Acolhimento e Desmedicalização Social

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User embracement and social (de)medicalization:


a challenge for the family health teams

Charles Dalcanale Tesser 1


Paulo Poli Neto 2
Gasto Wagner de Sousa Campos 3

Departamento de Sade
Pblica, Centro de Cincias
da Sade. Campus
Universitrio Trindade
88040-900 Florianpolis SC
[email protected]
2
Centro de Filosofia e
Cincias Humanas,
Universidade Federal de
Santa Catarina.
3
Departamento de Medicina
Preventiva, Faculdade de
Cincias Mdicas,
Universidade Estadual de
Campinas.

Abstract This article discusses the relation between sheltering practice and social medicalization in the primary care. It begins with a revision about social medicalization and mentions
some influences concerning the organization of
the Brazilian primary care. It also indicates that
the ground of receptivity proposal was provided
by those influences. It argues the potentiality to
accomplish the sheltering with a demedicalization and interdisciplinary action and its reverse
effect, when restricted simply to emergency medic
care. There are hereby suggested changes in the
management and organization of routines, agendas as well as collective and individuals activities
of the professionals with the intention to reduce
medicalization. The conclusion favors the expansion of experimentation on sheltering as a strategy in dealing with unexpected events and with
primary care spontaneous demand, always watching out for its medicalization potential.
Key words User embracement, Social medicalization, Family Health Program, Primary care

Resumo Este artigo discute a relao entre a prtica do acolhimento na ateno primria (Programa/Estratgia Sade da Famlia) e o processo
de medicalizao social. Inicia com a sntese de
uma reviso sobre medicalizao social e a indicao de influncias histricas e conceituais sobre a organizao da ateno bsica brasileira,
que prepararam terreno para a emergncia da
proposta do Acolhimento. Argumenta sobre a possibilidade de se realizar o Acolhimento numa lgica desmedicalizante e interdisciplinar e sobre a
forte potencialidade inversa, quando o Acolhimento restrito a simples pronto-atendimento
mdico. Sugere mudanas em rotinas, agendas e
atividades profissionais individuais e coletivas,
teraputicas e de promoo sade, para que cada
equipe possa acolher seus usurios minimizando
a medicalizao. Conclui a favor de experimentaes do Acolhimento como estratgia para se
lidar com eventos inesperados e com a demanda
espontnea, sempre tomando cuidados quanto ao
seu potencial medicalizador.
Palavras-chave Acolhimento, Medicalizao social, Programa Sade da Famlia, Ateno primria

TEMAS LIVRES FREE THEMES

Acolhimento e (des)medicalizao social:


um desafio para as equipes de sade da famlia

Tesser CD et al.

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Introduo
A construo do Sistema nico de Sade (SUS)
uma poltica de Estado democrtica e de bemestar, que vem ampliando o acesso ao cuidado
sade. Uma poltica na contramo da tendncia
neoliberal hegemnica na sociedade e no Estado
brasileiro1. Com o SUS, vem ocorrendo uma progressiva expanso da cobertura da populao brasileira em programas de ateno sade, ao mesmo tempo que se manteve a hegemonia do modelo biomdico na maioria dos programas ofertados. Isto vem acontecendo notadamente a partir
da dcada de 90, com a expanso da rede bsica
estimulada pelo Programa Sade da Famlia (PSF),
depois Estratgia Sade da Famlia (ESF), bem
como pela extenso de servios de pronto-atendimento e da ateno hospitalar2. Caberia perguntar o que essa expanso do acesso representa em
termos de medicalizao social, processo j em
curso atravs da mdia, da cultura e do mercado.
A medicalizao social um processo sociocultural complexo que vai transformando em
necessidades mdicas as vivncias, os sofrimentos e as dores que eram administrados de outras
maneiras, no prprio ambiente familiar e comunitrio, e que envolviam interpretaes e tcnicas
de cuidado autctones. A medicalizao acentua
a realizao de procedimentos profissionalizados,
diagnsticos e teraputicos, desnecessrios e
muitas vezes at danosos aos usurios. H ainda
uma reduo da perspectiva teraputica com desvalorizao da abordagem do modo de vida, dos
fatores subjetivos e sociais relacionados ao processo sade-doena3-6.
O PSF, na sua criao, propunha-se a superar essa tradio medicalizante, substituindo-a
por uma nova concepo apoiada na Promoo
Sade. Em alguma medida, a introduo dessa
estratgia de fato produziu uma saudvel tenso
paradigmtica entre a biomedicina e abordagens
mais ampliadas7. No entanto, no houve uma
reorganizao da formao de especialistas mdicos e enfermeiros em escala suficiente para sustentar esse tipo de reforma cultural. Alm disso,
o PSF, inicialmente, orientou as equipes a lidar
centralmente com os programas de sade, com
protocolos diagnsticos e teraputicos definidos.
Observou-se, contudo, que no havia recomendaes sobre como lidar com a demanda espontnea que recorre aos servios de ateno bsica
ou como atender aos imprevistos to frequentes
e inevitveis no cuidado sade.
Procurando responder a essas lacunas, apareceu a proposta de Acolhimento, divulgada e

recomendada no SUS por meio da Poltica Nacional de Humanizao8. O Acolhimento envolve


arranjos institucionais de difcil execuo, prope-se a trabalhar a demanda espontnea, a
ampliar o acesso e concretizar a misso constitucional da APS no SUS, de ser a principal porta
de entrada do sistema.
Entretanto, constata-se que ao reorganizar o
contato dos servios de APS com os usurios e
suas demandas, a estratgia do Acolhimento tem
um potencial de ativar o processo de medicalizao social numa dimenso microssocial e local.
Analisar a relao entre diferentes estratgias de
Acolhimento e suas possibilidades de medicalizao e de desmedicalizao o objetivo deste ensaio.
O campo de prticas subsidirias da discusso amplo: um autor foi mdico generalista
nove anos (dois na coordenao) em servio bsico de uma comunidade rural, que inclua um
pronto-atendimento (PA) (5 mil hab.); trabalhou um ano em centro de sade centrado em PA
de outra pequena cidade paulista; trs anos no
PSF de uma grande cidade (1 milho de hab.),
em servios com prticas de acolhimento distintas; e dois anos coordenando estgios de internato mdico em vinte centros de sade com PSF
em cidade de mdio porte (300 mil hab.). Outro
autor trabalhou dois anos em uma equipe de
PSF isolada em bairro rural e depois mais um
ano em centro de sade com cinco equipes de
Sade da Famlia. O terceiro autor foi gestor e
assessor de servios de APS nas dcadas de 80 e
90 e secretrio de Sade da grande cidade mencionada, em que o Acolhimento era diretriz institucional importante. Apesar de no ter havido coleta sistemtica de dados nessas experincias, da
sua diversidade e anlise foram extrados pontos
crticos para discusso, que no se quer exaustiva nem conclusiva.

Sobre a medicalizao social


Ao revisar estudos das cincias sociais sobre o
tema da medicalizao, Nye9 demonstra como
ele compreendido de maneiras diferentes ao
longo do tempo. Nos primeiros trabalhos, significava apenas a ampliao da assistncia mdica e de novas tcnicas teraputicas, at a sua posterior converso a um significado mais amplo,
referente crescente incorporao de diferentes
aspectos da condio humana, sejam sociais, econmicos ou existenciais sob o domnio do medicalizvel; isto , do diagnstico mdico, da teraputica, da patologia etc. Esses estudos surgem

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A ao profissional nesse ambiente de ideias


e valores tende a transformar toda queixa em
sndrome, transtorno ou doena de carter biolgico, desligando-a da vida vivida pelo doente,
considerando-a realidade distinta e independente. Em doenas crnicas, cada vez mais frequentes, ocorre o isolamento de fatores de risco que
se destacam da vida e passam a ser considerados
causas isoladas combatidas atravs de comportamentos saudveis prescritos do mesmo modo
que drogas e cirurgias. Estas ltimas, mais o fetiche dos exames complementares, so o carrochefe da cultura medicalizada. Assim, na interpretao e na interveno biomdicas h ntida
tendncia medicalizante3,14.
H certo consenso sobre o nascimento e as caractersticas da biomedicina; mas o mesmo no
ocorre em relao ao binmio autonomia/heteronomia. Para Illich3, o excesso de funo e de uso de
uma ferramenta social-tecnolgica ou o seu monoplio pode induzir ao que denominou de contraprodutividade: uma ao paradoxal em que o
resultado o contrrio do esperado: hospital que
produz doena, trnsito que produz engarrafamentos. A ao mdica padeceria desse mal. Ao causar
uma iatrognese social e cultural, alm da iatrogenia clnica individual, as pessoas so transformadas em consumidores vorazes de mais e mais cuidado e de tecnologias especializadas e tornam-se
dependentes. Isso diminuiria a autonomia e a capacidade de agir sobre a vida e sobre o meio para
manter, resgatar e ou ampliar a sade e a liberdade
vistas como coeficiente de liberdade vivida e capacidade de instituir normas vitais, seguindo Canguilhem15. Na viso de Illich3, a sade pode, ao
contrrio do que parece, estar decaindo, j que a
capacidade de ao das pessoas sobre sua prpria
vida, ambiente e sade, sobre suas vivncias e sofrimentos cotidianos, poderia estar diminuindo.
Para Freidson16, que estuda o processo de
medicalizao como um exemplo da profissionalizao, a medicina moderna essencialmente heteronmica. O autor ocupa-se de percorrer o caminho que levou a medicina de uma ocupao a
uma profisso, quando, por virtude de sua posio autoritria na sociedade, vem a criar a substncia do seu prprio trabalho. A partir do momento em que se tornam oficiais, as profisses
definem os objetos de seu trabalho, abrindo espao para que interesses corporativos interfiram
nesse processo. Alm disso, a determinao de
profisses oficiais impede que outras ocupaes
deem-se a chance da exposio emprica, da experimentao do erro e do acerto, da sua aplicao
em grande nmero de casos ou pessoas.

Cincia & Sade Coletiva, 15(Supl. 3):3615-3624, 2010

justamente na segunda metade do sculo XX, em


que houve uma grande expanso da medicina,
com a utilizao de novos exames diagnsticos
(especialmente de imagem), novas classes de
medicamentos, novas tcnicas e materiais cirrgicos e novas reas de pesquisa (gentica, imunologia, virologia etc.).
De acordo com o conceito de biopoltica foucaultiano, esse processo se origina no momento
em que a regulao mdico-sanitria da vida
utilizada como estratgia para ordenar a relao
entre o Estado e indivduos10. A medicina, para
Foucault, uma das instituies ou disciplinas,
assim como a escola, o exrcito, os presdios, que
auxiliam e constituem o Estado moderno nessa
tarefa de organizar a vida coletiva e individual.
Ao contrrio de outros autores, Foucault defende a existncia de positividade nessa relao entre
o Estado e os indivduos, em que estes no so
simplesmente sufocados por uma superestrutura, mas que haveria uma produo de subjetividade que alimenta essa rede de poder. No caso
da medicina, tolera-se a interferncia dessa rede
de saber-poder que redistribui os corpos, reorganiza o espao, introduz reformas na vida cotidiana, porque produz positividades, resolve problemas mdicos, possui certa eficcia curativa.
Foucault11 afirma que a biomedicina no
resultado de uma progresso histrica linear,
impulsionada por descobertas cientficas, mas
consequncia de uma mudana na maneira de
ver e de entender a clnica, em que se separa a
doena do doente nas chamadas espacializaes
da doena. Ao se organizar em torno de uma
teoria das doenas e da anatomoclnica, o saber
mdico se abre para uma medicalizao de novos espaos.
O imaginrio biomdico dominante na biomedicina apresenta algumas caractersticas marcantes, centrais ao chamado paradigma biomecnico ou flexneriano: viso do corpo humano
como mquina; viso das doenas como coisas
concretas, que no variam em pessoas e lugares,
e que surgem como defeitos das peas dessa mquina, de natureza material. As leses materiais
ou germes so as causas ltimas das doenas e
demandam exames que vasculham o interior do
corpo para diagnstico. O tratamento centrado preferencialmente em medicamentos quimicamente purificados e cirurgias. O relacionamento autoritrio com os doentes (paradigma do
cuidado hospitalar), que devem se submeter aos
profissionais e aprender deles o saber cientfico,
nico verdadeiro para cumprimento eficaz do
tratamento e preveno5,12,13.

Tesser CD et al.

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Mas h autores com viso mais otimista em


relao a esse processo, que avaliam no haver
uma aceitao passiva por parte da populao,
identificando at formas de contestao do poder das instituies. Williams e Calnan17 lanam
mo das formulaes tericas de Giddens para
se contraporem ao pessimismo da dcada de
1960. Eles identificam a existncia de maior reflexividade social na modernidade tardia, o que significaria uma suscetibilidade maior a vrios aspectos da atividade social em razo de novas informaes e conhecimentos: a medicina tornase uma empresa cada vez mais reflexiva em termos de sua base de conhecimento, sua organizao social e a natureza da prtica mdica diria.
Segundo os autores, h espao de crtica
medicina moderna e a mdia tem um papel crucial de desmistificao da cincia e da tecnologia17. Haveria um empoderamento da populao, j que as pessoas esto mais conscientes das
fragilidades das corporaes. A populao, munida de maior acesso informao atravs da
Internet ou de outros meios de comunicao,
poderia estar mais consciente dos custos, benefcios e malefcios da medicalizao de suas vidas18.
Nos seus escritos tardios, Illich19 identifica
haver, de fato, uma desmedicalizao, entretanto
a medicina estaria perdendo espao para outras
reas esttica, moda, educao fsica, sade
pblica que difundem uma concepo doentia
de cuidado com o corpo e da busca da sade
perfeita. Nos seus ltimos trabalhos, Illich considera que o fato de as pessoas hoje buscarem
mais informaes sobre sade e haver maior preocupao com a prpria sade representaria
outra forma grave de iatrogenia4.
A medicina cedeu espao para outras reas
porque surgiu outra concepo sobre o corpo
a corpolatria que vai resultar na busca patognica pela sade19. O maior acesso s informaes
sobre doenas e hbitos saudveis que poderia
representar um empoderamento da populao
diante da corporao mdica representaria apenas o efeito de um tempo em que todas as atividades humanas so maciamente relacionadas
sade e h uma neurose coletiva em busca da
sade perfeita, chamada de higiomania por
Nogueira20. Freidson16, em releitura posterior de
seu prprio trabalho, tambm considera ter havido nos ltimos anos uma diminuio da autonomia tcnica do profissional mdico, mas que a
profisso como um todo jamais teve o poder
que detm hoje.
importante ressaltar que apesar da nfase
na profisso mdica, a medicalizao no se res-

tringe a ela, mas ao processo presente em todas


as reas da sade de categorizar sofrimentos e
sintomas em diagnsticos, oferecer explicaes
naturalizadas e terapias reduzidas ante a complexidade dos problemas.
No entanto, outra caracterstica mais recente
de nossa sociedade a expanso da nfase biomdica nos riscos, notadamente aps a possibilidade exemplar de seu tratamento via quimioterapia (vejam-se as estatinas), o que parece estar gerando uma medicalizao importante no
s do presente, mas tambm do futuro, acentuada ainda mais pelas promessas alardeadas pela
gentica. Isso faz pensar que, no geral, a medicalizao mantm-se firme e progressiva, a sociedade (do risco) est cada vez mais dependente de
informaes e tecnologias mdicas, ao mesmo
tempo que os indivduos so instados a responsabilizar-se em relao a sua prpria sade21.

Concepes que influenciaram


a Ateno Primria brasileira
e o Acolhimento
A organizao dos primeiros Centros de Sade
no Brasil, durante a primeira metade do sculo
XX, e sua posterior expanso at os anos 80 foi
influenciada pela concepo norte-americana de
Sade Pblica, segundo a qual o cuidado em sade comporia dois grandes sistemas: um de assistncia clnica hospitais, servios de urgncia,
consultrios etc. e outro de Sade Pblica (vigilncia). Os Centros de Sade seriam um dos
operadores do setor de Sade Pblica. Eram organizados em programas preventivos e de controles de doena: puericultura, pr-natal, tuberculose e outros problemas de relevncia coletiva.
Segundo essa tradio, a APS vista como espao para a preveno sade, no para o exerccio
da clnica.
Posteriormente, com o surgimento da Sade
Coletiva no Brasil e da Promoo da Sade no
Canad, reforou-se essa tendncia. O PSF, criado em 1994, foi bastante influenciado por essa
perspectiva, destacando-se as diretrizes da intersetorialidade, de interveno no territrio, a abordagem da famlia ou de coletivos, que persistem
at hoje22. Note-se que a abordagem clnica individual era justificada por programas de sade,
com temas sanitrios considerados relevantes
pela epidemiologia.
A introduo da lgica epidemiolgica no contexto da organizao do dia a dia, proposta pela
programao em sade23 e pela Vigilncia

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profissional costuma resumir-se a programas,


protocolos e procedimentos padro, como consulta, por exemplo. O modelo tpico de servios
pblicos de APS no Brasil pode ser descrito como
de uma repartio ou ambulatrio em que o
usurio chega como a uma prefeitura ou outro
rgo pblico: h horrios rgidos, comumente
comerciais, com guichs onde funcionrios administrativos (recepcionistas ou similares) fazem
uma recepo. H um cardpio de servios
organizados em forma de agenda, centrada em
consultas mdicas e, quando muito, de enfermagem (alm de outros servios como vacinaes,
curativos etc.). O nmero de vagas na agenda
limitado e elas so preenchidas por ordem de
chegada, em geral. Acabadas as vagas, acabou o
acesso ao cuidado. Uma mistura de lgica de consultrio mdico privado dentro de/e sinrgica
com uma repartio pblica.
Foi a partir da crtica a essa situao e buscando super-la que se construiu a proposta do Acolhimento no seu aspecto institucional, almejando
dar viabilidade organizacional misso tica e
ambio poltica de concretizar a universalidade e
equidade na interao dos servios com os usurios. Em vez de servios apenas centrados em agendas e procedimentos (consultas) ou em aes programadas para agravos e doenas epidemiologicamente relevantes, servios estruturados para
trabalhar a partir de problemas reais dos usurios sob sua responsabilidade personalizada, sem
deixar de fazer aes programadas e vigilncia.

Acolhimento e organizao do trabalho


nas equipes de sade da famlia
O Acolhimento envolve um interesse, uma postura tica e de cuidado, uma abertura humana,
emptica e respeitosa ao usurio, mas ao mesmo
tempo implica avaliao de riscos e vulnerabilidades, eleio de prioridades, percepo de necessidades clnico-biolgicas, epidemiolgicas e
psicossociais, que precisam ser consideradas. Isso
permite, em tese, hierarquizar necessidades quanto ao tempo do cuidado (diferenciar necessidades mais prementes de menos prementes); distinguir entre necessidades desiguais e trat-las
conforme suas caractersticas. Assim, ele envolve, supe e estimula um sentido tico individual e
coletivo32, assumido como fundamental para
orientar a postura do profissional. Mas envolve
tambm questes de organizao e prtica do
trabalho, tpico enfocado aqui na sua relao
com a medicalizao social.

Cincia & Sade Coletiva, 15(Supl. 3):3615-3624, 2010

Sade24, tampouco facilitou o acesso aos usurios. Tal lgica, introduzindo critrios epidemiolgicos para priorizao de aes de vigilncia,
preveno, tratamento e controle de doenas, criando grupos prioritrios, reservas de vaga e direcionamentos de agenda, acabou convergindo para
a desvalorizao da demanda espontnea, o que
tendeu a reforar a rigidez das agendas na prtica,
ainda quando isso no fosse buscado.
Outra concepo que tem influenciado, concretamente, a APS no Brasil a estratgia de garantir-se acesso ao SUS mediante a multiplicao de servios de PA. Pouco teorizada e investigada, esta alternativa tem presena em municpios e junto a autoridades do Poder Executivo, j
que prioriza o acesso sobre a qualidade e oferece
um servio de gesto mais simples do que a equipe interdisciplinar do PSF. Ao contrrio da tradio anterior, no valoriza programas, responsabilidade por territrio, seguimento de casos, aes
educativas ou comunitrias. Vrios municpios
brasileiros, na prtica, adotaram esse estilo de
organizao, que utiliza o pronto-socorro de
hospitais e prontos-atendimentos isolados como
modelo de APS. As consequncias negativas do
PA so bastante consensuais no campo acadmico: medicalizao, baixa autonomia dos usurios, ineficcia ante doenas crnicas, baixo aproveitamento do potencial de outros profissionais
de sade e do trabalho em equipe e incapacidade
de atuao em determinantes de sade coletivos25.
Apesar da correo do olhar crtico da Sade
Coletiva para com a clnica biomdica, j h tempos Campos26 e Merhy27 advertiam que o saber
epidemiolgico no deve ser tomado como nico potente para definio de necessidades, prioridades e problemas de sade. Deve ser articulado com as necessidades sentidas, expressas em
demanda cotidiana aos servios de sade e por
meio da participao social na gesto do SUS
(Conselhos de Sade)8,28-30.
H, entretanto, uma terceira forma para se
conceber a APS originria dos pases que implantaram sistemas nacionais de sade, particularmente na Europa. Neste caso, a APS vista como
porta de entrada de um sistema integrado em
rede de ateno ambulatorial, hospitalar etc.
Nessa tradio, valoriza-se a capacidade clnica
para resolver problemas de sade31.
Vale ainda considerar que os servios pblicos brasileiros de APS no superaram o padro
dominante em que a organizao estatal em geral e a instituio mdica tendem a produzir uma
relao ritualizada, enrijecida e burocratizada com
os usurios. Nesse enquadramento a atividade

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O Acolhimento uma proposta voltada para


melhoria das relaes dos servios de sade com
os usurios. Neste caso, concretiza-se no encontro do usurio que procura o servio espontaneamente com os profissionais de sade, em que
h uma escuta, um processamento de sua demanda e a busca de resoluo, se possvel.
O Acolhimento est baseado tambm em um
direito constitucional dos indivduos que o direito de acesso aos servios de sade. Como a
APS a porta de entrada desse sistema, necessria uma estratgia que permita um fluxo facilitado das pessoas. Alm disso, uma das caractersticas para a efetividade e o sucesso da APS o
fcil acesso33, motivo que torna crucial o desenvolvimento de arranjos institucionais e prticas
profissionais facilitadores desse acesso.
A proposta de Acolhimento no Brasil sugere
formas de ateno demanda espontnea que
no impliquem simplesmente maior acesso
consulta mdica, mas prope-se a servir de elo
entre necessidades dos usurios e vrias possibilidades de cuidado. Nesse sentido, foi original e
inovadora. No Acolhimento foram includos vrios profissionais34. A ideia seria retirar do mdico o papel de nico protagonista do cuidado,
ampliar a clnica realizada pelos outros profissionais e incluir outras abordagens e explicaes
possveis (que no somente as biomdicas) para
os adoecimentos e demandas.
Pode-se considerar que esto envolvidas na
proposta do Acolhimento duas pernas fundamentais: uma tica e poltica, em que se almeja
melhorar a postura dos profissionais no contato
com a clientela; e outra de gesto e de modelo assistencial, que visa reformular a tradio burocrtica
e rgida ao melhorar o acesso e o cardpio de ofertas do servio, flexibilizar e ampliar a clnica, facilitar o cuidado interdisciplinar. So necessrias estas
duas pernas andando juntas harmoniosamente
para viabilizar e concretizar o Acolhimento.
Isso pressupe uma nova cultura de trabalho, bem como novas formas de organizar e gerir esse trabalho. A equipe de referncia (equipe
de sade da famlia) assume a responsabilidade
de acolher os usurios nas suas demandas, ouvilos, negociar com eles e tentar resolver seus problemas da melhor e mais rpida forma possvel.
Para tanto, um profissional (tcnico ou auxiliar
de enfermagem, geralmente) precisa estar disposio para realizar o primeiro acolhimento,
que por sua vez substitui e torna dispensvel a
recepo como guich burocrtico35.
O contato no programado do usurio passa a se dar com um profissional (e no com um

recepcionista), que realizar a misso difcil de,


simultaneamente, acolher e escutar de forma
qualificada e individualizada; fazer uma avaliao de riscos e vulnerabilidades biolgicas, epidemiolgicas e psicossociais; rediscutir e processar essa demanda juntamente com o usurio,
tentando localizar qual ou quais so os problemas; acionar outros membros da equipe responsvel pelo cuidado daquele paciente para, conjuntamente, se necessrio, resolver ou dar seguimento aos cuidados possveis. Isso requer uma
prtica profissional com importante grau de comunicao, interpretao e negociao interdisciplinar e com os usurios, estimulando o vnculo, acalmando ansiedades e buscando solues.
Obviamente, h que compatibilizar agendas
de mdicos e enfermeiras para essa demanda de
Acolhimento, pois eles so requisitados para supervisionar tal avaliao, negociao e prosseguimento do cuidado. Tal proposta depende de
uma abertura dos profissionais para um compartilhamento de responsabilidades e decises,
respeitados os ncleos de competncia36 de
cada profisso, mas flexibilizando os rituais tpicos de consultas e procedimentos, de deciso clnica e de avaliao de risco/vulnerabilidade.
Quanto mais flexveis e versteis os profissionais, quanto mais diversificadas e pouco ritualizadas suas aes, quanto mais misturadas e trabalhando juntas as pessoas, quanto mais aberto
e acessvel o servio a todos os tipos de demanda,
maior a possibilidade de a equipe imergir no
mundo sociocultural de sua rea de abrangncia, de trocar saberes pessoais e profissionais, de
realizar melhor o Acolhimento e garantir o acesso. O que no significa perder de vista grupos
prioritrios, fazer busca ativa, vigilncia e promoo da sade.
O funcionamento do Acolhimento cria a necessidade de ampliar a oferta de servios e de
cuidados na APS: se s se dispe de consultas de
mdicos e enfermeiros, s se poder oferecer isso
aos usurios e nunca haver o suficiente. Mas
possvel e desejvel a oferta e inveno de outros
rituais de encontro, outros settings teraputicos,
individuais e coletivos. Tal diversificao dos servios necessria e deve haver um estmulo institucional para sua construo. Outra necessidade
um processo constante de educao permanente
e capacitao clnica para os profissionais no
mdicos, que comumente no exercitam sua clnica com tamanha responsabilidade e participao na avaliao e deciso de cuidados.
Uma mudana fundamental envolvida nas
propostas de Acolhimento que para organizar

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Acolhimento e desmedicalizao:
uma estratgia possvel
A presso da demanda espontnea tende, em geral, a acabar em atendimento mdico. Os usurios assim o desejam, muita vez os tcnicos e enfermeiras no tm alternativa, afinal do mdico
a maior responsabilidade de diagnose e teraputica. O ncleo de competncia clnica do mdico
mais amplo do que o de outros profissionais de
sade. No entanto, a escuta, a avaliao de risco/
vulnerabilidade, a orientao, a resoluo de problemas e o cuidado fazem parte do campo de
competncia de todos os profissionais.
Se a atividade profissional utiliza-se desses
ncleos de competncia para justificar a burocratizao, se h pactos perversos que alimentam o no cuidado, se no h esprito de equipe
e de trabalho multiprofissional, o Acolhimento
tende a transformar-se em PA. Nesse caso, a
medicalizao tende a avanar e se difundir.
O apoio gerencial e a existncia de profissionais em nmero suficiente so necessrios e essenciais para possibilitar um contexto que facilite o Acolhimento, ainda que esta suficincia no
garanta qualidade desmedicalizadora. Trata-se
de uma construo e um aprendizado difcil, que
pode ser facilitado e at induzido, mas depende
dos profissionais. A habilidade clnica um fator
importante, mas o trabalho conjunto em equipe,
a construo de projetos teraputicos e avaliaes de riscos/vulnerabilidades individuais e coletivas e a prpria discusso do problema da
medicalizao podem ajudar muito. H que se
trabalhar continuadamente com os profissionais
para desmedicalizar a ateno sade.
Durante o Acolhimento na APS seria possvel
uma prtica voltada para a desmedicalizao? Boa
parte da demanda no programada caracterizada por problemas de sade medicalizados, que
chegam aos servios de sade em consequncia
da mdia, da cultura do consumismo, do medo e
da insegurana. A experincia com o Acolhimento mostra que essa influncia grande na demanda do usurio. Mostra ainda que o espao do
acolhimento pode ser mais ou menos medicalizante na medida em que trabalha a sensibilidade
do usurio e do profissional no mdico em relao ao problema, em vez de usar esse momento
para apenas fornecer a tecnologia mdica.
Na prtica da APS, muito prxima da vida
cotidiana da comunidade, difcil enquadrar
muitos dos problemas trazidos pelos usurios
em classificaes diagnsticas precisas, o que facilita a desmedicalizao. Se o mdico tem uma

Cincia & Sade Coletiva, 15(Supl. 3):3615-3624, 2010

de forma sustentvel um servio com Acolhimento, que faa aes programadas e atividades coletivas, so necessrias modalidades de gesto
participativa. a prpria equipe que pode avaliar e decidir responsavelmente quais as aes a
serem ofertadas populao, e para isso necessria a construo de uma cultura e um espao
prprios para a organizao do trabalho cotidiano, de forma democrtica, fazendo cogesto
entre as demandas e diretrizes institucionais37. A
forma organizacional recomendada para isso
uma reunio semanal da equipe de referncia
para discutir, avaliar e gerir o trabalho, a rotina
de agendamento, acolhimento, visitas domiciliares, grupos, elaborao e avaliao de projetos
teraputicos individuais de casos complexos, problemas sanitrios e sociais coletivos, demandas
epidemiolgicas etc., da qual participam todos
os membros da equipe de sade da famlia.
Observa-se que a abertura das equipes presso da demanda costuma produzir angstia, carga exaustiva de trabalho e estresse emocional.
Isso deve ser considerado, e a gesto local deve
buscar formas de proteo para a equipe, de
modo a permitir que prossiga lidando com a
demanda e com a realidade sofrida da populao brasileira. Apoio humano, emocional e institucional para a equipe necessrio, assim como
facilitar a construo de clima de equipe, de corresponsabilizao e de parceria entre os profissionais; e sua educao permanente. Alm disso,
outro importante esquema de proteo dos profissionais a responsabilizao limitada. Recomenda-se que o Acolhimento e a responsabilidade devam ser personalizados e referentes coorte
de pacientes adscrita a cada equipe. Assim, o Acolhimento tende a lidar com pessoas conhecidas
com problemas conhecidos, ainda que complexos. Este fator tende a diminuir o estresse da avaliao de risco/vulnerabilidade e a facilitar a corresponsabilizao entre equipe e usurios. Pacientes de outras reas de abrangncia aparecero,
mas sero avaliados e devolvidos para suas equipes de referncia.
Desnecessrio dizer que a participao popular na gesto do servio, atravs dos Conselhos
de Sade, pode ser de grande relevncia na negociao dos termos e limites do Acolhimento, que
costumeiramente envolve fatores tanto internos
ao servio quanto poltico-institucionais que
transcendem a equipe de sade da famlia, como
contratao de profissionais, espao fsico, horrios etc.

Tesser CD et al.

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tendncia geral a medicalizar os problemas trazidos, alguns profissionais, por maior contato com
o contexto de vida dos usurios (principalmente
Agente Comunitrio de Sade e tcnicos de enfermagem), tm um potencial maior para uma
abordagem ampliada desses problemas, trazendo elementos da vida familiar e social, em alguma medida favorecendo a desmedicalizao do
diagnstico e da teraputica, ao relativizar a abordagem biologicista.
Alm disso, o mdico pode funcionar como
ator desmedicalizante e contribuir para ampliar
a abordagem, j que tem maior legitimidade para
criticar o consumismo e a informao da mdia,
acalmar ansiedades e apoiar iniciativas desmedicalizantes, reforando a autoestima e o respeito
interprofissional, o esprito de equipe e o vnculo
do paciente com os outros membros da equipe.
Por isso, a forma singular como as equipes trabalham o Acolhimento fundamental para definir o grau de medicalizao do Acolhimento. O
cuidado continuado e a responsabilizao pelo
acompanhamento dos pacientes, que implica
conhec-los progressivamente, seu contexto e
dinmica psicossocial, econmica e cultural, so
um poderoso mecanismo para o aprendizado de
uma clnica desmedicalizante. Perceber a relao
entre medicalizao, o retorno repetido excessivo e a iatrogenia facilita a crtica clnica centrada na doena e o aprendizado cotidiano sobre
desmedicalizao.
Isso sugere fortemente a realizao do Acolhimento por rea de abrangncia, ou seja, que
cada equipe acolha os usurios pelos quais responsvel. Discutir os casos conjuntamente em
vez de simplesmente basear-se em protocolos e
fluxogramas tambm facilita uma abordagem
ampliada dos problemas. J o inverso tende a
ocorrer nas prticas que utilizam demasiadamente os fluxogramas e protocolos rgidos. O encaminhamento excessivo para outros profissionais,
que comeam todo o cuidado de novo, tende ao
reforo da lgica hegemnica e fragmentao
do cuidado.
Quando as narrativas dos usurios so monopolizadas pelo mdico, mesmo que ele exera
uma clnica ampliada, somente ele perceber com
o tempo as fortalezas e as fragilidades do modelo
biomdico e as brechas que poderiam ser preenchidas ou expandidas por outros profissionais
ou abordagens. Todavia, mesmo com todos esses
cuidados, h uma tendncia permanente e persistente do Acolhimento em centralizar-se no mdi-

co, at pelo poder de seu ncleo de competncias


e pela sua grande demanda numa sociedade j
relativamente muito medicalizada. Por isso, os
espaos de reunio da equipe devem ser utilizados para corrigir rumos e discutir dificuldades.
Alm disso, o ambiente da APS permite o contato com a cultura popular e tcnicas e curadores
no cientficos, muitos dos quais podem proporcionar interpretaes e cuidados de baixo risco, culturalmente adequados, acessveis e por
vezes surpreendentemente eficazes. Basta lembrarmo-nos da eficcia simblica descrita por
Lvy-Strauss38, cuja traduo biomdica restringiu-se ao reconhecimento do efeito placebo, o
qual, no entanto, no gerou know-how sobre
como o mdico aumentar, utilizar ou induzir tal
efeito nos pacientes.
Por ltimo, vale comentar o Acolhimento realizado em unidades de sade que congregam
muitas equipes de sade da famlia. No raramente ocorre a a organizao de um Acolhimento
nico, que atende a pacientes de todas as reas de
abrangncia por meio de um revezamento de profissionais das equipes ali sediadas. Na prtica, esse
acolhimento fica voltado para demandas agudas
e mantm as equipes no cuidado continuado.
Observamos neste desenho a mesma tendncia
medicalizante do PA, j que se criam como que
dois servios, com lgicas distintas, na mesma
unidade: um voltado para a doena, as intercorrncias e o sintoma e, assim, mais medicalizante; outro que realiza aes programticas, promoo e
educao sade para uma parte da populao
usuria. A vantagem desse modelo em relao ao
servio de emergncia exclusivo que ele pode abrir
rapidamente ao usurio as portas da sua equipe
se necessrio um seguimento para seu caso.
Diferentemente, observamos que o Acolhimento realizado pela prpria equipe de referncia permite transform-lo, com o tempo, em mais
um momento de cuidado, com possibilidade de
se integrar ao relacionamento equipe-usurio.
Em razo da nossa experincia, recomendamos,
em geral, que as equipes de sade da famlia trabalhem em um duplo registro, com atividades
de pronta ateno e de cuidado continuado e
programado26,28,35 .
Reconhecemos a necessidade de se lidar com a
demanda espontnea e com o inesperado na APS,
e que a expanso das experincias de Acolhimento tem se demonstrado eficaz nesse particular. Sugerimos, contudo, reflexo continuada sobre a
relao entre Acolhimento e medicalizao.

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Referncias

CD Tesser foi o responsvel pela concepo e redao inicial do artigo e participou, juntamente
com PP Neto e GWS Campos, das sucessivas
ampliaes, redues, revises crticas, formatao e redao final.

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Artigo apresentado em 26/10/2007


Aprovado em 27/06/2008
Verso final apresentada em 06/08/2008

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