Co-Construindo Pontes Entre A Gestalt-Terapia
Co-Construindo Pontes Entre A Gestalt-Terapia
Co-Construindo Pontes Entre A Gestalt-Terapia
Palavras-chave: Gestalt-Terapia, Fenomenologia Psicoterapia Sistmica, Coconstrutivismo, Construcionismo Social, Subjetividade, Intersubjetividade.
Captulo 1
Concepo de Sujeito e Subjetividade
objetividade. Heidegger, para sair dessa ambigidade, optou por falar do ser, suas
grandes questes j envolviam o questionamento da metafsica. Metafsica ao tempo em
que criou e glorificou o sujeito como ser pensante, tambm o colocou como a grande
fonte de erros.
As abordagens que dialogam neste trabalho desenvolveram-se tambm pelo
questionamento dos modelos da cincia moderna, que afastou o sujeito observador do
seu objeto de observao. E por caminhos um pouco diferentes, como veremos nos
prximos captulos, procuram reconectar aqueles que conhecem com o que conhecem.
Procurar conhecer aquele que conhece, e continuar fazendo cincia incluindo aquele que
conhece, um dos temas centrais das duas abordagens utilizadas: Gestalt-Terapia e
Teorias Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais.
Como pretendemos ter como elo o conceito de subjetividade no dilogo entre as
duas abordagens, consideramos importante refazer um pouco o caminho de como foram
sendo construdos os conceitos-objetos do presente captulo, para contextualizar as
questes levantadas sobre o tema. Assim como o que tem sido discutido na
contemporaneidade, para podermos comear a refletir como estas novas experincias
que estamos vivendo esto marcando a nossa relao no mundo.
Vivemos em um mundo que ficou mais amplo, e hoje o corao v muito
mais coisas de forma on line, o que provavelmente modifica o nosso modo de sentir.
Com tantas informaes, parece que a questo do sentido ficou ainda mais mutvel e
tais experincias esto chegando ao contexto psicoteraputico, enquanto questes
antigas permanecem, como a fome, por exemplo.
Ento, contextualizaremos um pouco a histria da concepo de sujeito, o que
tem se chamado de crise da subjetividade privatizada, e as discusses sobre a
subjetividade no que se tem chamado de ps-modernidade.
Muito se tem falado de subjetividade. A maioria dos textos parte para falar de
subjetividade como se j estivesse claro para o leitor o seu significado. No entanto, na
prpria histria do pensamento ocidental, a concepo de subjetividade foi adquirindo
significados diferentes. Por isso, para compreender o conceito de subjetividade temos
que compreender como se deu a construo do que hoje entendemos por subjetividade,
ou subjetividades, j que no h uma nica forma de descrev-la.
A concepo de sujeito e a chamada crise de identidade s podem ser
compreendidas dentro de um processo mais amplo de mudanas, que questiona alguns
alicerces da sociedade moderna e abala os quadros de referncias que davam aos
indivduos uma ancoragem estvel no mundo social. Pois, como observa Mercer (1990,
em Hall, 1992/2002, p. 9), a identidade somente se torna uma questo quando est em
crise, quando algo que se supe como fixo, coerente e estvel deslocado pela
experincia da dvida e da incerteza. Tanto que o prprio conceito de identidade por
ser to complexo tambm no encontra na Sociologia uma clara compreenso.
Podemos ver que as conceitualizaes sobre o sujeito foram mudando e,
portanto, tm uma histria. E assim como podemos perceber de que forma nasceu este
conceito, tambm poderemos contemplar a sua morte. Para tornar mais didtica a
exposio, usaremos as trs concepes muito diferentes de identidade usadas por Stuart
Hall (1992/2002) para expor estas mudanas: sujeito do Iluminismo, sujeito sociolgico
e sujeito ps-moderno.
Foi com Tales (640-546 a.C.) e com outros dos chamados filsofos prsocrticos que se deu, de forma mais clara, a aplicao da razo natural aos mistrios
previamente considerados sobrenaturais. Tales introduziu a filosofia da natureza, na
qual a gua era considerada o princpio ou a causa material de todas as coisas, um
princpio elementar, emprico e palpvel. Com Pitgoras (570-500 a.C.), Scrates (469399 a.C.), Plato (427-347 a.C.) e Aristteles (384-322 a.C.), passaram a ser delineados
os contornos de todas as reflexes que tanto libertaram quanto emperraram as mentes
pesquisadoras pelos quase 25 sculos subseqentes. Temos aqui, ento, uma mudana
em direo razo e um distanciamento em relao ao corpo (Mahoney, 1991/1998).
Protgoras (480-411 a.C.) foi outro filsofo que tambm marcou o pensamento
ocidental e que props um humanismo baseado em um subjetivismo e em um certo
relativismo. O seu pensamento pode ser sintetizado pela mxima: o homem a medida
de todas as coisas, das coisas que so enquanto so e das coisas que no so enquanto
no so. Neste fragmento, Protgoras sintetizou duas idias centrais dos sofistas: o
humanismo e o relativismo (Marcondes, 1997/2002). Assim, pretendia negar a
existncia de um critrio absoluto de discriminao, sendo o nico critrio o prprio
homem. As coisas so tais quais elas parecem ser a minha verdade individual ou a sua.
Mais tarde, na Idade Mdia, os pensamentos desses principais filsofos foram
revisitados por Santo Agostinho (354-430) e por So Toms de Aquino (1225-1274).
Naquela poca, ficaram pequenas as distncias entre Filosofia e Teologia, pois
acima das verdades da razo estavam as verdades da f. Santo Agostinho afirmava que
na filosofia anterior a Cristo havia um erro fundamental: o de celebrar o poder da razo
como o maior poder do homem, pois j que a razo era incerta, ento o homem s
poderia sab-la depois que a revelao divina viesse ilumin-lo. Na mesma linha, So
Toms de Aquino, valorizava a razo, mas afirmava que s poderamos usufruir dessas
faculdades quando estivssemos sendo iluminados pela graa divina. Desse modo, a
epistemologia medieval procurou atender aos padres de racionalidade assim como os
teolgicos.
Alm das mudanas no processo de ideao humana, a questo da subjetividade
pode ser melhor percebida por meio das interessantes descries sobre o modo de vida
medieval. Segundo Philippe Aris e Georges Duby em A Histria da Vida Privada (em
Mahoney, 1998), o surgimento da vida privada foi lento. Os autores revelam que nas
residncias feudais, entre os sculos 11 e 13, no havia a possibilidade de isolamento.
Somente por volta do sculo 12 que comearam a aparecer expresses dos primeiros
com a sua liberdade e nesse contexto que o homem passou a ser pensado como centro
do mundo.
Interessante constatar que no desapareceu a crena em Deus como criador da
ordem do mundo, mas passou a caber ao homem o controle e o conhecimento desse
mundo. Um novo mundo, que deixou de ser visto como sagrado e passou a ser visto
mais como um objeto de uso a servio do homem. E essa grande valorizao e
confiana no homem fizeram nascer o humanismo moderno.
O nascimento do homem indivduo soberano, entre o Humanismo
Renascentista do sculo 16 e o Iluminismo do sculo 18, representou uma ruptura
importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o
sistema social da modernidade em movimento (Hall, 1992/2002, p. 25). A Reforma e
o Protestantismo, com Martinho Lutero (1486-1546), foram movimentos importantes
para a emergncia da nova concepo, medida que libertaram a conscincia individual
das instituies religiosas e a expuseram diretamente aos olhos de Deus. O Humanismo
Renascentista colocou o homem no centro do universo e as revolues cientficas
conferiram ao homem a capacidade para investigar os mistrios da natureza. O
Iluminismo, centrado na imagem do homem racional, cientfico, libertou-o do dogma e
da intolerncia.
Para a interioridade das pessoas, principalmente as leitoras, muito contribuiu a
literatura do sculo 16, em que surgiram diversas figuras ou personagens, reais ou
fictcios (como Leonardo da Vinci, Dom Quixote, Hamlet, por exemplo), donos de um
mundo interno rico e profundo (Figueiredo, 1994; Figueiredo e Santi, 2002). E com o
nascimento da imprensa, originou-se a leitura silenciosa. O trabalho e a experincia
religiosa passaram a ser atividades mais individuais, pois as pessoas puderam ter acesso
a textos sagrados sem a intermediao dos sacerdotes.
Tambm na obra de Michel de Montaigne (1533-1592) vemos a valorizao da
interioridade, pois o seu prprio eu passa a ser assunto de sua obra. Com ele, temos o
surgimento da valorizao de cada indivduo e a construo da individualidade nica.
Mas Montaigne simultaneamente denunciou a grande iluso do homem de querer
conhecer e dominar toda a natureza. Nesse perodo, comeamos a ver o renascimento do
ceticismo grego, que considerava impossvel que pudssemos ter um conhecimento
seguro sobre o mundo. E como vimos, em sua poca, Protgoras j afirmava que o
homem era a medida de todas as coisas.
props que ela deveria seguir o exemplo das outras cincias e transformar-se em fsica
social, onde o sujeito faria tbula rasa de seus juzos e valores, para deixar as coisas
falarem. Assim, o positivismo refere-se a um sistema baseado exclusivamente em fatos
objetivamente observados e indiscutveis. Tudo que fosse especulativo, inferencial ou
metafsico era rejeitado como ilusrio. O procedimento positivista das Cincias Naturais
mostrou-se inicialmente frtil para as cincias do homem.
Neste ponto, podemos perceber, ento, que a idia de homem indivduo
soberano est em cada uma das prticas centrais que fizeram o homem moderno, o
sujeito da modernidade, aquele que era a origem ou sujeito da razo, do
conhecimento ou da prtica e aquele que estava sujeitado a elas. Hall (1992/2002)
sintetiza essa concepo como sujeito do Iluminismo, pois se baseia na concepo de
pessoa humana como um indivduo totalmente centrado, unificado, dotado das
capacidades de razo, de conscincia e de ao, cujo centro consiste num ncleo
interior, que emerge pela primeira vez quando o sujeito nasce e com ele se desenvolvia,
ainda que este permanea essencialmente o mesmo.
Esse racionalismo das luzes era humanista ao respeitar e cultuar o homem, ser
livre e racional. Neste contexto, que comeam a ser fomentadas as lutas pela
emancipao dos escravos e oprimidos e da igualdade do direito dos cidados. Ao
mesmo tempo este homem no pode ser livre, pois tem que obedecer aparente
racionalidade do Estado, da burocracia e da indstria. E com o tempo o trabalhador
deixou de ser pessoa para se tornar fora fsica de trabalho. E esta razo enlouquecida
passa a se tornar uma das fontes do totalitarismo moderno (Morin, 1990/2000).
forma, o sujeito humano foi biologizado a razo tinha uma base na natureza e a
mente um fundamento no desenvolvimento do crebro humano. Por sua vez, as
transformaes provocadas pelo advento das Cincias Sociais desencadearem aes
diversas: o homem indivduo soberano permaneceu como figura central nos discursos
de economia e da lei moderna, e em funo do dualismo cartesiano estabeleceu-se a
diviso entre as Cincias Sociais e as outras cincias, como a Psicologia.
Mas, como bem vimos anteriormente, a crena de que o homem poderia atingir a
verdade absoluta e indubitvel, desde que seguisse o mtodo correto, passou a ser
abalada j no sculo XVIII pelo prprio Iluminismo. As grandes conquistas do
racionalismo foram articuladas com as das experincias individuais. Comeou-se a
colocar em xeque a soberania do eu, tanto o da razo como o dos sentidos purificados.
Assim, filsofos como Locke (1632-1704) e Berkeley (1685-1753) discutiram a
natureza subjetiva da percepo, afirmando que nem sempre h ou freqente haver
uma correspondncia exata entre a natureza de um objeto e a percepo que uma pessoa
tem dele. David Hume (1711-1776) tambm negou que o eu fosse algo estvel, que
permanecesse idntico a si mesmo ao longo da diversidade de suas experincias, posto
que seria muito mais efeito de suas experincias do que senhor delas. E por tais
motivos, principalmente pelo fato de o eu ser algo que se forma e se transforma, este
referente no poderia mais ser a base de sustentao dos conhecimentos.
Outro filsofo que abalou as proposies modernas foi Immanuel Kant (17241804), apesar de no ter sido to radical quanto Hume. Kant tambm aceitou a
problematizao da crena em conhecimentos absolutos. Em A Crtica da Razo Pura,
afirmou que o homem s tem acesso s coisas tais como se apresentam para ele: a isto
Kant chamou de fenmeno. A nica forma de produzirmos algum conhecimento
vlido seria nos restringirmos ao campo dos fenmenos, pois as coisas em si,
independentes do sujeito, so incognoscveis. Assim, Kant no acreditou na capacidade
de o homem conhecer a verdade absoluta das coisas em si do outro. Toda a questo
do conhecimento foi colocada em termos subjetivos, pois o conhecimento repousava na
subjetividade humana. Essa subjetividade, contudo, no seria a particular de cada
indivduo, mas transcendental e universal do homem, que deveria ser valorizada como
condio de possibilidade de todas as experincias. E as subjetividades empricas e
particulares deveriam aprender a viver em um mundo de incertezas onde as hipteses
nunca seriam totalmente confirmadas, procurando sempre um controle racional sobre
seus impulsos, seus desejos.
A grande preocupao de Kant, ento, no era tanto com os objetos, mas com o
nosso modo de conhecimento do objeto. Ele props uma nova revoluo copernicana
na Filosofia (Marcondes, 1997/2002), na qual no seria mais o sujeito que se orientaria
pelo objeto (o real), mas o objeto que seria determinado pelo sujeito. Portanto,
Sujeito e objeto eram termos relacionais, que s poderiam ser considerados como
parte da relao de conhecimento, e no autonomamente. S haveria objeto para o
sujeito, s haveria sujeito se este se dirigisse ao objeto.
Kant considerado um dos pais do construtivismo. Para compreendermos
melhor o porqu desse ttulo, valemo-nos de um trecho do prprio autor:
O idealismo consiste apenas na afirmao de que no existe outro ser seno o
pensante; as demais coisas, que acreditamos perceber na intuio, seriam apenas
representaes nos seres pensantes, s quais no corresponderia, de fato,
nenhum objeto fora deles. Eu afirmo, ao contrrio: so-nos dadas coisas como
objetos de nossos sentidos, existem fora de ns, s que nada sabemos do que
eles possam ser em si mesmos, mas conhecemos apenas seus fenmenos, isto ,
as representaes que produzem em ns ao afetarem nossos sentidos. (Kant,
Prolegmenos, 13, Observao II, em Marcondes, 2002, p. 210)
Manifesta-se ainda Kant sobre a unidade sinttica originria da apercepo para
mostrar como nossas experincias devem ser sempre remetidas a um eu penso que lhes
d unidade. Portanto, somente pelo fato de que posso conectar, em uma conscincia
um mltiplo de representaes dadas, possvel que eu prprio me represente, nessas
representaes, a identidade da conscincia (Marcondes, 2002, p. 211/212). Vemos,
pois, que o eu penso kantiano no puro, nem anterior conscincia como o de
Descartes, e tambm no apenas um feixe de percepes como o de Hume, pois se
consiste na unidade originria da conscincia.
No entanto, mesmo depois de Kant, os cientistas continuaram procurando uma
verdade, o conhecimento do mundo tal como ele . Esse panorama comeou a mudar
com os filsofos da no representao Schopenhauer (1788-1860), Nietzsche e
Heidegger , que se colocaram contra o discurso da modernidade (Grandesso, 2000). E
sem a pretenso de hierarquizarmos as contribuies destes filsofos, deteremo-nos em
Nietzsche (1844-1900) pelo fato de que, por suas idias, a crise da modernidade
comeou a ficar mais aguda. No Captulo 2 estaremos falando de Heidegger por sua
forte presena na Fenomenologia e nas questes atuais da Gestalt-Terapia.
tinha a preocupao de centrar-se na escrita sobre si prprio. Descartes, por sua vez,
representou a subjetividade abstrata, terica, desespacializada e destemporalizada.
Entretanto, dentro do quadro da identidade moderna, temos priorizado a
subjetividade abstrata e a subjetividade individual em detrimento das outras duas
polaridades, a concreta e a coletiva. E estas so legitimadas pelo princpio do mercado e
da propriedade individual, regulado por um grande Estado que dirige a autoria social
dos indivduos, revelando a tenso entre individual e social, onde muitas vezes a
subjetividade do outro negada.
O movimento romntico tentou contestar essa identidade abstrata do sujeito,
descontextualizada, cientfica e econmica, ao propor uma busca radical de identidade,
uma revalorizao do irracional, do inconsciente, do mtico e do popular, glorificando a
subjetividade individual pelo que havia nela de irregular e de imprevisvel. Em
contraposio, o marxismo props uma recontextualizao da identidade, questionou o
individualismo e o poder do Estado. Mas o marxismo tambm acabou criando um
supersujeito no lugar do Estado, que passou a ser a classe social (Santos, 1995/1997).
No clima capitalista, as mltiplas identidades e os respectivos contextos
intersubjetivos que se formaram foram engolidos pela lealdade ao Estado. Nos ltimos
anos, algo vem mudando, apesar de no sabermos ao certo se no o olhar sobre isto
que vem mudando. Provavelmente, ambas as coisas tm acontecido, pois percebemos
que o processo histrico de descontextualizao muito menos homogneo do que se
havia pensado (Santos 1995/1997).
A relao entre o individual e o social sempre foi descrita e vivida como ambgua. Na
histria do pensamento moderno, foi se construindo a possibilidade de um indivduo
emancipado e autnomo, que tinha como funo principal defender os homens da
ameaa da natureza. Uma autonomia que deveria levar em considerao o controle da
natureza e as regras sociais. Temos, ento, uma individuao que se d no meio de uma
cultura, onde a funo da formao cultural a de socializar para individuar.
A subjetividade assim define-se por um terreno interno que se ope ao mundo
externo, mas que s pode surgir deste. Sem a formao do indivduo, este se
essncia interior que o eu real, formado e modificado num dilogo contnuo com os
mundos culturais exteriores e as identidades que o mundo oferece. As identidades, por
sua vez, preenchem o espao entre o interior e o exterior e projetamos a ns
prprios nas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus
significados. Esta troca contribui para alinharmos nossos sentimentos subjetivos com os
lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade estabiliza
tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente unificados e pr-dizveis. E quando os pesquisadores passam a falar
mais desse sujeito em interao social, algumas questes de nomenclatura surgem. Mas
j vimos que no h um consenso em torno do que subjetividade e do que de
identidade. Tambm no o h em torno do conceito de indivduo (Mancebo, 2002).
Um exemplo claro sobre a no unanimidade na conceituao de indivduo
dado por Bendassolli (2002), um estudioso de Rorty e da filosofia neopragmtica da
linguagem. Para ele, a Psicologia confunde em muito as noes de sujeito e de
indivduo e esta confuso se d quando se misturam as noes filosficas de sujeito
introduzidas por Descartes com a sociolgica de indivduo. Esta ltima noo se refere a
homens e mulheres que agem segundo as pressuposies do sujeito filosfico, aquele
que se refere a um ideal metafsico, ao passo que indivduo seria formado nas diversas
pocas e estruturas histricas. Ento, o sujeito, no contexto da filosofia, um ideal
abstrato e universal, ideal que todos devem alcanar para serem verdadeiramente
humanos. Este sujeito no tem um rosto, no tem uma histria, no contingente e no
pode ser visto, no um ser concreto. Dentro das perspectivas do Iluminismo e do
Humanismo, aquele que consciente de seus pensamentos e responsvel pelos seus
atos, a razo, a conscincia, o eu.
J o surgimento do indivduo se d fora de ideais metafsicos a priori, constituise na base de distintas regras socializatrias, que variam ao longo do tempo e em funo
de grupos sociais concretos (Norbert Elias, 1982/1993 em Bendassolli, 2002). O
indivduo, ao contrrio do sujeito, no fundamenta nada, no serve de base para o
estabelecimento da verdade dos diversos saberes, circunscrito, tendo assim uma face.
Ele, inclusive, descrito num outro vocabulrio e segundo outras orientaes, a saber,
o vocabulrio das Cincias Sociais, originalmente preocupadas em trazer o sujeito
(filosfico) para o cho, em dar-lhe corpo e substncia (Bendassolli, 2002, p. 9).
No entanto, as Cincias Sociais, fundem as duas noes, mesmo falando de
indivduos concretos, o que faz respingar no indivduo a metafsica que deu origem ao
Um dos grandes impactos da teoria da evoluo, foi o fato de Darwin (18091882) ter colocado o homem como um ser natural como os demais, no possuindo uma
origem distinta ( imagem e semelhana de Deus).
J Marx (1818-1883) afirmava que o comportamento do homem era
determinado por leis que ele prprio desconhecia. Afirmava, ainda, que o homem seria
capaz de fazer histria, mas apenas sob as condies que lhes eram dadas. No sculo 20,
esta afirmativa recebeu um novo sentido: os indivduos no poderiam ser os autores ou
agentes da histria. como se a teoria de Marx tivesse questionado proposies chaves
da filosofia moderna, que havia uma essncia universal de homem e que esta essncia
era um atributo de cada indivduo singular. Marx representou a passagem da idia de
um sujeito universal, fechado dentro de um conjunto de categorias metafsicas, para um
sujeito concreto.
Freud (1856 - 1939), em sua descoberta do inconsciente, destruiu a idia de
sujeito cognoscente e racional de Descartes. E a Psicanlise, mais adiante, com Jacques
Lacan (1901-1981) deixou claro que a imagem do eu como inteiro e unificado algo
que a criana aprende apenas gradualmente e formada na relao com os outros,
especialmente nas complexas relaes psquicas inconscientes.
No trabalho de Lacan (1901-1981), alm dessa linha de proximidade ao
pensamento freudiano sobre o sujeito, podemos sentir
escapulindo de ns. Tambm temos que perceber que existem sempre significados
suplementares sobre os quais no temos qualquer controle, que surgiro e subvertero
nossas tentativas para criar mundos fixos e estveis (Derrida, 1981 em Hall,
1992/2002).
A forma como o sujeito vem sendo representado nas artes tambm tem mudado.
O sujeito masculino era representado nas pinturas do sculo 18 por meio de formas
espaciais clssicas, o que muito diferente do sujeito que v a si prprio nos
fragmentados e fraturados rostos, de uma pintura de Picasso, que olham planos e
superfcies partidos. Por meio da arte, e suas manifestaes, percebemos como as
identidades esto localizadas no espao e no tempo simblicos, como o espao e o lugar
eram coincidentes nas sociedades pr-modernas, o que j no ocorreu as sociedades
ps-modernas. Nestas, podemos estar fixos em algum lugar, por exemplo, e
simultaneamente estar navegando pela internet por um espao infinito. (Hall,
1992/2002).
(...) parece ento que a globalizao tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as
identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Ela tem um efeito
pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e
novas posies de identificao, e tornando as identidades mais posicionais,
mais polticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou transhistricas. (...) Em toda parte, esto emergindo identidades culturais que no so
fixas, mas que esto em transio entre diferentes posies; que retiram seus
recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradies culturais e que so produto
desses complicados cruzamentos e misturas culturais. (Hall, 1992/2002, p. 87)
Muitos fenmenos tm sido descritos na contemporaneidade. Destacamos o do
fortalecimento de identidades locais pela peculiaridade que encerra. Podendo ser
entendido como uma reao defensiva presena de outras culturas por grupos que
retm fortes vnculos com suas tradies, mesmo distantes de sua terra natal, e que
passam a negociar com as culturas em que vivem, sem serem engolidas por elas, tal
fenmeno se configura em algo que no era previsto nem pelo liberalismo nem pelo
marxismo. Sim, pois a globalizao no parece estar produzindo o triunfo do global,
to pouco a persistncia de velhos nacionalismos. E, ainda, a globalizao pode gerar
um lento descentramento do ocidente, apesar de ser alimentada por ele (Hall,
1992/2002).
Diante de fenmenos como o do fortalecimento das identidades locais, a questo
da relao do social com o individual tem trazido uma srie de perplexidades. Santos
(1995/1997) ressalta que, apesar da intensa globalizao, temos visto o regresso ao
indivduo por meio da anlise da vida privada, do consumismo e do narcisismo, dos
modos e estilos de vida, do espectador ativo da televiso, das biografias.
Ele nasce com a arquitetura e a computao nos anos 50. Toma corpo com a arte
Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como crtica
a cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na
msica e no cotidiano programado pela tecnocincia (cincia + tecnologia
invadindo
cotidiano
com
desde
alimentos
processados
at
que o
conceito
de ps-modernismo
adquire diferentes
interpretaes para diversos autores, Gergen (1989a, em Grandesso, 2000), entende que
o trao mais comum da ps-modernidade seja a preocupao com a linguagem. Assim,
coloca em xeque os pressupostos milenares da cultura ocidental da lngua como
principal veculo de representao do mundo e de comunicao dos contedos mentais.
Nesse sentido, a ps-modernidade descarta o dualismo mente e natureza e toda a busca
pelos fundamentos do conhecimento. E todo e qualquer conhecimento passa a ser
percebido como o resultado do intercmbio social, isto , da interdependncia e no da
individualidade das mentes. A linguagem seria compreendida, ento, como um processo
de pessoas em relao (Grandesso, 2000). Para Ibaez (1992, em Grandesso, 2002), o
que vai marcar o discurso ps-moderno que a existncia do objeto do conhecimento
implica a presena de um sujeito cognoscente, o que no acontecia no discurso da
modernidade, pois nele se concebia um processo de conhecimento sem sujeito.
1.5
das questes das estruturas psquicas invariveis. Propem uma Psicologia que
questiona os mtodos cientficos, mas que procura fazer cincia, no aquela que exige
um conhecedor ideal, neutro. Muito pelo contrrio, a cincia que procura trazer a
vida para seu campo de interesse. A proposta de co-construir pontes faz sentido, j que
as referidas teorias no chegaram atual forma de fazer cincia pelo mesmo caminho. O
fato de terem feitos caminhos diferentes, no confluentes, mas que se cruzam em alguns
instantes, que possibilita o dilogo, a troca.
Precisamos esclarecer, ainda, que em ambas as abordagens tambm no h
consenso e unidade, muito menos respostas prontas. So teorias em constante
construo e acreditamos que o dilogo entre elas possa permitir uma prtica
psicoteraputica mais rica. Vivemos esta experincia em nossa prtica clinica, mas
teorizar sobre isto por demais importante, possibilita-nos perceber se as conexes que
temos feito entre as duas abordagens tm resultado em uma colcha de retalhos
harmoniosa, esttica. Do contrrio, caso esta colcha no resulte bela, existe a
possibilidade de tambm no ser tica. Sim, porque podemos produzir uma relao
psicoteraputica onde exista um duplo vnculo, uma dupla mensagem. Por exemplo,
colocarmos que acreditamos no poder de um sistema de se auto-organizar e, ao mesmo
tempo, propormos uma srie de frmulas de mudana para as pessoas desse sistema.
Sobre o paradigma da cincia na modernidade, o que percebemos que, apesar
de haver questionamentos envolvendo-o, as questes que por ele foram levantadas ainda
permanecem. Isto porque, apesar do homem ser visto em outras perspectivas,
continuamos a viver o que Mancebo (2002) denomina de uma subjetividade
individualizada. No adianta apenas descrevermos o homem em interao se a sensao
de ciso entre o ser e o mundo permanece. Temos o ser cindido com o seu prprio corpo
e com a Natureza. Um ser que ganhou a liberdade de encontrar o seu lugar, mas que se
v levado a criar outros significados e sentidos em um mundo que chama muito pela
razo e pelo individual.
Nesse mundo, vemos homens cindidos dentro de e entre si. Eles tm uma fuga
do sentir, que os leva a renunciar o amor, apoiando-se em idias de autonomia e
independncia. Mesmo depois de Nietzsche, Darwin e Freud terem colocado por terra a
idia de que a conscincia racional a herana mais valorizada do homem (Perls,
1969/1979), a demanda por este ser racional se faz presente todos os dias. A busca por
objetividade saiu da cincia e solicitada na vida diria, onde os homens so obrigados
a encontrar uma justificativa racional, at para as coisas que simplesmente gostamos de
fazer. E muitas vezes uma postura cindida eu-mundo proposta inclusive nos processos
psicoteraputicos.
Mesmo quando os terapeutas falam da necessidade de sentido e de amor,
definem eles amor e sentido simplesmente como preenchimento das
necessidades emocionais do paciente. Dificilmente ocorre-lhes (...) encorajar o
sujeito a subordinar suas necessidades e interesses aos de outras pessoas, a
algum ou a alguma causa ou tradio fora dele mesmo. (Lasch, 1984, p.34, em
Marolla, 2002, p. 128)
Pertinente lembrarmos que o ps contm o moderno, at mesmo o prmoderno e a idade da pedra, j que estamos apenas comeando o nosso processo de
auto-regulao (Smuts,1926/1996). Nos diversos perodos da humanidade, parece-nos
que uma perspectiva de ver o homem eliminou as outras. No entanto, ainda
necessitamos dos mitos e das religies para compreender o mundo, porque a cincia no
nos d todas as respostas, apesar de ela prpria ter se tornado um mito.
As constantes transformaes que se sucedem no mundo em que vivemos, no
permitem que percebamos claramente alguns contrastes importantes, que ocorrem
naturalmente, passveis de observao quando de uma anlise cuidadosa: ao mesmo
tempo em que a dinmica transformacional se processa com velocidade, temos pessoas
que vivem de uma forma particular, que mais se aproxima do modo de vida das
comunidades medievais, sem muito ou nenhum contato com o mundo virtual. E mesmo
os que vivem no mundo virtual, quase sempre tm um desejo de se conhecerem
pessoalmente, de preferncia tendo um sol bem real por testemunha.
Acontece, portanto, que cada vez estamos mais sem desculpas, cada vez estamos
mais informados do mundo do outro. Sabemos o percentual de brasileiros que passam
fome e os que passam fome vem o mundo dos ricos na TV. Essa quantidade de
informaes est transformando nossa forma de ver e viver o mundo, e tambm
modificando nossos processos de subjetivao. Ao menos teoricamente, deveramos ter
um mundo mais tico, j que temos acesso a um espectro maior de perspectivas, no
entanto, isso no est acontecendo. Mas porque no? A Gestalt-Terapia e as
perspectivas Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais comearam a teorizar
sobre um mundo em constate transformao h apenas cinqenta anos e novas questes
vm chegando desde ento. O que fazer com essas transformaes? Que subjetividade
est sendo co-construda na contemporaneidade e quais seus reflexos na prtica
psicoteraputica? Temos conseguido levar o dilogo para o processo psicoteraputico
mostrar que as questes levantadas at aqui esto muito presentes para os autores
escolhidos para o dilogo que estabeleceremos.
Captulo 2
Da Fenomenologia a Gestalt-Terapia
2.1 A Fenomenologia
Comeamos pela Fenomenologia, pois a partir dela que Frederick Perls apreende as
grandes questes sobre sujeito, subjetividade e intersubjetividade. Estas questes foram
levantadas no apenas a partir da Fenomenologia de Husserl, mas tambm de seus
frutos, como a Fenomenologia Existencial de Heidegger, da Psicologia da Gestalt, da
Teoria do Campo de Kurt Lewin, da Teoria Organsmica de Kurt Goldstein.
As grandes preocupaes da Fenomenologia so: possvel conhecer? como se
processa este conhecimento? possvel a correspondncia no conhecimento entre o que
eu conheo e o que os outros conhecem? (Petrelli, 2001,1999). A partir destas questes,
surgem outras: podemos separar o que conhecer daquele que conhece? Ou, nos termos
da Gestalt-Terapia, como fazemos contato com o mundo? Assim, as questes da
Fenomenologia e do Construtivismo se encontram na pergunta de como se d o
processo do conhecer e reintegrar ao conhecer aquele que conhece.
possvel, ou seja, podem haver tantas essncias quantas significaes nosso esprito for
capaz de produzir (Holanda, 2002).
Para a Fenomenologia s faz sentido compreender o homem e o mundo a partir
do vivido, ela repe a essncia na existncia (Merleau-Ponty, 1945/1996). A
Fenomenologia, portanto, a cincia da experincia, no de dados de fato. Logo,
(...) buscar a essncia do mundo no buscar aquilo que ele em idia, uma vez
que o tenhamos reduzido a tema de discurso, buscar aquilo que de fato ele
para ns antes da tematizao (...) Portanto, no preciso perguntar-se se ns
percebemos verdadeiramente um mundo, preciso dizer, ao contrrio: o mundo
aquilo que ns percebemos. (...) O Mundo no aquilo que penso, mas aquilo
que eu vivo; estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele,
mas no o possuo, ele inesgotvel. (Merleau-Ponty, 1945/1996, p.13/14)
A palavra Fenomenologia significa o estudo do fenmeno. Por sua vez, fenmeno vem
da expresso grega fenomenon e deriva do verbo fainestai, que quer dizer mostrar-se a
si mesmo, aquilo que vem luz, que se mostra, a manifestao daquilo que se
esconde. Fenomenologia (phenomenon + logos) significa o discurso sobre aquilo que se
mostra como . A partir desta definio, pode-se dizer que todo aquele que se prope a
descrever ou estudar aquilo que aparece, ou que se prope deter-se em sua cincia,
chamado de fenomenlogo.
A Fenomenologia proposta por Husserl (1859-1938) comeou a se organizar no
final do sculo 19 com Franz Brentano (1838-1917). J no sculo 20, Husserl buscou
atender aos reclamos de uma poca em relao a duas ordens de fenmenos: os
fenmenos objetivos estudados pelo mtodo experimental, consagrado pelo ideal de
cientificidade alcanado pelas cincias da natureza, e os fenmenos subjetivos da
conscincia, indagados pela Filosofia (que ainda no era considerada cincia pela
ausncia de objetividade e mtodos precisos). No entendimento de Abbagnano (Bruns,
2001), a cincia, na qualidade de cincia dos fatos, nada diz a respeito do sentido ou da
falta dele na existncia humana, e isto foi, exatamente, o que constituiu a busca de
Husserl.
A Fenomenologia nasce como uma crtica epistemolgica, ou seja, como uma crtica ao
conhecimento (Critelli, 1996), como um questionamento acerca da crise das cincias.
E desta crtica que derivou um mtodo que, mais tarde, tornou-se a Filosofia
propriamente dita (Holanda, 2002), j que a cincia libertadora costuma trazer, tambm,
possibilidades terrveis de subjugao. E sob esse aspecto de ambigidade, de
complexidade, que devemos compreend-la. A propsito desse aspecto dual, Husserl j
o questionava na Europa entre as guerras, onde, apesar de todos os avanos cientficos,
os homens presenciavam a ascenso de um irracionalismo na Alemanha. E sob esse
irracionalismo, que iria fazer sofrer o prprio Husserl, definiu-se a sua principal
questo, que era qual o papel dos filsofos e dos cientistas nessa grande crise, j que a
tarefa destes seria a de servidores da razo, pelo menos a princpio.
Sobre esse questionamento, Husserl (1936/1984) colocou em um dos seus
ltimos escritos, editado postumamente, que a crise das cincias no a crise de sua
cientificidade, e sim a crise de que se as cincias em geral tm significado e o que
podem significar para a existncia humana. Na segunda metade do sculo 19, Husserl
procurou chamar a ateno para como a viso de conjunto do homem moderno se
deixou influenciar pelas cincias positivas e como, tambm, deixou-se deslumbrar pela
prosperidade que da derivava. Isto significou o afastamento das cincias dos problemas
decisivos para uma autntica humanidade. Ao criticar essa cincia, afirmando que ela
exclua aqueles problemas que eram os mais candentes para o homem, os do sentido e
do no-sentido da existncia humana, Husserl esclareceu que no se referia a uma crise
de verdades, mas a uma crise de sentido. Perguntava Husserl, ainda, o que tinha esta
cincia a dizer sobre a razo e sobre a no-razo, j que as categorias cientificas
substituram o concreto, o mundo-da-vida e houve um esquecimento das origens,
consolidou-se a tendncia de considerar a cincia como realidade autnoma e mais
objetiva que o mundo da vida ou como nico aspecto do mundo da vida.
A grande crtica que Husserl fez s cincias foi sobre a ignorncia dessas
cincias em relao aos seus prprios fundamentos.
A cincia a conscincia que se perdeu no mundo, abandonou-se entre os seus
prprios objetos, alienou-se entre seus prprios objetos, alienou-se no seu
prprio conhecimento e enfeitiou-se pela tese da existncia. O esforo de
Husserl resgatar o sentido prprio da racionalidade, no apenas como
conhecimento, mas tambm como reflexo. ai que entra a Cincia de Rigor. Se
por um lado a cincia busca a exatido, o clculo de possibilidades, a Filosofia
busca, por outro lado, o rigor e o exame criterioso das possibilidades. (Wuensch,
1993, p. 94, grifos da autora)
Cincia de Rigor pelo fato de Husserl no pretender renunciar objetividade da
cincia, mas reintegr-la ao mundo da vida.
A fenomenologia no nem mesmo uma oposio metafsica; ela apenas a
busca de tornar acessvel ao pensar aquilo que atravs da metafsica se manteve
em ocultamento para o pensar, se manteve esquecido. Merleau-Ponty fala do
pensar impensado. Husserl chama o pensar para que se volte coisa mesma.
Heidegger indica a superao da representao e a aponta para a apropriao
do ser. (Critelli, 1996, p.31, grifos da autora)
para que o que evidente, aquilo que passa despercebido, possa aparecer. E
justamente pelo fato de sermos ser-no-mundo que no h possibilidade de uma reduo
completa.
A reduo no significa absteno ou anulao dessa relao. O que a poch
possibilita uma desconstruo da experincia, em nveis cada vez mais profundos. a
nica forma de reflexo que no anula o irrefletido, mas o manifesta (von Zuben, 1994).
Na reduo, h aniquilamento,
(...) uma destruio ou uma perda do mundo tal como o vivenciamos
espontaneamente. No se trata, porm, de nenhuma agresso emprica ao mundo
mesmo, nem existncia em geral. O que ocorre a criao de um estado de
conscincia, onde o mundo est em suspenso, enquanto fato, enquanto tese
ingnua, ou, conhecimento ignorante de seus prprios fundamentos (...). O
mundo esta a para ns, porm agora entre parnteses. proibido fazer
afirmaes sobre a existncia. permitido fazer e encaminhar investigaes,
des-construes e descries daquela experincia sobre a qual se produzem
teses. (Wuensch, 1993, p. 21, grifos da autora)
Segundo Vanni-Rovighi (em Giovanni, 1991), uma questo importante que
surge em funo do pensamento de Husserl que preciso vermos se dar significado
significa criarmos ou revelarmos o significado. Para Giovanni (1991), Husserl nem
sempre claro neste sentido, parecendo oscilar do primeiro para o segundo significado
em perodos diversos do desenvolvimento do seu pensamento.
Assim, a reduo nunca acaba de operar, pois, para a Fenomenologia, o ser que
aparece e desaparece no aparecer dos entes deve ser compreendido como um vir-a-ser
na cotidianidade da existncia. O que resiste aos ataques da poch, ou seja, o que no
se pode pr entre parnteses, a conscincia ou a subjetividade. A conscincia no
apenas a realidade mais evidente, o fundamento de toda a realidade. O mundo segundo
Husserl constitudo pela conscincia no sentido de que a conscincia que d
significado ao mundo. Segundo Cabrera (no prelo), da essncia de toda conscincia
intencional abrigar coisas que chamamos de sentido (sinn), e eventualmente um
mltiplo sentido. Inclusive em Husserl, sentido vai ser retirado da esfera da linguagem e
colocado no plano do ato intencional: intencionalidade dirigir-se a algo por meio de
um sentido, ter em mente, mentar, meinem. Inicialmente Husserl em Idias I sentido
identificado com significado (bedeutung). Mas depois coloca que: A Bedeutung no
possui originariedade, a intencionalidade primordial vem do Sinn, mas por outro lado, a
2.1.5
questo
do
ser
Provisoriedade,
mutabilidade
relatividade
As crticas realizadas por Husserl s cincias chegam s ltimas conseqncias com
Martin Heidegger, em sua obra Ser e Tempo. Ao questionar o saber metafsico, que
pressupe que a verdade seja estvel e absoluta, bem como a via de acesso a ela,
Heidegger, tal como Husserl, props a Fenomenologia como uma cincia das essncias.
No entanto, sua grande preocupao era a questo do ser, esquecida pela Filosofia
ocidental.
Para deixar clara a sua preocupao, Heidegger preferiu falar de ser (dasein, sera) ao invs de subjetividade, pois esta ltima foi forjada na modernidade e se reporta
mais a respeito do homem visto como Cogito, como Razo (Critelli, 1996; Marcondes,
1997/2002). Heidegger pretendia expressar no apenas o homem sujeito epistmico,
mas existencial, realizador de cuidados.
Heidegger acaba por propor uma nova ontologia. J que o conhecimento do
mundo deixa de ser tratado como uma questo cognitiva para ser tratado sob o prisma
da existncia. Em funo disso, a Fenomenologia embasada em Heidegger
denominada de Fenomenologia Existencial ou mesmo Filosofia da Existncia.
Ou melhor, subordina a possibilidade do conhecimento s possibilidades
existenciais; o pensar se estabelece sobre o ser, evidenciando-o. Assim, a tarefa
de se pensar a possibilidade de uma metodologia fenomenolgica de
conhecimento , em ltima instncia, uma reflexo sobre o modo humano de
ser-no-mundo, inclusive tal como desdobramento na tradio da civilizao
ocidental. (Critelli, 1996, p.16)
Toda interrogao ou investigao do real tem por fundamento, explcita ou
implicitamente, uma compreenso do que seja ser. O ser no est por trs das
aparncias, mas nelas mesmas. O ente carrega em si seu ser, seu aparecer e desaparecer,
seu estar luz e estar no escuro. O ser no est na sombra do que est luz, mas est no
ente. Portanto, est naquilo que se mostra. Assim a aparncia, para a fenomenologia,
A tematizao da intersubjetividade uma prtica recente na Filosofia, e devemos muito Fenomenologia de Husserl pela sua
contribuio, no sentido de pr o outro como uma questo para a reflexo (Wuensch, 1993). Por isso, apresentaremos, em linhas
gerais, como Husserl chegou ao tema da intersubjetividade.
A questo que levou Husserl a suspender a atitude natural e abrir o campo para
uma investigao transcendental foi: como opera a conscincia ou como, por meio de
suas operaes conhecemos o mundo e a ns mesmos? E, ao efetuarmos a reduo,
temos o plo subjetivo (o fluxo da conscincia do eu transcendental) e o plo objetivo
(que compreende tudo que aparece conscincia). Podemos perceber que a
Fenomenologia no fica apenas em um solipsimo ( solus ipse, que quer dizer um s si
mesmo). Nesse contexto, tornou-se imprescindvel Fenomenologia a questo do outro
eu, do alter ego (Villela-Petit, 2001).
Assim surgiu o tema do compreender. Segundo Dartigues (1973), compreender e intencionalidade esto ligados, j que
compreender procurar pela inteno desaparecida, perguntando-se: o que se quis dizer? O que se quis fazer? O
comportamento humano pode ser compreendido porque exprime uma inteno que nos acessvel. Compreender , portanto,
resgatar a dimenso subjetiva, intencional, que nos torna humanos. O homem compreende uma coisa quando sabe o que fazer
com ela, do mesmo modo compreende a si mesmo quando sabe o que pode fazer consigo, isto , quando sabe o que pode ser
(Giovanni, 1991).
Compreender , ainda, reapoderarmo-nos da inteno total, o que se distingue da inteleco, da representao. E procurarmos
perceber de todas as formas ao mesmo tempo, onde todas as vises so verdadeiras quando no as isolamos. quando as
perspectivas se confrontam e um sentido aparece na interseco de nossas experincias com as do outro. Por tal razo, no
podemos separar subjetividade de intersubjetividade (Merleau-Ponty, 1945/197).
Assim sendo, a Fenomenologia, com Heidegger, desloca sua ateno ainda mais
para o sentido do ser e passa a colocar que o sentido do ser no abandona o homem. E
lembra que as cincias que procuram por controle no desvelam o sentido da existncia,
no falam sobre a condio no mundo, o homem continua se perguntando sobre o
sentido do ser, porqu este vai embora. Somente a partir da perda do sentido do ser
que o pensamento encontra seu apelo para pensar. Apenas diante de um vazio de sentido
para o ser, que torna insignificantes os significados tcitos e outrora claros de todas as
coisas, que o pensamento se lana na aventura de saber, de conhecer. o sentido de
ser-no-mundo, como homens, cuidando concreta e expressamente de habitar o mundo e
interagindo com os outros homens, o que provoca o pensar fenomenolgico. o sentido
do ser o que preocupa a Fenomenologia, porm, compreendendo de antemo que todo
saber a seu respeito nunca seno relativo e provisrio (Critelli, 1986, p. 23). No faz
sentido, portanto, um saber que conhece, mas no conhece quem conhece.
2.2 A Gestalt-Terapia
Estamos nos referindo a obra de Perls, Hefferline e Goodman. No entanto, no incluiremos o nome de
Hefferline nas citaes da segunda parte da obra, a que foi traduzida para o portugus, j que sabemos
que foi elaborada apenas por F. Perls e Goodman. Das citaes desta obra, constam o captulo e a seo
correspondentes.
Apesar de Laura Perls no aparecer como autora do livro, sabe-se que ela escreveu alguns dos artigos
dele constantes, e que as observaes sobre a relao me-filho so fruto de suas pesquisas sobre os
mtodos de alimentao infantil (Rosenfeld, 1977).
Laura Perls, ainda sem conhec-los. Parece-nos, assim, que seria impossvel para
Goodman apenas dar forma s anotaes de Perls. Goodman passou a ser um coconstrutor da Gestalt-Terapia e acabou por fazer mudanas radicais ao trazer
para a Gestalt-Terapia um enfoque ainda mais relacional psicoterapia.
E esse novo enfoque tambm pode ser considerado ecolgico, posto que
Goodman parece-nos ter sido mais reconhecido pelo movimento ecolgico
americano do que como psicoterapeuta. Mas, mesmo com essas novas perspectivas,
a Gestalt-Terapia permaneceu ligada Psicanlise ao no perder de vista o
indivduo (From & Miller, 1997).
A Gestalt-Terapia lanou-se formalmente em guas distantes daqueles onde
a psicanlise, o behaviorismo e qualquer outra teoria durante esse perodo
pescava suas verdades. Uma mudana radical no posto de observao para
o entendimento psicolgico est proposta nesta passagem. O self agigantado,
egocntrico da psicanlise no o nico objeto de psicoterapia; de fato,
freqentemente diminui de tamanho e quase desaparece de vista, tornandose parte do fundo, de onde pode ser retirado, contudo, quando preciso. O
local primordial da experincia psicolgica, para onde a teoria e prtica
psicoteraputicas tm de dirigir sua ateno, o prprio contato, o lugar
onde self e ambiente se organizam seu encontro e se envolvem mutuamente.
(From & Miller, 1997, p. 23)
Podemos perceber, ento, a presena de uma teoria amplamente compatvel
com as grandes discusses contemporneas, em 1951, no livro que funda a GestaltTerapia. As idias e a perspectiva de ser-no-mundo propostas nesta obra so to
novas que mesmo Gestalent-Terapeutas de longa data voltam ao texto que
inaugura a Gestalt-Terapia para procurar compreender uma teoria que questiona
vrios de nossos paradigmas. Do referido texto j constavam vrios temas que hoje
so colocados como novidade para muitas abordagens psicoteraputicas, como a
perspectiva Sistmica Construtivista Construcionista Social. A Gestalt-Terapia
nasceu apontando para uma nova perspectiva, em uma poca que levava frente
os questionamentos de Nietzsche, como vimos no Captulo 1. Os autores
procuraram descrever as relaes no mundo em constante transformao, em um
momento em que se assumiu o mundo cada vez mais sem fundao, bem como foi
retomado o papel do corpo, das emoes, da imprevisibilidade e do vivido, antes
colocados de lado pela cincia.
Esalen ficou conhecido por ser um centro formador do potencial humano, na dcada de 60, e onde Perls
morou e divulgou a Gestalt-Terapia, nos ltimos anos de sua vida.
conceitos nos ajudam a explicitar a forma criativa da Gestalt-Terapia falar de serno-mundo e de suas implicaes psicoteraputicas. Por meio deles, os criadores da
Gestalt-Terapia conseguiram sintetizar os fundamentos bsicos da referida
Psicoterapia.
Definio do vocbulo self no Cambridge Dictionary (2001, p.576): your characteristics, including
your personality, your abilites, our sense of self. Definio do vocbulo self no Dicionrio Houaiss
Ingls/ Portugus (1982, p. 701) eu, ego, pessoa, a prpria pessoa, si mesmo, personalidade,
Como utilizaram um conceito antigo para propor algo novo, isso trouxe uma certa
dificuldade, como veremos adiante. Por meio dos conceitos de self e contato
poderemos perceber como a Gestalt-Terapia, introduzida por Perls e Goodman,
fundamentalmente relacional.
Assim, comeamos levantando as definies propostas no texto de 1951 e,
concomitantemente, trazemos algumas das reflexes mais atuais sobre a questo
relacional na Gestalt-Terapia e os novos paradigmas que esto sendo propostos.
Perls e Goodman (1951/1997) iniciam o primeiro captulo colocando: A
experincia se d na fronteira entre organismo e ambiente (...) Falamos do
organismo que se pe em contato com o ambiente, mas o contato que a realidade
mais simples e primeira (p.41 I, 1). Da termos que partir da interao entre o
organismo e o ambiente em toda investigao biolgica, psicolgica ou sociolgica.
Os contatos esto na fronteira (mas de forma natural a fronteira muda e pode
at, nas dores, estar bem dentro do animal), e eles essencialmente entram em
contato com o novo (p.205 - XII, 1).
Para Perls e Goodman o tema da Psicologia deve ser a operao da fronteira de
contato no campo organismo/ambiente, lembrando que a fronteira de contato no separa
o organismo do seu ambiente; em vez disso limita o organismo, o contm e protege, ao
mesmo tempo, que contata o ambiente (p.43 - I, 3).
O propsito da Gestalt-Terapia analisar a funo de entrar em contato e
intensificar a awareness de entrar em contato. A palavra awareness passou a ser um
conceito fundamental em Gestalt-Terapia, tanto que os tradutores das obras de GestaltTerapia para o portugus tm optado por no traduz-la. Segundo Laura Perls (em
Rosenfeld, 1977) a palavra grega para awareness, aisthanomai, significa I am aware,
percebo, o caminho para a esttica. Essa palavra uma forma intermediria entre o
ativo e o passivo. A pesquisa da palavra no idioma grego revela a seguinte equivalncia:
aisthanomai - perceber, ato de perceber com os sentidos corporais, com a mente,
compreender (Barros, 1999), compreender como se estabelecem relaes de sentido
entre os diferentes elementos do campo.
O contato exige um processo criativo onde o novo vai ser assimilado ou
rejeitado. Todo contato ajustamento criativo do organismo e ambiente (Perls &
Goodman, p. 45 I, 5) e por meio deste ajustamento h mudana e crescimento, assim
individualidade. Ou sense of self: someones consciousness of being separate person, different from
otrher people ( Longman Dictionary of Contemporary Enghish, 1987/2000, p. 1292)
processo vai exigir da funo ego uma maior ou menor deliberao em funo do
que aparece como figura. Podemos, ento, deliberadamente, deixar no fundo as
nossas necessidades fisiolgicas, pois a nossa imagem de bom profissional informanos que devemos terminar o nosso trabalho. Este tambm um processo saudvel,
pois difcil trabalhar com vrias figuras ao mesmo tempo. No entanto, tal
deliberao pode se tornar um padro mais fixo de comportamento e o ego pode se
transformar em uma abstrao, onde passamos a ter uma conscincia de ns
mesmos em um isolamento determinado, e nem sempre em contato com alguma
coisa (Perls & Goodman, 1951/1997 X, 7), no permitindo a reatualizao
constante.
A funo self, portanto, parece-nos ficar privada da totalidade de
informaes do campo, j que este percebido como dicotomizado, e no como
algo em que nos transformamos pelo crescimento. Perdendo a conscincia da
totalidade, temos dificuldade de estabelecer o sentido de nossa experincia, o
sentido da ao vai ficando pouco claro ao deixar de ser alimentado pelas nossas
sensaes corporais, no sendo percebido como uma atividade integradora com o
meio.
Visto o self como integrador, percebemos que uma teoria que proponha a remoo
de conflitos internos no faz sentido para a Gestalt-Terapia, j que os conflitos so
do campo. Para a Gestalt-Terapia, a distino entre intrapessoal e
interpessoal pobre, porque toda personalidade individual e toda sociedade
organizada se desenvolvem a partir de funes de coeso, que so essenciais tanto
para a pessoa quanto para a sociedade. No entanto, a expresso conflito interno
contm uma verdade importante, j que:
so todos em geral confiveis e no-neurticos; pode-se confiar em que
sejam auto-reguladores; demonstram sua eficcia h milhares de anos e no
se modificaram muito. Os conflitos internos, nesse sentido, no so o tema
da
psicoterapia;
quando
esto
inconscientes
pode-se
deixar
que
Por outro lado, o conflito exerce um papel fundamental, pois nos leva
elaborao de algo novo, faz-nos procurar por um ajustamento criativo, e, por isso,
tambm no faz sentido querer remov-lo. a partir desse conflito, que gera
sofrimento, que se tenta ajudar o self a se integrar j que o self refreia seu
prprio desenvolvimento. Consoante para Perls e Goodman (1951/1997, p. 172
IX, 8), s o self que realmente est disponvel para ser ajudado. As normas
sociais no podem ser alteradas pela psicoterapia, e os instintos no podem ser
alterados de maneira alguma.
2.2.2 O ser-no-mundo
Perls e Goodman
(1951/1997) j a expressavam:
instrutivo perceber como, ao discutir este tema, comeam a surgir
dificuldades verbais: homem, pessoa, self, indivduo, animal humano,
organismo so s vezes intercambiveis e s vezes necessrio distingulos. Por exemplo, enganoso pensar os indivduos como sendo primitivos e
estando combinados nas relaes sociais, porque no h dvida de que a
existncia de indivduos surge como conseqncia de uma sociedade muito
complexa. (...) Essas dificuldades podem ser naturalmente evitadas de modo
Apesar de termos visto at aqui muitas das caractersticas que delineiam a GestaltTerapia, no poderamos deixar de mencionar e de concordar com o pensamento de
Tellegen (1984). Para ela falta Gestalt-Terapia expressar-se de forma mais clara sobre
os aspectos sociais do contato. Interessante constatarmos, no entanto, que Goodman e F.
Perls, unidos pelos seus escritos anarquistas, no poderiam construir uma abordagem
psicoteraputica sem que considerassem os fatores sociais como essenciais na formao
da personalidade. E Perls e Goodman (1951/1997) nos lembram que, apesar de termos
muitos comportamentos considerados anti-sociais, existem muitos costumes e
instituies que so antipessoais, ou, como em suas prprias palavras, se tivssemos
instituies sensatas, no haveria nenhum neurtico (p. 117 VI, 3). Costumes e
instituies so antipessoais na medida em que no permitem o que Perls colocou como
agresso, que no permitem a destruio (desestruturao) de um todo para assimil-lo
como partes de um novo todo. As crticas de Perls ao social ficam claras em sua fase de
Esalen, talvez por isso a nfase que conferiu necessidade de auto-suporte.
2.2.2.3 A linguagem
foi
vinculado
intencionalidade corporal.
por
Merleau-Ponty
ao
que
ele
denomina
parece semelhante colocada pelo autor como Fenomenologia da palavra viva, que
supe uma conscincia temporal, uma corporalidade como constituinte de
significacidade, e uma intersubjetividade como outricidade co-constituinte
(Cabrera, no prelo, p.186 II.2.1)
Na descrio das funes do self a linguagem no foi esquecida. Ao
descrever a funo personalidade do self, Perls e Goodman. (1951/1997- X, 8) a
colocam como essencialmente uma rplica verbal do self (p.188). Portanto, a
linguagem so as representaes que fazemos de ns mesmos e a forma com que
nos apresentamos e nos responsabilizamos diante do mundo. Neste sentido, um
aspecto bastante conhecido. E quando o comportamento interpessoal no est
fluindo, o que denominavam neurtico, a personalidade consiste em alguns
conceitos fixos a respeito de ns prprios. Alguns autores da Gestalt-Terapia tm
associado esta funo a narrativas que fazemos sobre ns (Robine, 2001a).
Provavelmente, h muito se tem vivido esse conflito entre a harmonia social
e uma expresso individual. Talvez o sofrimento concomitante e o movimento em
direo a uma soluo desconhecida sejam as bases do excitamento humano
(Perls & Goodman, 1951/1997, p. 126- VI, 11).
no reino dos significados e sim no dos sentidos (veja item 2.1.8), pois toda
compreenso est sempre sintonizada com o humor (p.198, 31).
Como a Gestalt-Terapia busca a totalidade, a integrao, isto exige do
psicoterapeuta e do cliente o trnsito por vrias partes do campo, j que o sentido
emerge da relao. Estarmos atento s emoes, e no apenas s verbalizaes,
uma forma de estarmos na fronteira de contato do organismo/ambiente. Assim
tambm o com o que chamamos de mental, j que as emoes so unificaes ou
tendncias unificadoras de certas tenses fisiolgicas com situaes ambientais,
conectando as nossas necessidades e os nossos sentimentos com os objetos do
mundo. As emoes so meios de cognio, posto que so a maneira pela qual nos
tornamos conscientes da adequao de nossas preocupaes (Perls & Goodman
1951/1997-XII, 6). A Gestalt-Terapia acredita que o seu papel de restaurar a
awareness espontnea parte do organismo e de suas emoes, pois, como so
genunas, fazem-nos procurar sempre pela fluidez.
importante ressaltarmos aqui, tambm, a presena da Fenomenologia, j
que alguns crticos desta acham que quando se prope a suspenso dos a priori
inclui-se a emoo, o corpo. Outros percebem a Fenomenologia apenas como uma
teoria idealista. O que vemos justamente o contrrio, dado que a prpria
possibilidade de intersubjetividade se d a partir do corpo. O que a Fenomenologia
se prope a colocar como a priori so as representaes j prontas, as categorias
cientficas, tudo que nos afasta da experincia, do vivido. Neste ponto, temos a
ligao da Fenomenologia de Husserl com o Holismo de Smuts e com a Teoria
Organsmica de Goldstein. Essas relaes esto muito claras nas obras de MerleauPonty, como Fenomenologia da Percepo (1945/1996) e A Natureza (1995/2000),
por exemplo. Tambm a obra de Heidegger, Ser e Tempo (1927/2000), deixa-as
claras ao abordar os estados de nimo.
2.2.3.3 A compreenso
Uma
das
implicaes
dos
princpios
da
Fenomenologia
no
processo
abrir
mo,
at
mesmo
do
que
chamamos
resistncia,
sem
O fato de descrevermos o ser como possibilidade, tal como Heidegger o fez, produz
mudanas radicais no processo psicoteraputico. O problema deixa de ser estarmos ou
no em contato com o que realmente somos, ou com a nossa mais profunda identidade.
Mas passa a ser, de preferncia, recuperarmos a flexibilidade em nossas fixaes, em
nossos discursos, em nossas histrias, em nossas narrativas e nos mitos que usamos
todos os dias ao cont-las para ns mesmos e para os outros (Epstein, 1995, em Robine,
2001a). Sob esta perspectiva, ns perdemos as certezas de que temos riquezas
internas, identidades fixas, possibilidade de objetividade, os padres de normalidade e
todas as tcnicas que derivaram das idias normativas. Na clnica e na relao
teraputica, perdemos a posio de poder e de dominao e nossos pacientes perdem a
vergonha de no saberem, de serem controlados sem saber por foras escondidas e por
verdades invisveis (Robine, 2001a). E o psicoterapeuta convidado a se posicionar
como um curioso, como um ingnuo, dialogicamente exposto subjetividade de outra
pessoa, e a no manter a postura de um especialista.
Quando mudamos o foco para uma teoria processual de um self fludo, a
questo que nos colocada como ele se estabiliza. E nas teorias que esto
baseadas em uma percepo intrapsquica de self, a questo como as mudanas
ocorrem (Philippson, 2001). Esta questo muda por completo a viso, pois
partirmos
do
funcionamento
saudvel,
fluido.
funo
do
processo
psicoteraputico passa a ser no apenas a de dar suporte interno, mas sim a de ser
a restaurao desta awareness espontnea. Ajudar a experienciar a incerteza, a
mudana e a angstia da eterna novidade do mundo.
Falarmos de possibilidades, ento, falarmos de contato. E e temos que nos
remeter responsabilidade tica de cuidar deste contato que nos fora a lidar com
mltiplas perspectivas. Contato sinnimo de cuidado (Ribeiro, 1997). Temos que dar
conta de cuidar do nosso ser possibilidades e do ser do mundo que est sob os nossos
para o que Ribeiro (1994) descreve como psicoterapia individual em grupo, do que para
psicoterapia do grupo, dado que o seu foco no eram as relaes grupais. Todavia, Perls
sempre colocou, assim como tambm os behavioristas, a necessidade de estarmos muito
atentos ao meio. Alm disso, Perls mostrou que ao formar um campo com o cliente,
surgem fronteiras nesse campo, que podem ser as que emergem como figura para serem
colocadas como figura/tema no processo psicoteraputico.
A noo de uma continuidade e de uma regularidade do self tambm est
presente na obra de Perls e Goodman (1951/1998), inclusive formando parte do self
saudvel, j que, igualmente, a preservao um aspecto da auto-organizao criativa.
Portanto, o contato no pode aceitar a novidade de forma passiva ou meramente se
ajustar a ela, porque a novidade tem que ser assimilada (p. 44/45 - I, 5 ), porque a lei
bsica da vida auto-preservao e crescimento (...), o que mais vulnervel e valioso
defendido primeiro, como um cisco no olho sensvel a dor mais intensa e exige
ateno; esta a sabedoria do corpo (p. 88 - IV, 5). Para Smuts (1926/1996), no
contnuo da evoluo h mais preservao que mudana. E, como j vimos, um self
flexvel o que est mais ligado idia de sade e criatividade em Gestalt-Terapia, no
entanto, preserva-nos tambm uma resposta criativa.
Assim, no h como no colocarmos a Gestalt-Terapia como uma psicoterapia
do campo, apesar de todas as suas variaes. Para tanto, e para deixarmos nossa
afirmao mais clara, adaptamos a comparao feita por Wheeler (1996, em Robine,
2001a, p. 76/77) entre uma psicoterapia mais centrada em uma perspectiva do
paradigma individual e uma mais centra no paradigma do campo. Nossa adaptao
constitui o Quadro1, abaixo.
Paradigma individual
Self
Outro
Natureza
humana
Relao
Fronteira
Posio do
observador
Viso
da
Realidade
Terapia
Remoo
de Suporte de um processo de self mais
bloqueios/distores
da robusto, para o contato intersubjetivo.
descarga de tenso.
Hierarquia,
expert, Consensual, processo dialgico.
Natureza
orientao
de
certoda
autoridade errado.
Expresso mxima do self. Contnuo processo de significao.
Sade
Autoritrio, de mo nica. Dividido, colaborativo.
Poder
Quadro 1 - Adaptao do trabalho de Wheeler (1996, em Robine, 2001a).
que,
ao
apresentarmos
Construtivismo
perspectiva como em outra pode nos levar a no percebermos o todo. So estas questes
que continuaremos a discutir no prximo captulo a partir da perspectiva de alguns
autores que tem marcado bastante a Psicoterapia Familiar e Comunitria,
principalmente depois da articulao da perspectiva sistmica com o Construtivismo e
com o Construcionismo Social. Poderemos perceber que esto presentes para estes
autores as questes da subjetividade e da intersubjetividade. Tambm veremos quais as
questes que tem sido levantadas pelos Construcionistas Sociais para questionar o
conceito de intersubjetividade.
Captulo 3
Do Sistema, do Olhar do Observador
Compreenso
inteligibilidade suas teorias. Cabe-nos ressaltar que a Teoria Ciberntica uma busca
pelo controle e no da compreenso.
Por meio da Teoria Ciberntica, Bateson reconheceu, principalmente, o fato da
chamada Teoria Ciberntica de Primeira Ordem descrever a idia de retroalimentao
(feedback) e de circularidade. Este conceito foi desenvolvido, entre outros, por Wiener,
Rosenblueth, Kurt Lewin, Margareth Mead e pelo prprio Bateson (Capelo, s/d/2002).
A idia de crculos retroativos questionou a causalidade linear ao mostrar que os fatos
podem se tornar causadores ao retroagirem sobre a causa. Tambm questionou como o
sistema consegue a informao necessria para se autocorrigir em seu esforo para
Ideologias fortes que antigamente competiam uma com a outra agora esto
sendo combinadas. Tcnicas agressivas esto dando lugar a mtodos sutis, mais
cooperativos, medida que um deslocamento da ao para o significado provoca
uma menor urgncia para se controlar as famlias com a desculpa de ajud-las.
(Nichols & Schwartz, 1995/1998, p.vii)
A partir dessas mudanas, podemos perceber a introduo de um novo
paradigma e, com isto, caracterizar uma terapia dentro dos parmetros da psmodernidade (Grandesso, 2000). O Grupo de Milo foi marcante nesse processo
(Cecchin, 1995/1998), que props um retorno ao pensamento de Bateson. Mas foi
somente a partir dos trabalhos de Tom Andersen, Harold Goolishian, Harlene Anderson,
Lynn Hoffman e Michael White que o pensamento ps-moderno passou a estar mais
presente na prtica clnica (Lax, 1995/1998). Estes terapeutas propuseram a entrada do
terapeuta no sistema familiar e sua sada da posio de especialista, de normatizador do
desenvolvimento. As verdades universais do lugar a uma pluralidade de idias sobre o
mundo. A relao teraputica deixa de ser percebida como uma guerra de poder, na qual
a famlia no queria mudar e o terapeuta deveria introduzir a mudana a qualquer custo.
As abordagens teraputicas dentro desse novo paradigma consideram que as
metforas tericas que usamos so apenas construes sociais teis, e, sendo assim, no
podem ser consideradas como representaes da realidade ou ideologicamente neutras.
As teorias so consideradas lentes provisrias e seu valor no determinado pelo seu
valor de verdade, mas sim por sua utilidade como marco gerador e organizador de
significados teis para a compreenso dos dilemas humanos (Grandesso, 2002).
3.1.3 O Construtivismo
As abordagens teraputicas foram se organizando em torno de um conjunto de
princpios de derivaes prticas organizadas pelos enfoques Construtivista e
Construcionista Social (Grandesso, 2002). Estes enfoques no formam um grupo
homogneo e recebem uma srie de denominaes: Construtivismo Radical,
Construtivismo Crtico ou Psicolgico, Construtivismo Moderado, Construtivismo
Dialtico, Construtivismo Cultural, Construtivismo Epistemolgico, Construtivismo
Hermenutico, Construtivismo Teraputico, Construtivismo Social, Construcionismo
Social, Construcionismo Social Responsivo-retrico, entre outros (Grandesso, 2000;
2002).
Os autores citados sero o foco deste captulo, entretanto, vale o nosso registro
de que constituem apenas um recorte do muito que se tem discutido sobre sujeito,
subjetividade e intersubjetividade nas Psicoterapias Familiares ou nos sistemas ntimos.
deste ltimo. Estes autores falam de um indivduo como uma entidade autnoma e que
encerra em si uma temporalidade. A distino entre organismo e meio ser produzida de
maneira correlata da operao de instituio da unidade. Esse ato de instituio da
unidade o prprio ato cognitivo. Desse modo, a cognio sempre produtora, e o
indivduo que se produz o resultado, nunca definitivo, de uma srie de perturbaes
que ele prprio sofre enquanto ser vivo. Assim, o processo de individuao
permanente, o que implica que no possamos falar de um indivduo produzido, mas
sempre a produzir-se. Um indivduo que dependente de sua histria, mas seus estados
anteriores nada podem informar a respeito dos rumos que o sistema ir tomar uma
histria de imprevisibilidades (Leal, 1993).
Maturana (2001) procurava entender o que acontecia com uma salamandra, um anfbio
com alto poder de regenerao, caracterstica que possibilitava sua manipulao e o giro
de seu olho em 180 graus. Quando os bilogos faziam tal procedimento, o animal
passava a colocar sua lngua para trs, na tentativa de pegar um inseto que passava sua
frente. Para Maturana, o que este experimento nos ensina que o ato de lanar a lngua
e capturar o bichinho no um ato de apontar para o objeto externo, mas de fazer uma
correlao interna. Ou, ainda, no apenas o externo que determina nossa experincia.
Percebemos algo semelhante quando temos a sensao de que estamos partindo,
quando, de fato, o trem ao lado do nosso que est.
Quer dizer, ao perguntarmos pela origem das nossas capacidades cognitivas do
observador no podemos deixar de ver que estas se alteram ou desaparecem ao
alterar-se nossa biologia, e que no podemos desprezar mais nossa condio de
seres que na experincia no podem distinguir entre iluso e percepo
(Maturana, 1998, p. 47).
Com outros experimentos de percepo, Maturana e Varela (1987/1995)
procuraram mostrar com os experimentos de pontos cegos que no vemos que no
vemos. Outro fato que nos chama a ateno que os estados de atividade neural, como
enxergar o verde, por exemplo, podem ser desencadeados por uma variedade de
perturbaes luminosas distintas. As pesquisas mostram que possvel correlacionar o
nomear de cores com estados de atividade neural, mas no com comprimento de onda.
Os estados de atividade neural que so desencadeados pelas diferentes perturbaes em
cada pessoa so determinados por sua estrutura individual, e no apenas pelas
caractersticas do agente perturbador. E partindo assim, de pesquisas experimentais,
Maturana e Varela vo reforar a posio de von Foerster de que todo conhecer depende
da estrutura daquele que conhece. Colocam, ainda, que, ao examinarmos a forma como
chegamos a conhecer o mundo, sempre descobriremos que no podemos separar nossa
histria de aes - biolgicas e sociais - de como o mundo nos parece ser. Refletindo
sobre o nosso processo de conhecer, descobrimos nossas cegueiras e reconhecemos que
as certezas e os conhecimentos dos outros so to nebulosos quanto os nossos.
vivos, no podemos distinguir iluso de percepo. Colocando a objetividade-entreparnteses, me dou conta que no posso pretender que eu tenha a capacidade de fazer
referncia a uma realidade independente de mim (Maturana, 1998, p. 45). Desse modo,
damo-nos conta que, quando aceitamos uma explicao, o que aceitamos no uma
referncia a algo independente de ns, mas uma reformulao da experincia com
elementos da experincia que satisfaa algum critrio de coerncia que ns mesmos nos
propomos explcita ou implicitamente (p. 47). Nesse caminho aceitamos que h vrios
domnios explicativos. No h uma realidade absoluta nem verdade relativa, mas muitas
verdades diferentes. Assim podemos entender que a noo de realidade, tanto num
como em outro caminho, uma proposio explicativa. Exemplificando: as explicaes
cientificas apenas tm validade porque tm a ver com as coerncias operacionais da
experincia no suceder do viver do observador.
prxis do viver
suceder do viver
experincia
Observador
Observar
?
na linguagem
reformular
explicar
(a existncia precede
a distino)
Objetividade
Uma realidade
Universo
(a existncia se constitui
na distino)
emocionar
(Objetividade)
Muitas realidades
Multiversa
que ele faz uso de alguns termos da Fenomenologia de Husserl para organizar o que ele
chama de Fenomenologia Biolgica (Maturana e Varela, 1987/1995).
A objetividade-entre-parnteses nos permite refletir em como a mudana na
nossa biologia, na nossa dinmica emocional, vai marcar o modo como raciocinamos e
como os sistemas racionais se baseiam em premissas aceitas a priori, a razo se funda
nessas premissas. Pois, se a Biologia se altera, altera-se o raciocinar; mais ainda, se
mudamos de domnio emocional, muda o nosso raciocinar. A aceitao apriorstica
das premissas que constituem um domnio racional, pertencem ao domnio da emoo e
no ao domnio da razo, mas nem sempre nos damos conta disto (Maturana, 1998, p.
51, grifos do autor), pois ...no nos damos conta de que todo sistema racional tem um
fundamento emocional (Maturana, 1998, p. 15).
As emoes so disposies corporais dinmicas que definem os diferentes domnios de ao em que nos movemos.
Logo, quando mudamos de emoo, mudamos de domnio. Aceitando nossa biologia, podemos perceber que no o nosso
corpo que limita, mas ele que possibilita a nossa observao, a nossa conscincia e a nossa linguagem. Ao aceitarmos nossa
corporalidade, integramos novamente mente e corpo na questo do conhecimento. Ento, para compreendermos o conhecer,
temos que compreender as condies biolgicas e ontolgicas constitutivas do observador. Inclusive, acabamos por aceitar
certos a priori, pois ainda vivemos as divergncias como ameaadoras nossa existncia. Esta uma marca da nossa cultura,
que confere ao racional uma validade transcendente e no considera o emocional.
Quando nos perguntamos qual a emoo est presente, estamos fazendo uma
distino para percebermos em que domnios de ao a(s) pessoa(s) esta(o).
Ento as emoes surgem como disposies corporais que especificam domnios
de ao. E isto compreensvel biologicamente. As emoes so apreciaes do
observador sobre a dinmica corporal do outro que especifica um domnio de
ao. Nessas circunstncias nada ocorre nos animais que no esteja fundado
numa emoo. (Maturana, 2001, p. 46)
Na objetividade-sem-parnteses no aceitamos a legitimidade do mundo do
outro, acreditamos que se tenha a verdade ou a toleramos, mas no aceitamos o mundo
do outro. E consideramos a iluso como um limitador ou falha no olhar do observador.
S aceitamos a realidade do outro quando estamos na objetividade-entre-parnteses.
necessrio ressaltarmos que Maturana (2001) frisa que objetividade-sem-parnteses e
objetividade-entre-parnteses no so a antinomia objetivo-subjetivo. A objetividadeentre-parnteses significa apenas que no podemos fazer referncias a entidades
independentes de ns para construir o meu explicar. Ficam, ento, algumas perguntas:
como se d a possibilidade de concordncia e convivncia quando no podemos
distinguir entre iluso e percepo? Como podemos ter uma convivncia social?
3.2.3 Autopoiese
A mais reconhecida contribuio de Maturana e Varela a de descreverem o que
chamaram de organizao autopoitica, caracterstica fundamental de todos os seres
vivos. Autopoiese deriva dos vocbulos gregos auto si mesmo e poiesis criao,
produo, significando, assim, criar a si mesmo. Segundo os autores, os seres vivos
eles, ainda, que todo ser vivo (com ou sem sistema nervoso) funciona sempre em seu
presente estrutural. O passado e o futuro so dimenses valiosas, mas no participam do
determinismo estrutural do organismo a cada momento. A dinmica dos estados do
sistema nervoso depende de sua estrutura, da o fato de um animal se comportar de certa
maneira revela que seu sistema nervoso se tornou diferente.
Talvez tivssemos a iluso de que quando conhecssemos muito sobre o sistema
nervoso pudssemos chegar a fazer previses sobre o nosso comportamento ou sobre o
de outros seres vivos, ou, ainda, que realmente estaramos a par dos determinantes
biolgicos do comportamento. No entanto, o que a Neurobiologia tem apontado para
uma enorme plasticidade cerebral, o que faz cair por terra toda essa iluso. Essa
plasticidade do sistema nervoso explicada pelo fato de no nascermos com todas as
conexes nervosas estabelecidas.
mundo preexistente. Quando vamos para outro espao, samos do bvio, das nossas
tradies, sentimos falta no das representaes que fazemos e que eram percebidas
como constantes, mas de um mundo que fruto do nosso corpo em ao. Porm, como
somos capazes de inventar um novo domnio de existncia, essa nostalgia logo passa.
Varela, Thompson e Rosch (1991/2003), ampliaram o aforisma Todo fazer
conhecer e todo conhecer fazer (Maturana e Varela, 1987/1995), e desenvolveram o
conceito de enaction, enao5. O conceito de enaction nos remete a uma cognio,
reflexo encarnada, distinta da cognio entendida apenas como processo mental. A
corporificao do conhecimento inclui tambm acoplamentos sociais, inclusive
lingsticos, o que significa que o corpo no s uma entidade biolgica, j que capaz
de se inscrever e se marcar histrica e culturalmente (Kastrup, 1999).
Para a abordagem atuacionista (enactive), a percepo consiste em ao
perceptivamente orientada e as estruturas cognitivas emergem dos padres sensoriomotores recorrentes que possibilitam a ao ser perspectivamente orientada. O ponto
central desta abordagem como podemos orientar nossas aes em uma situao local,
pois, j que elas mudam constantemente, no podem ser compreendidas a partir de
nossas representaes.
Na perspectiva da enao, no h mais necessidade da representao de um
mundo anterior percepo do observador. No se trata de uma estrada j aberta, mas
sim da construo de um caminho pelo prprio caminhante, que interage com ele
momento a momento (Mariotti, 2000/2003). A nfase na ao no significa uma
aprendizagem no refletida. Para Varela (1998, em Mariotti, 2000/2003), a experincia
uma forma de conscincia, mas uma conscincia da qual falta reflexo. Quando s
temos a experincia no somos mais que um gorila. Ainda bom ressaltarmos que o
que os autores o definem como ao bem amplo. Aes so tudo o que fazemos em
qualquer domnio operacional que geramos em nosso discurso, por mais abstrato que
possa parecer. Assim, pensar agir no domnio do pensar, andar agir no domnio do
andar (Maturana, 2001).
Como sempre, Maturana e Varela procuram na cincia experimental um apoio
para as suas propostas.Varela e Cols (1991/2003) descrevem o experimento de Held e
Hein (em1958) para nos mostrar a relao entre ao e conhecer. Nesse experimento,
gatos foram criados no escuro e expostos de forma controlada iluminao. Os gatos
5
Este conceito foi traduzido por Kastrup (1999) e Mariotti (2000/2003), j o tradutor de Varela,
Thompson e Rosch (1991/2003) optou por atuao ao invs de enao.
Varela e cols. sugerem que devemos escolher o caminho do meio, que devemos
construir uma ponte entre as cincias cognitivas e a experincia. Inclusive pela
necessidade de redefinir a prpria cincia como no necessitando de fundaes, j que a
tica da cincia objetivista est sustentada pela noo de self. Devemos refletir o que
pode ocorrer na cincia quando desafiamos a prpria idia deste self. Quando
consideramos a perda de fundaes como negativa, podemos nos alienar, desesperarmonos ou perdermos o corao. Varela e cols. (1991/2003) encontraram no Budismo
essa possibilidade, pois este mostrou que, quando a ausncia de fundao abraada, o
produto um sentimento incondicional de bondade que se manifesta no mundo como
compaixo espontnea. Como vivemos em uma cultura ocidental muito cientfica,
temos que encontrar um caminho de viver uma cincia sem fundao, um caminho
coerente com nossas premissas culturais e cientficas at o ponto de no precisarmos
mais de fundaes. As possibilidades que colocamos at agora como cultura foram a do
objetivismo ou a do niilismo, todavia, as duas so expresses de uma mente apegada,
pois ao no encontrarmos objetividade sugerimos a polaridade oposta.
Diante disso, a questo : podemos aprender a viver em um mundo sem
fundaes, como o podem alguns que praticam alguns tipos de meditao? Essa
ausncia de fundaes j comeou a ser discutida, como vimos no Captulo 1, por
Nietzsche e pelos chamados pensadores ps-modernos.
diversidade e uma diversidade que organiza a unidade (Morin, 1990/2000). Com estes
argumentos, Morin critica o paradigma holstico, pois considera que este esquece que
um sistema no constitudo de partes, mas de aes entre unidade complexas,
constitudas, por sua vez, de interaes. As partes so eventualmente mais do que o
todo, pois muitas vezes neste processo de globalizao, de progresso, a riqueza pode
estar em pequenas unidades reflexivas desviadas e perifricas que nele se constituram.
Nesse contexto, no podemos deixar de ver a vida e a questo do sujeito e da subjetividade como um feixe de qualidades
emergentes resultantes do processo de interaes e de organizaes entre as partes e o todo. De mesmo modo, quem procura
realizar um pensamento complexo tambm deve levar em conta que este no completo, que se est fazendo um recorte, que
seu conhecimento local e temporalmente limitado. Temos que aprender com a incerteza que tantas vezes a cincia clssica nos
ajudou a evitar, devemos ter a percepo que a histria do pensamento humano est apenas comeando e, mais, precisamos ter
conscincia de que pouco sabemos sobre o processo do conhecer.
A preocupao de Morin, portanto, propor um novo mtodo para o saber, que detecte as ligaes e as articulaes entre partes
e todos. Um mtodo que procure por um princpio organizador do conhecimento, que associe a descrio do objeto com a
descrio da descrio e a descrio do descritor, que outorgue a fora tanto articulao e integrao quanto distino e
oposio. Para Morin (1990/2000), a procura por um mtodo no para encontrarmos o princpio unitrio de todos os
conhecimentos, at porque isso seria uma nova reduo. O seu mtodo um convite a pensarmos na complexidade. A teoria
no nada sem o mtodo, pois no mtodo que est o pleno emprego das qualidades do sujeito, um assumir a subjetividade
com toda a sua criatividade. Ele apresenta, assim, uma proposta de transgresso metodolgica, na qual temos que trabalhar as
possibilidades de no engessarmos os mtodos, as possibilidades de eles serem criados para que facilitem a compreenso de um
fenmeno. Morin (1990), em uma de suas propostas, considera que a Ciberntica trouxe grandes contribuies para a cincia,
quando passou a aceitar a impreciso, a ambigidade, medida que os estudos preliminares sobre o crebro indicavam que uma
das superioridades do crebro sobre o computador o poder de trabalhar com o insuficiente e o vago. Foi preciso passarmos a
aceitar uma certa ambigidade e uma ambigidade certa (nas relaes sujeito/objeto, ordem/desordem, auto/heteroorganizao). Foi preciso reconhecermos fenmenos inexplicveis fora do quadro complexo, como liberdade ou criatividade
por exemplo.
sujeito. Vivemos um paradoxo desde o sculo 17, pois, apesar de que quase em todas as
lnguas temos a presena da primeira pessoa do singular, apesar de nos sentirmos
sujeitos e apesar de vermos os outros como sujeitos, o paradigma de cincia que
adotamos dissolve esse sujeito ou, no mnimo, o divide.
Descartes viu que havia dois mundos: um que era relevante ao conhecimento
objetivo, cientfico o mundo dos objetos; e outro, um mundo que compete
outra forma de conhecimento, um mundo intuitivo, reflexivo o mundo dos
sujeitos. Por um lado, a alma, o esprito, a sensibilidade, a filosofia, a literatura;
por outro, as cincias, as tcnicas, a matemtica. Vivemos dentro desta oposio.
Isso quer dizer que no podemos encontrar a menor sustentao para a noo de
sujeito na cincia clssica. Em troca, enquanto abandonamos o campo cientifico
e refletimos como fez Descartes em seu cogito, o sujeito se torna fundamento,
fundamento da verdade de toda a verdade possvel. (Morin, 1994/1996b, p. 46)
Assim, a cincia clssica eliminou o observador de sua observao e o sujeito
ora a fonte de erros, ora a fonte da verdade absoluta e suprema. Chegamos ao sculo
20 com a cientificidade invadindo a Cincias Humanas e expulsando o sujeito da
Psicologia, que o substituiu por estmulos, respostas, comportamentos; a Histria o
substituiu por determinismos sociais; na Antropologia, surgiu a noo de estrutura. Mas
esse sujeito nunca deixou de ser discutido, problematizado. A cincia nos ajudou e
tambm nos dificultou a compreenso do humano. O homem permanece sendo esse
desconhecido. Hoje, mais por conta de uma m cincia do que propriamente por
ignorncia. Sabemos sobre o objeto, mas quem o conhece no se conhece. E o
pensamento complexo no acredita que possamos conhecer o objeto sem conhecermos a
ns mesmos. O mais grave que so as Cincias Humanas que oferecem a mais fraca
contribuio ao estudo da condio humana no momento atual. Da o paradoxo: quanto
mais conhecemos, menos compreendemos o ser humano. Para deixar isso claro, Morin
(2001/2002) cita Heidegger:
Nenhuma poca acumulou sobre o homem to numerosos e diversos
conhecimentos como a nossa (...) Nenhuma poca consegui tornar esse saber to
pronta e facilmente acessvel. Mas nenhuma poca tampouco soube menos o que
o homem. (p. 16)
Assim, precisamos de uma revoluo paradigmtica que nos permita possibilidades de comunicao e de dilogo, at ento
impossveis entre as concepes de mundo e as diversas cincias. Esta uma condio de sobrevivncia da humanidade, pois
uma condio de verdadeira tolerncia, nem ceticismo mole ou frio relativismo, mas compreenso (Morin, 1990/2001, p. 290).
faz Levinas. Procura englobar as duas vises para reconhecer que a fundao deste
sujeito se d quase que simultaneamente da relao da auto-afirmao do Eu e da
relao com o outro.
Morin (2001/2002, 1990/2001) considera que a linguagem est no
cruzamento dos aspectos biolgico, humano, cultural e social. O esprito humano
emerge do crebro com e pela linguagem. Apesar da diversidade, as lnguas
obedecem a estruturas comuns. Assim:
A linguagem uma parte da totalidade humana, mas a totalidade humana
est contida na linguagem. (...) O homem faz-se na linguagem que o faz. A
linguagem est em ns e ns estamos na linguagem. Somos abertos pela
linguagem, fechados na linguagem, abertos ao outro pela linguagem
(comunicao), fechados ao outro pela linguagem (erro, mentira), abertos s
idias pela linguagem, fechados s idias pela linguagem. (Morin,
2001/2002, p. 37).
origem e trabalharmos por uma liberdade que no seja apenas pessoal, mas
tambm da espcie e da sociedade.
Os meios de comunicao tambm tm criado o desdobramento dos meios de
iluso. E a cada progresso de elucidao corresponde a um incremento na possibilidade
de diversificao e tambm de enganos. Caracteriza-se, assim, mais um paradoxo,
porque apesar do aumento nas possibilidades de comunicao, no h uma diminuio
de conflitos, pois estas no eliminam a necessidade de intercmbios humanos (Morin
em Schnitman & Fuks, 1995).
3.3.9 Intersubjetividade
A Fenomenologia, como vimos, prope uma compreenso a partir da intersubjetividade,
que acreditamos ser semelhante ao que Morin prope ao colocar a necessidade de
compreender a outra concepo, pensando a partir do universo epistmico do outro.
Morin (1990/2000, p. 58) repete que se quisermos achar alguma coisa importante,
crucial (embora no haja UM fundamento da objetividade) esta seria a livre
comunicao; a crtica intersubjetiva o ponto crucial e nodal da idia de objetividade.
Parece-nos que a resposta do que cincia talvez caminhe por a, pois Morin
(1990/2000, 1983) coloca que a ltima descoberta da epistemologia anglo-saxnica
afirma ser cientfico aquilo que reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso
quer dizer que no existe nenhum mtodo objetivo para considerar cincia objeto de
cincia, e o cientista, sujeito (Morin, 1990/2000, p. 119). Talvez, uma das grandes
descobertas cientficas dos ltimos tempos seja a de que a cincia no totalmente
cientfica.
A idia de objetividade o resultado de um processo crtico desenvolvido por
Assim como os outros autores que temos apresentado neste trabalho, os Construcionistas Sociais tambm percebem a
necessidade de encontrarmos outras formas de compreenso da sade mental fora dos modelos que se originaram na perspectiva
Iluminista. Juntamente com o construtivismo e a fenomenologia, o construcionismo forma (ainda que em bases distintas) um
desafio crtico ao dualismo sujeito-objeto sobre o qual se fundamenta a viso tradicional do terapeuta-cientista (McNamee e
Gergen, 1995/1998, p. 8). Isso implica uma modificao na viso de conhecimento como representao. O conhecimento passa
a ser percebido como algo que produzido na relao entre as pessoas (Rasera & Japur, 2001).
Anderson e
pertinente. E o que vai ser entendido como entendimento ou desentendimento vai ser
definido pelos padres sociais. Tais padres no garantem total entendimento, pois as
pessoas esto sempre envolvidas em novos contextos que envolvem riscos de
desentendimento e criao de novas re-significaes (Rasera & Japur, 2001).
Isso no significa que nada exista fora da linguagem, mas o ser que pode ser
compreendido linguagem (Gadamer, 1987/1996). Com essas argumentaes, os
Construcionistas colocam que, para operarmos mudanas sociais, necessrio
penetrarmos nos vocabulrios culturais, ao mesmo tempo em que buscamos a sua
transformao. E como somos eminentemente relacionais, essas transformaes no se
do individualmente. As palavras que usamos vo influenciar os significados a que
chegamos, ou as buscamos para encontrar o pensamento, pois as palavras no so
inocentes. E a que podemos perceber a influncia de Wittgenstein em toda essa
proposta (Andersen, 1995).
Na concepo
narrativa de cada cliente naquele momento (Anderson & Goolishian, 1995/1998), o que
permite uma atitude cuidadosa e de respeito.
A nfase narrativa sempre conferida pela possibilidade de gerao de sentido
pela via do dilogo, que no processo teraputico passa a implicar a substituio de uma
narrativa principal disfuncional por uma mais funcional, porque no significa a
aceitao das premissas dos clientes, e sim uma investigao desinteressada. A
psicoterapia pode ser pensada como um processo de inveno de sentido no contexto do
discurso colaborativo, no qual o sentido da experincia transformado por formas
alternativas de pontuar a experincia por meio da percepo que surge ao vermos que
no podemos ver (Gergen & Kaye, 1995/1998). Seguindo a mesma postura, Penn
(1999) fala da necessidade do cliente encontrar uma voz nova ou livre para que possa
contar sua histria de modo diferente no contexto de pessoas vitimas de estupros.
Acredita que a histria nova, com novos personagens, tem o efeito de alterar a memria
e renovar sua direo de vida e crena em si mesmo eventualmente.
Ao reconsiderarmos a utilidade da narrativa, ns nos deslocamos para fora da
mente individual para as relaes constitudas pela narrativa em ao. (...) Cada
narrativa de self pode funcionar bem em certas circunstncias, mas levar a
resultados infelizes em outras. Ter apenas um meio de se fazer compreender ,
portanto, limitar a gama de relacionamentos ou situaes nas quais se pode
funcionar satisfatoriamente. (Gergen & Kaye, 1995/1998, p. 215/216)
Em outra perspectiva, Packman (1999) coloca que no h possibilidade de se
evitar o papel ativo do terapeuta que pensa e atua em termos construtivistas, pois seu
papel no apenas de criar alternativas atravs de conversaes, mas tambm o de criar
alternativas para conversaes frteis e vivas. Seu objetivo a ampliao de espaos
para a construo de identidades alternativas, baseadas em elementos que j estavam
presentes, mas que precisam ser ampliados. Acredita que os processos pelos quais novas
histrias se tornam possveis, e eventualmente dominantes, social. Para ele, h
necessidade de criarmos estruturas micro-sociais para que aparea o protagonista de um
novo tipo de histria. Assim, o Construtivista ou o Construcionista Social um designer
que vai projetar maneiras de como o mundo pode ser se operarmos para transform-lo
em direes consensualmente desejveis. Esse designer usa a fora dos grupos
teraputicos no s para a introspeco compartilhada, mas para que tenhamos
conscincia do sentido de conhecermos juntos, sobretudo sobre o que nos assombra.
A terapia pode ento ser uma prtica social crtica e a conversao teraputica
torna-se reflexiva, permitindo que aqueles que esto em conversao olharem
para si mesmos atravs dos olhos dos outros, como Heinz von Foerster gosta de
dizer. A reflexo no modelada aqui sobre O Pensador isolado de Rodin, mas
como um processo que s pode ser social. (Packman, 1999, p. 13)
3.4.4 A emoo
Penn (1999) tambm sente necessidade de dar ateno ao que ela chama de voz
corporal, pois esta freqentemente comunica mais que as prprias palavras. Da mesma
forma, procura explorar as palavras que expressam os sentimentos conflitantes, pois
quando algum fala de raiva pode estar tambm falando de tristeza, solido. Esta mesma
autora prope sempre aos seus clientes que eles escrevam, principalmente cartas, para
outras pessoas. O registro por escrito ajuda os clientes a retornarem a sua nova narrativa
sempre que acharem necessrio. Para Penn, a mudana de narrativa vai gerar, uma
mudana na emoo. E Packman (1999) afirma que as histrias no so apenas relatos
verbais, mas so narrativas encarnadas nas estruturas culturais e biolgicas das quais
fazemos parte.
Mais uma vez, fica claro que os Construcionistas Sociais formam um grupo
heterogneo, e o lugar da emoo para estes autores tambm vai ser diverso. Entretanto,
o que chama a nossa ateno que a emoo sempre colocada quando eles fazem
relatos clnicos, principalmente aqueles que inclumos na abordagem colaborativa.
3.5.3 O encontro
No caminho percorrido, podemos perceber alguns pontos de encontro entre a GestaltTerapia e as teorias apresentadas neste captulo. Desde a perspectiva de totalidade
apresentada pela Teoria Sistmica inicial, passando pelo conceito de circularidade da
Ciberntica, at chegarmos ao Construtivismo e o Construcionismo Social.
A Ciberntica trouxe para a Terapia Familiar a nfase na troca, nas relaes.
Algo que chegou Gestalt-Terapia pelo conceito de contato, pela Fenomenologia e pelo
Existencialismo. E, com a chegada do olhar do observador proposto por von Foerster, a
questo da subjetividade de Kant chega perspectiva sistmica pela Biologia. E, assim,
os prprios bilogos, como Varela, procuraram a Fenomenologia para dialogar.
Podemos perceber que Maturana, Varela e Edgar Morin partem da subjetividade e
tambm chegam intersubjetividade.
Com a chegada do sujeito observador, as portas ficaram abertas para os
questionamentos cincia clssica. Passou-se a questionar como se d o processo de
conhecer, ou de como fazemos contato com o mundo. E assim como na Fenomenologia,
procuramos compreender o ser fora dos paradigmas que procuravam por objetividade,
por leis universais, por previsibilidade, por controle e por predio. As questes da
subjetividade, do sentido, do significado, da imprevisibilidade foram sendo trabalhadas.
E tanto a Gestalt-Terapia como as Terapias Sistmicas Construtivistas Construcionistas
Sociais esto procurando maneiras de apreender e compreender este ser-no-mundo de
possibilidades. No prximo captulo, procuramos compor outros pontos de contato entre
estas duas abordagens.
Captulo 4
Co-construindo pontes
O meu olhar ntido como um girassol,
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trs...
E o que vejo a cada momento
aquilo que nunca antes tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criana se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como um malmequer,
Porque o vejo. Mas no penso nele
Porque pensar no compreender...
O Mundo no se fez para pensarmos nele
(Pensar estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
(Alberto Caeiro, em Fernando Pessoa, 1986, p. 205)
Como procuramos por uma discusso que nos ajude a refletir a prtica clnica,
pensamos este trabalho como uma ponte, ou melhor, como pontes, j que no temos
apenas um caminho para ligar um territrio ao outro. Os artesos e os mestres de obra,
para construir, precisam prestar ateno em seus materiais para perceberem se estes
podem ser trabalhados juntos, tanto no sentido de dar uma organizao construo
quanto na possibilidade de formarem uma obra de arte e de serem teis populao.
Para co-construirmos pontes, tambm precisamos de um material que seja o elo entre
todos os demais materiais. Essas pontes podem ser co-construdas porque tm como elo
uma viso de homem como ser-no-mundo e uma necessidade de trazer novamente vida
a cincia, trabalhando com a imprevisibilidade, com o novo, com a totalidade.
Comeamos a perceber que algumas pontes j foram co-construdas, que j
transitamos por elas, mas que no sabamos de sua histria. Algumas so mais largas e
claras do que outras, umas so de madeira, outras de concreto, umas so para carros,
outras para pedestres, e, em alguns trechos do rio, talvez precisemos de barcos que se
adaptem s constantes mudanas no leito e nas margens, que nos ajudem a experimentar
novos caminhos. Outras pontes esto sendo co-construdas e outras esto ainda sendo
co-projetadas neste trabalho. E esses processos de troca no podem ser interrompidos
para que possamos ampliar a compreenso do ser e as possibilidades de cuidado e de
interveno nos processos psicoteraputicos, j que a psicoterapia tem que ser
constantemente reinventada para acompanhar o vivido.
4.2 As pontes...
4.2.1
De outras formas, os primeiros Terapeutas Sistmicos e os GestaltenTerapeutas se encontraram. Um dos pontos de encontro foi Esalen. Em Esalen, F.
Perls dividia as atenes do pblico com Virginia Satir, uma Assistente Social, que
em muito contribui para a abordagem sistmica e que manteve sua postura
humanista mesmo com o fortalecimento dos Terapeutas Estrategistas (Nichols &
Schwartz, 1995/1998). Satir e Perls agradecem um ao outro, em seus livros, a
convivncia e as trocas tericas que fizeram (Perls, 1969/1979; Satir, 1967/1980).
Outros especialistas eminentes tambm se deslocaram mais tarde para
Esalen. Entre eles, Gregory Bateson, que termina de redigir o seu livro Mente e
Natureza A unidade necessria (1979/1986) em Esalen. Alm disso, os trabalhos
dos antroplogos culturais americanos, R. Benedict, M. Mead, A. Kardiner e o
prprio Bateson influenciaram o movimento de Psicologia Humanista, a chamada
terceira fora, ao apontarem a fragilidade do conceito de normalidade, varivel de
um pas a outro, de uma poca a outra (Ginger & Ginger, 1987/1995). A Teoria
Sistmica de von Bertalanffy tambm marcou a Psicologia Humanista ao colocar o
homem como aberto s influencias do meio (Erthal, 1989).
Paul Goodman, co-autor da Gestalt-Terapia (1951/1997), foi aos poucos se
afastando da psicoterapia e suas grandes questes passaram a ser sobre o homem e
a natureza. Goodman acabou por se aproximar de Bateson, com quem
compartilhava a paixo pela Antropologia Filosfica (Stoehr, 1994/1999) e o seu
crescente interesse pelo movimento ecolgico. O projeto ecolgico definido por
Morais (1993, p.28) como: A recuperao do sentido humano do espao habitado
o projeto que percorre desde a dimenso estritamente biosfrica e de
ecossistemas, at as dimenses scio-institucionais e mentais. Assim, no achamos
surpreendente que dois dos grandes co-construtores da Gestalt-Terapia e da
Terapia Sistmica se encontrem mais tarde em torno do movimento ecolgico, que
tem como uma de suas bandeiras: pensar globalmente, agir localmente. As
Gestalten-Terapias e as Teorias Sistmicas, alm de estarem atentas relao dos
homens entre si, procuram reintegrar o homem natureza, questionando mais
uma das dicotomias criadas pela cincia moderna. Acreditamos que no faz
sentido uma psicoterapia que tambm no seja uma ecologia.
Ginger e Ginger (1987/1995), gestalten-terapeutas franceses, dedicam um
captulo de seu livro, Gestlat: uma Terapia do Contato, para explicitar o quanto a
Gestalt-Terapia est prxima do pensamento sistmico. Tellegen (1984), na primeira
Podemos perceber que, no desenvolvimento dos captulos anteriores, tanto a GestaltTerapia, como a perspectiva Sistmica Construtivista Construcionista Social tm teorias
que passaram a questionar as formas de se fazer cincia. Procuraram colocar junto o
conhecer e aquele que conhece, questionando as propostas da cincia moderna. Os
Construtivistas partem de Kant, que, como vimos, foi um dos primeiros a estabelecer a
crise na cincia moderna, ao questionar a possibilidade de apenas um conhecimento. Os
Construtivistas radicais deixam claro que qualquer tipo de conhecimento depende da
estrutura do conhecedor. E, em funo disso, cada um deve ser respeitado como
legtimo outro.
Partindo de uma posio mais kantiana, o olhar do observador colocado dentro
de uma perspectiva sistmica, que j falava de feedback, levou os terapeutas a falarem
em co-construo, a construo deixa de ser apenas uma construo de uma
subjetividade para ser uma intersubjetividade.
Nesse ponto, ressaltamos as intersees com a Fenomenologia de Husserl, por
criticar a cincia que dicotomizava a relao sujeito/objeto desde o primeiro momento,
querendo resgatar a subjetividade, a vida para a cincia. No decorrer da sua construo
terica, Husserl passa a desenvolver o seu conceito de intersubjetividade.
Um dos pontos que tem dificultado o dilogo de outras perspectivas com a
Gestalt-Terapia caracterizado pelos esteretipos que envolvem a Fenomenologia como
uma teoria idealista. Apesar do reconhecimento explcito da Gestalt-Terapia, de Morin
(1985/1990) e de Varela e cols. (1991/2003), a Fenomenologia de Husserl tambm
bastante criticada por outros. Santos (1987/1999) coloca que a Fenomenologia
permanece como um paradigma moderno, pois acredita que ela divida as cincias entre
humanas e naturais. No percebemos Husserl fazendo isso, talvez o chamado primeiro
Husserl. Varela e cols. (1991/2003), apesar de reconhecerem a importncia de Husserl,
colocam que ele acabou se voltando para Descartes, buscando o estudo das essncias.
Em funo disso, estes autores propem que voltemos a ateno tambm para
Heidegger e sua Fenomenologia Existencial, assim como para a Fenomenologia da
Experincia de Merleau-Ponty.
Apesar de Husserl realmente propor essa volta ao vivido e intersubjetividade, a
proposta de reduo de Husserl passa por uma etapa solipsista, mas esse um momento
e no um fim da Fenomenologia (Wuensch, 1993). isso que parece que vai ficando
A conscincia, para a
Fenomenologia, no deve ser compreendida como interioridade pura e sim como sada
de si.
A estrutura da reflexo radical ou fenomenolgica tem finalidades bem precisas;
antes de tudo superar o solipsismo de cunho intelectualista; em seguida superar a
construo do objeto por parte do sujeito defendida pelo intelectualismo,
afirmando enfaticamente, contra esta posio intelectualista, a preexistncia do
mundo sobre a reflexo. (von Zuben, 1984, p. 63)
A Fenomenologia continua a se caracterizar por ser uma filosofia, um mtodo
indutivo. E por ser uma filosofia da experincia, anterior a qualquer explicao
cientfica, procura compreender as vrias cincias, possibilitando um dilogo com elas e
com as filosofias. Uma compreenso que se d no dilogo, pois so sempre construes
que no esto prontas e nem acabadas. Cada vez fica mais claro que, para
compreendermos o humano, precisamos compreender a natureza e vice-versa. Pois,
como bem coloca Santos (1987/1997), todo conhecimento autoconhecimento e todo
desconhecimento autodesconhecimento.
Morin avanou muito nesse dilogo com as diferentes cincias, e um mtodo
utilizado para a compreenso de algo no mundo pode ajudar outro pesquisador a
transgredir os mtodos considerados cientficos por sua cincia. O que vemos de
comum em todos esses autores serem como Morin, uma espcie de contrabandistas de
saberes. Morin (2001/2002), quer agregar as ltimas descobertas da cincia aos
questionamentos de Heidegger sobre o ser. Como anarquista, F. Perls tinha sempre em
vista o homem como ser social e, como aluno de Goldstein, sempre enfatizou o corpo
em relao.
Assim, no nos basta uma cincia que tenha um imenso conhecimento
controlvel do mundo se este fica desarticulado da questo do sentido do ser. Um
sentido de ser que chega e logo vai embora, que nos faz continuar perguntando sempre.
A partir da perda do sentido do ser que o pensamento encontra seu apelo para pensar.
S diante de um vazio de sentido para o ser, que torna insignificantes os significados
Do grego holos, tudo de que derivam entre outros, no latim: solidus, inteiro, slido; salvus, intacto,
so e da salve, saudao, cumprimento, solidare, unido (Ginger & Ginger, 1987/1995).
fizesse a predeterminao do futuro. Segundo ele, uma cincia que faz isso exclui
do futuro toda iniciativa, toda novidade e toda criatividade. Tambm exclui do
universo toda a possibilidade de criatividade e evoluo. Smuts prope uma cincia
que descreva a evoluo criativa, que liberte o presente e o futuro da escravido do
passado e que faa da liberdade uma caracterstica inerente do universo. Para
tanto, Smuts busca um fator que foi negligenciado, o holismo, que expressa a
tendncia sinttica do universo, j que no faz sentido uma cincia que dissocie
matria, vida, mente e personalidade. E essa a principal idia que Bateson
(1979/1986) tambm expressou em seu livro: Mente e Natureza A unidade
necessria.
Uma das caractersticas que unem matria, vida e mente o fato de serem
eminentemente ativas, criativas e funcionarem sobre o princpio da totalidade,
desenvolvendo uma ao sinttica, ordenadora do universo. A atividade a essncia do
universo. A caracterstica fundamental do holismo que o todo est na parte e a parte
est no todo. A sntese do todo e das partes refletida to bem na funo da parte
quanto na do todo. Aqui ficam claras as relaes com a teoria do campo, termo j
utilizado inclusive pelo prprio Smuts. Assim, o conceito de totalidade transforma
completamente o conceito de causalidade, pois quando uma causa atua no todo, o efeito
resultante no meramente um rastro da causa, mas transforma-se em um processo.
Para Smuts, o resultado mais importante dessa idia de todo mostrar o quanto a
natureza e a evoluo so criativas. Na totalidade, as necessidades ou determinaes
externas so transformadas em self-determinaes ou liberdade. A criatividade
simplesmente a deduo do conceito de totalidade e caracteriza a ordem dos todos no
universo, que vai da origem de uma nova espcie de organismo at os grandes valores,
que so criaes do todo no nvel espiritual. Ou, como coloca Morin, a criatividade a
nossa plurideterminao que nos d liberdade.
No entanto, o holismo se caracteriza mais por estabilidade dos grandes tipos, a
novidade pequena comparada ao seu conservadorismo essencial. Todos os novos tipos
surgem da estabilidade das estruturas preexistentes, basta perceber a questo da
hereditariedade. Assim, holismo mais represso das variaes do que criatividade.
Ento, vamos perceber o holismo na temporalidade, pois no tempo que se percebe o
sentido da criatividade e da conservao. Portanto, Smuts j deixava claras as questes
da preservao e mudana tambm descritas nos conceitos de auto-regulao e
autopoiese.
no pode ficar de fora. Por isso, consideramos que o holismo de Smuts no reduzia
pela totalidade, como nos alerta Morin. Vimos com Morin que Pascal j nos
alertava que as partes no podem ser negligenciadas e que, muitas vezes, o todo
pode ser menor que a soma das partes. Realmente corremos esse risco quando
reduzimos tudo pelo social, externo ou pelo individual, biolgico. Acreditamos que,
pelo seu pioneirismo, Smuts optou por deixar explcita a questo da totalidade,
mas no negligenciou a singularidade.
a partir de Smuts que o conceito de auto-regulao se faz presente na teoria
organsmica de Kurt Goldstein, que tanto marcou a Gestalt-Terapia. Esse conceito
tambm est presente nas teorias de Maturana e Varela, mas com uma nfase ainda
maior na criatividade. Maturana cunhou o termo autopoiese para expressar a capacidade
dos organismos criarem a si mesmos, que apesar de estarem em um acoplamento
estrutural com o meio so sistemas fechados do ponto de vista informacional. Morin
introduziu o termo eco (derivado do termo grego oics, que significa morada ou espao
habitado) no j conhecido conceito de auto-regulao para deixar claro que a autoregulao se faz na relao com o meio. Acreditamos que as contribuies de Morin e
de Maturana ampliam bastante esse conceito, garantindo que no seja percebido apenas
como uma adaptao ao meio, assim como no o exclui desse processo. Integrando
todas estas reflexes ao conceito de auto-regulao, talvez seja mais adequado falarmos
em auto-eco-poiese.
Esse conceito de auto-regulao questionado pelos Construcionistas Sociais.
Apesar de ressaltarem a necessidade de percebermos o ser em seu contexto, o foco dos
Construcionistas o contexto social. A Gestalt-Terapia, Morin e Maturana e Varela
rompem com essa dicotomia interno e externo, devolvendo o homem natureza pelos
conceitos de auto-regulao, autopoiese e auto-eco-regulao. Como veremos a seguir,
uma das grandes diferenas entre o Construtivismo e o Construcionismo Social que o
primeiro parece partir do indivduo para o social e o segundo parte do social, procura
ficar na perspectiva do social para compreender a construo das identidades.
corpo oferecer fronteiras bvias que nos separam dos outros, o que est muito
arraigado no nosso modo de pensar ocidental. Alerta-nos McNamee que isto nos
leva a conduzirmos psicoterapias individuais, educarmos mentes individuais,
punirmos indivduos no seu trabalho e mantermos responsabilidades individuais
por todas as aes.
Consideramos bastante significativas as ponderaes dessa Construcionista
Social j que nos levam a refletir se realmente temos trabalhado por uma
psicoterapia para alm do individual. Mas fica a pergunta: ser que uma
psicoterapia que adote uma perspectiva social, que divida a responsabilidade com
o social, tem que deixar de falar de auto-regulao, awareness, j que entendemos
que este processo um processo de auto-eco-organizao, auto-eco-poiese? O
Construcionismo Social tambm nos parece correr o risco de colocar as pessoas no
social, mas tir-las do universo, da natureza. Gonzlez Rey (2003) se mostra muito
preocupado com esse foco na linguagem e no social e nos pergunta que valor os
Construcionistas Sociais do ao que est fora da linguagem, como a emoo por
exemplo.
De alguns pontos de vista, acreditamos que a Gestalt-Terapia j procura
colocar em prtica o que os psicoterapeutas de famlia esto procurando ao
integrarem as perspectivas Sistmicas, Construtivista, Construcionista Social,
procurando compreender as relaes do campo sob mltiplas perspectivas.
Quando a Gestalt-Terapia prope um self como o integrador de vrias funes
id, ego, personalidade , parece expressar a necessidade de compreendermos o ser
em relao por meio de mltiplas dimenses. Assim no faz sentido para a GestaltTerapia, assim como para a proposta de Pensamento Complexo, ou para a Biologia
do Conhecer, ficarmos restritos apenas dimenso da linguagem, do social, mesmo
que partamos do princpio de que a emoo uma construo social, se no
estivermos atentos ao biolgico. Uma nova narrativa vai afetar o nosso sentir e,
com isso, a nossa ao, assim como uma nova ao vai criar novas narrativas. Uma
psicoterapia voltada apenas para a narrativa pode ser solipsista ao nos tirar do
universo que nos liga vida. Como vimos, Smuts e Goldstein, ao proporem o
conceito de auto-regulao, pretendiam religar o homem natureza e no
enfatizar as dimenses individuais. Talvez tenhamos que pensar em teorias alm
do individual que percorram caminhos alm do social. Que procurem
compreender as complexidades do ser e do mundo nas vrias dimenses, nas j to
transcendental
poder,
como
diz
Husserl,
ser
uma
que,
segundo
Maturana,
possibilita
provarmos
cientificamente
Esttico do grego aisthetiks, sensvel, sensitivo. (Novo Dicionrio Aurlio de Lngua Portuguesa,
1986).
posio de Maturana e Varela (1987/1995), nos seus primeiros textos, era de que a
estrutura dos organismos muda no tempo, mas h uma organizao, uma certa clausura
operacional permanece e condio de autonomia, no entanto, consideram que mesmo
na regularidade h criao, h imprevisibilidade.
Outra possibilidade para o fato de experimentarmos a sensao de
singularidade a de estarmos em permanente acoplamento estrutural com o
mundo, no qual temos de constante o fato do indivduo e do mundo mudarem e
essas mudanas que nos possibilitam experimentar a permanncia. Quando
mudamos de um lugar para outro, tambm experimentamos uma sensao de
estranhamento decorrente da necessidade de um acoplamento estrutural que nos
exige novas snteses criativas.
Na Gestalt-Terapia, na Biologia do Conhecer e na Teoria da Complexidade
o self est tanto ligado aos aspectos biolgicos quanto aos sociais e culturais, isto ,
est envolvido no processo de auto-eco-poiese. Na Gestalt-Terapia, usamos o
conceito de self para expressarmos essa capacidade dos indivduos e do meio
realizarem snteses criativas. O self um conceito que procura incorporar o
homem natureza, ao seu corpo e no apenas ao contexto social, como ressaltam
os Construcionistas Sociais. E como j vimos, para esse ltimo grupo, o self
construdo nas prticas discursivas, pelas posies que as pessoas negociam
ativamente em seus relacionamentos. Sendo assim, a noo de identidade como
unidade substituda pela possibilidade de mltiplas descries de selves, que se d
em co-autoria com o social.
Acreditamos que o que essas teorias tm em comum que esto alertas ao que
Varela e cols. (1991/2003) colocam quanto ao risco que corremos quando partimos da
idia de um self com fronteiras, que tem como objetivo trazer para dentro das fronteiras
tudo de bom e colocar para fora tudo que consideramos ruim. Tanto na Gestalt-Terapia
quanto
nas
Psicoterapias
Sistmicas
Construcionistas
Construtivistas
Sociais,
percebemos uma ateno especial para ampliar o conceito de self, procurando descrever
o ser em relao com o meio. No entanto, ainda corremos o risco de fazermos uma
psicoterapia que trabalhe apenas o auto-suporte, mesmo com um conceito de self
ampliado, ou de confundirmos independncia com a ausncia de vnculos (Schmidlin,
1999).
Todavia, como coloca Laura Perls (Rosenfeld, 1977), sem suporte ambiental
no h contato. Quando no cuidamos dos seres, ou quando essa assistncia se d
de modo deficiente, h um afastamento do outro. E talvez isto tenha nos
conduzido iluso que a condio do homem fosse a solido, o solus ipse, a
conscincia constituda a partir de si mesma em sua individualidade. Por isso a
compreenso do outro foi entendida como empatia, penetrao no outro a
partir de si prprio, ou talvez uma mera ...projeo do prprio ser para si
mesmo em um outro (Heidegger, Sein und zeit, p.124). (Schmidlin, 1999, p.
129)
Isso nos faz refletir sobre qual psicoterapia queremos co-construir. Uma que nos
leve ao solipsismo (de solus ipse, ser s), ao egocentrismo e ao narcisismo ou uma
psicoterapia do ser-no-mundo, com uma tica da solidariedade e de hospitalidade.
Esperamos que, para o segundo tipo, as pessoas no precisem de uma morada isolada do
mundo para se sentirem felizes. E que o homem, que j se afastou da natureza por temla, no se afaste tambm dos outros. Ento, por vivermos em uma sociedade que
incentiva o olhar egocntrico, a busca da felicidade interior, temos que ter um cuidado
tico ao tematizar a subjetividade, para no fazermos do sujeito uma interioridade
egosta (Freire, 2001).
A Gestalt-Terapia e as Teorias Sistmicas Construtivistas Construcionistas
Sociais tm perspectivas tericas que permitem fazer uma psicoterapia com o outro.
Mas, como ainda estamos muito dentro de um paradigma individualista, mesmo falando
em sistema, campo e ser-no-mundo, voltaremos a fazer uma psicoterapia solipsista se
no estivermos muito atentos. J parece ser fcil descrever essas relaes com o social
como um permanente vir a ser, mas descrev-las no significa que j faamos uma
psicoterapia relacional, solidria, da no excluso, que aceite mais o outro, que o acolha,
que o confirme.
Quando no fazemos as relaes entre o sofrimento individual e o social,
estamos aumentando o grau de alienao e no ajudando o indivduo a ser um senhor de
si (Crochk, 1998). Porque, apesar dessa aparente individualidade e liberdade divulgada
pela mdia neoliberal, talvez nunca tenhamos estado to sujeitados ao social, que
determina em termos mundiais o que belo, o que tico, o que felicidade. E sabemos
que cmodo, em um mundo neo-liberal, que cada um cuide apenas de si, que no
procure pelo outro, que no cuide do outro. Estamos vivendo em uma cultura que nem
sempre incentiva o dilogo, mas que permite amplamente apenas o monlogo da mdia
dando diretrizes sobre o que devemos fazer. Isso pode nos levar a um encapsulamento
das pessoas. Para nos darmos conta das diferenas que temos, mesmo pertencendo a
uma mesma comunidade e do prprio poder da cultura dominante sobre os pequenos
grupos, precisamos do encontro, do contato com o outro, para que tambm os pequenos
grupos co-construam o significado de estarem no mundo. Quando cada grupo ou pessoa
no aceito como legtimo outro, tambm h um descuido, como j colocamos acima,
aumentando a nossa sensao de estarmos totalmente separados uns dos outros, onde
fale apenas a tica da sobrevivncia individual, se que podemos chamar a isso de uma
atitude tica, j que esta no se d sozinha, implica uma relao.
Uma psicoterapia que cuide apenas da primeira pessoa do singular, do eu, pode
esquecer do ns. O que no significa que uma psicoterapia do ns deva se esquecer dos
seres em sua singularidade transgressiva, que mudam o ns. Nesse caso, estaramos
sendo reducionistas pela totalidade.
Gergen, como um psiclogo social, ressalta as caractersticas do self como uma
construo social, o que consideramos bastante importante, j que tambm temos que
perceber o como somos e estamos sujeitados ao mundo. Alguns interpretam a presena
do Construcionismo Social nas psicoterapias familiares como uma desconstruo do
sujeito, no entanto, no isso que percebemos. Como j comentamos no incio deste
captulo, o que fazem Anderson e Goolishian (1994/1996) e Andersen (1995/1998;
1995; 1996), no reduzirem tudo ao social, mesmo tendo como foco uma
compreenso social. Contudo, mostram-nos que a psicoterapia pode envolver tambm
uma interveno social. Nesse sentido, Packman (1999), outro terapeuta que est
envolvido com o Construcionismo Social, mostra-se um mestre em trazer o social para
o contexto psicoteraputico, ao pedir, por exemplo, que um dos seus clientes de um
grupo entreviste pessoas com quem convive diariamente e relate suas concluses.
So belssimas as descries das experincias de muitos terapeutas promovendo
o que chamam de interveno em rede, trabalhando com grupos multifamiliares, por
exemplo, apoiando-se na capacidade autogestora dos grupos. Segundo Dabas (1995),
quando comeamos a pensar em termos de rede, comeamos a reconstruir nossa prpria
trama social danificada e a criar dispositivos que nos permitam elaborar nossos medos
e ajudar os demais a faz-lo; a desalojar de nosso corpo esse estranho instalado, que nos
torna rgidos na nossa ao, instaurando a desconfiana como modo bsico de nos
relacionarmos (p. 6). Esse processo de construo coletiva possibilita a otimizao das
relaes sociais e um processo de construo permanente, tanto individual quanto
1995/1998). Alm disso, como j colocamos, procuram sair da metfora do olhar para a
linguagem, o que implica conversao. O deslocamento da ao para o significado para
a linguagem provocou nos Terapeutas Sistmicos uma menor urgncia para se controlar
as famlias com a desculpa de ajud-las (Nichols e Schwartz, 1995/1998), e dessa forma
est havendo uma migrao para a narrativa, para o dilogo, para a conversao e para a
compreenso.
Nesse sentido, a importncia dada linguagem significativa, j que ela nos
d acesso ao refletir sobre as vrias possibilidades de estarmos no mundo. Ou,
como coloca Gadamer (1986/1997), a linguagem um centro em que se renem o
eu e o mundo. No entanto, Perls e Goodman. (1951/1997), alertam-nos para no
ficarmos apenas na linguagem da representao, desconectada da experincia, e
sim na linguagem que um ponto de encontro para falarmos e compreendermos o
vivido. Destarte, a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistmicas Construtivistas
Construcionistas Sociais esto falando hoje de uma linguagem no apenas como
representao, mas de uma linguagem que possibilita a representao e tambm as
mudanas, que permite que fiquemos no especulativo trabalhando as mltiplas
possibilidades (Gadamer, 1986/1997).
F. Perls e Bateson j liam Korzybski que procurava trabalhar sobre a conscincia
das significaes mltiplas. A tcnica proposta pela Gestalt-Terapia parece perceber os
aspectos patolgicos da verbalizao, na qual o processo de simbolizao ou de
representao pode estar desvitalizado. Em funo disso, h uma tentativa de procurar
integrar as sensaes corporais, as emoes e as verbalizaes para possibilitar ao
sujeito mais vitalidade e espontaneidade (Loffredo, 1994). No estamos falando de uma
fala sobre alguma coisa, mas a fala de um vivido. A ateno da Gestalt-Terapia a
mesma de Merleau-Ponty (1972, em Amatuzzi, 2001b) em que necessrio reencontrar
a fala como palavra viva, onde h emoo, j que nela que o sentido se formula pela
primeira vez e passa a estar disponvel para os outros. Para Merleau-Ponty (Amatuzzi,
2001b), o que existe por trs da palavra no o pensamento e sim a inteno de
significar, ou seja, a mobilizao para falar, o desejo, pois, como coloca Goolishian (s/d,
em Andersen, 1995, p.10), no sabemos o que pensamos antes de o dizermos.
Quando mudamos a nossa emoo, mudamos de domnio de ao em que nos
movemos. Quando aceitamos nossa biologia, podemos perceber que no o nosso
corpo que nos limita, mas ele que possibilita a nossa observao, a nossa conscincia,
a nossa linguagem e a nossa ao. Tambm podemos saber que o que ouvimos
igualmente marca a nossa biologia, alm de marcar as nossas relaes sociais. Nosso
entendimento , sempre e de alguma forma, emocionado. A compreenso sempre ocorre
num estado de nimo. A presena do homem no mundo sempre emocionada (Critelli,
1996, p. 93).
Ainda temos uma Psicologia que ora glorifica o homem e incentiva a busca
de uma felicidade individual, ora o responsabiliza pelo seu mal resultado na escola,
pela sua sade mental no adaptada ao meio. Mesmo na Gestalt-Terapia e nas
Exercitarmos,
experienciarmos
intersubjetividade
na
relao
psicoteraputica, em que cada um pode perceber os encontros e os desencontros e coconstruir juntos um significado, proporciona-nos uma experincia singular. Nela, no
falamos sobre o outro ou sobre as relaes sociais, falamos com o outro, aquele com
quem estamos compartilhando uma experincia. Uma psicoterapia que proporcione o
encontro no est apenas falando que somos seres-no-mundo, mas est trabalhando com
os seres-no-mundo.
Todavia, importante lembramos que no consideramos incompatvel que uma
psicoterapia de sistemas ntimos trabalhe a aceitao da diversidade dos sentidos
individuais, que nela haja a possibilidade de um encontro nas diferenas. Consideramos
que uma Psicologia de totalidade tambm tem que fazer um crculo hermenutico que
transite do todo para a parte e da parte para o todo, onde as emoes, o corpo, o
indivduo e a natureza tambm estejam presentes nas dimenses sociais. Aqui, vemos
que pode se caracterizar a grande contribuio da Gestalt-Terapia para as Terapias
Sistmicas Construtivistas Construcionistas Sociais, que o resgate do sentido e do
significado, assim como a ateno aos processos de auto-eco-regulao, ou auto-ecopoiese. Os Gestalten-Terapeutas tm procurado essa compreenso h mais tempo,
tentando conectar a emoo, o sentir, com o sentido de estarmos no mundo.
Acreditamos que o resgate da emoo uma das grandes legados deixados por
Fritz e Laura Perls para a psicoterapia, no que outras abordagens no valorizem a
emoo. No entanto, a Gestalt-Terapia, em sua proposta do resgate do vivido e da
experincia, comea esse caminho pelo corpo vivido, pela escuta do que nos fala o
organismo. Procurando restaurar uma intencionalidade operativa, nos termos de Husserl
e Merleau-Ponty, ou da awareness espontnea (Perls & Goodman, 1951/1997), uma
conscincia que estabelea sentido no apenas cognitiva, religa os significados
universais com os sentidos individuais. A emoo que nos reconecta ao mundo, ao
outro e tambm nossa singularidade.
Procurando trabalhar o contato, parece-nos que os psicoterapeutas gestlticos j
teve coragem, h mais tempo, de se incluir no processo psicoteraputico em busca do
dilogo e da compreenso. A sada da nfase tcnica para o dilogo tem sido bastante
discutida pelos Gestalten-Terapeutas. Vemos o mesmo caminho sendo trilhado por
muitos psicoterapeutas de famlia e de comunidade, cuja interveno psicoteraputica
tem emergido da relao que se estabelece entre as pessoas, j que consideram que o
cliente o especialista. Importante se faz lembrarmos que, considerarmos o cliente um
especialista ou sabermos que os sistemas tm a capacidade de se auto-organizar, no
significa a omisso dos psicoterapeutas, pois, como colocam Anderson e Goolishian
(1995/1998, p. 37), o papel de um terapeuta o de um artista da conversao um
arquiteto do processo dialgico cuja a especialidade est em facilitar e criar o espao
para uma conversao dialgica. E na relao com o(s) outro(s), da(s) presena(s)
do(s) outro(s), que h o encontro, o contato, o processo psicoteraputico.
De uma forma geral, parece-nos que as psicoterapias tm convergido para uma
proposta em que todos sejam autores, atores e intrpretes do prprio vivido. Mesmo em
um monlogo, ser ator pressupe um palco, espectadores, diretor, ilumininador,
figurinista e sonoplasta, por exemplo, para que as diferentes possibilidades de
interpretao possam ser experimentadas. Quando samos de um monlogo e a
interpretao passa a envolver mais de um ator, as possibilidades de interpretao se
ampliam ainda mais, j que o processo intersubjetivo fica ainda mais amplo. Nesta
metfora, talvez o psicoterapeuta seja o iluminador ou o diretor que ajuda a
experienciarmos, a percebermos por diferentes perspectivas at que, para ns, fique
clara uma interpretao, uma compreenso, que uma delas faa mais sentido naquele
momento.
No h como sermos uma ator sozinho, no h como fazermos uma psicoterapia
individual, j que esta , no mnimo, dual. No h como fazermos uma clnica que no
seja social. Mas talvez possamos pensar como fazer uma clnica mais social, que
igualmente no perca a dimenso dos sentidos individuais e a riqueza que a partes
tambm exercem sobre o todo. A clnica tem que ser feita na e para a rua, no mais
entre quatro paredes (Silva, 2001), j que no faz sentido uma pessoa que consiga
dialogar com o psicoterapeuta e no o faa com os amigos.
Para darmos conta da imprevisibilidade, da criatividade e do vivido, tambm
temos que trabalhar para facilitarmos processos psicoteraputicos abertos
imprevisibilidade de respostas, de onde possam fluir formas mais criativas de estarmos
no mundo. Para tanto, temos que criar, transgredir nas formas de fazermos psicoterapia
para darmos conta das demandas to diferentes que chegam ao processo
psicoteraputico. Temos que ter tcnicas que se adaptem ao contexto e no que exijam
que o contexto se adapte a elas.
Alm do psiclogo ter que trazer o social para o contexto psicoterpico, temos
que procurar pelo social, mostrarmos a cara da psicoterapia fora do ambiente conhecido
das clnicas. Acreditamos, ento, que faz muito sentido trazermos o ou irmos ao
contexto social sempre que isso for possvel, o que no nos impossibilita de trazermos
tambm o outro, por meio de representaes e fantasias. As Psicoterapias Familiares e
Comunitrias tm nos mostrado formas bastante criativas de faz-lo, tais como: visitas
domiciliares, grupos comunitrios, terapias multifamiliares, alm dos j conhecidos
pontes
que
podem
nos
ajudar
co-construirmos
novos
caminhos