Acolhimento e Desmedicalização Social
Acolhimento e Desmedicalização Social
Acolhimento e Desmedicalização Social
Departamento de Sade
Pblica, Centro de Cincias
da Sade. Campus
Universitrio Trindade
88040-900 Florianpolis SC
[email protected]
2
Centro de Filosofia e
Cincias Humanas,
Universidade Federal de
Santa Catarina.
3
Departamento de Medicina
Preventiva, Faculdade de
Cincias Mdicas,
Universidade Estadual de
Campinas.
Abstract This article discusses the relation between sheltering practice and social medicalization in the primary care. It begins with a revision about social medicalization and mentions
some influences concerning the organization of
the Brazilian primary care. It also indicates that
the ground of receptivity proposal was provided
by those influences. It argues the potentiality to
accomplish the sheltering with a demedicalization and interdisciplinary action and its reverse
effect, when restricted simply to emergency medic
care. There are hereby suggested changes in the
management and organization of routines, agendas as well as collective and individuals activities
of the professionals with the intention to reduce
medicalization. The conclusion favors the expansion of experimentation on sheltering as a strategy in dealing with unexpected events and with
primary care spontaneous demand, always watching out for its medicalization potential.
Key words User embracement, Social medicalization, Family Health Program, Primary care
Resumo Este artigo discute a relao entre a prtica do acolhimento na ateno primria (Programa/Estratgia Sade da Famlia) e o processo
de medicalizao social. Inicia com a sntese de
uma reviso sobre medicalizao social e a indicao de influncias histricas e conceituais sobre a organizao da ateno bsica brasileira,
que prepararam terreno para a emergncia da
proposta do Acolhimento. Argumenta sobre a possibilidade de se realizar o Acolhimento numa lgica desmedicalizante e interdisciplinar e sobre a
forte potencialidade inversa, quando o Acolhimento restrito a simples pronto-atendimento
mdico. Sugere mudanas em rotinas, agendas e
atividades profissionais individuais e coletivas,
teraputicas e de promoo sade, para que cada
equipe possa acolher seus usurios minimizando
a medicalizao. Conclui a favor de experimentaes do Acolhimento como estratgia para se
lidar com eventos inesperados e com a demanda
espontnea, sempre tomando cuidados quanto ao
seu potencial medicalizador.
Palavras-chave Acolhimento, Medicalizao social, Programa Sade da Famlia, Ateno primria
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Introduo
A construo do Sistema nico de Sade (SUS)
uma poltica de Estado democrtica e de bemestar, que vem ampliando o acesso ao cuidado
sade. Uma poltica na contramo da tendncia
neoliberal hegemnica na sociedade e no Estado
brasileiro1. Com o SUS, vem ocorrendo uma progressiva expanso da cobertura da populao brasileira em programas de ateno sade, ao mesmo tempo que se manteve a hegemonia do modelo biomdico na maioria dos programas ofertados. Isto vem acontecendo notadamente a partir
da dcada de 90, com a expanso da rede bsica
estimulada pelo Programa Sade da Famlia (PSF),
depois Estratgia Sade da Famlia (ESF), bem
como pela extenso de servios de pronto-atendimento e da ateno hospitalar2. Caberia perguntar o que essa expanso do acesso representa em
termos de medicalizao social, processo j em
curso atravs da mdia, da cultura e do mercado.
A medicalizao social um processo sociocultural complexo que vai transformando em
necessidades mdicas as vivncias, os sofrimentos e as dores que eram administrados de outras
maneiras, no prprio ambiente familiar e comunitrio, e que envolviam interpretaes e tcnicas
de cuidado autctones. A medicalizao acentua
a realizao de procedimentos profissionalizados,
diagnsticos e teraputicos, desnecessrios e
muitas vezes at danosos aos usurios. H ainda
uma reduo da perspectiva teraputica com desvalorizao da abordagem do modo de vida, dos
fatores subjetivos e sociais relacionados ao processo sade-doena3-6.
O PSF, na sua criao, propunha-se a superar essa tradio medicalizante, substituindo-a
por uma nova concepo apoiada na Promoo
Sade. Em alguma medida, a introduo dessa
estratgia de fato produziu uma saudvel tenso
paradigmtica entre a biomedicina e abordagens
mais ampliadas7. No entanto, no houve uma
reorganizao da formao de especialistas mdicos e enfermeiros em escala suficiente para sustentar esse tipo de reforma cultural. Alm disso,
o PSF, inicialmente, orientou as equipes a lidar
centralmente com os programas de sade, com
protocolos diagnsticos e teraputicos definidos.
Observou-se, contudo, que no havia recomendaes sobre como lidar com a demanda espontnea que recorre aos servios de ateno bsica
ou como atender aos imprevistos to frequentes
e inevitveis no cuidado sade.
Procurando responder a essas lacunas, apareceu a proposta de Acolhimento, divulgada e
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Sade24, tampouco facilitou o acesso aos usurios. Tal lgica, introduzindo critrios epidemiolgicos para priorizao de aes de vigilncia,
preveno, tratamento e controle de doenas, criando grupos prioritrios, reservas de vaga e direcionamentos de agenda, acabou convergindo para
a desvalorizao da demanda espontnea, o que
tendeu a reforar a rigidez das agendas na prtica,
ainda quando isso no fosse buscado.
Outra concepo que tem influenciado, concretamente, a APS no Brasil a estratgia de garantir-se acesso ao SUS mediante a multiplicao de servios de PA. Pouco teorizada e investigada, esta alternativa tem presena em municpios e junto a autoridades do Poder Executivo, j
que prioriza o acesso sobre a qualidade e oferece
um servio de gesto mais simples do que a equipe interdisciplinar do PSF. Ao contrrio da tradio anterior, no valoriza programas, responsabilidade por territrio, seguimento de casos, aes
educativas ou comunitrias. Vrios municpios
brasileiros, na prtica, adotaram esse estilo de
organizao, que utiliza o pronto-socorro de
hospitais e prontos-atendimentos isolados como
modelo de APS. As consequncias negativas do
PA so bastante consensuais no campo acadmico: medicalizao, baixa autonomia dos usurios, ineficcia ante doenas crnicas, baixo aproveitamento do potencial de outros profissionais
de sade e do trabalho em equipe e incapacidade
de atuao em determinantes de sade coletivos25.
Apesar da correo do olhar crtico da Sade
Coletiva para com a clnica biomdica, j h tempos Campos26 e Merhy27 advertiam que o saber
epidemiolgico no deve ser tomado como nico potente para definio de necessidades, prioridades e problemas de sade. Deve ser articulado com as necessidades sentidas, expressas em
demanda cotidiana aos servios de sade e por
meio da participao social na gesto do SUS
(Conselhos de Sade)8,28-30.
H, entretanto, uma terceira forma para se
conceber a APS originria dos pases que implantaram sistemas nacionais de sade, particularmente na Europa. Neste caso, a APS vista como
porta de entrada de um sistema integrado em
rede de ateno ambulatorial, hospitalar etc.
Nessa tradio, valoriza-se a capacidade clnica
para resolver problemas de sade31.
Vale ainda considerar que os servios pblicos brasileiros de APS no superaram o padro
dominante em que a organizao estatal em geral e a instituio mdica tendem a produzir uma
relao ritualizada, enrijecida e burocratizada com
os usurios. Nesse enquadramento a atividade
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Acolhimento e desmedicalizao:
uma estratgia possvel
A presso da demanda espontnea tende, em geral, a acabar em atendimento mdico. Os usurios assim o desejam, muita vez os tcnicos e enfermeiras no tm alternativa, afinal do mdico
a maior responsabilidade de diagnose e teraputica. O ncleo de competncia clnica do mdico
mais amplo do que o de outros profissionais de
sade. No entanto, a escuta, a avaliao de risco/
vulnerabilidade, a orientao, a resoluo de problemas e o cuidado fazem parte do campo de
competncia de todos os profissionais.
Se a atividade profissional utiliza-se desses
ncleos de competncia para justificar a burocratizao, se h pactos perversos que alimentam o no cuidado, se no h esprito de equipe
e de trabalho multiprofissional, o Acolhimento
tende a transformar-se em PA. Nesse caso, a
medicalizao tende a avanar e se difundir.
O apoio gerencial e a existncia de profissionais em nmero suficiente so necessrios e essenciais para possibilitar um contexto que facilite o Acolhimento, ainda que esta suficincia no
garanta qualidade desmedicalizadora. Trata-se
de uma construo e um aprendizado difcil, que
pode ser facilitado e at induzido, mas depende
dos profissionais. A habilidade clnica um fator
importante, mas o trabalho conjunto em equipe,
a construo de projetos teraputicos e avaliaes de riscos/vulnerabilidades individuais e coletivas e a prpria discusso do problema da
medicalizao podem ajudar muito. H que se
trabalhar continuadamente com os profissionais
para desmedicalizar a ateno sade.
Durante o Acolhimento na APS seria possvel
uma prtica voltada para a desmedicalizao? Boa
parte da demanda no programada caracterizada por problemas de sade medicalizados, que
chegam aos servios de sade em consequncia
da mdia, da cultura do consumismo, do medo e
da insegurana. A experincia com o Acolhimento mostra que essa influncia grande na demanda do usurio. Mostra ainda que o espao do
acolhimento pode ser mais ou menos medicalizante na medida em que trabalha a sensibilidade
do usurio e do profissional no mdico em relao ao problema, em vez de usar esse momento
para apenas fornecer a tecnologia mdica.
Na prtica da APS, muito prxima da vida
cotidiana da comunidade, difcil enquadrar
muitos dos problemas trazidos pelos usurios
em classificaes diagnsticas precisas, o que facilita a desmedicalizao. Se o mdico tem uma
de forma sustentvel um servio com Acolhimento, que faa aes programadas e atividades coletivas, so necessrias modalidades de gesto
participativa. a prpria equipe que pode avaliar e decidir responsavelmente quais as aes a
serem ofertadas populao, e para isso necessria a construo de uma cultura e um espao
prprios para a organizao do trabalho cotidiano, de forma democrtica, fazendo cogesto
entre as demandas e diretrizes institucionais37. A
forma organizacional recomendada para isso
uma reunio semanal da equipe de referncia
para discutir, avaliar e gerir o trabalho, a rotina
de agendamento, acolhimento, visitas domiciliares, grupos, elaborao e avaliao de projetos
teraputicos individuais de casos complexos, problemas sanitrios e sociais coletivos, demandas
epidemiolgicas etc., da qual participam todos
os membros da equipe de sade da famlia.
Observa-se que a abertura das equipes presso da demanda costuma produzir angstia, carga exaustiva de trabalho e estresse emocional.
Isso deve ser considerado, e a gesto local deve
buscar formas de proteo para a equipe, de
modo a permitir que prossiga lidando com a
demanda e com a realidade sofrida da populao brasileira. Apoio humano, emocional e institucional para a equipe necessrio, assim como
facilitar a construo de clima de equipe, de corresponsabilizao e de parceria entre os profissionais; e sua educao permanente. Alm disso,
outro importante esquema de proteo dos profissionais a responsabilizao limitada. Recomenda-se que o Acolhimento e a responsabilidade devam ser personalizados e referentes coorte
de pacientes adscrita a cada equipe. Assim, o Acolhimento tende a lidar com pessoas conhecidas
com problemas conhecidos, ainda que complexos. Este fator tende a diminuir o estresse da avaliao de risco/vulnerabilidade e a facilitar a corresponsabilizao entre equipe e usurios. Pacientes de outras reas de abrangncia aparecero,
mas sero avaliados e devolvidos para suas equipes de referncia.
Desnecessrio dizer que a participao popular na gesto do servio, atravs dos Conselhos
de Sade, pode ser de grande relevncia na negociao dos termos e limites do Acolhimento, que
costumeiramente envolve fatores tanto internos
ao servio quanto poltico-institucionais que
transcendem a equipe de sade da famlia, como
contratao de profissionais, espao fsico, horrios etc.
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tendncia geral a medicalizar os problemas trazidos, alguns profissionais, por maior contato com
o contexto de vida dos usurios (principalmente
Agente Comunitrio de Sade e tcnicos de enfermagem), tm um potencial maior para uma
abordagem ampliada desses problemas, trazendo elementos da vida familiar e social, em alguma medida favorecendo a desmedicalizao do
diagnstico e da teraputica, ao relativizar a abordagem biologicista.
Alm disso, o mdico pode funcionar como
ator desmedicalizante e contribuir para ampliar
a abordagem, j que tem maior legitimidade para
criticar o consumismo e a informao da mdia,
acalmar ansiedades e apoiar iniciativas desmedicalizantes, reforando a autoestima e o respeito
interprofissional, o esprito de equipe e o vnculo
do paciente com os outros membros da equipe.
Por isso, a forma singular como as equipes trabalham o Acolhimento fundamental para definir o grau de medicalizao do Acolhimento. O
cuidado continuado e a responsabilizao pelo
acompanhamento dos pacientes, que implica
conhec-los progressivamente, seu contexto e
dinmica psicossocial, econmica e cultural, so
um poderoso mecanismo para o aprendizado de
uma clnica desmedicalizante. Perceber a relao
entre medicalizao, o retorno repetido excessivo e a iatrogenia facilita a crtica clnica centrada na doena e o aprendizado cotidiano sobre
desmedicalizao.
Isso sugere fortemente a realizao do Acolhimento por rea de abrangncia, ou seja, que
cada equipe acolha os usurios pelos quais responsvel. Discutir os casos conjuntamente em
vez de simplesmente basear-se em protocolos e
fluxogramas tambm facilita uma abordagem
ampliada dos problemas. J o inverso tende a
ocorrer nas prticas que utilizam demasiadamente os fluxogramas e protocolos rgidos. O encaminhamento excessivo para outros profissionais,
que comeam todo o cuidado de novo, tende ao
reforo da lgica hegemnica e fragmentao
do cuidado.
Quando as narrativas dos usurios so monopolizadas pelo mdico, mesmo que ele exera
uma clnica ampliada, somente ele perceber com
o tempo as fortalezas e as fragilidades do modelo
biomdico e as brechas que poderiam ser preenchidas ou expandidas por outros profissionais
ou abordagens. Todavia, mesmo com todos esses
cuidados, h uma tendncia permanente e persistente do Acolhimento em centralizar-se no mdi-
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Referncias
CD Tesser foi o responsvel pela concepo e redao inicial do artigo e participou, juntamente
com PP Neto e GWS Campos, das sucessivas
ampliaes, redues, revises crticas, formatao e redao final.
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Colaboradores
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