,
como bem coloca Santos (1987/1997), todo conhecimento autoconhecimento e todo
desconhecimento autodesconhecimento.
Morin avanou muito nesse dilogo com as diferentes cincias, e um mtodo
utilizado para a compreenso de algo no mundo pode ajudar outro pesquisador a
transgredir os mtodos considerados cientficos por sua cincia. O que vemos de
comum em todos esses autores serem como Morin, uma espcie de contrabandistas de
saberes. Morin (2001/2002), quer agregar as ltimas descobertas da cincia aos
questionamentos de Heidegger sobre o ser. Como anarquista, F. Perls tinha sempre em
vista o homem como ser social e, como aluno de Goldstein, sempre enfatizou o corpo
em relao.
Assim, no nos basta uma cincia que tenha um imenso conhecimento
controlvel do mundo se este fica desarticulado da questo do sentido do ser. Um
sentido de ser que chega e logo vai embora, que nos faz continuar perguntando sempre.
A partir da perda do sentido do ser que o pensamento encontra seu apelo para pensar.
S diante de um vazio de sentido para o ser, que torna insignificantes os significados

tcitos e outrora claros de todas as coisas, que o pensamento se lana na aventura de


saber, de conhecer. Por isso que no faz sentido um saber que conhece e que no
conhece quem conhece.
No faz sentido um conhecimento que, ao invs de aproximar, distancia o que
est prximo. Um conhecimento que separa o homem do mundo, que o tira do mundo
para explic-lo ou o contrrio. Ento, vemos tanto a Gestalt-Terapia como as Terapias
Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais com essa mesma preocupao de
articular saberes, para dar conta da complexidade do viver no mundo, procura de uma
cincia que no apenas explique, mas que aumente as nossas possibilidades de
compreenso. Acreditamos que o dilogo entre as diferentes abordagens da Psicologia
possa ampliar nossos horizontes. E, principalmente, que hoje tambm temos no conceito
de cincia a intersubjetividade. Ou de uma objetividade que fruto da intersubjetividade
dos que procuraram fazer cincia, porque uma cincia que no dialoga vira um princpio
dogmtico, morre como cincia. O que d vida para a cincia o dilogo entre as
pessoas que a fazem. Nos captulos anteriores, vimos as mudanas que ocorreram na
Gestalt-Terapia e nas Terapias Sistmicas e certo que no fazemos psicoterapia hoje
como a faziam os primeiros psicoterapeutas. o dilogo entre as teorias, entre as
prticas psicoterpicas e, principalmente, o dilogo com os participantes do processo
psicoteraputico que movimenta questes como: quais so os objetivos do processo
psicoteraputico? Como fazer psicoterapia(s) que d(em) conta de acompanhar e
compreender as constantes transformaes da experincia? Precisamos de um agir
criativo, que acompanhe o que vem, no apenas o que se foi. Precisamos de uma
psicoterapia viva, que se movimente para dar conta do movimento dos seus fenmenos.
Acreditamos que podemos dizer que a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistmicas
Construtivistas Construcionistas Sociais esto caminhando em direo ao que tem sido
chamado por Santos (1989; 1987/1999) de paradigma emergente, j que caracterizado
por um modelo interativo, onde h um observador participante que procura por outros
participantes. Tanto a Gestalt-Terapia como as Terapias Sistmicas Construtivistas
emergem de perspectivas que j procuravam encontrar modos de descrever, de captar o
homem e o mundo em constante transformao. Procurando fazer uma cincia que
depois de Nietzsche teve que lidar com a provisoriedade, com as incertezas, com a
variedade, com a impossibilidade de controle, um mundo sem fundao. Onde caos e
organizao no so vistos como processos dicotmicos, j que de um surge o outro.

4.2.3 O todo criativo e suas partes igualmente criativas

Enfrentar a angstia de lidar com a totalidade um dos pontos de convergncia da


Gestalt-Terapia e da Perspectiva Sistmica. Os Construtivistas e Construcionistas
tambm no tiraram o homem do campo, do contexto, muito pelo contrrio.
Saram de uma cincia que procurou dividir para explicar para uma cincia de
compreenso, pois o mundo, de antemo, tem o sentido do todo. As mutaes e o
fluir constantes so enlaados sinteticamente, constituindo a conscincia unitria,
do puro e do simples ser-no-mundo. Quando estabelecemos as correlaes, uma
sntese de horizontes, faz sentido estarmos no e descobrirmos o mundo (Husserl,
1936/1984). Como descrevemos o vivido, o mundo de totalidade, de complexidade,
no qual no podemos separar o ser do mundo e nem o mundo do ser? Este o
grande desafio das duas grandes abordagens, j que a totalidade no se explica,
apenas se relaciona, apenas se compreende. Talvez procuremos compreender o ser
fazendo um humanismo, mas um humanismo que no dissocie homem e natureza.
Consideramos Smuts (1926/1996) o grande integrador de todos esses saberes
que temos colocado at aqui. Ele foi um dos divulgadores do termo holismo6 no
ocidente. Mas, em nenhum momento, Kurt Lewin, von Bertallanfy e Edgar Morin citam
Smuts em seus escritos (Robine, 1993). E Morin tambm foi um grande integrador de
saberes que, como Smuts, procurou integrar conhecimentos que vo do tomo ao
universo para compreender o humano. Morin procurou um mtodo que buscasse um
princpio integrador. J para Smuts, esse princpio integrador era a Totalidade.
Em 1926, Smuts j colocava que pretendia elaborar um trabalho que no
fosse nem de Filosofia, nem de cincia, mas sobre um ponto de contato entre elas.
A partir das reflexes de Bergson e de Darwin e do que estava surgindo na
Qumica e na Fsica de sua poca, Smuts nos introduziu nas questes da
criatividade e da temporalidade, to discutidas neste trabalho. Para Smuts, no
fazia sentido uma cincia que colocasse toda a nossa criatividade no passado e a

Do grego holos, tudo de que derivam entre outros, no latim: solidus, inteiro, slido; salvus, intacto,
so e da salve, saudao, cumprimento, solidare, unido (Ginger & Ginger, 1987/1995).

fizesse a predeterminao do futuro. Segundo ele, uma cincia que faz isso exclui
do futuro toda iniciativa, toda novidade e toda criatividade. Tambm exclui do
universo toda a possibilidade de criatividade e evoluo. Smuts prope uma cincia
que descreva a evoluo criativa, que liberte o presente e o futuro da escravido do
passado e que faa da liberdade uma caracterstica inerente do universo. Para
tanto, Smuts busca um fator que foi negligenciado, o holismo, que expressa a
tendncia sinttica do universo, j que no faz sentido uma cincia que dissocie
matria, vida, mente e personalidade. E essa a principal idia que Bateson
(1979/1986) tambm expressou em seu livro: Mente e Natureza A unidade
necessria.
Uma das caractersticas que unem matria, vida e mente o fato de serem
eminentemente ativas, criativas e funcionarem sobre o princpio da totalidade,
desenvolvendo uma ao sinttica, ordenadora do universo. A atividade a essncia do
universo. A caracterstica fundamental do holismo que o todo est na parte e a parte
est no todo. A sntese do todo e das partes refletida to bem na funo da parte
quanto na do todo. Aqui ficam claras as relaes com a teoria do campo, termo j
utilizado inclusive pelo prprio Smuts. Assim, o conceito de totalidade transforma
completamente o conceito de causalidade, pois quando uma causa atua no todo, o efeito
resultante no meramente um rastro da causa, mas transforma-se em um processo.
Para Smuts, o resultado mais importante dessa idia de todo mostrar o quanto a
natureza e a evoluo so criativas. Na totalidade, as necessidades ou determinaes
externas so transformadas em self-determinaes ou liberdade. A criatividade
simplesmente a deduo do conceito de totalidade e caracteriza a ordem dos todos no
universo, que vai da origem de uma nova espcie de organismo at os grandes valores,
que so criaes do todo no nvel espiritual. Ou, como coloca Morin, a criatividade a
nossa plurideterminao que nos d liberdade.
No entanto, o holismo se caracteriza mais por estabilidade dos grandes tipos, a
novidade pequena comparada ao seu conservadorismo essencial. Todos os novos tipos
surgem da estabilidade das estruturas preexistentes, basta perceber a questo da
hereditariedade. Assim, holismo mais represso das variaes do que criatividade.
Ento, vamos perceber o holismo na temporalidade, pois no tempo que se percebe o
sentido da criatividade e da conservao. Portanto, Smuts j deixava claras as questes
da preservao e mudana tambm descritas nos conceitos de auto-regulao e
autopoiese.

Smuts enfatizou que todo o processo de auto-regulao do organismo no


deve ser creditado mente, j que ela um desenvolvimento recente do holismo. A
personalidade emerge na srie holstica da evoluo a partir da matria, vida e
mente, e no pode ser vista como um fenmeno dissociado do corpo. A
personalidade ideal somente surge onde a mente irradia o corpo e o corpo nutre a
mente, e os dois so um na suas transformaes mtuas (Smuts, 1926/1996, p.261,
traduo nossa). Como um rgo de totalidade, a personalidade tem as mesmas
caractersticas das outras totalidades como criatividade e liberdade. A integrao
que a Gestalt-Terapia prope com o corpo est muito ligada a essa tese de Smuts e
acreditamos serem compatveis com as idias de Morin, Maturana e Varela.
Tambm devolvendo o homem natureza, encontramos Merleau-Ponty,
Morin, Maturana e Varela. Em suas teorias, a mente est incorporada, a cognio
emerge da corporeidade, expressando-se na compreenso da percepo como
movimento e no como processamento de informao. O movimento tem a
capacidade de organizar o organismo como todo em uma nova unidade corpomente. Pela ao do nosso corpo conhecemos o mundo. O processo de compreenso
algo inerente ao ser e, no processo psicoteraputico em Gestalt-Terapia,
procuramos ajudar na restaurao dessa percepo da totalidade que permite a
compreenso, para que a intencionalidade operativa ou o processo de awareness
espontnea seja restabelecido.
Os encontros dos autores estudados com a teoria de Smuts chegam mesmo
teoria das narrativas. Smuts props uma nova disciplina que estudaria as biografias das
personalidades humanas como todo, buscando uma sntese ao invs de uma anlise. Isso
porque, para Smuts, a personalidade era fundamentalmente um rgo de autorealizao, auto-restaurao, mas ainda muito jovem em relao ao processo de
evoluo. Segundo ele, o nosso processo de auto-regulao criativo, mas estamos
apenas no incio dele. Consideramos, ento, que Smuts queria nos alertar para o fato de
que s podemos perceber o homem no tempo, de que modo o homem foi organizando,
assimilando e metabolizando todo o material recebido e transmutando-o criativamente.
O estudo das narrativas pode ajudar clientes e psicoterapeutas a
perceberem o sentido do viver no tempo, j que as escolhas que fazemos s tm
sentido no tempo. No podemos dividir a nossa histria em pedaos, ou em
aspectos, j que somos uma totalidade. A personalidade, para Smuts, apesar de ser
a expresso de uma totalidade, expressa tambm uma criatividade individual, que

no pode ficar de fora. Por isso, consideramos que o holismo de Smuts no reduzia
pela totalidade, como nos alerta Morin. Vimos com Morin que Pascal j nos
alertava que as partes no podem ser negligenciadas e que, muitas vezes, o todo
pode ser menor que a soma das partes. Realmente corremos esse risco quando
reduzimos tudo pelo social, externo ou pelo individual, biolgico. Acreditamos que,
pelo seu pioneirismo, Smuts optou por deixar explcita a questo da totalidade,
mas no negligenciou a singularidade.
a partir de Smuts que o conceito de auto-regulao se faz presente na teoria
organsmica de Kurt Goldstein, que tanto marcou a Gestalt-Terapia. Esse conceito
tambm est presente nas teorias de Maturana e Varela, mas com uma nfase ainda
maior na criatividade. Maturana cunhou o termo autopoiese para expressar a capacidade
dos organismos criarem a si mesmos, que apesar de estarem em um acoplamento
estrutural com o meio so sistemas fechados do ponto de vista informacional. Morin
introduziu o termo eco (derivado do termo grego oics, que significa morada ou espao
habitado) no j conhecido conceito de auto-regulao para deixar claro que a autoregulao se faz na relao com o meio. Acreditamos que as contribuies de Morin e
de Maturana ampliam bastante esse conceito, garantindo que no seja percebido apenas
como uma adaptao ao meio, assim como no o exclui desse processo. Integrando
todas estas reflexes ao conceito de auto-regulao, talvez seja mais adequado falarmos
em auto-eco-poiese.
Esse conceito de auto-regulao questionado pelos Construcionistas Sociais.
Apesar de ressaltarem a necessidade de percebermos o ser em seu contexto, o foco dos
Construcionistas o contexto social. A Gestalt-Terapia, Morin e Maturana e Varela
rompem com essa dicotomia interno e externo, devolvendo o homem natureza pelos
conceitos de auto-regulao, autopoiese e auto-eco-regulao. Como veremos a seguir,
uma das grandes diferenas entre o Construtivismo e o Construcionismo Social que o
primeiro parece partir do indivduo para o social e o segundo parte do social, procura
ficar na perspectiva do social para compreender a construo das identidades.

4.2.4 As questes levantadas pelos Construcionistas Sociais

As relaes entre o Construtivismo e o Construcionismo Social esto interessando


a outros Gestalten-Terapeutas. Um texto bastante interessante, de autoria de

Sheila McNamee (2002), foi publicado no International Gestalt Journal. Como


vimos no Captulo 3, McNamee uma das principais representantes do
Construcionismo Social e, no referido texto, questiona uma obra de Gordon
Wheeler (2000), Gestalt-Terapeuta de Cleveland, Beyound Individualism: Toward a
New Understanding of Self, Relationship and Experience. Acreditamos que os
questionamentos que ela faz a essa obra de Wheeler podem ser ampliados para a
Gestalt-Terapia, j que Robine (2001a) tambm considera que Wheeler procura
fazer uma teoria do campo, que se aproxima da perspectiva construtivista.
McNamee (2002) tambm considera que o que Wheeler prope est mais prximo
do Construtivismo do que do Construcionismo Social, j que o primeiro considera
o grande significado dos intercmbios sociais como processo de criao do nosso
mundo, mas tem um firme resduo de individualismo intacto.
Lembramos que o Construcionismo Social estabelece um contraste com a
proposta do Construtivismo por abandonar completamente a noo da origem
individual e, ao invs de ficar atento aos indivduos e s suas estruturas cognitivas,
prope comear por entender os intercmbios humanos, as construes sociais a
partir do exame das nossas narrativas e compreende o senso de individualidade, os
construtos internos ou nossas crenas, como que emergindo desses relatos. Essa
viso radicalmente relacional e entende que nossas crenas e as estruturas
biolgicas no so mais do que recursos conversacionais que esto incorporados na
nossa vida relacional. Tais formas de realidades relacionais estabelecem a noo de
selves individuais como construes que nascem do nosso engajamento com os
outros.
Para McNamee (2002), uma abordagem que enfatiza a experincia,
indivduos com capacidade biolgica de awareness em vez da linguagem, dos
discursos (i.e., o que as pessoas fazem juntas) no est indo muito alm da
perspectiva individual. Somente uma abordagem que oriente seu foco para as
relaes e para o social apreendida e usada pelos indivduos. Somente vai alm do
individualismo uma abordagem que considere que nossos discursos tradicionais
criam um tipo particular de realidade e que perceba que a viso de indivduo que
temos um subproduto de uma abordagem particular da linguagem mais do que
uma descrio da natureza essencial da realidade. McNamee considera que o
individualismo difcil de ser desconstrudo, porque no o questionamos,
simplesmente o consideramos natural. Uma das razes para isto o fato de nosso

corpo oferecer fronteiras bvias que nos separam dos outros, o que est muito
arraigado no nosso modo de pensar ocidental. Alerta-nos McNamee que isto nos
leva a conduzirmos psicoterapias individuais, educarmos mentes individuais,
punirmos indivduos no seu trabalho e mantermos responsabilidades individuais
por todas as aes.
Consideramos bastante significativas as ponderaes dessa Construcionista
Social j que nos levam a refletir se realmente temos trabalhado por uma
psicoterapia para alm do individual. Mas fica a pergunta: ser que uma
psicoterapia que adote uma perspectiva social, que divida a responsabilidade com
o social, tem que deixar de falar de auto-regulao, awareness, j que entendemos
que este processo um processo de auto-eco-organizao, auto-eco-poiese? O
Construcionismo Social tambm nos parece correr o risco de colocar as pessoas no
social, mas tir-las do universo, da natureza. Gonzlez Rey (2003) se mostra muito
preocupado com esse foco na linguagem e no social e nos pergunta que valor os
Construcionistas Sociais do ao que est fora da linguagem, como a emoo por
exemplo.
De alguns pontos de vista, acreditamos que a Gestalt-Terapia j procura
colocar em prtica o que os psicoterapeutas de famlia esto procurando ao
integrarem as perspectivas Sistmicas, Construtivista, Construcionista Social,
procurando compreender as relaes do campo sob mltiplas perspectivas.
Quando a Gestalt-Terapia prope um self como o integrador de vrias funes
id, ego, personalidade , parece expressar a necessidade de compreendermos o ser
em relao por meio de mltiplas dimenses. Assim no faz sentido para a GestaltTerapia, assim como para a proposta de Pensamento Complexo, ou para a Biologia
do Conhecer, ficarmos restritos apenas dimenso da linguagem, do social, mesmo
que partamos do princpio de que a emoo uma construo social, se no
estivermos atentos ao biolgico. Uma nova narrativa vai afetar o nosso sentir e,
com isso, a nossa ao, assim como uma nova ao vai criar novas narrativas. Uma
psicoterapia voltada apenas para a narrativa pode ser solipsista ao nos tirar do
universo que nos liga vida. Como vimos, Smuts e Goldstein, ao proporem o
conceito de auto-regulao, pretendiam religar o homem natureza e no
enfatizar as dimenses individuais. Talvez tenhamos que pensar em teorias alm
do individual que percorram caminhos alm do social. Que procurem
compreender as complexidades do ser e do mundo nas vrias dimenses, nas j to

faladas dimenses biolgica, psicolgica e sociolgica. E tambm a dimenso to


presente na vida das pessoas e to pouco presente na cincia, a espiritual, alm de
outras que hoje j vivemos, mas que no as vemos, ou no conseguimos descrevlas.

4.2.5 O individual e o social


Podemos perceber que estas questes entre o individual e/ou social continuam trazendo
enormes discusses, semelhantes s que j tivemos entre a Psicanlise e o
Behaviorismo, que inclusive levou a psicoterapia humanista a ser chamada de terceira
fora, como uma alternativa intermediria entre essas duas outras abordagens, ao se
propor a trabalhar o ser-no-mundo.
De l para c, chegou-se a falar da morte do sujeito. Depois foi se
esclarecendo que tal morte no era a da pessoa, mas a de um sujeito colocado como
fonte de certeza. Porm, toda essa discusso, que procuramos retratar um pouco
no Captulo 1, foi bastante interessante para que pudssemos continuar
repensando os processos de subjetivao, agora dentro de um contexto mais amplo,
incluindo o social, o poltico, o econmico, estes mais do que nunca presentes com a
fora da mdia, alm dos contextos biolgico e espiritual. Temos um novo
conhecimento sobre o universo e de seu constante processo de mudana, portanto,
no h mais como pensar o sujeito como imutvel, muito menos como isolado no
mundo. As reflexes sobre o sujeito tm nos levado a pensar essencialmente na
inveno de novas possibilidades de vida, novas possibilidades de estarmos no
mundo. E, como colocava Foucault (segundo Deleuze, 1992/2000), s poderamos
evitar a morte e a loucura quando fizssemos da existncia um modo, uma
arte, porque no haveria sujeito, mas uma produo de subjetividade que, como
vimos no Captulo 1, deve ser produzida quando chegar o momento, justamente
porque no haveria sujeito. Por isso, uma arte de si mesmo seria totalmente o
contrrio de si mesmo, ou, se existisse um sujeito, seria um sujeito sem identidade.
Estamos falando da necessidade de estarmos disponveis para a fluidez do contato,
em um processo contnuo de co-constituio e co-construo do sentido e do
significado.

Com as discusses sobre a presena da dimenso social na construo da


identidade, tornou-se mais relevante, para alguns autores, falarem sobre o sujeito
sujeitado ao social, do que do sujeito ator do social. No entanto, parece-nos que
uma perspectiva no elimina a outra, j que realmente somos sujeitos e sujeitados
do cenrio social. Mesmos os tericos que procuram deixar clara a presena do
sujeito, como Morin ou o Construtivista Radical von Glasersfeld (1994/1996), no
perdem de vista a questo do contexto, da linguagem. A Teoria da Complexidade
de Edgar Morin prefere falar que h uma distino e no uma separao na
relao individual/social. No entanto, Morin nos alerta, ainda, que no podemos
ser reduzidos pelo todo, pois tudo passa a ser visto pelo social. Lembra-nos Morin
que, para conhecermos o todo, temos que conhecer as partes. von Glasersfeld
relata a sua prpria experincia de ter sido uma criana que foi criada convivendo
com trs idiomas e isso fez com que ele percebesse que, quando falava italiano,
parecia ver o mundo de uma maneira distinta da de quando falava ingls ou
alemo. Tambm Maturana e Varela partem de um organismo, mas um organismo
que j fruto de acoplamentos estruturais, ento um organismo que nasce do
mundo. Muitos terapeutas sistmicos hoje tambm adotam uma perspectiva
construtivista construcionista social por perceberem a necessidade da no
dicotomizao entre o social e o individual e de uma epistemologia complexa, que
possa tomar o individual e o social como complementares e interdependentes
(Grandesso 2000).
A Fenomenologia e, em decorrncia, a Gestalt-Terapia sempre procuraram
enfatizar a relao ser-no-mundo. E, a esse respeito, Merleau-Ponty (1945/1976) coloca
que no existe homem interior, o homem est no mundo. O homem lugar onde o
mundo acontece. O homem o lugar de uma identidade pblica e cada um , tambm,
o lugar de possibilidade de uma identidade peculiar. Estamos em um crculo
hermenutico onde o existir se desdobra no crculo ininterrupto de ser apenas o
pblico, quer dizer, perder-se a si mesmo, e resgatar-se (Critelli, 1984). No processo de
desvelar-se, o homem se conhece e, desvelando a si prprio, ele pode compreender o
outro (Heidegger, 1927/2001).

4.2.6 Subjetividade e intersubjetividade

Descartes inaugurou as grandes questes em torno do eu, nas quais o eu a conscincia


da relao consigo mesmo, a subjetividade (Abbagnano, 1992). A partir das questes
levantadas sobre esse eu que conhece e dvida, temos Kant questionando a
possibilidade de um conhecimento objetivo. Admirando e questionando estes dois
grandes pensadores, Husserl props-nos colocar esse sujeito no mundo, j que ambos
haviam-no deixado de fora, sem relao. Pois diferentemente de Husserl, Descartes e
Kant tornaram o mundo imanente ao sujeito, em lugar de admirar-se dele. Apesar de
Kant j ter demonstrado que a percepo interior impossvel sem a percepo exterior,
o que distingue Kant de Husserl, que para o primeiro a unidade, a sntese do mundo,
vivida como j feita ou j dada (Merleau-Ponty, 1945/1994).
Descartes e sobretudo Kant desligaram o sujeito ou a conscincia, fazendo ver
que eu no poderia apreender nenhuma coisa como existente se primeiramente
eu no me experimentasse existente no ato de apreend-la; eles fizeram aparecer
a conscincia, a absoluta certeza de mim para mim, como a condio sem a qual
no haveria absolutamente nada, e o ato de ligao como o fundamento do
ligado. (...) Nessa medida, ela deixa de aderir nossa experincia, ela substitui a
um relato uma reconstruo. (Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 4/5 Prefcio)
Para a Fenomenologia de Husserl, o mundo est ali antes de qualquer anlise
que possamos fazer dele. E a verdade no habita apenas o homem interior, dado que
no existe homem interior, o homem est no mundo, no mundo que ele se conhece.
O Cogito deve revelar-se em situao, e apenas sob essa condio que a
subjetividade

transcendental

poder,

como

diz

Husserl,

ser

uma

intersubjetividade. (...) O verdadeiro Cogito no define a existncia do sujeito


pelo pensamento de existir que ele tem, no converte a certeza do mundo em
certeza do pensamento do mundo pela significao do mundo. Ele reconhece, ao
contrrio, meu prprio pensamento como um fato inalienvel, e elimina qualquer
espcie de idealismo revelando-me como ser no mundo.(Merleau-Ponty,
1945/1994, p. 9 - Prefcio)
Assim, vemos que tanto a Fenomenologia como o Construtivismo partem da
necessidade de compreendermos o processo de conhecer e de questionar as propostas do
que chamamos no Captulo 1 de sujeito do Iluminismo. Por sua vez, o Construtivismo
de Maturana e Varela parte dos questionamentos de Kant e acrescido pela dimenso
biolgica,

que,

segundo

Maturana,

possibilita

provarmos

cientificamente

subjetividade, inicialmente procurando por leis, mas encontrando indivduos e mundo

em um constante vir a ser. A Biologia do Conhecer procurou mostrar que alterando a


nossa biologia alteramos a nossa percepo, a nossa emoo e, com isso, o nosso
domnio de ao. Maturana (1998; 2001) ento nos convida, assim como Husserl, a
colocar nossa objetividade-entre-parnteses para aceitar o outro como legtimo outro.
Segundo Maturana, essa aceitao mtua, a que denomina amor, que permitiu a
constituio do social, o espao de preocupao com o outro, a intersubjetividade.
Ao fazermos as relaes entre Kant, como um dos pais do Construtivismo e
um terico fundamental para a organizao da Fenomenologia, no conseguimos,
apesar de ser muito arriscado, deixar de pensarmos nas relaes entre construir e
constituir e co-construir e co-constituir.
Parece-nos que o construir tem sido usado para expressar o mundo que
cada um constri, pelo menos esse o sentido que do os construtivistas,
principalmente os radicais, para quem cada um constri o seu mundo. Os que se
colocam como co-construtivistas, como Maturana e Morin, tm essa preocupao,
mas tambm pretendem compreender como se d a intersubjetividade ou como coconstrumos o mundo, a compreenso na relao com o outro.
Como vimos acima, Husserl tambm parte de um momento solipsista na
reduo fenomenolgica, onde nos constitumos, e vai deixando mais claro o
conceito de intencionalidade, onde a conscincia sempre a conscincia de alguma
coisa. Parte para uma nova fase da reduo, onde vamos co-constituir o mundo nas
relaes intersubjetivas.
O que faz com que surja uma co-intencionalidade de grupo, o sentido
mesmo da grupalidade, cmoda coletividade e da socialidade (sic). (...) essa
co-intencionalidade de grupo a prpria intersubjetividade, que
fundamento da objetividade e, portanto, da cincia. (Schmidlin, 1999,
p.112)
Percebemos que tanto os Construtivistas, como os Fenomenlogos e com
eles os Terapeutas Sistmicos Construtivistas e os Gestltistas esto cada vez mais
atentos em procurar compreender no apenas a subjetividade, mas a
intersubjetividade. A Gestalt-Terapia quando prope um self relacional est nos
colocando que nos co-constitumos no contato com o outro. Como j apontamos, o
mesmo acontece com os Construtivistas que no querem perder a dimenso do
sistema, alm de procurar na Teoria da Construo Social de que forma somos
uma construo social.

Outra curiosidade que tem nos mobilizado, j que estamos falando de


Construtivismo e de Fenomenologia, se h diferenas entre constituir e construir.
A propsito, encontramos na obra de Husserl (1936/1984), em sua traduo em
castelhano, os dois termos e, na citao abaixo, as duas palavras aparecem lado a
lado.
(...) em suma, uma unidade, um todo constitudo, construdo a partir de sujeitos
egicos que se interpenetram reciprocamente na medida em que a vida de um
acompanha a vida do outro e dela participa; a egoidade de um no est ao lado
daquela do outro, mas vive e a age nela. (Husserl, 1973/2001, p. 279, em VillelaPetit, 2001,p. 139, grifos nossos)
O que queremos ressaltar que Husserl, usando construir ou constituir,
quis enfatizar a unidade homem-mundo. Quando falamos em constituio de
sentido ou de significado, por exemplo, estamos atentos experincia que uma
experincia-no-mundo j que a relao no composta de duas partes, existe
apenas como totalidade. Mas essa relao com o outro realmente parece ficar mais
ntida quando usamos os termos co-construir e co-constituir.
A prpria cincia assume hoje que, se existe um fundamento para a objetividade,
a crtica intersubjetiva. Objetividade o resultado de um processo crtico
desenvolvido por uma comunidade cientfica em busca de consenso (Morin, 1990/2000,
Husserl em Villela-Petit, 2001), uma narrativa comum. No podemos nos esquecer que
consenso o oposto de terror, no posso impor a minha narrativa como a mais correta
(Lyotard, 1979/200). Esse tambm o caminho de um processo psicoteraputico ou de
uma pesquisa que parta de um ponto de vista fenomenolgico, ou co-construtivista, j
que procuram por um encontro, pela intersubjetividade. O processo psicoteraputico a
possibilidade de co-constituirmos ou co-construirmos uma intersubjetividade em um
ethos acolhedor, de pertencimento, onde aceitamos os outros e seus mundos como
legtimos. Pois, apesar de termos um sistema nervoso semelhante, que nos permite
compreendermos e resgatarmos a dimenso intencional, subjetiva, que nos torna
humanos, essa mesma biologia tambm faz com que percebamos de forma diferente.
Para a Fenomenologia de Husserl, a intersubjetividade tambm chega a partir do
corpo. O fato de no termos acesso direto ao outro, faz com que estabeleamos um
vnculo intencional de semelhana entre o nosso corpo fsico e o do outro.
Compreendemos o outro a partir de algo que j conhecemos, no por um raciocnio de

analogia, pois o conhecimento nessa situao direto e imediato (Schmidlin, 1999). O


ser j ontologicamente ser de compreenso.
Husserl e Heidegger deixam claro que somos seres-no-mundo, que h um eu que
est imediatamente presente e outro que est conosco num campo comum por meio do
seu corpo. Somos seres de compreenso, pois devido a essa constituio ser-com a
existncia do outro est aberta para ns, como a nossa est para o outro. Somos
formados na intersubjetividade, compartilhamos um mundo significativo (Schmidlin,
1999).
Pelo conceito de contato, a subjetividade j chega Gestalt-Terapia com
intersubjetividade, reconhecemo-nos como sujeito na relao com os outros. Alm
disso, a Gestalt-Terapia sempre esteve atenta maneira como se d esse processo, no
s na dimenso da linguagem, mas tambm na dimenso corporal. A Gestalt-Terapia
sempre se ligou no fato de no estarmos atentos no apenas ao que falamos, mas ao
como falamos. Acreditamos que as relaes que a Biologia do Conhecer faz entre
intersubjetividade e auto-regulao ratificam a importncia dada pela Gestalt-Terapia
procura de estar atenta a todas as dimenses do ser de compreenso e no apenas ao ser
de linguagem. Segundo a Biologia do Conhecer, a linguagem (a intersubjetividade)
provavelmente surgiu na busca por alimentos. Assim como uma linguagem uma
construo social de um grupo, ela toca a cada um dos componentes desse grupo de uma
forma singular. Maturana procurou sair das premissas dualistas e tambm estabelecer
uma continuidade entre o biolgico e o social ou cultural, entre o emocional e o
racional, e entre a emoo e a ao. E para Maturana (1998), o que chamamos de
racional so as nossas premissas aceitas a priori, porque agradam a algum, so aceitas
pela preferncia de algum. Ento, mais do que escolhas pragmticas, nossas escolhas
so estticas7, como colocavam Bateson (Allman, 2000) e os psiclogos da Gestalt
(Zinker, 1994/2001). So escolhas que fazem sentido, tem um significado.
Assim como Maturana, Varela e Morin, a Gestalt-Terapia sempre esteve muito
atenta em unir o que foi separado, em estabelecer as ligaes entre a possibilidade de
falar sobre algo, objetificar e representar a emoo e a sensao presentes nessa ao.
Perls e Goodman (1951/1997), ao descreverem as diferentes funes do self,
procuravam explicitar melhor as relaes entre as nossas vrias capacidades, sensriomotora-cognitivas, e descrever o self como o articulador entre essas diferentes
7

Esttico do grego aisthetiks, sensvel, sensitivo. (Novo Dicionrio Aurlio de Lngua Portuguesa,
1986).

habilidades de funcionamento. As narrativas que fazemos sobre determinado fenmeno


esto to ligadas ao nosso sistema sensorial, ao que sentimos, quanto marcaro nossa
ao no mundo. Compreender , portanto, estabelecer relaes de sentido. No apenas
um ato cognitivo, j que podemos at explicar um determinado fenmeno, mas
podemos no compreend-lo, no encontramos nele o sentido. O processo de
intersubjetividade, de dilogo, na Psicoterapia Gestltica, uma busca que envolve
todos os sentidos, o corpo na relao com o mundo, para que a ao tenha sentido,
direo.
Tambm temos conflitos quando h excesso de sentidos e um no emerge como
o mais significativo, deixando-nos confusos, sem direo. Muitas vezes, isso ocorre
quando estamos com dificuldade de articular entre os diferentes elementos presentes na
fronteira de contato, quando temos de perceber, por diversas razes, a totalidade com
todos os sentidos. Precisamos de todos os sentidos, pois como coloca Morin
(1994/1996a), com os olhos somos capazes de ver de maneira complexa. Mas no
somos capazes de pensar de maneira complexa (p. 285). Em funo disso, os GestaltTerapeutas, alm de ficarem atentos s narrativas, que a princpio esto ligadas funo
personalidade, a rplica verbal do self, procuram estar atentos s outras dimenses do
ser, inclusive ao modo como co-construmos nossas formas de contato com o mundo.
Apenas para lembrarmos, vale registrarmos que o Construcionista Social
K. Gergen rejeita as teorias sobre intersubjetividade, pois considera que
expressam o resultado de duas subjetividades, como as que defendem o significado
como produto das mentes individuais. Sua proposta diz respeito coordenao
comum no lugar de subjetividades individuais (Grandesso, 2000, p. 166).

4.2.7 As questes do self: a permanncia e a mudana, o self


encapsulado, o self contato e o self como construo social
O conceito de self tem se constitudo um tema central na maioria das teorias
psicolgicas da rea clnica (Guanaes & Japur, 2003). Segundo Mahoney
(1991/1998), as revolues cognitiva, emocional e do desenvolvimento tm
novamente redirecionado os rumos da Psicologia Experimental para o interior
do organismo, como uma forma de integrar e transcender os dualismos
dentro/fora e mente/corpo, o que fez com que o self fosse (re)descoberto. Nessa
(re)descoberta, tm sido introduzidos novos termos, tais como autopoiese,

proprium e si mesmo, na tentativa de evitar conotaes do termo j em uso. De


uma forma geral, como j vimos, a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistmicas
Construtivistas Construcionistas Sociais descrevem as relaes do ser-no-mundo
em permanente mudana, procurando no mais por uma essncia do self, mas
como apreender, compreender o self ou os selves em suas transformaes ao longo
da existncia. Um conceito de self que s pode ser compreendido como um
processo temporal.
Como colocamos ao longo do trabalho, outras questes esto surgindo. Uma
das principais : como, apesar de estarmos sempre em mudana, experimentamos
a sensao de singularidade e de permanncia? Morin (2001/2002) acredita que a
experincia da unicidade singular a coisa humana mais universalmente
partilhada e no elimina a possibilidade de integrar nossa subjetividade pessoal em
uma mais coletiva. O sujeito funda-se quase que simultaneamente da relao da
auto-afirmao do eu e da relao com o outro.
Varela e cols. (1991/2003) colocam que a cincia nos afirma que no h
condies de se pensar um self individual, j que estamos em constante mudana em um
mundo sem fundao, para nos utilizarmos dos termos Nietzsche. No entanto, narramos
e experimentamos, principalmente no ocidente, essa sensao de individuao. E, apesar
de estarmos em constante mudana, entramos em pnico quando h alguma ruptura.
Ento, como conciliarmos o fato das cincias nos colocarem que estamos sempre
mudando com a nossa experincia e o fato de que, pelo relato da narrativa do nosso
vivido, expressamos uma sensao de continuidade, de permanncia? Essa possibilidade
que temos de narrar, nos objetificarmos, parece-nos favorecer a possibilidade de
articularmos sentidos entre o que fazamos h 20 anos atrs e o que fazemos hoje. A
mesma linguagem que representa, apresenta as outras possibilidades de sentido que
vamos conferindo nossa experincia. Como j vimos, Varela e cols. (1991/2003)
acabam propondo um caminho do meio, pelo qual procuram integrar tanto o que vem da
experincia quanto o que vem da cincia.
Ser que as questes so apenas essas? Ou temos a sensao de indivduo porque
apesar de no estarmos separados do meio, distinguimo-nos dele, j que temos at
mesmo um sistema imunolgico que sinaliza aos indivduos o que de dentro e o que
de fora. No h distino quando organismo e meio esto em uma relao fluida e a
awareness espontnea operando, como temos descrito em Perls e Goodman
(1951/1997), mas, quando h muitas tenses no campo, essas distines aparecem. A

posio de Maturana e Varela (1987/1995), nos seus primeiros textos, era de que a
estrutura dos organismos muda no tempo, mas h uma organizao, uma certa clausura
operacional permanece e condio de autonomia, no entanto, consideram que mesmo
na regularidade h criao, h imprevisibilidade.
Outra possibilidade para o fato de experimentarmos a sensao de
singularidade a de estarmos em permanente acoplamento estrutural com o
mundo, no qual temos de constante o fato do indivduo e do mundo mudarem e
essas mudanas que nos possibilitam experimentar a permanncia. Quando
mudamos de um lugar para outro, tambm experimentamos uma sensao de
estranhamento decorrente da necessidade de um acoplamento estrutural que nos
exige novas snteses criativas.
Na Gestalt-Terapia, na Biologia do Conhecer e na Teoria da Complexidade
o self est tanto ligado aos aspectos biolgicos quanto aos sociais e culturais, isto ,
est envolvido no processo de auto-eco-poiese. Na Gestalt-Terapia, usamos o
conceito de self para expressarmos essa capacidade dos indivduos e do meio
realizarem snteses criativas. O self um conceito que procura incorporar o
homem natureza, ao seu corpo e no apenas ao contexto social, como ressaltam
os Construcionistas Sociais. E como j vimos, para esse ltimo grupo, o self
construdo nas prticas discursivas, pelas posies que as pessoas negociam
ativamente em seus relacionamentos. Sendo assim, a noo de identidade como
unidade substituda pela possibilidade de mltiplas descries de selves, que se d
em co-autoria com o social.
Acreditamos que o que essas teorias tm em comum que esto alertas ao que
Varela e cols. (1991/2003) colocam quanto ao risco que corremos quando partimos da
idia de um self com fronteiras, que tem como objetivo trazer para dentro das fronteiras
tudo de bom e colocar para fora tudo que consideramos ruim. Tanto na Gestalt-Terapia
quanto

nas

Psicoterapias

Sistmicas

Construcionistas

Construtivistas

Sociais,

percebemos uma ateno especial para ampliar o conceito de self, procurando descrever
o ser em relao com o meio. No entanto, ainda corremos o risco de fazermos uma
psicoterapia que trabalhe apenas o auto-suporte, mesmo com um conceito de self
ampliado, ou de confundirmos independncia com a ausncia de vnculos (Schmidlin,
1999).

Todavia, como coloca Laura Perls (Rosenfeld, 1977), sem suporte ambiental
no h contato. Quando no cuidamos dos seres, ou quando essa assistncia se d
de modo deficiente, h um afastamento do outro. E talvez isto tenha nos
conduzido iluso que a condio do homem fosse a solido, o solus ipse, a
conscincia constituda a partir de si mesma em sua individualidade. Por isso a
compreenso do outro foi entendida como empatia, penetrao no outro a
partir de si prprio, ou talvez uma mera ...projeo do prprio ser para si
mesmo em um outro (Heidegger, Sein und zeit, p.124). (Schmidlin, 1999, p.
129)
Isso nos faz refletir sobre qual psicoterapia queremos co-construir. Uma que nos
leve ao solipsismo (de solus ipse, ser s), ao egocentrismo e ao narcisismo ou uma
psicoterapia do ser-no-mundo, com uma tica da solidariedade e de hospitalidade.
Esperamos que, para o segundo tipo, as pessoas no precisem de uma morada isolada do
mundo para se sentirem felizes. E que o homem, que j se afastou da natureza por temla, no se afaste tambm dos outros. Ento, por vivermos em uma sociedade que
incentiva o olhar egocntrico, a busca da felicidade interior, temos que ter um cuidado
tico ao tematizar a subjetividade, para no fazermos do sujeito uma interioridade
egosta (Freire, 2001).
A Gestalt-Terapia e as Teorias Sistmicas Construtivistas Construcionistas
Sociais tm perspectivas tericas que permitem fazer uma psicoterapia com o outro.
Mas, como ainda estamos muito dentro de um paradigma individualista, mesmo falando
em sistema, campo e ser-no-mundo, voltaremos a fazer uma psicoterapia solipsista se
no estivermos muito atentos. J parece ser fcil descrever essas relaes com o social
como um permanente vir a ser, mas descrev-las no significa que j faamos uma
psicoterapia relacional, solidria, da no excluso, que aceite mais o outro, que o acolha,
que o confirme.
Quando no fazemos as relaes entre o sofrimento individual e o social,
estamos aumentando o grau de alienao e no ajudando o indivduo a ser um senhor de
si (Crochk, 1998). Porque, apesar dessa aparente individualidade e liberdade divulgada
pela mdia neoliberal, talvez nunca tenhamos estado to sujeitados ao social, que
determina em termos mundiais o que belo, o que tico, o que felicidade. E sabemos
que cmodo, em um mundo neo-liberal, que cada um cuide apenas de si, que no
procure pelo outro, que no cuide do outro. Estamos vivendo em uma cultura que nem
sempre incentiva o dilogo, mas que permite amplamente apenas o monlogo da mdia

dando diretrizes sobre o que devemos fazer. Isso pode nos levar a um encapsulamento
das pessoas. Para nos darmos conta das diferenas que temos, mesmo pertencendo a
uma mesma comunidade e do prprio poder da cultura dominante sobre os pequenos
grupos, precisamos do encontro, do contato com o outro, para que tambm os pequenos
grupos co-construam o significado de estarem no mundo. Quando cada grupo ou pessoa
no aceito como legtimo outro, tambm h um descuido, como j colocamos acima,
aumentando a nossa sensao de estarmos totalmente separados uns dos outros, onde
fale apenas a tica da sobrevivncia individual, se que podemos chamar a isso de uma
atitude tica, j que esta no se d sozinha, implica uma relao.
Uma psicoterapia que cuide apenas da primeira pessoa do singular, do eu, pode
esquecer do ns. O que no significa que uma psicoterapia do ns deva se esquecer dos
seres em sua singularidade transgressiva, que mudam o ns. Nesse caso, estaramos
sendo reducionistas pela totalidade.
Gergen, como um psiclogo social, ressalta as caractersticas do self como uma
construo social, o que consideramos bastante importante, j que tambm temos que
perceber o como somos e estamos sujeitados ao mundo. Alguns interpretam a presena
do Construcionismo Social nas psicoterapias familiares como uma desconstruo do
sujeito, no entanto, no isso que percebemos. Como j comentamos no incio deste
captulo, o que fazem Anderson e Goolishian (1994/1996) e Andersen (1995/1998;
1995; 1996), no reduzirem tudo ao social, mesmo tendo como foco uma
compreenso social. Contudo, mostram-nos que a psicoterapia pode envolver tambm
uma interveno social. Nesse sentido, Packman (1999), outro terapeuta que est
envolvido com o Construcionismo Social, mostra-se um mestre em trazer o social para
o contexto psicoteraputico, ao pedir, por exemplo, que um dos seus clientes de um
grupo entreviste pessoas com quem convive diariamente e relate suas concluses.
So belssimas as descries das experincias de muitos terapeutas promovendo
o que chamam de interveno em rede, trabalhando com grupos multifamiliares, por
exemplo, apoiando-se na capacidade autogestora dos grupos. Segundo Dabas (1995),
quando comeamos a pensar em termos de rede, comeamos a reconstruir nossa prpria
trama social danificada e a criar dispositivos que nos permitam elaborar nossos medos
e ajudar os demais a faz-lo; a desalojar de nosso corpo esse estranho instalado, que nos
torna rgidos na nossa ao, instaurando a desconfiana como modo bsico de nos
relacionarmos (p. 6). Esse processo de construo coletiva possibilita a otimizao das
relaes sociais e um processo de construo permanente, tanto individual quanto

coletivo, no qual vamos definindo um problema comum, construindo novas alternativas


e um sentido de estarmos juntos.
Outra forma de trazermos o social para a psicoterapia fazermos psicoterapia do
grupo, onde podemos achar condies para as pessoas trabalharem a partir das relaes
grupais e no apenas fazer o que Ribeiro (1994) denomina psicoterapia individual em
grupo.
Consideramos que realmente temos que estar pensando e atuando no sentido de
no apenas teorizarmos sobre um self em interao com o mundo, mas procurando
novas formas de estarmos fazendo psicoterapia do contato, das pessoas em relao.
Faz-se importante, ainda, conectarmos o que colocam os tericos da
Gestalt-Terapia, Maturana e Varela e Morin sobre um self incorporado ao corpo e
natureza. Na Gestalt-Terapia e em Varela e cols. (1991/ 2003), esse self, si mesmo
ou a mente incorporada esto muito ligados Fenomenologia, em especial a
Merleau-Ponty, quando este descreve e ressalta a importncia da intencionalidade
operante. Para Merleau-Ponty a intencionalidade operativa uma relao
espontnea em que a subjetividade, o outro e as coisas sensveis entrelaam-se e se
diferenciam sob um fundo de indeterminao e ambigidade (Muller-Granzotto,
2003, p. 19). Perls, pelo conceito de awareness espontnea traz para a GestaltTerapia o que Husserl e Merleau-Ponty denominaram de intencionalidade
operante ou em exerccio, que a visada do objeto em ato, ainda no refletida,
nossa awareness sensrio-motora. Algo que por ser to natural, intuitivo, prreflexivo, manifesta-se compreensvel, sem explicaes. Nessas situaes, parecenos que no h separao, tudo contato e o self exerce suas funes de sntese e
integrao com fluidez. O mesmo conceito parece estar presente em Maturana e
Varela (1987/1995) quando colocam que todo conhecer uma ao da parte
daquele que conhece, o conhecer um ato pr-reflexivo, que liga o ser ao mundo.
Conhecemos com o corpo, nossa mente uma mente incorporada (Varela & cols,
1991/2003), entendendo que o corpo no s uma entidade biolgica, j que
capaz de se inscrever e se marcar histrica e culturalmente (Kastrup, 1999).
Espontaneamente sintetizamos, temos uma intencionalidade operante entre ns e o
mundo.
Na Gestalt-Terapia, um dos objetivos da psicoterapia restituir essa
intencionalidade operante, por meio de uma awareness que funcione no modo
intermedirio (nem ativa, nem passiva), o funcionamento espontneo em que no

h a separao organismo/ambiente. Uma reconexo que no se d apenas pela


representao, mas pela experincia do vivido. E, por isso, importante que a
linguagem do processo psicoteraputico seja a da no representao, mas aquela
que flui, que no distingue o falar do pensar. Uma linguagem que se alimenta do
cotidiano e o modifica, deixando que a existncia nos fale. Uma linguagem que no
apenas explique os fatos, mas que restaure o ser de compreenso.

4.2.8 Linguagem e dilogo Constituindo, construindo, co-constituindo


e co-construindo sentidos e significados
Sintetizando o que j colocamos, vemos na Gestalt-Terapia, em Maturana e Varela e em
Morin uma linguagem, um processo de conhecer e de dar significados que parte do
corpo, uma linguagem incorporada. E a linguagem foi ocorrendo na histria dos homens
at mesmo pela necessidade de buscar e partilhar alimentos, mas ela que s ocorreu em
funo da emoo, do amor, que fundamental na histria dos homens (Maturana e
Varela, 1987/1995). A linguagem surgiu pela necessidade do encontro, justamente
porque, segundo os citados autores, no precisamos dela para brigar. Ento, assim como
a linguagem, a cognio tambm emerge da corporeidade, expressando-se na
compreenso da percepo como movimento, emerge da enao e no com o
processamento de informaes. No existe, portanto, a questo do dentro e do fora no
pensamento e na linguagem, j que o pensamento no nada de interior, ele no
existe fora do mundo das palavras (Merleau-Ponty, 1945/1996, p. 249). No existe
experincia sem fala ou sem testemunho, pois: Se a emoo escolhe exprimir-se pela
afonia, porque a fala , dentre todas as funes do corpo, a mais estreitamente ligada
existncia em comum ou, como diremos, coexistncia (Merleau-Ponty, 1945/1996, p.
222).
Os Construcionistas Sociais tambm focam a linguagem, no porque tudo
linguagem, mas por considerarem-na como o que mais compartilhamos com o outro e
que da relao entre as pessoas que vo sendo construdos os processos de
significao. Para os Construcionistas Sociais, sempre que acreditamos que estamos
contando uma histria singular, fazemo-la utilizando toda uma linguagem que j
imposta pelo nosso contexto social. Desse modo, a perspectiva ps-moderna assumida
pelos Construcionistas Sociais renuncia ao conceito de identidade pessoal (Gergen,

1995/1998). Alm disso, como j colocamos, procuram sair da metfora do olhar para a
linguagem, o que implica conversao. O deslocamento da ao para o significado para
a linguagem provocou nos Terapeutas Sistmicos uma menor urgncia para se controlar
as famlias com a desculpa de ajud-las (Nichols e Schwartz, 1995/1998), e dessa forma
est havendo uma migrao para a narrativa, para o dilogo, para a conversao e para a
compreenso.
Nesse sentido, a importncia dada linguagem significativa, j que ela nos
d acesso ao refletir sobre as vrias possibilidades de estarmos no mundo. Ou,
como coloca Gadamer (1986/1997), a linguagem um centro em que se renem o
eu e o mundo. No entanto, Perls e Goodman. (1951/1997), alertam-nos para no
ficarmos apenas na linguagem da representao, desconectada da experincia, e
sim na linguagem que um ponto de encontro para falarmos e compreendermos o
vivido. Destarte, a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistmicas Construtivistas
Construcionistas Sociais esto falando hoje de uma linguagem no apenas como
representao, mas de uma linguagem que possibilita a representao e tambm as
mudanas, que permite que fiquemos no especulativo trabalhando as mltiplas
possibilidades (Gadamer, 1986/1997).
F. Perls e Bateson j liam Korzybski que procurava trabalhar sobre a conscincia
das significaes mltiplas. A tcnica proposta pela Gestalt-Terapia parece perceber os
aspectos patolgicos da verbalizao, na qual o processo de simbolizao ou de
representao pode estar desvitalizado. Em funo disso, h uma tentativa de procurar
integrar as sensaes corporais, as emoes e as verbalizaes para possibilitar ao
sujeito mais vitalidade e espontaneidade (Loffredo, 1994). No estamos falando de uma
fala sobre alguma coisa, mas a fala de um vivido. A ateno da Gestalt-Terapia a
mesma de Merleau-Ponty (1972, em Amatuzzi, 2001b) em que necessrio reencontrar
a fala como palavra viva, onde h emoo, j que nela que o sentido se formula pela
primeira vez e passa a estar disponvel para os outros. Para Merleau-Ponty (Amatuzzi,
2001b), o que existe por trs da palavra no o pensamento e sim a inteno de
significar, ou seja, a mobilizao para falar, o desejo, pois, como coloca Goolishian (s/d,
em Andersen, 1995, p.10), no sabemos o que pensamos antes de o dizermos.
Quando mudamos a nossa emoo, mudamos de domnio de ao em que nos
movemos. Quando aceitamos nossa biologia, podemos perceber que no o nosso
corpo que nos limita, mas ele que possibilita a nossa observao, a nossa conscincia,

a nossa linguagem e a nossa ao. Tambm podemos saber que o que ouvimos
igualmente marca a nossa biologia, alm de marcar as nossas relaes sociais. Nosso
entendimento , sempre e de alguma forma, emocionado. A compreenso sempre ocorre
num estado de nimo. A presena do homem no mundo sempre emocionada (Critelli,
1996, p. 93).

4.2.8.1 Sentidos e significados

Muitos so os autores que ligam o processo psicoteraputico questo da busca


do sentido e do significado hoje, como Levy (1997/2001), Grandesso (2000) e Gonzlez
Rey (2003). Para Levy (1997/2001), a psicoterapia no vai dar sentido, vai procurar
libertar o poder criador e as potencialidades inesperadas contidas na linguagem, para a
qual o sentido nunca foi reduzido a uma mercadoria. Grandesso (2000) descreve o
processo psicoteraputico como uma reconstruo do significado, j que h a mudana
de um significado para o outro e, com isso, a emergncia de uma nova narrativa. Os
Construcionistas Sociais consideram que esse processo de significao sempre emerge
das relaes, o que expressa o ttulo da obra de McNamee e Gergen (1995/1998),
Terapia como Construo Social.
A Gestalt-Terapia procura recuperar um ser que significa, um ser produtor de
significaes, e no apenas atualizar significaes, pois quando no estamos satisfeitos
procuramos a psicoterapia para resgatarmos o nosso poder de sermos doadores de
sentido, ou, como diria F. Perls, reencontrarmos o nosso sbio interior. O objetivo da
terapia que a pessoa diminua suas representaes e reencontre o sbio, no uma
mudana de paradigma prescrita por algum. No entanto, como uma abordagem
fenomenolgica, do campo, sabemos que esse reencontro do poder de dar sentido e
significado s faz sentido na relao com o outro, j que em situaes de conflito no
campo que vamos perdendo essa capacidade de darmos sentido e significado
espontaneamente, tambm nas relaes que vamos restaur-la. Consideramos que,
para a Gestalt-Terapia, a questo no apenas dar significados, considerando que os
significados abrigam universais. Como na Gestalt-Terapia, tambm procuramos
possibilitar a compreenso por um crculo hermenutico em que partimos de um
significado comum, universal, partilhado por todos, para compreendermos o sentido
particular para cada indivduo ou grupo sobre um determinado fenmeno. Acreditamos
que, dessa forma, estamos sempre em busca de um sentido e de um significado, do

singular e do universal, j que os novos sentidos que as pessoas vo dando a


significados antigos tambm os vo alterando. O novo, ento, vai surgindo nessas
transgresses que vamos fazendo na linguagem, isso que possibilita que ela esteja
sempre se renovando.
Como vimos, essa viso de crculo hermenutico, proposta por Heidegger, est
presente tambm nos trabalhos de alguns terapeutas que se denominam Construcionistas
Sociais (Hoffman, 1995/1998; Andersen, 1995; Anderson & Goolishian, 1995/1998)
para expressar que estamos sempre dando novos sentidos e significados ao vivido e ao
ser por intermdio das narrativas. Provavelmente, nesse sentido que Dutra (2002)
considera que podemos utilizar a narrativa como uma tcnica de pesquisa
fenomenolgica, pois a palavra diz a experincia, ou a experincia chama pela palavra,
apesar de no dizer tudo de uma experincia. Cada vez que narramos a nossa histria,
fazemos de forma diferente, os sentidos dos fatos vo mudando, vamos reconstruindo,
reconstituindo e recriando sentidos e significados. Algo que nos deixou tristes ontem,
hoje j pode ser visto com satisfao, posto que mudamos com o contexto e que este
tambm muda com a nossa ao. E essa busca desse sentido, que chega e vai embora,
que nos mobiliza para a reflexo, para a aventura do saber e do conhecer em um mundo
sempre aberto a um horizonte de possibilidades. Por isso, no podemos correr o risco de
nos fixarmos na tentao da certeza, o que pode at baixar as nossas angstias, mas nos
limita.
Apesar de vivermos cercados por meios de comunicao, a escuta do outro como
pessoa e no como um tcnico ou um expert em algum assunto, pode ficar cada vez
mais distante. Os sentidos e o significados, em muitos casos, j chegam prontos, no so
realmente co-constitudos, co-construdos na relao com o outro. Como colocava F.
Perls, certos valores so introjetados, engolidos, como sendo do grupo ou de uma
pessoa. No entanto, as pessoas no sentem tais valores como seus, apesar de poderem
comear a atuar em funo deles. Nessas situaes, em geral, temos uma atuao que
no emergiu de um sentido construdo, mas engolido, como diria F. Perls, no tem
direo. Essa ao pode levar a uma relao, mas nela no h um encontro, uma efetiva
co-construo, j que para o encontro h a necessidade da escuta do outro como pessoa,
de perceber a sua presena e nos fazermos presentes. Quando isso no ocorre, podemos
perceber que:
O homem est invalidado, ningum escuta mais os homens, mas apenas
economistas, ontologistas, socilogos e outros idiotas da mesma espcie. A

indignidade derradeira aconteceu e a parte obteve primazia sobre o todo.


(Brown, 1972, p. 89, em Morin, 1991/2001, p. 87)
A tradio oral cedeu lugar ao desenvolvimento dos meios de comunicao de
massa. A narrativa foi preterida pela informao rpida e o contador de histrias, por
exemplo, est desaparecendo no nordeste brasileiro (Campos, 2002). Ainda assim,
talvez mais do que nunca, estamos precisando de todas as formas de psicoterapias que
facilitem aos indivduos a produo e a compreenso dos nexos de sentido, dispersos
em suas mltiplas histrias, j que estas podem constituir espaos privilegiados de
permanncia da experincia narrativa na contemporaneidade para a reinveno de
formas singulares de subjetividade (Campos, 2002) e de intersubjetividade. As
narrativas s fazem sentido quando so partilhadas e co-construdas com a do outro.
Sabemos que no faz sentido darmos sentido a um social se este no tiver ligado
ao ser por uma simples explicao, no algo natural que seja fruto de uma fala autntica,
palavra viva (Amatuzzi, 2001b), de algo nunca dito, mas que seja uma nova
compreenso, um novo sentido, que parta do vivido da experincia das pessoas em
relao. Para que um sentido, um significado, seja co-construdo em grupo, em uma
comunidade, faz-se necessrio que as pessoas realmente se encontrem. Contudo,
vivemos num mundo em que, se no tomarmos cuidado, estaremos dando cada vez
menos espao para encontrarmos os outros.
Na velocidade das mudanas em que vivemos, parece-nos que temos pouco
tempo para articular e digerir tantas informaes, o que pode nos provocar uma
sensao de inadequao, descompasso, justamente porque j se operou o descompasso
entre a realidade sensvel e a expressiva (Campos, 2002). A sociedade requer respostas
rpidas, produo, exigindo que as pessoas se rotulem e que no pensem
dicotomicamente muitas vezes. Somos cobrados a sentir, a perceber e a agir sem
ambigidades, como se pertencssemos ao mundo do ou, como, por exemplo, ou
amamos ou odiamos, o que pode nos obrigar a transitarmos entre os extremos em
intensidades onde ora estamos totalmente satisfeitos e, no momento seguinte, nada nos
satisfaz.

4.2.9 Para onde estamos indo? Como esto mudando os processos de


subjetivao, de intersubjetivao e de construo social?
Vivemos hoje um processo de intensa globalizao, informao e virtualizao. Ao
mesmo tempo, continuamos a experienciar certas sensaes que acreditamos serem
semelhantes s que sentiam os primeiros homens na face da Terra, como a fome, por
exemplo. Mas, como estamos vendo ao longo deste trabalho, as descries e vises que
vimos tendo sobre a concepo de sujeito, de subjetividade e de intersubjetividade tm
mudado e vo continuar mudando. Hoje, mais do que nunca, sabemos que temos que
encontrar maneiras de compreendermos a permanente mudana, o imprevisvel, o caos
ou como bem expressa o verso de Alberto Caeiro, sentimo-nos nascidos a cada
momento para a eterna novidade do mundo.... Estamos, portanto, voltando a Herclito,
pois nos mesmos rios entramos e no entramos, somos e no somos.(Cf. 49a,
Herclito, Alegorias, 24, em Coleo Os Pensadores Pr- Socrticos, 1999, p. 92).
Acreditamos que o grande tema deste trabalho como compreendemos
fenmenos em movimento, j que tanto a Gestalt-Terapia como as Terapias Sistmicas
Construtivistas Construcionistas Sociais, como processos psicoteraputicos, pretendem
criar condies para que indivduos e grupos dem continuidade a esta fluidez no existir
para que aceitemos o caos e o mundo sem fundao, para usufruirmos o melhor das
relaes. Abandonando as tentativas de controle, que procuremos pela compreenso.
Estaramos voltando a Xenfones, que j no sculo VI a.C. colocava que no
temos maneira de chegar ao mundo externo seno pela nossa experincia dele (von
Glasersfeld, 1994/1996). Temos que lembrar tambm de Protgoras, que j afirmava
que o homem era a medida de todas as coisas. Interessante, ainda, o fato de estarmos
nos perguntando para onde estamos indo e estarmos falando tambm de uma volta.
claro que uma volta diferente, pois apesar de ser uma volta ao humanismo,
subjetividade, o homem no mais a nica medida de todas as coisas, j que estas
passaram a ser relacionais.
J no estamos mais dentro do princpio identitrio moderno que tentava
preservar a subjetividade em sua essncia. A grande velocidade em que ocorrem as
mudanas tem desestabilizado e questionado as subjetividades, que precisam reinventar
novas maneiras de existir. A Fenomenologia, o Existencialismo e a Sociologia foram
nos mostrando que no fazia sentido descrever um sujeito ou uma subjetividade

descontextualizada e estvel. Hoje, j no podemos falar de uma subjetividade


constituda na base da dissociao da experincia do caos. Falamos de uma
subjetividade intrinsecamente processual, na qual j no possvel separar o
pesquisador do seu objeto de observao, caracterizando o incio da permisso do
sujeito na cincia. Vimos que atualmente temos discutido muito o que Hall (1992/2002)
denomina de o sujeito ps-moderno, cuja identidade formada e transformada
continuamente em relao s formas pelas quais representado ou interpelado nos
sistemas sociais que o rodeiam.
As Gestalten-Terapias e as Terapias Sistmicas Construtivistas, Construcionistas
Sociais se encontram no procurar dar conta de compreender o ser nessa constante
transformao. Estas abordagens j saram do processo de explicar para o de
compreender. No entanto, as mudanas continuam e temos que estar abertos para
agregar as novas experincias s anteriores. Pierre Levy (1990, em Kastrup, 1999), um
dos grandes tericos do mundo virtual, coloca que o computador vai ser, cada vez mais,
uma mquina de produo da cognio e da subjetividade e, por isso, considera
pertinente no falarmos mais hoje num sujeito cognitivo, mas sim em um coletivo
pensante homens-coisas, j que o processo de conhecer no se passa na interioridade
de um indivduo, mas circula na rede. Em debates na internet, hoje encontramos
questionamentos sobre se faz sentindo falarmos em direitos autorais, j que o que
estamos falando sempre uma construo social.
Atualmente, tambm temos a linguagem ciberntica nos permitindo gerar
imagens e viver em um mundo virtual (Virilio, 1994/1996), como o dos simuladores e o
dos jogos eletrnicos. A imagem tem tomado conta das nossas vidas e a prpria
televiso j ocupa mais os lares dos brasileiros do que a geladeira. Parecemos que, agora
que estamos comeando a viver na caverna de Plato.
Diante do contexto atual, o que consideramos importante deixar claro que as
questes de sujeito, de subjetividade e de intersubjetividade, ou ainda da construo
social, foram ganhando vrias formas ao longo da histria humana e novas formas esto
chegando. Alm disso, o mundo virtual no distante. At porque, segundo Damsio
(1999/2000), um fisiologista que tambm tem discutido a interao do ser-no-mundo,
antes de organizar a linguagem o homem j conta as suas histrias pelas imagens
mentais. Em funo disso, Damsio questiona a nfase que tem se dado linguagem.
Do mesmo modo como falamos muito em narrativas hoje, poderemos utilizar-nos de

outras metforas mais adiante, como as virtuais, para a compreenso do sentido de


estarmos no mundo. Por tal razo que temos de continuar abertos, pois esse processo
de compreenso do sujeito, do ser, da pessoa e do social tem que ser percebido como
um contnuo vir a ser. Para compreendermos as pessoas ou os grupos com os quais
estamos em interao no processo psicoterpico, precisamos continuar antenados com
os novos processos de construo, de constituio ou de co-construo de sentidos e de
significados. E, ainda, lembrarmos que uma nova perspectiva no elimina a anterior e
nesse sentido que precisamos de perspectivas complexas, como a gestltica de
compreenso do ser.
A proposta de Rolnik (1995a, em Kastrup, 1999) de uma prtica clnica
comprometida com a criao de modos de subjetivao mais permeveis experincia,
onde a escuta deve se abrir no para o que somos, mas para aquilo que estamos em via
de construir (Kastrup, 1999). Ou, como coloca Schmidlin (1999, p. 155),
(...) tornar-te o que podes ser, torna-te o que tens como possibilidade vir a ser,
exerce tuas possibilidades! Esse preceito, colocado dessa forma, aponta para o
futuro e no para o passado, tem em mente o ser como projeto e abertura para o
indefinido. Com algumas condies: que o que temos a ser sempre j
mundano, social, histrico e elaborador de sentidos (...).

4.2.10 Para qual psicoterapia estamos trabalhando?


fato que novos pontos de vista esto surgindo, que experimentamos relaes diferentes das vividas h 100 anos, no incio clnica
psicolgica. No h, pois, como no estabelecermos outros pontos de vista e estarmos sempre repensando o processo
psicoteraputico, j que nele uma perspectiva apenas mais uma entre outras.
Procuramos descrever como tem se dado a construo da subjetividade, da intersubjetividade por considerarmos que,
mais que uma discusso terica, as diversas perspectivas tericas apresentam uma viso de homem e de mundo que acaba por
nortear a operacionalizao de uma prtica psicoteraputica. Tambm podemos perceber que a proposta de uma nova perspectiva
no eliminou a anterior. No porque falamos de um homem em interao com o social que a perspectiva iluminista no est mais
presente porque ainda temos um modelo de cincia que esteve muito tempo ligado ao individual. Mesmo teorizando sobre as
relaes entre o social e o individual, as pessoas continuam annimas, alienadas, s que agora no meio da multido. Vivemos uma
intensa globalizao e, ao mesmo tempo, alguns colocam que a descrio do indivduo narcisista faz parte da descrio da sociedade
contempornea (Freire, 2001). Estamos em um mundo individualista, as pessoas sentem as mesmas angstias, mas no contam para
as outras (Campos, 2002). O que faz com que tal fenmeno se verifique e qual o papel das psicoterapias nesse fenmeno a grande
questo que levantamos ao final deste trabalho.

Ainda temos uma Psicologia que ora glorifica o homem e incentiva a busca
de uma felicidade individual, ora o responsabiliza pelo seu mal resultado na escola,
pela sua sade mental no adaptada ao meio. Mesmo na Gestalt-Terapia e nas

Terapias Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais, que enfatizam as


relaes e o contato, podemos ver psicoterapeutas propondo intervenes bastante
solipsistas. Por exemplo, o fato de Perls solicitar aos seus clientes que falassem
apenas na primeira pessoa do singular, passou a impresso, para muitos, de que o
processo que estava centrado apenas em uma pessoa. No entanto, quando um
cliente usa a expresso a gente, pode estar falando tambm em ningum em
particular, pois, nos termos de Heidegger (1926/2001), nossa vida no transcorre
basicamente no mundo pessoal, mas num coletivo (p. 131). Ou esse cliente pode
estar realmente falando de um sentimento que apenas seu, mas que tem
dificuldade de express-lo como singular.
At mesmo os Construcionistas Sociais tm recebido crticas por estarem
focando as narrativas individuais. Para Minuchin (1999, em Vasconcellos, 2003),
as psicoterapias narrativas tm ficado encantadas com a perspectiva individual e
mesmo os Construcionistas Sociais tambm so ambguos ao no enfatizarem
sempre a co-construo no grupo. Para Vasconcellos (2002), temos que avanar
efetivamente da subjetividade das narrativas individuais para a intersubjetividade,
para a co-construo de uma narrativa consensual para o sistema.
Agora est sendo colocada uma outra possibilidade, onde tudo social e os
indivduos, nesse sentido, teriam pouco poder para proporem mudanas, como se
uma possibilidade eliminasse a outra. Esse fenmeno tambm fez parte de uma
fase inicial da psicoterapia de famlia, na qual parece ter havido uma reduo pelo
todo, j que pouca ateno era dada aos seus membros. Para Andolfi (1992), o
primeiro passo do movimento familiar foi afastarmo-nos do indivduo para
estudarmos as relaes no interior da famlia e de outros sistemas significativos.
Segundo ele, talvez agora devamos voltar a estudar o indivduo e seus processos de
diferenciao enriquecidos por uma perspectiva relacional, na qual possamos ir do
indivduo para a famlia e da famlia para o indivduo.
Apesar do foco do processo psicoteraputico estar sempre se alterando, o grande
ponto de contato entre a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistmicas Construtivistas
Construcionistas Sociais o desejo de trabalhar a relao indivduo/meio partindo do
campo ou do sistema. No entanto, de acordo com o psicoterapeuta ou com o contexto do
processo psicoterpico, a figura vai ser o indivduo ou o meio, ou o contato entre
ambos. Para outros, s h mudana para um paradigma relacional quando entendemos
que nossas crenas e as estruturas biolgicas no so mais do que recursos

conversacionais que esto incorporados em nossa vida relacional (McNamee, 2002).


Nessa segunda linha de atuao, a questo que trazemos : ser que no estaramos
reduzindo novamente a uma nica perspectiva, a social, quando abandonamos a
perspectiva biolgica ou individual? No falando sobre os aspectos biolgicos, e
focando apenas a linguagem, no estamos nos retirando da natureza? Deixando de falar
das emoes, j que a elas no temos um acesso fcil, ou por serem consideradas uma
construo social, no estaramos reduzindo pelo social?
Contudo, mesmo os Construcionistas Sociais no abandonaram o indivduo e
essa perspectiva fica clara quando o cliente (um indivduo ou um grupo) passa a ser
visto como especialista (Anderson & Goolishian, 1995/1998), com capacidade de autoregulao. Na Gestalt-Terapia, sempre se falou em sabedoria organsmica, e os
Gestalten-Terapeutas procuram compreender o sentido ou o significado de determinada
postura dos clientes no seu contato com o mundo, j que tal postura provavelmente foi o
melhor arranjo que se podia fazer em determinada situao. Ento, antes da mudana, os
Gestalten-Terapeutas propem a aceitao de um determinado contexto, para que, a
partir da descrio ou da narrativa do que est acontecendo, possamos - cliente e
psicoterapeutas - co-descobrir, co-desvelar, co-restaurar ou co-criar o sentido e o
significado das relaes, do encontro, para as pessoas envolvidas. Partindo da aceitao
do contexto, quando percebemos o seu sentido, podemos perceber as diferentes
possibilidades, at as de mudana.
Os terapeutas, que como Anderson e Goolishian (1995/1998) e Andersen (1995;
1995/1998), adotam uma relao psicoteraputica na qual o cliente o especialista e
propem o que chamaram de processos de grupos reflexivos. Neles, psicoterapeutas e
clientes esto muito prximos, exercitando a possibilidade de trabalharem a partir do
crculo hermenutico de Heidegger e procurando perceber quais os reflexos do grupo
que esto interagindo sobre eles, equipe de psicoterapeutas e vice-versa, bem como
entre as singularidades apresentadas por um grupo de clientes e os universais tericos
aos quais j tinham acesso. Andersen (1995; 1995/1998) chamou esse fenmeno de
ressonncia, o que esclarece que no h distncia entre aqueles que escutam e aqueles
que falam. Os contedos trazidos pelos clientes exigem da equipe teraputica uma
reflexo sobre eles, assim como exigem que os terapeutas reflitam se um fenmeno que
est aparecendo na famlia, como a competio, da famlia mesmo ou algo da equipe
teraputica que est se refletindo na famlia. E, assim, por meio desse fenmeno de
ressonncia, temos o sentir unindo a famlia e os terapeutas (Elkam, 1994/1996).

Interessante percebermos que, apesar de serem Construcionistas Sociais, esses


autores tm uma proposta de relao psicoteraputica dialgica, semelhante proposta
pelos humanistas. Talvez o fato da nfase que conferem linguagem ser fruto da
Hermenutica tenha feito com que passassem por Heidegger, por Gadamer e, destes,
compreenso. E para compreendermos, temos que escutar, temos que estar-no-mundo,
estar-na-linguagem, estar-nas-conversaes (Andersen, 1995). Uma compreenso que,
em alguns, chega a incluir o corpo, j que o processo da terapia a restaurao do
sentido de agenciar, de maneira que as pessoas possam recuperar sua capacidade, sentila, e possam iniciar aes competentes por si mesmas (Anderson e Goolishian,
1994/1996, p. 202).
Nessa proposta de grupos reflexivos, percebemos psicoterapeutas e clientes em
um mesmo campo, construindo significados, em especial quando os clientes j fazem
parte de sistema ntimo ou de um grupo natural um casal, uma famlia, uma
comunidade.
A orientao relacional assim criada pressupe que o cliente e o terapeuta
estejam envolvidos cooperativamente na construo de uma narrativa a
respeito da crise do cliente. esta orientao comum, cooperativa e
relacional, que distingue a abordagem construcionista social da abordagem
modernista, na qual o terapeuta fica distncia, avaliando e diagnosticando
a crise por meio de critrios gerais, culturalmente significativos, ao invs de
por critrios construdos localmente. (McNamme, 1995/1998, p. 233)
Podemos ver, ento, o que consideramos a grande contribuio dessas
psicoterapias, que a possibilidade de no termos apenas de trabalhar com
representaes em psicoterapia, de estarmos falando para as pessoas e no sobre as
pessoas, de exercitarmos a intersubjetividade ou, como prefere Gergen, uma construo
social. Uma psicoterapia que envolva um cliente e um psicoterapeuta j uma coconstruo, mas algumas construes que so feitas ficam de fora da possibilidade de
uma co-construo, ficam apenas no mbito das construes, das representaes
individuais.

Exercitarmos,

experienciarmos

intersubjetividade

na

relao

psicoteraputica, em que cada um pode perceber os encontros e os desencontros e coconstruir juntos um significado, proporciona-nos uma experincia singular. Nela, no
falamos sobre o outro ou sobre as relaes sociais, falamos com o outro, aquele com
quem estamos compartilhando uma experincia. Uma psicoterapia que proporcione o

encontro no est apenas falando que somos seres-no-mundo, mas est trabalhando com
os seres-no-mundo.
Todavia, importante lembramos que no consideramos incompatvel que uma
psicoterapia de sistemas ntimos trabalhe a aceitao da diversidade dos sentidos
individuais, que nela haja a possibilidade de um encontro nas diferenas. Consideramos
que uma Psicologia de totalidade tambm tem que fazer um crculo hermenutico que
transite do todo para a parte e da parte para o todo, onde as emoes, o corpo, o
indivduo e a natureza tambm estejam presentes nas dimenses sociais. Aqui, vemos
que pode se caracterizar a grande contribuio da Gestalt-Terapia para as Terapias
Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais, que o resgate do sentido e do
significado, assim como a ateno aos processos de auto-eco-regulao, ou auto-ecopoiese. Os Gestalten-Terapeutas tm procurado essa compreenso h mais tempo,
tentando conectar a emoo, o sentir, com o sentido de estarmos no mundo.
Acreditamos que o resgate da emoo uma das grandes legados deixados por
Fritz e Laura Perls para a psicoterapia, no que outras abordagens no valorizem a
emoo. No entanto, a Gestalt-Terapia, em sua proposta do resgate do vivido e da
experincia, comea esse caminho pelo corpo vivido, pela escuta do que nos fala o
organismo. Procurando restaurar uma intencionalidade operativa, nos termos de Husserl
e Merleau-Ponty, ou da awareness espontnea (Perls & Goodman, 1951/1997), uma
conscincia que estabelea sentido no apenas cognitiva, religa os significados
universais com os sentidos individuais. A emoo que nos reconecta ao mundo, ao
outro e tambm nossa singularidade.
Procurando trabalhar o contato, parece-nos que os psicoterapeutas gestlticos j
teve coragem, h mais tempo, de se incluir no processo psicoteraputico em busca do
dilogo e da compreenso. A sada da nfase tcnica para o dilogo tem sido bastante
discutida pelos Gestalten-Terapeutas. Vemos o mesmo caminho sendo trilhado por
muitos psicoterapeutas de famlia e de comunidade, cuja interveno psicoteraputica
tem emergido da relao que se estabelece entre as pessoas, j que consideram que o
cliente o especialista. Importante se faz lembrarmos que, considerarmos o cliente um
especialista ou sabermos que os sistemas tm a capacidade de se auto-organizar, no
significa a omisso dos psicoterapeutas, pois, como colocam Anderson e Goolishian
(1995/1998, p. 37), o papel de um terapeuta o de um artista da conversao um
arquiteto do processo dialgico cuja a especialidade est em facilitar e criar o espao

para uma conversao dialgica. E na relao com o(s) outro(s), da(s) presena(s)
do(s) outro(s), que h o encontro, o contato, o processo psicoteraputico.
De uma forma geral, parece-nos que as psicoterapias tm convergido para uma
proposta em que todos sejam autores, atores e intrpretes do prprio vivido. Mesmo em
um monlogo, ser ator pressupe um palco, espectadores, diretor, ilumininador,
figurinista e sonoplasta, por exemplo, para que as diferentes possibilidades de
interpretao possam ser experimentadas. Quando samos de um monlogo e a
interpretao passa a envolver mais de um ator, as possibilidades de interpretao se
ampliam ainda mais, j que o processo intersubjetivo fica ainda mais amplo. Nesta
metfora, talvez o psicoterapeuta seja o iluminador ou o diretor que ajuda a
experienciarmos, a percebermos por diferentes perspectivas at que, para ns, fique
clara uma interpretao, uma compreenso, que uma delas faa mais sentido naquele
momento.
No h como sermos uma ator sozinho, no h como fazermos uma psicoterapia
individual, j que esta , no mnimo, dual. No h como fazermos uma clnica que no
seja social. Mas talvez possamos pensar como fazer uma clnica mais social, que
igualmente no perca a dimenso dos sentidos individuais e a riqueza que a partes
tambm exercem sobre o todo. A clnica tem que ser feita na e para a rua, no mais
entre quatro paredes (Silva, 2001), j que no faz sentido uma pessoa que consiga
dialogar com o psicoterapeuta e no o faa com os amigos.
Para darmos conta da imprevisibilidade, da criatividade e do vivido, tambm
temos que trabalhar para facilitarmos processos psicoteraputicos abertos
imprevisibilidade de respostas, de onde possam fluir formas mais criativas de estarmos
no mundo. Para tanto, temos que criar, transgredir nas formas de fazermos psicoterapia
para darmos conta das demandas to diferentes que chegam ao processo
psicoteraputico. Temos que ter tcnicas que se adaptem ao contexto e no que exijam
que o contexto se adapte a elas.
Alm do psiclogo ter que trazer o social para o contexto psicoterpico, temos
que procurar pelo social, mostrarmos a cara da psicoterapia fora do ambiente conhecido
das clnicas. Acreditamos, ento, que faz muito sentido trazermos o ou irmos ao
contexto social sempre que isso for possvel, o que no nos impossibilita de trazermos
tambm o outro, por meio de representaes e fantasias. As Psicoterapias Familiares e
Comunitrias tm nos mostrado formas bastante criativas de faz-lo, tais como: visitas
domiciliares, grupos comunitrios, terapias multifamiliares, alm dos j conhecidos

atendimentos a casais e a famlias. Essas formas de encontro so bastante compatveis


com uma abordagem como a Gestalt-Terapia, que procura compreender o ser-nomundo.
A Gestalt-Terapia tambm uma permisso ao criar que j trabalhou muito com
grupos e que tem questionado muito essa prtica, j que percebeu que o grupo pode ser
uma forma de encontro mas, tambm, de opresso s singularidades. Um grupo de
pessoas pode instaurar um processo em que todos crescem com aquele grupo, onde h
espao para a imprevisibilidade. As pessoas tambm podem apenas se submeter a um
processo grupal. E, nessa segunda possibilidade, as pessoas se separam ou se submetem
umas s outras (Amatuzzi, 2001b). Esses questionamentos, levantados ao longo do
caminho da Gestalt-Terapia, so realmente um alerta para uma prtica mais cuidadosa,
mas acreditamos que no eliminam a possibilidade de trabalharmos com grandes e
pequenos grupos exatamente para que todos os participantes percebam como tambm
somos uma construo social. E perceber discutirmos tambm a dimenso poltica em
que estamos inseridos. A psicoterapia em grupo, seja ela de sistemas ntimos ou no,
um outro recurso que temos para experienciar a intersubjetividade em um mundo to
corrido, cheio de imagens querendo nos impor significados j prontos, pasteurizados.
Mas realmente um desafio co-construirmos relaes grupais onde cada um seja
respeitado como um legtimo outro, onde o todo seja realmente maior que as partes.
um desafio experienciarmos a intersubjetividade e a questo de sermos sujeitos e
sujeitados a partir do vivido.
Para encararmos o desafio, tambm necessitamos estar sempre reatualizando os
paradigmas da psicoterapia, para que ela d conta de estar acompanhado o ser em
constante auto-eco-poiese com o universo. Uma prtica psicoterpica que esteja
envolvida em um movimento ecolgico, de cuidar do mundo, porque cuidando do
mundo, estamos cuidando do ser e, cuidando dele, estamos cuidando do mundo, j que
um contm o outro. Apenas tendo uma dimenso comunitria que a psicoterapia
poder ser transformadora, transgressora dessa ordem social em que vivemos.
Outras pontes podem ser co-construdas, no apenas entre a Gestalt-Terapia e as
Terapias Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais. Precisamos trabalhar para
edific-las, para articular saberes em uma construo conjunta de modelos que ampliem
cada vez mais nossas vises de mundo (Sudbrack, 1995) e para darmos conta da
complexidade do nosso vivido. Para isso, temos que sair de nossos casulos e dialogar
com todas as reas da cincia e, tambm, com a experincia, com o vivido. As

Psicologias tm procurado muito por outras disciplinas, mas, s vezes, esquecem-se de


bater porta do vizinho para perguntarem o que ele est fazendo. Podemos perceber que
j existem pontes co-construdas entre a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistmicas
Construtivistas Construcionistas Sociais, mas que no esto claras para muitos
psicoterapeutas. No raro, ficamos apenas preocupados em marcar as diferenas entre as
abordagens, o que tambm muito importante, mas nos esquecemos de co-construir
novas

pontes

que

podem

nos

ajudar

co-construirmos

novos

caminhos

psicoteraputicos, caminhos que atendam melhor as demandas das pessoas e das


comunidades que nos procuram.
Temos que entrar em contato com a totalidade, que foi divida apenas para
explicar, mas que acabou sendo sentida como dividida. Temos que religar teoricamente
algo que nunca esteve dividido. Parece-nos que hoje no temos palavras adequadas para
falarmos desse universo que no dividido. Por exemplo, temos que colocar que o ser
bio-psico-scio-espiritual (Ribeiro, 1985) para expressarmos uma unidade que faz parte
do ser. A Gestalt-Terapia nos prope que faamos contato, inclusive pelo que Morin
(2001/2002) coloca como nosso enraizamento csmico e tambm biolgico. Uma
psicoterapia que tem essa percepo do ser-no-mundo incorporado no deve perder de
vista as emoes, assim como no deve perder de vista a cognio, j que esto
separadas apenas para explicar. Para compreend-las, temos que reconect-las para
compreendermos onde se conectam as nossas polaridades sapiens-demens (Morin,
2001/2002), por exemplo.
Como vimos, Perls e Goodman (1951/1997) nos alertam que, para que a
linguagem continue expressando a experincia, ela no pode se cristalizar, ficar apenas
na representao. Para que no se cristalize, precisa estar em contato constante com a
imprevisibilidade, com a mutabilidade, e um desses caminhos o contato com as nossas
emoes, pois so elas que mobilizam, inclusive a cincia. No h cincia sem a paixo,
sem a curiosidade do cientista (Maturana, 1998; 2001).
Quando as emoes so partilhadas pelos sistemas ntimos, aumentam as
possibilidades das pessoas perceberem o sentido e o significado de estarem juntas, j
que no estamos juntos apenas por aspectos pragmticos, ou, ento, esses aspectos
pragmticos estariam recheados de necessidades de pertencimento.
Contatos:
Tel: (61) 3328 2562
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