Ivan Claudio Pereira Siqueira
Ivan Claudio Pereira Siqueira
Ivan Claudio Pereira Siqueira
So Paulo
2009
Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada
So Paulo
2009
DEDICATRIA
AGRADECIMENTOS
Aos meus primeiros mestres, Carlos Erivany Fantinati, Lus Antnio de Figueiredo e
Joo Lus Cardoso Tpias Ceccantini;
RESUMO
ABSTRACT
The subject of this thesis is the relation between literature and music, through
the reading of Sagarana, in special: Burrinho pedrs, Sarapalha, Corpo
fechado and A hora e vez de Augusto Matraga. The musical concept includes the
sonorous potentialities of the language, popular songs and the techniques and erudite
forms of music, such as counterpoint and sinfonism.
Paul Valry
O crtico aquele que reconstri sua vida no interior dos textos que l.
A crtica uma forma ps-freudiana de autobiografia. Uma autobiografia
ideolgica, terica, poltica, cultural.
Ricardo Piglia
L. Fleck
NDICE
Introduo......................................................................................................... 10
1. Catedrais Sonoras ........................................................................................ 14
(Pressupostos para uma Esttica Comparada)
1.1. Excertos de Crtica Gentica................................................................. 19
1.2. O lugar de Sagarana na obra de Guimares Rosa ............................. 22
1.3. Sinfonias Anlogas ................................................................................. 27
1.4. Movimentos hodiernos........................................................................... 32
1.5. Cantos e Encantos .................................................................................. 34
1.6. Rumos da Crtica Literria Comparada ............................................. 50
1.7. Via Littera: tema, motivo e leitmotiv..................................................... 55
1.8. Contraponto e Sinfonia.......................................................................... 61
2. Tematizao Musical nO burrinho pedrs ........................................... 65
2.1. Me-andros. .......................................................................................... 70
2.2. Msica do Serto .................................................................................... 78
2.3. Aluses Contrapontsticas ..................................................................... 89
2.4. Sonoridades Verbais .............................................................................. 97
3. As Vozes de Corpo fechado .................................................................. 109
3.1. Modulaes I ........................................................................................ 111
3.1.1. Modulaes II ................................................................................. 116
3.2. Movimentos Oblquos......................................................................... 118
3.3. Msica e Literatura ............................................................................ 124
3.3.1. Dilemas Brasilis .............................................................................. 126
4. Sarapalha Fuga a trs vozes .............................................................. 128
4.1. O trem da saudade .............................................................................. 128
4.2. Movimentos Contrrios ..................................................................... 133
Introduo
Esta tese procura conciliar metodologias e teorias da literatura e da msica
para sugerir hipteses de abordagem do fenmeno esttico em quatro narrativas de
Sagarana, de Joo Guimares Rosa: O burrinho pedrs, Corpo fechado,
Sarapalha, e A hora e vez de Augusto Matraga. A partir do elenco de casos
similares precedentes da tradio europeia e brasileira, o intuito desvelar
determinadas especificidades sobre a concepo estilstica da sua arquitetura.
A busca pela singularidade musical enquanto efeito de construo da
composio literria se debruou sobre um tema at ento pouco estudado, mas que
parece complementar uma importante faceta dos estudos rosianos. O relativo enlevo
dos caracteres sinfnicos na sua prosa derivou tambm de farta referncia primria e
dos materiais disponveis no IEB, e tambm porque o seu canto regional j foi
parcialmente entoado, aqui e acol, desde o lanamento de Sagarana.
Faltava uma investigao que apontasse as outras fontes e a amplitude dos
recursos sonoros. E que, sobretudo, indicasse que a sua musicalidade, ainda que
circunscrita aos planos literrios, supera em muito as recorrncias soantes das
formulaes lingusticas.
que para alm da massa fnica representativa do real sertanejo, como
apontava Dirce Riedel, uma das pioneiras na percepo do fenmeno, existiriam
estruturas musicais no livro. Elas perpassariam as onomatopeias, os jogos fnicos, as
homofonias, as sinestesias, as pontuaes, os rudos ambientais e outros tantos
expedientes sem se deixar aprisionar pelas formas musicais.
Nesse sentido, j haveria indcios suficientes apontados pela crtica de que a
linguagem rosiana se aproximaria do conceito de signo icnico de Peirce, suscetvel
1. Catedrais Sonoras
(Pressupostos para uma Esttica Comparada)
Formador de vrias geraes de crticos, Antonio Candido propunha que, em
obras de cunho histrico e socialmente ancoradas, se buscasse (...) localizar
princpios estruturais que regem a formao do texto a partir das suas camadas mais
fundas1. Sagarana frequentemente lembrada pelo aspecto histrico e pelas
sutilezas estticas, desde ento, marca registrada de Joo Guimares Rosa. De certo
modo, os pressupostos desta visada e seu esforo em evidenciar o cdigo no
fenmeno literrio remetem tentativa deste trabalho de se estabelecer enquanto
uma espcie de ensaio de escuta das estrias.
A esperana que nessas camadas mais fundas j apontadas pela crtica
algumas menos explcitas, mas igualmente fundantes , o destaque para outras
leituras/audies propicie alguma contribuio. Pesquisas preliminares indicam que
as relaes entre literatura e msica podem ilustrar pontos inexplorados da arte
rosiana. Confluncias entre a linguagem e a msica remontam Antiguidade
Clssica, e denotam que a sensorialidade do som teria ligao com a verdade da
palavra, como se sabe, empreendimento caro ao seu fazer literrio:
In der Einheit der altgriechischen Musik trug das Wort den Rhythmus,
mglicherweise sogar den Ton der gesanglichen Rezitation. Sprachliches und Musikalisches
wirkten als Einheit auf den hrenden Menschen ein, und wir wissen um die erzielte
Erschtterung der miterlebenden Gemeinschaft durch die Katharsis der Tragdie.2
Cf. Lvi-Strauss. Mythologiques I : Le cru et le Cuit. Paris, Plon, 1964. Partindo da Lingustica de
Roman Jakobson, o livro se vale da msica como intermezzo entre lgica e esttica, utilizando-se de
analogias com Oratrios, Cantatas, Sonata, Sinfonia, etc.
6
Joo Guimares Rosa. Travessia Literria. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1968, pp.44.
7
Caos e Cosmos. So Paulo, Duas Cidades, 1976, p. 55.
dos
gneros
enquanto
categorias
inquestionveis.
Por
isso,
15
12
Cf. John Neubauer Music and literature: the institutional dimensions in Steven Paul Scher. Music
and Text: Critical Inquiries. Cambridge University Press, 1992, p. 5: No text is fiction by virtue of
its internal features; texts become fiction by being treated as such.
13
Sagas de Minas Gerais in Os Mortos de Sobrecasaca, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,
1963, pp. 260 e 263.
14
Na Grcia antiga, rhapsods eram itinerantes que cantavam poemas picos; enquanto forma
musical, a rapsdia surge ligada ao nacionalismo europeu no incio do Sc. XIX: o russo Venceslas
Tomasek, o hngaro Franz Liszt, etc.
15
Um Lance de Ds do Grande Serto in Eduardo Coutinho (Org.). Coleo Fortuna Crtica. Rio
de Janeiro, Civilizao Brasileira/INL, 1983, p. 328.
22
16
literatura e msica, no se restringindo sonoridade das palavras: seu nome era uma
dissonncia inevitvel, a arte musical colorida matemtica e o rtmico uso de
gradao (Caderno 4, p. 94). Sintaxe: livro I integrao/tese, livro II
desintegrao/anttese e livro III reintegrao/sntese, modular por
reduplicao de situaes e caracteres (Caderno 4, pp. 7-8).
sabido que alguns desses fragmentos de perodos, expresses e ttulos
demarcam a composio do inacabado A Fazedora de Velas (Caderno 5, pp. 9-10),
texto que tem por base uma disposio musical23:
23
24
I parte a b c
II parte b c a
III parte c a b
Ceclia de Lara. Rosa por Rosa: Memria e Criao in Revista IEB. So Paulo, n 41, 1996, p. 33.
Vilma Guimares Rosa. Relembramentos: Joo Guimares Rosa, meu pai. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1983, p. 51.
26
27
Manuel Cavalcanti Proena em Trilhas do Grande Serto in Augusto dos Anjos e outros ensaios.
Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1959, pp. 158-9, sugeriu-lhe trs planos de estudos um subjetivo,
individual; um coletivo subjacente (literatura popular) e outro mtico.
28
Na dcada de 1970, a Revista Veja (13/10/71), ed. 162, p. 88, comentava que Sagarana era o livro
moderno brasileiro que mais adaptaes recebera: Teatro O Marido Prdigo, Conversa de Bois,
Sarapalha; Filme A hora e vez de Augusto Matraga; Texto Infantil O Burrinho Pedrs como
A ltima aventura de Sete-de-Ouros; Poltica nomeou projeto de reforma agrria em Minas Gerais
pelo INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria.
29
Para o autor, mais do que incidir aspectos timbrsticos, o circumflexo, o acento agudo, ou o grave
entravam no ritmo visual da linha do prprio texto. Alusio Magalhes et alii., Preparao de
originais in Editorao hoje. Rio de Janeiro, Fundao Getulio Vargas, 1981, pp.53-4.
30
Cf. Cleusa Rio Pinheiro Passos. Op. cit.
31
O signo hjelmsleviano, no qual figuram expresso e contedo, cada qual com suas respectivas
formas e substncias, implica que cada signo signo de outro. A fuso rosiana e a mescla difusa de
gneros teriam origem sgnica.
32
34
mtico e na expresso do subjetivo, ora uma postura mais ligada histria e ao social.
A veiculao da estilstica experincia histrica do pas parece ser uma aspirao
difcil de ser alcanada 35.
Seja como for, a profuso de temas com os quais a obra de Guimares Rosa
vem sendo cotejada no legitimaria a incluso da perspectiva musical?
34
Cf. Benedito Nunes. Crtica literria no Brasil, ontem e hoje in Maria Helena Martins (Org).
Rumos da Crtica. So Paulo, Senac/Ita Cultural, 2000.
35
Cf. Willi Bolle. (...) a caracterstica mais marcante da recepo de GS:V a oposio entre as
interpretaes histrico-sociolgicas e as esotrico-metafsicas in O pacto no Grande Serto
Esoterismo ou lei fundadora? Revista USP n 36, Dez, Jan, Fev 1997/8, p. 28.
36
Cf. Slvio A. O. Holanda. Rapsdia sertaneja: leituras de Sagarana, Mestrado em Letras, UFPA,
1994. No trata especificamente de relaes musicais.
Mattheson was one of the first to analyze the parts of a musical composition as
though it were verbal discourse. The six parts he identified exordium, narration,
proposition, confutation, confirmation, and peroration appeared to offer a valuable heuristic
for the analysis and composition of all music.37
Johann Georg Sulzer & Heinrich Christoph Koch. Aesthetics and the art of musical composition in
the German Enlightenment. Trad. Nancy Baker & Thomas Christensen. Cambridge University Press,
1995, p. 18.
38
Jean-Pierre Longre. Musique et littrature. Paris, Bertrand-Lacoste, 1994, p.10.
39
Cf. Dostoevsky Studies in The Department of Slavic Languages and Literatures. University of
Toronto em <http://www.utoronto.ca/tsq/DS/issues.shtml>. Acesso em 03/02/08.
Ziel dieser Studie ist die strukturelle Analyse und Interpretation von Gert Jonkes
Texten unter Anwendung musik - und literaturwissenschaftlicher Methoden. Bei solch einer
interdisziplinren Auseinandersetzung stellt sich nun die Frage nach der Legitimitt und den
Mglichkeiten eines solchen Vorhabens.
40
Cf. Edgard Zilsel. Historie dune notion de lantiquit la renaissance. (Trad. Michel Thvenaz).
Paris: Les dition de Minuit, 1993, pp. 30-5.
41
James Winn. Unsuspected Eloquence: A history of the relations between Poetry and Music. New
Heaven and London, Yale University Press, 1981, p. 30-1.
42
Anatomy of Criticism. Princeton, New Jersey, 1957, pp. 133 e 266-7.
43
Musikalische Formgebung in Gert Jonkes Werk. Wien, Praesens Verlag, 2008: Este livro objetiva
analisar e interpretar a estrutura dos textos de Gert Jonkes a partir de metodologias da msica e da
literatura; subjacente a isso, a legitimidade e o alcance de um projeto interdisciplinar, pp.9-15.
45
, o emprstimo da
46
tempo da poesia.
Esta tese tambm se enriqueceu com a leitura de Maria Luza Ramos 47, que
postulou o uso da forma sonata em Mara (1976), de Darci Ribeiro. Os temas em
litgio corresponderiam sociedade civilizada e pequena tribo Mairum. A
justaposio incluiria no apenas o binarismo estrutural das tonalidades rivais, mas o
cuidadoso design da exposio, desenvolvimento e reexposio dos temas.
44
48
48
54
A dana das letras: antologia crtica. Rio de Janeiro, Topbooks, 1991, p. 71.
Uma cantiga de se fechar os olhos: mito e msica em Guimares Rosa. So Paulo, Annablume,
Fapesp, 2005, pp. 33 e 223.
56
Op. cit., p. 19.
55
O estgio atual dos estudos sobre o assunto possibilita que a etapa seguinte
seja a aproximao aos mecanismos pelos quais supostamente Guimares Rosa teria
utilizado os componentes da msica e qual a sua importncia na economia da obra.
Com as ressalvas de que aqui o carter interpretativo no tem a sua
subjetividade olvidada ou negada. Ainda mais que a proposio de investigao parte
da analogia com a msica, em que mesmo os seus parmetros fundamentais so
sempre passveis de flutuaes a altura e a durao dos sons so relativas; no
possvel identificar um valor absoluto para o tempo, por isso os allegros (alegre),
andante (andando), presto (rpido), adgio (devagar) e seus adjetivos com brio,
molto; o mesmo ocorrendo com algumas mincias do andamento, accelerando e
ritardando e as sugestes de intensidade como forte, pianssimo e crescendo,
que permitiriam recuperar as intervenes imaginadas pelo autor.
Nesse aspecto, tanto a interpretao da obra musical quanto da literria
refletem aspectos comumente reiterados pelos estudiosos, entre outros: o horizonte
de expectativas57 do leitor, as intenes do autor, as leituras crticas que se
impuseram com o tempo, vivncia literria, cultural e grau de conhecimento do
binmio obra/autor e da tradio na qual ele se insere. Essa existncia real que
desvirtualiza e desritualiza a obra se efetiva apenas no seu processo de
leitura/escuta, aps o qual se imiscuem as suas infindas sensaes, recriaes,
amlgamas, e o alargamento das elucubraes interpretativas do leitor recriador,
sempre atento ao estatuto imaginrio das artes.
que cada execuo de uma pea, como a leitura de um texto, reflete uma
enormidade de variveis que compem o fenmeno da interpretao, das quais a
57
Cf. Hans Robert Jauss. A Histria da Literatura como Provocao Teoria Literria. Trad. Srgio
Tellaroli. So Paulo, tica, 1994.
58
Joo Guimares Rosa. Correspondncia com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3 ed. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 2003, p. 93.
59
Ibid. O Recado do Morro in No Urubuquaqu, no Pinhm (Corpo de Baile). 9 ed. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 2001, pp. 94-6.
Logo depois que seu pai manda embora a sua cachorra de estimao, uma
cantiga ensina a Miguilim61 a perda e a dura realidade da violncia dos maiores
contra os menores:
E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, tambm,
tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ningum no entendia. Agora elas
cantavam junto, no paravam de cantar.62
60
Ibid.Buriti in Noites do Serto (Corpo de Baile). 9 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, pp.
154-5.
61
Ibid. Campo Geral in Manuelzo e Miguilim (Corpo de Baile). 11 ed. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2001, p. 35.
62
Ibid. Sorco, sua me, sua filha (Primeiras Estrias). 15 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
2001, p. 65.
Das muitas lembranas que Diadorim lhe imprimiu na alma, o destaque para a
qualidade da voz: Mas nunca eu senti que ele estivesse melhor e perto, pelo quanto
da voz, duma voz mesmo repassada, (p. 57). A respeito de sua me, a lembrana
dela me fantasiou (...) feito grandeza cantvel (p. 57); sobre Otaclia: Me airei nela,
como a diguice duma msica, (p. 67):
63
Ibid. Grande Serto: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p. 138.
Joca Ramiro, o grande chefe dos jagunos, tido como modelo por Riobaldo,
tambm evocado por aspectos sonoros: E, quando ele saa, o que ficava mais, na
gente, como agrado em lembrana, era a voz, (p. 265). Finalmente, o livro no
uma narrao de Riobaldo a um interlocutor quase silencioso64, que praticamente no
faz interferncias?
Estruturalmente, os inmeros episdios da narrativa confluem para a
organicidade do texto como movimentos de uma imensa sinfonia. As mortes,
ruindades, maldades, o diabo, as superties, a crena na reencarnao do compadre
Quelemm, as delicadezas, o amor, as topografias, os antropnimos e o onipresente
canto, dos pssaros, da natureza e dos vaqueiros, assemelham-se a motivos, temas,
texturas e sonoridades do serto.
Em Sagarana, O burrinho pedrs se poria como um coro musical que vem
dos ritmos dos cantos de pssaros e das melodias das cantigas dos vaqueiros. J em
So Marcos, quando o protagonista acometido de cegueira, o aclaramento da
sensibilidade auditiva que o guia a msica enquanto desveladora de sentidos
ocultos.
Tendo em vista o exposto, os procedimentos a serem adotados para a anlise
expressam um conjunto diverso de tcnicas e metodologias, cujo objetivo dar conta
das especificidades textuais, sejam elas menes ou presumveis emprstimos de
formas musicais, a comear pelo fato de que na escrita rosiana, aquilo que
normalmente circunscrito poesia repetio, ritmo, assonncia, rimas internas e
64
Cf. Dante Moreira Leite. Grande Serto: Veredas. In O amor romntico e outros temas. So
Paulo, Conselho Estadual de Cultura e Literatura, 1964.
Saulo e se liga entonao homnima e lacnica da ave Joo corta pau nO burrinho
pedrs (pp. 89-91), espcie de prlogo da mortandade na travessia do crrego.
Cantos de pssaros frequentemente conectam cenas e acontecimentos
importantes. O canto premonitrio do passarinho Joo corta pau precede a tragdia
dos vaqueiros nO burrinho pedrs. Tio Laudnio, ao procurar convencer o Major
Anacleto a contratar os servios de Lalino, a fim de assegurar a sua reeleio,
menciona que: Gente que pendura o chapu em asa de corvo..., metaforizando a
sagacidade do protagonista em A volta do marido prdigo (pp. 128-9).
A epgrafe de Sarapalha recomenda que o canto do canarinho seja
vinculado tristeza do Primo Ribeiro Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai.... Mas,
em contraposio apatia dos primos, os passopretos atacam a rocinha de milho num
sincronizado pio e contrapio: Finca, fin-ca, queu ranco! Queu ranco!... (p.
157).
NO duelo, quando Turbio Todo foge da vingana de Cassiano Gomes, ao
atravessar o rio, um pato selvagem sobrevoou a balsa e tatalou trs vezes e pousou
nas tabuas da margem esquerda (p. 192), sugesto de mau agouro.
A cena em que so desfiadas as ocorrncias que resultaram no casamento
infeliz de Bento Porfrio, em Minha gente, entremeada pelo canto triste, triste,
que faz d do sabi (p. 229); canto que s cessa quando Bento o desafia, com uma
melodia ainda mais pungente. Atente-se para a sequncia melanclica dos sons
nasais:
Cad Mariquinha?
Foi passi...
Entrou no balo
virou fogo do !... (p. 255)
66
Cf. Jean Starobinski. Les Mots sous les mots. Les Anagrammes de Ferdinand de Saussure. Paris,
Gallimard, 1971, p. 50.
67
Ouricuri, do indgena Auricuri (duas serras juntas), uma cidade do serto pernambucano, cuja
emancipao foi marcada pelo estabelecimento de um juiz de direito, que fugia de uma epidemia de
febre. conhecida pelas festividades da vaquejada, bumba-meu-boi e o carnaval. Disponvel em
<www.viagemdeferias.com/recife/pernambuco/ouricuri.php>. Acesso em 05Mai2008.
68
Essa cantiga no constava em Sezo, apenas os versos em ingls: For a walk and back again....
Cf. Olivier Messiaen (1949-1992). Trait de rythme, de couleur, et dornithologie (Tome I). Paris,
Alphonse Lduc, p. 10-12; 23 em que uma densidade com poucos eventos facilitaria o alongamento
da percepo presente da durao; com muitos eventos, ocorreria a sensao de um encurtamento do
tempo. A apreciao em retrospecto dar-se-ia pela inverso dessa sugesto.
69
70
Lus Cmara Cascudo. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 11 ed. So Paulo, Global, 2001, p. 108.
Franklin de Oliveira, Guimares Rosa in Op. cit., pp. 55-9, analisa as funes das epgrafes:
encerrar o tema, funcionar como bordo, refro e ritornelo, sem se deter no fato de que elas so, na
maioria das vezes, cantigas populares.
71
da
trama:
ligar
passagens
cujo
efeito
recproco
se
disseminaria
73
. O intuito era
dirimir o objeto de passagem (estilo, temas, ideias) das obras e mostrar como isso
repercutira na intermediao entre escritor e leitor. Ainda preso s crticas das fontes
e das influncias 74, a interpretao literria teve o seu contraponto nos pressupostos
75
77
simultnea da anlise e da
72
Ulrich Weisstein (Org.) Literatur und bildende Kunst: ein Handbuch zur Theorie und Pra-xis eines
komparatistischen Grenzgebietes. Berlin, E. Schmidt, 1992. O panorama sobre as grandes trajetrias
do comparativismo concludo afirmando-se a ausncia de uma teoria satisfatria na rea.
73
Cf. Paul Van Tieghem. La Littrature Compare. Paris, Armand Colin, 1951.
74
Cf. Sandra Nitrini. Literatura Comparada: Histria, Teoria e Crtica. So Paulo, Edusp, 1997.
75
Ren Wellek. A crise da Literatura Comparada in Coutinho, F.E. e Carvalhal, T.F. Literatura
Comparada: Textos Fundadores. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
76
Henry Remark. Comparative Literature: Its Definition and Function in Comparative Literature,
Method and Perspective. Carbondale, London/Amsterdam, Southern Illinois University Press, 1971.
77
Adrian Marino. Comparatisme et thorie de la littrature. criture, Presses Universitaires de
France, 1988.
78
79
78
Bakhtine, le mot, le dialogue et le roman Critique, n 239, Avril, 1967, pp. 438-465. Assunto
retomado em Recherches pour une smanalyse: Essais. Paris, Seuil, 1969.
79
Ibid. La rvolution du langage. Paris, Seuil, 1974, pp. 59-60.
80
La strategie de la forme in Potique, n 27. 1976, pp.257-281.
81
84
81
85
87
, um de seus autores
85
Emil Staiger. Grundbegriffe der Poetik. 2 ed. Zrich, Atlantis, 1951, p. 250.
Cf. Itamar Even Zohar. Polysystems Theory in Poetics Today, vol. 11, n 1, 1990, pp. 9-94.
90
Niklas Luhmann. Das mdium der Kunst in Delfin, VII, 1986, no diferencia as artes seno pela
matria dominante acstica, tica ou alfabtica, para ele, as artes so, sobretudo, meios de
comunicao.
89
91
em Gaston
Bachelard e seus sucessores, Jean Rousset, Jean Starobinski, Georges Poulet e JeanPierre Richard. Para esses estudiosos, a noo de tema tem como suposio inicial
as reciprocidades entre sujeito e objeto, mundo e conscincia, criador e obra.
Partindo dos conceitos de condensao, ponto comum que une os sentimentos
em cadeias associativas, e deslocamento, mudana de representao, as leituras
psicanalticas
92
91
Daniel Bergez et alii. Introduction aux mthodes critiques pour lanalyse littraire. Bordas, Paris,
1990.
92
Jean Bellemin-Noel. Psychanalyse et littrature, Que sais-je?, Paris, P.U.F., 1987.
95
se caracterizaria simultaneamente
97
elaborou um
unido a realizaes particulares factuais, posteriores: le motif nest pas encore une
forme concrete de lexpression, aussi longtemps quil na pas donn lieu la
ralisation matrialle
99
de:
Ahnung
(antecipao),
Erinnerung
(reminiscncia)
99
Grund explicaria o entendimento pelo qual algo aquilo que . Ursache, que
a coisa contm em si mesma a razo de outra coisa. Portanto, Grund o fundamento
lgico, diferente de outros fundamentos: real, objetivo ou subjetivo102. Para alguns
estudiosos103, Grundmotiv tem peculiaridades distintas do uso literrio de leitmotiv:
104
102
Temas
105
105
Joseph Haydn, considerado o pai da Sinfonia, dizia que a configurao do discurso musical
dependia do tema e das suas possibilidades de desenvolvimento. Charles Rosen. Sonata Forms. WW.
Norton & Company, New York, 1988, p. 117.
106
The Shaping Forces in Music: An Inquiry into the Nature of Harmony, Melody, Counterpoint,
Form. New York, Dover Publications, Inc, 1997, p. 136.
107
Cf. Livio Tragtenberg. Contraponto: uma arte de compor. 2 ed. So Paulo, Edusp, 2002.
Foi usado pela primeira vez no sc. XIV, quando a teoria do contraponto comeou a
se desenvolver a partir da teoria mais antiga do descante. Quando se acrescenta uma parte a
uma outra j existente, diz-se que a nova parte faz contraponto com a anterior. O termo s
vezes reservado para a teoria ou o estudo de como uma parte deveria ser acrescentada a
outra, mas na maioria das utilizaes modernas no se distingue de polifonia, significando
literalmente sons mltiplos108.
Dicionrio Grove de msica. Trad. Eduardo F. Alves. Ed. Stanley Sardie. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1994, p. 218.
109
Op. cit., pp. 868-70.
110
111
A personagem lembra a lenda gacha Negrinho do Pastoreio, cujo primeiro retrato parece ser o de
Apolinrio Porto Alegre O Crioulo do Pastoreio, de 1875. Mas Guimares declarou (...) aquele
negrinho que chora, canta, se desespera e acaba estourando a boiada (...) no mais do que a fuso de
uma histria de vaqueiro, bem local, bem mineira com um menino preto que conheci numa penso de
estudantes em Belo Horizonte. Jos Csar Borba. Histrias de Itaguara e Cordisburgo. Correio da
Manh, Rio de janeiro, 19 de maio de 1946, Acervo JGR-IEB.
bois e gente, e o Calund, boi zebu que havia matado seu principal admirador e
protetor o menino Vadico.
So doze112 os vaqueiros condutores da boiada: Francolim, Raymundo,
Sinoca, Z Grande, Leofredo, Tote, Silvino, Benevides, Juca Bananeira, Sebastio,
Bad e Joo Manico, compadre do Major Saulo. Muitssimos causos os entretm na
conduo dos animais. Contudo, diz o narrador:
Mas nada disso vale fala, porque a estria de um burrinho, como a histria de um
homem grande, bem dada no resumo de um s dia de sua vida. E a existncia de Sete-deOuros cresceu toda em algumas horas seis da manh meia-noite nos meados do ms de
janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.
(p. 30)
O nmero pode evocar os doze apstolos de Jesus Cristo. Entretanto, os 12 vaqueiros e o Major
Saulo perfazem o nmero 13, prenncio de tragdia?!
no vale (meio) do Rio das Velhas, no centro (meio) de Minas Gerais pode suscitar
uma zona intermediria ligando duas realidades: humana e animal.
NA volta do marido prdigo parece haver ocorrncia similar quando o
protagonista (...) caminhou para o meio da estrada (...) quarta-feira de tarde (pp.
119-129), grifos meus. Como diziam os antigos In medium virtus est; por isso,
reveladora a escolha do perodo que caracterizar a sabedoria do burrinho: das seis
da manh meia-noite 113.
As heterogeneidades e as colises, as semelhanas e as interseces na
estria do burrinho esboam rica objeo frente histria do Major Saulo.
Porm, se h inmeras assimetrias (a tranquilidade do burrinho versus os constantes
conflitos entre os vaqueiros), h tambm similitudes (o comportamento do burrinho
est prximo dos humanos).
Os contrastantes114 (as aes do burrinho e do Major Saulo) se replicam
continuamente nas aventuras entrelaadas e se conformam endogenamente
organizao sinttica do relato.
Casos de magia, cantigas, flora e fauna, traies e aes tpicas perfazem o
plano geral115 dos motivos estruturantes. Eles indicam o padro composicional no
qual incide o uso de variantes simtricas, paralelismos e variaes, conjugao de
gradaes, ora concntricas (o mais importante localiza-se no meio) e ora analticas
(o mais importante posiciona-se no final). Assim, o cocho, que apenas um local
113
Lus da Cmara Cascudo. Superstio no Brasil. 6 ed. So Paulo. Global, 2002, p. 446. As
chamadas horas abertas, cuja ambivalncia natural predispe fortemente ao mal ou bem. Horas do
desequilbrio, segundo tradies msticas anteriores ao cristianismo.
114
A interseco comearia j com o adjetivo do ttulo pedrs (salpicado de preto e branco).
115
Cf. Otmar Schissel von Fleschenberg. Novellen Komposition in E.T.A. Hoffmanns Elixieren des
Teufels Ein prinzipieller Versuch. Halle, Niemeyer, 1910, em cuja estrutura se encontra uma
sequncia de novelas independentes na mesma unidade romanesca.
116
2.1. Me-andros
Um olhar mais agudo denota que as tematizaes musicais se situam num
nvel estrutural mais geral. Nos exemplos colhidos, elas se mostram mais facilmente
entre os episdios e as narrativas. Desde a esfera elementar, o texto se constri a
partir de junes e intermezzos, entrelugares que aproximam o que estamos
acostumados a ver como estanques e incomunicveis.
O burrinho pedrs (preto e branco), o animal macho rosado
(feminino), e est carregado (pesado) de algodo (leve). Incompatibilidades
frequentes se apresentam pelo vis da ambiguidade. A figurao da simbiose dos
contrrios atravs de rodar , indivduo e mutiro se fundem, o primeiro perderia
sua caracterstica e iria se juntar ao conjunto:
Cf. Alfredo Bosi. O ser e o tempo da poesia. So Paulo, Cia das Letras, 2000: a funo interna
mais importante da pausa marcar as clulas mtricas e sintticas, ordenando, desse modo, o tempo
da leitura, p. 100.
119
119
sugestes
plsticas
(fim
de
queimada)
geomtricas
Esses adjetivos, referentes a formas ou cores dos bovinos, so, no texto original,
qualificativos rebuscados, que o leitor no conhece, no sabe o que significam. Servem, no
texto, s como substncia plstica, para, enfileirados, darem idia, obrigatoriamente, do
ritmo sonoro de uma boiada em marcha. (...) Tanto seria, como mesmo efeito, escrever, s
la:lalala (...) como quando se solfeja, sem palavras, um trecho de msica.
121
Paul Valry. Souvenirs Potiques: recueillis por un auditeur au cours dune confrence Bruxelles
le 9 janvier. Paris, Guy Le Prat, 1946, pp. 7-20.
122
Carta a Harriet de Ons, de 11/10/1963, Acervo IEB-USP.
123
Sagarana: O Brasil de Guimares Rosa. Tese de Doutorado, USP, 2008, pp. 19-20.
De fato, a rtmica marcial est presente desde o primeiro vocbulo, e para isso
contribui o decurso de tempos fracos e fortes: galhudos, gaiolos, estrelos. Note-se
que o efeito tributrio da sucessividade de vocbulos paroxtonos. A tcnica estaria
ligada no s a Gonalves Dias, embora esse poeta costumeiramente seja lembrado
como um grande perito em modelaes rtmicas no verso, sobretudo o endecasslabo,
verso de arte maior124 com cesura feminina na 5 slaba, simtrico, de cadncia longa.
A nfase dada pela extenso e compleio interna da distribuio de tnicas e
tonas. No caso, a sintaxe montona do ritmo bovino de Guimares Rosa parece
emprestar do poeta romntico a coincidncia entre metro, andamento e entoao,
clebres no citado poema:
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos, cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos daltiva nao;
So muitos seus filhos, nos nimos fortes,
Temveis na guerra, que em densas cortes
Assombram das matas a imensa extenso.
124
Cavalcanti Proena. Ritmo e Poesia. Rio de Janeiro, Organizaes Simes, 1955, p. 64.
resistente. O negrinho do canto agourento pede a Joo Manico que o deixe retornar
para junto de sua mezinha, chamando-o sucessivamente de mocinho bom, antes, e
mocinho ruim, depois da negativa. Essa zona cinzenta uma constante no texto
rosiano, e nos obriga a rever constantemente mesmo o que parece bem definido.
Processo similar se d com o vaqueiro cego velho Val Venncio, nico a
enxergar que o zebu Calund padecia de mau esprito. A ona tigre macha. O
pobre campeiro Sinoca filho de pai rico. Ernesto o mais desonesto dos
fazendeiros.
No burrinho pedrs, ora se evidenciam as patas (carter rstico), ora os ps
de borralheira (reminiscncia dos contos de fadas); animal hbrido, ele vive em
estreme alheamento. Joo Manico (diminutivo de mano) tambm Manico. O
Major Saulo, antes Saulinho, se irado tem riso grosso, alegre, riso fino. No
Arraial, onde os vaqueiros despedem os bois para o embarque na estao de trem,
existem dois logradouros, a Rua-de-Baixo e a Rua-de-Cima. O ritmo dos bois
(mundo rural) compete com o dos trens (mundo urbano), pormenor acentuado pela
dinmica rtmica da descrio, ora alongando os episdios (o ritmo rural), ora sendo
mais incisiva (o urbano):
Mesmo com a meia-chuva, vinha o povo do lugar, em f de festa, para gozar o
espetculo. E comeou o embarque rico de sortes, peripcias e aplausos , que durou mais
de hora e meia, at a boiada inteira, lote a lote, desaparecer no bojo dos carros-jaulas dos dois
trens especiais. (p. 76)
destino final dos bois (arraial com duas ruas), v-se o espectro de dois mundos
normalmente vistos como rivais: a vida rural do serto e o seu limite posto pela
estrada de ferro que liga a cidade.
Alis, na narrativa seguinte, A volta do marido prdigo, tudo comea numa
zona intermediria, em que operrios constroem uma estrada: E isto aqui um
quilmetro da estrada-de-rodagem Belorizonte-So Paulo, em ativos trabalhos de
construo (p. 100). Haveria ainda encontros entre o lirismo (cantigas) e o prosaico
(vida no campo), a valentia (Bad) e a covardia (Silvino), a poca das chuvas e a
seca, a saudade (dos vaqueiros) e a querncia (dos bois).
No limiar, os meandros remeteriam ao prprio ttulo Sagarana, cuja
conhecida interpretao semntica referenda o entendimento de que estamos diante
da concatenao de dois espritos: saga nrdico, e rana tupi, que parece ser
sertanejo, bruto, imaturo. A princpio, o elemento externo se sobrepe ao interno,
mas isso s uma indicao dada pela posio dos afixos.
Esses meandros que frequentemente encadeiam aspectos so aqui flagrados
pela sugesto da tica musical, motivos que se entrelaam e geram um aos outros,
que evoluem em grau e complexidade a partir da manuteno de elementos comuns;
ou consoante o tema musical, em termos de antecendente e consequente, visto que
um processo ocasiona outro, num percurso sem fim.
Quando a boiada est pronta, uma melodia rstica que d o sinal para a
partida, Eh, boi!... Eh, boi... (p. 49). Msica126 que percorreu longos perodos
serto adentro:
125
Eis o esquema rtmico que se repete em toda a quadra: (-) para as slabas
tonas e (/) para as slabas tnicas: - - / - - - /. Novamente, a cadncia da marcha
bovina sendo sugerida pelo canto dos vaqueiros.
Tambm mantida a forma de dois dsticos, no primeiro a natureza oferece o
exemplo, no segundo as relaes culturais traadas pela viso dos sertanejos. Depois
da toada, segue-se o sacolejar trissilbico de tnica, tona, tnica e a aliterao de
b, d e v dimensionando e imprimindo a passagem da boiada:
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dana doido, d de duro, d de
dentro, d direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai no volta, vai varando... (p. 51)
As ancas balanam,
e as vagas de dorsos,
das vacas e touros,
batendo com as causas,
mugindo no meio,
na massa embolada,
com atritos de couros,
estralos de guampas,
estrondos e baques,
e o berro queixoso
do gado junqueira,
de chifres imensos,
com muita tristeza,
saudade dos campos,
querncia dos pastos
de l do serto... (pp. 50-1)
127
128
Antnio, que manda o sol e o lenol para cessarem a chuva e a umidade, grifo
meu.
Alm disso, o realce da repetio da fricativa palatal surda /x/, representada
pelas letras ch, e da labiodental sonora /v/ que pode ser um ndice da sonoridade do
vento e da chuva. No podendo domar as foras da natureza (prenncio da enchente
que matara os vaqueiros), o sertanejo invoca as crenas religiosas. Os versos
apontariam o misticismo da gente simples do serto. Essa simpatia 129 para fazer a
chuva cessar retoma uma velha quadra:
Nbia Pereira de Magalhes Gomes. Crendices e Superties do Pescador Mineiro. Juiz de Fora,
Centro de Estudos Sociolgicos, 1984, p. 25.
130
Cf. Lindolfo Gomes. Cantos Populares no Estado de Minas Gerais. Rio de Janeiro, Imprensa
Oficial, 1950.
Completamente embriagado, Bad dever voltar montado sobre o burrinho, o que lhe
causa grande desgosto. Que do meu poldro?! -qu!? S deixaram para mim
este burro desgraado?..., (p. 76). Eles se estranham, ento Bad proclama:
Rio Preto era um negro
que no tinha sujeio.
No gritar da liberdade
o negro deu pra valento... (p. 77)
negro
(cativo)
liberdade,
sujeio
valento.
narrativa, precedendo a morte dos vaqueiros. Logo aps a sua dramatizao, ocorre o
estouro da boiada e o seu sumio. Segue-se outro mau agouro, dado por nova
melodia, a do passarinho joo-corta-pau, anunciadora da enchente: (...) no sabe
que joo-corta-pau o passarinho mais bonzinho e engraadinho que tem, e que
nunca ningum no disse que ele agoura?! (pp. 91-2). H uma melodia133 do
comeo do sculo XX que faz meno a Joo-corta-pau, conhecida em Minas e na
Bahia, mas o seu sentido, pela reiterao intervalar e de figura rtmica, de canto
para acompanhar o trabalho:
133
Alexina de Magalhes Pinto. Cantigas das creanas e do povo e danas populares. Belo
Horizonte, Francisco Alves, 1911, p. 18.
134
o homnimo do pssaro,
135
passado e
134
de observar que a escolha do nome da ave coincida com o do autor, justamente no pice da
histria, quando a celeridade dos acontecimentos cede espao intromisso da melodia spera do
bichinho esprito.
135
Cf. Ana Maria Gottardi. Jorge de Sena: uma leitura da tradio. So Paulo, Arte & Cincia, 2002,
p. 84, em que a expresso metaforizaria o continuum temporal.
Nunca estive em escola, sentado no aprendi nada desta vida. Voc sabe que eu no
sei. Mas, cada ano que passa, eu vou ganhando mais dinheiro, comprando mais terras, pondo
mais bois nas invernadas. No sei fazer conta de tabuada, tenho at enjo disso... (p. 62)
136
Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12 ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. So
Paulo, Hucitec, 2006, p. 150.
137
Cf. Marta Harnecker. Los conceptos elementales del materialismo histrico. Mxico, Siglo
Veintiuno, 1968, p. 16.
138
138
Peter Burke. Uma histria social do conhecimento. De Gutemberg a Diderot. Trad. Plnio
Dentzier. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 13.
Saulo), a beleza e riqueza da vida no campo (as descries da natureza, dos cornos
dos bois, das cores dos bois mestios), tudo efetivamente balanceado pelas
incisivas ponderaes das cantigas.
Nesse sentido, ao possibilitar especulaes meldicas, dadas pelos versos e
pela disposio rtmica, a musicalidade implcita nas palavras e nas estrofes insere
outra dimenso estrutural leitura do texto.
A ideia esboada de contraponto talvez pudesse convergir para abundantes
citaes s demais narrativas e o reaproveitamento e variao de motivos. O
Quilitano das Lages, vtima da andana de uma ona preta sobre seu gado (p. 55),
remete ao Quintiliano da Laginha, personagem de Corpo fechado. Raymundo
relata o temor que o Calund despertava, ningum tinha coragem de enfrent-lo, nem
Mulatinho Campista, viriato mais Salathiel, coisa nenhuma... (p. 57). Lalino
Salthiel o protagonista de A volta do marido prdigo. A demarcao do
menino preto do canto melanclico Queria s ver, de longe, a minha mezinha,
que deve de estar batendo feijo, l no fundo do quintal! traz reminiscncias do
cotidiano da Maria Preta de Sarapalha, a servial dos primos Ribeiro e
Argemiro, que toma conta da roa, da comida e da limpeza da casa.
O zebu Calund mata o menino Vadico prximo dos cochos (p. 70-1),
localizao espacial onde sucedem fatos relevantes em Sarapalha. Alis, antes de
retornar fazenda, sabendo que no voltaria montado no poldro, Bad vai encontrar
Sete-de-Ouros no cocho (p. 77).
Depois do afogamento na travessia do crrego da Fome, o campista Sebastio
encontrado no barro do vau da Silivria Branca (p. 96), nome parecido com o de
Essas relaes buscam trazer lume para o fato de que as situaes anlogas,
ao romperem as barreiras de tempo demarcadas pela sucesso das ocorrncias,
estabelecem simultaneidades, elos semnticos e outras interpretaes do que o
tempo. Como o enredo se passa num nico dia, mas os causos e as memrias
apontam para longos perodos, o nexo lgico que os liga nO burrinho pedrs
prescinde da separao rgida de passado, presente e futuro. Aqui, o contraponto
prefiguraria o estabelecimento de pendncias entre as vivncias, arquitetando-as
numa projeo de tempo continuum 139.
139
Bem que Sete-de-Ouros se inventa, sempre no seu. No a praa larga do claro, nem
o cavouco do sono: s um remanso, pouso de pausa, com as pestanas meando os olhos, o
mundo de fora feito um sossego, coado na quase-sombra, e, de dentro, funda certeza viva,
subida de raiz; com as orelhas espelhos da alma... (pp. 60-1).
141
da vogal a na gramtica
a(s), (s), (s), h , podendo ser a porta de entrada para o imenso trabalho
140
141
Cf. Nilce SantAnna Martins. O lxico de Guimares Rosa. So Paulo, Edusp, 2001.
Devo a sugesto Prof Mrcia Marques de Morais.
142
Cf. Nei Leandro de Castro. Universo e Vocabulrio do Grande Serto. Rio de Janeiro, Jos
Olympio, 1970. Procedimentos enumerados: reduplicao de slabas, aglutinao, justaposio,
verbificao, nominalizao, afixao, etc.
143
Cf. Ismael de Lima Coutinho. Gramtica Histrica. 6 ed. Rio de Janeiro, Livraria Acadmica,
1969.
144
da
narrativa
importncia
da
passagem
do
tempo
145
Cf. Ana Maria Machado. Recado do Nome: leitura de Guimares Rosa luz do Nome de seus
personagens. 3 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003.
146
Provvel referncia passagem do tempo na primeira quadra do livro: L em cima daquela
serra,/passa boi, passa boiada,/passa gente ruim e boa,/passa a minha namorada.
147
brevidade das duas slabas do seu nome. No vaqueiro Benevides, baiano importante,
que tem os dentes limados em ponta, e o nico a usar roupa de couro de trs peas
(p. 39), ressoam bene (boa) e vide (viso). Ironicamente, ele o guia da travessia
no crrego da Fome: o cavalo de Benevides, que guiava a fila, passarinhou (p. 89).
O menino morto pelo Calund, filho de Neco Borges tem o nome de Vadico, os seus
desgnios de bondade e de perdo (o menino pede que o pai jure no matar o animal)
no aludiriam ao Quo vadis?, na passagem em que Jesus Cristo, a caminho do
calvrio, encontra Pedro, incitando-o coragem e ao martrio?
O protagonista de A volta do marido prdigo exibe trs denominaes:
Lalino Salthiel, Laio e Eullio de Souza Salthiel. A convergncia entre
Lalino/Ladino amplamente insinuada no texto: Uns acham um assim sabido, que
muito ladino (p. 105). Alis, j antecipada pela cantiga epgrafe da estria: Negro
danado, si, Heit:/de cala branca, de palet,/foi no inferno, mas no entrou! (p.
99).
Trocando-se o l pelo r, comum no linguajar mineiro, Salthiel geraria
r, afinal ele Eullio de Souza Salthiel, do Em-P-na-Lagoa (p. 107), que diz
de si mesmo j viu sapo no querer a gua?! (p. 114); doutra feita ele canta Eu
estou triste, como o sapo na gua suja... (p. 123); mas o prprio narrador quem
descortina: mas Lalino Salthiel nem mesmo sabia que era da grei dos sapos 149 (p.
124).
O padro de construo onomstico do autor, tendo por base critrios
etimolgicos e culturais, produz inmeras possibilidades de leitura da configurao
149
Projeto
Onomstico
Topnimos
Antropnimos
Origens/Contextos
Etimologias
Sonoridades
Anagramas
(...)
(...)
(...)
(...)
150
Roland Barthes. Proust e os Nomes in O Grau Zero da Escrita. Trad. Maria Laranjeira. So
Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 155.
que para Guimares Rosa, a linguagem est para alm do significado dos
signos; as palavras so mgicas, e parte dessa magia est encapsulada nas suas
ordenaes sonoras, que transbordam as modalidades do habitual. Desvelar as
palavras se apropriar de uma poderosa fonte de conhecimento, ultrapassando as
barreiras e os eclipses que as contingncias histricas nelas depositam, turvando-as
da etimologia originria:
(...) Josu Cornetas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito s
bidimensional, por meio de ensinar-lhes estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto,
sinclinal, palingenesia, prosopopese, amnemosnia, sublimal. (So Marcos, p. 275)
151
Charles Bally. Trait de Stylistique Franaise. 3 ed. Vol I, Genve/Paris, 1951, p. VIII.
Jos Boi caiu de um barranco de vinte metros; ficou com a cabeleira enterrada no
cho e quebrou o pescoo. Mas, meio minuto antes, estava completamente bbado e tambm
no apogeu da carreira: era o espanta-praas, porque tinha escaramuado, uma vez, um cabo
e dois soldados, que no puderam reagir, por serem apenas trs. (p. 293)
152
Curiosamente, seu Ful era o apelido do pai de Guimares Rosa, Florduardo Pinto Rosa,
comerciante, juiz-de-paz, caador de onas e contador de histrias.
(...) uma rapariguinha risonha e redonda, peituda como uma perdiz. Bonita mesmo, e
diversa, com sua pele muito clara e os olhos cor de chuchu. (p. 303)
153
Cf. Joseph Campbell. The Heros Journey: Joseph Campbell on His Life and Work. New World
Library, 2003.
154
A situao antiga: Ulisses simula loucura para tentar escapar do embarque para Tria.
3.1. Modulaes I
Corpo fechado apresenta a histria de um valento cujo discurso
firmemente modulado pelo pndulo verdade/mentira. A comear pela toada que lhe
serve de epgrafe:
155
Cf. Henriqueta Braga. Peculiaridades rtmicas e meldicas do cancioneiro infantil brasileiro. Rio
de Janeiro, 1950.
Das cantigas presentes em Sagarana, talvez seja uma das mais notrias na
atualidade, e aquela cuja melodia seguramente conhecida. Pueril e jocosa, a cano
mostra a oposio entre desejo e realidade. O nmero sete da quadra, implcito na
redondilha maior dos versos e tambm na posio da narrativa, popularmente
conhecido como conta de mentiroso, se associa s cenas em que o protagonista
discursa, espraiando-se no terreno da incerteza.
Os nomes da principal personagem igualmente trazem aluses sonoras e
possibilidades de intercmbios a serem consideradas. Manuel Viga (vergar,
entortar), de uma apcrifa e abundante famlia Viga, de uma veigussima veigaria
(p. 300), veigaria: velharia. Manuel Ful, corruptela de flor, conferiria um carter
oposto sua pretendida valentia. Man das Moas, apesar de no haver elementos no
texto para supor que ele fosse um conquistador. E, por fim, Man-minha-gua, que,
dependendo da entonao, acarreta um sentido pejorativo ao apelido, para alm do
conhecido ardoroso relacionamento com a mula.
Processo sonoro semelhante j anteciparia a falta de coragem do coronel da
regio, a quem o narrador vai pedir socorro: O Coronel era boa pessoa, s que o
chamavam de berda-Mergurio, (p. 320). De fato, o nome dele era Melgurio.
A sonoridade ainda serve de ligao entre elementos que se contrapem. o
que se d quando dois valentes se encontram. A consonncia entre murgueia e
chateia o contraponto da predileo pelo tipo de arma: O senhor no tem a
dessa raa de faca que entra na barriga e murgueia? (p. 294), diz Miligido ao entrar
numa venda. Ao que respondido por um tropeiro recm chegado: Por falar nisso, o
senhor no ter tambm dessa raa de bala que bate na testa e chateia?! (p. 294-5).
Jos Boi caiu de um barranco de vinte metros; ficou com a cabeleira enterrada no
cho e quebrou o pescoo. (p. 293)
No fazer nada seria uma infmia... Temos de defender a das Dor! H momentos
em que qualquer um obrigado a ser heri...
Uma osga!
E o amor, Manuel? Ela a tua noiva! Esta histria...
Que histria, que man-histria! O senhor est caoando comigo...
No, porque...
Porque-isqu!
A minha...
Que-inha?
Cala a boca! (p. 318)
Esse-um maligno e est at excomungado... Ele de uma turma de gente sem-quefazer, que comeram carne e beberam cachaa na frente da igreja, em sexta feira da Paixo, s
pra pirraar o padre e experimentar a pacincia de Deus... (p. 296)
3.1.1. Modulaes II
Grande parte das desventuras impulsionadoras das foras do atraso
ocasionada pela ingesto da cachaa um dos principais cones da desagregao no
156
Haydn, considerado o Pai da Sinfonia, dizia que a configurao musical devia tudo ao tema e s
possibilidades do seu desenvolvimento. Charles Rosen. Op., cit., p. 177.
157
Para o emprico Hobbes, o carter predatrio do individualismo no incipiente capitalismo
inevitavelmente refletia um estado de natureza, in David Hawkes, Ideology. New Critical Idiom.
London, Routledge, 1996, p. 42.
158
Como exemplo de motivo musical, clula a partir da qual o tema se inscreve, confronte-se o I
movimento da 5 Sinfonia de Beethoven, baseado no conhecido motivo de 4 notas. Em So Marcos
h uma provvel meno: e p-p-p-p o pau-bate-caixa..., p. 287.
E o melhor foi que meu afilhado conservou o ttulo, porque, pouco depois, um
destacamento policial veio para Laginha, e desapareceram os cabras possantes, com vocao
para o disputar. (p. 324)
semiolgicas160,
em
cuja
estrutura,
horizontalidades
159
161
Jos Boi caiu de um barranco de vinte metros; ficou com a cabeleira enterrada no
cho e quebrou o pescoo. (p. 293)
Jos Boi, Desidrio, Miligido, Djo... S podia haver um valento de cada vez. Mas
o ltimo, o Targino, tardava em ceder o lugar. (p. 297)
(Caderneta 4); nomes prprios (Caderneta 5); ditos populares (Caderneta 6);
mitologia (Caderno 4); msica (Caderno 6); raa nrdica, madrigal, lied, msica de
programa (Caderno 10); semntica das palavras iniciadas em x (Caderno 11); nomes
de bois (Caderno 14); e provrbios africanos, letras e canes (Caderno 23).
164
165
Roman Ingarden. A Obra de Arte Literria. 3 ed. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1965, pp. 320-1.
Cavalcanti Proena. Op. cit.
166
Cf. Vitor N. Leal. Coronelismo, enxada e voto. 4 ed. So Paulo, Alfa-Omega, 1978, especialmente
sobre o enfraquecimento social das cidades, pp. 38-57.
Snia Maria van Dijck Lima. Escritura de Sagarana. So Paulo, Navegar, 2003, pp. 11-13.
Primo Ribeiro inspira mais cuidado. A sua sade agravada pela extenuao
emocional, consequncia da traio e do abandono da esposa Lusa:
Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Par, deixaram largado um povoado inteiro:
casas, sobradinho, capela; trs vendinhas, o chal e o cemitrio; e a rua, sozinha, sozinha e
comprida, que agora nem mais uma estrada, de tanto que o mato a entupiu. Ao redor, bons
pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar j esteve nos mapas, muito antes da
malria chegar. (p. 151)
aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantelada; uma
cerca de pedra-seca, do tempo de escravos; um rego murcho, um moinho parado; um cedro
alto, na frente da casa; e, l dentro, uma negra, j velha, que capina e cozinha o feijo. Tudo
mato, crescendo sem regra; mas, em volta da enorme morada, ps de milho levantam
espigas, no chiqueiro, no curral e no eirado, como se a roa se tivesse encolhido, para ficar
mais ao alcance da mo. (p. 153), grifos meus.
E quando Primo Ribeiro bate com as mos nos bolsos, porque vai tomar uma
pitada de p. E quando Primo Argemiro estende a mo, pedindo o cornimboque168. (p.
155), grifo meu.
168
Cf. Antnio Geraldo da Cunha. Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa. 2ed. So Paulo,
Nova Fronteira, 1986: cornimboque, do latim cornus ponta de chifre de boi, usada como caixa de
tabaco, p. 218.
Entretanto, a maioria das ervas daninhas traz pelo menos uma propriedade
alimentar ou farmacolgica169.
A agressividade entre as plantas e o seu firme propsito pela manuteno da
vida lembra a concepo darwinista da lei do mais forte. A audcia da natureza
rivaliza com a inpcia humana; a exteriorizao do desnimo (malria) remete
desolao espiritual dos primos; a falta de coragem de Argemiro em se declarar
Lusa rivaliza com a audcia do boiadeiro que a conquista; o silncio de ambos
pontuado pela sezo e pelas interferncias do narrador em discurso indireto livre:
Primo Ribeiro se deixa cair no lajedo, todo encolhido e sacudido de tremor. Primo
Argemiro fica bem quieto. No adianta fazer nada. E ele tem muita coisa sua para imaginar.
Depressa, enquanto Primo Ribeiro entrega o corpo ao acesso e parece ter partido para muito
longe dali, no podendo adivinhar o que a gente est pensando. (grifos meus, p. 163).
169
na... (p. 152), grifo meu. E aps pintar a empobrecimento do local, o narrador
acentua:
E a, ento, taperizao consumada, quando o fedegoso em touas e a bucha em
latadas puderam retomar seu velhssimo colquio, o povoado fechou-se em seus restos, que
nem o coscoro cinzento de uma tribo de marimbondos estreis. (p. 152), grifos meus.
(...) num brejo de ciscos: troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandi
apodrecendo; tabaranas vestidas de ouro, encalhadas, curimats pastando barro na invernada;
jacars, de mudana, apressados; canoinhas ao seco, nocerrado; e bois sarapintados, nadando
como bfalos, comendo o murur-de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do melosal. (p.
152)
Primo Ribeiro e Primo Argemiro no falaram mais no seu nome. Nem uma vez. Era
como se no tivesse existido (p. 160).
E quando a sua presena volta como assombrao, antecipando a morte, o
mau agouro j prenunciado pelo canto das aves, na hora da partida hora aberta
nos antigamente: E, de madrugadinha, inda bem as garrixas ainda no tinham
pegado a cochichar na beirada das telhas, tive notcia de que eu ia morrer... (p. 160).
Por fim, no seu ltimo desvario, o alucinado Primo Ribeiro procura Lusa,
mas s v que Passam umas mulheres vestidas de cor-de-gua, sem olhos na cara,
para no terem de olhar a gente... S ela que no passa, Primo Argemiro!... (p.
166). Num dado momento, as metforas coincidem (fsico e espiritual): Talvez
que para o ano ela no volte, v sembora... (p. 152), que tanto pode se referir
Lusa quanto doena, ambas concorrendo para a sua morte.
No nvel discursivo, h os fluxos contrapostos entre os desejos do Primo
Ribeiro (aceitar a realidade da traio ou a fuga onrica, proposta pela cano em que
um moo-bonito capeta leva embora a moa) e os de Primo Argemiro (o remorso
da quase traio ao primo ou o inconformismo de no ter se declarado), sintonizados
no amor comum por Lusa: A maleita no nada. At ajudou a gente a no
pensar... (p. 160), diz Primo Ribeiro; Eu matava o homem e trazia minha prima de
volta, diz Primo Argemiro, grifos meus.
Existem ainda movimentos antagnicos entre a febre intermitente e os
dilogos; entre o doutor e o povoado; e entre os homens e as mulheres, oposio
reproduzida entre os mosquitos machos e fmeas:
de Bach, por exemplo, geralmente depois da exposio do material temtico seguemse o desenvolvimento e as modulaes, nas quais as vozes apresentam inmeras
combinaes do tema, por meio de inverso de intervalos, espelhamento, alteraes
rtmicas, ornamentos como apojaturas, trinados e outras tcnicas.
Em Sarapalha, muitos dos movimentos da narrativa podem ser
vislumbrados em termos de antecedente e consequente a malria e o abandono, o
trmino das chuvas e o crescimento sem regras do mato, a fuga de Lusa e a
melancolia dos primos... como se toda a matria vivente exibisse em sua
constituio, fsica ou psquica, as vicissitudes cclicas de arranjos e rearranjos
interconectados:
Fazenda
Arraial
Sezo
171
171
vem pela beira do rio Par, entrando pela sua boca aberta (p. 151); os primos
sempre ficam quietos, cabisbaixos, grifos meus.
Primo Argemiro fica sempre da banda do rio; a sua atrao pela prima
Lusa quase o levou ao desatino em baixo de jaboticabeiras; na estria que o Primo
Ribeiro tanto gosta, o moo-bonito foge com a moa rio-abaixo; a primeira vez
que Primo Argemiro v Lusa, entre bambus e bandeirolas. Para provar que a
malria era signatria do mosquito, o doutor ficou bravo (...). Comeu goiaba, comeu
melancia da beira do rio, bebeu gua do Par, e no teve nada... (p. 159), grifos
meus.
O que procurei sublinhar que tanto no plano micro quanto no macro,
Sarapalha permevel a uma escuta que organiza coesamente seus elementos num
arranjo musical. Das oposies fonmicas delimitao do antagonismo dos
primos, da chegada (doena) partida (moradores, doutor), da ao (plantas)
inao (primos), da atitude (moo bonito, Lusa) falta de coragem (Primo
Argemiro),
em
tudo
isso,
conjecturam-se
linhas
que
se
interpenetram
172
Ele surge lpido o cachorro corre muitas vezes (p. 155), ndice de
liberdade e sade, mas logo depois vemos que um cachorro magro, perdigueiro
(p. 156), cheio de bernes, mas com donaire de dama (p. 161). Curiosamente,
trata-se de um perdigueiro morrinhento (morrinha, sarna de gado), (p. 163),
perdigueiro de focinho grosso (p. 171) e, por ltimo, Jil (p. 163), indcio da
amargura que se avizinha. Esses traos de imiscibilidade da fraqueza de nimo de
Ribeiro e Argemiro tambm metaforizariam um passado e bonana versus um
presente de misrias.
A figura do cocho pode ser vista como leitmotiv emblemtico do
relacionamento entre os primos, smbolo do rebaixamento das condies humanas
passividade dos animais que ali comem. O seu parnimo homfono coxo deflagra
a conotao de tortuosidade, de defectvel. NO burrinho pedrs o termo encerra o
seu sentido habitual: E Bad caminhou e puxou o burrinho do cocho. (p. 77).
Pois foi na Laje do Tabuleiro, onde tem os cochos... A gente dando sal com quina,
por causa que, por perto, l estava comeando a aparecer peste. (O burrinho pedrs, p. 70)
173
Esse no-lugar do Primo Ribeiro o faz se confundir com as recordaes de Lusa. que o
recordar, domnio dos afetos, sempre fugidio, e impreciso, diferentemente da lembrana. Cf. Leyla
Perrone-Moiss. Nenhures 2: L nas campinas in Intil Poesia. So Paulo, Cia das Letras, 2000.
174
aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantelada; uma
cerca de pedra-seca, do tempo de escravos (...) Tudo mato, crescendo sem regra. (p. 153)
178
Versos da cano Soldado da aldeia/barra do dia (Siba Veloso e Biu Roque), do CD Fuloresta do
Samba, de 2002, gravadora Mata Norte Discos.
Kltia Loureiro e Ziza Scaramussa. O diabo e suas representaes simblicas em Ramon Llull e
Dante Alighieri (sc. XIII e XIV) in Revista Mirabilia 2 em <www.revistamirabilia.com>. Acesso
em 29/01/09.
... Ento, a moa, que no sabia que o moo-bonito era o capeta, ajuntou suas
roupinhas melhores numa trouxa, e foi com ele na canoa, descendo o rio... (p. 167).
181
No essa uma das funes da literatura dizer o indizvel?! O episdio tambm pode ser visto
como a demonstrao pelo autor do papel da literatura no cotidiano. A cincia no conseguira
enfrentar a doena, o mdico vai embora; mas a historieta um blsamo para o esprito dos
moribundos.
A a canoinha sumiu na volta do rio... E ningum no pde saber pra onde foi que
eles foram, nem se a moa, quando viu que o moo-bonito era o diabo, se ela pegou a
chorar... ou se morreu de medo... ou fez o sinal-da-cruz... (p. 168).
Eu vou rodando
rio-abaixo, Sinh...
Eu vou rodando
rio-abaixo, Sinh... (p. 168)
183
Note: nos primeiros dois versos temos sua partida, escondido, com o casal de pretos,
fugindo do arraial do Muricy, indo para o norte (...). Depois, nos dois outros versos: a
riqueza da alma, de superao, de realizao transfiguradora (...), e por isso mesmo, ele
(sua alma/his soul) vai embora daqui (deste mundo); morre, muda-se para o plano mais alto
(...).
184
consagrado pelos ugures sacerdote romano que predizia o futuro pelo canto e pelo
voo das aves186 contrabalanceado por Matraga187, em cuja sonoridade se
encontrariam
justapostas
possibilidades
semnticas
que
evidenciariam
um
antagonismo:
186
Antnio Geraldo da Cunha. Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1986, p. 83.
187
Matraga tambm pode ser um possvel anagrama de Agarta cidade inicitica subterrnea, onde
estariam as fundaes da Igreja primitiva. Cf. Saint-Yves DAlveydre. El Arquemetro. Trad Manuel
Corb. Madrid, Humanitas, 1981.
(...) em benefcio da Igreja, como acontece sempre no Brasil, nas noites dessas festas
e depois delas, realizou-se um leilo, em que o leiloeiro, para atrair e depenar muita gente,
fazia-se de engraado. Entre cada pregao, uma msica estridente tocava alguns trechos de
fados e lundus, essa desordenada tarantela de negros, na qual cada um faz todos os trejeitos e
movimentos possveis para celebrar a festa da Igreja Catlica.
Fora assim desde menino, uma meninice louca e larga, de filho nico de pai
pancrcio. E ela, Dionra, tivera culpa, por haver contrariado e desafiado a famlia toda, para
se casar. (...) E com dvidas enormes, poltica do lado que perde, falta de crdito, as terras no
desmando, as fazendas escritas por paga... (p. 369).
5.3. Intermezzo
A situao acima descrita mostra que a violncia incontida uma das grandes
causas da desgraa de Nh Augusto. Bruto e sem modos de carinho para com a filha
Mimita e a esposa, no tarda para que elas o abandonem para irem viver com seu
Ovdio, que sabe amar com o querer dos meus parentes todos e com a bno de
Deus! (p. 371). E, justia feita, Nh Augusto nunca respeitou filha dos outros nem
mulher casada (p. 373), o que confere certo tom fatalista de reversibilidade perda
da esposa e da filha.
O homem destemido, desamante da esposa e indiferente filha, v se esvair
no apenas a sua famlia, mas, alm disso, seus bens propriedades, capangas e o
temor dos seus prximos. De fato, ele quase chega a perder sua prpria vida. Se ela
no expira de vez, d ensejo a outra. Nessa passagem, estamos s voltas com um
momento crucial da personagem:
E, a, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do Major
que soa ser um tringulo inscrito numa circunferncia , e imprimiram-na, com chiado,
chamusco e fumaa, na polpa gltea direita de Nh Augusto. Mas recuaram todos, num susto,
porque Nh Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos (p. 376), grifos meus.
189
190
Then here is a new way by which we arrive at the conclusion that the living come
from dead, just as the dead come from the living; and this, if true, affords a most certain
proof that the souls of the dead exist in some place out of which they come again. 192
est prestes vem com as maitacas tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de
rir (p. 399).
A tcnica de desenvolvimento do motivo poderia ser ilustrada pelo termo
meio. Suas mltiplas aparies e sentidos se configurariam como variaes de um
mesmo sema em diversos contextos, conforme j indicado nos captulos anteriores.
O burrinho pedrs o ponto de partida das incontveis situaes em que a palavra
meio se constitui em vocbulo denso de sugestes, a comear pelo adjetivo que o
qualifica.
Em A hora de vez de Augusto Matraga no diferente. Nh Augusto tem
voz de meio-dia (p. 364); Dionra sempre pretendera traz-lo at a meio caminho
direito (p.369); a sorte nasce cada manh, e j est velha ao meio-dia (p. 370);
pouco antes da briga com os capangas do Major Consilva, Nh Augusto se mordia,
j no meio da sua missa (p. 373); o casal de pretos que o avista moribundo morava
sob um tufo de capim pobre, mal erguido e mal avistado, no meio das rvores (p.
376); e quando ele j consegue caminhar, partem para a sua jornada, antes, porm,
Nh Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braos em cruz, e jurou (p.
381).
Ao chegar ao povoado do Tombador, todos gostaram logo dele, porque era
meio doido e meio santo (p. 382); ao receber os jagunos de Joozinho Bem-Bem, o
protagonista escuta atentamente os causos de conflitos, assaltos, duelos, todos se
arrancham ao relento, mas no meio do terreiro h uma fogueira para aquecer (p.
395). Na sua ltima aventura, Nh Augusto, pensando em recusar a oferta de animal
de Rodolpho Merncio, termina por aceitar, porque me Quitria lhe recordou ser o
minha vez h de chegar... (p. 381); cada um tem a sua vez, e a minha hora h-de
chegar! (p. 385); sou um desgraado, me Quitria, mas o meu dia h-dechegar!...A minha vez... (p. 387); cada um tem a sua hora, e h-de chegar a minha
vez! (p. 398); aqui que mais no fico, porque a minha vez vai chegar (p. 401); e
Epa! Nomopadrofilhospritossantamin! Avana, cambada de filhos-da-me, que
chegou minha vez!... (p. 410).
Transformaes e aproveitamento de cenas de outras narrativas tambm
sobejam. As injunes figurativas da maleita (Sarapalha) refluem para uma
determinada geografia no Duelo: Que rio este, to bonito, moo?, o
Par... Pois ento?!... Mas, vam passar pra o outro lado, que aqui ta braba a
maleita!... (p. 194). E chegam ao curso da estrada por onde passa o bando de
jagunos na estria de Matraga: Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio
tinha a maleita (p. 392).
A descrio do desfeiteado por Nh Augusto capiau de testa peluda (p.
374) tem a sua recproca no capiau de testa cabeluda de Duelo (p. 199).
peridica a imagem de personagens agachados nO burrinho pedrs, nA volta do
marido prdigo e no Duelo. Na saga de Matraga, depois de o espancarem, os
outros comearam a ficar de ccoras (p. 375). O assessor do Major Saulo em O
burrinho pedrs atende pelo nome de Francolim Ferreira, aqui h um Franquilim
de Albuquerque (p. 405) vnculos dados pela proximidade sonora.
Esses apontamentos visam a corroborar o uso da tcnica de variao
motvica, por adio, subtrao e alterao, enquanto um importante instrumento de
desenvolvimento do enredo e de suas peculiaridades. como se esses eventos,
guardadas as devidas propores, inundassem ciclicamente Sagarana. As
para fora, sorrateira como a chegada do tempo das guas (p. 387). A chuva um
ndice de enlaamento desses acontecimentos significativos. A sua chegada ou o seu
trmino antecedem e preparam momentos capitais para as personagens.
Por isso o trmino da pluviosidade coincide com a emergncia de outro ser:
as chuvas cessaram (...) e Nh Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo
(p. 399), assinalando o seu nascimento para fazer a sua histria Adeus, minha
gente, que aqui que mais no fico, porque a minha vez vai chegar (p. 401).
Enquanto agoniza, Nh Augusto reclama a me Quitria que o corpo no lhe
vale mais, nem que eu queira, nem pra brigar com homem (p. 387). Isso pode ser
visto como um prenncio da luta que ele travar com o bando de Joozinho BemBem. Outro indcio dado numa cena em que todos esto no arraial: com o rabodo-olho, no deixava de vigiar tudo em volta, virou-se, rpido, para o Epifnio, que
mexia com a winchester (p. 391), grifo meu. A proximidade sonora com epifania
(momento de revelao) parece se implicar atravs do nome da personagem para
indicar o futuro embate. Como se v, so estratgias temticas indicativas do
antecedente-consequente.
Doutra feita, quando o bando de Joozinho Bem-Bem chega ao lugarejo, Nh
Augusto e o casal se esmeram para bem receb-los, mas os verbos com os quais o
narrador descreve a situao j conotam violncia e morte: E a o casal de pretos,
em grande susto, teve de se afanar, num corre-corre de depenar galinhas, matar
leitoa... (p. 391). Quanto aos convidados, no entendiam por que tanta ateno,
cujo motivo eles no topavam atinar, grifos meus. Possivelmente, trata-se de
tcnica anloga ao uso do tema musical.
consecues rtmicas das melodias idiossincrticas dos desejos (entrega aos prazeres
versus domnio de si), dos arpejos de situaes-problema (a fuga da esposa, a
prostituio da filha, a morte do empregado fiel) e da harmonizao sinfnica das
mltiplas vozes (os cacundeiros, Sariema, os capiaus, os fazendeiros) e cantos (da
lngua, da natureza, da alegria, da tristeza).
Essa arquitetura imanente se erguiria sobre conjuntos orgnicos em que se
observam particularidades intersubjetivas (as nove narrativas) que circunscrevem
uma totalidade envolta em si mesma (Sagarana).
O alcance desses artifcios d luz reflexo espiritual do fenmeno literrio,
no tanto da religio na arte, mas da prpria substantivao da arte enquanto
significado espiritual. Nesse sentido, a pluralidade dos mecanismos formais visa a
revelar o entrelaamento entre os seus pilares e suas vigas de sustentao. Ainda que
muitas ocorrncias cognitivas e sensoriais se circunscrevam ao prazer da expresso e
da vivncia, nesta ltima narrativa parece ter havido um esforo para endere-las a
um patamar de transcendncia, conforme acentua a tradio crtica.
A gama extensa de sentimentos e aes, de representaes e situaes, de
manifestaes
ocultamentos,
de
conformaes
lingusticas
literrias
195
Cf. Jean Pierre Vernant. Razones del mito in Mito y Sociedad en La Grecia Antigua. Madrid,
Siglo Veintiuno, 1987.
196
Afrnio Coutinho. Guimares Rosa. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1991, p. 83.
Cf. Suzi Frankl Sperber. Caos e Cosmos: leituras de Guimares Rosa. So Paulo, Duas Cidades,
1976, p. 131.
198
Joo Guimares Rosa. Joo Guimares Rosa: correspondncia com seu tradutor italiano Edoardo
Bizzarri. 3 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira; Belo Horizonte, UFMG, 2003, p. 90.
199
Encenaes do sujeito e indeterminao do Mundo: um estudo das cartas de Guimares Rosa e
seus Tradutores. UFMG, Dissertao de Mestrado, 2007, p. 117.
Por isso compreensvel que algumas das principais linhas de abordagem dos
estudiosos para A hora e vez de Augusto Matraga sejam a transcendncia
(religiosidade) e o mtico. A narrativa, chave para o entendimento das demais
(segundo o autor), seria aquela na qual melhor caberia o epteto de regionalismo
transcendental, na expresso de lvaro Lins. Tambm nesse sentido, Benedito
Nunes201 props que alm de viajante, o homem a viagem, sujeito e objeto da
travessia.
Outra tese fecunda constantemente citada a de Maria Sylvia de Carvalho
Franco, segundo a qual o tema central do conto a renncia solene da f crist em
prol da afirmao do domnio da vontade: No a religiosidade do sertanejo que
est impressa na atitude e nas aes de Matraga, mas os dilemas do intelectual
civilizado202. J Walnice Nogueira Galvo203 recomenda trs dimenses para a
anlise do protagonista a individual (Nh Augusto), a social (Augusto Esteves) e a
mtica (Matraga); se emprestssemos uma analogia musical, a forma sonata, por
exemplo, teramos exposio, desenvolvimento e recapitulao. Na linha
200
Vilma Guimares Rosa. Relembramentos: Joo Guimares Rosa, meu pai. 2 ed. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999, pp. 389-90, trecho de carta de Rosa ao escritor Joaquim Montezuno de
Carvalho.
201
A viagem in O Dorso do Tigre. So Paulo, Perspectiva, 1969, p. 179.
202
Maria Sylvia de Carvalho Franco. A Vontade Santa in Trans/Form/Ao. N 2, Unesp de
Assis/SP, 1975, p. 19.
203
Matraga: sua marca in Mitologia rosiana. So Paulo, tica, 1978.
Utopia crist no serto mineiro: uma leitura de A hora e vez de Augusto Matraga, de Joo
Guimares Rosa. Rio de Janeiro, Vozes, 1997.
205
A hora e vez de Augusto Matraga ou de como algum se torna o que in Literatura e
Sociedade, (Psicanlise) DTLLC, FFLCH, USP, n 10, So Paulo, 2007/2008, pp. 80-97.
206
Cf. Mircea Eliade. Mito e Realidade. So Paulo, Perspectiva, 2000.
207
Op. cit., 1978.
208
Op. cit., 1975.
209
214
The Holy Grail by Galahad (1898-99), design by Edward Burne-Jones (1833-1898). Christie's Images, London.
219
Cf. Robert de Boron. Le Roman de l'Estoire dou Saint Graal. W.A. Nitze, 1927.
Cf. Parzival und Parsifal oder Wolframs Held und Wagners Erlser in Peter Wapnewski.
Richard Wagner: von der Oper zum Musikdrama. S. Kunze, Mnchen, 1978, p.47-60.
221
Cf. Wolfgang Osthoff. Richard Wagners Buddha-Projekt Die Sieger: Seine ideellen und
strukturellen Spuren in Ring und Parsifal. Arkiv fr Musikwissenschaft 40: 3, 1983, pp. 189-211.
220
tbula, mesa), onde o rei Titurel mandara construir um castelo para receber o clice
e a lana. Seu principal cavaleiro Gurnemanz.
O rei passa a responsabilidade sagrada para o seu filho Amfortas. Klingsor,
querendo servir ao Graal, chega a se mutilar, mas a sua castidade forjada no
aceita, ento ele jura vingana contra Amfortas. No caminho de Monte Salvat, ele
manda erigir seu castelo com um jardim mgico, permeado de flores perfumadas e
donzelas irresistveis que enfeitiam os cavaleiros. Tentando dar um basta situao,
Amfortas incursiona pelos domnios do rival, mas, seduzido por Kundry, perde a
lana para Klingsor. A misso de Parsifal recuper-la e repor o estado de graa.
A primeira sugesto de aproximao entre Matraga e Parsifal que ambos
fazem uma viagem evolutiva, como muitos outros heris, enfrentando grandes
obstculos para atingir a plenitude de si mesmo. O trmino dessa iniciao
frequentemente a percepo do carter ilusrio e passageiro das opresses
mundanas: esta vida um dia de capina com sol quente, que s vezes custa muito a
passar, mas sempre passa (p. 380), diz o padre confessor a Nh Augusto moribundo.
Ainda generalista so as trs fases que os caracterizam, uma em que a
vontade quem domina (Nh Augusto prepotente; Parsifal inconsequente), noutra, a
reabilitao (o retiro de Nh Augusto, a percepo de Parsifal de sua misso) e a
ltima, em que a redeno advm pelo domnio da vontade (Matraga resistindo
violncia gratuita; Parsifal resistindo a Kundry).
Em termos picos, uma espcie de ignorncia e irresponsabilidade
contrastada por um chamado, seguido de uma viagem de purificao e de
autodescobrimento, e finalmente o regresso para o cumprimento da misso. Esse
enredo atemporal ocorre nas duas narrativas.
222
. Nesse aspecto, a
semelhana seria com Joozinho Bem-Bem, que tambm desconhece a sua origem
(Sei l de onde que eu sou?!, p. 393), e como Parsifal, pratica a continncia
sexual (E as moas... Para mim no quero nenhuma, que mulher no me enfraquece,
p. 408).
Na pera, o motivo musical que marca essa passagem pleno de uma
sonoridade bastante tensa. A clave mostra a tonalidade de Bb (Bb, C, D, Eb, F, G,
A), mas o intenso cromatismo (D#, E F#, G# e B#) estabelece um contnuo
deslocamento do que seriam os pontos de repouso, estilhaando a tonalidade e
espelhando a alma desencontrada de Parsifal:
222
Motivo musical que acompanha a frase de Parsifal Ich hatte viele, doch weiss ich ihrer keinen
mehr em <www.rwagner.net/libretti/parsifal>. Acesso em 02/10/2008.
Mas o preto que morava na boca do brejo, quando calculou que os outros j teriam
ido embora, saiu do seu esconso, entre as taboas, e subiu aos degraus de mato do p do
barranco. (p. 376)
Im Vordergrunde, an der Waldseite, ein Quell; ihm gegenber, etwas tiefer, eine
schlichte Einsiedlerhte, an einen Felsblock gelehnt. Frhester Morgen. Gurnemanz, zum
hohen Greise gealtert, als Einsiedler, nur in das Hemd der Gralsritter gekleidet, tritt aus der
Htte und lausch. (III Ato, Parsifal)
Em frente floresta existe uma fonte, e prximo dali, um pouco abaixo, uma simples
cabana de eremita, apoiada na rocha. bem cedo. Gurnemanz, j ancio, vive como eremita,
estando vestido apenas com a tnica dos cavaleiros do Graal. Ele sai da cabana e escuta algo.
(III Ato, Parsifal)
Como Nh Augusto j vive o seu perodo de recapitulao dos seus atos, ele
recusa a oferta, mas a cena talvez aponte para a semelhana da falta de motivao
para a violncia.
Desde o primeiro instante em que o v, Joozinho Bem-Bem se afeioa a
Matraga, tambm Gurnemanz imediatamente pressente alguma distino em Parsifal;
guardados os devidos contextos e intenes artsticas, no seria algo equivalente ao
pertencimento apontado por Walnice Nogueira Galvo223 em Nh Augusto?
E Flosino Capeta pasmou deveras, porque era a coisa mais custosa deste mundo seu
Joozinho Bem-Bem se agradar de algum ao primeiro olhar. (p. 390)
Doch adelig scheinst du selbst und hochgeboren (Voc parece nobre e bem-nascido).
223
224
229
O diagrama, inserido na carta enviada a Theodor Uhlig, em dezembro de 1850, no constou das
edies da obra at a sua morte em 1883. In Richard Wagner. Oper und Drama. (Richard Wagners
Prose Works) vol. 2, Trad. Willian Ashton Ellis. London, The Wagner Library, 1893, p.2. Disponvel
em <http://users.belgacom.net/wagnerlibrary/prose>. Acesso em 05/12/2008.
231
Religion und Kunst (Richard Wagners Prose Works) vol. 6, Trad. Willian Ashton Ellis. London,
The Wagner Library, 1897, p. 213. Disponvel em <http://users.belgacom.net/wagnerlibrary/prose>.
Acesso em 05/12/2008.
One might say that where Religion becomes artificial, it is reserved for Art to save
the spirit of religion by recognising the figurative value of the mythic symbols which the
former would have us believe in their literal sense, and revealing their deep and hidden truth
through an ideal presentation. Whilst the priest stakes everything on the religious allegories
being accepted as matters of fact, the artist has no concern at all with such a thing, since he
freely and openly gives out his work as his own invention.
232
Op. cit.
mais importantes se elevam pela gradao numa articulao dos eventos que
assinalam as mudanas significativas.
Em consequncia, um motivo musical que nos desvela que, assim como
Parsifal o responsvel pela morte de sua me (ela morre desconsolada aps a sua
partida), Amfortas o pela de seu pai (a perda do graal para Klingsor).
Constantemente, os momentos decisivos do enredo so infleccionados por
correspondncias musicais: The symbolic substitutions in the spiritual drama
interact with transformational substitutions in the tonal realm233.
A linguagem prpria do drama interage e se transforma constantemente pela
alterao dramtica da msica e de seus Grundmotive. Da as frequentes modulaes
que impem a converso do modo menor em maior, e vice-versa, a ponto de no se
perceber mais a distino. So conhecidas as passagens harmnicas wagnerianas que
primam pela ambiguidade sonora, como as polaridades das progresses
hexatnicas234, que destituem o centro tonal do senso de gravitao, uma das quais
a clebre cena em que a alma de Kundry abandona o seu corpo235:
233
David Lewin.Amfortass Prayer to Tituriel and the Role of D in Parsifal (The Tonal Spaces of
the Drama and the Enharmonic Cb/B) in Studies in Music with Text. Oxford Univ. Press, 2006, p. 183.
234
Escalas hexatnicas tm seis notas na oitava; exemplo, a de tons inteiros: C, D, E F#, G#, A#.
235
Adaptado de Candace Brower. Paradoxes of Pitch Space in Musical Analysis. Vol. 27, n 1,
March, Wiley-Blackwell, Oxford/USA 2008, p. 58.
236
Cf. Herbert Lindenberger. The Opera Mundi of Dom Casmurro in Opera the extravagant art.
Ithaca, Cornell University Press, 1984, no qual o dilogo com Otelo visto como um fenmeno que
redefine o habitat de Dom Casmurro.
Trata-se de uma toada singela bem construda em cima dos seis primeiros
graus da escala maior, com desenhos meldicos que favorecem a repetio e a rpida
assimilao. A tenuidade musical contrastada pelo contedo bastante srio que
revela o paralelismo das extremidades caractersticas do Brasil pobreza e riqueza
extremas. Brincadeira irnica, em cuja esttica talvez se possa entrever a
configurao de um universo ficcional que no se submete positividade do mundo,
nem busca explicaes, utilizando-se da ironia como fora criadora. No contexto
metafsico de Augusto Matraga, parece ser esse um dos vnculos apontados pela
cantiga. De fato, aparentemente o protagonista brinca com os extremos, como a
melodia da cantiga em relao aos seus enunciados, pouco interessado nas
consequncias.
Vou-membora, vou-membora,
Segunda-feira que vem,
Quem no me conhece chora,
Que dir quem me quer bem.
Adeus, minha gente, que aqui que mais no fico, porque a minha vez vai chegar,
e eu tenho que estar por ela em outras partes!
Cf. Loureno Chacon Jurado Filho. Cantigas de Roda. Campinas, Unicamp, 1986, p. 110.
Cf. Alexina de Magalhes Pinto. Cantigas das crianas e do povo e danas populares. Belo
Horizonte, Francisco Alves, 1911, pp. 19,40-1.
238
No sem razo, ela orquestrada por uma voz bem entoada cantou de l (p.
365), vindo do povo, durante a ovao para que Nh Augusto leve a Sariema. um
lance peculiar repleto de insights, e de gestao de futuros infortnios para o
protagonista. O ir e vir a bel prazer poderia estar ligado ao destino de Nh
Augusto, que em breve incursionar na terra da amargura. A execuo dita bem feita,
bem entoada, anotaria certa ironia nos heptasslabos.
que, paradoxalmente, a boa entonao dos versos no espelha a sua
organizao rtmica, talvez um pressgio irnico da condio de Matraga. No
primeiro, a acentuao tpica na terceira slaba obriga a que se pronuncie como tono
o , juntando-o com a slaba anterior, o que faz a cesura da quinta slaba recair em
como. Da mesma forma, no segundo verso, a obrigatoriedade da tnica na stima
slaba exige que quer, naturalmente tnico, seja tratado como tono, at porque a
cesura na quinta slaba quem no pode se posicionar ao lado de outra tnica. O
terceiro verso tambm apresenta uma rtmica ambgua e escorregadia. Sendo
impronunciveis duas tnicas conseccutivas, a acentuao se d em vem, por
conseguinte, a cesura na quinta tem que se deslocar da tonicidade regularmente
paroxtona para oxtona em sempre.
O ltimo ainda mais assimtrico, os trs tnicos s, no e sei no so
viveis, por isso os dois primeiros devem se tornar tonos, o que novamente causa
deslocamente da pronncia paroxtona para oxtona em quando que, com a eliso
com ela, compe a cesura na quinta slaba. Como se v, de bem arranjado mesmo,
a intercalao de verso grave (1 e 3) e de verso agudo (2 e 4) e a rima repetida em
bem e vem. Esse desaranjo formal talvez se sintonize com um dos sentidos da
Essa cantiga se mostra como a grand finale de uma ria. Nh Augusto chega,
acaba com a alegria do capiau apaixonado pela Sariema, pe autoridade na baguna
ordenada do leilo, mostra o seu poder de fogo, encerra o causo. O que o povoado
est pondo em msica a imagem do sentimento interno que o impulsiona: Nh
Augusto apertava o brao da Sariema, como quem no tivesse tido prazo para utilizar
no capiau todos os seus mpetos (p. 367).
As sucessivas pausas na pontuao sugerem a aproximao cautelosa.
Sorrateiramente, a reiterao do verbo chegar at se transforma em
substantivo/adjetivo: chegadinho.
Contudo, pela lei da ao e reao, pela ordenao cclica das peripcias do
mundo, o prximo canto vem justamente iluminar a curva inesperada nos domnios
do sujeito que imaginava tudo posso:
(p. 396). Mas, o que os olhos veem o corao sente, por isso Nh Augusto no tirou
os olhos, at que desaparecessem. E depois se esparramou em si, pensando forte.
Aqueles sim, que estavam no bom (...) (p. 397). A cantiga tambm a antecipao
da sua batalha final, quando sozinho enfrentar os sete jagunos.
No primeiro verso j se acentua a proeminncia do fonema aberto /a/, que
segue como tnica em l, casa, varre, ponta (pelo cesura na quinta slaba),
sabre, bala e metralhadora. A persistncia do significante refora o sentido
mrfico. O centro desse campo semntico parece ser a violncia. Varre, o nico
verbo da quadra, significativamente, um anagrama de errar. Segundo a tica
textual do narrador, os jagunos no pontificavam sucessivas aes errneas? No
o erro da vingana que promove a batalha entre Matraga e o bando de Joozinho
Bem-Bem? como se os muitos erros pudessem ser entrevistos no verso da
cantiga, mas apenas para as percepes capazes de ler em contrrio.
Quanto ao ritmo, os dois primeiros versos tm a seguinte distribuio tnica
(3,5,7), enquanto os dois ltimos (1,3,5,7). Nestes, a sugesto blica se intensifica,
mormente, pela mudana de acentuao:
239
Eu no respeito polia
Soldado nunca foi gente
Espero morrer velho
Dando carreira em tenente
Depois que os valentes partiram, veio uma invernada brava (p. 398), mas
Nh Augusto j tinha se refeito, vencera a tentao da oferenda de Joozinho BemBem de mandar recados de violncia pelos quatro cantos e tambm resistira
bravamente ao convite para integrar o seu bando e seguir pelo mundo de Deus.
Recuperado, ele prprio entoa suas melodias, sentindo novamente as ditas foras
masculinas:
Lagoa que remete a sapo, sapo que retoma os sons das cantigas midas
ouvidas por ele logo que salvo pelo casal de pretos. Sapo que igualmente aponta
para aspectos da sujeira espiritual da sua personalidade anterior. E logo depois, ele
emenda:
A roupa l de casa
no se lava com sabo:
lava com ponta de sabre
e com bala de canho... (p. 401)
Trata-se de uma variao dos versos de partida do bando de Joozinho BemBem, com as duas cantigas estabelecendo elos entre si, atentando-se para o fato de
que o bando de maitacas, j referido, traz analogias com o bando humano,
perfazendo uma ponte entre as duas cantorias. Mas a modificao vem com o sentido
balstico aumentado o, a metralhadora substituda pelo canho. O verbo
varrer d lugar a lavar, terreiro roupa. Permanece a ponta de sabre, signo
do ltimo lance da batalha que se avizinha, pois at as estradas cantavam (p. 401).
Eu j vi um gato ler
e um grilo sentar escola,
nas asas de uma ema
jogar-se o jogo da bola,
dar louvores ao macaco.
S me falta ver agora
acender vela sem pavio,
correr pra cima a gua do rio,
o sol a tremer com frio
e a lua tomar tabaco!... (p. 403)
No me mata, no me mata
seu Joozinho Bem-Bem!
Voc no presta mais pra nada,
seu Joozinho Bem-Bem!... (p. 412)
5.8. Coda
Como procurei monstrar, as cantigas no so apenas epgrafes que
prescrevem direcionalidades temticas ou ideolgicas. Elas so parte integrante das
narrativas, antecedendo e remodelando o desenrolar da ao. Em A hora e vez de
Augusto Matraga so muitas as evidncias de que elas tm funes estruturantes,
operando simultaneamente margem e paradoxalmente no centro do enredo.
O conto se desenvolve como se os seus cantos cifrados enredassem o
microcosmo das formulaes que ensejam a sua cosmologia. As cantigas suas
formas, melodias e histria so a trilha sonora popular das discrepncias espirituais
de Matraga, a tnue vivificao das annimas almas sertanejas que povoam as
sofisticadas estruturas imaginadas por Guimares Rosa.
240
Cf. Ernst Bcken. Worterbuch der Musik. Leipzig, 1940, p. 108: Thematische Arbeit, o trabalho
temtico.
Trad.
Sagarana era para mostrar Minas s pessoas (...): mostrar as Minas e mostrar
tambm como eu via o mundo242.
Por fim, parece crvel que a arquitetura de Sagarana, ao procurar dar conta do
humano, das suas vicissitudes e imaginao, certamente ultrapassa qualquer tentativa
de aprisionamento terico, at porque as inmeras especificidades que a obra suscita
instauram sutilezas estticas que permeiam o que tradicionalmente se convencionou
circunscrever domnio da msica, da pintura e da poesia. Como espelhos da cultura e
da fabulao do seu autor, o caminho da arte no conhece limites, a no ser aqueles
que resultam das prprias tenses e escolhas internas.
Tambm por isso as trilhas e rotas sertanejas de Joo Guimares Rosa se
pem na estrada inconclusa da linguagem potica, no raro, tornando indistinto o que
imaginvamos objetivo e aclarando o que j tnhamos esquecido, pois que os
subterrneos da alma humana a tudo tangenciam, e de modo especial quando o faz
com a fora da msica. Porque, de fato, Sagarana se caracteriza pela paixo de
contar 243, no seria cantar?!
242
Entrevista dada por Guimares Rosa a Fernando Camacho, RJ, Abr1966, in Ana Luiza Martins
Costa. Cadernos de Literatura Brasileira. Joo Guimares Rosa. Instituto Moreira Salles, n 20, 21,
Dez2006.
243
Antonio Candido. O Jornal, Rio de Janeiro, 21/07/1946 (IEB).
Concluso
De la musique avant toute chose
Parece haver um consenso de que grandes obras comumente apresentam uma
sobreposio de valores fundamentais de sua poca, entremeados por planos
simblicos, sociolgicos e psicolgicos espcie de panorama psicossocial. E pela
mesma razo, por capturarem to intrinsecamente a essncia humana num dado
momento histrico, que se constituem em rbitas imaginativas ao redor das quais
gravitam os sentimentos de leitores de muitas geraes. O estatuto de sua
organicidade indelevelmente se tece na encruzilhada das foras que as originam, e a
crtica que se lhes queira perseguir deve incluir uma aguda percepo dos fatos e
atores que as compuseram.
Meu percurso por Sagarana traz como peculiaridade a discusso sobre as
especificidades das musicalizaes inferidas pela audio de sua tessitura. Dois
aspectos nucleares constituram o bojo da abordagem os efeitos musicais das
cantigas, parlendas, adgios, ditos populares e sua apropriao literria por
Guimares Rosa; e o estudo dos possveis rastros de tcnicas e construes que
vislumbrei como emprstimos notadamente da msica erudita. De incio, a aluso
conforma-se expanso da base do prprio sentido etimolgico de Sagarana, (saga)
erudito e (rana) popular; o externo e o local; o desconhecido e o conhecido, o que ,
o que parece ser...
Esse mecanismo geral de desenvolvimento pareceu-me semelhante ao
perpetrado nas composies musicais, nas quais uma pequena clula ou motivo, por
meio de variadas tcnicas, pode fazer emergir uma arquitetura inteira. Inicialmente,
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