"LETRAR MAIS QUE

ALFABETIZAR"
Entrevista com Magda Becker Soares.

Nos dias de hoje, em que as sociedades do mundo inteiro esto cada vez mais
centradas na escrita, ser alfabetizado, isto , saber ler e escrever, tem se revelado
condio insuficiente para responder adequadamente s demandas contemporneas.
preciso ir alm da simples aquisio do cdigo escrito, preciso fazer uso da leitura e
da escrita no cotidiano, apropriar-se da funo social dessas duas prticas; preciso
letrar-se. O conceito de letramento, embora ainda no registrado nos dicionrios
brasileiros, tem seu aflorar devido insuficincia reconhecida do conceito de
alfabetizao. E, ainda que no mencionado, j est presente na escola, traduzido em
aes pedaggicas de reorganizao do ensino e reformulao dos modos de ensinar,
como constata a professora Magda Becker Soares, que, h anos, vem se debruando
sobre esse conceito e sua prtica.
"A cada momento, multiplicam-se as demandas por prticas de leitura e de escrita,
no s na chamada cultura do papel, mas tambm na nova cultura da tela, com os
meios eletrnicos", diz Magda, professora emrita da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). "Se uma criana sabe ler, mas no capaz de ler um livro, uma
revista, um jornal, se sabe escrever palavras e frases, mas no capaz de escrever
uma carta, alfabetizada, mas no letrada", explica. Para ela, em sociedades
grafocntricas como a nossa, tanto crianas de camadas favorecidas quanto crianas
das camadas populares convivem com a escrita e com prticas de leitura e escrita
cotidianamente, ou seja, vivem em ambientes de letramento.
"A diferena que crianas das camadas favorecidas tm um convvio inegavelmente
mais freqente e mais intenso com material escrito e com prticas de leitura e de
escrita", diz. " prioritrio propiciar igualmente a todos o acesso ao letramento, um
processo de toda a vida".
(ELIANE BARDANACHVILI)
- O que levou os pesquisadores ao conceito de "letramento", em lugar do de
alfabetizao?
- A palavra letramento e, portanto, o conceito que ela nomeia entraram recentemente
no nosso vocabulrio. Basta dizer que, embora aparea com freqncia na bibliografia
acadmica, a palavra no est ainda nos dicionrios. H, mesmo, vrios livros que
trazem essa palavra no ttulo. Mas ela no foi ainda includa, por exemplo, no recente
Michaelis, Moderno Dicionrio da Lngua Portuguesa , de 1998, nem na nova edio do
Aurlio, o Aurlio Sculo XXI , publicado em 1999. preciso reconhecer tambm que a
palavra no foi incorporada pela mdia ou mesmo pelas escolas e professores. ainda
uma palavra quase s dos "pesquisadores", como bem diz a pergunta. O mesmo no
acontece com o conceito que a palavra nomeia, porque ele surge como conseqncia
do reconhecimento de que o conceito de alfabetizao tornou-se insatisfatrio.

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- Por qu?
- A preocupao com um analfabetismo funcional [terminologia que a Unesco
recomendara nos anos 70, e que o Brasil passou usar somente a partir de 1990,
segundo a qual a pessoa apenas sabe ler e escrever, sem saber fazer uso da leitura e
da escrita], ou com o iletrismo, que seria o contrrio de letramento, um fenmeno
contemporneo, presente at no Primeiro Mundo.
- E como isso ocorre?
- que as sociedades, no mundo inteiro, tornaram-se cada vez mais centradas na
escrita. A cada momento, multiplicam-se as demandas por prticas de leitura e de
escrita, no s na chamada cultura do papel, mas tambm na nova cultura da tela,
com os meios eletrnicos, que, ao contrrio do que se costuma pensar, utilizam-se
fundamentalmente da escrita, so novos suportes da escrita. Assim, nas sociedades
letradas, ser alfabetizado insuficiente para vivenciar plenamente a cultura escrita e
responder s demandas de hoje.
- Qual tem sido a reao a esse fenmeno l fora?
- Nos Estados Unidos e na Inglaterra, h grande preocupao com o que consideram
um baixo nvel de literacy da populao, e, periodicamente, realizam-se testes
nacionais para avaliar as habilidades de leitura e de escrita da populao adulta e
orientar polticas de superao do problema. Outro exemplo a Frana. Os franceses
diferenciam illettrisme muito claramente illettrisme de analphabtisme . Este ltimo
considerado problema j vencido, com exceo para imigrantes analfabetos em lngua
francesa. J illettrisme surge como problema recente da populao francesa. Basta
dizer que a palavra illettrisme s entrou no dicionrio, na Frana, nos anos 80. Em
Portugal recente a preocupao com a questo do letramento, que l ganhou a
denominao de literacia, numa traduo mais ao p da letra do ingls literacy .
- O que explica o aparecimento do conceito de letramento entre ns?
- No se trata propriamente do aparecimento de um novo conceito, mas do
reconhecimento de um fenmeno que, por no ter, at ento, significado social,
permanecia submerso. Desde os tempos do Brasil Colnia, e at muito recentemente,
o problema que enfrentvamos em relao cultura escrita era o analfabetismo, o
grande nmero de pessoas que no sabiam ler e escrever. Assim, a palavra de ordem
era alfabetizar. Esse problema foi, nas ltimas dcadas, relativamente superado,
vencido de forma pelo menos razovel. Mas a preocupao com o letramento passou a
ter grande presena na escola, ainda que sem o reconhecimento e o uso da palavra,
traduzido em aes pedaggicas de reorganizao do ensino e reformulao dos
modos de ensinar.
- Como o conceito de letramento, mesmo sem que se utilize este termo, vem sendo
levado prtica?
- No incio dos anos 90, comearam a surgir os ciclos bsicos de alfabetizao, em
vrios estados; mais recentemente, a prpria lei [Lei de Diretrizes e Bases, de 1996]
criou os ciclos na organizao do ensino. Isso significa que, pelo menos no que se
refere ao ciclo inicial, o sistema de ensino e as escolas passam a reconhecer que
alfabetizao, entendida apenas como a aprendizagem da mecnica do ler e do

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escrever e que se pretendia que fosse feito em um ano de escolaridade, nas chamadas
classes de alfabetizao, insuficiente. Alm de aprender a ler e a escrever, a criana
deve ser levada ao domnio das prticas sociais de leitura e de escrita. Tambm os
procedimentos didticos de alfabetizao acompanham essa nova concepo: os
antigos mtodos e as antigas cartilhas, baseados no ensino de uma mecnica
transposio da forma sonora da fala forma grfica da escrita, so substitudos por
procedimentos que levam as crianas a conviver, experimentar e dominar as prticas
de leitura e de escrita que circulam na nossa sociedade to centrada na escrita.
- Como se poderia, ento, definir letramento?
- Letramento , de certa forma, o contrrio de analfabetismo. Alis, houve um
momento em que as palavras letramento e alfabetismo se alternavam, para nomear o
mesmo conceito. Ainda hoje h quem prefira a palavra alfabetismo palavra
letramento - eu mesma acho alfabetismo uma palavra mais verncula que letramento,
que uma tentativa de traduo da palavra inglesa literacy , mas curvo-me ao poder
das tendncias lingsticas, que esto dando preferncia a letramento. Analfabetismo
definido como o estado de quem no sabe ler e escrever; seu contrrio, alfabetismo ou
letramento, o estado de quem sabe ler e escrever. Ou seja: letramento o estado
em que vive o indivduo que no s sabe ler e escrever, mas exerce as prticas sociais
de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive: sabe ler e l jornais,
revistas, livros; sabe ler e interpretar tabelas, quadros, formulrios, sua carteira de
trabalho, suas contas de gua, luz, telefone; sabe escrever e escreve cartas, bilhetes,
telegramas sem dificuldade, sabe preencher um formulrio, sabe redigir um ofcio, um
requerimento. So exemplos das prticas mais comuns e cotidianas de leitura e
escrita; muitas outras poderiam ser citadas.
- Ler e escrever puramente tem algum valor, afinal?
- Alfabetizao e letramento se somam. Ou melhor, a alfabetizao um componente
do letramento. Considero que um risco o que se vinha fazendo, ou se vem fazendo,
repetindo-se que alfabetizao no apenas ensinar a ler e a escrever, desmerecendo
assim, de certa forma, a importncia de ensinar a ler e a escrever. verdade que esta
uma maneira de reconhecer que no basta saber ler e escrever, mas, ao mesmo
tempo, pode levar tambm a perder-se a especificidade do processo de aprender a ler
e a escrever, entendido como aquisio do sistema de codificao de fonemas e
decodificao de grafemas, apropriao do sistema alfabtico e ortogrfico da lngua,
aquisio que necessria, mais que isso, imprescindvel para a entrada no mundo
da escrita. Um processo complexo, difcil de ensinar e difcil de aprender, por isso
importante que seja considerado em sua especificidade. Mas isso no quer dizer que os
dois processos, alfabetizao e letramento, sejam processos distintos; na verdade, no
se distinguem, deve-se alfabetizar letrando .
- De que forma?
- Se alfabetizar significa orientar a criana para o domnio da tecnologia da escrita,
letrar significa lev-la ao exerccio das prticas sociais de leitura e de escrita. Uma
criana alfabetizada uma criana que sabe ler e escrever; uma criana letrada
(tomando este adjetivo no campo semntico de letramento e de letrar, e no com o
sentido que tem tradicionalmente na lngua, este dicionarizado) uma criana que tem
o hbito, as habilidades e at mesmo o prazer de leitura e de escrita de diferentes
gneros de textos, em diferentes suportes ou portadores, em diferentes contextos e

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circunstncias. Se a criana no sabe ler, mas pede que leiam histrias para ela, ou
finge estar lendo um livro, se no sabe escrever, mas faz rabiscos dizendo que aquilo
uma carta que escreveu para algum, letrada, embora analfabeta, porque conhece e
tenta exercer, no limite de suas possibilidades, prticas de leitura e de escrita.
Alfabetizar letrando significa orientar a criana para que aprenda a ler e a escrever
levando-a a conviver com prticas reais de leitura e de escrita: substituindo as
tradicionais e artificiais cartilhas por livros, por revistas, por jornais, enfim, pelo
material de leitura que circula na escola e na sociedade, e criando situaes que
tornem necessrias e significativas prticas de produo de textos.
- O processo de letramento ocorre, ento, mesmo entre crianas bem pequenas...
- Pode-se dizer que o processo comea bem antes de seu processo de alfabetizao: a
criana comea a "letrar-se" a partir do momento em que nasce numa sociedade
letrada. Rodeada de material escrito e de pessoas que usam a leitura e a escrita - e
isto tanto vale para a criana das camadas favorecidas como para a das camadas
populares, pois a escrita est presente no contexto de ambas -, as crianas, desde
cedo, vo conhecendo e reconhecendo prticas de leitura e de escrita. Nesse processo,
vo tambm conhecendo e reconhecendo o sistema de escrita, diferenciando-o de
outros sistemas grficos (de sistemas icnicos, por exemplo), descobrindo o sistema
alfabtico, o sistema ortogrfico. Quando chega escola, cabe educao formal
orientar metodicamente esses processos, e, nesse sentido, a Educao Infantil
apenas o momento inicial dessa orientao.
- O processo de letramento ocorre durante toda a vida escolar?
- A alfabetizao, no sentido que atribu a essa palavra, que se concentra nos
primeiros anos de escolaridade. Concentra-se a, mas no ocorre s a: por toda a vida
escolar os alunos esto avanando em seu domnio do sistema ortogrfico. Alis, um
adulto escolarizado, quando vai ao dicionrio, resolver dvida sobre a escrita de uma
palavra est retomando seu processo de alfabetizao. Mas esses procedimentos de
alfabetizao tardia so espordicos e eventuais, ao contrrio do letramento, que um
processo que se estende por todos os anos de escolaridade e, mais que isso, por toda
a vida. Eu diria mesmo que o processo de escolarizao , fundamentalmente, um
processo de letramento.
- Em qualquer disciplina?
- Em todas as reas de conhecimento, em todas as disciplinas, os alunos aprendem
atravs de prticas de leitura e de escrita: em Histria, em Geografia, em Cincias,
mesmo na Matemtica, enfim, em todas as disciplinas, os alunos aprendem lendo e
escrevendo. um engano pensar que o processo de letramento um problema apenas
do professor de Portugus: letrar funo e obrigao de todos os professores. Mesmo
porque em cada rea de conhecimento a escrita tem peculiaridades, que os
professores que nela atuam que conhecem e dominam. A quantidade de
informaes, conceitos, princpios, em cada rea de conhecimento, no mundo atual, e
a velocidade com que essas informaes, conceitos, princpios so ampliados,
reformulados, substitudos, faz com que o estudo e a aprendizagem devam ser,
fundamentalmente, a identificao de ferramentas de busca de informao e de
habilidades de us-las, atravs de leitura, interpretao, relacionamento de
conhecimentos. E isso letramento, atribuio, portanto, de todos os professores, de
toda a escola.

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- Mas seria maior a responsabilidade do professor de Portugus?

- claro que o professor de Portugus tem uma responsabilidade bem mais especfica
com relao ao letramento: enquanto este um "instrumento" de aprendizagem para
os professores das outras reas, para o professor de Portugus ele o prprio objeto
de aprendizagem, o contedo mesmo de seu ensino.
- Muitos pais reclamam do fato de, hoje, os grandes textos de literatura, nos livros
didticos, darem lugar a letras de msica, rtulos de produtos, bulas de remdio. O
que essa nfase nos textos do dia-a-dia tem de positivo e o que teria de negativo?
- verdade que o conceito de letramento, bem como a nova concepo de
alfabetizao que decorre dele e tambm das teorias do construtivismo que chegaram
ao campo da educao e do ensino nos anos 80, trouxeram um certo exagero na
utilizao de diferentes gneros e diferentes portadores de texto na sala de aula.
realmente lamentvel que os textos literrios, at pouco tempo atrs exclusivos nas
aulas de Portugus, tenham perdido espao. preciso no esquecer que, exatamente
porque a literatura tem, lamentavelmente, no contexto brasileiro, pouca presena na
vida cotidiana dos alunos, cabe escola dar a eles a oportunidade de conhec-la e dela
usufruir. Por outro lado, tem talvez faltado critrio na seleo dos gneros. Por
exemplo: parece-me equivocado o trabalho com letras de msica, que perdem grande
parte de seu significado e valor se desvinculadas da melodia: difcil apreciar
plenamente uma cano de Chico Buarque ou de Caetano Veloso lendo a letra da
cano como se fosse um poema, desligada ela da msica que quem lhe d o
verdadeiro sentido e a plena expressividade. Parece bvio que devem ser priorizados,
para as atividades de leitura, os gneros que mais freqentemente ou mais
necessariamente so lidos, nas prticas sociais, e, para as atividades de produo de
texto, os gneros mais freqentes ou mais necessrios nas prticas sociais de escrita.
Estes no coincidem inteiramente com aqueles, j que h gneros que as pessoas
lem, mas nunca ou raramente escrevem, e h gneros que as pessoas no s lem,
mas tambm escrevem. Por exemplo: rtulos de produtos so textos que devemos
aprender a ler, mas certamente no precisaremos aprender a escrever. Assim, a
adoo de critrios bem fundamentados para selecionar quais gneros devem ser
trabalhados em sala de aula, para a leitura e para a produo de textos, afastar os
aspectos negativos que uma invaso excessiva e indiscriminada de gneros e
portadores sem dvida tem.
- A conduo do processo de letramento difere, no caso de se lidar com uma criana
de classe mais favorecida ou com uma de classe popular?
- Em sociedades grafocntricas como a nossa, tanto crianas de camadas favorecidas
quanto crianas das camadas populares convivem com a escrita e com prticas de
leitura e escrita cotidianamente, ou seja, umas e outras vivem em ambientes de
letramento. A diferena que crianas das camadas favorecidas tm um convvio
inegavelmente mais freqente e mais intenso com material escrito e com prticas de
leitura e de escrita do que as crianas das camadas populares, e, o que mais
importante, essas crianas, porque inseridas na cultura dominante, convivem com o
material escrito e as prticas que a escola valoriza, usa e quer ver utilizados. Dois
aspectos precisam, ento, ser considerados: de um lado, a escola deve aprender a
valorizar tambm o material escrito e as prticas de leitura e de escrita com que as
crianas das camadas populares convivem; de outro lado, a escola deve dar
oportunidade a essas crianas de ter acesso ao material escrito e s prticas da cultura

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dominante. Da mesma forma, a escola que serve s camadas dominantes deve dar
oportunidade s crianas dessas camadas de conhecer e usufruir da cultura popular,
tendo acesso ao material escrito e s prticas dessa cultura.
- Como deve ser a preparao do professor para que ele "letre"? Em que esse preparo
difere daquele que o professor recebe hoje?
- Entendendo a funo do professor, de qualquer nvel de escolaridade, da Educao
Infantil educao ps-graduada, como uma funo de letramento dos alunos em sua
rea especfica, o professor precisa, em primeiro lugar, ser ele mesmo letrado na sua
rea de conhecimento: precisa dominar a produo escrita de sua rea, as ferramentas
de busca de informao em sua rea, e ser um bom leitor e um bom produtor de
textos na sua rea. Isso se refere mais particularmente formao que o professor
deve ter no contedo da rea de conhecimento que elegeu. Mas preciso, para
completar uma formao que o torne capaz de letrar seus alunos, que conhea o
processo de letramento, que reconhea as caractersticas e peculiaridades dos gneros
de escrita prprios de sua rea de conhecimento. Penso que os cursos de formao de
professores, em qualquer rea de conhecimento, deveriam centrar seus esforos na
formao de bons leitores e bons produtores de texto naquela rea, e na formao de
indivduos capazes de formar bons leitores e bons produtores de textos naquela rea.
(Jornal do Brasil - 26/11/2000)

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