A Pecuária Bovina No Processo de Ocupação e Desenvolvimento Econômico Do Pantanal Sul-Mato-Grossense PDF

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PAULO MARCOS ESSELIN

A Pecuria Bovina no Processo de Ocupao


e Desenvolvimento Econmico do
Pantanal Sul-Mato-Grossense (1830 1910)

PAULO MARCOS ESSELIN

A Pecuria Bovina no Processo de Ocupao


e Desenvolvimento Econmico do
Pantanal Sul-Mato-Grossense (1830 1910)

2011

Universidade Federal da Grande Dourados


COED:
Editora UFGD
Coordenador Editorial - Edvaldo Cesar Moretti
Tcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho
Redatora: Raquel Correia de Oliveira
Programadora Visual: Marise Massen Frainer
e-mail: [email protected]
Conselho Editorial - 2011/2012
Edvaldo Cesar Moretti | Presidente
Wedson Desidrio Fernandes | Vice-Reitor
Clia Regina Delcio Fernandes
Luiza Mello Vasconcelos
Marcelo Fossa da Paz
Paulo Roberto Cim Queiroz
Rozanna Marques Muzzi
Capa: Imagem da obra do artista plstico Humberto Espndola,
intitulada Carreta Pantaneira, realizada em 1995, tcnica acrlica sobre
tela, dimenses 75cm x 120cm.
Diagramao: Alcindo Donizeti Boffi
Impresso: Triunfal Grfica e Editora
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD
636.2
E78p

Esselin, Paulo Marcos.


A pecuria bovina no processo de ocupao e desenvolvimento econmico do pantanal sul-mato-grossense
(1830 1910) / Paulo Marcos Esselin. Dourados : Ed.
UFGD, 2011.
358 p.
ISBN: 978-85-8147-010-8
Possui referncias.
1. Bovino Criao. 2. Pecuria Mato Grosso.
3. Pecuria Desenvolvimento. 4. Pecuria no Pantanal.
I. Ttulo.

Para minha filha Mara,


exemplo de luta e dedicao.
Para Cristina, por tudo.

AGRADECIMENTOS

No trmino desta pesquisa, voltei meus olhos ao caminho que percorri para realiz-la e, assim, revendo essa longa e penosa caminhada de
aventura e desventuras, fui-me recordando de todos aqueles amigos e das
instituies que contriburam para que este trabalho fosse bem sucedido,
porque essa era a expectativa de todos que me auxiliaram.
Ao professor Dr. Earle Diniz Macarthy Moreira, agradeo as crticas e sugestes que em algumas ocasies mudaram o curso da pesquisa,
colocando-a em melhor caminho.
Aos professores Carlos Frederico Correa da Costa, Mrio Baldo,
Carlos Martins Jnior e Vera Lcia Vargas, todos do Departamento de
Histria do Campus de Aquidauana, agradeo pelas intensas discusses
durante todo o andamento da pesquisa, como pelo fato de me disponibilizarem farto material relativo historiografia sul-mato-grossense.
Aos professores Amarlio Ferreira Junior e Marisa Bittar, agradeo por compartilharem minhas dificuldades, discutindo minuciosamente
todas as dvidas que foram surgindo nas mais diversas fases da pesquisa.
Aos professores Antnio Firmino de Oliveira, Nilson Arajo e
Tito Carlos Machado de Oliveira, agradeo pelas valiosas sugestes e
contribuies que prestaram.
Ao professor Padre Pedro Igncio Schmitz, agradeo por franquear a Biblioteca do Instituto Anchietano de Pesquisas e a sua particular,
criando as melhores condies para que eu pudesse desenvolver o meu
trabalho.

Aos professores Marcus Vincius Beber, Jandir Damo e Ivone, do


Instituto Anchietano de Pesquisas, agradeo pelo levantamento de fontes
fundamentais pesquisa.
Ao professor Gilson Rodolfo Martins, agradeo pelo incentivo,
pelas longas e acaloradas discusses, contribuio em localizar fontes
no Paraguai e Uruguai, como tambm, por muitas vezes, deixar os seus
afazeres pessoais e cientficos para trocar idias e corrigir os rumos da
pesquisa.
Agradeo aos esforos do pessoal do Arquivo Pblico de Mato
Grosso, do Instituto Histrico e Geogrfico do Brasil no Rio de Janeiro,
da Associao Brasileira dos Criadores de Gado Zebu, do Arquivo Pblico de Uberaba MG.
Finalmente, agradeo ao apoio que recebi da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul e ao CNPQ, pelo financiamento da pesquisa.

SUMRIO

INTRODUO .....................................................................................................
1.

11

A ORIGEM DO GADO BOVINO NO MATO GROSSO


COLONIAL .....................................................................................................

37

1.1. Os primeiros rebanhos bovinos em So Vicente ........................................

37

1.2. O Gado Bovino de So Vicente a Assuno no Paraguai .............................

41

1.3. O desenvolvimento da Pecuria no Paraguai ..............................................

45

1.4. A Entrada do Gado Peruano no Paraguai ...................................................

49

1.5. Quadro Natural de Mato Grosso ..................................................................

55

1.6. A Introduo dos Primeiros Rebanhos no Sul do Antigo Mato Grosso


(Sculos XVI e XVII) .....................................................................................

74

1.7. O Papel dos ndios Mbaya-Guaikcuru no Processo de Difuso do Gado


Bovino no Pantanal .......................................................................................... 112
2.

O PANORAMA DAS TRANSFORMAES SOCIAIS POLTICAS


E ECONMICAS NO LIMIAR DO SCULO XIX NO BRASIL E
AS SUAS CONSEQNCIAS EM MATO GROSSO ............................. 127

2.1. As Transformaes Sociais Polticas e Econmicas em Meados do


Sculo XIX no Brasil ....................................................................................... 127
2.2. O Brasil Independente .................................................................................... 135
2.3. Os Reflexos da Crise Econmica do Primeiro Reinado e o
Desenvolvimento da Pecuria no Norte de Mato Grosso ......................... 139

3.

O SUL DE MATO GROSSO NO SCULO XIX NO OLHAR DOS


VIAJANTES .................................................................................................... 151

3.1. A Fronteira na Primeira metade do Sculo XIX ......................................... 151


4.

O SUL DE MATO GROSSO: DO INCIO DO PROCESSO DE


OCUPAO NO SCULO XIX GUERRA DA TRPLICE
ALIANA ........................................................................................................ 175

4.1. A Ocupao da Banda Meridional: O Pantanal Sul-Mato-Grossense ..... 175


4.2. As tenses na fronteira e o conflito com o Paraguai .................................. 206
5.

O SUL DE MATO GROSSO NO PS-GUERRA ................................. 237

5.1. A Situao da Provncia no Ps-Guerra e os Problemas Relativos


Mo-de-Obra Indgena ................................................................................... 237
5.2. A Recuperao da Provncia de Mato Grosso; Novos Impulsos ao
Comrcio e Produo ................................................................................... 258
5.3. O Crescimento do Capital Financeiro, as Exportaes de Capitais e as
Transformaes na Fronteira ......................................................................... 268
5.4. O Substancial Crescimento do Rebanho Bovino e o Desenvolvimento
das Charqueadas ............................................................................................... 289
CONCLUSO ......................................................................................................... 321
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................ 335
ANAIS -ARTIGOS - REVISTAS - SEPARATAS - ENTREVISTAS .......... 349
ENTREVISTAS ...................................................................................................... 354
FONTES IMPRESSAS E MANUSCRITAS ...................................................... 355

INTRODUO

O Estado de Mato Grosso do Sul, localizado no Centro-Oeste


brasileiro, tem uma rea de cerca de 357,4 mil km2 , sendo seu territrio
delimitado pelos rios Paran, a leste, e Paraguai, a oeste. Politicamente,
tem suas fronteiras demarcadas, a leste, com So Paulo, Minas Gerais e
Paran; ao norte, com os Estados de Mato Grosso e Gois; a oeste, com
Bolvia e Paraguai, e ao sul, com o Paraguai.
De sua rea total, quase cinqenta por cento constituem-se de pastagens artificiais e pouco menos de vinte por cento so de pastagens naturais. Essas, sobretudo, na regio do Pantanal.
Mato Grosso do Sul nacionalmente conhecido como grande produtor de bovinos, possuindo um rebanho basicamente de corte na ordem
de 25 milhes de cabeas.
A economia de Mato Grosso do Sul baseia-se preponderantemente
na pecuria bovina, o segundo maior produtor de carne do Brasil e o
primeiro com Sistema de Inspeo Federal; conta com 31 (trinta e um)
frigorficos, dos quais nove esto habilitados exportao. Toda essa capacidade instalada permitiu o abate de quatro milhes de cabeas, com
um faturamento bruto de trezentos milhes de reais no ano de 2000.
Os pecuaristas sul-mato-grossenses so em torno de cinqenta mil
produtores, cujo valor patrimonial em terras e rebanho foi estimado em
cerca de R$ 18 bilhes (R$ 11,6 bilhes em terras e 6,5 bilhes em animais). Esses produtores tiveram no ano de 1999 um faturamento bruto
de R$ 1,9 bilhes. A atividade gera, aproximadamente, cento e trinta mil
empregos diretos. (MICHELS, et al, 2001).

Elevados investimentos e esforos garantem anualmente a melhoria da produtividade e da qualidade da carne bovina. O Estado, praticamente, conseguiu seu credenciamento para exportar carne bovina para a
Comunidade Econmica Europia, o mais exigente mercado do mundo.
O Estado confunde-se com o gado. A maioria de seus mais destacados representantes no meio poltico tem estreita ligao com ele. So,
geralmente, latifundirios e pecuaristas que exercem o poder e nele se
revezam a cada eleio.
As campanhas polticas so marcadas pela influncia da cultura do
seguimento da pecuria, cujo discurso se faz presente em todos os palanques. Vrias manifestaes artsticas tm por inspirao o capim e o boi.
H uma tendncia generalizada entre os integrantes das camadas
mdias da sociedade de comprar terras e bois. Quer com isso ganhos e
ascenso social, uma forma de status que a pecuria garante.
Apesar da pujana da pecuria, no Estado poucos so os estudos
a seu respeito. A historiografia regional pouca importncia deu ao gado
bovino, como tambm influncia da pecuria na ocupao e desenvolvimento econmico do Estado.
Nos ltimos anos, a pecuria vem recebendo um tratamento privilegiado dos meios acadmicos, cujas pesquisas so direcionadas para oferecer s autoridades governamentais trabalhos cientficos com o propsito de fornecer informaes que orientem as polticas pblicas do setor.
O estudo da cadeia produtiva da carne bovina de Mato Grosso do Sul,
elaborado pelo grupo de estudos em agronegcios da Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul, realizado por meio de intensas
pesquisas, atravs das quais se constata a realidade desse importante setor
da economia regional e se oferecem instrumentos efetivos para o seu desenvolvimento. No entanto, esses estudos privilegiam a conjuntura atual.
Os trabalhos, at agora desenvolvidos, procuraram orientar empresrios
e autoridades governamentais; os primeiros, a adotarem procedimentos
tcnicos nas suas empresas rurais, com o objetivo de aumentar a competitividade da cadeia produtiva, e os ltimos, para colocarem em prtica
polticas pblicas que possibilitem, por exemplo, o aumento da produti12

vidade do rebanho, ampliando assim os mercados e as receitas estaduais,


via impostos.
Ao lado dessa importante atividade, desenvolveu-se outra frente de
estudos com o objetivo de ampliar a sua rea de abrangncia e buscar nas
suas origens o desenvolvimento da pecuria bovina ao longo da histria
do Pas e do Pantanal sul, bero da ocupao territorial do Estado de
Mato Grosso do Sul.
Resgatar a memria da pecuria bovina no processo de ocupao
da plancie pantaneira no significa apenas compreender um dos momentos mais significativos da histria do Estado, mas realizar um amplo
levantamento sobre o que tem sido essa regio em seus aspectos sociais,
polticos e econmicos.
A histria de Mato Grosso do Sul coloca-nos fatos de absoluta relevncia no mbito da pesquisa cientfica. Os ciclos da pecuria formam
um dos pilares fundamentais dessa histria e revelam o que foi o Estado
no cenrio da economia e da sociedade brasileira.
A possibilidade de atender o mercado nacional, que utilizava o
charque como principal alimento para a mo-de-obra escrava, como a
venda do gado magro em p para invernistas da regio sudeste, sobretudo
Minas Gerais, So Paulo e Rio de Janeiro, onde se concentrava o grosso
da populao urbana brasileira, abriram espao para o produto sul-mato-grossense, e foi com o desenvolvimento da pecuria, inicialmente no
Pantanal, (que j no incio do sculo XX concentrava 2/3 do rebanho
mato-grossense estimado em dois milhes e quinhentas mil cabeas), que
a regio passou a integrar-se economia nacional.
Originalmente, esta pesquisa tinha como objetivo descrever e elucidar a contribuio da pecuria bovina no processo de ocupao territorial do Estado de Mato Grosso do Sul e no desenvolvimento econmico
da regio, cuja nfase seria a investigao das trs frentes pioneiras, a
mato-grossense, a mineira e a gacha. No entanto, desde a apresentao
do Projeto de Pesquisa O gado bovino e o seu papel no processo de
ocupao e desenvolvimento econmico e cultural de Mato Grosso do
13

Sul em fins de 1999, a Banca Examinadora de ingresso no Programa


de Ps-graduao alertou para a dificuldade de se alcanar os objetivos
propostos, considerando-se a sua abrangncia. Na ocasio, foi observado
que o tema deveria ser desmembrado em pelo menos duas teses, uma que
abordasse a frente mato-grossense e uma segunda que se ocupasse da
gacha e mineira.
A experincia na coleta de informaes acabou por confirmar
aquela pertinente observao, e colocou a necessidade de repensar a proposta inicial.
O estudo das trs frentes pioneiras relevante e de fundamental
importncia para a compreenso da histria do Estado de Mato Grosso
do Sul, mas muito vasta em um mesmo projeto.
As razes que impulsionaram as trs frentes no tm basicamente
nada em comum, possuindo cada uma delas as suas prprias especificidades.
A separao de tempo e espao entre elas muito grande, pois a
ocupao da primeira frente teve seu incio na dcada de 1830, enquanto
que a gacha, em 1895. O contexto social, poltico e econmico em que
elas estavam inseridas era muito diferente.
A frente mato-grossense se dirigiu exclusivamente para o Pantanal
sul-mato-grossense, enquanto a gacha e mineira, majoritariamente, para
o Planalto de Maracaju-Campo Grande.
Provavelmente, a frente mato-grossense foi a nica herdeira de todo
o rebanho bovino que estava disperso no Pantanal, j a mineira e a gacha
vieram dos seus respectivos Estados na posse de rebanhos bovinos.
Considerando essas evidncias que redirecionaram a pesquisa,
como foi proposta, o projeto foi alterado, centrando-se os estudos na
frente mato-grossense, deixando-se a gacha e a mineira para pesquisas
posteriores.
Esta pesquisa, intitulada A pecuria bovina no processo de ocupao e desenvolvimento econmico do Pantanal sul-mato-grossense
tem, como objetivo, descrever e elucidar o processo histrico desempe14

nhado pela pecuria bovina durante a ocupao territorial da plancie


pantaneira no sudoeste de Mato Grosso.
Ou seja, as questes no solvidas que so objetos desta pesquisa
seriam: Teria sido a atividade pecuria fator determinante no processo
de ocupao e colonizao do Pantanal sul? Qual foi o papel desempenhado por jesutas e colonos, a servio da coroa espanhola, no processo
de introduo do gado bovino no Pantanal sul? Qual a influncia que
exerceu o movimento nativista Rusga, ocorrido em Cuiab, em 1834, para
desencadear o processo de ocupao da plancie sedimentar do Pantanal
sul-mato-grossense? A guerra com o Paraguai teria aniquilado o rebanho
pantaneiro?
Ao investigar a presena espanhola no Pantanal sul, no fim do
sculo XVI e comeo do XVII, com as iniciativas da fundao de Santiago de Xerez e das misses jesuticas do Itatim, foi possvel constatar
que tanto colonos como religiosos importavam de Assuno rebanhos
bovinos e que eles desempenhavam papel relevante nesses ncleos, quer
como fontes de protena, quer como animais de trao.
As informaes que foram obtidas com o desenvolvimento da pesquisa indicaram que ali estava a origem da pecuria mato-grossense. As
dificuldades enfrentadas pelos espanhis na plancie pantaneira, sobretudo para o cultivo, devido s condies ambientais, s altas temperaturas e
aos recorrentes dficits hdricos, que dificultavam o desenvolvimento da
agricultura, fizeram com que os pioneiros lanassem mo do gado bovino
como alternativa para minorar suas dificuldades de sobrevivncia.
Estas constataes ao longo de dez anos de pesquisas, permitiram
definir as hipteses do trabalho. Ou seja: o gado foi introduzido no sul
de Mato Grosso ainda no final do sculo XVI por colonos espanhis
e, no sculo XVII, por religiosos da Companhia de Jesus. Os bovinos
eram absolutamente necessrios conservao material das redues e
dos povoados.
Os ataques dos mamelucos paulistas s redues e cidade de Santiago de Xerez para a prea indgena no s desarticularam os povoados
15

pioneiros como dispersaram o gado por toda a regio do Pantanal sul-mato-grossense, onde os rebanhos puderam multiplicar-se livremente,
devido aos imensos campos de pastagem natural e aos terrenos salitrosos,
altamente favorveis para a sua reproduo.
O gado bovino bravio e em estado selvagem passou a atrair alguns
poucos aventureiros a se afazendarem na regio, no fim do sculo XVIII,
geralmente militares que se desligavam das guarnies de fronteira. Mas
o principal impulso colonizao veio dos conflitos entre nativistas e
portugueses, episdio conhecido como Rusga. A revolta nativista registrada em Mato Grosso, em 1834, foi propulsora, provocando os primeiros deslocamentos de fazendeiros para o sul, sobretudo no final da
dcada de 30 do sculo XIX. Homens de relevo na poltica e economia
desceram para a banda meridional da Capitania de Mato Grosso e, fugindo dos inconvenientes das perseguies polticas e da Justia, internaram-se no Pantanal, onde fundaram diversas fazendas.
A colonizao tardia e as dificuldades de transporte1 acabaram por
favorecer o desenvolvimento da pecuria. A comercializao do bovino
era extremamente reduzida, o que permitiu uma acumulao do excedente de produo de atividade criatria, resultando no crescimento do
rebanho, e isso propiciou, mais tarde, o desenvolvimento da indstria de
aproveitamento do gado e de seus subprodutos.
Colocada a hiptese, torna-se necessria a especificao do marco
temporal. Nesse caso, a abrangncia desta pesquisa abarca desde o terceiro quartel do sculo XIX at a primeira dcada do sculo XX, quando
surgiram as primeiras charqueadas no sul de Mato Grosso. No entanto, o
estudo buscou, nos registros referentes aos sculos XVI e XVII, explicar
as origens do gado bovino, sendo aprofundado a partir de 1830, quando
teve incio a efetiva ocupao do sul de Mato Grosso, se estendendo at
1910 quando se iniciou o fim de um modelo de explorao da terra e o

1 A grande distncia entre o Pantanal sul e as regies consumidoras e a dificuldade de locomoo


nessa rea devido s enchentes peridicas contriburam para limitar a expanso da pecuria
ficando essa reduzida ao mercado regional insignificante e estagnado.

16

comeo de outro, com a incorporao de novas tecnologias, por parte dos


produtores, ao processo produtivo como a homogeneizao do rebanho e
a adoo generalizada de prticas de manejo importadas de outras regies
mais desenvolvidas do Pas. O marco referencial de 1830 a 1910, proposto
nesta pesquisa, reporta a um perodo histrico de intenso desenvolvimento do sistema capitalista mundial, o que impe a necessidade de buscar no
sculo XIX essa teia de transformaes por que passa o mundo e o seu
significado para os rinces da Provncia de Mato Grosso. A expanso do
sistema capitalista afetou a sociedade brasileira que a ele ia se integrando
e modificando muito rapidamente as relaes internas.
O passado no pode ser entendido exclusiva e primordialmente em
seus prprios termos: no s porque ele parte de um poderoso
processo histrico mas tambm porque somente esse processo
histrico nos capacitou a analisar e compreender coisas relativas a
esse processo e ao passado. (HOBSBAWM, 1998, p. 173).

Sempre que possvel, houve a preocupao, no desenvolvimento


desta pesquisa, de se buscar, nas fontes primrias, relatos daqueles que
testemunharam ou foram protagonistas do processo de ocupao.
Prioritariamente, foi feita a leitura de extensa documentao relativa aos jesutas e aos colonos espanhis, reunida na Coleo De Angelis,
de onde foi possvel extrair informaes preciosas que forneceram o arcabouo necessrio para a compreenso das muitas dificuldades enfrentadas
pelos pioneiros, os conflitos que se estabeleceram entre eles, como tambm os problemas de sobrevivncia material. So tambm extremamente
importantes os registros ali encontrados referentes ao gado bovino.
Os problemas ambientais enfrentados pelos colonos e padres, tais
como as altas temperaturas, o calor abrasador, as enchentes peridicas,
as dificuldades do cultivo em determinadas pocas do ano, as nuvens de
mosquitos que perturbavam insistentemente, os obrigaram a lanar mo
do recurso da pecuria. Os rebanhos que foram introduzidos ainda no
sculo XVI, tornaram-se indispensveis para o sucesso de seus empreendimentos, tanto de colonos, como de jesutas.
17

J no sculo XVII, as correspondncias dos jesutas fornecem informaes de constantes ataques promovidos por nativos que se opunham colonizao dos bandeirantes paulistas, os quais vinham em
busca dos indgenas, o que possibilitou a disperso de todo o rebanho
reunido nas redues pelo Pantanal.
E esses registros deixados pelos jesutas que prestaram servios no
Pantanal sul permitiram auferir que o gado das misses se propagou por
toda a plancie do Pantanal, como ocorreu no Rio Grande do Sul e no
Uruguai, em experincia semelhante.
Documentao importante tambm so as crnicas e relatos de
viagens organizadas por Afonso de E. Taunay nas obras Relatos Sertanistas e Relatos Monoeiros, onde esto reunidas narrativas de testemunhas oculares dos acontecimentos a que nos reportamos, muitas delas
minuciosas, outras objetivas, algumas com grande capacidade de observao, porm todas relevantes.
Por meio desses registros, foi possvel, em primeiro lugar, delimitar o territrio nominado Vacaria pelos sertanistas como sendo a Plancie
Pantaneira e no a regio do Planalto de Maracaju-Campo Grande como,
em parte, hoje conhecido. Em segundo lugar, foi possvel tambm identificar que os campos dos pantanais mato-grossenses estavam, no fim do
sculo XVII, abrigando grandes manadas de bovinos e eqinos que se
multiplicavam muito rapidamente, aproveitando-se das boas condies
ambientais. Em terceiro lugar, pde-se constatar que o gado da plancie
pantaneira foi, durante o ciclo do ouro, arrebanhado pelos sertanistas em
pequenos lotes e levados para Cuiab e outros povoados que surgiram
para atender os comerciantes que se deslocavam para a regio das minas,
o que contribuiu para sua disperso por todo o Planalto.
Outra fonte de consulta extremamente importante foi Bandeirantes no Paraguai, publicada pela Diviso do Arquivo Histrico do Departamento de Cultura, da Secretaria de Educao da Prefeitura Municipal
de So Paulo. A obra rene 29 documentos dos sculos XVII e XVIII
que trazem detalhes dos conflitos entre assuncenhos (colonos espanhis)
18

e bandeirantes paulistas. Muitos deles retratam a organizao de patrulhas em Assuno com o objetivo de observar e, se possvel, embaraar
os movimentos portugueses na plancie do Pantanal. Nessas constantes
arremetidas ao territrio do atual Mato Grosso do Sul, como de praxe,
seus lderes elaboraram relatrios que davam conta da existncia de muito
gado na regio, como tambm de que os paulistas deles se serviam para
promover suas costumeiras incurses pelos territrios supostamente da
Coroa Espanhola.
A documentao de Marcos Carneiro de Mendona, organizada
pela Biblioteca Reprogrfica Xerox, possibilitou o entendimento da poltica desenvolvida pela Coroa Portuguesa e, depois, pelo Imprio Brasileiro na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolvia. Retrata a unio e
amizade dos soldados e comandantes dos fortes do mdio Paraguai com
os nativos, o comrcio de gado, cavalos e peles realizado na fronteira e as
depredaes promovidas pelos Mbaya Guaicuru aos ncleos espanhis
na fronteira, com apoio logstico de militares portugueses e, mais tarde,
de brasileiros.
Se foi possvel reunir farta documentao sobre os sculos XVI,
XVII e XVIII com testemunhos dos contemporneos que permitiram
reconstituir as condies de vida da poca, os objetivos bsicos da colonizao, as expectativas dos colonizadores, as motivaes que os levavam
a enfrentar um ambiente hostil, os conflitos entre os plos, como tambm as condies de vida dos pioneiros, j sobre as primeiras dcadas do
sculo XIX, as fontes documentais so extremamente escassas, sobretudo quando se inicia a formao das primeiras fazendas no sul de Mato
Grosso. Durante a guerra com o Paraguai, os soldados dos exrcitos invasores destruram toda a estrutura administrativa existente na Provncia,
os documentos cartoriais e registros firmados em parquias dos antigos
ncleos urbanos desapareceram ou foram incinerados.
Para suprir esse vazio, foram utilizados os recursos tcnicos da
Histria Oral. Foi necessrio recorrer a outras fontes que possibilitassem
a produo de novos registros. Isso no significou que as entrevistas sim19

plesmente permitiram atingir diretamente a realidade; elas completavam


os documentos escritos ou produzidos por terceiros e, na ausncia absoluta desses, elas contriburam para documentar as informaes tornando
alternativa fundamental ao desenvolvimento desta pesquisa.
Nelson Werneck Sodr, em sua obra Oeste: ensaio sobre a grande
propriedade pastoril adverte que a pecuria no deixa registros de sua
presena devido a sua pobreza material:
(...) no h marcas que assinalem a grandeza dessa conquista. S
a tradio oral e pura tradio oral, mantm a eternidade desses
feitos poderosos. Tradio transmitida de pais a filhos por gente
que s se fixa na velhice quando no mais pode suportar as agruras
e os disabores os cansaos e as privaes das longas jornadas.
(SODR, 1941, p. 88).

As entrevistas, alm de contribuir para preencher uma lacuna documental, enriqueceram sobremaneira o texto com depoimentos inditos
e fundamentais sobre os tempos que retrataram a vida nos primrdios de
Mato Grosso. Por outro lado, um autor alerta quanto ao uso do recurso
oral. Ainda hoje a cultura das classes subalternas (e muito mais, se pensarmos nos sculos passados) predominantemente oral. (GINZBURG,
1987, p. 18). Essa dificuldade de encontrar fontes primrias na regio do
Pantanal sul-mato-grossense, devido sua destruio quando da Guerra
do Paraguai, foi tambm, de certa forma, compensada com um amplo
levantamento realizado no Arquivo Pblico de Mato Grosso, onde foram
encontrados documentos relativos ao perodo de 1860 a 1910, ofcios, correspondncias particulares e oficiais e, sobretudo, relatrios e mensagens
de Presidentes e Vice-Presidentes de Provncias. Embora esses registros
oficiais revelaram em geral o ponto de vista das autoridades constitudas,
a sua utilizao contribuiu para construir a viso que as elites e o grupo
dirigente tinham de Mato Grosso, da pecuria e da populao que dela
tirava seu sustento, revelam as angstias e as dificuldades econmicas,
sociais, a vida e o ambiente material da regio.
20

Para trabalhar os grupos indgenas e a rarefeita populao no latifundiria, houve a necessidade de se utilizar outros tipos de fontes que
pudessem contribuir para construir as atitudes desses grupos. As descries de viajantes que estiveram em Mato Grosso em meados do sculo
XIX e os Relatrios do Gal. Rondon no comeo do sculo XX, quando
da construo da rede telegrfica no Pantanal sul-mato-grossense, contriburam para mostrar as relaes de trabalho entre os grupos nativos e os
colonos e a brutal explorao que os ltimos impuseram aos primeiros;
isso permitiu incorporar pesquisa experincias histricas de grupos, cuja
existncia tem sido freqentemente relegada pelos historiadores locais.
Tornou-se imprescindvel recorrer produo dos memorialistas
que, alm de contribuir com suas obras para a reconstituio da histria
das primeiras famlias que povoaram a regio, ainda forneceram subsdios para entender o dia-a-dia nas primeiras fazendas, as relaes com
os indgenas, as dificuldades com o meio-ambiente, o trabalho dentro de
uma unidade rural, a poca em que chegaram e se estabeleceram, como
viviam e o que e como produziam - enfim, informaes esclarecedoras
nesse processo de ocupao. No entanto, a superficialidade que bem caracteriza essas obras conhecida; a principal preocupao dos seus autores dar nfase a situaes com o propsito de valorizar os feitos dos seus
antepassados, ou seja, s qualidades pessoais dos primeiros colonizadores
como o altrusmo, a tenacidade, a generosidade, que garantiam o sucesso
do desbravamento da regio. Esse expediente no novo. Constitui,
na verdade, uma reproduo parcial da tradio quatrocent dos paulistas, cuja especialidade de uma raa de gigantes poderia ter deixado suas
sementes na frente oeste de colonizao. (LENHARO, 1982, p. 11).
Revendo a historiografia regional, foram encontrados poucos autores que pesquisaram sobre a temtica abordada por essa tese; dentre eles,
destacam-se Nelson Werneck Sodr, Demsthenes Martins, Luiza Rios
Ricci Volpato, Virglio Corra Filho e Aline Figueiredo, que procuraram,
em suas obras, explicar o desenvolvimento da pecuria em Mato Grosso.

21

Nelson Werneck Sodr entende que a entrada dos primeiros rebanhos no oeste do Brasil ocorreu em fins do sculo XVIII, favorecidos
pelo rio So Francisco, via natural e convidativa para uma penetrao
mais vigorosa, sendo por isso batizado como o rio dos currais. Ao longo deste rio, estabeleceu-se o contacto entre vaqueiros e bandeirantes,
uns iam em busca do ouro no sentido norte, outros vinham a procura
de pastagem no sentido do sul. Minas Gerais, j eregida em capitania
desmembrada de So Paulo, foi um grande centro distribuidor com uma
notvel condensao de populaes e de rebanhos.
O autor enfatiza o roteiro que o gado bovino, conduzido por tropeiros, percorreu para entrar em terras mato-grossenses, onde surgiram
as primeiras propriedades, cuja principal atividade era a pecuria. Segundo ele:
Pode-se marcar pelos fins do III sculo as primeiras penetraes
do gado em terras do oeste. (...) a vegetao limpa, os campos
abertos, as pastagens obrigatrias e os pontos em que as vias
fluviais permitiam vau, ofereceram a oportunidade por certo feliz
da passagem das terras de Minas para o oeste, para os chapades
goianos e para o territrio de Mato Grosso dos rebanhos que
aumentaram progressivamente e que marchavam sem termo.
[Majoritariamente a penetrao dos vaqueiros na posse de seus
rebanhos deu-se pelo Tringulo Mineiro]. (SODR, 1941, p. 60).

Da opinio de Sodr, compartilha Demsthenes Martins, de que


os rebanhos do Tringulo Mineiro foram sendo conduzidos por vaqueiros que cruzavam o rio Paranaba e adentravam a Provncia de Mato
Grosso. Dali foram dilatando as suas ocupaes at atingirem as campinas da Vacaria, onde ainda encontraram vestgios da presena castelhana
das redues jesuticas. (MARTINS, sd. p. 614).
Diferentemente de Sodr e Martins, Virglio Corra Filho afirma
que a pecuria em Mato Grosso teve princpio no distrito de Cuiab,
onde o primeiro Capito General, D. Antnio Rolim de Moura testemu-

22

nhou em 1761 que sobejava para o consumo a criao bovina. (CORRA FILHO, 1943, p. 271).
No so do sculo XVIII as primeiras tentativas de penetrao e
ocupao de Mato Grosso, elas ocorreram ainda no sculo XVI e XVII e
foram de iniciativa dos espanhis com a fundao da cidade de Santiago
de Xerez e das redues jesuticas na plancie pantaneira. Embora essas
tentativas de fixao no tenham se consolidado, isto devido resistncia
dos grupos nativos, falta de relaes comerciais mais frequentes com os
outros mercados e, mais tarde, investida dos bandeirantes, tiveram os
colonos e os religiosos o mrito de introduzirem e aclimatarem os primeiros exemplares bovinos e eqinos.
De acordo com registros e documentos produzidos pelos padres
da Companhia de Jesus, que prestavam trabalhos de catequese no Itatim2 ,
os primeiros rebanhos introduzidos no atual territrio de Mato Grosso
do Sul vieram do Paraguai. Mais tarde, com a descoberta do ouro em
Cuiab, algumas rezes foram levadas da plancie para a rea de minerao,
provavelmente em embarcaes via rio Paraguai ou conduzidos por terra
por vaqueiros.
Para Aline Figueiredo, o gado bovino j se encontraria em territrio sul-mato-grossense no sculo XVII: Quando, no decorrer do sculo
XVII, adentraram os bandeirantes ao sul de Mato Grosso, para desalojar
o espanhol, o jesuta, e para prear o ndio, viram surpresos que aqueles
campos estavam repletos de bois. (FIGUEIREDO, 1994, p. 66).
Quando os bandeirantes adentraram em Mato Grosso, na dcada
de 30, no sculo XVII, encontraram o rebanho bovino ainda em processo de estruturao, j, que por essa poca, estavam sendo introduzidos os
primeiros lotes na regio pelos colonos e, nas duas dcadas seguintes, em
maior quantidade, pelos padres jesutas.

2 O Itatim estava situado entre os rios Apa e Taquari, no Pantanal sul de Mato Grosso, onde
os religiosos da Companhia de Jesus instalaram suas aldeias para promoverem a catequese dos
ndios da regio.

23

Notcias de muito gado bovino selvagem s foram registradas em


fins do sculo XVII, por sertanistas paulistas e por tropas enviadas de
Assuno para observarem os movimentos dos portugueses na regio.
A autora afirma ainda que os bandeirantes localizaram os altiplanos sul matogrossenses em seus mapas denominando-os Campo de Vacaria devido a abundncia dos rebanhos. (FIGUEIREDO, 1994, p. 66).
Para os sertanistas que percorreram todo o sudoeste de Mato
Grosso, nos sculos XVII e XVIII, Vacaria era a regio que os espanhis
chamavam de Provncia Jesutica do Itatim ou Campos de Xerez, rea
banhada pelo rio Mbotetey, no territrio compreendido atualmente pela
Bacia Hidrogrfica dos rios Miranda e Aquidauana, na parte no inundvel do Pantanal sul-mato-grossense. (MARTINS, 2002). Os altiplanos
sul-mato-grossenses pertencem ao Planalto de Maracaju-Campo Grande, prolongamento do Planalto Central Brasileiro, onde no se registrou
qualquer sinal da presena castelhana.
Para Luiza Rios Ricci Volpato, as autoridades de Mato Grosso e da
prpria Coroa Portuguesa tentavam desestimular o desenvolvimento da
pecuria na Provncia visando, assim, impedir que os recursos humanos
disponveis, no caso, os negros escravos, abandonassem a minerao para
se dedicarem a outras atividades. Afirma a autora:
O desenvolvimento da criao de gado, para as autoridades
coloniais, tambm no era interessante que ocorresse em Mato
Grosso. Da mesma forma que a cana de acar, esse tipo de
atividade oferecia o perigo de absorver mo-de-obra e demais
recursos que deveriam estar alocados na minerao. (...) o gado
bovino e muar eram introduzidos na capitania por comerciantes
paulistas que obtinham seus produtos nos campos do Sul. A
regio contava ainda com a importao do gado do vale do So
Francisco, trazido como o do sul, pelo caminho terrestre de Gois
(...). (VOLPATO, 1987, p. 88).

S esporadicamente o negro era utilizado nas lides da pecuria,


uma vez que seu uso nessa atividade despendiria muitos gastos provocados pela necessidade de intensa vigilncia e lhe daria o meio de loco24

moo mais rpida para a fuga que, na poca, era o cavalo. Alm disso, a
pecuria, nos rinces de Mato Grosso, era uma atividade pouco rentvel
e o escravo muito caro, portanto ela se ajustava melhor ao emprego de
trabalhadores livres, geralmente mestios e nativos.
As atividades da pecuria e da minerao no se incompatibilizavam, pelo contrrio, se completavam, tanto que, em Mato Grosso, logo
foi se estabelecendo uma estreita ligao entre elas. O bovino tornou-se
um bem de valor inestimvel, era impossvel imaginar um povoado sem
os animais de trao que, realizando os servios mais pesados, liberavam
o negro para as atividades mais rendosas, tanto que em 1761, portanto
quarenta e dois anos aps a descoberta dos metais, j havia em torno de
Cuiab uma oferta de gado bovino muito superior necessidade de consumo local.
Os primeiros bovinos introduzidos em Cuiab vieram da plancie
pantaneira. Desde 1725, havia um Bando3, emitido pelo Capito General
da Capitania de So Paulo, Rodrigo Csar de Menezes, autorizando a conduo do gado bagual da plancie pantaneira, a chamada Vacaria, para as
minas de Cuiab. Alis, era muito mais fcil, rpido e barato conduzir a
rs da Vacaria para a regio mineradora, do que import-la da regio sul
e do vale do So Francisco. Os sertanistas paulistas conheciam bem os
caminhos que levavam s pastagens nativas que abrigavam os imensos
rebanhos de bovinos e eqinos e, tambm, como conduzi-los para as
reas de minerao.
Pelo caminho de Gois, citado pela autora, os primeiros lotes de bovinos foram introduzidos somente em 1737, trazidos por Pinho de Azevedo; no entanto, desde 1730, h registros de novilhas em Cuiab, procriando, conduzidos trs anos antes por um sertanista. (CAMELLO, 1863).
Na mesma poca, j havia em Cuiab cinco engenhos de cana-de-acar, todos em franca produo. Certamente, esses engenhos j em-

3 Bando; trata-se de uma proclama ou um anncio pblico.

25

pregavam significativo nmero de animais utilizados desde o preparo do


solo at o transporte do acar.
O sargento mor, engenheiro Luiz DAlincourt, em expedio a
Mato Grosso, no incio do sculo XIX, constatou que no sculo anterior
grande quantidade de rezes havia sido enviada da Fazenda Camapu para
Cuiab e So Loureno para formar grandes reas de cultivo de banana.
(dALINCOURT, 1824, p. 337). Portanto, muito antes do gado oriundo
de Minas Gerais, do sul do Brasil e de Gois, era o gado do Pantanal sul
que dava suporte s atividades desenvolvidas na regio de Cuiab, alm
de que havia um regular comrcio entre os ndios guaicurus e os plos
de colonizao nos arredores de Cuiab que envolvia eqinos e bovinos
conduzidos da Vacaria. (BERTELI, 1984).
Por outro lado, lembra um autor que os custos da pecuria
praticados em Mato Grosso eram mnimos: quase nenhuma mo-deobra, reproduo natural do rebanho, terras baratssimas, consistindo
em imensos campos favorveis e providos de salinas naturais ao sul
e sudeste de Cuiab, que no exigiam nenhum gasto suplementar.
(MAMIGONIAN, 1980).
Sodr afirma ainda que:
O grande lance se processaria inicialmente em busca dos campos
de Vacaria (...). Ali surgiriram as primeiras fazendas, os primeiros
pousos, os focos iniciais da expanso. Os campos da Vacaria
deviam transformar-se, agora, em regio distribuidora por
excelncia dos rebanhos advindos do centro sul, das Minas Gerais
onde haviam penetrado atravs do Vale do So Francisco. (...) [Dos
Campos da Vacaria esses rebanhos alcanariam aos chapades da
regio central da Provncia de Mato Grosso e constituindo Coxim
um grande pouso obrigatrio, novo foco distribuidor.]... / Da
as terras baixas do pantanal no havia mais do que um passo.
(SODR, 1941, p. 60 e 61).

No existe qualquer registro que sustente tal afirmao, pois o


criatrio bovino se iniciou no Pantanal sul-mato-grossense com colonos
e missionrios a servio da Coroa espanhola. Ao contrrio do que afir26

ma Sodr, o Pantanal sul-mato-grossense tornou-se, no incio do sculo


XVIII, um plo condensador e distribuidor do bovino e do eqino para
outras regies da Provncia. Ademais, como afirma um autor:
Coxim no era ainda conhecido, alm do rio homnimo, pelo qual
sulcavam as canoas bandeirantes, quando se aclimou no distrito cuiabano
o primeiro plantel bovino. (...). Coxim no existia como ncleo de povoadores no incio do sculo XVIII (...). (CORRA FILHO, 1943, p. 273).
Ainda de acordo com Sodr, o processo de formao da pecuria
mato-grossense foi marcado pela presena do paraguaio. Campeador
por indole, [ele] ia tornar-se um elemento importante no regime pastoril
do Oeste. E a migrao existente desde o sculo passado devia aumentar
de maneira notvel. (...). (SODR, 1941, p. 13).
Entretanto, a contribuio paraguaia ao desenvolvimento da pecuria em Mato Grosso no sculo XIX, pfia, todo o encargo dessa e
de outras atividades econmicas, desde o sculo XVI, recaiu sobre os
ombros dos grupos nativos, sobretudo os terenas.
O segundo censo4 geral do Brasil, realizado em 1890, comprova
que o nmero de estrangeiros em Mato Grosso era insignificante, apenas
392 pessoas, o que vem fortalecer a tese de que o trabalho era realizado
pelos grupos indgenas da regio.
A entrada do elemento paraguaio no sudeste de Mato Grosso
registrada no final do sculo XIX e incio do XX, quando as sucessivas crises econmicas e golpes de Estado no pas vizinho estimularam
a populao atingida a cruzar a fronteira em busca de tranqilidade e de
trabalho no Brasil.
Por fim, Sodr afirma textualmente: No houve, e no h no
Oeste a luta entre o homem e a terra. (SODR, 1941, p. 118).
Ao contrrio do que afirma o autor, a histria do sudoeste de Mato
Grosso marcada pela luta entre o colono e o indgena, desde o sculo
XVI quando os espanhis iniciaram o processo de ocupao da plancie
pantaneira, at meados do sculo XIX, pela posse efetiva da terra, proces4 O censo de 1890 no indica a nacionalidade desses estrangeiros radicados no Estado.

27

so esse sempre marcado por extrema violncia, em que os grupos nativos


foram arredados de seus bens, expulsos, mortos ou ento incorporados
disciplina do trabalho, exigncia da nova civilizao que se estabeleceu
com a pecuria.
A violncia contra o nativo atingiu tal intensidade que o Governo
Federal criou, em 1910, o Servio de Proteo ao ndio para pr cobro
aos crimes que se praticavam contra eles.
Quanto questo da mo de obra, Figueiredo conclui que:
(...) o guaicuru preparou o terreno para a pecuria e os fazendeiros
j encontravam, principalmente na plancie pantaneira, a tradio
campesina. De alguma forma, o peo j estava l, entre os cativos
dos senhores guaicurus, e estes desaparecendo, foi transferida aos
fazendeiros a suserania. (FIGUEIREDO, 1994, p. 88).

Muito antes de estabelecerem contatos com os brancos, os guaicurus tinham tendncias para o domnio de outras tribos de caadores e
coletores e sobre os tradicionais lavradores, os guans. Essas tendncias
foram reforadas quando eles adotaram o cavalo para o seu uso, para a
caa e, como arma de guerra, ganharam maior mobilidade e puderam
com isso impor vassalagem a grupos indgenas que viviam mais distantes.
Na condio de caadores coletores e tendo uma dinmica territorial extraordinria, os guaicurus se contrapunham aos grupos indgenas
agricultores, no podendo, portanto, com a sua ao preparar o campesinato, j que no tinham qualquer tradio agrcola, ou qualquer relao
produtiva com a terra.
Importante papel no processo de formao do peo no Pantanal
sul-mato-grossense foi desempenhado pelos religiosos e pelos soldados
dos fortes instalados ao longo da fronteira do Brasil com os atuais territrios das repblicas da Bolvia e Paraguai.
Nos fortes, os oficiais eram orientados a evitar a disperso dos
indgenas atraindo-os causa da evangelizao, estabelecendo relaes
de amizade com eles, promovendo aldeamentos nas imediaes para
prepar-los para o trabalho e para o desenvolvimento da agricultura, for28

necendo os instrumentos necessrios ao sucesso do empreendimento. Na


afirmao de Almeida Serra, essa estratgia fica clara:
Para dar o meu parecer, conforme manda S.M e V.Ex. me ordena,
sobre o aldamento dos indios uaicurus e guans, que vivem como
entre os portugueses, nos terrenos adjacentes ao do Miranda,
de tal frma que fiquem sendo uteis a minerao e agricultura,
confesso, Illm. e Exm. Sr., que mais de uma vez me tenho
esforado para cumprir com este meu dever, (...). (ALMEIDA
SERRA, 1866, p. 204).

Os efetivos militares dos fortes garantiam um mercado regular


para o excedente da produo dos nativos, trocando-o por enxadas, foice,
faco, machado, utenslios de grande interesse no produzidos pelo indgena, o que lhes permitia melhorar o nvel tcnico de seus cultivos.
Ao lado dos soldados, os religiosos tambm contriburam no processo de habituar o ndio ao trabalho dentro dos moldes ocidentais.
Desde meados do sculo XVII, os religiosos da Companhia de Jesus realizavam trabalhos de aldeamento no Pantanal sul de Mato Grosso,
com o propsito de catequisar o indgena. Essa iniciativa implicava no
desenvolvimento da agricultura e da pecuria para que fosse criada uma
oferta regular de alimento que pudesse atender o nativo reduzido e assim
garantir a sua educao dentro de princpios cristos.
No incio do sculo XIX, quando efetivamente teve incio o processo de colonizao do Pantanal sul, as autoridades mato-grossenses,
descrentes da possibilidade de colonizar a Provncia com a imigrao
estrangeira, recorreram mais uma vez aos religiosos para, atravs deles,
preparar os indgenas.
Em Miranda, frei Mariano de Bagnaia organizou um grande aldeamento com as tribos guans, terenas e layanas. Em Albuquerque, se
instalaram os padres capuchinhos, em 1819, onde fundaram a Misso da
Misericrdia. Esses dois ncleos desempenharam importante papel no
processo de formao da mo-de-obra do Pantanal sul e tornaram-se responsveis pelo abastecimento das vilas e cidades mais prximas deles,
29

como Miranda, Albuquerque e Corumb. Dali tambm saam homens


e mulheres que iam trabalhar nos mais diversos ofcios requeridos nos
nascentes ncleos urbanos, ou seja, empregadas domsticas, barqueiros,
remeiros, entregadores etc.
Tanto os aldeamentos dos fortes como aqueles organizados pelos
padres, a rigor, contriburam decisivamente para a formao da mo-de-obra no Pantanal sul. Neles, o nativo era preparado para que os fazendeiros, mais tarde, se apropriassem do seu trabalho, quer nas atividades
agrcolas, quer na pecuria.
Se grupos indgenas contriburam para a formao da mo-de-obra no Pantanal, esses foram os guans e seu sub-grupo, os terenas,
que eram utilizados pelas autoridades de Mato Grosso para quebrar a resistncia dos grupos nativos insubmissos, ensinar-lhes as prticas laborais
da agricultura e da pecuria e ir preparando-os para os fazendeiros que
iam se estabelecendo na Provncia.
Muito antes da Guerra do Paraguai e no incio da colonizao efetiva de Mato Grosso, o chefe de uma expedio enviada pelo governo
francs ao Brasil, o naturalista Francis Castelnau, j deixava registrado
que os terenas foram encontrados na posse de grandes rebanhos de gado
vacum e cavalar e constatou que eles eram exmios cavaleiros. (CASTELNAU, 1949).
Ao abordar o incio do processo de ocupao do Pantanal sul,
Virglio Corra Filho afirma que: Dos pantanaes, [norte] avanaram as
boiadas para o sul, em rumo de Miranda, conduzidas pelos exaltados de
1834, que se exilaram espontaneamente de Cuiab depois da tragedia de
30 de maio. (CORRA FILHO, 1926, p. 21).
As famlias que resolveram pela fuga de Cuiab, aps os acontecimentos de 1834, tinham informaes seguras que nos campos nativos do Pantanal sul vagavam milhares de cabeas de gado bovino que se
multiplicavam muito rapidamente, aproveitando-se das boas condies
ambientais da regio. Esse gado selvagem e sem dono constituiu fator
principal para que esses colonos se deslocassem para essa regio.
30

Desde a fundao do forte de Miranda, no fim do sculo XVIII,


havia uma estreita relao entre os ndios guaicurus, soldados e oficiais
dos fortes, com ativo comrcio de bovino e eqino entre eles. Os animais
eram reunidos pelos nativos e entregues nos fortes para posteriormente
serem vendidos em Cuiab.
Obviamente, na vinda desses pioneiros para o Pantanal sul, no
havia necessidade de conduzir as boiadas, tanto que no existe registro
de entrada de gado bovino quando iniciou o processo de ocupao.
Finalmente, Virglio Corra Filho afirma que durante a Guerra da
Trplice Aliana:
(...) as boiadas que, anteriormente rumavam para Uberaba em troca de sal e outros artigos de importao, entraram a seguir para o Sul, a
saciar a fome dos batalhes aguerridos. /.../. Em conseqncia, pereceu a
criao. (CORRA FILHO, 1926, p. 31).
Na mesma direo, aponta Figueiredo que afirma:
Utilizando-se da surpresa os paraguaios tomam como primeira
providncia ttica, a apreenso de todo o gado e de toda a
tropa que puderam. (...) Centenas de fazendas foram saqueadas
e o sul de Mato Grosso viu de perto a misria e o abandono.
No Pantanal, o gado se conservou melhor no norte mas a
plancie se despovoou, voltando ao estgio de 100 anos atrs.
(FIGUEIREDO, 1994, p. 112).

Dentre os fatores que determinaram a invaso paraguaia a Mato


Grosso, um deles foram os grandes estoques de bovino e eqino abrigados nos imensos campos nativos do Pantanal sul de tal forma que, logo
aps a entrada das tropas invasoras e a tomada dos principais pontos
estratgicos, foram sendo criados vrios estabelecimentos rurais para a
recepo do gado arrebanhado. To logo eram reunidos, esses animais
serviam ao consumo das tropas estacionadas em Mato Grosso, ou ento
eram destinados populao assuncenha ou para as frentes de guerra.
Naquela poca, a criao do gado bovino possuia uma importncia econmica muito significativa, alm de produto bsico de alimenta31

o, servia como agente motor e meio de transporte e, naquele momento


de guerra, era largamente utilizado nas frentes de batalha, arrastando os
canhes da artilharia.O alimento fundamental das tropas paraguaias e
aliancistas durante toda a guerra foi precisamente a carne assada.
Era, portanto, objetivo do exrcito paraguaio, reunir todo o gado
possvel do Pantanal sul e aproveit-lo no esforo de guerra. No entanto,
embora as tropas estivessem orientadas para esse fim, no lograram xito;
to logo iniciaram suas incurses pela plancie pantaneira, a cavalhada
foi contaminada pelo vrus de uma doena comum na regio, o mal-das-cadeiras, que, por ser altamente contagiosa, liquidou com as tropas do
exrcito guarani.
Sem cavalos, os rebanhos bovinos ficaram sem manejo, passando
muito rapidamente condio de selvagens, tornando-se muito difcil o
seu arrebanhamento. A doena, embora tenha trazido grandes prejuzos
pecuria do Pantanal sul, acabou por contribuir para a preservao dos
rebanhos, impedindo que a criao perecesse, como acreditam Corra
Filho e Aline Figueiredo.
Virglio Corra Filho o mais destacado representante da produo memorialista mato-grossense. Seus trabalhos, cujo papel principal foi
o da glorificao e exaltao dos feitos dos antepassados, ajudaram a formular a identidade local. Para ele, o processo de ocupao e colonizao
do Estado foi todo obra dos hericos bandeirantes paulistas, uma raa
de gigantes a quem coube o papel histrico de desbravar um territrio
extremamente inspito.
Aceitar o gado bovino, a principal riqueza do Estado, como sendo herana dos colonos e jesutas espanhis ou dos indgenas, significa
reconhecer que a base da conquista foi reunida sem trabalho e luta, uma
ddiva, o que afetaria de modo negativo essa identidade construda. Depreendem da as afirmaes de que os primeiros colonos vieram de Cuiab e entornos conduzindo o seu prprio gado.
J Nelson Werneck Sodr faz parte de um seleto grupo de historiadores que, com base em experincias pessoais, com poucas fontes
32

primrias e tambm pouca pesquisa, formulou grandes interpretaes e


afirmaes sem a necessria comprovao.
Foram justamente os programas de ps-graduao em Histria
que, surgindo em vrios pontos do pas e se estendendo pelas mais diversas regies, deram aos novos pesquisadores acesso a determinadas fontes
no conhecidas at ento e que, reveladas, contriburam para uma reviso
de toda a Historiografia. Verdades antes consagradas, luz de uma nova
documentao passaram a ser questionadas e verdades absolutas foram
relativizadas.
A ps-graduao fora os alunos a usar fontes primrias e a
comparar suas afirmaes com pesquisa bastante sria (...). Num
mestrado, por exemplo, impossvel fazer isto trabalhando o
Brasil. E, como esta mentalidade mais ou menos se arraigou,
hoje em dia, mesmo no doutorado, as pessoas pensam duas vezes
antes de abordar um tema realmente nacional. Ora, isto foi muito
importante porque antes havia certas teorias do Brasil que se
impunham como a verdade pelo prestgio de quem as propunha,
tipo Celso Furtado, Caio Prado Junior. Ora, isto era baseado em
muito pouca fonte, em muito pouca pesquisa. (FLAMARION,
1995, p. 5).

A obra de Nelson Werneck Sodr, Oeste: ensaio sobre a grande


propriedade pastoril, de 1941, confessou o prprio autor, foi elaborada
a partir de entrevistas dadas por um pioneiro que se deslocou de Minas
Gerais para Mato Grosso.
A respeito, relata Sodr:
Ali [cidade de Jardim] viver, tambm, o meu amigo Clemente
Barbosa Martins, homem to velho que, nas conversas, quando
queria fixar a poca de algum acontecimento, dizia antes da guerra
ou depois da guerra. Para ele, tratava-se da guerra do Paraguai.
Era dotado de prodigiosa memria, infalvel para os fatos antigos.
A histria da expanso pastoril no sul de Mato Grosso que
reconstitui, depois no livro Oeste me foi narrada por le com
mincia, exatido, rigor: era praticamente a histria de sua famlia,
os Lopes, oriundos de Pium-i, no pontal do rio Grande, terras de
Minas Gerais. (SODR, 1967, p. 160).
33

Os depoimentos de Clemente Barbosa Martins, colhidos por Sodr, permitiram que este reconstitusse a histria da expanso pastoril no
Planalto Maracaju-Campo Grande e no no sudoeste de Mato Grosso,
como ele julgava ter feito.
O entrevistado, cuja prodigiosa memria chamou a ateno do
entrevistador, prestou relevante contribuio para o entendimento da
ocupao de uma importante regio de Mato Grosso, no entanto, nada
sabia da ocupao anterior que havia ocorrido dois sculos antes daquela
contada por ele, no tinha essa obrigao; havia nascido duzentos anos
depois dos acontecimentos que haviam se passado no Pantanal sul.
A obra Oeste tornou-se, ao longo dos anos, uma importante
contribuio para a historiografia mato-grossense, mas as fontes levantadas nesta tese se contrapem s concluses ali estabelecidas.
Esta pesquisa foi dividida em cinco captulos; no primeiro, tratou-se dos sculos XVI e XVII, procurando mostrar o caminho que foi
percorrido pelo gado bovino desde a sua introduo em So Vicente, no
litoral da Capitania de So Paulo, at a sua chegada em Assuno e depois, em Mato Grosso, atravs dos plos pioneiros de colonos e jesutas a
servio da Espanha. Foi feita uma descrio da geografia e da histria da
regio por meio de um cuidadoso levantamento de dados com base nas
fontes primrias para mostrar o desenvolvimento do rebanho bovino e o
volume que ele alcanou no comeo do sculo XIX, destacando o papel
dos nativos, sobretudo os Mbaya Guaicuru, no processo do seu adensamento.
No segundo captulo, procurou-se destacar as transformaes sociais, polticas e econmicas ocorridas em fins do sculo XVIII at meados do sculo XIX, com o aprofundamento da Revoluo Industrial,
o fim do monoplio comercial, a independncia do Brasil, a conquista,
pela Inglaterra, da condio de nao mais importante do mundo e os
desdobramentos de todas essas bruscas transformaes nos rinces de
Mato Grosso.
No terceiro captulo, tratou-se dos relatos dos viajantes que, a partir do comeo do sculo XIX, comearam a chegar a Mato Grosso, apro34

veitando-se do fim das restries impostas pelas metrpoles colonialistas,


e que prestaram inestimvel contribuio pesquisa histrica da regio.
Essas expedies, geralmente oficiais, eram organizadas com o objetivo
de reconhecer as potencialidades da terra e a possibilidade de instalao
de um sistema produtivo que pudesse gerar lucro, mas as descries da
terra, embora feitas sem muita parcimnia, continham informaes extremamente importantes sobre o sul da Capitania de Mato Grosso, a situao das vilas, dos povoados, das guarnies militares, das relaes dos
colonos com os nativos, enfim, outras informaes que permitiram dar
um quadro geral da Provncia, com esclarecimentos importantes sobre o
conjunto da sociedade local.
No quarto captulo, abordou-se o incio do processo de ocupao
da regio a partir do final de 1830, com a chegada das primeiras famlias
e a instalao dos pioneiros nas proximidades dos rios Taboco e Nioaque,
nos altos vales do Negro e do Miranda e no baixo Paraguai, com a formao da grande propriedade latifundiria, no que hoje o Pantanal sul; foi
retratada a disputa entre os antigos ocupantes das terras indgenas e os
novos, marcada por extrema violncia. Os primeiros foram sendo expropriados de sua terra e de seus rebanhos eqino e bovino em um processo
que culminou com o seu subseqente jugo ao colonizador.
Foi retratada tambm a guerra com o Paraguai, que se constituiu
em um verdadeiro desastre para as populaes pantaneiras, com os saques s propriedades recm construdas e as poucas vilas e cidades at
ento a existentes.
O quinto captulo tratou da recuperao da Provncia aps a guerra com o Paraguai, sobretudo aps a dcada de 1870, perodo marcado
pela expanso econmica mundial, tendo se verificado intenso desenvolvimento da produo para o mercado. Houve uma conjuntura favorvel
cujos termos de intercmbio evoluram em favor dos bens agropecurios,
vindo ao encontro da produo local. Com isso, foi possvel a industrializao da carne e o desenvolvimento da Pecuria, no s no Pantantal
como tambm em todo o Estado de Mato Grosso.
35

Captulo 1
A Origem do Gado Bovino no
Mato Grosso Colonial
1.1. Os primeiros rebanhos bovinos em So Vicente
Os europeus, quando imigraram para colonizar a Amrica, fizeram-no trazendo seus animais secularmente domesticados, sobretudo o
gado vacum e cavalar, que deram suporte s suas aes no esforo da
colonizao. Esses no faziam parte da fauna americana; para os servios
de trao e do cultivo, era empregada a lhama por algumas poucas etnias
estabelecidas nos planaltos andinos.
Os rebanhos bovino e cavalar, sobretudo, desempenharam relevante papel no processo de colonizao da Amrica, pois constituam importante fora de trao e fundamental meio de transporte, sendo ainda,
o primeiro, indispensvel alimentao.
As primeiras informaes sobre a presena do gado bovino no
Brasil datam de 1534, na Capitania de So Vicente, trazido da ilha da Madeira pela esposa do seu donatrio, Martim Afonso de Souza.
A perspectiva do sucesso do cultivo da cana de acar naquela
regio tanto animou o seu donatrio que o primeiro engenho na Terra de
Santa Cruz foi ali instalado, com o nome de Engenho do Governador,
para que se iniciasse a produo do acar.

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Os mais antigos cronistas so contestes em afirmar a precedncia


de So Vicente em criao de gados, assinalando o Padre Simo de Vasconcelos que esta vila de So Vicente foi a primeira em que se fez acar
na costa do Brasil e donde as outras Capitanias se provisionaram de cana
para a planta e de vacas para a criao. (VASCONCELOS apud PORTO,
1954, p. 246, V. 3).
No entanto, a distncia da Metrpole e das zonas consumidoras
fez com que esta Capitania no figurasse, nessa primeira fase da histria brasileira, como grande produtora de acar, perdendo essa condio
para Pernambuco e Bahia, onde a indstria do produto foi grande sorvedora do gado bovino, uma vez que os trapiches e engenhos eram movidos
fora animal e o transporte da cana e da lenha exigia um grande nmero
de bois. medida que a produo do acar aumentava, tornava-se um
estmulo criao. Enquanto isso, em So Vicente, o criatrio desenvolvia-se nessa primeira fase da ocupao lentamente, os rebanhos serviam
s culturas de subsistncia desenvolvidas pelos paulistas e alimentao.
A situao de subalternidade prolongada desse ncleo [So Vicente] nos mostra o que teria sido a colonizao, no seu conjunto, se em uma
de suas reas no tivesse intervindo o capital comercial. Nele se ensaiou
a mesma frmula que resultou vitoriosa em Pernambuco, mas no conseguiu expandir-se. Dentro em pouco, o capital comercial concentrou
os seus esforos na zona em que o sucesso estava assegurado. Este foi o
motivo fundamental porque So Vicente permaneceu em segundo plano.
(...). (SODR, 1990, 13 ed., p. 109).
A princpio, as poucas cabeas que entraram em So Vicente
mereceram cuidados extremos e especiais, uma vez que era necessrio
adapt-las aos novos pastos, o que exigia tempo e muita mo de obra,
ou seja, identificar as ervas venenosas, que eram letais; impedir a ingesto da mandioca bruta, que causava o empanzinamento; matar onas,
cobras e outros animais que pudessem colocar em risco o gado. Enfim,
nos primeiros tempos, os rebanhos foram mantidos sob as vistas dos seus
proprietrios, em currais junto s suas casas, de forma que toda a aten38

Paulo Marcos Esselin

o pudesse garantir o seu crescimento. Na Capitania de Porto Seguro,


por exemplo, no foi possvel a instalao de engenhos de acar devido
ao insuficiente desenvolvimento da pecuria: as vaccas lhe morrem por
causa de certa herva, de que h copia, e comendo-a, logo arrebentam.
(CARDIM, 3 ed. 1978, p. 181).
A criao do gado, que teve o seu incio em So Vicente, logo ganhou os campos do Planalto Paulista, onde melhor poderia se desenvolver devido excelncia dos seus campos e boa qualidade das pastagens
naturais e das aguadas, o que contribuiu decisivamente para a proliferao do gado bovino, e, embora as condies fossem as melhores, muito
raramente se abatia uma rs; a parcimnia era a garantia para o crescimento do rebanho.
Os primeiros Vicentistas deram nome de campo ao terreno de serra acima, para o diferenar das terras do beira mar, os quais acham muito
cobertas de arvoredo, o que no acontecia em todas as vizinhanas de S.
Paulo, que por natureza eram descobertas, e nicamente pequenos capoes, ou capoeiras (assim denominam os bosques curtos, e fechados) se
divisavam. (DALINCOURT, 1975, p. 39).
Os extremos cuidados, que so inimaginveis hoje, adotados naquelas circunstncias e a parcimnia com que foram tratados os primeiros lotes permitiram que, no ano de 1564, apenas trinta anos aps a introduo das primeiras cabeas em So Vicente, a Cmara Municipal de
So Paulo baixasse lei onde determinava que os pecuaristas pagassem
impostos pelo gado. O Governo portugus impunha a arrecadao de
uma determinada quantia mas deixava a critrio de cada Capitania ou Cmara Municipal a deciso de como fazer o recolhimento desses valores.
(AMED e NEGREIROS, 2000).
A criao de gado bovino no deixou de ser importante fonte de
renda para o tesouro portugus. No incio, o principal negcio era a produo do couro, j que a carne no tinha muito valor, devido diminuta
populao local.
39

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

O peso da carga de impostos pode ser verificado atravs dos seguintes dados:
Vale cada couro em cabelo
De o salgar e secar
De o carregar ao curtume
De o curtir
Importa tudo
Um meio de sola vale
De o carregar praia
Do frete do navio
De descarga para alfndega
Por todos os direitos
Importa tudo

2$100
$200
$040
$600
Rs2$940
1$500
$010
$120
$010
$340
Rs1$980

Fonte: (ANDREONI apud AMED e NEGREIROS, 2000, p. 69).

Verifica-se que impostos cobrados pelo fisco portugus representavam mais de 20% sobre o couro curtido e mais de 30% sobre o couro
em cabelo.
Aps a expulso dos holandeses do Brasil, apesar da vitria conseguida, o Governo portugus
annuiu (...) para a assignatura da paz definitiva, em pagar a
Hollanda uma indenizao de 4.000.000 de cruzados, cerca de L
6.000.000 em dinheiro, assucar, tabaco, e sal, tal o empenho que
havia de pr cobro a situao! Para essa indenizao ocorreu o
Brasil com 1.920.000 cruzados pagos em 16 annos, a razo de
120.000 cruzados por anno. (SIMONSEN, 1937, p. 182, T.1).

Como de praxe, eram os colonos portugueses espalhados pelas


colnias ultramarinas quem deveriam arcar com o pagamento da indenizao. Alm do que j era cobrado do couro, acresceu-se a cada arroba
de carne de vaca consumida na vila 20 reis a arroba; (...) o couro da vaca
10 ris; cada cabea de gado descida para Santos 1 tosto. (SIMONSEN,
1947, p. 139-140. V.2).
40

Paulo Marcos Esselin

J prximo da Independncia, e com a famlia real no Brasil, os


tratados de 1810, posteriormente revistos em 1818, estabeleceram novo
imposto de carne verde, que era constitudo pela contribuio de cinco
ris em cada arrtel de carne fresca de vaca e desde 1805 a contribuio
sobre a carne passou a ser de 320 ris sobre cada rs abatida (...). (AMED
e NEGREIROS, 2000, p. 193).
Esses so dados expressivos e indicam as boas qualidades dos campos, das guas e os prticos vaqueiros paulistas garantiram rpido crescimento do gado bovino em So Paulo.

1.2. O Gado Bovino de So Vicente a Assuno no


Paraguai
Quando Alvar Nunez Cabea de Vaca, Governador da Provncia
gigante do Paraguai, foi preso e deportado de Assuno, o rei Carlos V
nomeou Juan de Sanbria seu sucessor, mas este faleceu antes da partida.
Substituiu-o frente do empreendimento seu filho Diogo de Sanabria.
A expedio, que deixou o porto de San Lucar de Barrameda em 1552,
compunha-se de trs caravelas e na tripulao vinham Dona Mencia Caldern, viva de Juan de Sanbria, com duas filhas; vrios representantes
da nobreza, dentre eles, o capito Juan de Salazar Espinosa, cabo da expedio, que havia sido deportado com Cabea de Vaca e que retornava
Assuno que ele mesmo havia fundado, e o Capito Becerra, acompanhado de mulher e filhos em nau de sua propriedade. Depois de uma
longa viagem, as embarcaes alcanaram uma paragem pouco abaixo de
Santa Catarina, atual Laguna. Na entrada da barra, o navio comandado
pelo Capito Becerra naufragou e os que nele viajavam salvaram-se, perdendo, no entanto, toda a sua carga.
Em Laguna, onde se encontraram as caravelas espanholas, houve
um desentendimento entre Juan de Salazar e o piloto-mor Hernando de
Trejo, tendo este, ao final, sido eleito chefe da expedio. Por conta disso,
retiraram-se para So Paulo vrios componentes da armada liderados por
Salazar.
41

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Em So Vicente, Juan de Salazar reencontrou-se com o Capito


Juan Daz de Melgarejo, que havia conseguido escapar das perseguies
de Irala no Paraguai e ali estava h quase dez anos, tendo contrado npcias com uma portuguesa. Juntos, desenvolveram as melhores relaes
com os moradores de So Vicente, tendo tentado obter, junto s autoridades do povoado, autorizao para conduzirem a Assuno, gado e ferro
que l escasseavam. o que se pode aduzir de uma carta que Salazar
escreveu ao Real Conselho das ndias, em julho de 1553, na qual pedia
autorizao para poder comprar, a peso de ouro, algum gado e material
de ferro. (BRUXEL, 1960).
Embora a autorizao tenha sido oficialmente negada, as relaes
comerciais entre os sditos das duas coroas naquela regio eram boas.
Em carta ao rei, em junho de 1553, Tom de Souza informa:Achei que
os de So Vicente se comunicavam muito com os castelhanos e tanto que
na Alfndega de V. A, rendeu este ano passado cem cruzados de direitos
de coisas que os castelhanos trazem a vender. (AMARAL, 1981, p. 8 e 9).
Por essa poca, no Planalto Paulista a euforia com as possibilidades da lavoura de acar j haviam sido desfeitas. Embora as condies
climticas e de solo fossem extremamente favorveis ao cultivo daquela
lavoura, a distncia dos mercados e o preo do frete inviabilizavam completamente o empreendimento. Por essa razo, no foi difcil aos dois espanhis convencerem os irmos Gis, proprietrios do Engenho Enguaguau e de grande rebanho vacum, a deixarem So Vicente com destino
ao Paraguai, com promessas de bons negcios naquelas longnqas terras.
Alguns obstculos esses espanhis e portugueses tiveram que superar para deixar So Vicente: as concepes polticas e econmicas vigentes na poca, baseadas no Pacto Colonial e que se constituam no
exclusivismo metropolitano ou na exclusividade do comrcio externo da
Colnia em favor da Metrpole, impunham uma srie de restries que
impediam que o colono estabelecesse relaes comerciais livremente sendo obrigado a realizar as trocas apenas e de acordo com os mecanismos
criados pela administrao portuguesa. A Metrpole, que circunscrevia
42

Paulo Marcos Esselin

a livre circulao de mercadorias, tambm impedia os deslocamentos da


populao, em geral, estrangeiros ou no.
Os dois espanhis haviam h muito solicitado permisso para deixar So Vicente, no entanto, ordens do Governador Geral proibiam a
sada, o que s seria possvel com determinao real. A esse respeito, Juan
de Salazar assim se manifestou:
Visto que de Portugal no vinha o despacho para nos deixar ir ao
Paraguai, e to ms esperanas de nosso remdio, e a necessidade de cada
dia maior e muitos incmodos que no podiam sofrer, tratei com CIPIO de GIS, filho de Lus de Gois, que havia pouco viera de Portugal,
para estar num engenho do pai, que vissemos ao Paraguai, porque dele
entendi ter vontade de faz-lo. (PORTO, 1954, p. 253, V.3).
Como as autorizaes do Rei portugus no chegavam, impacientaram-se todos e resolveram pela fuga5. Provavelmente em Maio de 1555
(...) a comitiva, que se compunha de dez soldados espanhis, seis portugueses, alm de Cipio de Gis e sua mulher, Joo Daz Melgarejo, Vicente de Gois, Capito Joo de Salazar e D. Isabel de Contreras, (...) e outras
trs mulheres casadas. (PORTO, 1954. p. 254, V. 3).
Certamente, essa comitiva foi acompanhada por um razovel nmero de ndios domesticados, que transportavam a tralha dos viajantes e,
alm de contriburem para um melhor roteiro pelas matas, eram soldados
e intrpretes. Esse trajeto, percorrido em um espao no inferior a cinco
meses, foi muito difcil; tribos hostis e feras foram enfrentadas; da, a
necessidade de o grupo ser reforado e bem armado.
Foi justamente essa comitiva, liderada pelos espanhis Juan Salazar, Juan Diz Melgarejo e os irmos Gis, que introduziu o primeiro
rebanho bovino no Paraguai, procedente do engenho da Madre de Deus.
5 Tom de Souza, 1 Governador Geral do Brasil, mandou interromper o caminho entre So
Vicente e Assuno em 1553, muito frequentado por portugueses e espanhis que atravs dele
faziam negcios de proveito para ambas as partes. Por esse mesmo perodo, deliberou fundar a
Vila de Santo Antnio da Borda do Campo com o intuito de prevenir aquela comunicao. A
partir de ento, somente com licenas especiais poderiam os moradores ir pela terra adentro.
(VIANNA, 1967, V.1).

43

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

De acordo com Ruy Das de Gusmn, teriam entrado com esse grupo
em Assuno sete vacas e um touro, conduzidos pelo vaqueiro de nome
Gaete.que llego com ellas la Asuncion com grande trabajo y dificultad
solo por el inters de una vacca, que se le senal por salario de onde quedo en aquella tierra un proverbio que dice son mas caras que las vacas de
gaete. (GUZMN apud ABREU, 1940, p. 2140, V. 4)
Essas sete vacas e um touro, acrescidos posteriormente por outro
reprodutor importado do Peru, teriam dado origem parte do gado que
muito mais tarde povoaria os pastos nativos do Paraguai, do Rio Grande
do Sul, Uruguai, Argentina e Mato Grosso do Sul.
Ainda foi levantada a hiptese de que a primeira expedio trazendo gado bovino para o Paraguai foi a de Cabea de Vaca, que no dia 2 de
dezembro de 1540 partiu de Cadiz transportando soldados, sementes, 46
cavalos e guas e algumas vacas. (ARAJO. 1986).
No entanto, nos registros deixados por ele no h qualquer aluso
introduo de gado bovino no Paraguai atravs das suas embarcaes.
(...) y all desembarcaron y sacaron los caballos en tierra, porque se
refrescasen y descansasen del trabajo (....) requiri el maestre el agua que
llevaba la nao capitana, y de cien botas que meti no hall mas de tres,
y habam de beber de ellas cuatrocientos hombres y treinta caballos (....)
Llegado que hobo el gobernador con su armada a la isla de Santa Catalina, mand desembarcar, toda la gente que consigo llevaba, y veintisis
caballos que escaparon de la mar, de los cuarenta y seis que en Espan
embarc, (....). (CABEZA DE VACA. 1981, p. 154-55-56).
Nem mesmo a expedio anterior, de Pedro de Mendonza (1537),
que lanou as bases da colonizao espanhola no Prata e embarcou em
suas naus cargueiras cem cavalos e guas destinados reproduo, alm
de cavalos de propriedade particular dos oficiais que devia ser no mnimo
outro tanto. (ARAUJO, 1986, p. 21), teria trazido gado bovino.
Embora os espanhis valorizassem sobremaneira esses animais,
tendo por isso Cristvo Colombo introduzido na Amrica os primeiros exemplares em 1493, no Haiti, na segunda viagem que havia feito ao
Novo Mundo (FIGUEIREDO, 1994), foi somente em meados do sculo
44

Paulo Marcos Esselin

XVI que entraram os primeiros bovinos no Paraguai. Isso em parte se


explica pelo isolamento em que se encontrava aquela regio em relao
aos demais plos de ocupao espanhola, como tambm comprova que
os cavalos foram introduzidos muito mais cedo devido ao combate com
grupos nativos.
Schmidl6, que participou da expedio de Pedro de Mendona com
destino regio platina e testemunhou a fundao de Buenos Aires e Assuno, tendo ainda participado da grande entrada na busca das fabulosas
riquezas peruanas, registrou as dificuldades dos primeiros conquistadores,
sobretudo em relao fome, tendo relatado a situao de penria que
levou cristos a praticarem a antropofagia, e tambm a condenao de dois
cristos morte por abaterem e se alimentarem da carne de um cavalo.
Enquanto aguardavam o gado bovino, e mesmo depois da sua chegada, durante o tempo de estruturao desse rebanho, quando o abate era
evitado para garantir o seu crescimento vegetativo, a dieta protica dos
espanhis tinha por base a carne de caa: veados, capivaras, emas, patos e
o pescado. (SCHIMIDL, 1947).
Alm da carne de caa, empreenderam algumas culturas adequadas
s zonas tropicais, o que constituiu a garantia econmica dessa ocupao.

1.3. O desenvolvimento da Pecuria no Paraguai


Segundo a verso7, entraram no Paraguai sete vacas e um touro,
oriundos de So Vicente e de propriedade dos irmos Gis. Mas teria sido
somente oito o nmero de animais introduzidos ou esse um nmero
simblico?

6 Ulrico Schmidl era um soldado bvaro, tendo no mximo 35 anos quando se alistou na armada de
Dom Pedro de Mendonza, primeiro Adelantado do Rio da Prata. Por alguns anos, permaneceu
na Amrica do Sul incursionando pelo Pantanal. So dele as primeiras descries dessa to
importante regio de Mato Grosso do Sul.
7 Entre os autores platinos h um certo consenso de que o casco inicial da pecuria no Paraguai
tem sua origem nessas sete cabeas introduzidas por Gaete. Sobre esse assunto ver ainda Emlio
A. Coni, Fulgencio Moreno, Efrain Martinez Cuevas todos citados na Bibliografia.

45

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

O General Ptolomeu de Assis Brasil, fazendeiro rio-grandense, fez


um estudo da progresso de um rebanho de oito cabeas considerando os
ndices de natalidade e mortalidade da poca e concluiu que: A quantidade mxima de gado produzido por aquele casco, em 15 anos, teria sido
de 450 cabeas entre touros e vacas, o que no condiz com a existncia
de grandes rebanhos assinalados no Paraguai, antes do reforo do gado
peruano. (BRASIL apud PORTO, 1954, p. 256, V. 3).
PRODUO
Anos

Casco

Vacas

Fmeas

Machos

Total

1555

13

1556

18

1557

18

24

1558

24

10

32

1559

32

13

42

1560

42

16

54

1561

54

20

70

1562

70

24

10

10

90

1563

90

30

12

12

114

1564

114

38

15

15

144

1565

144

48

20

20

184

1566

184

58

24

24

232

1567

232

73

28

28

288

1568

288

90

36

36

360

1569

360

114

45

45

450

Fonte: (BRASIL apud PORTO, 1954, p. 256, V. 3).


Previso do crescimento do rebanho em condies timas, sem mortes e sem abates de
fmeas e machos aptos procriao, com praticamente 100% de natalidade. A tabela
baseada no primeiro nmero simblico de 7 cabeas.

Em 1557, em Assuno, por ocasio do falecimento do Governador paraguaio Domingo Martnez de Irala, foi aberto o seu testamen46

Paulo Marcos Esselin

to com o arrolamento de todos os seus bens, relacionados por Aguirre


(1950, p. 363, V. 2).
Valor de las tierras y ganadas de los herederos del gobernador Domingo
de Irala en ................................................................................................................ 1577.
Las tierras de Itapua con su casa de palmas muy deteriorada 150 V.s
de lienzo
Una capoera la salida del pueblo la orilla del rio ....................................... 30 V.s
El sitio y casas de su morada encima de la barranca, junto a la Ig Mayor 700 V.s
Las cabezas de ganado Vacuno chicas y grandes qe andaban en el
campo .................................................................................................................... 150 V.s
110 cabras machos y hembras chicas y grandes ............................................... 110 V.s
25 cabezas de puercos ............................................................................................ 50 V.s
24 cabalgaduras chicas y grandes ....................................................................... 40 V.s
Nota: la casa tenia cubierta de teja y palmas pero ya deteriorada.

Apesar de Aguirre no informar o nmero de cabeas de gado


bovino deixadas por Irala em seu testamento, mas apenas o valor delas, o
demarcador espanhol, D. Felix de Azara, esclareceu, afirmando que em
sua chcara, o Governador paraguaio deixou 24 cabeas de gado vacum.
(AZARA, 1954 apud PORTO, p. 257, V. 3).
Embora pelo valor atribudo gadaria, se comparado ao das cavalgaduras, o nmero de reses do inventrio pudesse ser maior, visto que os
eqinos no tinham preo muito diferenciado dos bovinos, mesmo assim, pela evoluo do rebanho, o critrio cientfico adotado concluiu que
na data da abertura do esplio de Irala, em 1557, vinte e quatro cabeas
deveriam corresponder s oito introduzidas por Gaete. (PORTO, 1954,
p. 257, V. 3). Alm do mais ainda se tem notcia da existncia de outros
rebanhos, pequenos lotes, na posse de sitiantes e fazendeiros.
O general Nfrio de Chves, que de Assuno partira em agosto
de 1557, portanto dois anos aps a introduo do gado vicentino, deixava
aos cuidados dos xaraes, em cujas terras se internara, navios e canoas
com quantidades de gados maiores (GUZMN, 1954 apud PORTO, V.
3). Em 1573, Cristvo Pinto e Pedro de Espinar, que haviam falecido,
47

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

deixaram a seus herdeiros roas e vacas. (BLAS Garay Apud PORTO,


1954, V. 3).
Alm disso, Aguirre presta esclarecimento importante:
De lo dicho es visto que los ganados caballos y demas animales
bajaron de su estimacion casi de repente y por consiguinte que tuvieron
un procreo fecundsimo superior al de sus consumos y faltas. Lo fu en
tales trminos que los pocos aos se vi en estas provincias casi sin
valor por la bendicion de DIOS que lo multiplic en tanto numero, que
no habra habido pais en el universo que lo haya gozado mas abundante.
(AGUIRRE, 1950, p. 364, V. 2).
Todos os autores que fizeram pesquisas sobre a introduo do gado
bovino no Paraguai so concordes em afirmar que o gado vicentino, que
l chegou em 1555, era o nico que ali havia antes da entrada do rebanho
peruano. Consequentemente, todo aquele gado que ali estava apassentado
era muito superior ao que se podia esperar da reproduo de um touro e
sete vacas. Portanto, o gado introduzido pelos irmos Gis e pelos espanhis Salazar e Melgarejo foi muito superior a esse nmero.
Em 1556, um ano aps a introduo do gado de So Vicente, a cmara da cidade de Assuno baixara lei para que fosse cobrado o dzimo
do gado vacum de forma que para cada dez cabeas seria entregue uma
autoridade arrecadadora. (SALAZAR apud PORTO, 1954, V. 3).
Naturalmente que, quando a cmara baixou uma lei para cobrar
imposto sobre o gado, os estoques se justificariam para a adoo da medida, ou seja, o rebanho deveria ser muito superior a oito cabeas. No
sabemos si ese fu el nico ganado importado enconces al pas, slo se
tiene constancia de que en el decenio siguinte las vacas no eran muy escasas entre los vecinos de la ciudad. (MORENO. 1985, p. 125).
E ainda em 1578 Juan Garay ordena que: todos los seores de
vacas desde el ro Tobaty hasta el que sale de la laguna Tagu, hasta el rio
Paraguay, hagan corrales donde metan el ganado de noche y de da lo tenga en guarda, porque hacen dao a las zonas y labranzas. (VILLAMIL,
1969/70, p. 87, V. 13).
48

Paulo Marcos Esselin

Alm disso, os irmos Gis eram proprietrios de um grande engenho em So Vicente, Madre de Deus, na sesmaria das terras fronteirias a Enguaguau, herdado do fidalgo Pedro de Gis. (MADRE DE
DEUS,1975). Esses campos foram povoados com muito gado, pois tal
engenho foi formado com a perspectiva da produo da cana para o mercado europeu, o que justificava a necessidade de rebanhos bovinos para
os trabalhos de plantio, colheita e transporte da cana de acar.
(...) los ganados introducidos por los hermanos Gois nunca
pudieron ser menos de 40 a 50 cabezas y posiblemente un
nmero de alrededor de 70 vacas y 10 toros. En este ltimo caso,
y lo decimos como hiptesis de trabajo, las 7 vacas y el toro de
la leyenda sera el 10% del total, atribudo como recompensa al
tropero y cuidador, el tal Gaete, y para el caso de la primera cifra
este porcentaje andar en el orden del 25 o 20%. (...) Ptolomeu de
Assis Brasil, situ el procreo de las siete vacas y el toro de los Gois
en un mximo (ptimo y optimista) de 450 animales para 1569,
no es difcil suponer que la cantidad que yo establezco como ms
probable de animales realmente introducidos, diera un procreo
casi diez veces mayor, esto es de unos 4500 animales, o un poco
menos. (...) Lo que s parece ser una idea realista habida cuenta
que se considera que era suficiente para abastecer la poblacion de
Asuncin de ese entonces. (ASSUNAO, 1987, p. 151-152, V. 24).

Certamente que os Gis, quando decidiram pela fuga para o Paraguai, seduzidos pela possibilidade de enriquecimento, no o fizeram
deixando para trs o que tinham de mais caro, o seu gado que, ao invs
de oito, deveriam ser algumas dezenas de cabeas, como afianam as referncias anteriores.

1.4. A Entrada do Gado Peruano no Paraguai


Entre os espanhis de Assuno, aps a malograda entrada,
predominou, durante parte do sculo XVI, o desejo de estabelecer uma
ligao com o Peru e participar ativamente do comrcio que ali se desenvolvia.
49

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Ordinariamente, tudo faltava em Assuno. Estabelecer relaes


comerciais com os peruanos era antes de tudo uma necessidade urgente.
Enxofre, azeite, remdios, papel, nada era possvel obter no mercado de
Assuno. O grande sonho do Governador paraguaio Domingo Martinez de Irala passava a ser o de estabelecer uma estreita ligao com aquela
rica regio.
Aps vrias tentativas, em dezembro de 1548, Nfrio de Chves,
a mando de Irala, conseguiu chegar a Potosi e depois a Lima. A partir
da, estava definitivamente aberto o caminho para o Peru inaugurado por
Alejo Garcia8, o nufrago da expedio de Solis.
Com a abertura desse caminho, os assuncenhos esperavam fazer
a ligao com o Peru, tornando-o rota obrigatria por onde poderiam
conduzir tudo aquilo que produziam e de l trazer tudo o que lhes faltava,
inclusive metais preciosos. En esta poca hicieron tambien su aparicin
las primeras ovejas y cabras, conducidas desde Charcas, por el Capitan
Nuflo de Chaves. (MORENO. 1985, p. 124).
A prpria fundao do vilarejo de Santa Cruz em 1561, no Alto
Peru, por Nfrio de Chves, passou a ser o trajeto mais utilizado para o
deslocamento de Assuno a Lima: subia-se o rio Paraguai, entrava-se
no territrio de Chiquitos, indo at Santa Cruz, subia-se o altiplano at
La Plata (atual Sucre), prosseguindo at Lima. Foi atravs dessa rota que
Chves trouxe os primeiros ovinos e caprinos para o Paraguai.

8 Alejo Garcia, um dos nufragos da expedio de Juan Diaz de Solis, realizou uma jornada
notvel. Partiu de Santa Catarina por volta de 1523 e alcanou os contrafortes andinos; no seu
retorno com uma grande carga de metais preciosos, foi morto pelos nativos.

50

Paulo Marcos Esselin

MAZZA, Maria Cristina Medeiros. et al. Etnobiologia e Conservao do Bovino


Pantaneiro. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria. Centro de Pesquisa
Agropecuria do Pantanal. Corumb: 1994. p. 6.Rota Lima Assuno utilizada
pelos espanhis para levar os primeiros rebanhos bovino ao Paraguai.

Em 1558, foi nomeado Adelantado do Rio do Prata, pelo Vice-Rei


Garcia Lopes de Castro, o estancieiro Juan Ortiz de Zrate, na condio
de investir na Provncia 80 mil ducados da seguinte forma:
(...) fletar cuatro navos en Espaa, conducir 500 hombres, entre
labradores, menestrales y soldados con sus armas y municiones;
introducir en el pais, en los tres primeros aos, 4000 cabezas de
ganado vacuno y otras tantas de oveyas, 500 cabras y 500 cabezas
de ganado caballar - los cuales aseguraba poseer en sus dehesas de
Charcas y Tarija; (...). (BAEZ, 1991, p. 55).

Em sua ausncia, Ortiz Zarate, que se dirigiu Espanha com o


propsito de confirmar sua nomeao ao cargo de Governador do Para51

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

guai, encarregou o seu preposto Felipe de Cceres de conduzir os rebanhos do Alto Peru, o que aconteceu em 1568 pela via Santa Cruz de la
Sierra ao Alto Paraguai.
Junto con el ganado de Ortz de Zrate venan tambin los de
algunos conquistadores que regresaban a sus hogares; pero no
se conoce el nmero total de animales que alcanz a llegar a la
Asuncin. En el viaje, lleno de incidentes que culminaron en la
matanza de Itatn, con la muerte del infatigable Chaves, se perdi
gran cantidad de vacas. Antes de llegar a Santa Cruz ya haban
desaparecido 600; muchas otras se perdieron en el pasage del ro
Paraguay; y los expedicionarios mismos corrieron grandes peligros
en que descollaron el valor y la entereza del mestizo asunceno Juan
de Salazar hijo del fundador de la capital paraguaya. (SALAZAR
apud MORENO, 1985, p. 125).

Pelo relato de Salazar, duas situaes chamam a ateno. A primeira, trata-se dos incidentes no Itatim, em que os nativos atacaram a caravana de Ortiz Zarate, com a conseqente perda de grande quantidade de
gado bovino que se desgarrou do lote principal. Supostamente, esses animais, nas enormes extenses do Pantanal sul-mato-grossense, teriam se
multiplicado lei da natureza e dado origem pecuria local. No entanto,
no h qualquer referncia a rebanho bovino na regio antes da entrada
de colonos e jesutas espanhis no fim do sculo XVI e comeo do XVII.
A segunda, diz respeito ao esclarecimento que Salazar presta. Segundo ele, junto ao rebanho de Ortiz Zarate vieram tambm os de outros conquistadores, no significando isso, porm, que havia nessa leva
mais de quatro mil cabeas de gado vacum, j que o Governador teria
trs anos de prazo para conduzir esses animais a Assuno e, segundo
tropeiros prticos, conduzir uma boiada to grande seria muito difcil. O
recomendado seria um nmero nunca superior a 1500 cabeas. (RIBEIRO, entrevista 1999).
Para se ter um exemplo das dificuldades de se transladar o gado
de um determinado lugar a outro, devido ao desconhecimento ambiental,
52

Paulo Marcos Esselin

pode-se recorrer a Roberto Simonsen para reforar a idia de que eles


foram introduzidos em lotes consecutivos:
Os que as trazem so brancos, mulatos, e pretos e tambem ndios,
que com este trabalho procuro ter algum lucro. Guio-se, indo
huns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e
outros vem atraz das rezes tangendo-as, e tendo cuidado, que no
sahio do caminho e se amontoem. As jornadas so de quatro,
cinco, e seis legoas, conforme a commodidade dos pastos, aonde
ho de parar. Porm, aonde h falta dagua, seguem o caminho de
quinze, e vinte legoas, marchando de dia e de noite, com pouco
descano, at que achem paragem, aonde posso parar. Nas
passagens dalguns rios, hum dos que guio a boiada, pondo huma
armao de boi na cabea, e nadando, mostra s rezes o vo, por
onde ho de passar. (SIMONSEN. 1937, 237/8, T. 1).

Em uma situao atpica como a de 1568, em que a caravana enfrentou todos os tipos de problemas, como constantes ataques de indgenas, travessia de rios caudalosos, ataques de predadores e de ofdios e, de
certa forma, o desconhecimento da regio, que implica na falta de pastagens e aguadas, muitos animais no resistiram, tornando praticamente
impossvel a travessia. Em correspondncia, Pedro Dorantes diz que o
gado trazido por Felipe de Cceres, ao chegar ao rio Paraguai, teve extraviadas 130 vacas, havendo proprietrios de mais de 50 que s receberam
5. (DORANTES apud PORTO, 1954, V.3). A informao importante
na medida em que se pode estabelecer que apenas 10% do gado conduzido por Cceres chegou ao seu destino final, embora no conste nas fontes
consultadas o nmero de animais que teria deixado o Peru.
Aps ter sido confirmado em Madri por Felipe II no cargo de
Adelantado, Ortiz de Zarate desembarcou em Assuno e contraiu com
Garay a obrigao de introduzir no Paraguai 4000 vacas, 50 cabras e 300
cavalos e guas dentro de trs anos. (BRUXEL, 1960). Retomava-se em
linhas gerais o mesmo contrato que havia sido feito com Felipe de Cceres, que certamente no o havia cumprido integralmente.
53

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Garay tambm no conseguiu cumprir o contrato que havia assinado, devido sua morte em 1583.
Foi justamente Juan Torres de Vera e Aragn, genro de Ortiz Zarate, quem introduziu 4000 ovelhas e 8500 cabeas de gado vacum no
Paraguai, sem se referir origem desse gado. (SIERRA, 1956, T. 1).
Seja como for, al finalizar el siglo XVI, existian varias haciendas
particulares para la cra de animales, que adoptaron desde entonces la
denominacin de estancias [no Paraguai]. (SIERRA, 1956, p.40, T. 1).
Reforado o gado assuncenho com esse novo aporte, o desenvolvimento
da pecuria foi rpido e, mais tarde, dele saram as sementes que povoariam todo o sul do continente, comeando por Santa F e seguindo pelo
Chaco, Buenos Aires, Uruguai e sudoeste de Mato Grosso.
No Paraguai, o bovino encontrou as melhores condies de clima
e solo, imensos campos de pastagens nativa e boas aguadas, e por isso
a pecuria se expandiu muito rapidamente, pois alm de uma estrutura
favorvel, o mercado consumidor insignificante no forava seus proprietrios ao abate dos animais e, medida que no eram comercializados, os
rebanhos aumentavam substancialmente. As estncias iam sendo fundadas e o pas, coberto com o casco do gado vacum. Embora no houvesse
mercado para a carne do gado vacum, Las cantidades elevadas de cuero
vacuno exportado superior al numero de cabezas faenadas para el consumo interno, nos indica que se sacrificaba el ganado para aprovechar solo
el cuero. (ARAD, 1973, p. 184). Naturalmente, havia ainda o mercado
para o sebo, casco e chifre que tinham largo uso em vrias indstrias europias sobretudo a da construo naval e alimentcia.
Os tigres que se criam por aquelas terras, so incontveis, assim
como o a multido de gado vacum silvestre que se acha a seu
dispor. Tanto que o que aqui se paga por uma galinha, l se
mostra suficiente para a compra de uma vaca, da qual s o sebo
chega a pesar arroba e meia e por vezes at duas. (MONTOYA.
1985, p. 27).
Es indudable que con la introduccin en masa del ganado al
Paraguay por dicho Adelantado [ORTIZ ZARATE] qued
54

Paulo Marcos Esselin

cimentada esta riqueza que en poco tiempo h sido la base de la


economa privada y pblica durante la colonizacin. Las ciudades,
las mismas reducciones y los fuertes del Rio de la Plata han
tenido en la ganadera el medio de subsistencia y la verdadera
fuente econmica. (...). En abril 14 de 1573, Martin Oru en una
correspondencia le dice al Consejo Real de Indias que desde la mar
hasta la Assuncin est la mejor tierra de la descubierta para la cra
de ganado y segn l mismo ya por ese ao era grande el nmero
de vacas (...) en el Paraguay. (MENDOZA, 1922, p. 630-631, T. 73).

Os estoques de gado bovino contriburam decisivamente para a


fundao de todas as cidades de alguma importncia na Provncia do Rio
da Prata. Apenas para Buenos Aires foram mil caballos, quinientas vacas
y otros animales menores. (BAEZ, 1991, p. 58).
Afonso de Vera y Aragn fundou, no Chaco, Concepcion de Bermejo, conduzindo desde Assuno at a provncia trezentas vacas e cinqenta juntas de guas. Em 1558, novamente Juan Torres de Vera dirigiu-se ao sul para fundar Corrientes conduzindo vacas, ovelhas e mil e
quinhentos cavalos. (MENDOZA, 1992, p. 631, T. 73).
Apesar das imensas dificuldades que existiam para o translado do
rebanho de um extremo ao outro, os conquistadores do sculo XVI, em
sua afanosa busca por riquezas, transitaram em vrias direes do continente americano, levando consigo o gado bovino e eqino.

1.5. Quadro Natural de Mato Grosso


O Estado de Mato Grosso do Sul, localizado no Centro-Oeste brasileiro, tem uma rea de cerca de 357,4 mil km2 , sendo seu territrio delimitado pelos rios Paran, a leste, e Paraguai, a oeste. Politicamente tem
suas fronteiras demarcadas a leste com So Paulo, Minas Gerais e Paran;
ao norte, com os estados de Mato Grosso e Gois; a oeste, com Bolvia e
Paraguai e, ao sul, com o Paraguai.

55

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

CAMPESTRINI, Hildebrando e GUIMARES, Acyr Vaz. Historia de Mato


Grosso do Sul. 4 ed. Campo Grande: Academia Sul Mato-grossense de Letras
e Instituto Histrico e Geogrfico de Mato Grosso do Sul, 1995. Capa. Mapa do
Estado de Mato Grosso do Sul, com pases e estados fronteirios.

A regio escolhida como definitiva pelos espanhis para se instalarem fazia parte do Pantanal, hoje pertencente ao sudoeste estadual, na
fronteira com a Bolvia e o Paraguai. La tierra llamada Ytatyn aparece
pela primeira vez na relao que fez Domingo Irala ao descrever, no final
de 1542, sua primeira entrada em terras pantaneiras. Desde aquela poca,
a regio do Itatim descrita como um lugar plano, ameno e habitado por
numerosas e diferentes etnias indgenas.
56

Paulo Marcos Esselin

Desde o incio do sculo XVI, os conquistadores espanhis penetraram nessa regio atravs do rio Paraguai em busca do Eldorado peruano. Foram eles os primeiros a registrar o fluxo das guas, como tambm
as lendas que cercavam a regio. Ulrico Schmidl, soldado alemo vindo
para a Amrica na expedio de Pedro de Mendonza e que esteve na
Companhia de Alvar Nunez Cabeza de Vaca em busca da serra de Prata,
revela:
Entonces marchamos hacia las sobredichas amazonas; esas son
mujeres com un [solo] pecho y vienen a sus maridos tres o cuatro
veces en el ao y si ella si embaraza por el hombre y es [nace] un
varoncito, lo manda ella a casa del marido, pero si es una ninita, la
guardan con ellas y le queman el pecho derecho para que ste no
pueda crecer; el porqu le queman el pecho es para que puedan
usar sus armas, (...). (SCHIMIDL, 1947, p. 86-87).

E, em seguida, ele aponta dificuldades de se locomover no Pantanal naquele perodo: (...) nosotros caminamos durante siete das entre el
agua hasta la cinta y la rodilla. Pero la tal agua era tan caliente como una
agua caliente que ha estado sobre el fuego. (SCHIMIDL, 1947, p. 88).
Naturalmente, os espanhis que escolheram o perodo das guas
para promover a sua entrada em busca do Eldorado foram obrigados a
retornar devido s cheias anuais do Pantanal.
Alvar Nuez deixa tambm registrado o fenmeno das inundaes
por ele testemunhado:
Por volta de janeiro as guas comeam a subir, e chegam a subir at
seis braas por cima das barrancas e se estendem por toda a plancie
terra adentro, parecendo um mar. Isso acontece religiosamente
todos os anos, cobrindo todas as rvores e vegetaes da regio.
Assim passam quatro meses, que o perodo em que dura a cheia,
de janeiro a abril.(CABEZA DE VACA, 1987, p. 193/4), no
entanto, as cheias podem se estender at junho.

Mas, somente no sculo XVIII, o fenmeno do Pantanal e do mar


de Xaras foi esclarecido. A denominao de Pantanal, dada grande
57

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

plancie do sudoeste sul-mato-grossense, extremamente imprpria. O


termo Pantanal significa pntano, paludoso, brejo, regio encharcada,
grande pntano, terra alagadia, regio inundada por guas estagnadas.
(FERREIRA, 1995, p. 478).
Os conceitos acima no correspondem realidade geogrfica. A
regio do Pantanal, sob as enchentes anuais, no fica totalmente submersa ou se transforma em um atoleiro. Esse fenmeno acontece nas vrzeas
dos rios. A faixa sujeita a inundao relativamente estreita: sua largura
mdia calculada em 25 km. Nos rios menores, como Miranda, Taquari
e Cuiab as faixas alagveis so mais estreitas.
O Pantanal constitui-se na maior plancie sedimentar inundvel
contnua de gua doce do mundo, tendo 140.000 km2 que se estendem
na direo norte e sul de Cceres (Mato Grosso) a Porto Murtinho (Mato
Grosso do Sul). Tem duas estaes bem marcadas, a seca e a chuvosa. o
ciclo das guas que regula a vida de sua fauna e flora. Com uma variao
mnima de altitude, a grande plancie inundada a cada ano com maior
ou menor intensidade e durante at seis meses. (NOGUEIRA, 1990).

58

Paulo Marcos Esselin

Mapa do Pantanal Sul-Mato-Grossense


Plano de Desenvolvimento Econmico e Social do Mato Grosso do Sul. Cenrios
at o ano de 2005. Secretaria de Estado de Planejamento, de Cincia e de
Tecnologia. Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, p. 56.Pantana, bero da
pecuria sul mato grossense.

A vida da regio ordinariamente marcada pelo fluxo e refluxo


das guas do rio Paraguai. Quando elas sobem, ocasionadas pelas chuvas que acontecem nas regies mais baixas ou em virtude das grandes
59

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

precipitaes nos planaltos vizinhos e nas cabeceiras dos rios, inundam


os campos, obrigando os animais silvestres a se deslocarem para as reas
mais altas, que so elevaes discretas e alongadas, arenosas, caracterizando diques lacustres ou fluviais, ultrapassando em menos de 10 metros a superfcie vizinha normalmente inundada. Geralmente cobertas
por capes de mato, transformam-se em pequenas ilhas durante as cheias
de maior amplitude e nelas se refugia o gado no rigor das enchentes. So
tambm chamadas de cordilheiras pelos naturais. (SOUZA, 1973).
Quando as guas baixam, os animais descem, porque a terra, antes
inundada, se revigora e os campos se cobrem do verde igual das pastagens
riqussimas. Surgem as baas e os corixos, como so chamados os canais
pelos nativos.
As baas so lagoas de forma circular, elptica ou irregular, dispersas na regio; quando sazonais, passam a denominar-se barreiros. Em
alguns casos, as lagoas tm gua salgada e, ao baixar o nvel hidrosttico,
deixam uma coroa de evaporitos precipitados ao seu redor, chamam-se,
nesta hiptese, salinas, graas sobretudo ao elevado teor de cloreto de
sdio, e so procuradas pelo gado que necessita do sal. (VALVERDE,
1972).
O relevo da regio bastante homogneo e uniforme, com uma
paisagem plana e linear; h, porm, algumas excees, entre as quais o
macio, do Urucum, a 25 km de Corumb. Orientado no sentido nordeste-sudoeste, que inclui numerosas elevaes - Serra de Santa Cruz,
Rabicho, Piraputangas e Tromba dos Macacos, prolonga-se para o sul
pela Serra de Albuquerque, que mais rebaixada e fica prxima sede
do distrito desse nome, com altitude de at 1665 metros no seu ponto
culminante, na Serra de Santa Cruz. Erguendo-se sobre uma plancie que
fica oitenta metros sobre o nvel do mar (VALVERDE, 1972), o macio
composto sobretudo por arcsios, protegidos em seus altos por camadas
de jaspilito que intercalam outras de hematita compacta e criptomelana,
estas constituindo a mais importante jazida de mangans do hemisfrio.
(SOUZA, 1973).
60

Paulo Marcos Esselin

A respeito do macio, descreveu Alvar Nuez CABEZA DE


VACA, em 1542:
Estas sierras estn peladas, y no cran yerba ni rbol ninguno, y
son bermejas; creemos que tienen mucho metal, porque la outra
tierra que est fuera del rio, en la comarca y parajes de la tierra, es
muy montuosa, de grandes rboles y de mucha yerba; y porque las
sierras que estn en el ro no tienen nada de esto, paresce seal que
tienen mucho metal, y ans, donde lo hay, no cra rbol ni yerba; y
los indios no decan que en otros tiempos pasados sacaban de all
el metal blanco (...). (CABEZA DE VACA, 1984, p. 244).

Os espanhis desde Cabeza de Vaca alimentaram sonhos de encontrar metais, no Urucum, sobretudo a prata, to procurada por eles;
no entanto, aquelas montanhas guardavam apenas - e to somente - o
mangans e o ferro, muito pouco valorizados na poca.
A serra do Urucum forma ao seu longo um elo de elevaes outrora contnuas que, desde o macio Chiquitano, na Bolvia, se prolongam para sudeste pelas serras do Jacadigo e Urucum at a Bodoquena e
chegam acerca de 600 metros de altura. Puderam essas serras se manter
elevadas graas s espessas camadas de jaspilito que as recobrem. A parte
inferior de tais elevaes formada por calcrios e dolomitas da srie
Bodoquena. (VALVERDE, 1972).
A leste, o Itatim limita-se com a Serra de Santa Brbara na regio
de Aquidauana, composta de silbes, arenitos e tilitos, pertencentes ao Planalto dos Alcantilados e integrantes do Planalto Central Brasileiro. Ao
sul, tem o conjunto formado pela Serra de Maracaju-Amambai, constituda por derrames balsticos. (ALMEIDA & LIMA apud GADELHA,
1980).
Na verdade, essas serras so prolongamentos da serra de Maracaju
e formam uma cadeia contnua que rasga todo o territrio sul-mato-grossense, desde o extremo sul at a serra do Roncador, em Mato Grosso, separando as bacias do rio Paran e Paraguai e ao mesmo tempo a Plancie
Pantaneira do Planalto Central Brasileiro.
61

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Mapa da Serra de Maracaju que separa as bacias do rio Paraguai e Paran, e ao


mesmo tempo a plancie pantaneira do Planalto Central Brsileiro.
Plano de Desenvolvimento Econmico e Social do Mato Grosso do Sul. Cenrios
at o ano de 2005. Secretaria de Estado de Planejamento, de Cincia e de
Tecnologia. Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, p. 56.

Essas reas separadas pela serra, do ponto de vista da cobertura


vegetal, pela diversidade do clima, topografia e constituio geolgica,
so completamente diferentes.
No Planalto, na Bacia do rio Paran, predominam relevos aplanados, domnio de vegetao rasteira, onde os arbustos so raros e as
rvores praticamente ausentes.
62

Paulo Marcos Esselin

A vegetao florestal est reduzida mata de anteparo. Existem


a duas reas distintas: campos limpos e naturais e a zona dos campos
serrados, que abrange as bacias dos rios Pardo, Verde e Sucuri. Aqui,
uma regio nos interessa mais de perto: so os campos de Vacaria, onde
predominam os campos limpos e que mais tarde abrigariam milhares de
cabeas de gado vacum e cavalar em suas ricas pastagens, sobretudo a
partir de meados do sculo XIX.
A regio propriamente de campinas, chamada de Campos de Vaccaria,
pode ser assim descriminada em suas linhas geraes. Comeando em
Campo Grande, continua-se pelo Anhanduhy abaixo at a altura
das cabeceiras do Santa Luzia, dahi segue pelo ribeiro chamado
Alavanca at o rio Vaccaria, corta este e o Brilhante e segue pelo
Dourados; abranje toda a parte da sua bacia que faz divisa com
o Amambahy e attingindo ento a borda Oeste da chapada vai
seguindo-a ao Norte at de novo alcanar o Anhanduhy e o Botas
em Campo Grande. (LISBOA, 1909, p. 117).

63

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Mapas dos Campo de Vacaria com as Serras que separam as Bacias dos rios Paran
e Paraguai.
MARTINS, Gilson Rodolfo. Breve painel etno-histrico do Mato Grosso do Sul.
Campo Grande: UFMS/FNDE, 1992. p. 16.

Em fins de 1835, os Barbosa chegaram vila de SantAna do Paranaba e depois fundaram uma fazenda em Santa Rita do Rio Pardo.
Em 1851, chegaram aos campos de Er, depois chamados de Vacaria.
(CORRA, 1999).
O que teria levado mudana do nome de campos de Er para
campos de Vacaria? Essa foi uma deciso dos pioneiros vindos de Minas
Gerais, pois o gado oriundo das misses, como mais frente se ver,
64

Paulo Marcos Esselin

estava todo concentrado no Pantanal, pelo menos at meados do sculo


XVIII, quando comeou a ser conduzido para outras regies.
Essa uma rea onde a vegetao predominante o campo, intercalado por bosques das florestas antes integrantes da mata de Dourados.
Ali, do ponto de vista pedolgico, tem-se uma intercalao de solos: numa
regio, ele formado provavelmente da decomposio do basalto, o que
permite uma alta fertilidade e onde existiam as grandes coberturas florestais, e em outra regio, predomina o arenito, cuja vegetao tornou-se
mais arbustiva e recebeu o nome de campos. O colonizador, ali chegando
e encontrando um cenrio de campos largos e abertos, tem a idia imediata de que aquelas reas naturais so ideais para o desenvolvimento da
pecuria. Essa certamente a origem do nome, devido aos campos naturais, lugar propcio ao pastoreio e similar aos campos gachos, os pampas.
Nessas reas, o solo revestido por um tapete de gramneas, dentre
as quais se destacam o capim-mimoso, cuja folhagem tenra e nutritiva dos gneros Paspalum e Panicum; o capim-branco felpudo, variedade
Andropogan, embora seja uma gramnea dura e mais resistente seca e
s queimadas, e o capim-flexa Iristachya Leiostachya, tambm de tima
qualidade e que, segundo os primeiros colonos, era a principal gramnea
primitiva desses campos e foi substituda mais tarde pelas anteriormente
citadas por serem mais tenras. (AYALA E SIMON, 1914).
O campo limpo formado predominantemente pelo estrato herbceo e por algumas espcies sub-arbustivas, as quais so tortuosas e
alcanam at 8 metros de altura como o jatob volchisia, carand, lixeira,
paratudo, carvo vermelho e outras. Essas rvores so medocres, de galhos retorcidos, pequena copa, com casca grossa pouco abundante, esto
geralmente bastante distantes uma da outra, o que permite a circulao
dos rebanhos eqinos e bovinos e mesmo o trabalho de um vaqueiro;
alm disso, no impede a reproduo das gramneas, que recebem a luz
solar. (LISBOA, 1909).
Os solos do Planalto de Maracaju Campo Grande, sobretudo da
Vacaria, esto intercalados com reas de bosques que so de excelente fertilidade, porm as reas de campo, compostas de arenitos, embora apre65

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

sentando pouca fertilidade, permitem o desenvolvimento de gramneas,


as quais formam os pastos naturais que serviram para a alimentao do
gado bovino sobretudo a partir da metade do sculo XIX.
So vrios os rios que cortam esse territrio, e quase todos tributrios do rio Paran. Dentre eles, destacam-se os rios Brilhante, Ivinhema,
Dourados, Santa Maria e Vacaria.
Do outro lado da serra de Maracaju, est o Pantanal, a sudoeste do
atual Estado de Mato Grosso do Sul. A enorme depresso paraguaia, com
seus 140.000 km2 constitui uma regio extremamente rica e plenamente
apta ao desenvolvimento da pecuria, da criao do gado bovino sem o
emprego de qualquer tecnologia.
Para os sertanistas e monoeiros que palmilharam todo o sul de
Mato Grosso nos sculos XVII e XVIII, Vacaria era a regio que os espanhis chamavam de Provncia Jesutica do Itatim ou Campos de Xerez,
onde encontravam o gado disperso das misses. H entre os historiadores
um consenso quanto s fronteiras dessa localidade, sobretudo dentro das
fontes primrias, que seriam: ao norte, os rios Taquari e Mbotetei; ao
oeste, o rio Paraguai; ao sul, o Apa, e a leste a Serra de Maracaju. (nua
do Pe. Diogo Ferrer 1663, in CORTESO, 1952). Essa Vacaria acima
descrita corresponde hoje plancie sedimentar do Pantanal.
Ao se referir a Vacaria, no fim do sculo XVII, um sertanista descreve a rota para se chegar aos campos de gado.
Sobindo o rio Pardo tomando a barra do Anhandohy e Anhangohy
que so dous rios nascidos de huma madre, navegandoo estes asima
th as vertentes que caem (...) adonde se acha por memoria algum
gado vaccum, chamado hoje as vacarias, (...). Correndo os tempos
e continuando aqueles aventureiros as suas conquistas chegaro a
navegar o rio Paragoai descendo huns pelo Coxiim outros pello
Matetu outros pelo Cahy que todos saem das mesmas vacarias e
intrando pelas grandes bahias que acompanho as margems deste
grande rio (...). (TAUNAY, 1930, p. 3 e 4).

Pelo relato, no h nenhuma dvida de que os rios mencionados


so o Miranda e o Aquidauana, onde anos antes haviam se desenvolvido
66

Paulo Marcos Esselin

os ncleos de ocupao espanhola, Santiago de Xerez e as misses jesuticas do Itatim, onde os sertanistas encontraram o rebanho bovino e, por
isso, nomearam a regio de Vacaria.
E ainda durante muitos anos permaneceram os paulistas nos
campos de Vacaria e nos de Xeres. Ali, naqueles campos os
componentes de uma bandeira, chefiada por Salvador Moreira,
fundaram arraial e estabeleceram cultura de manuteno. Por
volta de 1690, Braz Moreira, irmo daquele chefe bandeirante,
insubordinou-se juntamente com alguns sorocabanos reclamando
providncias punitivas contra o insubordinado foi lavrado ato
por indisciplina 28 de julho daquele ano. No prprio arraial. O
incidente, documentado pelo escrivo Antonio Alvares Maciel,
expressava para registro histrico, a existncia da posse efetiva
das glebas do Vacaria pelos Bandeirantes. Na regio subserrana
do Mbotetei (Miranda), Pascoal Moreira e Andr de Zuniga, no
decurso de 03 lustros entre 1678 e 1695, se haviam mantido em
seus campos empaliados, com a sua frota de canoas em trfego de
pra. (ALMEIDA, 1951, p. 49).

O sistema ecolgico do Pantanal, as enchentes e inundaes tm


seus aspectos benficos: transportam material erodido das regies tributrias, refertilizando o solo, mantendo a umidade da superfcie, limpando
os campos e eliminando as pragas. Durante a vazante, quando as guas
descobrem os campos, o Pantanal se transforma em um tapete verde;
as pastagens se renovam e brotam as gramneas e outras forrageiras de
alto valor nutritivo. A pastagem nativa o principal recurso florstico
da regio, abrangendo desde a vegetao aqutica arbrea com registro
de 240 forrageiras no gramneas e 200 gramneas. (POTT et al. apud
MAZZA, et al 1994, p. 30).
Dentre as gramneas, as que mais se destacam so:
O capim mimoso (Paratheria prostrata Griseb), o capim de
bezerro (Paspalum repens, Bergins), o arroz de pantanal (Oriza
sabulata, Ness), o capim de Angola (Panicum spectabile, Ness),
o capim de praia (Paspalum fasciculatum, Wild), a Reimaria
brasiliensis (Sclecht), a Sectaria gracilis, que se associam ao
67

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

mimoso, o cip de leite, (....), o flechilha-do-pantanal, e inmeras


gramneas apreciadas pelo gado. Resistem s enchentes, ainda
que no possuam, como a grama-do-pantanal, a propriedade de
acompanhar a elevao do nvel dgua. Prsa pelas razes ao solo,
flutua com as suas flhas, merc do alongamento apropriado do
clmo, quando lhe seja necessrio. Ao descer das guas, acamamse as hastes j dispensveis, que se travam e retm os elementos
de outras plantas, formando os batumes, colcho ffo e humoso,
donde brotam as forrageiras nas estiagens. Quando porem, o gado,
faminto de tal alimento, agrupa-se, alm da tolerncia, em reduzida
rea, que a exiba, no tarda a manifestar-se o consumo excessivo
pela medrana do algodo-do-pantanal (Ipomea fistulosa, Mart).
(CORRA FILHO, 1955, p. 11)

O Pantanal, atravs dos seus campos nativos, oferecia alimentao


aos rebanhos bovinos e eqinos que adentravam em suas terras, alimentao essa rica em clcio e em fsforo, este sobretudo nas reas alagveis, o que lhes assegurou uma grande eficincia reprodutiva. Ou seja: as
condies locais eram extremamente favorveis ao desenvolvimento da
pecuria.
As paisagens caractersticas do Pantanal so as aglomeraes de rvores da mesma espcie, como o carandazal, buritizal, peuval, paratudal
e o acurizal, termos locais para designar os mais variados cenrios tpicos
da regio. O carand (Copernicia Cerifera, Mart. ou Copernicia australis)
predomina nessas formaes, de Corumb para o sul, s vezes associado
ao Paratudo (Tecomo caraiba, Mart), sobretudo bordejando as baas. Os
buritis so generalizados, mas formam grandes associaes puras no alto
Paraguai e, notadamente, no alto Guapor, ocupando os pantanais em
largas extenses. (ALMEIDA E LIMA, 1959).
O acurizal, o peuval, o pirizal so na verdade, um brejo ou paludal,
com vegetao especial de gramneas e ciperceas e constitui vegetao
das corixas. (LISBOA, 1909).
As matas hidrfilas cobrem as margens dos rios e aguadas; dentre
elas sobressaem a figueira, a imbaba (Cecropia palmata), o caj-mirim
(Spondias lutea), gameleiras (Ficus sp), cedros, peuras, cambars, gua68

Paulo Marcos Esselin

nandis passam a compor a floresta em que se salientam os quebrachos


(Schinopsis balam sal e Schinopisis lorentzii, Eng.) e o quebracho branco
(Aspidosperma Chaquensis). Esta ltima planta tem importncia econmica considervel, como tanfera empregada no preparo do couro. (ALMEIDA & LIMA, 1959).
Nas reas no sujeitas s inundaes ou menos alagveis, avulta,
em solo arenoso, o cerrado, constitudo de rvores esparsadas entre as
quais se estende capim s utilizado pelos animais, quando no podem
ir pastar nas baixadas. Nessas reas aparece o pequizeiro (Caryocar brasiliensis, a lixeira Curatela americana), o pa-terra, o angico, a aroeira,
a peva, a taiva, o cedro, o gonalo-alves, o guatambu, o jacarand, o
carvo branco, a peroba e o guanandi, sendo que deste ltimo se utilizam
os canoeiros para obter o breu e madeira. (CORRA FILHO, 1955).
Nos terrenos periodicamente alagveis da plancie pantaneira
emergem pequenos morros calcrios cobertos por formao florestal em
que se destaca a barriguda (Charisia ventricosa, nees 8 Mart). So numerosos os cips nessa mata, em que algumas plantas so providas de
espinhos. Esses morros so geralmente limitados por uma coroa de carandazais. (VALVERDE, 1972).
Quanto aos rios, so vrios os que cortam a regio, destacando-se
entre os tributrios do Paraguai os seguintes: Taquari, Miranda, Negro,
Aquidauana, Apa, Coxim, Cuiab e Verde.

69

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Mapa das Bacias do Rio Paraguai e Paran


MAZZA, Maria Cristina Medeiros. et al. Etnobiologia e Conservao do Bovino
Pantaneiro. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria. Centro de Pesquisa
Agropecuria do Pantanal. Corumb: 1994, p. 12.

A maior parte da plancie constituda por solos hidromrficos,


geralmente de baixa fertilidade. Ao norte, predominam solos com hori70

Paulo Marcos Esselin

zonte subsuperficial argiloso, cuja poro central formada por sedimentos arenosos transportados pelo rio Taquari e o sul, por sedimentos argilosos depositados principalmente pelos rios Miranda, Negro e Paraguai.
(MAZZA et al, 1994).
Quanto ao clima, a classificao de KOPPEN enquadra o clima
do Pantanal na mesma categoria do Planalto Central: Aw, ou clima das
savanas. (VALVERDE, 1972). As precipitaes, no total de 1164,6 mm
no perodo chuvoso, restringem-se ao mnimo de 60 milmetros mensalmente nas secas, entre junho e comeo de setembro. As temperaturas
mximas chegam a 40,6 e 40,8 C, em Corumb e Aquidauana, respectivamente, e a mnima, apenas em alguns dias do ano, prxima de zero. As
temperaturas mdias, no entanto, indicam 30,8 30,9C e 19,7 - 18,1C.
(CORR FILHO,1969).
As bruscas quedas de temperatura no Pantanal, entre os meses de
junho a setembro, com a ocorrncia de geadas, tm conseqncias prticas importantes. Embora pouco estudadas, constituem uma das causas
da ausncia de bernes no gado da regio, que escapa, assim, a um parasito
comum nos trpicos que reduz o peso e estraga o seu couro. (VALVERDE, 1972).
Graas s condies ecolgicas da regio, os rebanhos bovino e
eqino desenvolveram-se muito bem, encontrando as melhores condies de pastagens nativas e terra extremamente salitrosa, graas sobretudo ao elevado teor de cloreto de sdio; so os chamados barreiros9,
essenciais ao rebanho.
Embora, no Pantanal, os efeitos da baixa disponibilidade de forragens sobre os animais maior do que em outras regies tropicais,
porque um perodo de inundao antecede a estao seca. No per-

9 Chamam-se barreiros algumas baixadas salino salitrosas de cor acizentada puxando para o branco.
Todos os animais buscam com verdadeira sofreguido esses lugares, no s os mamferos, como
aves e rpteis. O gado lambe o cho e atolando-se nas poas, bebe com delcia aquela gua e come
o barro. Quando s vezes voltam noite desse pascigo, vm com o ventre empanzinado e as vacas
como se estivessem prenhas. (TAUNAY, 1923, p. 65 e seg).

71

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

odo de cheias, por expanso dos corpos dgua, as reas de pastejo


ficam parcial ou completamente submersas. No perodo de seca,
as pastagens, j sofridas por permanecerem 2 a 3 meses sob a gua,
tm seu valor nutritivo reduzido pela seca e frio. Essa alternncia
entre excesso e falta tem srias conseqncias no desenvolvimento
da vegetao e animais. (MAZZA et al, p. 30, 1994).

Essa reduzida disponibilidade de pastagem no baixo Pantanal,


devido s inundaes cclicas, no afetou profundamente os primeiros
rebanhos introduzidos pelos colonizadores, uma vez que eles permaneceram, a princpio, na regio alta. Alm disso, o hbito de cercar as terras
prtica recente entre os pantaneiros, o que permitiu por longo perodo a
movimentao dos rebanhos para o cerrado, ao longo do qual se estende
o capim s utilizado pelos animais quando no podem ir pastar nas baixadas, ento alagadas. Ou seja, em razo das cheias ou das secas, quando
o gado no encontrava condies de vida numa rea, procurava outra
que lhe assegurasse tal condio. Alm disso, os rebanhos introduzidos
no Pantanal, a partir do final do sculo XVI e comeo do XVII, tiveram
um longo perodo para lentamente irem se adequando s condies do
ambiente, at porque uma dessas regies em que homens, animais e
plantas tiveram que se condicionar aos fortes imperativos do meio geogrfico para sobreviver. (GADELHA, 1980, p. 53).
Desde a primeira tentativa de fixao por parte dos espanhis na
regio onde foi fundada a cidade de Santiago de Xerez, ficaram registros
da sua insalubridade. El sitio era poco sano y dio em breve sepultura a
los principales pobladores, escapando los que, por mas viles, hubieran
hecho menos falta. (LOZANO, 1873, p. 97).
Os que escaparam eram certamente os naturais ou mestios bem
adaptados s condies locais. Nos terrenos periodicamente alagveis da
plancie e o calor abrasador, so criadas as melhores condies para a
reproduo de mosquitos que infestam toda a regio.
Noites houve em que nuvens de mosquitos nos atormentavam
de modo mais cruel (...) picada de borrachudos e o assalto dos
72

Paulo Marcos Esselin

insuportveis micuins. Peores do que stes flagelos o dos


mosquitos plvora, animalejos quase microscpicos. A impresso
que les deixam exatamente a que causa a sbita exploso, sobre
um ponto da epiderme, de um gro de substncia de que tem o
nome. Terrvel cevandija!. (TAUNAY, B, sd., p. 155-156).

Corra Filho acrescenta:


Ainda na atualidade, quem pernoite a margem do Paraguai, ou
de qualquer dos seus afluentes, no tarda em convencer-se da
supremacia sinistra do assaltante alado, que pousa aos bandos
na pele do paciente, perfura-a com seu rgo apropriado, para
chupar gulosamente o sangue. Entra-lhe pelos ouvidos, pelas
narinas e at pela bca, hora das refeies, quando aberta para
receber a comida, com a qual se mistura, maneira de condimento
inesperado. (CORRA FILHO, 1955, p. 14).

O 2 tenente de artilharia Affonso dEscragnalle Taunay, que participou da Fora Expedicionria organizada para expulsar os paraguaios
do solo sul-mato-grossense, deixou registrado ainda: A fora apos haver
descrito enorme circuito de 2.200 km perdera um tero dos quadros graas a fadiga da marcha e a insalubridade do clima nos pantanaes de Mato
Grosso, onde a dysenteria, a malaria e o beriberi dizimaram os infelizes
soldados e oficiais. (TAUNAY, A., sd., p. 252). As limitaes ambientais
da regio ficam mais elucidativas ainda nos registros de Cndido Xavier
de Almeida e Souza, que bem deu a dimenso das dificuldades enfrentadas por aqueles que se decidiram ali se estabelecer.
no havia terras para marchar e nem agoas para navegar (...) nesta
regio mais do que em outra alguma he inflexivel o rancor dos
irracionais contra o homem, desde a desobediencia de Ado: em
terra as feras, as serpentes, as furmigas, e as mesmas arvores pella
maior parte armadas de espinhos denego a sua comunicao:
nos Rios, os jacars, os Sucuris, as Giboias e os mesmos peixes
conspiro contra a Humanidade. A preciza privao do S. S. nome
do Snr., o ardente calor proprio da zona torrida, a transpirao
dos suores, a vexao dos insetos; o halito insofrvel do almiscar
dos jacars, seus horrorozos bramidos, e a horrvel figura destes
73

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

monstros, represetnam a vista e a imaginao huma verdadeira


effige do lado terrvel do Infernal Archeronte. (SOUZA, 1949, p.
115 e 41).

Embora com todas essas evidentes dificuldades para a fixao, o


Pantanal sul-mato-grossense foi escolhido pelos primeiros colonizadores
espanhis para se estabelecerem; possivelmente, a paisagem exuberante
compensasse tanto sacrifcio.

1.6. A Introduo dos Primeiros Rebanhos no Sul do


Antigo Mato Grosso (Sculos XVI e XVII)
O Pantanal sul constituiu-se territrio em que precocemente penetraram conquistadores espanhis e portugueses, sendo detidos em suas
andanas pela agressividade do seu meio ambiente, enchentes anuais, milhes de insetos, felinos, rpteis e outros, somados ao calor de mais de 40
graus que fazia a vida insuportvel.
Mesmo assim, os campos do Pantanal so extremamente promissores para o criatrio, devido boa qualidade das pastagens, salinidade
do solo e aptido para o desenvolvimento da pecuria, mas constituram-se apenas em uma coincidncia. Na verdade, os espanhis queriam
apenas ocupar um territrio extremamente estratgico para ligar seus
destinos aos dos peruanos detentores das ricas minas de prata. Essa era
tambm uma ocupao geopoltica para evitar a entrada dos portugueses
em territrios espanhis ricos em metais.
Apesar de, segundo Aguirre, as primeiras correspondncias estabelecidas entre os pioneiros representantes da Coroa enaltecerem as propriedades da terra, que eram boas para apascentar todo tipo de gado e
muito frteis, na verdade o que estimulava era a proximidade com o Peru
e as possibilidades que o local abria para o comrcio.
O trajeto Lima-Santa Cruz-Assuno passou a ser utilizado com
certa freqncia por colonos que se dirigiam ao sul conduzindo ovinos,
bovinos e eqinos. Durante as jornadas, muitos animais eram apreendi74

Paulo Marcos Esselin

dos pelos indgenas e conduzidos para a regio da bacia do rio Paraguai.


O prprio Nfrio de Chves, por sua vez, espalhou pelo banhado do
Xaras - Pantanal de Mato Grosso do Sul - e pelos lhanos, grande quantidade de touros e vacas. (ARAJO, 1986).
Embora essa tenha sido uma prtica dos espanhis, a de lanar
gado vacum em determinadas regies para mais tarde estimular a sua
ocupao, como fez o Governador do Paraguai, Hernandarias, em 1628,
na ilha de So Gabriel, atual Uruguai. (VALENTE, 1989), no parece
que o mesmo tenha ocorrido no Pantanal por iniciativa do Governador
de Santa Cruz de la Sierra.
Segundo Arajo, a suposta origem do gado do Pantanal sul-mato-grossense seria esta: os indgenas investiam contra as caravanas, apossavam-se dos rebanhos e os conduziam aos campos de pastagem nativas,
onde, abandonados, multiplicavam-se livremente como ocorreu com a
caravana de Ortiz Zarate e, do outro lado, Nfrio de Chves teria introduzido outros rebanhos na regio.
Possivelmente, esse gado a que alude Arajo no tenha chegado
ao Pantanal. Todos aqueles que palmilharam essas terras no sculo XVI
e deixaram registro - padres, jesutas, franciscanos e bandeirantes aventureiros - no deram nenhuma notcia a respeito de bovinos e eqinos.
No entanto, havia por essa poca um grande movimento de paulistas e
assuncenhos nessas reas, em busca de indgenas para suas lavouras, e havia tambm trocas comerciais entre eles, e assim, os rebanhos no teriam
passado despercebidos.
Los encuentros ms antiguos de que tenemos noticia ocurrieron en
tiempos de Domingo de Irala. La proximidad de los portugueses y
el gnero de sus actividades no sorprendieron a los espanoles. Los
portugueses llegaban por una ruta que era bien conocida, no slo
por haberla andado, anos atrs, ALEJO GARCA, sino porque
la haban recorrido Alvar Nuez Cabeza de Vaca y la gente de
la armada de Sanabria: doa Mencia Caldern, Juan de Salazar y
Bartolom Justiniano. (GANDIA, 1936, p. 16).
75

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Provavelmente, as primeiras cabeas de gado bovino entraram no


territrio sul-mato-grossense em 1580, isto aceitando-se essa data como
sendo a correspondente primeira fundao de Santiago de Xerez, por
Ruy Diaz de Melgarejo no baixo curso do rio Ivinhema.
De Asuncin salieron los capitanes a fundar ciudades en nombre
de la santsima Trindad, padre e hijo y espritu santo. En cada expedicin
llevaban soldados agricultores, artesanos caballos, vacas, armas e instrumentos de trabajo. (VASCONSELLOS, 1978, p. 62).
Os espanhis partiam em caravanas; carretas puxadas por juntas
de bois levavam sementes para o cultivo e diversos outros utenslios para
o incio de suas atividades; pequenos rebanhos bovinos e eqinos eram
conduzidos por ndios, tanto uns como outros, imprescindveis e que desempenhavam importante papel: alm de serem usados nos labores da
lavoura, preparo do solo e colheita, constituam o mais importante meio
de transporte e fonte de protenas.
Embora no haja registro da entrada de bovinos e eqinos, aparenta que, onde houvesse um territrio exigido pelos espanhis para estabelecer uma colonizao to rudimentar, certamente cavalos e gado faziam
parte das instalaes bsicas de qualquer assentamento colonial pioneiro.
Nessa primeira tentativa de fixao em terras do hoje Estado de
Mato Grosso do Sul, no lograram xito os pioneiros. Os constantes
ataques dos ndios hostis presena do colonizador, como tambm as
distncias e dificuldades de manter relaes comerciais com Assuno,
acabaram por afast-los da recm-fundada cidade. (ESSELIN, 2000).
Apesar das dificuldades provocadas pelos constantes ataques indgenas, febres e sezes, a regio despertava grande interesse entre os
espanhis radicados em Assuno, pois era ideal para a explorao do
trabalho e estava na rota dos tesouros peruanos.
Fundada novamente em 1600, s margens do rio Aquidauana, com
contingentes oriundos de Ciudad Real e Vila Rica e como era de costume entre os espanhis, levando vacas e cavalos, a cidade foi assentada
definitivamente em um stio s margens do rio Aquidauana, cerca de 30
76

Paulo Marcos Esselin

lguas acima da confluncia desse ltimo com o Miranda. (ESSELIN,


2000, p. 47).
Assentados, os espanhis desenvolveram uma economia de subsistncia, ao lado de uma pequena produo de algodo, milho, feijo,
mandioca e atividades criatrias. Por vezes, exportavam seus produtos
para o mercado de Assuno, Tucuman e principalmente para as redues
jesuticas do Guara, Ciudad Real e Vila Rica do Esprito Santo. Situada
a 80 lguas de Santa Cruz de la Sierra, era uma vila pobre, que mantinha
contatos espordicos com Potosi, e a sua populao espanhola nunca foi
superior a 60 vecinos em seu melhor momento. (ESSELIN, 2000).
Embora fosse um povoado extremamente pobre, sem um produto
que despertasse interesse nas demais colnias espanholas, no entanto, o
rebanho bovino e eqino se desenvolveu muito bem. Possua vultosa
gadaria, alm de fartas lavouras. (TAUNAY, 1961, 2 ed., p. 62, T. 1). A
ajuda vinda de Assuno parece que era freqente no s em armamentos
mas tambm em gado bovino, o que permitiu a rpida estruturao desse
rebanho em Santiago de Xerez.
En 1615 ejerciendo como Alguacil Mayor de la provincia recibe
papeles de la Audiencia referente a la encomienda de indios de
su padre el general Ruy Daz de Guzmn. Se le ordena organizar
una jornada contra los indios Itatines y el 17 de septiembre recibe
ayuda del gobierno de Asuncin, peltrechos de guerra y luego el
11 de octubre llegan bastimentos y ganados vacunos, para ya enviar
a los soldados de la ciudad de Santiago de Jerez. (GUZMAN,
2000/2001, p. 93).

Outro fator que contribuiu para se acreditar que em Santiago de


Xerez havia uma significativa quantidade de gado bovino o fato de que
Gabriel Ponce de Leon ali se estabeleceu com o direito de exportar couros do gado vacum para as demais provncias. (GUZMAN, 2000/2001).
A cidade, porm, enfrentou muitas dificuldades, pois, mesmo sendo a via mais fcil e mais rpida para atingir os tesouros peruanos, a presena dos guaicurus e paiagus nas rotas impediam a livre circulao e o
77

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

comrcio regular. Afastada dos demais ncleos espanhis, a cidade no


conseguiu prosperar e seus habitantes sobreviveram enfrentando grandes
privaes e sofrendo constantes ataques dos nativos.
No ano de 1600, Xerez tinha acabado de ser transladada para as
margens do Mbotetei, quando os Mbaya promoveram portentoso ataque
e quase destruram a cidade.
Despus de la destruicion de la ciudad espaola de Xerez, la mayor parte de los Mbaya volvio a sus antiguos asientos al oeste del gran rio,
mientras una pequen parte quedaba en la region conquistada. (KERSTEN, 1967, p. 67).
Ao atacarem a cidade espanhola, os indgenas contriburam para o
incio da disperso de eqinos e bovinos por toda a plancie do Pantanal.
A inteno dos indgenas, a princpio, no era o roubo do rebanho, pois
o uso de animais de cela, sobretudo dos eqinos, entre os indgenas, mesmo os guaicurus, s teve incio nos meados do sculo XVII, aps quase
cem anos do primeiro contato destes com os espanhis introdutores dos
animais no sculo XVI.
Foi necessrio um tempo histrico para uma mudana cultural to
drstica em um povo. At se tornar um hbito transformar-se em um
componente, e ser caracterizado como a figura do ndio cavaleiro, decorreram algumas dcadas, at mesmo para que houvesse cavalo em nmero
suficiente para que essa idiossincrasia se transformasse em comportamento tipicamente cultural.
Los primeros caballos que tuvieron los mbay fueron pocos y mui
malos, y robados una noche en las inmediaciones del pueblo de
Ypan, em 1672, y habindoles gustado volvieron al mismo pueblo
seis meses despus y robaron mayor porcin con algunas yeguas.
Todava no son buenos jinetes y aungue muchos se han procurado
frenos de hierro los ms lo usan de palo. Sin aparejo ni lazo
manejam sus caballos que son muy mansos porque los montan
desde que maman. (AZARA, 1990, p. 125).

Pelas informaes de Azara, possvel concluir que o incio do uso


do cavalo pelos guaicurus data de meados do sculo XVII, oportunidade
78

Paulo Marcos Esselin

em que eles no tinham ainda a destreza e a maestria com que ficaram


conhecidos em sua lida diria com esse animal, como tambm que o roubo dos eqinos e do gado bovino passou a ser uma prtica comum entre
esses guerreiros. A partir dessa poca, passaram a dispor de rebanhos que
se abrigavam no Pantanal e que se multiplicavam extraordinariamente.
No entanto, o impulso mais forte para o desenvolvimento da pecuria no Pantanal veio juntamente com os jesutas, que ali se instalaram a
partir de 1628. Fugindo das invases dos bandeirantes paulistas na regio
do Guara, atual Estado do Paran, os padres entravam em Mato Grosso
para desencadear o processo de reduo dos ndios na regio do Itatim,
muito conhecida dos espanhis e habitada do rio Miranda at o rio Apa
pelos itatins, embora este nome englobasse outras parcialidades diversas
como os uaras, iguaras, guaxaraps e outros. (GADELHA, 1980).

79

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Itatim rea ocupada pelos espanhis no final do sculo XVI


BAEZ, Cecilio. Histria Colonial del Paraguay y rio de la Plata. Assuncion: Carlos
Schauman Editor, 1991, s/n.

J h algum tempo, os moradores de Santiago de Xerez rogavam


pela presena de missionrios na regio para introduzirem na f os ndios
insubmissos que lhes atacavam freqentemente e impediam o crescimento e desenvolvimento da cidade. Os religiosos chegaram em 1628, no
80

Paulo Marcos Esselin

com o propsito de servir ao colonizador mas, sim, com o fim de estabelecer misses estveis em locais determinados e afastados das aglomeraes coloniais.
Os padres receberam amplos poderes para reunir os naturais em
povoados, governarem-nos sem qualquer dependncia das cidades e fortalezas vizinhas e se oporem em nome do Rei a quem quisesse sujeitar os
novos cristos ao servio pessoal dos espanhis sob qualquer que fosse
o pretexto. (MONTOYA, 1985). O propsito dos jesutas era fazer dos
indgenas, cristos.
Quando os padres iniciaram seu trabalho no Itatim, as aldeias das
mais diversas faces estavam dispersas pelas florestas, sendo que cada
uma delas reunia em torno de 100 a 200 famlias, que dispunham de reas
que lhes permitiam viver perfeitamente bem. Esses guaranis, que eram
agricultores e cultivavam milho, mandioca, batata doce e feijo, completavam a sua alimentao principalmente com produtos da caa, pesca e
a coleta de arroz silvestre, mel e palmito. O algodo nativo era colhido e
fiado pelas ndias, que ainda se dedicavam cermica, em cujas peas preparavam sua alimentao diria. (FERRER, in CORTESO, 1951, V. 2).
Antes da conquista, no possuam animais domsticos, exceo
de patos, papagaios e macacos. A sua permanncia entre os colonizadores
foi que permitiu, bem mais tarde, adotarem o galinheiro e a criao de
bovinos, eqinos e caprinos.
Entre os indgenas, as terras pertenciam ao coletivo, ou seja, a todos os membros de uma aldeia, sendo que cada famlia tinha um lote
particular, cultivado para o seu sustento. O crescimento demogrfico e
o esgotamento do solo devido ao uso de tcnicas rudimentares, como o
emprego sistemtico do fogo antes do desmate e posteriormente com a
coivara, obrigavam os indgenas a procurarem novos campos.
Ao adentrarem em uma nova comunidade e decidirem pela reduo
e excluso do modelo de aldeamento tradicional, os padres foram colocando o indgena sob o jugo da Igreja, e o seu sucesso dependia, antes de
mais nada, do rpido desenvolvimento da agricultura tradicional indgena.
81

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

As redues que se formaram no Itatim se organizaram no mesmo


formato que as demais redues de guaranis do Paran. Os povoados
eram formados por palhoas rsticas no meio da aldeia, e cada agrupamento desse tinha reas cercadas para criao de aves domsticas para o
abate. Os campos estavam reservados para o cultivo de cereais e algodo
e os pastos nativos serviam as manadas de ovelhas, cabras, mulas, alm
do gado vacum e cavalar. (Documentos para a histria da Argentina,
1929, p. 725/26, T. 20).
verdade, porm, que o esfro mais rduo, nos primeiros tempos, ter sido aplicado no na criao de uma agricultura, mas para
formar agricultores, com os caadores guerreiros das antigas tribos
nmades: Era-se mesmo coagido, nos primeiros tempos, a no
deixar ao cuidado dles os bois de que se serviam para a lavoura,
com receio de que, por preguia, no se dessem o trabalho de os
desatrelar, quando o servio acabava, ou os fizessem em pedaos
para com-los. (CHARLEVOIX apud LUGON, 1976, p. 124).

Assim, antes da pregao do evangelho e de fazer dos indgenas,


cristos, era necessrio transformar toda a sua tradicional base material,
era necessrio lavrar a terra e, alm disso, de ensinar as novas prticas de
cultivo e de trabalho. A fixao do indgena, por si s, criava novas necessidades, e a principal delas era a produo de alimentos em grande escala
para suprir as necessidades dos membros da coletividade. Cobrir a nudez
dos ndios implicava na produo do algodo e era isso o que de certa
forma mais preocupava os jesutas. Para eles, seria o primeiro sinal de
transformao do brbaro. Tem-se aqui a veste e o traje que, ao nascer,
concede a natureza ao ser humano, sendo necessrio da parte dos padres
um cuidado solicito em fazer cobrir o que possa ofender a olhos castos.
(MONTOYA, 1985).
Era necessrio tambm desenvolver as habitaes, construir igrejas e casas. A casa comum, ou casona, deveria ser abandonada para se
eliminar de vez no olhar do jesuta a incidncia do pecado. Com isso, a
indstria da construo sofreu um rpido desenvolvimento e sempre es82

Paulo Marcos Esselin

teve muito ativa pelo contnuo aumento dos ndios aldeados. Tambm se
construram embarcaes de transportes, pequenos barcos, carros de boi,
arados de madeira e galpes para armazenar a produo.
O bovino e o eqino tornaram-se, dentro de um aldeamento, bens
de valor inestimvel, pois era com eles que se preparava o solo para o
cultivo, que se fazia arao, gradagem, tratos culturais e colheita. No
havia outras enxadas, seno as omoplatas de cavalos e de bois. (AZARA
apud LUGON, 1976). Cada uno tiene sua yunta de buyes para la labranza. (Documentos para la Histria Argentina, p. 734, 1929, T. 20). Todo
transporte da produo do campo para os armazns, da madeira para a
construo de casas, de carros de bois ou embarcaes, s era possvel
com o auxlio dos animais de trao. Alm de tudo isso, no princpio de
um aldeamento era a sua carne que compensava a insuficincia de qualquer gnero alimentcio.
Por experiencia vieron los Missoneros que no bastavan para que
tuvieran la subsistencia asegurada tanta muchedumbre de gente las
sementeras y cosechas, que por granizos, por falta de lluvias
o por la irremediable negligencia de los cultivadores, resultaban
escasas; y as hubieron de pensar en procurar animales, in especial
ganado vacuno, que ya en tanto numero se habia multiplicado en
las posesiones de los espaoles. (Documentos para a histria da
Argentina, p. 203, T. 20).

Nessa empresa, o primeiro passo era o de garantir aos nefitos a


alimentao, sem a qual fracassava toda tentativa de mant-los aldeados.
Qualquer proviso que faltasse era motivo para que se ausentassem para
a selva ou para os rios onde pudessem saciar sua fome.
O gado, embora muito importante, no era muito numeroso, pois
o provincial recomendava aos padres que criassem gallinas por la dificultad q ay de tener carne. (Pe. ZURBANO, in CORTESO, 1951, p.
66, V. 2).
No Itatim, a princpio, os padres enfrentaram muitas dificuldades
para obterem uma oferta regular de alimentos. O inimigo invisvel da
83

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

agricultura era o clima, de modo que em determinados momentos toda a


produo era perdida, ora pelo excesso de chuvas, ora pela seca, ora pelas
geadas.
Essas catstrofes ambientais foram registradas pelo padre Diego
Ferrer: En el Itati al principio padecieron los indios grandissima hambre, porque demas de la seca universal que avia avido dos aos aquel
mismo no se les avia elado dos vezes lo sembrado, (...). (Pe. FERRER,
in CORTESO, 1951, p. 4, V. 2).
Sobre essa mesma situao, escreveu o padre Diego Ferrer ao superior das misses em Assuno dois anos aps:
Es increible, cunto se han arruinado en este tiempo nuestra
esperanza y nuestro bienestar. Para no decir nada de la sequa del
ao pasado, la cual quem todas nuestras sementeras, cay este ao
tanta lluvia, que qued inundada toda la rgion. [...] Me sorpriendi
este mal tiempo en el campo abierto, y me tuve que refugiar en un
racho muy estrecho, donde deb permanecer quince semanas.
Dos cosechas se perdieron, y los pobres indios reducidos tuvieron
que desparramarse por montes y campos en busca de algo que
comer. Adase que no haba esperanza de un socorro desde
la Asuncin, ya que las aguas imposibilitaron el viaje por tierra,
y los asaltos de los enemigos el viaje por agua. (BOROA in
RAVIGNANI apud GADELHA, 1980, p. 246).

Quando os padres encontravam clima e solo que permitiam o cultivo de cereais, vegetais e frutos que se desenvolviam na Europa, como
trigo, batata, ma e pra, rapidamente dispunham de uma boa oferta
para atender aos nefitos, como ocorreu no Paran, Uruguai e Rio Grande do Sul. No entanto, no Itatim, eles se defrontavam com uma natureza
inspita e cujo clima quente impedia o desenvolvimento das tradicionais
culturas europias; alm disso, o total desconhecimento das condies
ambientais impediu o rpido desenvolvimento da agricultura. Enquanto
na Europa o clima bem definido, com quatro estaes e grande amplitude trmica anual, inverno frio, com queda de neve, e vero ameno, com
a precipitao de chuvas distribuindo-se uniformemente durante o ano,
84

Paulo Marcos Esselin

- no Itatim as temperaturas so quentes e as reas dominadas por massas


de ar quente equatoriais e tropicais. Apenas no curto inverno ocorre a penetrao de frentes frias, que se diluem rapidamente, fazendo retornar o
calor. Notam-se duas estaes do ano, o vero mais quente e geralmente
chuvoso e o inverno, menos quente e seco, geralmente resultando dficit
hdrico para os vegetais. (MAZZA et al 1994).
Dada essa situao, os padres foram obrigados a introduzir mais
rebanhos bovinos, aproveitando-se dos privilgios em pastagens naturais
que a terra oferecia. O jesuta, ao lanar mo do gado bovino e cavalar
para desenvolver suas redues entre os ndios itatins, estava lanando,
sem o saber, as bases da pecuria mato-grossense e sul-mato-grossense,
como fizera no Rio Grande do Sul e Uruguai.
Com a abertura de propriedades rurais, o indgena foi incorporado
disciplina do trabalho, o que mais tarde favoreceu a posse desses imensos territrios pela coroa portuguesa e pelo imprio brasileiro.
Embora a agricultura no Itatim tenha levado alguns anos para se
fortalecer, nunca foi abandonada, constituindo-se em preocupao rotineira entre os padres que, enquanto no conseguiam uma produo estvel de alimentos, recebiam continuamente ajuda de Assuno. Seis anos
haviam se passado desde que os religiosos iniciaram o aldeamento e ainda
no haviam conseguido uma produo que pudesse atender sua demanda
interna.
El ano de 1634 fu muy triste para las cuatro reducciones del
Itatn. Estn ellas situadas en las cercanas del rio Paraguay, en un
lugar vistoso y frtil. (...) Habiales enviado el rector de la Asuncion
animales vacunos, tanto para los Transportes, como para la
agricultura, mientras com mucha habilidad, y com buen resultado
se dedicavan a la instruccin religiosa de los indios, juntando se
cada dia a los ya reduzidos, los dispersos por las selvas atraino los
nuestros Padres com agasajos, e regalillos. (Documentos para la
Histria Argentina, 1929, p. 529/30, T. 20).

Somente a partir da dcada de 40 que os padres foram se familiarizando com os caprichos climatricos do Pantanal e obtendo sucessivos
85

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

xitos com os mais variados cultivos. Em todo esse processo, o gado


bovino teve uma importncia preponderante para garantir a presena dos
jesutas no sul de Mato Grosso. Sem ele, dificilmente os padres teriam
conseguido aldear os nativos e os colonos no teriam se fixado; ele foi
o motor de todos os transportes, a trao para a agricultura e a fonte de
protena para os habitantes das aldeias nascentes. A introduo de equipamentos mais produtivos em substituio queles empregados pelos indgenas possibilitaram o aumento das reas cultivadas. A intensificao da
agricultura, que sempre floresceu nas redues, permitiu a estruturao
dos rebanhos. O abate sem critrio que envolvia fmeas aptas procriao foi substitudo pelo descarte apenas de machos ou algum outro espcime estropiado, o que permitiu o crescimento vegetativo do rebanho.
No perodo de 1645 e 1647 o Padre Ferufino registra o xito da
misso:
En las reducciones q arriba dixe de S. Ignacio y Nra S de fe reciden
cinco P.s donde exercitan nros ministerios en el mismo modo y
forma q dixe de las rred.es del Parana y del Uruguay, y se les han
luzido bien sus trabajos en el copioso fruto q han crecido com buen
numero de Indios q los Pes. No sin riesgo de sus vidas e inevitables
fatigas han sacado de los esconderijos de los montes y reducidalos
al gremio de la Iglesia. [...]. (FERUFINO in CORTESO, 1951,
p. 77, V. 2).

Embora as redues que se formaram no Itatim espelhassem o que


a Companhia de Jesus havia desenvolvido no Paran - e no Rio Grande
do Sul no sculo XVIII - aqui elas ganharam uma feio completamente
diferente. Na regio missioneira do sul, havia verdadeiros ncleos urbanos e uma economia agropastoril rigorosamente organizada, com a utilizao da mo-de-obra indgena, pelos jesutas. No Itatim, isso nunca
aconteceu: o perodo de existncia dessas redues foi em torno de vinte
anos, mesmo assim com intervalos em que os padres foram obrigados,
por um motivo ou outro, a abandonar a misso, deixando-a sem qualquer
trabalho missionrio.
86

Paulo Marcos Esselin

Nos momentos em que a Companhia de Jesus mais ateno deu s


redues do Itatim, ela disponibilizou apenas cinco padres para atender
uma rea superior a 100.000 km2 , o que de certa forma impediu a catequese em massa. Alm disso, os padres enfrentaram forte resistncia dos
indgenas, o que no aconteceu no Guara, atual Paran, onde havia uma
hegemonia dos ndios guaranis e estes sempre foram mais suscetveis ao
trabalho missioneiro. Aqui, as tentativas com os ndios guaicuruss, agachis, paiagus despendeu energia do projeto sem qualquer resultado prtico. Por essas razes, os produtos religiosos do Itatim so extremamente
insignificantes, sobretudo quando comparados aos de outras regies.
As misses do Itatim foram invadidas pelos bandeirantes paulistas
em duas ocasies, 1632 e 1648. Na primeira, os bandeirantes ameaaram
a cidade de Santiago de Xerez mas a populao no ofereceu resistncia e
uniu-se aos invasores. O tenente D. Diogo de Orrego e outros cidados
guiaram-nos at as redues do Itatim, recentemente organizadas, levando grande parte cativa dos ndios aldeados. (ESSELIN, 2000).
Aps a invaso, muitos desses castelhanos passaram para a Capitania de So Paulo com suas famlias e de posse de muitas peas indgenas,
mas, na pressa de deixar a cidade, temendo represlias das autoridades
paraguaias e da prpria Companhia de Jesus, deixaram na campanha chamada Vacaria grande quantidade de bovinos que no conseguiram reunir.
(LEME, 5 ed., 1914, T. 1).
Na segunda vez, em 1648, os padres jesutas foram obrigados a
abandonar a reduo, incapazes de enfrentar os invasores em condies
to desiguais, j que no tinham armas para se defenderem de ataques to
portentosos.
As agresses promovidas pelos bandeirantes parece que eram
sempre esperadas pelos padres, que nunca eram pegos de surpresa,
mas as correspondncias entre eles revelam, alm de suas preocupaes
cotidianas, o cuidado que demonstravam com seu gado. Desde mediado
octubre hasta todo henero no falten espias de confianza porq si el
Portugues viniere no nos coja descuydados y en caso q venga retirase
87

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

en primer lugar la chusma y cosas y ganado (...). (ZURBANO in


CORTESO, 1951, p. 67, V. 2).
O gado constitua algo de tanta importncia que, juntamente com
os nefitos, era o que primeiro deveria ser retirado para evitar que casse
nas mos dos bandeirantes e depois, no caso de um realdeamento, a sua
organizao no se tornasse algo to difcil.
Ao abandonarem o Itatim em 1649, os padres jesutas viram-se
obrigados a deixar o pequeno rebanho que ali haviam reunido.
(...) dexando como 700 Cabezas de ganado, dedicadas de Lismona
al sustento de aquellos pobre Indios que dexavam fuera de otras
muchas que quedaran en la antigua poblacion desamparada,
donde tambien quedaron muchos alajuelos de estima que no les
permitieron recoger: y despues de esta perdida todos los bueyes,
ieguas, mulas, cabalos y demas bienes. (Informe da Companhia de
Jesus in CORTESO, 1951, p. 19, V. 2).

O manuscrito revela que os religiosos reuniram em torno de 700


cabeas de gado vacum deixando-as de esmola aos nefitos, e que muitas
outras ficaram na antiga povoao juntamente com os animais de trabalho: bois, guas, cavalos e mulas. Esses animais, que constituram o casco
inicial da pecuria sul-mato-grossense e mato-grossense, sobreviveram
silvestremente em um ambiente favorvel, propcio para a atividade pecuria.
Essas invases contriburam decisivamente para a propagao do
gado por todo o pantanal sul-mato-grossense.
Derrotados pelo conhecido bandeirante Raposo Tavares e seus comandados, os jesutas e os indgenas que puderam escapar transpuseram
o rio Apa e foram se estabelecer no Paraguai, abandonando muito gado
que haviam ali conseguido reunir.
Alm das condies ambientais favorveis que o gado encontrou
para o seu desenvolvimento, outros fatores foram importantes, como as
epidemias e enfermidades, que contriburam para o decrscimo da populao indgena no Itatim. Uma grande quantidade de doenas que eram
88

Paulo Marcos Esselin

praticamente inofensivas para o organismo imunizado dos europeus provocou efeitos desastrosos nas populaes nativas, biologicamente sem
condies de fazer frente ao inimigo desconhecido. Desde os primeiros
contatos entre os nativos dessa regio e os padres da Companhia de Jesus,
ou mesmo os colonos espanhis e portugueses, h constantes registros
de epidemias que levaram morte muitos dos primitivos habitantes. [Em
1634] Como conseqncia da fome seguiu-se uma epidemia que, segundo o padre Boroa, dizimou 2/3 dos ndios reduzidos e em 1648 em fuga
os ndios foram acometidos de uma nova epidemia que tirou a vida de
muitos deles. (GADELHA, 1980, p. 246 e 270).
Outro fator importante foi que os jesutas recomearam um trabalho de realdeamento da populao do Itatim, dispersa aps a ltima
invaso, conseguindo com sucesso reunir 800 das 1000 famlias anteriormente aldeadas e conduzi-las para as margens do rio Ipan, a 40 ou 50
km de Assuno. (GADELHA, 1980). Ou seja, o territrio do Itatim foi
praticamente despovoado10. Os indgenas que j haviam incorporado

a carne bovina sua dieta foram transladados para muito longe,


condio importante para a rpida proliferao do gado, pois as demais naes indgenas, embora o abatessem, preferiam outras caas
como veados, antas, caititus, capivaras, onas, tatus. Havia tambm
muitas aves, como patos, marrecos, araqus, jas, jacus e jacutingas,
alm de que os rios eram extremamente piscosos e ofereciam aos
nativos, pacus, dourados, curimbats, piranhas.
Quando o [rio Taquari] leva pouca gua deixa vrias praias
descobertas, as quais se enchem de caa, principalmente fatos de
extraordinria grandeza, e outras mais pequenas, a que chamam
marrecos. H tambm pelos matos muitas araqus, jacus e

10 A tanto chegou o despovoamento que um padre jesuta que correu esses lugares por volta de
1657, deixou registrado que s achou algunos monumentos que manifestan el senorio que los
itatines tuvieron de todo el terreno e no passavan de un lugubre legado: grandes vasos de barro
com ossadas humanas, dos que usam os guarani a fim de neles meterem os seus defuntos.
(LABRADOR, 1910, p. 62).

89

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

jacutingas (...) mutuns do tamanho dos nossos perus novos (...). A


caa de plo tambm infinita: muito porco bravo, muito veado e
capivara. (MOURA, 1982, p. 19).

Como no rio Taquari, o mesmo acontecia por todo o Miranda e o


Aquidauana:
prodigiosa a abundncia de pescado e carne (...). Explorando
esses rios viamos a cada instante possantes antas, veados de todas
as especies e interminaveis varas de porcos montezes (...). Bandos
e bandos de lontras, ariranhas e capivaras (...) innumeras aves,
mutuns, jacus, jacutingas. (...) Em peixes fartssimo, abundam os
jahs, surubys, dourados, em certos mezes os pacs, piraputangas,
piranhas, alm de corumbats, trairas, pacupvas, abotoados,
papaterras, raias, pius e outros comuns aos rios do Brasil.
(TAUNAY, D, sd., p. 8 e seg.).

O mesmo acontece em todo o Pantanal, que abriga em seu territrio 656 espcies de aves, 122 de mamferos, 264 de peixes e 162 de
rpteis. (COELHO NETO, 2002, p. 53).
A variedade da fauna pantaneira permitiu que os indgenas continuassem a consumir animais, como por exemplo aves, incorporadas culturalmente sua dieta, embora a base da alimentao deles no fosse a
carne. Gostavam de frutas, mel, insetos de todo gnero, rpteis, e eram
muito gulosos de uma lagarta que ataca o capim mimoso e que eram saboreadas vivas. (VIVEIROS, 1958).
Alm de todas essas condies favorveis ao desenvolvimento da
pecuria, h o fato de que o prprio rebanho instintivamente adota mecanismos de defesa para garantir a perpetuao da espcie. Os bovdeos
em estado natural so selvagens e a epizootia no os atinge, assim eles
engordam. Em completa liberdade, os animais selvagens refugiam-se nos
bosques e s saem noite para pastar. (BERTELLI, 1984, p. 224).
Quando o gado torna-se alado, preciso ca-lo, em noites de
lua saem os vaqueiros em cavalos amestrados, coluna por um,
costeando as ilhas de mato at que a inquietao da montada se
90

Paulo Marcos Esselin

transmita perna do cavaleiro, sinal de que esto perto dos baguais.


(PROENA, 1958, p. 72).

A prpria macega do Pantanal, geralmente muito alta e penosa


de romper e que em determinados locais cobre um cavalo e seu cavaleiro, contribui para proteger qualquer animal, at mesmo um bovino, dos
olhos atentos de um caador.
Esse processo da procriao do bovino em condies naturais no
uma exclusividade do pantanal sul-mato-grossense e se repetiu em diversas regies da Amrica. As invases promovidas pelos bandeirantes
paulistas no sul, sobretudo no atual Rio Grande, contriburam para a
propagao de modo assombroso do gado em toda a margem oriental do
Uruguai at a costa do mar (as chamadas vacarias do mar). Vencidos
pelos bandeirantes em sucessivos combates que culminaram com o de
So Nicolau em 1638, os jesutas e ndios que puderam escapar cruzaram
o rio Uruguai e estabeleceram novas misses entre esse rio e o Paran,
deixando deste lado, muito gado ao abandono. Depois do ano de 1687,
convencidos da tranqilidade que ento pairava sobre a regio das antigas
redues da margem oriental, os jesutas se animaram a transpor de novo
o Uruguai e fundaram os famosos sete povos (So Nicolau, So Miguel,
So Lus, So Borja, So Loureno, So Joo e Santo ngelo). O gado
que ficou inteiramente livre, procriando e multiplicando-se sem cuidado
algum, aps cinqenta anos somava milhares de cabeas apascentadas
pelos campos gachos. (ABREU, 1940).
Segundo Rui Diaz de Gusman, em agosto de 1541, ao ser despovoada Buenos Aires, os conquistadores foram obrigados a abandonar
cinco guas e sete cavalos11. (GUZMN apud MENDONZA, 1922, p.
626, T. 73).

11 Segundo a tradicional historiografia portenha, foram abandonados cinco guas e sete cavalos,
no entanto essa pequena quantidade de animais, ainda que em condies timas, no justificaria
o enorme procrio que houve em Buenos Aires.

91

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Quando Garay fundou Buenos Aires pela segunda vez em 1580,


calcula-se que encontrou em estado selvagem oitenta mil eqinos, cujos
ancestrais eram aquele pequeno lote abandonado em 1541. (MENDONZA, 1922, T. 73).
O gado das misses jesuticas do Itatim, encontrando uma grande
rea com condies ambientais extremamente favorveis ao seu desenvolvimento, expandiu-se pelos campos da plancie do Pantanal, em cujo
territrio ficou confinado. As barreiras naturais impediram que o rebanho ganhasse outros campos. Isso s seria possvel se fosse conduzido,
como mais tarde ocorreu, mas a princpio esteve ele encerrado a leste pela
serra de Maracaju, acompanhando o lado ocidental o rio Paraguai, entre
o Mbotetei e o fecho dos morros..
No entanto, h quem afirme que possivelmente o gado oriundo
das misses jesutas tenha chegado at os campos de Vacaria em Mato
Grosso do Sul: Antnio Gonalves Barbosa atirou-se serto adentro,
rumo sul, ouvira por certo, falar da vacaria, de campos e guas excelentes,
onde existe muito gado selvagem, conhecido por alado, em grandes manadas, deixados possivelmente pelos jesutas. (CAMPESTRINI e GUIMARES, 1995, p. 36 nota 42).
Para que esse gado missioneiro apascentado no Pantanal chegasse
at os campos de Vacaria, ele teria que escalar a Serra de Maracaju para
ganhar as regies dos rios Brilhante, Vacaria, Verde, Pardo, e para isso
teria que romper uma rea de floresta extremamente densa que encobre a serra, cujas encostas so relativamente ngremes. Se observada no
horizonte de Nioaque e Guia Lopes da Laguna, verifica-se que h uma
escarpa abrupta, quase uma falsia, que tornaria praticamente impossvel
a penetrao desse rebanho, a no ser que fosse conduzido. Por outro
lado, no existiam razes de ordem natural para o gado escalar a serra,
uma vez que estaria ele se afastando de uma regio extremamente rica em
pastagens.
Com os ataques portugueses e a conseqente escravizao dos indgenas, os constantes surtos epidmicos que levaram morte milhares
de nativos e transferncia de famlias aldeadas para as proximidades
92

Paulo Marcos Esselin

de Assuno, a provncia do Itatim foi completamente despovoada de


ndios guaranis. Disso se aproveitaram os bandeirantes, j que as runas
da cidade de Santiago de Xerez e das redues serviam de ponto de apoio
para as suas investidas. J em meados do sculo XVII, eles se instalaram
s margens do Aquidauana e Miranda, fronteira com o Paraguai. Tinham
como objetivo escravizar os remanescentes indgenas, que eram muito
poucos, promover o contrabando com os vizinhos; manter um arraial
onde se reuniam para cultivar o solo, colher e at descansar no lugar onde
foi Xerez e que finalmente era o centro das correrias que faziam at Santa
Cruz de La Sierra. (ALMEIDA. 1941).
Provisoriamente instalados, os paulistas se organizavam e promoviam invases, expulsavam os espanhis de ncleos prximos, roubavam
gados, apossavam-se de colheitas e capturavam nativos para escraviz-los
e vend-los. (ESSELIN, 2000).
Em princpios do sculo XVII, vindos de So Paulo, ao chegarem
ao rio Mbotetei, depararam com seis povoaes de gente castelhana que
eram:
(...) brancos Indios e mestisos com Igrejas cazas de telha oficinas
criaoens de bois cavallos carneiros a quem os nossos famosos
capitaens como fieis portuguezes fizero guerra por repetidas
vezes th que pondo em fuga os brancos recalhero muitos Indios
destruiro e queimaro as feitorias vendo pertencerem aquelles
lugares aos dominios de Portugal, adonde se acha por memria
algum gado vaccum, chamados hoje as vacarias, o que causou
tanto espanto e temor as povoaens da Provncia do Paragoai
que alli mais no tornaro e ao no ser iso serio hoje de dominio
de Espanha todos os nossos lugares th Sam Paulo Minas Gerais
Goyas e Cuyaba. (TAUNAY, 1930, p. 3-4, V.6).

Os paulistas atacavam as povoaes castelhanas organizadas nas


reas em que eles nominavam Vacaria, desestabilizavam seus ncleos, faziam com que recuassem para as proximidades de Assuno e se apossavam de seus ndios. Alm disso, contribuam para a disperso do gado
bovino e eqino.
93

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

A formao de uma base de operaes na antiga Provncia do Itatim permitiu que no ltimo quartel do sculo XVII numerosas bandeiras
cruzassem toda essa regio, rasgando-a em vrios sentidos. Essa macia
presena portuguesa causava preocupaes e temores entre os espanhis,
justamente devido facilidade com que eles poderiam dispor de cavalos
e bovinos. Um jesuta espanhol, Pe. Diogo Altamirano, em correspondncia s instncias do Conselho das ndias, afirma: a ocupao daquelas
reas pelos portugueses era mais prejudicial at do que a da colnia de
Sacramento, por ficarem apartados dos olhos dos castelhanos e porque
ali podia dispor o invasor de cavalos, mulas e outros gados. (PASTELLS,
1912, V. 4).
Os registros de portugueses e espanhis permitem concluir que os
campos dos pantanais mato-grossenses estavam, no fim do sculo XVII,
abrigando grandes manadas de bovinos e eqinos que se multiplicaram
muito rapidamente, aproveitando-se das boas condies ecolgicas da regio.
Em carta enviada em 1687 ao Rei e ao Duque de la Plata, o Governador do Paraguai, D. Francisco Monforte, informa que:
(...) enviando los campos de Jerex, 50 espaoles para saber si
permanecian en ellas los portuguezes, remitiendose en esto a los
autos que envia, por copia, com la declaracion de un indio, que
compreende la noticia de las muchas vacas que hay cerce de los
campos de Jerez. (...). (PASTELLS, 1912, p. 142, V. 4).

Um ano antes, a expedio de Salvador Marecos sara de Assuno


em jornada com 42 soldados espanhis, alm de ndios, atingindo, em
meados de novembro, os campos de Xerez no local chamado Curamia.
O soldado Manuel Jaques, que acompanhava a expedio, informou que
havia gado na regio - alis, pouco numeroso, muito bravo e que mostrava, pela desconfiana, o quanto devia estar temeroso do contato humano.
(TAUNAY, 1930, V. 6).
O reconhecimento dos campos de Xerez por Don Lorenso del
Villar em 1720 e 1721 no deixa dvidas sobre a presena das manadas
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Paulo Marcos Esselin

como tambm das caadas promovidas por portugueses e espanhis para


abater animais que se tornaram selvagens.
(...) tope otro alojamto [Portugueses] como una legua adelante
(roto) de estubieron conjiendo ganado y matando toros que no
(roto) mas de unos sinco o seis toros tan abispadas que para (roto)
socorrer cansabamos caballos. (...) y pasando a la otra banda se
hallo el corral que fue y manga del me. de campo Juo. duarte que
se echaba dever podridos y a los palos donde tope mucha (roto)
bacas, entre los dos rrios ypita y el dho yaguari los carrilles roto
de hasia el rrio del paraguay que disse el cappn. pablos gaona y
el indio que nunca am bisto semejante, el campo de ganado (...).
(Bandeirantes no Paraguai, 1949, p. 294).

Durante muitos anos, at quase um sculo depois de despovoada a Provncia, eram constantemente enviadas tropas de Assuno com
a incumbncia de observar e se possvel embaraar os movimentos dos
portugueses. A ao das autoridades no ia alm da vigilncia.
Por outro lado, foram os portugueses, em suas constantes incurses pela regio, que nominaram as reas de Vacaria aps o encontro
de diversos rebanhos silvestres. Delimitava-a Pedro Taques, em meados
do sculo XVIII, depois de afirmar que nos campos assim chamados
existiam enormes rebanhos sem haver algum senhor possuidor de tanta
grandeza, no s de gados vacuns mas tambm dos animais cavallares.
(TAQUES apud TAUNAY, 1930, V. 6).
No ano de 1682, uma das mais importantes bandeiras que fora organizada na cidade de Sorocaba partiu para o sul de Mato Grosso tendo
como capito mor Pedro Leme da Silva, que resolveu pela formao de
um arraial nas vacarias. Informa ele: aproveita-se a gente deste corpo
da abundncia dos gados que inutilmente multiplicam nestas campanhas
sem haver algum senhor possuidor de tanta grandeza, que no s dos
gados vaccuns, mas tambm dos animais cavalares. (TAUNAY, 1930,
p. 14, V. 6). Por outro lado, um escrito annimo, no datado, mas que,
segundo estudos, foi produzido por volta de 1695, sugere, atravs de seu
signatrio, a construo de um presdio na Vacaria, que afirmava achar-se
95

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

em terra portuguesa. Entendia que tal povoao seria uma base de conteno s pretenses castelhanas e de socorro para as operaes militares
futuras, no caso de se tornar necessria a invaso do Peru, desde que
irrompesse a guerra entre as duas coroas. Dizia ele:
fica um pais chamado hoje dos Paulistas, Vacaria entre o rio grande
e o rio Paraguai que ambos juntos como principais formam o
celebre Rio da Prata, chama-se vacaria pelo gado amontoado que
aqui h, cujo princpio trouxeram os castelhanos, quando tentaram
povoar a dita paragem. (TAUNAY, 1930, p. 19, V. 6).

Na condio de membro da comisso de demarcao dos limites


entre o imperio portugus e o espanol na Amrica, Francisco Jos de
Lacerda e Almeida, deixa registrado que: Antes de Cuiab ter as boas
e muitas fazendas de gado, que presentemente tem, levaram por terra
uma grande boiada para aquela Vila, cortando sertes por onde nunca
se tinha passado e dirigindo o rumo pela estimativa. ( LACERDA e
ALMEIDA, 1944, p80)
Possivelmente esse rebanho que Lacerda e Almeida se refere foi
capturado no Pantanal sul mato grossense e levado para Cuiab.
Quando principiou o sculo XVIII, os campos da Vacaria estavam
a abrigar milhares de cabea do gado vacum e cavalar. Os relatos conhecidos, tanto de espanhis radicados em Assuno como de portugueses em
So Paulo, so concordes em afirmar a presena desses rebanhos em todo
o pantanal sul-mato-grossense, vivendo silvestremente e sem trato algum.
A contnua penetrao dos bandeirantes em direo ao sul e a oeste rumo s fronteiras castelhanas levou descoberta das minas de ouro
de aluvio, abundante em Cuiab, o que atraiu milhares de portugueses,
seus escravos africanos e ndios para a regio.
Com as novas descobertas, desenvolveu-se o bandeirantismo de
povoamento ou de comrcio, conhecido por mones:
A histria das mones do Cuiab de certa forma um
prolongamento da histria das bandeiras paulistas em sua expanso
96

Paulo Marcos Esselin

para o Brasil Central. Desde 1622 numerosos grupos armados


procedentes de So Paulo, Parnaiba, Sorocaba, It, trilharam
constantemente terras hoje matogrossenses, preando ndios ou
assolando povoaes de castelhanos. (HOLLANDA, 1945, p. 43).

As bandeiras preadoras de ndios foram substitudas pelas mones, que se especializaram na atividade comercial visando ao abastecimento do recm fundado arraial do Cuiab. A chegada de grandes
contingentes humanos tornou a vida de todos eles muito difcil. Como
conseguir se manter em uma regio to hostil onde tudo faltava, at mesmo os instrumentos para a minerao?
Muito rapidamente, porm, os empreendedores trataram de tirar
proveito dessas novas oportunidades para a agricultura e, sobretudo para
o criatrio do bovino e eqino. Desde o princpio, houve necessidade de
animais de trao para transportar artigos, movimentar moinhos, fazer
a lavoura e fornecer protenas, como tambm artigos outros que ia desde
vesturio e alimentos at ferragens e ferramentas.
[So Paulo] esta vila o interposto de todos os objetos de
exportao, e importao da Provncia; de Goyas, e Mato Grosso;
ou conduzidos por terra, ou pelos rios. As produes, que descem
dos estabelecimentos centrais, para sarem barra, so aucar,
o algodo, tecidos do mesmo, toucinhos, aguardentes, caf,
courama, fumo e carnes chamadas ensacadas; estes generos so
transportados, em sumacas, a outras Provncias, (...). Os principais
efeitos de importao vm a ser o ferro, o ao, o sal, as fazendas
scas e vinhos, e alm destes, em mais ou menos quantidade, todos
os que a Europa produz, e costumam ser exportados para o Brasil:
(...). (d ALINCOURT, 1975, p. 29).

Ao contrrio das bandeiras do sculo XVII, as mones usavam basicamente a navegao fluvial. Os bandeirantes seguiam quatro
roteiros, cuja primeira parte era comum: de Araritaguab (Porto Feliz),
desciam o rio Tiet at o Paran, o qual desciam tambm. A partir da,
decidiam-se por um dos roteiros, o primeiro marcava-se subindo o Ivinhema at suas cabeceiras entrando no Brilhante onde navegavam at um
97

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

porto mais tarde chamado Santa Rosa ou Sete Volta, a deixavam suas
canoas e caminhavam por terra at as cabeceiras do Nioaque ou Urumbeva, ali faziam novas embarcaes e navegando pelo Nioaque entravam
no Miranda e desse passavam para o Paraguai, atingindo o So Loureno
e encontravam o caminho fluvial das minas cuja descoberta deu lugar
fundao de Cuiab. O segundo, fixava-se atravs do rio Verde, o qual
subiam at o salto do mesmo rio, onde deixavam as canoas e da tomavam
por terra um caminho em torno de 25 dias at o Porto do Rio Piquiri,
aps cortavam os rios Correntes, Itiquira, e So Loureno at chegar a
Cuiab. O terceiro era subindo o Rio Pardo, entrava no Anhandui at o
Aquidauana, desse ao Miranda e da ao Paraguai onde se navegava at o
Rio Cuiab pelo qual se chegava cidade homnima. O quarto era balizado pela subida at os campos de Camapu.

98

Paulo Marcos Esselin

Caminho das guas


1. De So Paulo pelo Tiet
4. Rota do Camapu
2. Rota da Vacaria
5. Expedio para o Iguatemi
3. Rota do Rio Verde Rotas das Mones, roteiros fluviais utilizados pelos
bandeirantes paulistas, para se deslocarem as minas de ouro em Cuiab.
CAMPESTRINI, Hildebrando e GUIMARES, Acyr Vaz. Historia de Mato
Grosso do Sul. 4 ed. Campo Grande: Academia Sul Mato-grossense de Letras e
Instituto Histrico e Geogrfico de Mato Grosso do Sul, 1995. p. 16.

99

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Num curto varadouro, atingiam o Camapu, que os levava ao Coxim, desciam este at o Taquari e continuavam pelo roteiro comum at a
regio central. (SODR, 1941).
A preferncia que davam os monoeiros rota do rio Pardo,
Anhandui e Aquidauana, explica-se, sem dvida, pela grande abundncia
de gado que ali encontravam e que supria as dificuldades de transporte
dos mantimentos necessrios ao consumo durante a jornada. (HOLLANDA, 3 ed., 1990).
Essa rota foi abandonada a partir da criao de um estabelecimento
fixo na paragem de Camapu, em 1725, onde se organizaram as primeiras
roas. Tratava-se de uma grande fazenda onde os viajantes podiam refazer-se da longa viagem e suprir as suas necessidades. Ali era possvel obter
feijo, milho, galinhas, toucinho, tecidos, carne fresca de vaca e de porco, farinha de milho, arroz e aguardente de cana de acar. Alm disso,
contava com boas acomodaes para atender aqueles que se deslocavam
para a regio das minas ou retornavam a So Paulo. No dizer do primeiro
capito general da Capitania de Mato Grosso, com mais asseio do que ali
se podia imaginar. (MARTINS de PAIVA, et al (org), 1982, p. 15).
Essa fazenda foi fundada pelos irmos Leme, Antnio, Domingos,
Joo e Loureno, fugitivos da Justia paulista, e constituiu-se no primeiro
ncleo fixo portugus de Mato Grosso do Sul. Localizava-se em uma
faixa de terras que separa as cabeceiras dos rios Sanguessuga e Camapu
e os monoeiros atravessavam esse trecho geralmente a p, deslocando-se
atravs do Varadouro Camapu.
O desembarque para aqueles que se dirigiam s minas do Cuiab
era feito no Porto de Sanguessuga, onde as canoas eram descarregadas
e toda a carga e as prprias embarcaes eram colocadas sobre carretas
puxadas por bois que seguiam at as nascentes do rio Camapu, atravs
do qual, aps alguns dias de navegao, encontravam o Coxim, por onde
continuavam at o Cuiab.
A fazenda Camapu, como alguns outros entrepostos que surgiram posteriormente, para garantir suprimentos aos seus usurios, teve que
lanar mo do gado da Vacaria. To logo foi fundada, seus proprietrios
100

Paulo Marcos Esselin

se viram na contingncia de introduzirem animais para desenvolver suas


lavouras, realizar colheita, movimentar moinhos, pilar milho para o fub,
a farinha ou a canjica, abastecer os comboios e transportar as cargas dos
viajantes. A soluo ideal estava nos animais de criao que, capazes de
resolver todos esses problemas, ainda poderiam ser criados sem praticamente nenhum trato, como j acontecia no Pantanal sul-mato-grossense.
As primeiras cabeas levadas para Camapu chegaram por volta
de 1729 e, muito rapidamente, se proliferaram pelos campos naturais daquela fazenda. Tem sempre grande abundncia de (...), vacas das quais
se no sabe j o nmero pela largueza dos pastos, e se entende passarem
de seiscentas cabeas. (MARTINS de PAIVA, et al (org), 1982, p. 15).
Criados solta, sem qualquer embarao para o seu alongamento,
j que no existiam cercas, seiscentas cabeas tornaram-se um nmero
smbolo, uma vez que a expedio de Hrcules Florence, que esteve em
Camapu entre 1825 e 1826, registrou o mesmo nmero da expedio de
Rolim de Moura quase cem anos depois.
Tambm em Cuiab o gado era uma exigncia. A preocupao
dos mineiros em no permitir que braos fossem consumidos com outra
atividade, que no a minerao, resultava no uso dos animais de trao
para o transporte do dia-a-dia e para a lavoura. Alm disso, o crescimento demogrfico da regio exigiu a organizao de algumas propriedades
rurais para a produo de alimentos a fim de suprir as necessidades dos
trabalhadores das minas.
O prprio Rodrigo Czar, mesmo temeroso quanto possibilidade
de reao por parte dos castelhanos, autorizou, atravs do Bando12 de 8
de novembro de 1725, a conduo do gado bagual do serto de Curitiba e
dos campos de Vacaria13 para a regio das minas.

12 Bando; trata-se de uma proclama ou um anncio pblico.


13 Roberto C. Simonsen, sem citar fontes, afirma que: nos campos de Vaccaria, no Sul de
Mato Grosso, a criao do gado bovino, originrio das estacias dos missionarios paraguaios
tinha assumido um grande desenvolvimento. Delle tambm lanaram mo os paulistas.
(SIMONSEN, 1937, p. 246, T. 1).

101

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Por ser conveniente ao real servio de V. Mage qDs. ge.. e ao


aumto das novas minas de Cuyab, meter se nellas gados vacuns
pa. sustento dos Mineiros, e mais pessoas, q se acharem naquelle
descobrimento, de q tambem resultar grande conveniencia aos
moradores desta cappnia, q os quizerem mandar, ou levar, pa. as
das Minas do Cuyab, [...] e tambm poder amanar, e conduzir
de paragens chamada Vaccaria gados, pa. as ditas Minas sem se
lhe pr impedimento algun. (Bando do Capito General Rodrigo
Cesar apud SIMONSEN, 1937, p. 246/, T. 1).

Em carta dirigida a Sua Majestade em 13 de setembro de 1727, assim expressou o Governador Rodrigo Czar de Menezes:
(...) j que a maior parte dos sertanistas desta capitnia intentava
enfrentar a sua marcha por hua paragem chamada Vacaria, a qual
ainda esta indicizo se pertence Real Coroa de V. Mg. Ou de
Castello por falta de demarcao; me pareceu embaraar-lhes no
continuassem aquelle caminho qcomo os catelhanos costumo
vir a dita paragem de anos em anos com cavallaria, a observarse os paulistas fazem ahi alguma prezistencia ou descobrimento,
[...]. (Documentos Interessantes para a Histria e Costume de So
Paulo, p. 19, V. 31).

A autorizao do Governador da Capitania de So Paulo permitiu,


com seu ato, no s que fosse levado o gado do Pantanal sul, rea conhecida como campos de Vacaria para Cuiab, como tambm que outros
entrepostos comerciais no mesmo modelo do de Camapu surgissem na
rota de So Paulo para Cuiab.
Barbosa de S14 testemunha de parte dos acontecimentos relativos
ocupao e conquista do territrio mato-grossense, afirma que as primeiras matrizes bovinas no entraram na vila de Cuiab antes de 1739.
(BARBOSA de S, 1975).

14 A obra de Joseph Barbosa de S, primeiro cronista mato-grossense, relata em ordem cronolgica


os principais fatos ocorridos quando da ocupao de Mato Grosso, desde a descoberta dos
metais em Cuiab em 1718, at a construo do forte Coimbra em 1775.

102

Paulo Marcos Esselin

Certamente que, quando o Governador Rodrigo Czar autorizou


a amansao e a conduo de bovinos da Vacaria para Cuiab, ele apenas legalizou uma prtica comum, vez que muitos sertanejos j lanavam
mo desse recurso para abastecer a regio das minas. O seu ato, alm de
atender o desejo de algum, solucionava o problema de abastecimento
por que passavam aqueles que se deslocavam para a extrao do metal.
Embora no haja registros de conduo de gado da Vacaria para Cuiab
antes de 1727, muito provavelmente ela tenha ocorrido, tendo os bovinos
sido transportados atravs de canoas ou ento conduzidos pelos sertes.
Embora as dificuldades fossem grandes, pois de canoas enfrentavam em
torno de 30 dias levando poucas cabeas e, se conduzidos por tropeiros,
passavam por reas habitadas por animais selvagens e grupos indgenas
belicosos, transpunham rios caudalosos, e ainda pouco conhecidas, nada
disso impediu que o gado fosse levado para Cuiab. O primeiro registro
.encontrado foi o de Joo Cabral Camelo, a mais antiga das narrativas de
viagens monoeiras. Diz ele:
Quando eu cheguei ao Cuyaba, que foi em 21 de Novembro de
1727, no havia nelle mais que um nico engenho, dez ou doze
leguas distante da Villa, no sitio onde chamam a Chapada: hoje
porm tem j cinco, e todos na margem do rio, onde mostrou a
experincia produzir melhor a canna, e em muito menos tempo
que, em todas as mais partes ainda destas Minas; nem me parece
que haja para ellas melhores terras que as do Cuyab e mesmo
para criaes de porcos, gallinhas e cabras; e tambem o seria para
cavallos se houvessem eguas nellas: no anno de 1727 foram na
minha tropa quatro ou seis novilhas pequenas, e j no ano de 1730
ficavam algumas paridas, e se produzirem como os porcos e cabras,
em breve tempo se cobriro de gados os campos. (CAMELLO,
1863, p. 497/8).

Pelo relato do sertanista, conclui-se que os animais foram conduzidos e que entraram em Cuiab dois anos aps a assinatura do Bando.
Tratava-se de fmeas novas e que somente em 1730, portanto trs anos
aps, estariam aptas procriao. Hollanda afirmou que pode se supor
103

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

que a descendncia desses novilhos introduzidos por Camello foi sacrificada por falta de recursos, problema que afligiu os moradores de Cuiab
nos primeiros anos, o que justificaria a verso de Barbosa de S de que as
primeiras vacas s chegaram em Cuiab em 1739. (HOLLANDA, 1990).
Na verdade, em 1730, as dificuldades j tinham sido vencidas. Os
sertanejos paulistas estavam em Cuiab h doze anos, tempo suficiente
para organizarem a produo agrcola, submeterem os grupos indgenas,
apossarem-se de suas colheitas e implementarem um fluxo regular com
So Paulo, de onde vinham todos os produtos de que necessitavam. O
prprio Camello informa que em 1730 j havia em Cuiab cinco engenhos, sinal de prosperidade, onde se produzia a melhor cana-de-acar.
Certamente que esses engenhos tinham que recorrer a animais de trao
para poderem produzir e que havia uma oferta regular de alimentos para
garantir a subsistncia da escravaria, demais trabalhadores do engenho
e proprietrios. Portanto, por esse perodo, j havia gado suficiente para
suprir tais necessidades.
Nos registros do ano de 1730 da lavra do Baro de Melgao, no h
qualquer referncia a dificuldades de abastecimento ou falta de alimento
para a populao de Cuiab. Estavam os colonos ocupados em organizar
patrulhas para combater os ndios paiagus, que haviam atacado a mono do ouvidor Lanhas Peixoto e roubado sessenta arrobas de ouro15.

(MELGAO, 1952).
A propsito, depois de 1728, afrouxam-se as exaes, produzem-se melhores alimentos, submetem-se ou afastam-se da regio
os ndios bravos e anima-se enfim o povo a novos empreendimentos. (HOLLANDA, 1990).
Alm disso, muito importante o relato do sargento-mor, engenheiro Luiz DAlincourt, que em expedio pela regio registrou:

15 Sobre o assunto ver ainda NOGUEIRA COELHO, Felipe Jos. Revista Trimestral de Histria
e Geografia, memrias Chronolgicas da Capitania de Mato Grosso 2 Trimestre de 1850, p.
147. (BARBOSA DE S, Joseph. Relao das povoaes do Cuyaba e Mato Grosso de seos
princpios th os prezentes tempos. Cuiab Edies UFMT, 1975).

104

Paulo Marcos Esselin

Foi desta fazenda [CAMAPU] que entrou em quantidade para


Cuiab o primeiro gado vacum conduzido por um dos possuidores
da mesma de nome Andr Alves, grande e afamado sertanista e
pai do reverendo padre Manoel Alves, actual presidente do
governo provisrio da provincia; e daqui sairam os lemes a formar
os grandes aterros dos bananaes de So Loureno, e de Cuiab,
que ainda existe hoje [1823], tudo a custa do suor dos indios que
cativaram, pois nesse tempo ainda no tinham escravos africanos.
(dALINCOURT, 1824, p. 337).

Portanto, so concordes os depoimentos de que, depois do ano de


1728, j haviam sido criadas todas as condies para que se estruturasse
o rebanho bovino em Cuiab com os estoques oriundos da Vacaria e
Camapu. Isso porque o percurso Vacaria-Cuiab era, apesar das dificuldades, o melhor, o mais barato e o mais eficiente roteiro, os animais eram
encontrados livremente na natureza sem qualquer espcie de nus.
Se os pioneiros optassem por levar o gado vacum de So Paulo
para Cuiab, utilizando o roteiro das Mones, teriam que pagar por eles
e despenderiam, no mnimo, cinco meses do trajeto. Navegariam em torno de 648 lguas, as cachoeiras do rio Tiet, Pardo, Coxim e Taquari, 113
ao longo da viagem constituam obstculos nada desprezveis, em muitas
delas fazia-se necessrio deixar o rio e passar por terra, arrastando as
canoas, o que gastava muito tempo e trabalho. Os animais eram conduzidos em p em embarcaes cuja tonelagem no era em mdia superior
a 2000 kg, poderiam levar no mximo um lote de dez reses, enfrentando
toda sorte de privaes e um alto ndice de mortalidade, o que elevaria
consideravelmente os seus preos. Portanto, entre um roteiro e outro, os
pioneiros preferiam o da Vacaria por ser o mais fcil, barato e rpido.
Isso no significou que a origem do rebanho cuiabano tenha sido
exclusivamente dos campos meridionais do Pantanal sul-mato-grossense,
j que, com a abertura de um caminho ligando por terra Mato Grosso a
Gois, em 1737, muitos rebanhos foram introduzidos e muitas fazendas
formadas com o intuito de produzir carne. Alm disso, o gado bovino
e eqino, criado com sucesso pelas misses jesuticas castelhanas entre
105

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

os ndios moxos e chiquitos, no que hoje territrio boliviano, tambm


eram comercializados desde 1740 com mineiros e colonos estabelecidos
em Cuiab.
Sobre o gado da Vacaria, de Gois, e das misses dos chiquitos
e moxos, em apenas trinta e um anos, o capito general da Capitania de
Mato Grosso, Rolim de Moura, registrou:
No Cuiab j o gado vacum tanto que no chega a matar-se todos
os anos metade do nmero das reses, que nascem naquele distrito,
e a ltima rematao que a Cmara fz do corte de vaca, foi por um
cruzado de ouro a arrba, metade do preo porque eu a achei quando cheguei quela Vila 1751. (CORRA FILHO, 1969. p. 711).

Com o gado da Vacaria tambm surgiram outros entrepostos comerciais nos mesmos moldes que a fazenda de Camapu e fixaram-se
alguns moradores nas barras dos principais afluentes do Paran no curso
das mones, junto a reas onde, pela sua fertilidade, era possvel o cultivo e a criao para fornecer os mais diversos gneros aos navegantes.
As notcias registradas pelo capito Antnio Pires de Campos em
1723 do conta de que, por esse perodo, ainda no existia nenhum morador na posse de roas na barra do rio Verde nem do rio Pardo, mas
que essas eram reas infestadas pelos ndios caiaps, que causavam danos
considerveis aos viajantes e mineiros que se dirigiam para Cuiab. Sem
mencionar nomes, afirma que esses nativos despovoaram todas as roas
que haviam sido fundadas s margens do rio Taquari e que os pioneiros
foram assassinados na sua maior parte e tiveram suas casas queimadas, o
que concorreu para que abandonassem aquele stio. O mesmo no aconteceu em Camapu, porque os roceiros ficavam em perptuo estado de
alarme, de armas s mos e mesmo assim, perderam mais de vinte escravos. (CAMPOS in TAUNAY, 1953).
J em 1727, Joo Antnio Cabral Camello dizia que entre a barra
do rio Tiet e a do Pardo havia dois moradores, nas duas margens do Paran, abaixo do Verde. O da direita tinha roas grandes de milho e feijo,
cujos produtos vendia pelo preo que impunha aos clientes.
106

Paulo Marcos Esselin

Entre a foz do rio Pardo e a barra do Nhanduy-Ass havia duas


grandes roas com grandes cultivos de feijo e bananas. Eram de Bartolomeu Fernandes dos Rios e de outro lavrador cujo nome no cita. (TAUNAY, 1953).
Um pouco abaixo do salto do Cajuru, intalaram-se mais dois moradores; na barra do Nhanduy Mirim, dois outros; e um quinto, no Pardo
at o salto do Corau.
No Taquary-Mirim, vivia Joo de Arajo com algum roado. Na
confluncia do Coxim e do Taquary existia uma roa de Domingos Gomes Beliago, o primeiro homem que introduziu o gado vacum naquela
regio. (HOLLANDA, 1986). Mais abaixo, havia duas outras roas abandonadas devido aos constantes ataques de ndios caiaps.
Esses pioneiros estabeleceram-se com stios de cultura que tiveram
grande utilidade para aqueles que se destinavam s lavras; era ali que se
proviam dos mantimentos necessrios, como tambm descansavam para
se refazerem da longa jornada.
Nesses stios, cultivava-se feijo, milho, batata, fumo, melancia,
abbora, mandioca - da qual se fazia farinha - e cana-de-acar, para
produo de aguardente de cana e rapadura. Era comum ao sitiante criar
algumas galinhas e porcos que tambm eram vendidos aos viajantes. Assim, essas unidades produziam todos os bens necessrios ao reduto da
fazenda e tambm para os monoeiros que se deslocavam para Cuiab e
So Paulo.
Rodrigo Czar de Menezes, Governador e capito-general da Capitania de So Paulo, em viagem a Cuiab relatou: chegou fazenda de
Manuel Homem, no rio Paran prximo a barra do Verde, onde se tomou
algum mantimento a mo de nv a oitava e meia, o alqueire de farinha a
dose oitavas e de feijo a dez e as galinhas a trs oitavas. (MENEZES in
TAUNAY, 1953, p. 104).
No curso de suas viagens e nos mais diversos stios de que dispunham os monoeiros, foi possvel estabelecer o preo das mercadorias
cobrado nos mais diversos entrepostos espalhados no roteiro Cuiab-So
Paulo:
107

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Roa de
Manoel
Homem

Roas de
Bartolomeu Camapu
P. dos Rios

Roas de
Felipe de
Campo
no Cuiab

Cuiab

Oitavas

Oitavas

Oitavas

Oitavas

Oitavas

Mo de Milho

8.5

Alqueire de Farinha

12

14

Alqueire de Feijo

10

12

20

14

Alqueire de Milho

12

16 18

Arroba de Toucinho

32

Dzia de Abboras

Libra de Carne de
Porco

15

Idem Salgada

Frasco de Cachaa

15

Galinha

Dzia de Ovos

1 1.5

Fonte: (TAUNAY, 1953, p. 70).

Nesses entrepostos, estabeleceu-se uma colonizao extremamente rudimentar que no podia dispensar o uso do gado vacum e cavalar, o
primeiro utilizado como trao e suprimento de boca e os cavalos para o
transporte e ocasionalmente para puxar carroa.
Embora no haja registros definitivos, esse gado era arrebanhado
na Vacaria, na plancie pantaneira, e levado at os stios, no planalto, ora
em canoas, com grande trabalho e despesa, requerendo em torno de 30
dias de navegao com dedicao exclusiva de muitos marinheiros, que
conduziam muitas vezes no mais que meia dzia de animais, e ora por
terra, castigados pelos nativos que se opunham ao trnsito dos condutores.
Esses colonos, estabelecidos no planalto central do Brasil, desempenharam importante papel na disseminao do gado bovino por toda a
regio conhecida hoje como Vacaria. Em sucessivas expedies plancie
pantaneira, reuniam pequenos magotes de bovinos e os conduziam aos
108

Paulo Marcos Esselin

stios onde faziam seus cultivos. Em princpio, confinados no Pantanal


por limites naturais, esse rebanho contribuiu decisivamente para o surgimento das primeiras fazendas instaladas nas barrancas do Paran, Pardo,
Verde e Nhanduy-Assu.
Apesar das grandes dificuldades desse empreendimento, os sacrifcios eram sempre recompensados. Uma vez estabelecidos, os rebanhos
constituam a garantia de um cultivo de reas maiores, de uma maior
eficincia na fabricao de farinha e industrializao da cana, alm da melhoria da alimentao familiar e do transporte. Porm, embora o gado se
multiplicasse, aproveitando-se das pastagens naturais abundantes, h de
se destacar um importante elemento nas caractersticas do solo da regio
que constituiu um aspecto extremamente negativo para a sobrevivncia
dos animais: a falta de barreiros, tambm conhecidos como salinas, devido ao elevado teor de cloreto de sdio, pontos procurados pelo gado que
necessita de sal.
Outro fator importante do ponto de vista pedolgico que a rea
do planalto, exceo de algumas manchas florestais, possui solos muito
pobres, devido quase completa ausncia de fsforo, substncia extremamente importante, uma vez que sua ausncia reduz a eficincia reprodutiva do animal, alm de impedir o melhor aproveitamento dos alimentos
por eles ingerido. (VILARES, 1974).
As deficincias do gado bovino em uma regio de cerrado no
passaram despercebidas do primeiro Governador da Capitania de Mato
Grosso, que registrou:
Sem embargo do muito gado, que h naquela fazenda [Fazenda
Camapu], como a convenincia dos donos para os passageiros
se demorarem, nunca muito o que tem manso, e capaz de andar
com os carros, os quais tambm ordinariamente no passam de
dois os que tm cada uma das fazendas, e ainda que com o aviso,
eu lhes tinha feito, estavam, mais alguns prontos, nunca pude
desembaraar-me antes de vinte de novembro, pelas muita canoas,
e cargas, que houve que passar, e pela pouca fora dos bois, que
sem embardo de serem formosos, so necessrias trs a quatro
juntas para o trabalho, que faz uma dos nossos, o qual estes no
109

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

podem fazer, se no de noite, ou com muito pouco sol. (MARTINS


de PAIVA, et al (org), 1982, p. 15).

A debilidade dos animais era tamanha que a varao somente era


possvel nas horas noturnas ou de pouco sol, sendo por isso morosa, j
que eles no suportavam os rigores da temperatura e o peso da carga.
Situao semelhante viveu o Baro de Langsdorff que, em viagem
a Cuiab com o objetivo de estudar essa regio brasileira, pouco antes de
chegar fazenda de Camapu no local conhecido como Corau, enviou dois
de seus camaradas at ela afim de requisitar cavalos para completar a sua
marcha, porm eles retornaram sem as cavalgaduras pedidas: O comandante daquele ponto mandava desculpar-se, dizendo que no tinha animal
em estado de agentar marcha to longa. (FLORENCE, 1997, p. 66).
Apesar das dificuldades, o gado do planalto foi se reproduzindo
e ganhando os campos nativos de pastagem. Os constantes ataques perpetrados pelos ndios caiaps aos diversos ncleos instalados s margens
dos rios contriburam para que o gado ganhasse liberdade e fosse criado
silvestremente.
Em documento de Manuel de Barros publicado antes de 1748, em
que descreve o roteiro das minas do Cuiab, est registrado que as roas do
rio Pardo j haviam sido destrudas pelo gentio, que assassinou os moradores e queimou suas casas. Advertia que ningum se animava a lanar roas
e viver em semelhante altura, salvo se fosse algum homem de poder que
vivesse muito bem entrincheirado e com muitas armas. (TAUNAY, 1953).
O mesmo aconteceu com as fazendas instaladas s margens do rio
Taquari. As diversas naes indgenas - caiaps, guaicurus e at mesmo
os paiagus no permitiram a estada de brancos em seus territrios, os
quais tiveram suas roas desfeitas e suas casas queimadas, como os anteriores, e muitos foram assassinados ou ento fugiram.
Na relao da viagem que fez o Conde de Azambuja, Dom Antnio Rolim de Moura, da cidade de So Paulo para a vila de Cuiab em
1751, no h qualquer referncia s antigas roas. Todas elas haviam desaparecido; permanecia apenas a fazenda de Camapu.
110

Paulo Marcos Esselin

Fator importante para o desaparecimento dos entrepostos comerciais foi a abertura, em 1736, de um caminho por terra de Gois a Cuiab
que tornou menos freqentada a navegao por Camapu. Basicamente,
apenas as remessas feitas pelo governo continuaram seguindo pelos rios,
uma vez que os custos eram menores e o transporte mais eficiente para
determinadas mercadorias mais pesadas e volumosas, como artilharia e
munies.
Por outro lado, a abertura da navegao entre Mato Grosso e Par,
que se tornou importante linha de comunicao e comrcio para Vila
Bela e Cuiab, constituiu em duro golpe rota das tradicionais mones.
A nova rota permitiu o uso de embarcaes maiores, e mais bem
equipadas e com maior capacidade de cargas. As terras de Mato Grosso,
que eram consideradas pelos portugueses como que postas no fim do
mundo, pela dificuldade de seu acesso, tornaram-se mais fceis de serem
alcanadas do que as de Gois e Minas Gerais.
A partir de meados do sculo XVIII, o ouro comeou a declinar
em Cuiab, diminuindo, portanto, o nmero de migrantes que se deslocavam para as minas, o que significou o abandono quase que completo do
caminho fluvial de Porto Feliz quela cidade. O abandono da rota tradicional, que ligava o litoral queles longnquos sertes, teve conseqncias
positivas no desenvolvimento dos rebanhos na plancie pantaneira e no
planalto central.
A parte meridional da Provncia de Mato Grosso, que constituiu
rota obrigatria para aqueles que desejavam atingir as lendrias riquezas
cuiabanas, praticamente desapareceu para o florescimento de uma nova
via. Dessa antiga rota, que passava pelos campos de Vacaria, sobretudo
na plancie freqentemente visitada por pequenos sertanejos para reunir
magotes de gado e iniciar o criatrio em algum lugar ou vend-los em
qualquer regio onde fosse possvel o comrcio, esses sertanejos foram
aos poucos se distanciando, buscando outras regies onde pudessem se
estabelecer.
Sem a presena do homem branco, esses animais permaneceram
abandonados lei da natureza por mais de vinte e cinco anos, sem que
111

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

houvesse grandes abates, sendo esse mais um fator que permitiu o seu
rpido crescimento.
No caso do planalto, as deficincias do solo foram compensadas
pela postura que adotaram os nativos da regio em relao ao bovino. Os
Guarani Kayowa, hegemnicos na rea, no incorporavam sua dieta
uma srie de carnes, ou porque identificavam esses animais com algum
antepassado ou porque teriam uma funo totmica em relao quele grupo. Determinados macacos estavam ligados a ancestrais e alguns
pssaros no eram abatidos porque eram incorporaes de determinados
espritos que cultivavam. No caso do gado bovino, que no fazia parte de
sua cultura, porque no existia na Amrica, eles no o incorporaram sua
alimentao porque, sendo o boi ruminante, os naturais entendiam que
ele era portador da epilepsia e, se incorporassem essa carne a sua alimentao, poderiam contrair a doena. (MARTINS, entrevista 22/09/2000).
Portanto, as novas vias de acesso a Cuiab isolaram a parte meridional da Capitania, que raramente era visitada. No havia um nico
ncleo populacional a no ser a fazenda Camapu, o que permitiu que o
gado fosse se adensando, ganhando toda a plancie pantaneira.

1.7. O Papel dos ndios Mbaya-Guaikuru no Processo de


Difuso do Gado Bovino no Pantanal
Os mbayas-guaikurus eram grupos caadores-pescadores; inicialmente, como no poderia deixar de ser no perodo pr-colonial, pedestres, e adotaram, a partir do sculo XVII, o hbito cultural de domesticar
e montar cavalo, o que lhes permitia deslocamentos pelo Chaco16 e Pantanal.

16 O Chaco uma plancie de bosques situada no centro sul da Amrica do Sul que inclui
parte do Paraguai, Argentina e Bolvia. Possui uma extenso territorial de 790.000 km 2 .
Geograficamente, limita-se ao sul com os Pampas; a oeste, com a regio Andina; ao noroeste
com o planalto de Chiquitos e velasco, e a leste, com os rios Paraguai e Paran. (CARVALHO,
in Herbets, 1988, p. 66).

112

Paulo Marcos Esselin

Chaco onde primitivamente viviam os mbaya - guaikuru


VASCONSELLOS, Victor Natalicio. 7 ed. Lecciones de Historia Paraguaya:
centenario de la epopeya nacional. Assuncin: 1978. p. 188.

113

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Entre os sculos XVI e XVII, eram encontrados, vivendo nessa rea geogrfica, da mesma forma os mbayas que, assentados mais ao
norte, viviam s margens ocidentais do rio Paraguai, ou seja, dentro do
ambiente chaquenho, no sculo XVI e primeira metade do sculo XVII.
(HERBERTS, 1988).
Antes dos primeiros contatos, na era pr-colonial, os guaicurus
dominavam outras etnias de caadores e coletores e os tradicionais agricultores, os guans. Raramente atravessavam o rio Paraguai, a no ser em
investidas espordicas, porque essa regio era habitada por outros grupos
nativos, como os guaranis, guaxaraps e outros a quem faziam guerra.
As reas em que habitavam os nativos eram, segundo as fontes
documentais, extremamente inspitas:
las tierras son en tiempo de aguas, tan pantanosas, y llenas de
anegadezos, que no se pueden andar, y en tiempo de seca son
tan ardientes los soles y falta de agua, que se abre, la tierra em
profundas grietas, y no hay quien se atreva a andarlas, porque los
caballos se ahogan de sed. (LOSANO, 1873, p. 67).

A partir do fim do sculo XVI, fazia parte do projeto assuncenho


manter um caminho estruturado at o Peru para que se pudesse estabelecer relaes comerciais mais freqentes e romper com o isolamento a que
estavam submetidos os espanhis de Assuno.
Logo foram organizadas frentes de colonizao. Colonos e jesutas
espanhis se instalaram no Pantanal, na regio do Itatim, aproveitando-se
da abundante mo-de-obra guarani. Nfrio de Chves, por determinao
prpria, fundou a primeira Santa Cruz de La Sierra na provncia dos Chiquitos e passou a pressionar as tribos chaquenhas. As bandeiras paulistas,
que desde o incio do sculo XVII passaram a investir sobre o territrio
espanhol em busca do indgena, depois de destruir o Guara, invadiram
a cidade de Xerez e, em conluio com os xereanos, as misses do Itatim.
Esses acontecimentos constituram fatores importantes para desorganizar completamente o quadro geogrfico nativo do Chaco e do Itatim. A extino de grupos indgenas, a destruio das misses jesuticas
114

Paulo Marcos Esselin

e o completo despovoamento da regio do Itatim provocaram um vcuo


demogrfico que foi aproveitado pelos ndios guaicurus e guans, que
passaram a se instalar na margem oriental do rio Paraguai, provavelmente
no comeo do sculo XVIII.
muito difcil determinar qual era o territrio dos guaicurus, porque eles eram caadores coletores (parcialmente no perodo colonial) e
tinham uma dinmica territorial extraordinria, o que se contrape ao
agricultor, que se fixa em um determinado local para cuidar de sua lavoura. Eles tinham um dinamismo espacial impressionante e, medida
que adotaram o cavalo como ingrediente cultural, eles passaram a se fazer presentes em distncias longnquas e localidades extremas, atacando
na periferia de Cuiab, em Assuno, o ncleo colonial luso-paulista no
Iguatemi, a fazenda Camapu, na cabeceira do rio Taquari. Enfim, eles
percorriam toda a regio entre a Serra de Maracaju e o rio Paraguai. A
chamada depresso ou plancie sedimentar do rio Paraguai, de Cuiab at
Assuno, era o territrio por onde circulavam em suas aes de pilhagem e saque, de conquista de escravos e mulheres e tudo o mais, porm
eles retornavam ao territrio tnico, na medida em que esses lugares mais
longnquos eram ocupados por outras naes indgenas rivais.
A regio que vai do sul de Corumb at o rio Apa, englobando a
regio do Pantanal do Nabileque, era a localidade onde os guaicurus se
reencontravam para realizar suas festas, sepultamentos e tudo o mais.
Era ai o corao do territrio deles. Era para esse local que sempre retornavam, onde ficavam suas aldeias propriamente ditas, embora falar em
aldeias seja muito relativo, porque seu investimento em habitao fixa era
quase nulo. O tipo de habitao desses nativos eram tendas ou barracas
que eram levadas no cavalo.
Na verdade, como eram caadores coletores, tinham o hbito de
acampar onde encontravam alimento. Quando este escasseava, levantavam acampamento e mudavam para outra regio. Como sufren de falta
de mantenimiento cada ao mudan de lugar, llevando a hombro todos los
enseres domsticos y la misma casa, que es porttil, tambien. (MURIEL,
1918, p. 229).
115

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Esse comportamento cultural eles no perderam e isso estimulou a


adoo do cavalo, que os ajudava no transporte de grande quantidade de
carga. Acima de tudo, a adoo do cavalo representou para esses ndios
uma arma de guerra, atravs da qual puderam impor vassalagem a outras
tribos mais distantes. (RIBEIRO, 1977). Praticavam a guerra de emboscada, assaltos, ataques e retirada. Tornaram-se exmios cavaleiros e se
apossaram de inmeras tropas selvagens de rebanhos bovinos e cavalares.
Em 1648, Antnio Raposo Tavares defrontou-se com os guaicurus e registrou que estes j criavam gado, cavalos e porcos. (BERTELLI, 1984).
Se han dedicado a criar y sostener pequens piaras de vacas y ovejas,
pero sin hacer uso de la leche, que aborrecen, como todos los indios selvages. Poseen muchos caballos. (AZARA, 1923, p. 58).
O comandante do forte de Coimbra, Francisco Rodrigues do Prado, em 1795 deixou registrado que:
Os primeiros que deram notcias destes barbaros foram os antigos
paulistas; e j os encontraram senhores de grandes manadas de
gado vaccum, cavalar e langero. /.../ os nativos usavam os animais
para acometer os paulistas ou espanhis. Quando os guaicuru
os viam, ajuntavam os cavallos e bois, e cobrindo os lados, os
apertavam de sorte que, com a violncia com que iam, rompiam
e atropellavam os inimigos e elles com a lana matavam quantos
encontravam diante. (RODRIGUES do Prado, 1856, p. 27).

Francisco Jos de Lacerda e Almeida, que passou pela capitania de


Mato Grosso, em 1780, a servio da Coroa Portuguesa, na condio de astrnomo da comisso dos limites, corrobora com o comandante Rodrigo
do Prado, ao afirmar que: [Os Guaicurus], criam gado vacum e langero,
pers, e cavalos que permutam por ferro e aguardente, etc.., e segundo
exatas informaes, tiradas dos espanhis, so muito ladres, e a maior
parte dos cavalos so furtados.( LACERDA E ALMEIDA,1944,p.72).
Os ndios, de posse do gado cavalar e bovino, com grande poder
de mobilidade, passaram a difundir tanto um quanto o outro por todo o
Pantanal da Nhecolndia, do Paiagus, do Nabileque e do Abobral. Esses
116

Paulo Marcos Esselin

deslocamentos comuns que os guaicurus faziam com freqncia, muito


em funo do fluxo e refluxo das guas do Paraguai, que os obrigavam a
procurar os terrenos mais altos e, quando baixavam, a retornar em busca
da caa, contribuiu decisivamente para que o eqino e bovino fossem
conduzidos por todas as reas de atuao desses indgenas. O cavalo,
como um meio de transporte mais eficiente, possibilitou ao guaicuru penetrar vastos territrios com seus rebanhos.
Nos ataques planejados que os ndios guaicuruss promoviam contra paulistas e castelhanos utilizando as boiadas, muitas delas se perdiam,
dando origem a novos rebanhos. Como se tratava de tribos nmades,
o seu rebanho no tinha querncia definida; era nmade tambm, certamente acompanhando o fluxo e refluxo das enchentes e as tropelias
guerreiras de seus pastores. (BARROS, 1998).
A presena dos ndios cavaleiros nos campos de Vacaria coincidiu
com a preocupao de portugueses e espanhis em consolidar posies
nas fronteiras ocidentais.
Os espanhis viam com temor o estabelecimento dos portugueses
em territrios que pelo Tratado de Tordesilhas lhes pertenciam. Esse temor aumentou quando os portugueses decidiram-se pela criao da Capitania de Mato Grosso em 1748, com administrao independente de So
Paulo, dando aos governantes locais poder de deciso sobre os assuntos
regionais.
Com a criao da Capitania, os portugueses desencadearam um
projeto de governo que resultou no estabelecimento de presdios guarnecidos por tropas estrategicamente situadas nos limites do Imprio Colonial, como o Forte Coimbra (1775), o povoado de Albuquerque depois
Corumb (1778), margem do rio Paraguai, o presdio de Miranda, em
1797.

117

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Vilas e Fortes fundados por determinao da Coroa Portuguesa na fronteira Oeste.


MELLO, Raul Silveira de. Corumb, Albuquerque e Ladrio. Rio de Janeiro:
Imp. do Exrcito, 1966. p. 10.Mapa Vilas e fortes fundadas pelos portugueses na
fronteira oeste.

Por sua vez, os castelhanos no deixaram por menos e construram


o forte de Vila Real da Conceio, acima da boca do rio Ipan, o de San
Carlos, s margens rio Apa, em 1777, e o forte Bourbon, em 1792, sobre
o rio Paraguai.
Com a construo dos fortes, o Governo espanhol passou a distribuir, atravs de concesses, terras aos colonos, e os beneficirios, que
ficavam obrigados a arcar com a defesa do territrio, ali foram formando
118

Paulo Marcos Esselin

fazendas de gado e cavalos e instalando estncias para o criatrio at a calha do rio Apa na fronteira com o atual Mato Grosso do Sul, procurando,
assim, consolidar a ocupao territorial.
Os ervateiros e vaqueiros paraguaios progrediam para o Nordeste
e o Norte e foram explorar mate e pastagens na regio das cordilheiras e
da margem sul do Apa. No raro, ultrapassando a linha do Apa, davam
batidas nas manadas aladas da regio do Miranda e do altiplano vizinho.
No encontraram ali a presena de portugueses. Chegaram por vezes at
Camapu, alm de que manifestavam vivo interesse em construir um forte sobre o Mondego, antigo Mbotetei. (MELLO, 1959, V. 2).
Em julho de 1797, comitiva castelhana que visitava o forte Coimbra transmitiu ao capito Francisco Rodrigo do Prado a notcia do plano
da fundao de uma vila castelhana onde antes fora a cidade de Santiago
de Xerez. (ALMEIDA, 1951). Em resposta, as autoridades portuguesas
passaram a estimular os ndios guaicurus a se lanarem em incurses
predatrias ao norte do rio Ipan-Guau sobre as propriedades castelhanas, onde os ndios destruram cento e tantas fazendas, apoderando-se de
mais de 20.000 cavalos sic. (ALMEIDA, 1951).
Os assaltos s propriedades castelhanas continuaram, os guaicurus fizeram vrias incurses conduzindo agora inmeras cabeas de gado
bovino para as proximidades do forte Coimbra, nos campos nativos de
Vacaria, plancie pantaneira. (BRUNO apud MAZZA, 1994).
Os portugueses no s estimulavam os ataques s propriedades
castelhanas, como tambm interceptavam os produtos roubados pelos
indgenas.
Em correspondncia ao comandante do forte Coimbra, Ricardo
Franco de Almeida Serra, o Governador da Capitania de Mato Grosso
apresentou sugestes ao comandante de como este deveria responder aos
espanhis sobre os animais que estavam sendo comprados dos indgenas:
V.M. depois de sondar o seu nimo, far pelos persuadir de que
com efeito s os ditos soldados tm entrado nesta pequena e
insignificante negociao, e que isto longe de os escandalizar,
119

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

antes uma das provas mais evidentes de que somos uns vizinhos
justos e sinceros, pois se tivessemos as intenses sinistras que eles
nos querem atribuir, ento, ou por conta da Fazenda Real, ou dos
particulares, se faria negociar um grande nmero de animais para
escitar com este interesse que os referidos ndios fossem roubar,
ou derrotar-lhe as suas fazendas quando para o pequeno nmero
que os soldados tem comprado, so mais do que sobejo os que
possuem e so propriamente seus, permitindo-se s debaixo desta
boa f aquelas insignificantes compras, que no podem ser objeto
do cime espanhol.
Que o contrrio at se no pode acreditar sendo no s o oposto
a piedade e justia de S.M.F e as providentes Leis que tem dado
para a reduo e governo dos ndios, mas at seria diametralmente
oposta aos fins que se propem este Governo, o qual, querendo
arranca-los das trevas do paganismo e da sua natural barbaridade,
no lhes havia de inspirar ao mesmo tempo, roubos e assassnios
to incompatveis com a Moral civil e crist e com o intentado fim
da sua civilizao. (OFCIO Instrues de CAETANO Pinto de
Miranda Montenegro para Ricardo Franco de ALMEIDA SERRA.
27/07/1797, in MENDONA, 1985, p. 207).

Ao se lanarem nas incurses predatrias ao norte do Ipan-Guau, os guaicurus deixavam suas mulheres e os filhos pequenos entregues
guarda e ao zelo da guarnio do presdio de Coimbra. (ALMEIDA,
1951). Ou seja, os ataques aconteciam sob a proteo da autoridade portuguesa. E quando os ndios massacravam a populao de uma aldeia
espanhola e sentiam-se perseguidos, vinham se pr sob a proteo das
guarnies em solo mato-grossense. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Em correspondncia para o Governador da Capitania de Mato
Grosso, o Governador do Paraguai, Lzaro de Ribeira, denunciou a ao
dos indgenas com suporte dos fortes portugueses:
En effecto los Estabelecimentos Hespanholes han sido insultados
repetidamente y os aggressores si avanzam a las maiores emprezas,
favorecidos dos Fuertes de Coimbra, e Albuquerque en donde no
solo si les concede asilo y protecion si no que sus Comandantes
permittem a sus subditos comprar a los Yndios o fruto dos robos
e rapinas que han echo em esta provincia. Apezar de um sistema
120

Paulo Marcos Esselin

tan contrario a las justificadas intenciones de la Corte de Lisboa


y apezar de los estragos que h occazionado en esta Fronteira,
pues a demas de las muertes Y atentados, q han commettidos
los barbaros com infracion de la paz que havio echo com los
Hespanoles, passo de tres mil caballos com crescido numero de
ganado vaccunolos que nos han robado. (OFCIO de D. Lazaro de
Ribeiro para Caetano Pinto de Miranda Montenegro, 719/ 1797, in
MENDONA, 1985, p. 214).

Estes acordos entre portugueses e os ndios guaicuruss foram de


grande valia para aqueles. Os ndios serviam de aliados nos conflitos declarados contra os espanhis, atacavam suas fazendas, prejudicavam e inviabilizavam seus estabelecimentos na regio e at mesmo roubavam-lhes
o gado, que era transportado para os fortes portugueses. Isso garantia
aos lusitanos o abastecimento de carne nos perodos de maior carncia.
(VOLPATO, 1987). Como tambm, impedia a ocupao da fronteira pelos colonos de origem espanhola.
Essa cumplicidade entre os soldados e oficiais portugueses e os ndios guaicuruss fica flagrante na correspondncia em que o Governador
da Capitania de Mato Grosso envia ao comandante do forte Coimbra:
E se o referido auxilio que lhe pedirem, for tambm contra
aqueles capites guaicurus, e guans, que vivem entre mansos e
pacificos, depois que V.M. lhes dar a escusa antecedentemente
referida, podera acrescentar como reflexo sua que no sabe com
que fundamento os espanhis possam pretender deste governo,
que lhes d ajuda, e favor contra uns homens que reduzio com
muito trabalho, e despesa da Fazenda Real, que vivem entre ns,
apartados j das suas brbaras incures, que no so os autores
dos danos praticados nas suas fazendas, pois h muito tempo nem
saem da nossa companhia, e que j so contados entre o nmero
de S.M.F, que longe de terem que requerer contra semelhantes
individuos, antes julga que o GOVERNO da PROVNCIA do
Paraguai tem muito que agradecer ao de Mato Grosso, por lhe
diminuir o nmero de seus inimigos, fazendo eficazes diligncias
para reduzir a civilidade o resto da nao guaicur. (OFCIO
Instrues de CAETANO Pinto de Miranda Montenegro para
121

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

Ricardo Franco de Almeida Serra, 27/10/1797, in MENDONA,


1985, p. 207-208).

Os portugueses tambm se aliavam aos guaicurus para combater


outros grupos nativos. Em 1830, 8 soldados sediados no forte Coimbra,
a convite de um cacique terena, viajaram durante uma semana atravs do
Gro Chaco para conhecer as aldeias daqueles ndios. Embora tenham
sido bem recebidos, foram posteriormente atacados traioeiramente, segundo relato dos militares. Um dos soldados morreu, dois ficaram gravemente feridos e os outros foram salvos pela interferncia de um cacique de uma aldeia vizinha, mas foram desarmados e despojados de tudo
quanto possuam, e s com muita dificuldade retornaram. Entretanto,
como pouco tempo depois do regresso deles, tivesse vindo descansar nas
proximidades do forte um grande bando de ndios guaicurus, os cinco
soldados imaginaram um plano para se vingar e arrancar do cativeiro dois
de seus companheiros. Tendo obtido a permisso do comandante, no
lhes foi difcil arrastar os guaicurus a tomar parte numa expedio semelhante primeira. Atravessaram ento de novo o Chaco e, escondidos nas
matas, cercaram durante a noite o aldeamento dos terenas e investiram
contra ele nas primeiras horas da madrugada, massacrando todos seus
habitantes. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Em 1802, o comandante do forte Coimbra decidiu uma ao ofensiva contra o fortim de So Jos do Apa. Partiu ento de Miranda com 54
soldados e 297 ndios, todos guaicurus. Aps o embate e a vitria portuguesa, os indgenas recolheram 300 cavalos do trfego da guarnio. Do
pouco gado que se achou no curral inimigo, fez-se diviso igual pelas
tropas. Considerando que o imposto era de 10% e que havia 360 cabeas,
36 foram destinadas Real Fazenda. Chamou a ateno do comandante a
prtica guaicuru no que concerne diviso do botim, ou seja: a presa pertence a quem a captura, de sorte que um cativo fica com quanto apanhou
e seu senhor sem coisa alguma. (MELLO, 1959, V. 2).
As investidas dos indgenas continuaram ainda mais ousadas, chegando eles, certa feita, a arrastar cerca de 3000 cabeas de bovinos e 1000
122

Paulo Marcos Esselin

eqinos das fazendas localizadas nas margens do rio Apa. Dessa vez, os
castelhanos, prevenidos, conseguiram reaver a maioria dos animais, que
j se encontravam muitas lguas ao norte do Apa. (BRUNO apud MAZZA, 1994).
A esse respeito presta importante contribuio Ablio Leite de Barros; diz ele:
Aqueles ndios, que aprenderam com os civilizados o uso do
cavalo como arma de guerra, tornaram-se terrveis saqueadores
das Colnias espanholas, (...) de onde retiravam principalmente
cavalos e gados. (...) Essa histria desfez um pouco o romantismo
com que costumvamos ver esses ndios cavaleiros. Eram ladres
de gado e ns, brasileiros, receptadores. Isso, no distante sculo
XVIII e comeos do XIX, tempo suficientemente distante para
amenizar nossa conscincia. Alis, os etnlogos nos ajudam nesse
amaciamento de culpa, pois nos garantem no se tratar de roubo.
Os ndios, nossos ancestrais, no tinham noo de propriedade.
timo!. (BARROS, 1998, p 77).

Mal sabia o senhor Ablio Leite de Barros que, atrs das iniciativas dos indgenas, estavam importantes autoridades provinciais como o
Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro e o comandante das
foras militares do baixo paraguaio, Ricardo Franco de Almeida Serra,
preservado em nossa memria como o militar exemplar que deteve heroicamente o ataque espanhol de D. Lzaro Ribeira em 1801.
Como os ataques s fazendas dos castelhanos passaram a ser comuns e inviabilizavam o projeto das autoridades espanholas de definir as
fronteiras com os portugueses, aqueles passaram a organizar tropas bem
armadas para repelir os indgenas. Primeiro, eles passaram a escorra-los e a impedir-lhes a entrada ao sul do Apa. Depois, enfastiadas com as
freqentes pilhagens e roubos de gado, as autoridades enviavam tropas
de Concepcion e So Carlos com o fim de persegui-los a ferro e fogo.
(MELLO, 1959, V. 2).
Entretanto, os indgenas continuavam as depredaes. Valendo-se
de suas habilidades eqestres e do conhecimento dos campos de Vacaria
123

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

e da campanha, retornavam ao carcheio de gado. (MELLO, 1959, V. 2).


Segundo (CASTELNAU, 1949, T. 2), era comum encontrar esses nativos
na posse dos produtos subtrados dos espanhis.
A intensificao do roubo promovida pelos guaicurus acabou por
conduzir a uma violenta represso por parte dos castelhanos, que passaram a repelir os ndios a canhonaos.
Nos anos de 1796-1797, partiu de Concepcion o capito D. Miguel
Baes, frente de 120 soldados espanhis, para castigar os indgenas.
Bateu, em diversas oportunidades, os nativos que, dispondo apenas de
armas primitivas, foram facilmente derrotados. Perderam 300 guerreiros,
alm do seu chefe Joo Queima de Albuquerque. (ALMEIDA, 1951).
Posteriormente, os espanhis voltaram fortemente armados e atacaram nova maloca dos guaicurus nas proximidades do rio Mondego. O
saldo foi a captura de mais de duzentos indgenas. (ALMEIDA, 1951).
D. Lzaro de Ribeira, Governador do Paraguai, enviou o coronel
D. Jos Espinola com o nico fim de restabelecer la paz com ellos, y
recuperar o mucho ganado maior que da empreza si havio llevado, ordenando-le al mismo tiempo que de nenhum modo entrasse armado em
territrio Portugues. (OFCIO de D. LZARO de Ribeira para Caetano
Pinto de Miranda Montenegro 7/9/1797, in MENDONA, 1985, p. 214).
Os espanhis invadiram o territrio portugus, armados e, contando com a complacncia dos lusitanos, capturaram e mataram seus
aliados, os guaicurus, sem que eles, os portugueses, em momento algum
esboassem qualquer reao para deter aquele massacre. No passado, esses nativos, ao lado dos paiagus, haviam causado enormes prejuzos aos
portugueses: a perda de 4000 vtimas pela sua flecha e lana e o prejuzo
que causaram, para mais de trs milhessic. (RODRIGO DO PRADO,
1856, p. 45).
Em correspondncia a Francisco Rodrigues do Prado, reconheceu
o comandante do forte de Coimbra que:
[no ano de 1797 os guaicuru] foram inopinadamente atacados
segunda vez, por um corpo de 700 espanhis armados e que com
124

Paulo Marcos Esselin

3 peas de artilharia encheram de terror aqueles referidos ndios e


assim que antigamente ali habitavam matando alguns, queimandolhes as toldaria e estacadas; tirando-lhes muitas mil cabeas de
gado que por despojo da sua devastao conduziram para perto
de Vila Real. [...] Animando-se o coronel D. Jos Espnola, que
o governo de Assuno constituiu comandante desta diligncia, e
chefe de tanta crueldade; o passar vinte lguas alm do Mondego
derramando o terror e o susto naqueles j aterrorizados e
flagelados ndios; o que aquele governo inda mandou repetir a 3
expedio, (...). (Correspondncia de Ricardo Franco de Almeida
Serra para Francisco Rodrigues do Prado. Presdio de Coimbra, 1
de Novembro de 1797, in MENDONA, 1985, p. 217).

Ricardo Franco reconheceu em sua missiva que os guaicurus vinham sendo duramente castigados pelas suas incurses em propriedades
castelhanas e, embora condodo, no impediu que os indgenas continuassem sendo armados para manter os ataques. (...) que a los barbaros, que
estan en medio de dos naciones civilizadas, se les dan en aquellos fuerte.
[Coimbra e Albuquerque] armas y municiones, ensenandoles su manejo,
(...). (Carta de D. LZARO Ribeiro para Caetano Pinto de M. Montenegro 23/02/1798, in MENDONA, 1985, p. 225).
Ao mesmo tempo em que os portugueses armavam os indgenas,
gado e cavalos por eles roubados dos colonizadores do Paraguai tinham
um mercado regular em Mato Grosso.
(...) Hei de remeter algumas ferramentas, e baetas para se comprar
aos ndios, uma partida maior de cavalos, e como uma mono do
prego est a chegar por estes dias, terei mais oportuna ocasio de
comprar as refferidas fazendas a melhor preo que os Armazns
Reais acham-se examidos absolutamente. Mas preciso manjar
V.M. esta negociao debaixo do maior rebuo por conta dos
nossos vizinhos.(...). (Correspondncia de Ricardo Franco de
Almeida Serra para Caetano Pinto de Miranda Montenegro Forte
Coimbra 31/06/1798, in MENDONA, 1995, p. 230).

Possivelmente, os portugueses temiam que a conhecida fria dos


nativos pudesse mais tarde voltar-se contra eles. Ao serem complacentes
125

A Origem do Gado Bovino no Mato Grosso Colonial

com os ataques desferidos por seus rivais castelhanos, eles se asseguravam do enfraquecimento dos grupos e do incio da sua desagregao, e,
por outro lado, os ataques continuados desses s fazendas na regio do
Apa enfraqueciam a colonizao castelhana.
De certa forma, os portugueses iam se livrando de incmodos que
impediam o seu estabelecimento naquela regio, sobretudo a falta de segurana para os colonos, provocada pelos vizinhos fronteirios e pelos
indgenas.
Nos campos da Vacaria, o rebanho era estmulo importante. Os
estoques haviam aumentado substancialmente: devido aos assaltos dos
guaicurus nas fazendas dos castelhanos no Apa, o gado havia ganhado
todo o Pantanal e estava ali espera dos pioneiros que dele ouviram falar.

126

Captulo 2
O Panorama das Transformaes
Sociais Polticas e Econmicas no Limiar
do Sculo XIX no Brasil e as suas
Conseqncias em Mato Grosso
2.1. As Transformaes Sociais Polticas e Econmicas
em Meados do Sculo XIX no Brasil
No limiar do sculo XVIII, as Coroas de Portugal e Espanha ainda mantinham a maior parte de seus imensos domnios coloniais conquistados nos sculos XVI e XVII, e as relaes polticas e econmicas
entre eles giravam em funo dos interesses da burguesia mercantil e das
exigncias do Estado Moderno.
A fragilidade do emergente sistema capitalista e das novas instituies estatais, nesse longo perodo de transio entre o feudalismo e
o capitalismo, que no conseguiram adequar-se rapidamente s novas
formulaes de produo, distribuio e consumo, determinou a aliana
entre os mercadores e a Coroa, numa troca de servios e garantias que se
definiram por um sistema de monoplios e privilgios concedidos pelo
Estado aos comerciantes. (COSTA, 1971).
A poltica preconizada pela burguesia mercantil pressupunha uma
ampla interveno estatal, seja assumindo diretamente algumas ativida-

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

des econmicas ou criando condies altamente favorveis a determinados grupos, atravs do monoplio, assegurando a eles a exclusividade do
mercado do comrcio interno e externo da Colnia e da Metrpole.
Essa aliana entre burguesia mercantil e o Estado resultou na adoo de uma srie de medidas polticas e econmicas que permitiu acelerar
a acumulao de capital na Europa.
Esse conjunto de medidas, que visava ao fortalecimento do Estado
Nacional e de um grupo de mercadores, foi chamado de Poltica Mercantilista.
Efetivamente, a expanso da economia de mercado para assumir
o domnio da vida econmica europia, esbarrava com uma srie
de bices institucionais legados pelo feudalismo; ao mesmo tempo
(...), o grau de desenvolvimento espontneo da economia mercantil
no a tinha capacitado para ultrapassar os limites geogrficos em
que at ento se vinculava o comrcio europeu. A emerso dos
Estados do tipo moderno rompendo essas barreiras cria condies
de enriquecimento da burguesia mercantil e seu fortalecimento
face s demais ordens da sociedade europia. A poltica
econmica do mercantilismo ataca simultaneamente tdas as
frentes, preconizando a abolio das aduanas internas, tributao
em escala nacional, unidade de pesos e medidas polticas tarifrias
protecionista, balana favorvel com conseqente ingresso do
bulho, colnias para completar a economia metropolitana.
(NOVAIS, 1971, p. 50 e 51).

O mecanismo pelo qual se processou a acumulao do capital foi,


sobretudo o monoplio do comrcio das colnias pela metrpole: as colnias constituam-se em mercados consumidores dos produtos metropolitanos e funcionavam como fontes fornecedoras de matria prima e
metais, se os tivessem. As colnias s poderiam comercializar com a respectiva metrpole, sendo que internamente era vedado produzir qualquer
produto que concorresse com artigos metropolitanos.
O monoplio do comrcio das colnias pela metrpole define o
sistema colonial porque atravs dle que as colnias preenchem
128

Paulo Marcos Esselin

a sua funo histrica, isto , respondem aos estmulos que lhes


deram origem, que formam a sua razo de ser, enfim, lhes do
sentido. (NOVAIS, 1971, p. 51).

A produo colonial, a no ser em casos espordicos, no deveria


ser transportada em navios estrangeiros, especialmente quando se tratasse de carga a ser vendida em outro pas, e as mercadorias no produzidas
na metrpole tambm no deveriam chegar s colnias em navios estrangeiros.
O comerciante metropolitano monopolizava a compra dos produtos coloniais e forava a baixa do preo, o que lhe permitia lucros astronmicos, uma vez que no continente europeu os vendia pelo preo de
mercado.
(...) reservando a si com exclusividade a aquisio dos produtos
coloniais, a burguesia mercantil metropolitana pode forar
a baixa dos seus preos at o mnimo alm do qual se tornaria
antieconmica a produo; a revenda, na metrpole ou alhures
a preo de mercado, cria uma margem de lucros de monoplio
apropriada pelos mercadores intermedirios: se vendido no
prprio mercado consumidor metropolitano os produtos coloniais,
transferem-se rendas da massa da populao metropolitana (bem
como dos produtores coloniais) para a burguesia mercantil; se
vendidos em outros pases trata-se de ingresso externo, apropriado
pelos mercadores metropolitanos. Igualmente, adquirindo a preo
de mercado, na prpria metrpole ou no mercado europeu,
os produtos de consumo colonial, (produtos manufaturados
sobretudo), e revendendo-os na colnia a preos monopolistas,
o grupo privilegiado se apropria mais uma vez de lucros
extraordinrios. Num e noutro sentido uma parte significativa da
massa de renda real gerada pela produo da colnia transferida
pelo sistema de colonizao para a metrpole e apropriada pela
burguesia mercantil; essa transferncia corresponde s necessidades
histricas de expanso da economia cepitalista (sic) de mercado na
etapa de sua formao. (...) Estado centralizado e sistema colonial
conjugam-se pois para acelerar a acumulao de capital comercial
pela burguesia mercantil europia. (NOVAIS, 1971, p. 51-52).
129

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

Do sculo XVI ao sculo XVIII, a chamada poltica colonial organizou as colnias a partir de pressupostos em que suas populaes nada
mais eram que fontes de rendas para as metrpoles e sua burguesia comercial, grandes fornecedoras de matria-prima e consumidoras de manufaturados.
Esse foi um perodo importante no qual as colnias desempenharam papel significativo, tendo o comrcio lucrativo permitido a acumulao de capitais e possibilitado que uma corrente de riquezas se concentrasse nas mos de alguns banqueiros e comerciantes europeus, riquezas
essas necessrias posterior expanso do sistema capitalista.
A descoberta das terras do ouro e da prata, na Amrica, o extermnio, a escravizao e o enfurnamento da populao nativa nas minas,
o comeo da conquista e pilhagem das ndias Orientais, a transformao
da frica em um cercado para a caa comercial s peles negras marcam a
aurora da era de produo capitalista. (MARX, 2 ed., 1985, p. 285, V. 2).
Na Europa, pari e passu ao processo de acumulao de capital, deu-se o processo histrico por meio do qual o produtor foi separado dos
meios de produo e foi sendo criada uma oferta de trabalho adequada
s novas necessidades da sociedade capitalista. Ai ento que comea a
desaparecer o arteso; o pequeno produtor independente, que trabalhava diretamente para o consumidor, vai sendo substitudo pelas grandes
unidades produtoras e as manufaturas passam a reunir grande nmero
de trabalhadores como simples assalariados e sob a direo de um patro
que dispunha do capital. (PRADO JNIOR, 5 ed., 1959).
Foi no final do sculo XVIII e no comeo do XIX, que esse fenmeno pde ser melhor visualisado. A sociedade ocidental europia experimentou um processo de transformao estrutural e de extraordinria
expanso econmica que marcou o estabelecimento do sistema capitalista
como modo de produo dominante. Alguns poucos pases desenvolvidos industrializaram suas economias, possibilitando assim que a burguesia, como classe social dominante, assumisse a hegemonia do poder poltico e dominasse a produo de riqueza, pois se tornou sua proprietria.
130

Paulo Marcos Esselin

No sculo XVIII, emergiu desse processo, como grande potncia


do capitalismo, a Inglaterra. Embora tenha promovido a Revoluo Industrial e se tornado a primeira economia do mundo, utilizando-se do
protecionismo alfandegrio e do monoplio comercial, quando conquistou uma base tcnica muito mais poderosa, com produtividade superior
do resto do mundo, passou a exigir a reduo das tarifas de importao
e fim dos monoplios comerciais. Como pas hegemnico, passou a agir
a favor do novo sistema, e o livre comrcio era apenas figura de retrica
para quem podia mais naquele momento.
A burguesia inglesa percebeu que, com o fim dos monoplios e
com a reduo das tarifas alfandegrias, a indstria ganharia muito, j que
a supremacia de sua produo exigia novos mercados, tanto para a venda da sua extraordinria produo de manufaturados17 como para obter
matria-prima, pois internamente ela possua o bsico, que era o carvo
mineral e o minrio de ferro, e o resto, sobretudo o algodo, ela tinha
que importar. Portanto, para continuar a sua produo eram necessrias a
expanso comercial e a conseqente destruio dos monoplios.
Naturalmente, o avano do capitalismo industrial se voltou contra
todos os monoplios, cuja destruio completa apareceu como condio necessria ao seu desenvolvimento. Os imprios coloniais ibricos,
fundados puramente no monoplio, achavam-se por isso condenados a
desaparecer. (PRADO JUNIOR, 5 ed., 1959).
Em tese, ainda em princpios do sculo XIX, o mercado colonial
continuava conservando rgido controle monopolista. Portugal desempenhava o simples papel de intermedirio na circulao dos produtos, sobretudo daqueles produzidos na Inglaterra, j que o Reino no era nem
consumidor aprecivel dos produtos coloniais, que se destinavam a outros

17 Com a Revoluo Industrial, a Inglaterra, que importava 1 milho de libras-peso do algodo


em 1701, em 1750 elevou a 3 milhes; em 1781, 5.300.000; em 1784, 11.482.000; em 1789,
32.576.000; em 1799, 43.000.000; e em 1800, 56.000.000. O mesmo ocorreu na siderurgia: a
produo cresceu 10 vezes em 40 anos, enquanto a de ferro-gusa passou de 68.000 toneladas em
1788 para 1.347.000 toneladas em 1839. (IGLESIAS, 2 ed., 1981, p. 87 e 88).

131

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

mercados, nem fornecedor dos artigos consumidos no Brasil. (PRADO


JNIOR, 5 ed., 1959).
No final do sculo XVIII, embora enfraquecido, Portugal ainda
mantinha para si larga faixa do mercado colonial, que j enfrentava a
concorrncia estrangeira atravs do eficiente contrabando organizado por
navios britnicos com complacncia das autoridades coloniais.
No entanto, um acontecimento acelerou o processo histrico e deu
o golpe decisivo no sistema de monoplio: as guerras napolenicas que
culminaram com a invaso do Reino Portugus e a conseqente transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil sob a proteo inglesa, o
que acarretou profundas mudanas no relacionamento poltico e econmico entre a metrpole e a colnia.
No Brasil, a primeira medida tomada por D. Joo VI foi a abertura
dos portos em 1808, franqueando-o ao comrcio internacional livre. A
essa se seguiram muitas outras medidas que liberavam a produo e comrcio da colnia, uma vez que a permanncia das proibies era incompatvel com a sua nova situao de sede da monarquia.
Pelo alvar de 01 de Abril de 1808 permitiu o livre estabelecimento
de fbricas e manufaturas. (...) A 30 de Janeiro de 1810 (...)
autorizou todos os vassalos a vender, pelas ruas e casas, qualquer
mercadoria que tivesse pago os competentes direitos. (...) O alvara
de 28 de Setembro de 1811(...) declarou livre a todos comerciar
quaisquer gneros no vedados. A 11 de Janeiro [1812], (...)
autoriza-se o Conselho das Fazendas a conceder licenas para o
corte do pau-brasil. O decreto de 18 de Julho de 1814, permitiu
a entrada de navios de qualquer nao nos portos dos Estados
Portugueses e a sada dos nacionais para portos estrangeiros. A
11 de agsto de 1815, (...) [foi permitido] aos ourives trabalhar e
negociar livremente com obras de ouro e prata. A srie de medidas
culmina com a lei de 16 de Dezembro de 1815, elevando o Estado
do Brasil a graduao e categoria de Reino. (COSTA, 1971, p. 75).

A abertura dos portos brasileiros e todas as outras medidas que a ela


se seguiram representaram a liberdade do produtor e do consumidor brasileiro, que daquela data em diante puderam levar ao mercado seus produtos
132

Paulo Marcos Esselin

ou comprar de outros pases sem a intermediao dos portos portugueses,


chegando assim ao fim o regime de monoplio e o do pacto colonial.
Se por um lado, tais medidas representavam uma enorme concesso aos interesses ingleses, j que apenas eles poderiam comercializar com
o Brasil, pois eram os nicos que possuam uma frota martima capaz
de garantir o transporte das mercadorias com segurana, em funo da
guerra europia que tornava arriscada a travessia do Atlntico (RIBEIRO
JNIOR, 1988), por outro lado, vieram atender a elite mercantil brasileira, que h muito queria comercializar livremente e gerir os seus prprios
negcios, emancipar-se da tutela da administrao portuguesa e absorver
os lucros da exportao que antes eram carreados para a metrpole.
Os grandes proprietrios rurais tinham conscincia clara de que
Portugal constitua um entreposto oneroso e a voz dominante na
poca era que a colnia necessitava urgentemente de liberdade
de comrcio. O desaparecimento do entreposto lusitan logo se
traduziu em baixa de preos das mercadorias importadas, maior
abundncia de suprimentos, facilidades de crdito mais ampla
e outras bvias vantagens para a classe de grandes agricultores.
(FURTADO, 24 ed., 1991, p. 116).

A derrota de Napoleo e o restabelecimento da ordem aristocrtica


na Europa recolocam em Portugal a discusso sobre a recolonizao do
Brasil. A metrpole desejava restabelecer a sua antiga condio privilegiada no comrcio luso-brasileiro.
A Revoluo Liberal do Porto, de 1820, embora um movimento
aparentemente de cunho liberalizante, levou ao poder a burguesia comercial, que imediata e paradoxalmente convocou as cortes para a elaborao
da primeira Constituio portuguesa, e o primeiro ato dos constituintes
foi o de forar a volta do monarca D. Joo VI a Lisboa e exigir dele a recolonizao do Brasil em benefcio dos interesses do comrcio portugus.
Para a Metrpole, tratava-se de restabelecer a situao antiga de
intermediria nas trocas. Para a Colnia, tratava-se de impedir que
se restabelecesse aquela situao antiga. Para as foras feudais da
133

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

Europa continental, tratava-se de salvar a estrutura colonialista


peninsular. Para o capitalismo em expanso, tratava-se de manter
o comrcio livre e de extinguir o trfego negreiro e liquidar o
trabalho escravo. (SODR, 13 ed., 1990, p. 186).

Esse propsito colonialista da burguesia portuguesa acabou por


agravar as contradies entre a elite colonial e a metropolitana. Contra
a recolonizao se organizaram as elites brasileiras, oferecendo vigorosa
reao, e desse entrechoque resultou a independncia do Pas.
A articulao pela independncia do Brasil uniu a classe dominante
colonial, que encontra, alm disso, o apoio das outras classes ou camadas
sociais. Ela empresa e realiza a Independncia, mas no sentido de configurar o pas sua imagem e semelhana. (SODR, 13 ed., 1990, p. 187).
Assim, ela adota os seguintes procedimentos:
- Substituiu a aliana com a nobreza mercantil portuguesa por
uma aliana com a burguesia europia;
- Em conseqncia, conquistou a liberdade de comrcio e o aparato liberal como forma exterior;
- Resistiu presso no sentido de liquidar o trfico negreiro e o
trabalho escravo, mantendo-os enquanto possvel;
- Resistiu s alteraes estruturais internas, mantendo o seu domnio social absoluto; batendo-se por um mnimo de alteraes
formais conservando, inclusive o regime monrquico e do titular
desse regime, da representar o Imprio a classe que empresa a
independncia. (SODR, 13 ed., 1990).
A estrutura scio-econmica do Brasil, fundamentalmente agrrio
e escravista, no permitiu o desenvolvimento de uma burguesia forte.
Preponderaram os grupos agrrios, preocupados apenas em manter as
medidas liberais concedidas por D. Joo VI quando este estava no Brasil,
ou seja, a liberdade de comrcio e a emancipao da tutela administrativa
portuguesa e do fisco, mantendo porm intacta a escravido.
134

Paulo Marcos Esselin

2.2. O Brasil Independente


Os trs sculos de domnio colonial e de monoplio comercial
transformaram a economia brasileira em fornecedora de produtos agrcolas tropicais, dependente do mercado externo. Baseado no latifndio e
monocultura, o Pas permaneceu refm das flutuaes do mercado internacional, exceo do perodo de 1693 a 1780, aproximadamente, quando
houve o predomnio da minerao, sobretudo do ouro.
Durante o ciclo do ouro, o acar brasileiro, o mais importante
produto de exportao, havia perdido o mercado para o antilhano. Como
de regra, no perodo mencionado, a agricultura experimentou um perodo de completa decadncia, situao que se modificou sobretudo a partir
da segunda metade do sculo XVIII.
O crescimento da populao europia, com o conseqente aumento das atividades econmicas e comerciais em todo o mundo, sobretudo
devido Revoluo Industrial, refletiu intensamente no mundo colonial:
seus mercados se alargaram e seus produtos se valorizaram. (PRADO
JNIOR, 5 ed., 1959).
O complexo antilhano para a produo aucareira, montado um
decnio aps a expulso dos holandeses do nordeste brasileiro, tornou-se
em pouco tempo um poderoso centro que controlava grandes reas de
cultivo e possua engenhos aucareiros de grandes propores. Contando
com uma posio geogrfica privilegiada, mais prxima dos centros consumidores, e com equipamentos de ltima gerao empregados no seu
beneficiamento, dominou o mercado at que a desarticulao momentnea da sua produo, devido s lutas coloniais em torno da Revoluo
Francesa, e o conseqente colapso da sua produo impulsionaram favoravelmente o acar brasileiro, que recuperou mercados perdidos.
Outro fator importante que estimulou a agricultura brasileira foi
a procura pelo algodo. Em fins do sculo XVIII, as guerras pela independncia dos EUA prejudicaram o fornecimento de algodo s fbricas
inglesas, cabendo ao Brasil suprir as necessidades daquele mercado.
135

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

Os dados abaixo avaliam o crescimento da cultura do algodo brasileiro sobretudo no Maranho:


Anos

Exportao

1760

130 Sacas

1770

3.511 Sacas

1780

7.414 Sacas

1790

11.321 Sacas

1800

28.789 Sacas

1810

52.460 Sacas

1820

66.619 Sacas

Fonte: (AMARAL apud PINTO, 1971, p. 129).

Estmulo no mesmo sentido recebeu o couro no incio do sculo


XIX com a crise da rea platina ligada ao movimento de independncia.
O embargo act americano, de 1807-1808, e a nova guerra dos Estados
Unidos com a Inglaterra, de 1812 a 1814, incrementaram tambm a exportao de couros, algodo, fumo e cacau. (SIMONSEN, 1937, p. 301, T. 2).
Outro produto que teve sua produo ampliada foi o arroz, que
mereceu a ateno da Coroa para proteg-lo da concorrncia exterior.
D. Maria I, por alvar de 24 de julho de 1781, prohibira a entrada de arroz que no fosse produzido em territrios portuguezes. (SIMONSEN,
1937, p. 299, T. 2).
Esse renascimento da agricultura, no entanto, foi algo apenas circunstancial e de curta durao. O fim das guerras napolenicas e o restabelecimento da paz na Europa restringiram os mercados para os produtos brasileiros, reduzindo drasticamente as exportaes, alm de faz-los
voltar a enfrentar a concorrncia das reas que tiveram suas economias
afetadas pelo processo de independncia ou pelas guerras.
O acar sofreu a concorrncia do novo grande produtor, Cuba, e
do acar extrado da beterraba, que em 1860 j supria 25% do consumo
mundial, em 1882 atingia 50% e em 1900, 75%. (SODR, 1958). Aliada
concorrncia externa havia ainda a baixa produtividade da agricultura
brasileira, sobretudo a aucareira.
136

Paulo Marcos Esselin

Fenmeno semelhante enfrentou a cultura do algodo em virtude


do fim das guerras pela independncia nos Estados Unidos e pela retomada da produo naquele pas. As exportaes para a Inglaterra, que
chegaram casa de 48.279 sacas em 1820, despencaram para 26.364 em
1821. (PINTO, 1971, p. 131). O clima mais propcio para o desenvolvimento dessa cultura, a facilidade de plantaes em larga escala, a menor
distncia dos mercados consumidores, a inverso de capitais ingleses os
grandes consumidores do artigo e as invenes de ordem tcnica ali
verificadas colocaram os colonos americanos em situao privilegiada.
(SIMONSEN, 1937, T. 2).
O mesmo aconteceu com o arroz e o couro. No caso do primeiro,
a produo da Carolina, nos Estados Unidos, voltou normalidade no
comeo do sculo XIX e desalojou do mercado o seu concorrente brasileiro, enquanto que o segundo produto ressentiu-se da concorrncia da
produo platina. (PINTO, 1971).
Temporariamente, os produtos tradicionais da agricultura brasileira se beneficiaram de uma conjuntura favorvel e recuperaram espao
no mercado externo, sobretudo com a elevao dos seus preos. Esse
surto de prosperidade, todavia, foi de curta durao, uma vez que o Pas
enfrentou srias dificuldades econmicas nos primeiros anos como nao
independente.
Essa crise geral da agricultura tradicional brasileira se estendeu de
1821 a 1850 e foi marcada pela reduo dos preos dos produtos exportveis, com a conseqente queda das receitas, e pela dependncia financeira
em relao Inglaterra, herana dos tempos coloniais.
A situao de predomnio dos ingleses sobre Portugal e suas colnias foi consolidada no Brasil com a assinatura do tratado de 1810. Por
ele, os direitos aduaneiros sobre as mercadorias inglesas foram fixados
em 15%; para os produtos portugueses em 16%; e, para os produtos de
outras naes, em 24%. Assim, Portugal pagava mais do que a Inglaterra
para comercializar com a sua prpria colnia (MENDES JNIOR et al
2 edio, sd.).
137

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

Os ingleses, detentores de uma base tcnica muito superior dos


demais pases e em condies de enfrentar com muita vantagem a concorrncia portuguesa, usufruam ainda de uma taxa alfandegria que lhes
dava o domnio absoluto do comrcio do imprio lusitano. As conseqncias disso foram desastrosas para a economia brasileira, pois o barateamento dos produtos ingleses e a facilidade de sua importao logo
contriburam para o crescimento da remessa de todo tipo de manufatura
britnica para o Brasil.
O tratado ainda arruinou a nascente manufatura nacional, que surgira aps a revogao do decreto de D. Maria I, o qual proibia a instalao de indstrias no Brasil. Ficou o Pas, assim, condenado por muitos
anos a um desenvolvimento cuja orientao era exclusivamente agrria
e voltada a atender os mercados europeus. Naturalmente, no foi essa a
nica razo do retardamento do surto industrial brasileiro, mas a reduo
das tarifas contribuiu para liquidar as iniciativas industriais.
O aumento das importaes coincidiu com a substancial reduo
das exportaes de produtos nacionais, e, como resultado, a balana comercial tornou-se deficitria. Na dcada de 20 do sculo XIX, a crise
agravou-se ainda mais, agora devido guerra da Cisplatina (1825-1828).
Para fazer frente s despesas, o Novo Estado lanou mo de emprstimos
junto Inglaterra, pagando juros altssimos e com isso limitando ainda
mais a autonomia do Governo brasileiro.
Emprstimos externos brasileiros (NORMANO, 1939, p. 211):
Anos

Valor nominal

Taxa

1824

L 1333,300

Cobrir dficit da dvida flutuante e


amortizaes de emprstimos anteriores

1825

L 2352,900

Idem Juros e amortizao

1829

L 769.200

Idem

1839

L 411.200

Idem

1843

L 732.600

Idem

1852

L 1.040,600

4.5

Idem

138

Fim a que se destina

Paulo Marcos Esselin

Os dficits oramentrios contnuos que o Pas enfrentou desde


1808, quando da transferncia da Corte Portuguesa, foram pagos recorrendo-se a emprstimos, deixando-se de honrar compromissos assumidos, ou emitindo-se papel-moeda sem lastro ou ainda mantendo-se em
atraso o pagamento dos funcionrios pblicos. Para atenuar a crise da
balana comercial, o Governo introduziu um imposto de 8% nas exportaes, reduzindo assim os lucros da classe dominante.
Essa situao refletiu negativamente, provocando descrdito pblico, desvalorizao da moeda, inflao e encarecimento do custo de vida.
Todos eles, cada qual com a sua cota prpria, contriburam para agravar
ainda mais o geral desequilbrio da vida econmica do Pas. (PRADO
JNIOR, 5 ed., 1959).
A rotineira escassez de recursos financeiros, justamente nos primeiros anos aps a conquista da independncia poltica, criou um clima
de insatisfao entre as provncias e o Governo central. As revoltas foram se sucedendo e, duas dcadas aps a independncia, Par, Maranho,
Pernambuco, Bahia, Cear, Minas Gerais, So Paulo, Rio Grande do Sul
e Mato Grosso enfrentaram conflitos internos que nada mais eram do
que um reflexo do processo de empobrecimento do Pas e que levaram o
primeiro Reinado derrocada econmica.

2.3. Os Reflexos da Crise Econmica do Primeiro Reinado


e o Desenvolvimento da Pecuria no Norte de Mato
Grosso
A notcia da Independncia do Brasil s chegou Capitania de
Mato Grosso em 22 de janeiro de 1823, pouco menos de cinco meses
aps a sua proclamao, tendo sido ruidosamente comemorada. (CORRA FILHO, 1969).
J no final do sculo XVIII, o esgotamento das minas de ouro era
progressivo e a Capitania havia entrado em acentuada decadncia econmica. Os diamantes, explorados desde 1805 no distrito de Diamantino,
139

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

no conseguiram apresentar-se como alternativa econmica, e j em 1825


essa atividade se encontrava em franca decadncia. O momento era de
extrema dificuldade: as receitas eram inferiores s despesas e as rendas
pblicas iam diminuindo pari e passu produo das minas. A decadncia
material era visvel, sendo marcada pelo deslocamento de capitalistas e
de mo-de-obra escrava para alm dos limites de Mato Grosso. Transparece, cristalinamente, que tal deslocamento decorreu da necessidade de
desmobilizar capitais da atividade mineira para sua aplicao em outros
ramos de produo. Entre 1819 e 1828, o nmero de escravos retrocedeu
de 14.180 para 12.715. (ALVES, 1985).
Em 1828, a provncia enfrentou srios problemas com contnuos
dficits em suas finanas:
Receita Total

32.644$020

Despesa Total

102.135$050

Dficit

69.490$430

Fonte: (DALLINCOURT, 1881, p. 186, V. 3).

A escassez de ouro e de diamante criou um quadro desolador na


Capitania que, a exemplo de outras partes da Colnia, passou a depender
das remessas da administrao central para fazer frente s suas despesas
e s assim garantiu a sua sobrevivncia.
Essa diferena entre despesa e receita atingiu um ponto em que os
funcionrios pblicos civis e militares vendiam o direito de receberem
seus salrios atrasados com desgio de at 90% do valor, o que os obrigava a terem uma segunda atividade que pudesse garantir a sua sobrevivncia. (CORRA FILHO, 1969).
medida que os salrios atrasados iam se acumulando, surgiam
novas idias que iam sempre ao encontro dos interesses dos grandes comerciantes, em detrimento dos trabalhadores civis e militares. Foi implantada pelas autoridades provinciais uma espcie de trfico, com a permuta do soldo por peas de tecido, mediante recibos comprobatrios, que
140

Paulo Marcos Esselin

tornavam seus detentores credores da Fazenda Pblica. Alguns desses


compradores doavam o total de documentos adquiridos para a Fazenda
Pblica a fim de receberem honrarias e ttulos; outros obtinham, atravs
do seu prestgio, o resgate integral dessas dvidas, com grande margem de
lucro. (CORRA, 2000).
A maneira encontrada pelo Governo imperial para financiar o
dficit da balana comercial foi a emisso do papel-moeda e a elevao
dos preos dos produtos importados, provocada pela desvalorizao da
moeda. Essas medidas atingiram especialmente a populao urbana, pequenos comerciantes, empregados pblicos e do comrcio e militares,
que tiveram drasticamente reduzido seu poder de compra. (FURTADO,
24 ed., 1991).
Esse conjunto de medidas, que visava sobretudo reduzir as importaes, elevou a taxa de inflao, promoveu um rpido empobrecimento
das camadas mdias urbanas e exacerbou o dio contra os portugueses,
sobretudo aqueles que eram comerciantes, responsabilizados pela populao pelos contnuos aumentos de preos dos produtos.
Em Mato Grosso, um pequeno grupo de comerciantes portugueses remanescente da extinta estrutura colonial monopolizava a poltica
e o comrcio e detinha os melhores cargos e empregos pblicos; ainda
desse grupo se recrutavam os administradores locais, como tambm dali
saam os representantes do povo s Cmaras Alta e Baixa do Congresso.
Esses comerciantes, dispondo de capital suficiente para investir,
adquiriam toda a mercadoria que tivesse aceitao comercial, nos portos
fluviais ou mesmo direto dos produtores, para revend-la populao
urbana com alta margem de lucro. Isso redundava em verdadeiro monoplio comercial, encarecendo os gneros que constituam a base da alimentao da populao pobre da provncia, como milho, farinha, arroz,
toucinho, feijo. (CORRA, 1976).
Era natural, portanto, que entre a populao assalariada, pequenos
e mdios comerciantes e militares se professasse uma profunda insatisfao com aqueles que detinham o poder local, porque era a eles atribuda
a culpa por todos os males que afligiam as classes mdia e baixa. me141

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

dida que a crise ia se ampliando, os comerciantes portugueses (brasileiros adotivos) passaram a ser identificados com ela e a enfrentar renhida
resistncia por parte da populao urbana. No ano de 1831, sucediam-se
manifestaes em Mato Grosso, de civis, soldados e oficiais inferiores
pedindo a demisso dos brasileiros adotivos dos empregos pblicos, reivindicaes essas no atendidas.
Em uma regio em contnuo processo de decadncia, os estrangeiros ou os de fora, como eram chamados eram encarados como concorrentes, aqueles que tiravam dos nativos as oportunidades de trabalho
e emprego e que, tambm por isso, eram duramente combatidos.
Diante da nova situao menos promissora, a economia produtora
mato-grossense foi obrigada a lanar mo de novas alternativas, buscando
produtos que pudessem encontrar o caminho da exportao e devolver o
equilbrio s finanas pblicas.
Em 1802, estando em Cuiab como enviado da Coroa Portuguesa,
o padre Jos de Siqueira, Professor Real da Filosofia Racional e Moral da
Vila de Bom Jesus de Cuiab, elaborou um longo relatrio sobre a situao da minerao na Capitania, criticou a ausncia de tecnologia, apresentou alternativas para melhorar o desempenho da extrao do metal e
por fim revelou:
Esto as Minnas cansadas; os seus jornaes j no cobrem as
despezas do ferro, asso, alimento e vestuario dos escravos e
porisso o mineiro j desesperado se passa a lavrador ou creador
de gado, ou erije hum engenho daguardente e assucres: p.m onde
se poder dispor, e qual o equivalente para formar a troca que se
chama compra e venda. (SIQUEIRA apud HOLANDA, 3 ed.,
1990, p. 129).

A reduo drstica da produo das minas e a impossibilidade da


troca a que se referiu o enviado real estimularam o minerador busca de
outras alternativas que pudessem garantir o seu sustento. Nessa procura, incentivou-se a extrao da ipecacuanha, exportada, desde 1830 at
os dias de hoje, para os laboratrios farmacuticos europeus. (AYALA
& SIMON, 1914, p. 259). Na rea mineradora nos arredores de Cuiab,
142

Paulo Marcos Esselin

j desde o sculo XVIII, existia uma insipiente, mas expansiva, economia agropecuria destinada ao abastecimento regional, como ocorreu em
Gois e principalmente em Minas Gerais. (MAMIGONIAN, 1986).
As novas alternativas econmicas se desenvolveram em grandes
propriedades territoriais e aos poucos tomou para si um nmero cada
vez maior de atividades: nessas unidades as matrias primas passaram
por todas as fases at o preparo definitivo para o consumo da populao
que ali vivia, tudo se obtinha dentro dos limites da unidade autnoma,
conhecida como complexo rural. (PAIM, 1957, p. 17).
O complexo rural inicialmente se organizou como atividade complementar a minerao, e essa economia foi ento se desenvolvendo para
produzir uma oferta de bens de consumo que pudesse atender a todos
aqueles que estavam envolvidos na atividade principal que era a minerao. Enquanto o ouro e o diamante eram encontrados abundantemente,
e tendo eles alto valor de troca, muito daquilo consumido internamente
era adquirido dos comerciantes portugueses. medida que a crise foi se
ampliando, sobretudo com o encarecimento dos produtos importados,
paulatinamente foi se desenvolvendo um processo substitutivo de importaes no interior dessas propriedades: comprava-se apenas aquilo que
no era possvel produzir internamente, como prataria, loua, ferragem,
etc.; o restante, muito rapidamente, passou a ser produzido nas grandes
propriedades, geralmente artigos de consumo, com emprego de tcnicas
extremamente rudimentares.
O mercado externo no proporcionou recursos suficientes para a
compra dos artigos de consumo dos quais necessitava a populao. Em
conseqncia, voltava-se produo direta, a fim de se superar este obstculo, promovendo no seio da agricultura as atividades manufatureiras.
Cada fazenda era uma unidade econmica autnoma, e, como o sistema
era adotado por todas as fazendas, as unidades autnomas constituam
ento a base da economia brasileira, na qual preponderava o setor natural
da produo. (PAIM, 1957).
Esse modelo de economia de autoconsumo se desenvolveu em algumas regies de Mato Grosso e, no sculo XIX, combinou caracters143

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

ticas de auto-abastecimento com alguma finalidade mercantil, no deixando de ser retratado pelos viajantes que galgaram a regio no incio do
sculo XIX. Referindo-se fazenda Jacobina, o desenhista da expedio
de Langsdorff deixou registrado: Grandes armazens, quatro engenhos
de assucar, dois tocados agua e dois por bois, uma olaria, uma machina
de soccar, milho, ranchos, tudo isso dava ao estabelecimento as apparencias de uma alde. (FLORENCE, 1875, p. 241).
Francis Castelnau, na dcada de 40 do sculo XIX, d mais informaes a respeito da fazenda Jacobina. O principal cultivo era o da cana-de-acar, da qual se extraa a aguardente. Cultivavam-se, ainda, mandioca, milho, feijo, banana, arroz, algodo, fumo, alm de produzir-se
tecido de algodo e manter-se um importante criatrio de gado bovino,
suno e de aves. (CASTELNAU, 2000).
Essas propriedades, estabelecidas nas proximidades dos centros
urbanos, garantiam uma produo regular de gneros, desde alimentos
at tecidos, que eram absorvidos pela populao.
Em 1828, Luis dAllincourt registrou o grau de expanso da economia pastoril mato-grossense: na capitania mor do Diamantino constatou
46 sesmarias, quasi todas destinadas lavoura, como as de Matto Grosso
(...), em Cuiab averbou 317 das quaes 92 so unicamente destinadas a
criao de gado vacum e cavallar. (DALLINCOURT apud CORRA
FILHO, 1926, p. 18).
Do resumo do seu recenceamento, que estava muito aqum da realidade, registrou:
Fazendas de gado grandes e pequenas
Total das Produo N de rezes que anualmente
Nmero
cabeas
Anual
vo aos cortes pblicos
CUIAB
51
161.416
40.300
995
DIAMANTINO
6
1.817
354
370
MATTO GROSSO
7
9.120
1.900
375
TOTAL
64
172.353
42.854
1.740
Localidades

Fonte: (DALLINCOURT apud CORRA FILHO, 1925, p. 20).

144

Paulo Marcos Esselin

Dessas propriedades, algumas se sobressaam. Era o caso da Jacobina, a mais rica fazenda da provncia, com rea de quatro lguas em
quadra, das quais dois quartos, quando muito, eram cultivados; o resto
era composto de florestas virgens, lizeiras e pastaria. Duzentos escravos
de trabalho dos dois sexos e sessenta crianas formavam a escravaria;
mas havia quase igual nmero de gente forra, entre agregados, crioulos,
mulatos e ndios, que trabalhavam mais ou menos para si, ou pagos pelo
proprietrio da terra, no imvel havia em torno de 60.000 rezes: a maior
parte em estado selvagem. (FLORENCE, 1875).
Desde 1830, havia um comrcio regular entre Cuiab e a costa. Os
comerciantes dispunham de quinze tropas, variando de 50 a 200 animais
cada uma, que faziam o intercmbio pelo caminho de Gois. No lombo
deles, exportavam o couro do gado vacum, peles de ona e de veados,
ouro em p, diamantes e ipecacuanha. Da costa vinham o vinho, sal,
plvora, chumbo, azeite e equipamento para engenho de acar. (CASTELNAU, 2000).
O principal excedente dessa economia foi o gado bovino, pois havia um grande volume dele em torno de Cuiab vivendo de forma extensiva, disponvel para a comercializao.
Pertencentes a grandes fazendeiros que no eram forados financeiramente a vender toda a produo anual, a pecuria se expandiu parcialmente, independente do mercado favorvel, com grandes reas de
pastagem natural, custos de produo insignificantes, quase nenhuma
mo-de-obra, terras geralmente obtidas atravs de doaes feitas pelo Estado e providas de salinas naturais ao sul e sudoeste de Cuiab. Sendo assim, desde o sculo XVII, medida que o mercado no absorvia a produo anual, o rebanho crescia geometricamente. (MAMIGONIAN, 1886).
Com os grandes estoques de bovinos que se formaram em Cuiab
e seus entornos, a partir de 1832, esforos foram feitos no sentido da
construo de uma picada que possibilitasse aos pecuaristas vender seus
excedentes. O caminho, concludo somente em 1835, bordejava o sop
145

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

da serra de So Loureno, transpunha o Piquiri, donde rumava para as


cabeceiras do Sucuri e ao Paranaba e, aps a travessia deste, continuava
at Uberaba, cidade mineira que tradicionalmente se dedicava pecuria.
Por essa via, entraram pela primeira vez sunos tangidos de Uberaba, em
vara de 70 cabeas, alm da tropa de bestas de Manuel Bernardo, que em
troca conduziu boiadas de fazendeiros cuiabanos, inaugurando assim o
intercmbio que se intensificou mais tarde. (CORRA FILHO, 1969).
Essa economia agropecuria que se formou e desenvolveu nos
arredores de Cuiab e se fortaleceu ganhando grande importncia no
contexto urbano, devido a um intenso processo de substituio de importao, deu origem a uma poderosa oligarquia rural, uma nova elite,
composta pelos proprietrios rurais e que, fortalecida, passou a lutar pelo
poder poltico.
Essa oligarquia proprietria de terras e de grandes rebanhos bovinos, j fortalecida, no identificada com os comerciantes que detinham a
hegemonia regional, empunhou a bandeira nativista com acentuada averso aos portugueses e se contraps a eles. Entendia que no tinha mais
que se submeter ao antigo grupo dominante, remanescente dos tempos
coloniais. Queria o aparelho do Estado para si e ofereceu seus quadros
dirigentes para a conduo dos negcios pblicos. Entretanto, os adotivos lutavam para manter-se no poder, embora sobre eles tenha recado
a culpa por todas as dificuldades pelas quais passava a Provncia de Mato
Grosso, pois nessa luta da classe dominante pelo poder poltico e econmico o povo no ficou indiferente, tendo sido facilmente cooptado pela
oligarquia nativa. As dificuldades econmicas a que estavam submetidos
os trabalhadores das cidades, civis e militares, e o conjunto da sociedade
da provncia, em oposio a um pequeno mas poderoso grupo mercantil,
fizeram com que eles identificassem os comerciantes como seus adversrios. A elite nativista, ento, encontrou na situao social da arraia mida
o estmulo necessrio para a propagao de suas idias contra o grupo
dominante.
146

Paulo Marcos Esselin

Os nativistas fundaram seu partido poltico em Mato Grosso, que


se caracterizou pela heterogeneidade de seus membros, pois reunia em
suas fileiras desde pessoas da mais alta projeo, como comerciantes, proprietrios rurais, profissionais liberais, professores de lgica e de primeiras letras, at militares de baixa patente e a populao em geral. Eram os
Zelosos da Independncia. (CORRA, 2000).
Esse grupo, no seu ncleo mais moderado, lutava pela preservao
do sistema monrquico da ordem e tranquilidade pblica com a preservao da monarquia e pelo afastamento dos portugueses e adotivos dos
cargos pblicos e da conduo poltica da Provncia.
Os Zelosos da Independncia tambm abrigavam em suas fileiras
um grupo mais radical, que desejava a Repblica e que a Provncia fosse
governada por elementos nativos. No aceitava Presidentes nem comandantes de armas nomeados pela Regncia. (SIQUEIRA, 1992).
Do outro lado, e em oposio aos nativistas, estavam organizados
os adotivos, que lutavam pela manuteno dos privilgios alcanados no
perodo colonial e que para tal fundaram o Partido Caramuru, organizado junto Sociedade Filantrpica, que reunia a classe dominante local,
sobretudo os comerciantes.
Refletiu em Mato Grosso, logo aps a Independncia e no perodo que a ela se seguiu, a situao nacional, em que caramurus e liberais
promoviam intensos debates em torno de qual forma assumiria o Estado
nacional nascente. Os primeiros pregavam o retorno ao absolutismo e a
restaurao das duas Coroas; j os segundos, no seu grupo hegemnico,
manifestavam-se pela manuteno do livre comrcio e da escravido.
medida que a crise ia se ampliando, naturalmente acirravam-se
as discusses e conseqentemente o dio contra os portugueses, os quais,
na sua maioria comerciantes, eram responsabilizados por todos os males
que afligiam o povo. Nas mais diversas provncias do Imprio explodiam
manifestaes armadas das quais, as mais importantes foram:
147

O Panorama das Transformaes Sociais Polticas e Econmicas no Limiar do Sculo XIX

Movimento

Ano

Provncia

RUSGA

1834

MATO GROSSO

FARROUPILHA

1835

RIO GRANDE DO SUL

CABANAGEM

1835

PAR

SABINADA

1837

BAHIA

BALAIADA

1838

MARANHO

PRAIEIRA

1847

PERNAMBUCO

No caso de Mato Grosso, a rebelio reconhecida como Rusga foi


deflagrada na noite do dia 30 de maio de 1834 e durou alguns meses. Ela
marca o triunfo do movimento nativo local e a completa desarticulao
das foras tradicionais, representadas pelos comerciantes portugueses,
com importantes desdobramentos para o futuro da Provncia.
A radicalizao foi possvel quando chegou ao exerccio da Presidncia da Provncia, em 28 de maio de 1834, Joo Popino Caldas, um dos
inspiradores do movimento contra os bicudos, alcunha pejorativa dada
aos portugueses. (PVOAS, 1995, V. 1).
O movimento nativista, que tinha sido acolhido em vrios setores da sociedade quartis, cmaras, profissionais liberais, professores
passava a ser difundido dentro da administrao provincial. Sentindo-se
fortalecidos pela cobertura que significou a ascenso daquele caudilho ao
poder, na noite de 30 de maio de 1834, sob o comando de lideranas da
Guarda Nacional e contando com a adeso popular, os nativistas tomaram o quartel dos guardas municipais, apoderaram-se da armas e munies, saram s ruas e comearam a trucidar os portugueses.
A disseminao da violncia dirigida contra os portugueses pareceu incontrolvel, e uma onda de saques, perseguies e mortes se estenderam por dias seguidos, alcanando diversas regies da Provncia.
(NOVIS NEVES, 1988).
148

Paulo Marcos Esselin

Os amotinados cometeram atrocidades inauditas: cortaram as orelhas e partes pudendas das vtimas, queimaram cadveres, violaram esposas, alm de outros atos de selvagerias. (BARO DE MELGAO, 1949).
A revolta nativista foi vitoriosa e, restabelecida a normalidade, a
faco dos comerciantes portugueses foi subjugada completamente, a
quem a elite emergente substituiu frente dos negcios pblicos e do
comando militar da Provncia, cujas finanas, no entanto, ficaram mais
combalidas ainda. Em 1836, o oramento previa despesas de 69.673$000
para uma receita de 17.132$000, apesar de a arrecadao do ano anterior
ter sido de apenas 4.742$000. (CORRA FILHO, 1969).
Os portugueses tiveram suas casas comerciais invadidas e saqueadas, muitos morreram e muitos outros fugiram, promovendo uma grande
evaso de capitais para outras provncias. Alm disso, logo se iniciou um
processo repressivo cujo interesse mais premente no era o de levar a julgamento os responsveis pela rebelio, mas apenas afast-los rapidamente
do cenrio poltico mato-grossense. (CORRA, 2000).
Assim foi que, no mais podendo permanecer no norte e sob pena
de perseguies, alguns portugueses embrenharam-se para o sudoeste de
Mato Grosso, fronteira distante onde havia muita terra devoluta, grandes
manadas de gado alado e possibilidades de enriquecimento.

149

Captulo 3
O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no
Olhar dos Viajantes
3.1. A Fronteira na Primeira metade do Sculo XIX
Desde o sculo XVI, a parte meridional do velho Mato Grosso
vinha sendo utilizada como rota para as bandeiras paulistas que haviam
penetrado nesse territrio para prear os ndios e conduzi-los para So Paulo na condio de escravos, j que as fazendas ali organizadas produziam
trigo em larga escala para o mercado da Colnia e tambm da Metrpole.
(MONTEIRO, 1994). A partir do princpio do sculo XVIII, aumentaram as incurses nessas terras, que foram vasculhadas pelos mamelucos
paulistas, em busca do indgena, at que, por um golpe de sorte, descobriram ouro no norte, na Cuiab de hoje. Com isso, estabeleceu-se a primeira
colonizao permanente em Mato Grosso. Para o extremo oeste do Brasil,
se voltaram as atenes da Coroa e para l afluram milhares de pessoas, de posse de seus escravos, de onde extraram grandes quantidades de
ouro. A parte meridional da Capitania continuou como rea de passagem
vivel dos paulistas que se dirigiam s minas de ouro em Cuiab.
A ameaa do avano castelhano pela Amrica portuguesa, sobretudo pelas regies produtoras de metais, levou o Ministro dos Negcios
Estrangeiros e da Guerra, Sebastio Jos de Carvalho e Mello, em 1770, a
promover a demarcao e ocupao das fronteiras.

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

Consoante a anlise de Lourival Gomes Machado, essa poltica


mostrava-se muito fiel ao conceito de soberania como o constante
e real domnio de um espao geogrfico bem demarcado, pois outra
no era a noo de territrio nacional adotada pelo despotismo
esclarecido. (MACHADO apud KOK, 1998, p. 295).

A inteno era a de formar colnias com soldados e suas famlias e,


quando possvel, estimular a aproximao, a amizade e o casamento com
as nativas, com o objetivo de aumento da populao e, conseqentemente, ocupao territorial.
Em conseqncia dessa poltica e da posio de Mato Grosso em
relao s terras espanholas, na segunda metade do sculo XVIII, vrios
fortes (guarnies militares) foram construdos s margens dos rios, ao
longo da fronteira: Prncipe da Beira, no Guapor; Coimbra, Albuquerque e Corumb, no Paraguai; o Miranda, no Miranda, e o Iguatemi, no
rio homnimo, de forma que, em uma fronteira com mais de 500 lguas,
havia seis pontos inseridos numa demografia humana nativa j bastante
desestruturada nas suas formas tradicionais de ocupao de espao. A
fronteira sudoeste no Vale do Paraguai foi a que recebeu maiores atenes, devido a sua vulnerabilidade e por se avizinhar com a Provncia do
Paraguai. (ALMEIDA SERRA, 1975).
Embora a populao fronteiria vivenciasse perodos de extrema
insegurana, sob constantes ameaas de invases, a Coroa Portuguesa
nunca apresentou um projeto estratgico de ocupao que incorporasse
trabalho produtivo e abertura de propriedades com produo regular e
contatos comerciais com o mundo exterior. Somente algumas fazendas
nacionais foram estabelecidas em Mato Grosso no fim do sculo XVIII e
incio do XIX por iniciativa governamental. Eram elas, a Fazenda Caiara, Casalvasco e So Loureno no norte do Pantanal, atual Mato Grosso,
e Miranda, Betione, Poeira e Albuquerque no sul, essas montadas com
o gado alado. A inteno era a de estabelecer a soberania portuguesa
na borda das regies ainda em disputa, apesar da existncia dos tratados
desde 1750 que delimitaram as posses de ambas as coroas, e tambm a de
fornecer suprimentos aos soldados dos fortes.
152

Paulo Marcos Esselin

No sul, a fazenda Nacional de Albuquerque, prxima do rio Paraguai, abrigava expressivo rebanho bovino, desde sua fundao em fins do
sculo XVIII. O mesmo aconteceu com as fazendas fundadas na regio
de Miranda.
Em fins do sculo XVIII e comeo do sculo XIX, os contingentes militares do Governo central, instalados ao longo da fronteira meridional, mal cumpriam o seu papel de resguardar a integridade territorial.
No limiar do sculo XIX, as principais naes europias, sobretudo aquelas que promoveram as suas revolues industriais, procuravam
acompanhar os processos de independncia na Amrica, no deixando
de intervir em seus destinos, j que estavam interessadas na completa
destruio do sistema colonial, contribuindo assim para o nascimento de
novas naes que, sem a intermediao de uma metrpole qualquer, iriam
se inserir em uma nova ordem da histria mundial.
Por essa poca, representantes das diversas potncias europias,
religiosos, naturalistas, viajantes mantiveram seus respectivos governos
informados dos acontecimentos que se desenrolavam nas novas naes,
alm de revelar o que essas terras guardavam em suas entranhas.
A motivao destas expedies pela Amrica do Sul, como a do
Baro Gricory Ivanovitch Langsdorff (1825-1829) s provncias
de So Paulo, Mato Grosso e Par. A motivao desta expedio,
como as anteriores Spix e Martius 1821, (Saint Hilaire) (1822),
[CASTELNAU, 1845], e mesmo das que ocorreram durante
todo o sculo XIX em vrias partes do mundo, estava na busca
do conhecimento da natureza, populao e riquezas minerais de
regies disponveis, to necessrio para a dominao e explorao
pelas naes imperialistas emergentes do esplio deixado pelo
processo de desagragao dos imprios coloniais. (CORRA,
1999, p 20).

Mato Grosso foi alvo da ateno de alguns deles, sobretudo Francis


Castelnau e Langsdorff; Hrcules Florence, que acompanhou o segundo;
Luis dAllincourt, oficial de engenheiro portugus; todos eles chamaram
a ateno para os principais ncleos e fazendas fundadas aqui e deram
153

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

informaes preciosas sobre as populaes que abrigavam, como viviam,


o que e como produziam, o que e com quem comercializavam e tambm
sobre os rebanhos eqinos e bovinos.
Luis dAllincourt, que visitou a banda meridional da Capitania de
Mato Grosso em 1825, a respeito do forte de Miranda deixou registrado
que era:
(...) um reduto quadrado, de 45 braas de lado, fechado por uma
trincheira de terra socada entre duas estacadas, com uma pequena
banqueta, e com os Quartis, e Armazens, feitos com pouca
estabilidade, e dispostos paralelamente s faces do Reduto, e to
prximos trincheira, que no deixam capacidade bastante para
manobrarem os defensores desafrontadamente: no interior tem
uma praa tambm quadrada, no centro da qual se construiu depois
um poo: o paiol acha-se a meio da face, que olha para o Ocidente;
uma pequena casa coberta de telha, assim como o Armazem,
Capela e Quartel do Comandante todos os mais Quartis so
cobertos de capim. Pelo tempo adiante construiu-se, a meio de
cada face, um Redente, que por sua pequena capacidade, quase
intil para aumentar a defesa: no tem fsso e smente, para suprlo, h uma cava de 3 palmos de profundidade e 12 de largura: tem
dois portes, o principal na face para a parte do Rio e o segundo
na oposta, que deita para um largo espaoso, ornado de algumas
casas, que todos tm quintais com bastantes laranjeiras; ambos os
portes so descobertos. (DALLINCOURT, 1975, p. 170).

O forte nunca teve utilidade alguma seno contra os ataques dos


ndios selvagens, cuja arte guerreira era ainda incipiente. Em 1845, em
virtude do estado de conservao em que se encontrava, certamente no
suportaria a investida de qualquer inimigo: as estacas haviam cado quase
todas, o fosso estava coberto de terra e o espaldo, quase que inteiramente destrudo. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
A guarnio era constituda de 76 praas, menos de um tero do necessrio, e, apesar desse reduzido nmero, alguns ainda eram
destacados para administrar a fazenda de gado vacum e cavalar, para
o curtume, o cultivo e outras tarefas que no tinham cunho militar.
(DALLINCOURT, 1975).
154

Paulo Marcos Esselin

Os habitantes de Miranda so poucos, em torno de 62 almas, com


apenas dois casais, so 04 homens brancos maiores de 14 anos, menores
de 14 anos existem 2; mulheres brancas acima de 14 anos 3 e abaixo 4,
homens pardos com idade acima de 14 anos 16, menores 9. Escravos com
mais de 14 anos 8, escravas 2 e de 14 para baixo 2. (DALLINCOURT,
1975).
Castelnau, que visitou o povoado de Miranda na dcada de 40,
afirmou que a populao era de 200 habitantes, na sua maioria mulatos ou
caburs, os demais eram negros, exceo de alguns dois ou trs brancos
muito duvidosos. Porm, a maior parte da populao era constituda de
ndios que, em nmero de quatro a cinco mil, viviam espalhados pela
redondeza. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Em Miranda, Castelnau excursionou pelas vrias povoaes indgenas espalhadas pelos arredores do vilarejo. Sobre os laianas, cuja aldeia
situava-se a meia lgua de Miranda, constatou que se tratava de ndios
agricultores, de posse de grandes reas cultivadas, que se ocupavam do
cultivo da mandioca, montavam a cavalo e eram exmios caadores. Nas
paredes de suas casas era possvel observar peles de onas e gatos do
mato. Esse grupo pertencia nao Guan. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Entre os ndios terenas, que tambm pertenciam a um subgrupo da nao Guan, observou que at ali eles haviam mantido poucas
relaes com os brancos e por isso conservavam os costumes de seus
antepassados. Esses ndios, cuja populao girava em torno de 3000 mil
almas, criavam muito bovino e eqino, eram excelentes cavaleiros e vaqueiros e possuam grandes reas com lavoura de cana-de-acar, milho,
feijo, mandioca (da qual se obtinha muita farinha) e algodo (com o qual
as mulheres produziam tecidos e os vendiam aos brasileiros). O couro do
gado vacum era largamente utilizado na fabricao de cama, vesturio,
porta e janela de suas habitaes e outros artigos como corda e bual.
Aproveitavam eles tambm os ossos de bovino e de porco, aos quais adicionavam um soluto quente de cinzas de mamoeiro para obterem o sabo.
(CASTELNAU, 1949, T. 2).
155

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

Nas vizinhanas do presdio, encontravam-se tambm os guaicurus, em torno de 300 almas. Viviam da criao de animais cavalares, da
caa e da pilhagem, tendo destrudo grande nmero de fazendas dos paraguaios, nossos vizinhos de fronteira. (DALLINCOURT, 1857).
Embora a populao em torno do forte fosse extremamente rarefeita, ela mantinha relaes de ordem econmica com os naturais ao seu
redor, e, a julgar pelas informaes dos viajantes, no eram relaes de
pouca importncia, j que ficou claro que os indgenas produziam tecidos
para atender aos brasileiros, como tambm muito daquilo que cultivavam
abastecia a referida populao, ou pelo menos completava o seu abastecimento com produtos que os brasileiros no eram capazes de produzir.
Os poucos sitiantes que viviam nas vizinhanas comercializavam o gado
eqino e bovino do indgena para vend-los em Cuiab, para onde conduziam os animais por terra, percorrendo oitenta lguas e atravessando
os rios Negro, Taquari e So Loureno. (DALLINCOURT, 1975). Tambm eram conduzidos bovinos e eqinos para a fazenda Camapu, os
quais eram trocados por tecidos. (FLORENCE, 1975). Como se pode
observar, o comrcio de gado entre o sul e o norte j era praticado nas
primeiras dcadas do sculo XIX, o que comprova que os estoques eram
significativos nesse perodo.
De Miranda a Camapu havia uma estrada a qual s era possvel
percorrer em lombo de animais, uma vez que o seu estado de conservao
era pssimo, sobretudo na poca da estao chuvosa. Ela atravessava os
pantanais que ladeavam o rio Paraguai e transpunha o planalto de Camapu, passando abaixo das nascentes do Aquidauana, sendo que eram
necessrios dez dias para cumprir o trajeto. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Havia na regio uma enorme quantidade de pau-roxo e de jacarand que, alm de serem usados como combustvel por seus moradores,
eram embarcados no Aquidauana com destino a Porto Feliz, na provncia
de So Paulo. Uma tbua de pau-roxo medindo de dois a trs metros de
comprimento, meio metro de largura e dois a trs centmetros de grossura
e pesando, em mdia, duas arrobas e meia, valia cerca de dois francos e
156

Paulo Marcos Esselin

cinqenta, mas o seu transporte custava cerca de quarenta e oito francos.


(CASTELNAU, 1949, T. 2).
As dificuldades de transporte e a distncia dos centros consumidores inviabilizaram o comrcio entre o sul da Capitania de Mato Grosso e
So Paulo. A madeira abundante e de boa qualidade poderia ter se constitudo em fator de renda capaz de atrair novos colonos regio, mas o
custo do frete impediu o empreendimento. S muito mais tarde, quando
melhorou a infra-estrutura de transportes, que foi possvel aproveitar os
recursos naturais da banda meridional.
Na extensa plancie de Miranda e regio, vicejava variada e rica
pastagem, de maneira que o gado propagava-se extraordinariamente. A
fazenda pblica18 contabilizava nove mil e quinhentas cabeas de gado
vacum, sem considerar o gado bravio que, pela falta de cuidados e de vaqueiros, andava disperso pela campanha, sendo que os eqinos chegavam
a setecentas e cinqenta cabeas. Interessante o fato de que, embora o
estabelecimento fosse novo, pois havia sido fundado h apenas dezesseis
anos, possusse tanto gado e cavalo. (DALLINCOURT, 1975, p. 175).
No foi difcil reunir o gado vacum e cavalar na fazenda pblica,
que estava localizada prximo antiga Santiago de Xerez e das redues
do Itatim, onde se concentravam os rebanhos sobre os quais colonos e
padres espanhis haviam perdido o controle no sculo XVII, aps as
invases dos bandeirantes paulistas.
Os estoques por essa poca eram muito superiores s nove mil e
quinhentas cabeas registradas, tanto que o viajante faz meno ao gado
bravio que corria as campanhas de Miranda sem trato algum e tambm
quelas reses que estavam sob o controle dos indgenas - que eram muitas.
Se a taxa de desfrute do rebanho alcanasse 10%, abater-se-iam novecentos e cinqenta cabeas por ano, em mdia 2,7 por dia. Considerando

18 No incio do sculo XIX, particularmente no recm independente Imprio Brasileiro, foram


fundadas fazendas pblicas para o cultivo e, sobretudo para o criatrio, a fim de suprir as
necessidades dos fortes ao longo dos rios Paraguai e Miranda, os estratgicos Coimbra,
Albuquerque, Miranda e Iguatemi.

157

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

o peso mdio da rs em dezoito arrobas, obter-se-iam 714,42 quilos de


carne por dia que, divididos por 200 pessoas - a populao mxima do
vilarejo -, daria a cada um uma rao diria de 3,5 kg de carne. Certamente, essa abundncia chamou a ateno do viajante que afirmou: (...)
falta lhes a maior parte do anno o municiamento de boca excepto carne
e quanto ao soldo basta dizer que neste anno so lhe tem ido um mez de
vencimento. (DALLINCOURT, 1824, p. 341).
Certamente, o consumo de carne bovina era muito menor porque
a caa e a pesca eram extremamente abundantes e prticas comuns entre
colonos e indgenas.
Nas proximidades de Miranda, comumente se encontram pequenas lagoas cujo fundo formado de uma terra argilosa de cor avermelhada. Durante o perodo da seca, essa terra se cobre de eflorescncia salina
de onde os habitantes extraam o sal. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
A bandeira de Joaquim Francisco Lopes, que cruzou todo o sul de
Mato Grosso, nas proximidades do forte Miranda surpreendeu alguns de
seus moradores, fabricando sal:
(...) q o Santos, Portuguez estava fazendo Sal, e me convidro, e
me dro uma Egoa Rozilha andadeira, e o dito amontou-se em
um Potro BAIO, e fomos a Salina; quando apeiou-se h que vi
o moldre do Sellin inglez que muito bem imbutia; topemos o Sr
Salvador Luiz dos Santos e seus Camaradas fabricando sal em sacas
de coiro, estilando e apurando em Taixos. (LOPES, 1999, p. 89).

O cotidiano sul-mato-grossense era marcado pela grande carncia


de sal, o que levava os colonos a extrarem aquele condimento. A despeito
das dificuldades de extrao, os barreiros tornaram-se fonte de extraordinrio ganho para alguns, mesmo sendo vendido completamente impuro.
(TAUNAY, 1923).
Albuquerque era outro ncleo portugus que se situava s margens
do rio Paraguai, no meio de uma plancie. Ainda em 1810 no passava
de uma fazenda real, guardada por quatro soldados comandados por um
cabo, tendo passado povoao em 1826 e freguesia em 1833. Possua
158

Paulo Marcos Esselin

cerca de setenta casas, quase todas de barro, algumas caiadas e duas ou


trs cobertas de telhas. Contava com setenta e seis moradores, incluindo
a guarnio, que era composta de quarenta soldados. A cidade era comumente visitada por dois mil ndios moradores das cercanias. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Presenciou Castelnau, em sua estada em Albuquerque, que um
grupo de guaicurus deixou o Chaco para pedir proteo aos soldados
do forte. Contaram que haviam massacrado uma aldeia espanhola e que,
sentindo-se perseguidos, vieram pr-se sob a proteo da guarnio brasileira.
Nas imediaes de Albuquerque havia uma aldeia de ndios guans, os quais tambm praticavam a agricultura. Plantavam cana-de-acar, arroz, algodo, mandioca, feijo, banana, milho, car e batata doce.
Construam engenhocas para moer cana, fabricavam rapaduras e destilavam aguardente em alambique de barro, com um cano de espingarda
servindo de pescoo. As mulheres fiavam algodo, com o qual faziam
ponchos tingidos com anil ou curcuma. Utilizavam o couro de boi no
vesturio e tambm para confeccionar camas, portas e janelas de suas
moradias. Eles tambm se organizavam em grupos para a extrao da
ipecacuanha19. Em embarcaes, os nativos subiam o rio Paraguai

at Vila Maria, seguindo da para os rios em cujas margens crescia a


referia planta. Aps colh-la, trocavam-na em Cuiab por ferramentas de ferro, ao e bebida alcolica. Empregamos todos os esforos
para arranjar uma equipagem para subir o rio Paraguai. Mas como a
maioria dos ndios estava ocupada na extrao da ipecacunha nada
pudemos conseguir. (CASTELNAU, 1949, p. 285, T. 2).
O sucesso do criatrio bovino e eqino em Albuquerque incentivou a instalao de uma aldeia dos padres capuchinhos no local, em 1819.

19 Planta natural nas matas de So Lus de Cceres em MT, cuja raiz tem qualidades vomitivas. Sua
exportao era significativa no perodo de 1830 a 1837, quando diminuiu, retornando depois
em 1845. (CASTELNAU, 1949, p. 105 e 168).

159

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

Os resultados positivos que a misso alcanou atraiu pessoas de muitos


lugares, inclusive de Corumb, esvaziando ainda mais essa cidade.
Alm do gado bovino, os guans criavam galinhas, porcos e carneiros, e os excedentes, tanto agrcolas quanto pecurios, eram vendidos
em Coimbra, onde era impossvel a prtica do cultivo devido s enchentes. (DALLINCOURT, 1975).
Outro aldeamento existente nas proximidades de Albuquerque era
o de um subgrupo dos guaicurus, conhecido como uaitiadeus. Fabricavam redes e tangas de tecido de algodo, tinham como principal cultivo
o da banana e possuam rebanhos eqinos que mantinham nos pastos das
redondezas. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Os guaicurus promoviam festejos solenes, ocasio em que ocorriam diversos combates entre mulheres e entre cavaleiros, dos quais resultava a escolha do mais forte ou do mais hbil e gil. Os ganhadores eram
premiados ao final da contenda com uma cabaa de cachaa.
J em 1845, a bebida alcolica havia penetrado nos acampamentos
indgenas, sobretudo naqueles mais estreitamente ligados aos fortes e s
vilas, sendo que os guans possuam at um engenho para a sua produo.
Tal prtica trouxe conseqncias desastrosas para os nativos pois,
uma vez dependentes do lcool, quebravam seus padres culturais tradicionais e de hierarquia e tornavam-se presa fcil do assdio da sociedade
envolvente e vtimas da chantagem.
O colono e o soldado trocavam bebidas por muitos benefcios, que
iam desde os favores sexuais at a doao de terra, madeira, gado e outras
concesses.
Espetculo deveras interessante era o dessa gente, que, acostumada
vida errante, se esforava agora por imitar as construes
grosseiras, mas permanentes, das outras tribos; infelizmente, porm,
j a paixo pela aguardente dela se havia apoderado, chegando ao
ponto de fazer com que esses ndios vendessem at os cavalos e as
armas para saciar a sua funesta inclinao. (CASTELNAU, 1949,
p. 313, T. 2).
160

Paulo Marcos Esselin

Nas margens do rio Paraguai encontrava-se outro ncleo, o Forte


Coimbra, erguido pelos portugueses em 1775. A princpio, era uma escalada de madeira em forma retangular, tendo assim se conservado por
muito tempo, at ser edificado de pedra e cal. Em 1826, sua guarnio era
de 84 pessoas entre oficiais e soldados. (DALLINCOURT, 1975).
Por volta de 1845, havia sido reduzida para 26 soldados a tropa do
forte, onde alguns poucos condenados cumpriram pena. Nas suas imediaes, havia um aldeamento de ndios guaicurus com aproximadamente 800 almas. Exmios cavaleiros, possuam grandes manadas de cavalos,
to selvagens quanto eles prprios. No cultivavam a terra: os homens
se ocupavam da caa e da pesca e as mulheres trabalhavam com algodo
nativo, fiavam e teciam panos, cintas, cordas, esteiras e faziam cermica
da argila. Estabeleceram comrcio com soldados que serviam no forte, a
quem forneciam carneiros, galinhas, veados, peles, cavalos e gado bovino
em troca de pratos, bacias, machados, facas, faces e lcool. Entre as mulheres guaicurus, a prtica do aborto era comum. Sentindo-se pejada, a
me comprimia o grmen atravs das paredes do ventre at a sua expulso
final. O que as mulheres pretendiam com aquele ato era conservar uma
aparncia jovem durante mais tempo. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Na verdade, o infanticdio era praticado como uma necessidade
de se eliminar um obstculo vida nmade e guerreira, e essa prtica era
compensada pelos contnuos seqestros ou ainda pela incorporao de
cativos, decorrente da vitria sobre tribos inimigas.
A circunstancia de que os Guaicuru nmades, por um lado, matam
os prprios, filhos, roubando por outro lado crianas forasteiras,
compreensvel considerando-se o fato de serem as crianas
roubadas, provvelmente em sua maior parte, j de idade a no mais
necessitar cuidado especial, no constituindo, por conseguinte,
obstculo nas viagens, e podendo ser empregadas para servios.
(HERBERT, Introduo in BOGGIANI, 1975, p. 23).

Do Forte ficou o registro:


161

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

Este logar depende absolutamente de socorros estranhos, porque


em si no tem mais que um pouco de gado, que fica magrssimo
no tempo da enchente; e o terreno junto aos morros nico livre da
inundao no produz por ser combinado com partculas calcareas:
e por esta forma v-se reduzida a guarnio e os poucos povoadores
maior misria quando faltam as conductas do Cuyab, e que agora
acontece com frequencia. (DALLINCOURT, 1824, p. 343).

O Forte Coimbra foi edificado em um local cujas terras eram estreis para a agricultura, devido ao clcio, e, alm disso, a regio alagava
anualmente, impedindo o pastoreio do rebanho. A sua manuteno dependeu sempre do auxlio das outras unidades. Em determinadas pocas, era da fazenda Jacobina, nas proximidades de Cuiab, que vinham
vveres para atender a populao do Forte. Sua proprietria, dona Anna,
mandara seis grandes canas cheias de vveres Nova Coimbra no Paraguay para sustento gratuito da guarnio. No sabia que destino dar aos
mantimentos, disse-nos ella, e preferi perdel-os presentear o governo.
(FLORENCE, 1875, p. 240).
Ainda s margens do rio Paraguai, os portugueses fundaram, em
1778, o vilarejo de Corumb para ser sede de um distrito militar e plo de
colonizao. Em 1845, sua populao, formada por uma mescla de brancos, ndios e negros, girava em torno de cem habitantes, sendo setenta
adultos, dos quais cinqenta eram mulheres, uma desproporo significativa entre a populao masculina e a feminina. (CASTELNAU, 1949,
T. 2). Esse fato se explica pelo sucesso que alcanou a fazenda de gado de
Albuquerque e pela presena dos capuchinhos, que atraiu muitos descontentes do ncleo de Corumb.
Em um recenseamento anterior, de abril, 1791, constava sua populao de 141 almas, sendo um oficial e doze soldados de guarnio,
com seis crianas brancas; cinquenta ndios e nove pretos escravos, todos
do sexo masculino; onze mulheres e crianas brancas sessenta e duas ndias e tres negras escravas. (FONSECA, 1986, p. 315, V. 1).
No povoado que possua uma igreja em runas, diante da qual
ficava o posto militar, composto por trs soldados havia uma rua prin162

Paulo Marcos Esselin

cipal com uma fileira de dez casebres unidos uns aos outros tendo como
fecho das portas e janelas o couro do bovino. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
A povoao de Corumb foi edificada, de acordo com as expectativas oficiais, para constituir-se em um ponto de apoio ao recm construdo
Forte de Coimbra, produzindo gneros e toda sorte de suprimentos para
a guarnio, no entanto ela mal sobreviveu, tendo vivenciado, at meados
do sculo XIX, a mais completa falta de recursos e abandono situao,
alis, que marcou toda a fronteira meridional. Em Corumb, o terreno era
de formao calcria, de onde se extraa a cal tanto para as construes
locais como para a exportao, sobretudo para Cuiab. Ela era encontrada
pura e quase superficialmente, sendo empregada para argamassa e caiao
dos edifcios. As tcnicas de extrao dessa substncia eram extremamente rudimentares: os habitantes deixavam que os blocos desmoronassem da
colina e se fragmentassem por si mesmos, para assim facilitar a retirada
dos ndulos calcrios envolvidos pela ganga, os quais eram submetidos
ao do fogo em pequenos fornos redondos. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Embora o calcrio tivesse grande aceitao no norte, para onde era
vendida grande parte da sua produo, ele nunca se constituiu numa alternativa econmica para a cidade, pois esta no prosperou e sua populao
vivia miseravelmente, mal produzindo o indispensvel sua subsistncia.
Quanto pecuria, as poucas cabeas que ali eram criadas encontravam dificuldade para a sua reproduo porque havia grande quantidade de morcegos que atacavam sobretudo os bezerros, tanto que, para que
escapassem das investidas dos quirpteros, eram colocados em currais
muito bem protegidos, o que dava muito trabalho quela pobre gente.
(DALLINCOURT, 1881).
Por outro lado, Bartolom Bossi, que visitou Corumb anos depois, afirmou: a cidade estava situada na margem occidental do rio Paraguai. As campinas intermedirias sobre as duas margens, espcie de pampas verdejantes e infinitos, podem alimentar milhes de animaes. Com
effeito na costa occidental j se comeava ver alguns rebanhos de gado
que pastam sobre essas campinas privilegiadas. (BOSSI, 1863, p. 22).
163

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

As dificuldades apresentadas para o desenvolvimento da pecuria haviam sido vencidas e os animais, dispondo das reas propcias ao
criatrio, cresceram de forma rpida, tendo certamente sido suficiente o
esmero dos vaqueiros para a adaptao do rebanho quela regio.
Outro importante ncleo na banda meridional da Capitania de
Mato Grosso foi a fazenda Camapu. Montada mais ou menos na metade do caminho que ligava Porto Feliz a Cuiab, embora constitusse
passagem praticamente obrigatria para aqueles que se deslocavam para
as minas de ouro do extremo oeste, entrou em plena decadncia no final
do sculo XVIII, sobretudo a partir da abertura da ligao terrestre entre
Cuiab e Gois, que colocava a Capitania em contato com o Rio de Janeiro e So Paulo, e da navegao Guapor-Madeira, que ligava ao Par,
sendo ento aquele caminho tradicional abandonado pelos comerciantes.
Contava a fazenda, em 1826, com 300 habitantes, dos quais a tera
parte era composta de escravos. Em geral, a populao era de negros;
poucos eram mestios e mulatos. Desta cor era o comandante do vilarejo.
(FLORENCE, 1975.). Viviam miseravelmente e, pelos bens que possuam, pouco se distanciavam do estado selvagem. Apenas os mais ricos
andavam vestidos com calas e camisas de pano grosso; o restante usava
ceroulas muito parecidas com tangas, enquanto que a maior parte das
mulheres cobria os seus corpos com uma saia. (FLORENCE, 1975). No
contavam com nenhum religioso, portanto no havia missa nem quem os
confessasse em caso de perigo. Isso era praticamente impossvel, porque
as distncias eram muito grandes. (MARTINS de PAIVA, et al, (Org.),
1982, p. 15).
Fabricavam grosseiros tecidos de algodo para uso dos moradores
e para remessas para Miranda, onde o produto era trocado por gado vacum e cavalar. Cultivavam a cana-de-acar, da qual faziam uma pssima
aguardente; o milho, para dele extrarem a farinha e o fub; o feijo e o
fumo. Para a produo da farinha recorriam ao antigo monjolo movido
gua; no entanto, uma inundao arrastou rio abaixo o nico existente.
A partir de ento, os negros escravos ficaram compelidos a manejar os
piles simples. (FLORENCE, 1975).
164

Paulo Marcos Esselin

Criavam, alm de porcos e galinhas, gado de corte, do qual a fazenda mantinha o controle de seiscentas cabeas, enquanto que muitas outras
viviam espalhadas pelos campos, vivendo sem trato algum. (MARTINS
de PAIVA, et al, (Org.), 1982, p. 15).
A base da alimentao era o milho e o feijo (raramente usavam
a carne suna, bovina ou ovos), tudo sem sal, que era um artigo de luxo,
muito raro e caro: um prato raso custava 12 francos, 1$800. Todos os
pagamentos eram feitos em gneros, porque em Camapu se dispensava
o uso de moeda, verdadeira raridade na banda meridional da Capitania.
(FLORENCE, 1975).
Foi somente no sculo XIX que se generalizou o uso da moeda
metlica no Brasil. E isso nas regies litorneas, pois no interior ainda por
muitos anos continuou o uso do escambo para quase todas as relaes
econmicas, como pagamentos de servios, de mercadoria, de salrios e
pagamentos de impostos. O Governo portugus proibiu por muitos anos
a circulao, na Colnia, de moedas cunhadas em Portugal, e no permitia que elas fossem cunhadas no Brasil. Essa medida visava claramente
evitar a sangria de dinheiro da Metrpole para a Colnia. (ARMED e
NEGREIROS, 2000).
Na sede da fazenda Camapu havia duas casas de sobrado, telhas,
numa morava o comandante, que na ocasio era um alferes de
milcias (guarda nacional); outra fronteira, separada por vasto ptio,
que tem um engenho de moer cana tocado por bois. O ptio
fechado pela senzala dos escravos, toda ela baixa e coberta de sap.
noite, so eles metidos debaixo de chaves. A gente forra mora
do outro lado do rio Camapu. (FLORENCE, 1975, p. 73 e 74).

J a Praa de Nossa Senhora dos Prazeres, de So Francisco de Paula de Iguatemi, ou simplesmente o Forte de Iguatemi, foi fundado com o
propsito de abrigar quatrocentos a quinhentos homens, para combater
as foras espanholas que pressionavam a colnia do sacramento e a proteger as capitnias de Cuiab e Gois. (PEREGALLI apud KOK, 1998,
p. 297). Sua edificao tambm visava povoar os Campos de Vacaria, a
165

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

fim de desenvolver ali a agricultura, o criatrio bovino e a explorao dos


recursos naturais. Esse projeto exigia elevados investimentos, recursos
dos quais os portugueses no dispunham no Reino e muito menos em
So Paulo, o que redundou em completo fracasso. Alm disso, foi edificado em uma regio insalubre, onde as constantes epidemias produziam
grande mortandade entre os pioneiros. Fundado em 1767, acabou sendo
abandonado dez anos depois, quando foi invadido por tropas espanholas
sem que seus ocupantes oferecessem qualquer resistncia.
Embora fugindo dos objetivos iniciais que levaram fundao dos
ncleos anteriores, ainda em princpios do sculo XIX, pioneiros oriundos de So Paulo fundaram um pequeno povoado, Santana do Paranaba,
elevado a distrito de paz em 1838, localizado no caminho que faziam os
tropeiros mineiros que se destinavam a Uberaba, no Tringulo Mineiro,
limitado ento pelo rio Paran at a foz do Pardo; por este at suas cabeceiras, em Camapu; destas, por uma linha, at as nascentes do Araguaia;
da, por uma linha s do rio Apor; por este e pelo Paranaba, at o Paran. (CAMPESTRINI, 1994, p.09).
No ano de 1862, Santana do Paranaba contava com quatrocentos
fogos e tinha uma populao livre de 1400 almas, alm de seiscentos escravos. (MOUTINHO, 1869).
Desde 1775, quando da construo do Forte Coimbra, a parte meridional da Provncia de Mato Grosso havia permanecido entregue apenas a seis ncleos: Forte de Miranda, fazenda de Camapu, Albuquerque,
Corumb, Forte Coimbra, Santana do Paranaba e Forte de Iguatemi, este
ltimo completamente isolado da civilizao.
Com exceo do Forte Coimbra, que dependia de socorro externo
para sua manuteno, os demais ncleos desenvolveram uma economia
tipicamente natural, isto , com base na agricultura de subsistncia, concentrando quase todos os ramos da produo, que ia desde alimentos
at manufaturados, sem que houvesse qualquer especializao. Vesturio,
calado, habitao, combustvel, alimentao, tudo, enfim, que era necessrio para sua sobrevivncia se obtinha dentro dos estreitos limites da
propriedade.
166

Paulo Marcos Esselin

Os contatos com os mercados externos eram espordicos, apenas


para completar o que no se podia obter internamente, enquanto que os
contatos internos, entre as unidades que estavam localizadas na banda
meridional, foram mais estreitos, possibilitando a troca de panos e sal por
gado bovino e eqino.
A populao era extremamente rarefeita: no havia, entre escravos,
mulatos e brancos, mais de 3000 pessoas nos diversos ncleos meridionais, das quais, mais da metade era ocupada nos fortes.
Quanto populao indgena, era a seguinte:
Naes
1 Cayus

Indivduos
?

Lugares em que habitavam


Imediaes do rio Iguatemi

2 Chamacaros

200

Margem direita do Paraguai e sul de Miranda

3 Cadiueos

850

Margem do Paraguai, de Coimbra, para baixo

4 Beaqueos
5 - Coloqueos

500

A leste do Paraguai e sul de Miranda Lalima perto


de Miranda

6 Guatiedeos

130

Albuquerque

7 Guans

200

Albuquerque e imediaes de Cuiab

8 - Kinikanos

1000

Mato Grande, perto de Albuquerque e Miranda

9 Terenas

2000

Miranda

10 Laianas

300

Miranda

11 Guaxis

Miranda

12 Guats

500

Total

5680

Rios Paraguai, So Loureno e lagoas Gahyba e


Uberaba

Fonte: (FERREIRA apud AYALA & SIMON, 1914, p. 89). Essas informaes precisam
ser relativizadas, a obra de Ayala & Simon, foi produzida para divulgar Mato Grosso no
Brasil e no mundo, com o objetivo de atrair novos investimentos e pessoas de outras
localidades que pudessem se trasferir para o Estado. O nmero reduzido de ndios parece
proposital, se fosse apresentado o nmero real, poderia afugentar os que manifestassem
interesse em investir na regio ou vir a residir.

Embora os dados no sejam muito precisos, devido extenso do


territrio, aos poucos ncleos organizados e falta de rgos estatais em
condies de promover um recenseamento com critrios cientficos.
167

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

O gado bovino e eqino parecia que j havia sido incorporado


cultura do indgena. Em seus depoimentos, os viajantes se referem como
bons cavaleiros no s aos guaicurus mas tambm a outros grupos, como
os guans e os terenas. Os indgenas eram encontrados de posse de grandes rebanhos bovinos, cuja carne j havia sido incorporada sua dieta,
assim como o couro estava presente em quase todos os utenslios por
eles produzidos, bem como o vesturio, a cama, colcho, portas, janelas,
bolsas, sacas e muitos outros objetos.
O isolamento da banda meridional era praticamente absoluto. A
principal dificuldade da regio era os meios de transporte, que se resumiam navegao fluvial, extremamente penosa no comeo do sculo
XIX. Langsdorff atingiu Cuiab em 30 de janeiro de 1827, aps decorridos duzentos e vinte e trs dias desde a sada de Porto Feliz, e vencidas
648 lguas e 113 cachoeiras e corredeiras, sobretudo no Tiet e Coxim.
(ALMEIDA e LACERDA apud CORRA FILHO, 1969). De Porto Feliz a Camapu, primeiro povoado da banda meridional da Capitania, a
expedio levou em torno de 123 dias.
De Corumb, Albuquerque e Miranda, os dois primeiros s margens do rio Paraguai e o ltimo, do Rio Miranda, navegava-se em torno
de 30 dias para se chegar a Cuiab, a capital da Capitania.
At princpios do sculo XX, os meios de transporte que ligavam
Mato Grosso ao restante do Pas continuavam limitados navegao fluvial. Mesmo quando a navegao a vapor j tinha ganhado o mundo,
ainda se despendiam muitos dias para se chegar a Mato Grosso, ainda
que se empregassem nessa travessia os mais novos inventos. A viagem
mais cmoda entre Rio de Janeiro e Cuiab era feita de navio, com escalas
em Montevido e Buenos Aires, subia-se o rio Paraguai, com escala em
Assuno, chegava-se a Corumb e, finalmente, a Cuiab, num percurso
feito em torno de 30 dias. A propsito, em 1907, quando deixou a cidade
de Recife para vir a Mato Grosso, o primeiro Juiz de Direito de Campo
Grande, Arlindo de Andrade Gomes, teve sua viagem assim relatada:
168

Paulo Marcos Esselin

Do Rio de Janeiro embarcou para Montevidu, onde passou alguns


dias espera do pequeno navio que, subindo os rios da Prata e
Paraguai, passando por Assuno, o conduziu at Corumb. Ai
transferiu-se para a embarcao de menor calado que o deixou na
capital de Mato Grosso, aps viagem superior a um ms, a partir do
dia em que saiu do Rio de Janeiro. (MACHADO, 1988, p. 20-21).

Por terra, o caminho mais comum era o que ligava Miranda a Sant
Ana do Paranaba e, da, a Franca, em So Paulo. Costeando sempre o rio
Paran, atravessava o Paranaba, cortando pequena poro da provncia
de Minas Gerais, que ficava entre a de Mato Grosso e a de So Paulo, e
entrava ento nesta ltima, transpondo para isso o rio Paran. As regies
que varava a partir da eram cada vez mais habitadas, at vila de Franca;
aps, seguia a Campinas, Jundia e da at a capital. A estrada era boa at
para os carros de boi. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Os fazendeiros que foram se estabelecendo em torno da Colnia
militar de Miranda e da Vila homnima com esforos prprios abriram
uma nova trilha em direo ao Piquiri que deu a eles a oportunidade de
colocar seus rebanhos no mercado de Minas e So Paulo.
O traado foi estabelecido acompanhando os rebordos da costa
do planaldo de Maracaju. Tomou a direo do serto dos Garcia,
passando pelo atual municpio de Campo Grande, da seguindo
para Coxim, fazenda Camapu, at Santana de Paranaba, de modo
a atingir o caminho de Piquiri ou de Uberaba. (GUIMARES,
1999, p. 56).

Uma outra trilha era o que ligava Miranda fronteira do Paraguai;


e da a Assuno. Depois de atravessar o rio Mondego (Miranda), entrava-se em uma trilha em direo ao sul, percorrendo cinco dias at as margens do rio Apa, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Aps atravessar
o Apa, percorria-se dois dias at o posto de Bustos, que tambm estava
distante apenas dois dias de Concepcin, de onde se tinha ainda mais trs
dias de viagem para alcanar Assuno. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
169

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

Essa facilidade de se chegar s terras do pas vizinho permitiu que


o contrabando de gado desempenhasse importante papel na economia
sulina; o gado era vendido no pas guarani; na volta, os criadores traziam
sal, medicamentos, produtos alimentcios e outros produtos de difcil obteno para os isolados fazendeiros sulistas. O contrabando de gado para
o Paraguai desempenhou papel significativo na economia sulina, causando grandes prejuzos ao errio pblico, mas, de certa forma, contribua
para oferecer alguma renda aos fazendeiros.
No incio do sculo XIX, o chamado sul de Mato Grosso estava praticamente desabitado. A presena do Estado estava manifesta nos
fortes erguidos s margens do Paraguai e Miranda para deter o avano
espanhol, e essas guarnies, conforme os relatos dos viajantes, encontravam-se em completa decadncia, o que comprometia a segurana da
regio, j que faltavam munies e provises e o soldo dos militares era,
constantemente, pago com atraso.
Alcir Lenharo afirmou que as teses que defendem o isolamento da
Capitania de Mato Grosso devem ser desmistificadas, pois criam mitos
e atribuem herosmos e virtudes que fortalecem os grupos dominantes
locais.
O mito no foi elaborado nem tem sido reelaborado por casualidade;
tem servido na verdade, a constituio de um ideal aristocrtico
localista alimentado por uma historiografia de teor semelhante,
seduzida pela prtica laudatria das camadas dominantes. Quanto
mais aparecem reforadas determinadas nuances do isolamento,
maiores atribuies de tenacidade, herosmo, e virtudes afins tm
sido associados aos representantes do poder local. (LENHARO,
1982, p. 11).

Quando o autor se refere ao norte da Capitania de Mato Grosso,


no h dvida de que o intercmbio mercantil inaugurado com a descoberta do ouro em Cuiab estabeleceu uma relao contnua com o Rio de
Janeiro, So Paulo, Gois e Minas Gerais, quer pelo roteiro das mones
(Tiet-Paran-Paraguai) ou do norte (Madeira-Guapor), quer por via
terrestre.
170

Paulo Marcos Esselin

Mesmo quando do declnio da minerao, o desenvolvimento do


complexo rural nas proximidades dos ncleos urbanos garantiu no s a
produo de gneros de primeira necessidade como tambm aqueles com
finalidades mercantis, como o acar e o gado bovino, que permitiram a
continuidade das relaes comerciais entre o norte de Mato Grosso e os
grandes centros urbanos do Imprio. Entretanto, quanto ao sul, o isolamento foi absoluto, at porque no havia nenhum produto que despertasse a ateno de outras regies e que pudesse incentivar o intercmbio
mercantil. Essa evidncia, embora tenha criado todas as condies para o
desenvolvimento de uma historiografia elaborada por memorialistas, cuja
principal preocupao foi a de engrandecer os feitos de seus antepassados
para justificar o seu domnio poltico, no pode hoje ser tomada como
verdade absoluta e dever estar sujeita ao mesmo rigor crtico das outras
fontes consultadas, o que permite ao historiador fazer a crtica do mito,
inserir a razo onde ela falta, levantar questes, lanar bases tericas que
propiciem o resgate do processo histrico corrente e fundamentem sua
inteligibilidade (LENHARO, 1982, p. 11). O que no se pode, definitivamente, adotar a desconsiderao do fato para atender a uma questo
de cunho ideolgico.
Por outro lado, internamente os rebanhos eqino e vacum cresciam geometricamente. O fenmeno registrado em Cuiab e presenciado por Rolim de Moura se repetia na banda meridional. Toda produo
destinava-se ao abastecimento regional, limitada por um mercado interno
extremamente reduzido e protegido pela distncia das regies agropecurias mais importantes, como Rio de Janeiro, So Paulo e Minas Gerais.
(MAMIGONIAN, 1986).
Com relao ao indgena, enquanto na costa brasileira se implantou
uma estrutura econmica vinda de fora, que incorporou vrios elementos
da cultura europia e a mo-de-obra escrava, aqui, o nativo desempenhou
papel extremamente importante. O perodo que se estende de 1775, com a
construo do forte de Coimbra, at 1834, quando efetivamente se iniciou
171

O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no Olhar dos Viajantes

a penetrao de frentes colonizadoras na banda meridional, foi marcado


pelo estreitamento das relaes entre nativos, colonos, negros e militares.
Nas proximidades dos fortes, seus comandantes estavam sempre
preocupados em aldear os indgenas atendendo a instrues de seus superiores;
Para dar o meu parecer, conforme manda S.M. e V. Ex. me ordena,
sobre o aldeamento dos ndios uaicurs e guans, que vivem como
entre os portuguezes, nos terrenos adjacentes, e a norte deste
presidio de Coimbra, e nos contiguos ao de Miranda, de tal frma
que fiquem sendo uteis a minerao e agricultura, confesso, Illlm e
Exm. Sr. que mais de uma vez tenho esforado para cumprir com
esse meu dever, (...). (ALMEIDA SERRA, 2 ed., 1866, p. 204).

Instalados nos mais longnquos sertes do Brasil e dependendo


de uma produo regular para a manuteno das tropas, os portugueses
recorreram aos nativos, que desde o primeiro momento foram aliciados
ao uso de determinados produtos ou ferramentas que, posteriormente,
s eram entregues em troca de alimentos ou ento de participao em
frentes de trabalho, como a da extrao da ipecacuanha.
O indgena foi aprendendo o uso de tcnicas mais sofisticadas,
o manejo de instrumentos mais produtivos, o cultivo de plantas oriundas da Europa, introduzidas e adaptadas ao novo ambiente, e, assim, os
vnculos entre nativos e colonos foram de tal forma se estreitando que,
quando se iniciou o processo de ocupao da banda meridional da Capitania de Mato Grosso, alguns grupos indgenas estavam prontos para
ser absorvidos pelas novas propriedades. Foram eles, em conseqncia,
que cultivaram a terra e colocaram sobre a mesa do colonizador branco o
alimento necessrio sua subsistncia, como tambm se ocuparam com
a labuta diria no trato do rebanho bovino. Em meados do sculo XIX,
sob os encargos dos indgenas, estava organizada a pequena produo
sul-mato-grossense.
A principal contribuio veio dos ndios guans, sobretudo terenas, quiniquinaus e guaians, que tinham uma atividade agrcola muito
172

Paulo Marcos Esselin

desenvolvida e por isso incorporaram mais rapidamente os aspectos materiais da cultura do branco, sobretudo as tcnicas agrcolas e o manejo
do gado bovino e eqino.
O reconhecimento da contribuio de algumas naes indgenas
ao progresso do Estado era tal que, no seu discurso, o Presidente da
Provncia do Mato Grosso, Jos Antnio Pimenta Bueno, na abertura da
Assemblia Legislativa Provincial, em 1 de maro de 1837, afirmou:
Muitas differentes naes de Indigenas vadeio os incultos e
extensissimos sertes da Provincia, em grandes pores ainda no
trilhadas por nossa parte; de algumas temos notcia, e de outras de
que seguramente existem bem fundadas conjecturas: (...) Temos
tirado no pequena vantagem para o servio de defesa do Baixo
Paraguay, dos guatos, Laianos, Terenos, Quinquenaos, e gunas
(...). (BUENO, 1840, p. 170).

Os fortes construdos para a defesa da Capitania contra eventuais


ataques do incmodo vizinho acabaram por agregar os indgenas que, j
bastante desorganizados, buscaram refgio em suas proximidades, formando aldeamentos e desenvolvendo intenso comrcio com as guarnies. Tornaram-se esses fortes, plos atrativos, permitindo mais tarde,
a formao dos primeiros ncleos urbanos, como Corumb, Miranda e
Albuquerque.
Porm, nem todos os grupos nativos se submeteram ao colonizador. Alguns despertaram, pelas suas tropelias, as atenes das autoridades
governamentais. Era o caso dos guaicurus, a quem Bueno, a propsito,
assim se referiu: no nmero das [naes indgenas] domesticadas no
incluo a soberba intrepida nao dos Cavalleiros Guaicurs, sempre errante, e emprehendedora. (BUENO, 1840, p. 170).
Embora os guaicurus mantivessem o seu mpeto guerreiro, suas
aes estavam muito longe daquelas que impuseram extremas dificuldades ao processo de fixao tanto de portugueses como de espanhis.
O gado e o cavalo por eles roubados, sobretudo dos colonizadores paraguaios, tinham regular mercado em Mato Grosso, sobretudo com o
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O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

comandante de um forte portugus, que era tambm fazendeiro e interceptava os animais furtados e os vendia em Cuiab. Em apenas um ano,
os indgenas entregaram a ele 1500 cabeas de cavalos e mulas em troca
de bebida alcolica. (Relato de 1825/26, Vila de Concepcion Paraguay
apud WILCOX, 2000).
Os guaicurus viviam desde o sculo XVII nas proximidades dos
fortes e no sculo XIX j mantinham estreitos contatos com seus dirigentes. A belicosidade guerreira havia sido substituda por singelas trocas
entre as autoridades brasileiras e os indgenas. Se antes, estes recebiam
proteo de oficiais portugueses para realizarem incurses, agora, o fruto
do roubo era trocado sobretudo pela bebida alcolica. Assim, com os
anos de convivncia pacfica, passaram de aliados senhoriais a simples
ndios dominados, de negociantes de cavalos prprios e roubados a meros
pees de fazenda. (RIBEIRO, 2 ed., 1977).

174

Captulo 4
O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo
de Ocupao no Sculo XIX Guerra da
Trplice Aliana
4.1.

A Ocupao da Banda Meridional: O Pantanal


Sul-Mato-Grossense
Dono de fauna e flora riqussimas, o sul de Mato Grosso reduzia-se a dar abrigo a caadores de peles de animais e penas de aves e a explorar apenas produtos que brotavam espontaneamente de seus solos.
Certamente, o incio de sua ocupao teria se retardado ainda mais
no fosse a importante contribuio desse fator exgeno na quase metade
do sculo XIX, a Rusga.
Foi de iniciativa do Pe. Simo de Toledo20 o primeiro projeto de se
estabelecer nas proximidades de Fecho dos Morros, no sul da ento Capitania de Mato Grosso, para dedicar-se pecuria, mediante a captura do
gado bravio da redondeza. O Capito General Rolim de Moura indeferiu
o projeto de todo em 1771, por j superabundar o gado em Cuiab, acima

20 O padre Simo de Toledo Rodovalho era vigrio da aldeia de SantAnna; ele props ao Capito
General Rolim de Moura a sua transferncia para o Fecho dos Morros no rio Paraguai. Tendo
em vista a distncia, as despesas que ocasionaria e o cime que despertaria aos espanhis, deixou
o governador de acolher a proposta daquele jesuta. (MENDONA, 2 ed., 1973, p. 105).

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

das necessidades do consumo, e tambm por razes polticas. (CORRA


FILHO, 1926).
Antes dos insurretos da Rusga, j haviam se instalado s margens
do rio Miranda, no Morro do Azeite, Joo Leme do Prado com irmos e
filhos, no final do sculo XVII. O major Joo Jos Gomes, comandante
do forte de Miranda, com o auxlio dos ndios laianas, fundou em 1834
a fazenda Forquilha, no pontal dos rios Nioaque e Miranda, prximo de
onde afazendou-se Joo de Faria Velho. Mais ao norte e na mesma poca,
na regio do rio Negro, haviam se estabelecido D. Maria Domingos de
Faria, seu filho Joo Mamede e Joo Canuto Cordeiro de Faria; a eles se
juntou o primo Lus Generoso de Albuquerque. Anos depois, D. Maria
Domingos fundou, margem do Aquidauana, fazenda onde estabeleceu
um porto fluvial. (ALMEIDA, 1951).
Nas proximidades do forte de Miranda, no ano de 1836, j havia se
estabelecido Salvador Luiz dos Santos, um dos insurretos da Rusga que,
alm da criao do gado bovino, eqino e outros menores, mantinha lavouras e fundou uma salina rudimentar onde apurava o sal para vend-lo
na regio circunvizinha. (LOPES, 1999).
Joo Pereira do Amaral se fixou no Rio Negro em 1838 e pouco
antes, no Uass, s ribeiras do Aquidauana, instalou-se Valrio de Arruda
Botelho. Na interjacncia do Miranda e daquele seu tributrio, ficaram
Nicolau Tolentino dos Santos, Andr Jos dos Santos e Agostinho Joaquim Coelho. Em 1846, no vale setentrional do Miranda, Benedito Pedro
Duarte fundou a fazenda Curral da Taquara, e em 1847, Jos Alves de
Arruda, a So Jos Jatob. (ALMEIDA, 1951).
Em 1844, Lus Pedroso adquiriu a fazenda Forquilha do major
Joo Jos Gomes que, por sua vez, havia fundado em zona diversa a
fazenda Rodrigo, enquanto Jos Francisco Lopes abriu uma fazenda em
Jardim, nas proximidades das nascentes do Miranda. (ALMEIDA, 1951).
Um dos pioneiros do desbravamento das terras sulinas do baixo
Paraguai foi Brz Pereira Mendes, professor de lgica e de Filosofia em
Cuiab, vereador da Cmara Municipal de Cuiab (1834), membro do
176

Paulo Marcos Esselin

Conselho de Governo (1834) e Juiz de Paz em Cuiab (SIQUEIRA,


1992, p. 27), que se fixou em 1834 nas cabeceiras do rio Negro. Malquisto
em Cuiab, devido a sua participao na Rusga, descera para o sul certamente fugindo da Justia e de adversrios polticos. (ALMEIDA, 1951).
A exemplo de Brz Pereira Mendes, Jos Alves Ribeiro, Presidente
da Cmara Municipal de Cuiab em 1833 e um dos lderes do movimento Rusga, em funo da represso governamental, embrenhou-se pelo
Pantanal com parentes e amigos, estabelecendo-se margem direita do
rio Negro, acima do Anhumas, e fundando a fazenda Proteiro, onde ficou Antnio Alves Ribeiro. Aps andanas exploratrias, o grupo desceu
at a margem do rio Taboco, onde o major Joo Alves Ribeiro e o doutor
Generoso Alves Ribeiro fundaram a fazenda Taboco. (RIBEIRO, 1984).
Jos Alves Ribeiro, o Juca Costa, veio mais tarde e comprou a Fazenda Forquilha, s margens do Miranda e Nioaque. Os Fialho se instalaram entre o rio Aquidauana e o Taboco. Os Paes de Barros, s margens
do Aquidauana, fundaram a Boa Vista, uma fazenda grande, que tinha
at um engenho de porte mdio para a fabricao de acar e cachaa.
Os Mascarenhas fundaram a Fazenda Correntes. Os Pereira Mendes, a
Alinane . (RIBEIRO, 1984).
Ainda depois de 1845, Joo Batista de Oliveira, em parceira com
Joo Alves Ribeiro da Cunha, fundou, margem do rio Taquari, entre os
rios Salobra e Peixe, o latifndio do Bracinho, com rea de 736.928 ha.
Em ritmo lento, novos colonos ocuparam glebas nos vales do Aquidauana e Miranda e respectivos tributrios, efetivando-se assim a ocupao
territorial na regio impropriamente chamada de Baixo Paraguai. (ALMEIDA, 1951).
Em 1847, Joaquim Gomes da Silva, que mais tarde recebeu o ttulo de Baro de Vila Maria, estabeleceu-se em extenso latifndio que
se estendia desde as montanhas minerosas do Urucum at os pantanais
do Taquari, Paraguai, Jacadigo, Aquidauana e outros. Fundou a fazenda
das Piraputangas, onde fez sua morada, a poucos quilmetros de Albuquerque, a qual passou a ser o ncleo de onde a prosperidade se irradiava
177

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

para toda a regio e onde se abasteciam a Vila de Corumb e arredores.


(PROENA, 3. ed., 1997).
Foram essas as famlias, procurando reas novas onde pudessem
desenvolver atividade criatria, ou se livrar dos inconvenientes da Justia,
que chegaram ao Pantanal sul da provncia de Mato Grosso para iniciar o
processo da sua colonizao.
Para Virglio Corra Filho e Renato Alves Ribeiro, essas famlias
pioneiras vieram conduzindo gado bovino: Dos pantanaes, avanaram
as boiadas para o sul, em rumo de Miranda, conduzidas pelos exaltados
de 1834, que se exilaram espontaneamente de Cuiab, depois da tragdia
de 30 de maio. (CORRA FILHO, 1926, p. 21).
Na mesma direo aponta Ribeiro:
Acredito que os pequenos criadores (...) de Livramento
Pocon, Santo Antnio e Cceres desceram em direo ao sul
procura de bons campos de criar, com uma mdia de 300 a 600
reses no mximo, sentiram a necessidade de procurar novas
pastagens, campos que pudessem se apossar e estabelecendo-se
definitivamente. (RIBEIRO, 1984, p. 19-41).

Embora ambos os autores faam referncia vinda dos pioneiros


conduzindo boiadas, no h qualquer documentao que possa comprovar tal afirmao. Isso no significa, porm, que os pioneiros no tenham
trazido alguns poucos animais.
O primeiro registro da entrada de gado bovino no Pantanal sul-mato-grossense, desconsiderando o missioneiro e o de colonos espanhis,
de 1894, quando Jos de Barros conduziu de Cceres, para a regio da
Nhecolndia, cerca de 750 reses, das quais 350 pertenciam a Gabriel Patrcio de Barros, o Bi, e em torno de 400 eram suas. Despendeu 33 dias
na viagem, sendo 4 somente na travessia dos rios So Loureno e Taquari,
que foi muito custosa, e levou muitas vacas paridas, cujos bezerros no
suportaram a viagem, tendo ambos muitos prejuzos. (BARROS, 1987).
As notcias do gado alado nas regies do Pantanal eram de domnio pblico. As transaes que os criadores que se afazendaram em torno
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Paulo Marcos Esselin

do forte de Miranda realizavam na cidade de Cuiab eram freqentes,


como tambm aquelas atribudas aos ndios guaicurus com a intermediao dos fortes: Como era comum estes notveis cavaleiros venderem
animais de sela desde 1820 em Cuiab. (BERTELI, 1984, p. 41-42).
Os primeiros colonos no fizeram qualquer referncia entrada de
bovinos. possvel que estes tenham sido to poucos que no mereceram
meno: ademais, que razo justificaria levar gado bovino e eqino para
uma regio onde eles existiam aos milhares? No entanto, certo que eles
trouxeram alguns animais de sela, como tambm aqueles que optaram
pela via terrestre se utilizaram das carretas puxadas por juntas de bois
para transportar suas famlias e seus poucos pertences. Certamente, vieram tambm os animais de tiro para a labuta diria, indispensveis no incio do processo de fixao, algumas vacas leiteiras, animais de pequeno
porte, o suno, o caprino langero e aves domsticas, em escala suficiente
para garantir a subsistncia nos primeiros meses e para a reproduo.
Essa empresa de migrao foi feita pela iniciativa particular de alguns colonos sem que houvesse o envolvimento do Estado. Os pioneiros
foram atrados pela facilidade em se obter terra abundante e devoluta e
cuja pastagem natural em grande quantidade abrigava milhares de cabeas de bovinos e eqinos selvagens e domesticados na posse dos grupos
indgenas.
Geralmente, as comitivas que deixaram o norte de Mato Grosso
eram muito numerosas, com famlias inteiras, parentes, amigos, compadres, agregados e alguns escravos; enfim, os que vinham tomar posses
das terras no eram pessoas miserveis, mas reuniam condies que lhes
permitiam a fundao de fazendas.
Muitas vezes, esses grupos de colonos, fugindo do centro do inspito Pantanal, embarcavam em pequenos navios em Cuiab e vinham
pelo Paraguai abaixo at Corumb, onde se dispersavam com suas comitivas para um local que melhor lhes aprouvesse. Nesse primeiro momento
de ocupao, era possvel escolher as terras que se queria para tomar posse, geralmente nas proximidades dos fortes, onde se poderia encontrar
auxlio em caso de necessidade e proteo contra os naturais.
179

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Os colonizadores que chegaram regio, antes da metade do sculo XIX, reproduziram os mesmos processos polticos a que estavam
afeioados no norte e trataram logo de tomar posse de grandes reas,
herana da conscincia do Brasil colonial, onde quem dispunha de terra
era considerado rico, poderoso, respeitado e gozava do prestgio social.
Como a apelao de senhor de engenho ou de fazendeiro, desde
remotos tempos coloniais, fora quase um ttulo de nobreza, pois traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. (ANTONIL apud
QUEIROZ, 1976, p. 52).
Havia a clara possibilidade de os pioneiros se apossarem de grandes
reas, achando-se no direito a elas, alm do que o fator que determinou
o tipo de propriedade fundiria foi a criao extensiva do gado bovino,
que por si s exigia grandes reas e impelia os colonos a se assenhorarem
delas.
No Pantanal, generalizou-se como unidade territorial a sesmaria
de uma lgua de frente por trs de fundo, o que eqivaleria a 13.068
hectares.
Raramente, porm, cada proprietrio rural contentar-se-ia com
uma nica, indicativa de comedidas aspiraes. Adquirida,
mediante concesso do Governador, a primeira sesmaria que
servisse de ncleo, em trno dela seriam requeridas as terras
contguas, at que perfizessem conjunto grandioso, (...). De mais
a mais, os limites mencionados vagamente abrangiam, no raro,
rea muitas vzes maior que a devida, quando no se processasse
a medio de acrdo com as exigncias legais. A facilidade na
aquisio, por ttulo gratuito, de glebas imenas, cujas divisas os
vizinhos longnquos respeitavam, por no lhes minguar terreno
bruto, (...). (CORRA FILHO, 1955, p. 20).

A justificativa para incorporar grandes reas no Pantanal era a de


que durante as cheias, como parte das terras ficava alagada, necessitava-se de outro terreno correspondente, inacessvel s enchentes, para onde
o gado pudesse refugiar-se. Alm do que, a pecuria extensiva praticada
no Pantanal tem caractersticas prprias, realizada em extensas reas,
180

Paulo Marcos Esselin

exigncia do pequeno suporte dos campos, que comporta em cada 3,3 ha,
apenas uma cabea.
Os bovinos eram criados solta at as primeiras dcadas do sculo
XX, pois no havia cerca para deter o seu avano e, medida que instintivamente procuravam melhores pastagens, fugindo das reas macegosas,
iam descobrindo novas pastagens, cujas terras os homens que acompanhavam os seus deslocamentos iam incorporando ao seu patrimnio e
requerendo junto s autoridades estaduais.
Com isso, foram surgindo megalatifndios no Pantanal Mato-grossense:

Faz. Palmeiras, com 106.025 hectares - [legalizada] - 03/12/1894


Faz. Rio Negro, com 118.905 hectares - [legalizada] - 03/09/1893
Faz. Firme, com 176.853 hectares - [legalizada] - 27/08/1899
Faz. Taboco, com 344.923 hectares - [legalizada] - 24/04/1899
Faz. Rio Branco, com 384.292 hectares - [legalizada] 22/06/1901 (CORRA FILHO, 1955, p. 23).

Isso aconteceu a despeito da edio da Lei de Terras de n 601, de


setembro de 1850, que estabeleceu, no seu artigo 2, que daquela data em
diante:
Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas
derribarem matos, ou lhes puzerem fogo, sero obrigados a
despejo, com perda de bemfeitorias, e demais soffrero a pena
de dous a seis mezes de priso, e multa de cem mil ris, alm da
satisfao do damno causado. (Colleco das Leis do Imperio do
Brasil, 1850, apud PENO, 1987, p. 1).

E no seu artigo 5, pargrafo 1:


Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criao,
comprehender, alm do terreno aproveitado, ou do necessrio
para pastagens dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais
de terreno devoluto que houver contguo, com tanto que em
nenhum caso a extenso total da posse exceda a de huma sesmaria
para cultura ou criao, igual s ltimas concedidas na mesma
181

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Comarca ou na mais visinha. (Colleco das Leis do Imperio do


Brasil, 1850, apud PENO, 1987, p. 2).

A lei de 1850 procurou limitar o tamanho das propriedades, evitando a concentrao fundiria, e estabeleceu que a nica forma de se obter
terra era comprando do Governo, o qual atuava como mediador entre o
pretendente e o domnio pblico. A terra, at ento em grande quantidade e que podia ser obtida atravs de ocupao e doao real, desde que no
primeiro caso fosse mais tarde legitimada por concesso, daquela data em
diante poderia ser obtida por qualquer pessoa desde que pudesse pagar
por ela. A lei expressou os interesses dos proprietrios rurais. Enquanto
no plano internacional o avano tecnolgico no setor de transportes, conhecido como Segunda Revoluo Industrial, abriu novas perspectivas
para a agricultura brasileira, com o desenvolvimento da lavoura cafeeira
em So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, dois problemas avultaram,
exigindo soluo: o da mo-de-obra e o da terra.
A libertao dos escravos exigncia internacional sobretudo da
Inglaterra e internamente amplos setores se mobilizavam para obt-la,
preocupados com a facilidade que ex-escravos e imigrantes teriam de se
apossar de terras, a oligarquia lanou mo da lei de 1850 para (...) criar
obstculos a propriedade rural, de modo que o trabalhador livre, incapaz
de adquirir terras, fosse forado a trabalhar nas fazendas. Portanto, os
tradicionais meios de acesso terra, ocupao, formas de arrendamento,
meao, - seriam proscritas. (COSTA, 1979, p. 133).
Em Mato Grosso, a lei cumpriu em parte o seu papel de negar
acesso de trabalhadores rurais terra e, por outro lado, constituiu fator de concentrao fundiria. Os governantes reconheceram os direitos
de todos aqueles que exibissem escritos particulares de compra e venda
ou provassem posse mansa e pacfica decorrente da ocupao primria.
(CORRA FILHO apud CORRA FILHO, 1951, p. 22). A prpria realidade levou a esse processo de concentrao das terras, uma vez que
no era possvel a prtica da pecuria em outros moldes que no fosse a
extensiva. Aproveitando o capital natural (a terra e o gado selvagem), a lu182

Paulo Marcos Esselin

cratividade do empreendimento seria garantida com custos baixssimos.


Os investimentos necessrios a uma prtica intensiva, ou seja, construo
de cercas, plantio de pastagens artificiais e outros, eram, naquele momento, impraticveis.
No foi difcil aos novos colonos legalizar as suas terras; tinham
eles a mesma origem: se no parentes prximos, eram amigos e compadres. Os documentos foram produzidos com a mesma facilidade com que
se ocupou a terra.(...) eu considero o Pantanal a nica rea de Mato Grosso que foi colonizada exclusivamente pelo mato-grossense, ou melhor,
pelos cuiabanos, poconeanos, livramentanos e cacerenses (...). (RIBEIRO, 1984, p. 23). Essa foi uma empreitada de amigos e parentes em que a
solidariedade constitua a marca do empreendimento. As reas atingiam
um tamanho tal que eram demarcadas vagamente em funo de acidentes
geogrficos, posio das montanhas, curso dos rios, corixos e vazantes.
A frente desses imensos latifndios emergiu um grupo de proprietrios que foi se enriquecendo ao longo dos anos e, se aproveitando da
ausncia dos equipamentos estatais para ganhar poderes sobre as pessoas
e as coisas.
Ao tomar posse de uma rea, a primeira tarefa do novo proprietrio era a de reunir o gado alado espalhado por todo o Pantanal Sul.
Era a chamada bagualeao, ocasio em que eram organizadas comitivas
que permaneciam por mais de 15 dias internadas na regio, distantes do
ncleo da fazenda. (BARROS, 1998). Eugnio Gomes, neto do baro
[de Vila Maria], conta que nos primeiros tempos da fazenda Firme, seu
pai, o Nheco, organizava comitivas de bagualeao que permaneciam por
mais de 15 dias internadas no Pantanal, a grande distncia. (BARROS,
1998, p. 78).
Saam sobre o lombo de cavalos para recolher os animais descendentes dos rebanhos introduzidos, sculos antes, por jesutas e colonos
espanhis, como tambm aqueles que os ndios guaicurus, devido aos
seus rpidos deslocamentos, abandonaram Pantanal afora. Esse gado
no tinha dono, era o gado bagual estava solto e a prtica da bagualeao
183

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

seguiu-se por anos a fio depois da ocupao meu pai contava que ainda
no incio da dcada de 30 do sculo XX havia muito desse gado pela regio. (BARROS, entrevista em 13/10/2001).
Geralmente, os vaqueiros saam em noite de luar para melhor visualizar os animais que tinham o hbito de pastar apenas noite, os quais
eram laados e amarrados em rvores, onde passavam horas nessa condio para que fossem quebradas as suas resistncias, e mais tarde, o peo
voltava ao local para conduzi-los. No era raro encontrar alguns animais
mortos. Morriam de pura raiva e, recolhidos, eram levados para as proximidades das sedes da fazenda. (PROENA, 1958, p. 72-73). Eram as
vaquejadas: vai-se escondido, pelos matos, e sai-se em cima do gado, de
repente... Pior, porm, era caar a rs feroz, em ermas regies, perante a
lua. A pega do gado bagual, de noite, trabalho terrvel. (ROSA, 5 ed.,
2001, p. 117).
Renato Alves Ribeiro, grande latifundirio sul-mato-grossense
que, pessoalmente, participou da pega e amansamento do gado selvagem,
deixou uma das maneiras de faz-lo, utilizando o sinoeiro:
A pega do nosso gado bravo o touro, principalmente, que era
uma verdadeira fera representava um desafio ao homem do
campo. Quantos e quantos cavalos morreram estripados pelos
chifres dos touros e vacas. A pega do gado bagual, ou selvagem
geralmente era feita levando-se um lote de gado manso que o
bagual seguia. Por corruptela ou espanholismo se chamava esse
gado manso de Sinuelo, mas a palavra certa Sinoeiro, por
ser aquele que carrega o sino. Para no espantar o gado bravo
no levvamos o sino e procurvamos no fazer qualquer outro
barulho pois, percebendo qualquer sinal estranho o gado logo
disparava para o mato. (...) Tinha-se que procurar ir sempre contra
o vento, pois, os animais tm melhor o sentido do olfato que o
da viso. Ento colocava-se o sinuelo em um ponto visvel para
o gado que se queria pegar e uns cinco a seis pees davam uma
enorme volta, fechando em forma de pina e procurando jogar o
gado bravo contra o Sinuelo. .../ Muitas vezes o gado obedecia esse
movimento, mas quase sempre os bois erados, e principalmente
os touros, no respeitavam os cavaleiros e voltavam em sentido
184

Paulo Marcos Esselin

contrrio ao desejo dos vaqueiros. .../ Esses touros saiam em


disparada e os vaqueiros um ou dois, saam atrs, geralmente em
porfia para ver quem o laava primeiro. Aps laa-lo, se o vaqueiro
estivesse sozinho, procurava derrub-lo com golpes depois de
enlea-lo no lao. Quem muito sofria nessa luta eram os cavalos,
pois alm de correr duro com um vaqueiro em cima, por campos
massegosos, paus cados, buracos de tatus e outros empecilhos,
ainda sofriam grandes golpes para derrubar o touro. .../ Aps
derrub-lo, o vaqueiro apeava e ia l manear o touro com sua peia,
uma tira de couro de uns dois metros, muito bem sovada, que o
vaqueiro trazia amarrada na cintura. .../ Muitas vezes, o touro ou
melhor a rs, j cada, com a aproximao do vaqueiro conseguia se
levantar e o canpeiro tinha que subir em uma rvore prxima, ou
bancar o toureiro atrs de um pau. Nestes casos o touro tambm
costumava investir contra o cavalo. (RIBEIRO, 1984, p. 116-117).

Para manter esse gado nas proximidades do ncleo da fazenda,


sob os olhos dos criadores, usava-se o seguinte estratagema: cortava-se
a ponta do casco, para que a dor da pisada o impedisse de fazer longas
caminhadas; com relao s fmeas, aproveitava-se seu instinto materno:
prendiam-se as crias para que as mes no se alongassem. (PROENA,
1958).
Foi assim que os bovinos foram sendo reunidos em torno dos ranchos dos pioneiros, e desta forma comeavam a se estruturar os primeiros
rebanhos e, com eles, as fazendas.
These early settlers moved into the central and sourthern regions
of the Pantanal fluvial plain, setting up ranches with as many as 300
to 500 animals each. By the 1850s, there were at lest six substantial
ranches registered under law. Within, decades these establishments
had thousands of head of cattle and raised local horses as well,
and many of the settler came to be important figures in the
economy and poltics of Mato Grosso in subsequent decades, (...).
(WILCOX, 2000, p. 20).

medida que esse rebanho encontrado pelos campos ia sendo recolhido, recebia imediatamente a marcao a ferro, o que determinava
185

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

que, daquela data em diante, ele estava na posse de um fazendeiro, passando condio de mercadoria e, conseqentemente, no poderia ser
abatido por outrem.
No final do sculo XIX, quando muito gado selvagem ainda estava espalhado pelo Pantanal, essa lgica do homem branco j havia sido
absorvida pelos ndios guaicurus, entre os quais j reinava a compreenso
de que o gado orelhano no dividido no marcado, portanto era gado
de ningum, era de todos, era gado bravio, era como bicho. (RIVASSEAU, 1941).
O fato de o pioneiro reunir em torno de 300 a 500 cabeas para
o seu criatrio inicial no significava que na rea onde ele instalara sua
fazenda no houvesse um nmero muito superior, tanto que as caadas
eram comuns, para a posterior retirada do couro.
Criaram-se geraes de bois midos e de cr avermelhada que
nunca tinha visto o homem. Quando ste apareceu (...) houve
chacina. E alguns dos recm chegados apareceram da a pouco,
com gibes de couro novo, o couro avermelhado dos boisinhos,
(...) mortos a tiros. (...). (PROENA, 1958, p. 70).

Os rebanhos dos primeiros que se afazendaram no Pantanal multiplicaram-se consideravelmente, mesmo sem receber os cuidados regulares. O fazendeiro no tinha recursos para marcar todos os nascidos, e
aqueles sem trato manifestavam tendncias para se afastar, tornando-se
ariscos e repelindo a presena do homem.
E, neste caso, ha um facto que se deu, facto perfeitamente
reconhecido: os touros que se tornaram bravios e so elles os
mais promptos e propensos a esta mudana buscam e aproveitam
todas as occasies para arrebanhar o gado ainda manso. Assim,
as manadas de gado bravio vo-se engrossando sempre em
detrimento dos criadores. (RIVASSEAU, 1941, p. 67).

A pecuria tornou-se a principal atividade do Pantanal. O regime


das cheias e a distncia das regies mais ricas impediram o desenvolvi186

Paulo Marcos Esselin

mento de outras atividades. A posse do gado, que podia ser conduzido


para outras regies, significou que a sobrevivncia dependia quase que
exclusivamente desse recurso. O trabalho em uma fazenda era extremamente rudimentar a ponto de dizer um produtor que l no se criava
gado, mas colhe-se gado. (MACIEL, 1922, p. 18 e 19). Aqui o gado
que cria a gente. (ROSA, 5 ed., 2001, p. 118).
Todas as tarefas comeavam em princpios de setembro, com as
primeiras paries, e se estendiam at o fim de janeiro, s vezes at maro, conforme elas fossem uniformes ou tardias. (MACIEL, 1922).
Durante esses meses, os vaqueiros saam a campo, localizavam as
manadas e as conduziam para um curral, laavam rs a rs, derrubavam-nas uma por uma e, no caso das crias, sinalizavam-lhes as orelhas para
identificar a propriedade; sistema de marcao esse ainda largamente
utilizado no Pantanal. Pari e passu, fazia-se a marcao em brasa dos animais adultos, o que nada mais era do que a confirmao da posse. Concomitantemente marcao, os touros eram castrados, enquanto eram separadas as vacas que estivessem em perodo de lactao. (MACIEL, 1922).
De maro a agosto, as atividades da fazenda se resumiam ao cultivo de alguma cultura ou simplesmente ao cio. Como se pode depreender, a interveno dos fazendeiros e dos pees na pecuria era mnima:
apenas a de assegurar a propriedade dos animais, j que a criao se fazia
s custas da generosidade da natureza.
No Pantanal, no momento em que se encerravam as atividades
anuais de marcao, castrao, etc., o proprietrio costumava, a ttulo
de gratificao, oferecer alguns novilhos ou novilhas aos seus empregados, considerando para isso o desempenho de cada um; as vezes tinha
capataz que conseguia at dez novilhas em um ano. (RIBEIRO, 1999,
entrevista).
Simonsen, que estudou a implantao da pecuria no Brasil, afirmou: Depois de quatro a cinco annos de servio comeava o vaqueiro a
ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazendas por
sua conta. (SIMONSEN, 1937, p. 234, T. 1).
187

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

semelhana do sistema de povoamento que se desenvolveu nas


colnias inglesas e francesas, o homem que trabalhava na fazenda
de criao durante um certo nmero de anos (quatro ou cinco)
tinha direito a uma participao (uma cria em quatro) no rebanho
em formao. Tudo indica que essa atividade era muito atrativa
para os colonos sem capital. (FURTADO, 24 ed., 1991, p. 59).

No caso especfico do Pantanal, no foi muito diferente: muitos


daqueles que acompanharam os pioneiros sem dispor de recursos para
iniciar a atividade por conta prpria acabaram por efetuar a acumulao
inicial trabalhando em uma fazenda pantaneira.
Era comum termos na fazenda Taboco pequenos criadores, quase
que em regime de patriarcado, ou melhor, de comunidade, que iam
crescendo, aumentando a sua criao, e depois o prprio patro
legalizava para eles ou os auxiliava na compra de glebas para se
tornarem fazendeiros. (RIBEIRO, 1984, p. 33).

E ainda: Quasi todos os antigos capatazes dessas fazendas [Pantanal da Nhecolndia] so, hoje, proprietrios de terras. Os vaqueiros
possuem gado, que criam nos campos dos patres, sem despesa alguma.
(BARROS, 1934, p. 23).
Eu ainda alcancei parte dos processos de ocupao do pantanal,
meu pai requereu muitas terras para ex funcionrios, que so hoje
grandes fazendeiros, ele tinha grande prestgio poltico e levava
para Cuiab lotes de requerimentos para a legalizao de terras
para aquela gente, pelo fato de ser deputado ele encontrava muitas
facilidades, em troca recebia bezerros, tourinhos, vacas velhas, de
alguns nunca recebeu nada. No por ser meu pai mas era um
homem muito bom, um mecena. (RIBEIRO, entrevista 1999).

As terras pblicas foram, assim, sendo distribudas justamente queles que estavam prximos do poder e que tinham os meios para
legaliz-las, enquanto que os ndios foram sendo expulsos e mortos ou
se tornando pees de fazenda. Os que lanavam mo de grandes quantidades de terra pblica, vendendo ou doando a particulares, eram ainda
considerados mecenas.
188

Paulo Marcos Esselin

Ao lado da atividade criatria o pioneiro teve que desenvolver a


agricultura para garantir a sua subsistncia e a de sua famlia, no mesmo
modelo do norte de Mato Grosso. Enquanto l ela se desenvolveu para
atender a atividade mineira, no sul deu suporte para o desenvolvimento
da pecuria.
Cada latifndio tinha o seu cultivo prprio de gneros alimentcios para o sustento daqueles que viviam e trabalhavam no ncleo rural.
Praticamente, produzia todo o necessrio, no havendo a necessidade de
recorrer para alm dos limites da propriedade, a no ser para a aquisio
de ferro, loua, vinhos e outros produtos, cuja produo interna no era
possvel. A maioria dos produtos elaborados nas fazendas era fabricada
por processos manuais ou com instrumentos rudimentares de baixssimo
rendimento.
As moendas de cana, torneadas de jatob, ou anloga madeira de lei,
pelos seus carapinas, completavam-se com a maquinaria simples,
em que se enformava a rapadura, o acar de barro, ou alambicava
a aguardente (...). As peas metlicas s foram introduzidas quando
ia em meio o sculo. (CORRA FILHO, 1946, p. 68).

O equipamento metlico foi introduzido no norte de Mato Grosso, ao passo que no Pantanal sul, a produo era tocada por equipamento de madeira. Cultivava-se muita mandioca, que constitua, ao lado da
carne, a base da alimentao do sulino e era um produto to valorizado
como hoje o arroz. Da mandioca, antes da farinha, extraa-se o polvilho
para fazer o bolo e o po de queijo. Cultivava-se tambm o feijo, j que
os solos eram propcios ao desenvolvimento dessa cultura, que tem ainda
o conveniente de no ser muito exigente em gua e de fcil armazenamento, podendo ser utilizado muito tempo depois de colhido. O milho
era cultura obrigatria, pois, alm da canjica e da farinha, obtinha-se dele
o curau, a pamonha e muitos outros quitutes ainda hoje apreciados pelos
sul-mato-grossenses, mas que preferencialmente eram armazenados em
paiol para alimentar o porco que, alm da carne, fornecia a banha. (RIBEIRO, entrevista 1999).
189

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Toda grande propriedade cultivava a cana-de-acar, da qual se


extraa o melado, a rapadura, a aguardente e o acar. Os processos eram
extremamente rudimentares: a cana colhida passava por uma moenda, geralmente feita de madeira o jatob e tocada por uma junta de bois ou
de cavalos, onde era espremida, e o caldo levado a grandes tachos sobre
foges de lenha que forneciam o calor necessrio para a purificao. Aps
esse processo, o melado era colocado em um cocho em forma de fenda
e, assim que se solidificava, o recipiente era completado com terra que,
com o tempo, absorvia a umidade do melado, um princpio de osmose
utilizado pelo caipira naquelas regies sem muitos recursos. A operao
terminava quando se retirava com cuidado a terra que estava seca e em
pedaos. Obtinha-se assim o acar de barro: quanto mais seco, mais alvo
e mais limpo. (RIBEIRO, entrevista 1999). Para o preparo da rapadura,
encaixava-se o melado em grades desmontveis de madeira; assim que
secava, o produto estava pronto para ser consumido.
Cultivavam-se, ainda, arroz, abbora, moranga. O arroz encontrava muitas dificuldades ambientais para o seu desenvolvimento, sobretudo
na plancie. Raros eram os fazendeiros que conseguiam colh-lo.
Conta que assim que se estabeleceu no Pantanal da Nhecolndia,
Jos de Barros, se dirigiu a fazenda de um amigo e por l ficou
alguns dias, na sua volta anunciava a todos que o amigo a quem
fora visitar estava rico e ao ser indagado sobre a afirmao ele
respondia, a mesa dele estava branca de arroz. (BARROS, entrevista
2001).

Por esta afirmao, pode-se aferir que o arroz, alm de no ser


uma cultura que se desenvolveu muito bem nas condies ambientais do
Pantanal, era vendido por preos que tornavam o alimento proibitivo a
algumas pessoas, inclusive a alguns fazendeiros. A alimentao bsica era
mandioca, carne, leite, muita farinha de milho e de mandioca, abbora,
batata doce, moranga, feijo, acar. Sobressaa o consumo avultado da
carne como elemento preponderante no regime de alimentao. (CORRA FILHO, 1955). Ela era servida em pelo menos trs refeies: ao
190

Paulo Marcos Esselin

raiar do dia o desjejum, o chamado quebra-torto , no almoo e no


jantar. (BARROS, entrevista, 2001).
Tambm contribua na alimentao do mato-grossense, tanto do
norte como do sul, o peixe dos rios e baas. Era comum, igualmente, o
cultivo de rvores frutferas, como a laranja, o limo, a manga, a jabuticaba, o mamo. Dessas frutas faziam-se doces e, de algumas delas, licores
que eram servidos o ano todo.
Instalou-se no Pantanal sul-mato-grossense a grande propriedade
rural voltada basicamente para o criatrio bovino e adotou-se o indgena
como mo-de-obra principal numa relao de semi-escravido.
O vaqueiro se originou do ndio, do guat, do guan, dos chamacocos e guaicurus, os primitivos donos da terra; tambm do negro escravo que veio para as minas de ouro e depois para as plantaes de cana no
norte de Mato Grosso, acompanhou o desbravador por caminhos vrios
e, j no sul, recebeu a influncia do sangue paraguaio, absorvendo-lhes os
costumes e traos fisionmicos, formando um tipo diferente do vaqueiro
do norte. (PROENA, 3 ed., 1997).
Na verdade, a origem do vaqueiro sul-mato-grossense no ocorreu dentro de um processo idlico campestre de amor e ternura; pelo
contrrio, pautou-se pela violncia e expropriao. O recrutamento da
mo-de-obra para a pecuria teve por base o elemento indgena, com
conseqncias dramticas para este, na medida em que determinou o seu
engajamento em uma economia de carter semi escravista, no obstante a
oposio que ele fez ao ver-se expropriado de suas terras, seu gado, seus
bens e de sua gente.
Nas primeiras dcadas do sculo XIX, os indgenas, sobretudo os
terenas e guans, tradicionais agricultores, eram livres e economicamente
autnomos. Em contato com os religiosos que promoviam a catequese, e
com os soldados dos fortes instalados na fronteira, transformaram toda
a sua tradicional base material incorporando novas prticas de cultivo e
trabalho, como tambm instrumentos mais produtivos, ao ponto de se
tornarem os responsveis pela produo de hortifrutigrangeiros de al191

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

guns ncleos populacionais do Pantanal sul de Mato Grosso como Miranda e Corumb.
Com o processo de colonizao do Pantanal sul, os pioneiros foram expropriando os indgenas de suas terras e de todo o seu gado e submetendo-os violentamente. Aqueles que no foram mortos internaram-se
pelo interior em busca de segurana, os que ficaram foram submetidos e
transformados em fora de trabalho. Nesse processo de expropriao, foram surgindo imensos latifndios que concentravam milhares de cabeas
de gado. Por volta de 1860, j havia algumas substanciais propriedades e,
frente delas, os primeiros colonizadores que se tornaram importantes
figuras na economia e poltica de Mato Grosso.
A presena do paraguaio em Mato Grosso visualizada somente
no final do sculo XIX e comeo do sculo XX.
Quando da independncia da Amrica Espanhola, o Ditador Supremo do Paraguai, Jos Gaspar Rodrigues Francia, atravs do confisco
ou de compras a baixo preo, adquiriu e distribuiu terras aos camponeses
paraguaios, arrendando-as a custos irrisrios, alm de fornecer-lhes implementos agrcolas, gado e sementes. Criaram-se as estncias da ptria,
onde os trabalhadores do campo produziam com o auxlio do Estado e
dispunham de parte da produo como homens livres. Das estncias,
saam carne e couro, sendo que o segundo era exportado. (CHIAVENATTO, 24 ed., 1979).
Essas estncias da ptria tornaram-se extremamente importantes
para a nao paraguaia, na medida que: desempenharam o papel de propiciar trabalho mo-de-obra assalariada.
No Paraguai no haver desempregados e, consequentemente, os
vadios e desocupados no vo constituir fenmeno social, como
ocorria aqui, na aluso Argentina. (...) Desta forma, verificar-se-
o caso nico de uma economia, que embora atrasada, permitir a
integrao nela da totalidade do povo humilde, base solidssima
para a formao de uma conscincia nacional. (POMER, 2 ed.,
1985, p.16).
192

Paulo Marcos Esselin

Mais tarde, j no governo de Solano Lopes, o Paraguai, que possua um rebanho de sete miles de cabeas de gado vacum, colheu, no
incio da guerra, sete milhes de quilos de fumo, dois milhes e meio de
quilos de erva-mate. (CHIAVENATO, 24 ed., 1979). No final do governo de Antnio Carlos Lopes, o efetivo militar paraguaio era de quinze
mil homens e, prximo do incio da guerra, saltou para quarenta mil.
(VERSEN, 1976, p. 53).
Entretanto, o Paraguai vivia um momento de progresso e no
havia razes para que o povo se deslocasse para Mato Grosso, onde as
oportunidades naquele momento eram muito menores. Portanto, se aqui
paraguaios houvesse, eram fugitivos da Justia ou trabalhadores especializados que se dedicavam construo de currais, bretes e cercas, em que
esses hbeis artesos se destacavam.
Durante os sculos XV e XVI, na Europa, sobretudo na Inglaterra, comeava-se a criar a base do modo de produo capitalista, processo
esse marcado pela separao entre os trabalhadores e a propriedade, perodo de muita violncia e revolues que arrancou sbita e violentamente
as grandes massas humanas de seus meios de subsistncia e as lanou no
mercado de trabalho. (MARX, 2 ed., 1985, V. 2). Esse processo marcou
o ponto de partida da produo capitalista, a sua gnese, deixando profundas cicatrizes na classe trabalhadora. Quatro sculos depois, a banda
meridional de Mato Grosso foi palco de violncias que fizeram recordar
a aurora capitalista.
Enquanto no Velho Mundo a sociedade organizada se preparava
para entrar na fase superior do capitalismo - o imperialismo -, os pioneiros mato-grossenses se lanavam sobre as terras, o gado e o trabalho do
indgena.
Naturalmente que os conflitos foram se sucedendo e, embora a
populao indgena fosse a maioria, ela no tinha possibilidade de lutar,
devido inferioridade blica e tambm porque os pioneiros contavam
com o respaldo legal de autoridades dos fortes e do distante governo
provincial.
193

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Em muito pouco tempo, os indgenas guans e terenas, de proprietrios de rebanhos bovinos e cavalares, se transformaram em pees
de fazenda.
Os [terenas so muito] procurados pelos fazendeiros, contentavamse com pequena remunerao, sendo, em geral, por les explorados.
Raramente se encontrava um camarada terena que no devesse os
cabelos da cabea ao fazendeiro seus servios no eram pagos
pelo que valiam e, nas fazendas efetuadas pelo patro, eram
tristemente roubados. Da uma escravido de nova espcie, porque
nenhum camarada de conta poderia deixar o patro antigo sem
que o novo se responsabilizasse pela dvida. E se tivesse a ousadia
de fugir, correria os maiores riscos de vexame e at de morte,
porque nos povoados e vilas, estava a polcia sempre em mos dos
fazendeiros. (VIVEIROS, 1958, p. 179-180).

Via de regra, os trabalhadores eram muito mal remunerados e dependiam inteiramente do patro para o fornecimento de gneros, como
roupas, calados, aguardente, enfim, aquilo que a propriedade no produzia. Esses artigos eram fornecidos a preos majorados, de forma que
sempre havia saldo prendendo o peo ao patro.
A populao nativa foi sendo aos poucos expropriada de suas terras e de seu gado e sistematicamente reduzida condio de servido.
Empobrecida, medida que ia sendo desapropriada de seus bens, juntava-se em bandos, perambulando pelas fazendas, mendigando por um local
onde pudesse se fixar, desenvolver lavouras de subsistncia e caar.
No fim do sculo XIX, alguns desses grupos eram vistos nas cabeceiras do rio Taboco, no alto Pantanal, em conflito com fazendeiros:
Esses ndios, sempre mansos, com o passar dos tempos foram
criando certos problemas, chegando a provocar um caso entre
meu av e Rondon [Gen. Rondon]. Nessas visitas que faziam
fazenda eles ganhavam pedaos de arame que, por no serem de
ao naquele tempo, eles laminavam e colocavam na ponta de suas
setas, dando s mesmas um maior poder de penetrao. Apesar
do meu av pedir-lhes que viessem em casa que ele daria at rolos
completos para eles, os ndios por comodidade, ingenuidade e
194

Paulo Marcos Esselin

no avaliando o prejuzo que causavam, iam tirando o arame das


cercas. .../ s vezes estvamos prendendo boiadas para serem
negociadas e, na vspera do dia combinado para o aparte, os
ndios vinham e tiravam uma a duas quadras de arame das cercas21,
soltando toda a boiada que havia sido presa em 20 ou 30 dias. .../
Outro prejuzo grande que davam que eles gostavam de comer
nonatos (bezerros de barriga, s vsperas de nascer). Eles, muitas
vezes, matavam as vacas e s tiravam o bezerro contido no tero.
(RIBEIRO, 1984, p. 77).

Desde a sada dos colonos e jesutas espanhis do Pantanal, os


ndios foram, aos poucos, incorporando a carne bovina sua dieta. O
gado era numeroso e sem proprietrio e passou a representar para alguns
grupos uma nova caa, mas, medida que os pioneiros foram chegando,
ocupando a terra e apropriando-se do rebanho, a situao entre eles foi
se deteriorando. Os fazendeiros se queixavam de que os ndios causavam
grandes prejuzos ao furtarem suas reses para abaterem e se organizavam para pr cobro quela situao. Como as autoridades em geral
estavam nas mos deles, logo se desencadeavam represses brutais, muitas vezes estimuladas dentro do prprio governo da Provncia de Mato
Grosso. Em um documento do imprio, de 1874, Joaquim Barbosa Marques foi autorizado a arredar os ndios de qualquer modo e tomar conta
de suas posses e garantir a famlia. (BARBOSA, 1961, p. 06). Ou seja,
os fazendeiros estavam respaldados pelo Governo imperial a tomar posse
das terras de qualquer maneira, at, se fosse necessrio, exterminando o
elemento nativo. A situao chegou ao ponto de ver-se, no final do sculo
XIX, o General Rondon obrigado a intervir nas relaes pouco amistosas
entre um produtor da regio e os ndios ofais.
A custa de interminveis esforos para proteger a segurana
pessoal e a vida dos silvcolas, consegui salvar os remanescentes da

21 Na sua obra Taboco 150 anos. Balaio de Recordaes Renato Alves Ribeiro afirma que a
fazenda Taboco s comeou a ser cercada depois da dcada de 1920, quando o general Rondon
j havia registrado os conflitos entre os nativos e o seu av, que aconteceram entre 1900 e 1910.

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O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

tribo dos ofais, das cabeceiras dos rios Taboco e Negro. Estavam
sendo caados e exterminados por um coronel, porque matavam,
para comer, rses da fazenda. S a custa de energia, pertincia e
pacincia foi possvel obter do Govrno que reprimisse tais caadas
e mais difcil ainda foi convencer o fazendeiro de que eram essas
proezas assassnios execrveis. (VIVEIROS, 1958, p. 225-226).

Os confrontos se estenderam violentamente por todo o sculo


XIX, com desfecho favorvel aos fazendeiros; de certa forma, j havia
uma acomodao entre os proprietrios de terra e os nativos. Joaquim
Ferreira Moutinho, que esteve em viagem por toda a Provncia de Mato
Grosso, deixou relatos importantes a respeito do trabalho do indgena.
No princpio da dcada de sessenta do sculo XIX, portanto, antes do
incio da Guerra do Paraguai, ele esteve na Vila de Miranda e foi hspede
do Baro de Vila Maria no engenho de Piraputangas, nas proximidades
da cidade de Corumb. Segundo ele:
Os terena e laianas [estavam] aldeados sob a direco de frei
Marianno de Bagnaia, em uma bella planicie, perto da Villa de
Miranda, prestavo j relevantes servios, visto como no s os
homens se davo ao trabalho de camaradas, como ainda cultivavo
roas que abastecio a villa de generos alimenticios (MOUTINHO,
1869, p. 135).

J no engenho de Piraputangas,
Os ndios aprendio varios officios e trabalhavo em olarias.
Perfeito remeiros e pilotos, empregavo se e prestavo auxlio no
s ao commercio, como camaradas das canas que transportavo
generos de Corumb a Cuyb; como ainda nas fazendas de cultura
e criao, onde seus servios ero apreciados. (MOUTINHO,
1869, p. 137).

Os ndios, pelo relato do viajante, eram os responsveis por quase


todo o trabalho que se desenvolvia nas cidades e nos seus entornos, alm
de cultivarem a terra. Toda atividade produtiva estava sobre os ombros
dos naturais.
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Paulo Marcos Esselin

No aldeamento de Albuquerque dos Capuchinhos, revela o viajante,


(...) notamos a regularidade da educao dada por frei Angelo, que
no os poupava do trabalho, mas tratava-os com amor paternal (...)
na alda havia abundncia de vveres plantados pelos ndios que se
mostravo todos muito satisfeitos (...). Os velhos ainda seguiam
seus costumes selvagens. (MOUTINHO, 1869, p. 137).

As mulheres ndias tambm mereceram ateno do viajante:


As ndias, entre as quaes se contavo 20 a 24, de 14 a 16 annos,
ero na maior parte afilhadas da bondosa e caritativa sra. baroneza
de Villa Maria, que lhes tributava extrema affeio, e as protegia
muito. Vinho regularmente ao seu sitio onde passavo dias, e ella
as recebia sempre em sua casa, infiltrando-lhes bons princpios,
que seguio pela indole naturalmente boa. (...) os indios ouvio
missa e resavo todos os dias no oratorio do missionario. .../
Havio escholas de primeiras lettras e musica, onde estudavo com
muito aproveitamento. As ndias empregavo-se nos arranjos de
suas casas e em costuras. (MOUTINHO, 1896, p. 137).

As jovens ndias iam recebendo os bons princpios da formao ocidental crist para tornarem-se prendadas empregadas domsticas,
cozinheiras, enfim, para realizarem todos aqueles servios que, por uma
razo ou por outra, tornavam-se pouco dignos de serem exercidos pelas
famlias oligrquicas que comeavam a se formar no Pantanal sul.
Era muito comum os fazendeiros da regio de Mato Grosso retirarem indiazinhas dos seios de suas famlias ainda em tenra idade sob
a alegao de oferecer-lhes uma melhor educao. Na verdade, desde os
primeiros dias de chegada casa dos patres, elas eram colocadas na lida
diria, primeiro divertindo os filhos e netos dos coronis e seus apaniguados, na condio de babs e, mais tarde, introduzidas nos demais afazeres
domsticos, geralmente sem ganho nenhum, merecendo por esses servios a honrosa condio de participarem do ciclo mais ntimo da famlia,
obterem um casamento arranjado pela condio de protegidas do coronel
ou alguns cuidados especiais em sua velhice.
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O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Nas fazendas 80% da peonada era de ndios, sendo os servios da


casa exercdos por moas ndias que eram criadas pelos brancos.
.../ At hoje em Aquidauana e Miranda muito comum as ndias
servirem de cozinheiras, arrumadeiras e babs. Os meus filhos
tiveram algumas babs ndias. Era to ntimo o contato com eles
que muitos fazendeiros aprendiam a falar a sua lingua. (...) Vov
[criou] uma mestia, Laura, e para quem desejava coisa melhor.
Vov fez a Laura se casar no Rio de Janeiro com um almofadinha
da poca (...). (RIBEIRO, 1984, p. 35-73-74).

Moutinho identifica, entre os grupos indgenas que j prestavam


servios em fazendas da regio de Albuquerque e Corumb, os quiniquinaus. Faz referncia aos guans, mas, ao contrrio de Castelnau, registra
que estes estavam em frente ao porto geral de Cuiab, na margem direita
do rio. Nas proximidades de Miranda destacou os laianas e terenas, todos
j vivendo em completa harmonia com nossos costumes. (MOUTINHO,
1869).
Quanto tribo dos ndios paiagus e os guaicurus, que por muito
tempo representaram o flagelo das embarcaes que subiam o rio Paraguai, A primeira pode-se dizer extincta na provncia. (...) Habito hoje o
gran chaco do Paraguay, onde por vezes os vimos margem do rio. [ J os
segundos] esto completamente dedicados ao Brasil, conservando dio e
rancor aos paraguayos. (MOUTINHO, 1896).
J Bartalom Bossi, em viagem pela Provncia de Mato Grosso em
1863, registrou junto vila de Albuquerque uma aldeia de ndios guans
que:
(...) prestam vizinha povoao toda a classe de servios; j na
agricultura, j em outras necessidades e pequenas indstrias [como
tambm havia outros aldeamentos de indgenas] kiniquinos,
laianos e guaicurus no ponto denominado Mata Grande, a 12 Km
de Albuquerque. (BOSSI, 1863, p. 22).

Essas informaes confirmam que todo trabalho na incipiente


sociedade sul-pantaneira era feito atravs dos braos indgenas, que
acionavam tanto a propriedade rural como tambm os setores de servio
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Paulo Marcos Esselin

e indstria que no exigiam uma maior especialidade. A eles se juntavam


alguns poucos negros escravos.
A vida nos rinces da Provncia de Mato Grosso foi marcada no
princpio por extrema pobreza. Os fazendeiros, na posse de extensos latifndios, viviam em estado deplorvel, mas no de misria, uma vez que a
agricultura de subsistncia e a abundncia da carne, seja ela de bovino, de
porco, de caa ou de peixe, permitiam uma rica dieta protica.
A indolencia parece ter assentado sua sde em Matto Grosso.
Existe nos campos daquella provncia, uma populao sui generis,
meramente entregue creao de gado, com hbitos arraigados,
que a inhabilitam para qualquer outro trabalho. (...) Sua fazenda
uma rea de terreno indeterminada, muitas vezes com 5, 10 e
20 e mais legoas de extenso, tendo, em certo ponto, um rancho,
coberto quasi sempre de palha, raras vezes de telha, que serve de
vivenda ao dono dessas gigantescas propriedades, onde caberiam
larga, dez a doze gro-ducados ou principados allemes. (...) Raras
vaccas mansas rodeam um espao limpo s pelas patas do gado;
porm dezenas de millares de rezes percorrem as suas campinas
desertas e innumeros touros mugem ao longe. (TAUNAY, 1923,
p. 68-69).

A terra, por si mesma, no possuia valor algum. O trabalho humano nessas propriedades no lhes modificava a feio. Ficavam como que
nas condies em que eram encontradas. (SODR, 1941). As benfeitorias
eram poucas e de construo extremamente simples. As moradias eram
construdas de pau-a-pique com barro socado, e cobertas com a palha do
acuri ou ento do capim-sap, esse ltimo preferido devido a sua melhor
proteo quando das chuvas. O cho era de terra batida; os cmodos, altos e espaosos. Geralmente, junto casa havia uma varanda aberta, que
ficava em frente sala. As refeies eram tomadas nessa varanda, onde
havia uma grande mesa, feita de madeira grossa e sustentada por cavaletes, com longos bancos tambm confeccionados de madeira. Os quartos
eram amplos e seu mobilirio consistia em bas e canastras de madeira
ou de couro, onde se guardavam as poucas mudas de roupas. As redes
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O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

por muito tempo serviram de cama, e s eram armadas na hora de deitar.


(BARROS, entrevista 2001).
Havia, ao que parece, uma nica exceo:
(...) era o riquissimo engenho - as Piraputangas - pertencentes
ao sr. baro de Villa Maria. Dahi sahia grande parte do sustento
para Corumb; accrescendo que a maior parte do gado que ali se
consumia era tirado das fazendas do mesmo baro, prximas do
engenho, onde residia em riquissima casa, perto da fbrica movida
por gua, entre ricos pomares, e bellas e abundantes plantaes,
disposto tudo com muito gosto, regularidade, e at com luxo.
(MOUTINHO, 1896, p. 245 e 246).

Segundo Thompson, nas propriedades marginais do rio Paraguai,


do Baro de Vila Maria, havia cerca de 80.000 reses. (THOMPSON
apud ALMEIDA, 1951, p. 345).
O isolamento, a solido e a falta de renda constituram uma marca
significativa da nascente sociedade sul-mato-grossense e obrigou alguns
poucos a produzirem praticamente tudo dentro da propriedade, inclusive
tecidos. As unidades mais bem aparelhadas produziam a vestimenta de
seus empregados e tambm a dos nativos nas aldeias. Teem typos muito
bonitos; as raparigas vestem-se bem, e no gasto absolutamente fazenda ordinaria; os seus vestidos so feitos por ellas mesmas, ao passo que
cuido tambem das roupas de seus maridos e filhos. (MOUTINHO,
1869, p. 138).
Na metade do sculo XIX, j ento haviam se estabelecido as primeiras fazendas regulares, sobretudo na fronteira, onde estavam concentrados os fortes e as aldeias indgenas dirigidas por padres. A princpio,
o principal negcio desses pioneiros foi a produo do couro que se exportava em grande quantidade, tanto do gado vacum como tambm dos
animais silvestres. A carne era desprezada devido ao pequeno mercado
interno; muitas vezes, abatia-se a rs apenas para retirar-lhe o couro.
Dispondo de uma imensido de campos e de uma vegetao que
permitia boa forragem, o gado se multiplicou muito rapidamente, tanto
200

Paulo Marcos Esselin

que em meados do sculo XIX havia previses de que somente o distrito


de Miranda possuia 150.000 mil cabeas de gado, segundo o testemunho
de vista de Jos Barbosa Bronzique. (TAUNAY, 1923, p. 114).
No parece exagerado o nmero apresentado por Jos Barbosa
Bronzique. Quando da viagem de Luis dAllincourt Provncia de Mato
Grosso, na dcada de 20 do sculo XIX, ele deixou registrado que somente a fazenda pblica de Miranda apascentava 9.500 cabeas de gado bovino e 750 de eqinos. (DALLINCOURT, 1975). No incluindo o gado
selvagem ao qual ele se refere dizendo encontrar-se espalhado por toda a
plancie por falta de manejo, como tambm aquele em poder dos grupos
indgenas. Destacado pesquisador pantaneiro, CORRA FILHO, afirmou que a taxa de natalidade nessa regio no distanciar grandemente
de 20%, o que permite dobrar o rebanho de cinco em cinco anos, e, s
vezes, em menos prazo. (CORRA FILHO, 1946, p. 72). Obviamente,
nas condies de campo, com a criao extensiva, sem o emprego de
tcnicas mais apuradas.
Nesse caso, considerando essas 9.500 reses encontradas por
dAllincourt e recorrendo a uma progresso do rebanho com base nos
ndices oferecidos por Corra Filho, no ano de 1864, quando do incio
da guerra do Paraguai, existiria algo superior a trinta milhes de cabeas.
No entanto, o mesmo autor alerta para as dificuldades nos primeiros anos
de ocupao: os animais enfrentavam os predadores, ainda em grande
quantidade e, alm disso, embora sem registro, havia intenso comrcio
clandestino com o Paraguai, antes da guerra, e venda de carne seca e sub-produtos do gado no Porto de Corumb.
Considerando esses fatores, tomando as 9.500 cabeas de gado bovino e adotando o crescimento vegetativo desse rebanho de apenas 5%
ao ano, portanto, um quarto do previsto por Corra Filho, somente no
distrito de Miranda, em 1864, havia 85.329 cabeas descendentes do rebanho domstico registrado por dAllincourt. (Ver tabela na pgina 198).
O volume de gado existente no sul da Provncia era substancial e
despertou a ateno de tropeiros mineiros, j acostumados a conduzirem
201

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

boiadas de Cuiab para engorda em Minas Gerais desde 1836, quando


Manoel Bernardo inaugurou o intercmbio conduzindo para Uberaba um
magote de legtimo gado pantaneiro. (CORRA FILHO, 1969).
Desde 1848, se formou uma corrente contnua de boiadas no norte
de Mato Grosso compradas por gente de Minas Gerais, que cuidava da
engorda na sua Provncia antes de lev-las capital brasileira. (LEVERGER apud MAMIGONIAN, 1986).
O processo de concentrao urbana foi um fenmeno registrado
no Brasil no incio do sculo XIX e deveu-se ao desenvolvimento comercial estimulado tanto pela abertura dos portos como pelo aparecimento
de atividades econmicas urbanas e, mais tarde, tambm pela expanso
das reas de cultivo do caf nas Provncias do Rio de Janeiro e So Paulo;
esta por ser incompatvel com o criatrio bovino, conduziu a uma ampliao do mercado da carne nessas regies e permitiu que o gado do sul
de Mato Grosso, como j acontecia com o do norte, fosse comercializado
com produtores do Tringulo Mineiro, tradicionais invernistas, e, posteriormente, levados para abate na capital administrativa.
A colonizao do Pantanal sul de Mato Grosso se fazia com uma
corrente oriunda do norte formada, sobretudo, por cuiabanos e poconeanos livramentanos, que conheciam as relaes que se estabeleciam
entre os comerciantes mineiros e os produtores mato-grossenses, e no
demorou muito para que os primeiros chegassem regio de Miranda e
Aquidauana com o propsito de comprar bois. Logo, teve incio a exportao do gado em p.
Em 1850 os boiadeiros do tringulo mineiro, conhecedores j
do serto sul-matogrossense para onde passavam atravessando
o Paranaba, abaixo da barra do Rio Grande, iniciaram as suas
viagens peridicas a estas paragens, fazendo negcios de gado com
criadores estabelecidos nas margens do Miranda, Ivinhema, Ap e
planos da Vacaria. (ALMEIDA, 1933, p. 02).

A cidade de Uberaba, no Tringulo Mineiro, havia se transformado em importante centro comercial. Devido a sua privilegiada posio ge202

Paulo Marcos Esselin

ogrfica, tornou-se caudatria do grande comrcio entre o Centro-Oeste


e o litoral do Sudoeste e importante entreposto de comrcio do gado
bovino. A rota salineira passava por So Paulo, Jundia, Campinas, Porto
de So Bartolomeu (Rio Mogi), descia pelo rio Pardo e subia pelo rio
Grande, buscando o porto da Ponte Alta; da, atravs de carros de bois,
chegava a Uberaba. (SAINT HILAIRE, 1975). Essa rota deu cidade
a condio de mais importante entreposto salineiro do Brasil Central.
Alm do sal, os comerciantes recebiam produtos de alta rentabilidade
como armarinhos, perfumarias e querosene. (GUIMARES, 1991).
Aproximadamente 2.500 carros de bois faziam, nesta poca, o
transporte de sal para Minas Gerais, Goias e Mato Grosso, da
porque os tropeiros e os carreiros desempenharam um papel
importante no transporte de mercadorias para as provncias
interioranas. (REZENDE, 1997, p. 37).

Logo foi estabelecido importante canal de mercantilizao entre


os invernistas mineiros e os criadores de Mato Grosso. O gado sulino
era conduzido para o Tringulo Mineiro e, aps a engorda, era vendido a
abatedouros paulistas e cariocas.
Os animais eram vendidos uma vez por ano; os compradores apareciam geralmente no perodo da seca, de maio a julho, e os fazendeiros
comeavam a reunir o gado com pelo menos trinta dias de antecedncia.
O isolamento e a distncia do sul de Mato Grosso dos centros mais dinmicos do Pas tornaram o pantaneiro um produtor dependente dos
tropeiros, que eram poucos e sabiam tirar proveitos dessas fragilidades.
Da que, no ato do negcio havia sempre certa insegurana por parte do
pantaneiro, temor de perder a oportunidade e ficar sem vender. (BARROS, 1998, p. 107).
Uma outra alternativa comercial para os colonos do sul de Mato
Grosso era a cidade porturia de Corumb, que recebia com freqncia
mercadorias vindas de Cuiab. No entanto, apesar da pequena distncia
entre o porto e os plos da nova colonizao e da facilidade em se fazer o
percurso via martima, em funo da rica rede hidrogrfica que levava ao
203

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

rio Paraguai, havia um fator limitante, ou seja, ali s era possvel a venda
de peles de animais e plumagem de aves, pois as fazendas localizadas nas
proximidades de Corumb abasteciam os plos colonizadores de carne
seca e carne verde.
Manoel Cavassa, que chegou a Corumb em 1857, logo que foi
franqueada a abertura do rio Paraguai, deixou registrado esse comrcio
que havia naquela cidade entre os ncleos populacionais mato-grossenses.
(...) vim para esta cidade [Corumb], que era ento um lugar ermo,
onde smente havia quatro ranchos de palha e nem uma s casa,
pelo que vi-me obrigado a fazer do navio armazem, vendendo ahi
as mercadorias, que tinha trazido, aos habitantes deste lugar e s
embarcaes que vinho da capital, de Vila Maria e de Miranda.
(CAVASSA, 1997, p. 20 e 21).

Os mascates vinham com suas embarcaes at o ponto comercial


de convergncia, que era Corumb, traziam aquelas mercadorias impossveis de serem produzidas no interior das fazendas e em seu retorno
levavam sobretudo couro e penas de aves, produtos da regio, para serem vendidos. Por ltimo, o contrabando que se realizava com o pas
vizinho, o Paraguai, seguiu forte at as primeiras dcadas do sculo XX.
As boiadas conduzidas pelos tropeiros entravam livremente em territrio
paraguaio, onde eram vendidas com relativa facilidade. Enfim, as nicas
alternativas que os pioneiros do sul de Mato Grosso tinham para vender
seus produtos eram atravs de comerciantes que vinham de Cuiab, pelos tropeiros de Minas Gerais, ou ento o contrabando com a Repblica
vizinha.
Para vencer as dificuldades de ligao da Provncia com todo o
Imprio, era imprescindvel a busca de uma via mais rpida que superasse
os problemas das grandes distncias, uma vez que os antigos caminhos
tornaram-se obsoletos. Desde o ano de 1828, Luis dAllincourt chamava
a ateno das autoridades brasileiras para a necessidade da abertura da navegao pelo rio Paraguai, a fim de possibilitar a comunicao do litoral
Atlntico com Mato Grosso, integrando assim a Provncia economia e
204

Paulo Marcos Esselin

soberania do Pas. Ou seja: atravs da navegao fluvial, assegurar-se-ia


estrategicamente o domnio de toda a fronteira oeste do Imprio, procurando acelerar seu processo de definitiva ocupao, permitir o seu desenvolvimento econmico e libert-la das limitaes impostas pelo caminho
terrestre. Resolver esse problema, no entanto, no dependia apenas do
desejo das autoridades nacionais, mas tambm de situaes extremamente complexas que envolviam as relaes diplomticas do Brasil com a
Repblica do Paraguai.
Tabela de Progresso do Rebanho BOVINO DA FAZENDA PBLICA DE MIRANDA DE 1820 A 1864
Anos
1820
1821
1822
1823
1824
1825
1826
1827
1828
1829
1830
1831
1832
1833
1833
1834
1835
1836
1837
1838
1839
1840

Rebanho

Produo anual

9.500
9.975
10.474
10.998
11.548
12.125
12.731
13.367
14.035
14.737
15.473
16.246
17.058
17.911
18.806
19.746
20.733
21.769
22.857
24.000
25.200
26.460

475
499
524
550
577
606
636
668
702
736
773
812
853
895
940
987
1.036
1.088
1.143
1.200
1.260
1.323

Taxa de crescimento
anual
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a

Produo
total
9.975
10.474
10.998
11.548
12.125
12.731
13.367
14.035
14.737
15.473
16.246
17.058
17.911
18.806
19.746
20.733
21.769
22.857
24.000
25.200
26.460
27.783

205

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

1841
1842
1843
1844
1845
1846
1847
1848
1849
1850
1851
1852
1853
1854
1855
1856
1857
1858
1859
1860
1861
1862
1863
1864

27.783
29.173
30.631
32.162
33.770
35.458
37.231
39.092
41.046
43.098
45.253
47.515
49.891
52.385
55.004
57.754
60.642
63.674
66.858
70.201
73.711
77.396
81.266
85.329

1.390
1.458
1.531
1.608
1.688
1.773
1.861
1.954
2.052
2.155
2.262
2.376
2.494
2.619
2.750
2.888
3.032
3.184
3.343
3.510
3.685
3.870
4.063
4.266

5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a

29.173
30.631
32.162
33.770
35.458
37.231
39.092
41.046
43.098
45.253
47.515
49.891
52.385
55.004
57.754
60.642
63.674
66.858
70.201
73.711
77.396
81.266
85.329
89.595

4.2. As tenses na fronteira e o conflito com o Paraguai


Desde 1811, no Governo de Jos Gaspar de Francia, as tenses entre o Brasil e o Paraguai foram reavivadas em meio s contradies sociais
e polticas no resolvidas, antes acentuadas pelos constantes ataques dos
ndios guaicurus aos colonos paraguaios na regio fronteiria.
Quando da emancipao das colnias espanholas, a elite de Buenos Aires, vitoriosa, defendia interesses econmicos semelhantes aos dos
espanhis: o de conservar o monoplio sobre o comrcio do rio da Prata
e formar uma confederao sob sua liderana com todas as Provncias
206

Paulo Marcos Esselin

que faziam parte do Vice-Reinado. Entretanto, desse territrio emergiram trs pases independentes: Paraguai, Argentina e Uruguai.
Na cidade de Assuno, em junho de 1811, organizou-se uma junta
governativa que se decidiu pela formao da Repblica do Paraguai e que
esse novo Estado seria governado sem a interveno portenha. (ALMEIDA, 1951). Os revolucionrios paraguaios se opunham hegemonia de
Buenos Aires e sua pretenso de formar um nico pas e conservar o
monoplio do comrcio sobre o rio da Prata. A junta governativa de Buenos Aires considerou o ato como um movimento rebelde e, para reprimi-lo, formou um exrcito que invadiu o Paraguai, mas foi completamente
derrotado. Em outubro do mesmo ano, os argentinos foram obrigados
a conviver com um pas independente em territrio que julgavam ser da
Federao Argentina.
As primeiras dcadas aps a independncia da Amrica Espanhola
foram marcadas por violentos debates polticos e econmicos. Emergiram desse processo grupos internos contraditrios: de um lado, aqueles
que defendiam um atrelamento ao Imprio Britnico e desejavam organizar as novas repblicas independentes como fornecedoras de matria-prima indstria inglesa e consumidoras dos seus manufaturados; de outro,
aqueles que advogavam para seus pases um desenvolvimento autnomo
com medidas que protegessem a produo artesanal platina frente a um
impacto da manufatura inglesa, lanando mo dos mais variados recursos
para atenderem seus propsitos No caso do Paraguai, aps a sua independncia, o ento Presidente
havia assegurado um sensvel distanciamento frente ao
imperialismo ingls. (...) alm de monopolizar a navegao dos
rios interiores, o que lhe permitiu controlar rigorosamente todo
o comrcio de importao e de exportao, o governo paraguaio
tomou iniciativas que viabilizaram o desenvolvimento acentuado
das foras produtivas. Uma delas foi a estatizao das terras,
donde o surgimento consequente das estncias de la patria, que
expandiram vigorosamente a pecuria. Tambm o arrendamento
das terras agriculturveis, a baixo preo, rapidamente assegurou a
207

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

auto suficincia do pas em arroz, milho, algodo, legumes. (...).


O Estado Paraguaio tambm incrementou o desenvolvimento da
indstria manufatureira, especialmente nos ramos textil, de papel,
de tintas, de plvora, etc.. A exportao de erva mate, de algodo, de
tabaco, de couros curtidos, de cigarros e mel de abelha propiciou ao
pas supervits sucessivos nos exerccios oramentrios, o que deu
margem implantao de estaleiros em Assuno e da siderrgia
de Ibicuy, atravs dos quais o Paraguai chegou a construir seus
prprios navios e fundir peas militares (...). (ALVES, 1985, p. 07).

O Paraguai, pequena repblica sul-americana, contrariava assim


todo um novo pensamento gestado em Londres, que pregava o livre comrcio, a eliminao das barreiras alfandegrias, a utilizao das vias navegveis para o comrcio, enfim, tudo aquilo que impedia a livre circulao da mercadoria.
A nica via de comunicao do Paraguai com o exterior era atravs
do rio Paraguai, estando assim obrigado a utilizar essa via quem desejasse entrar ou sair do Pas. Para evitar contatos indesejveis e controlar
todo comrcio importador e exportador, o Governo paraguaio mandou
colocar postos de guarda de 300 em 300 metros de distncia para assim
alcanar seus objetivos. (VERSEN, 1976, p. 51). A poltica isolacionista
e contrria aos interesses internacionais praticadas por Francia teve continuidade no governo de Carlos Antnio Lopes.
A julgar pelas circulares por ele enviadas [presidente Antnio Carlos
Lopes] s potncias vizinhas, dir-se-ia que era desejo seu entabolar
com elas boas relaes; entretanto, at o presente, s o Brasil tem
ministro reconhecido em Assuno. O pas continua fechado aos
estrangeiros, sendo necessria uma autorizao especial para nele
ingressar. (CASTELNAU, 1949, p. 272, T. 2).

Do exclusivismo caracterstico do sistema colonial, reclamavam


sobretudo o Brasil e a Inglaterra. No caso do primeiro, o fechamento
dos rios afetava os seus interesses, pois ameaava a integridade do seu
territrio, uma vez que o rio Paraguai era a via de comunicao mais
rpida com a Corte e com o resto do mundo, como tambm permitia o
208

Paulo Marcos Esselin

transporte de mercadorias mais pesadas e volumosas com o conseqente


barateamento do frete, e a possibilidade de estimular a economia local,
ento completamente estagnada, era uma alternativa para minorar a situao de empobrecimento por que passava a Provncia aps o ciclo do
ouro. Enquanto permanecia fechada a banda meridional, s era possvel a
vinculao com as demais Provncias do Imprio basicamente atravs do
comrcio de caravanas, com todas as dificuldades conhecidas: transpor
relevos acidentados, enfrentar a presena hostil de algum remanecente indgena, levar alimentos para atender os animais que compunham a tropa.
Eram vias inseguras, verdadeiras trilhas de salteadores.
Alm disso, o Imprio corria o srio risco de ver a Provncia de
Mato Grosso gravitar economicamente em torno dos crculos comerciais
paraguaios, com tendncia a se desligar da precria unidade monrquica
e se juntar nova Repblica.
Do outro lado, a Inglaterra, afetada seriamente em seus interesses
comerciais, exigia a abertura dos rios que compunham a Bacia do Prata.
Os comerciantes de Liverpool e Manchester pediam a interferncia do
Governo britnico no sentido de tomar medidas que limitassem as restries postas ao comrcio no Prata e assegurassem acesso ao rio Paraguai e
regies do interior. (CADY apud RAMOS, 6 ed., 1974).
Esses reclamos eram respaldados pelos centros industriais de York
Shire, Manchester, Leeds, Halifaxe e Bradford e subscritos por 1.500 banqueiros, comerciantes e industriais das cidades citadas. A opinio generalizada na Inglaterra era no sentido de que o comrcio livre com Buenos
Aires e Montevidu no teria tanta importncia se as comunicaes com
o interior sul-americano no fossem estabelecidas. En esta aprecicion
del gobierno y la industria britnicos, encontraremos ms adelante la clave de la trgica guerra del paraguay. (CADY apud RAMOS, 6 ed., 1974,
p. 184).
Aps a imediata emancipao das Provncias que compunham
o Vice-Reinado do Prata, essa regio foi considerada como o mais rico
mercado aberto aos ingleses, pois, alm do alto consumo de produtos
209

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

industrializados, suas matrias-primas exportadas favoreciam o desenvolvimento da indstria e do transporte, que era feito nos navios ingleses.
(DORFMAN apud RAMOS, 6 ed., 1974).
O Brasil, atravs de seu governo, manifestava constante preocupao com a integridade de seus territrios a oeste e mantinha conversaes
com o Governo paraguaio, sempre com o respaldo da Inglaterra, que
defendia seus objetivos comerciais.
O segundo Presidente do Paraguai, Antnio Carlos Lopes, no se
negava a abrir a navegao do rio homnimo para os navios brasileiros,
desde que fosse em troca de um tratado que desse fronteiras seguras
ao pas guarani. (POMER, 1979, p. 70). No entanto, alguns incidentes
envolvendo a Repblica do Paraguai e os Estados Unidos da Amrica do
Norte contribuiram para a abertura dos rios.
O agente da Companhia Paraguaia de Navegao Edward A. Hopkins, cnsul dos Estados Unidos no Paraguai, com aporte de capitais
privados e do Governo americano, iniciou a explorao da navegao a
vapor, do acar, do tabaco, do algodo e outras atividades. (CARDOSO,
1967). No entanto, alguns incidentes de pequenas propores e a soberba de Hopkins, ao tratar do assunto com o Presidente Antnio Carlos
Lopes, fizeram com que o Governo paraguaio cancelasse a autorizao
que lhe permitia atuar como cnsul e encerrou seus negcios no Pas.
(CARDOSO, 1967).
No ano seguinte, o vapor norte-americano Water Witch sulcava
as guas dos rios Paraguai e Paran enquanto sua tripulao promovia
estudos cientficos na regio, quando entrou em guas de navegao proibida, sendo por isso bombardeado, o que provocou a morte de um tripulante e o ferimento de vrios outros. (CARDOSO, 1967).
Esses incidentes trouxeram conseqncias imediatas, com o rompimento das relaes entre Paraguai e Estados Unidos da Amrica. O
Congresso norte-americano autorizou o Presidente James Buchanan a
adotar medidas e o uso da fora para exigir daquele Pas uma justa satisfao. Para garantir o sucesso da medida, foi enviada uma poderosa frota
naval que ficou ancorada na foz do rio do Prata em 1858, produzindo
210

Paulo Marcos Esselin

um alarma geral em todos os pases da Amrica do Sul. Com a mediao


do Presidente Urquiza, da Argentina, e com o atendimento das exigncias dos americanos, o conflito foi resolvido. Pelo incidente, os Estados
Unidos da Amrica receberam (...) una carta de explicaciones y excusas
por el incidente del Water Witch, la familia del timonel muerto seria
indemnizada con 10.000 dlares; los buques mercantes norteamericanos
podram navegar libremente los ros Paran y Paraguay; (...). (VASCONSELOS, 7 ed., 1978, p. 153).
Alm deste problema, o Paraguai enfrentava outros, desde a dcada anterior, com o Governo argentino, que se empenhava na unio das
provncias que no passado formaram o Vice-Reinado do Prata. (ALMEIDA, 1951). A situao da Repblica do Paraguai era extremamente difcil,
j que o Brasil havia assinado um protocolo secreto com a Argentina
estabelecendo que, se aquele Pas no chegasse a um acordo amigvel, o
Imprio lanaria mo de medidas coercitivas e, se necessrio, da guerra.
(POMER, 1979).
O estabelecimento de um cenrio de crise na regio platina fez com
que o Governo paraguaio revisse a sua posio e adotasse medidas que
pudessem resguardar sua independncia nacional, fortemente ameaada.
O que mais importava naquele instante era uma aliana com o Imprio;
tanto que em 1856 foi assinado um acordo de comrcio entre o Brasil
e a Repblica do Paraguai que liberou a navegao do rio homnimo at
o porto de Corumb, ligando ento Mato Grosso ao Rio de Janeiro e a
todas as demais provncias do Imprio cuja navegao fosse possvel.
A assinatura desse Tratado de 1856, promoveu mudanas substanciais na regio meridional de Mato Grosso, que, pelo franqueamento da
navegao, ligou-se ao comrcio mundial via o esturio do rio da Prata.
A principal beneficiria do Tratato foi a cidade de Corumb, que teve
possibilitada a abertura do seu porto a navios nacionais e estrangeiros.
J no ano de 1858, foi criada a Companhia Nacional de Navegao
a Vapor, que manteve, a partir de ento, uma viagem mensal entre Corumb e Montevidu. (MOUTINHO, 1869).
211

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Corumb (...) pode dizer-se o depsito central das manufacturas


que se distribuem pelos diversos pontos da provncia: Miranda,
Villa Maria, Cuyab, Albuquerque, etc. Estas localidades e muitas
outras da provncia de Matto Grosso, enviam por sua vez para Corumb os seus produtos de exportao, tornando-a assim o emporio commercial dessa abenoada regio. (BOSSI, 1863, p. 22-23).

A abertura da navegao pelos rios Paraguai e Paran deu a Corumb a condio de principal entreposto comercial da Provncia e porta
de acesso s mercadorias europias da Amrica do Sul e Europa. A principio, no havia muito que levar da regio: apenas couro do gado vacum
e de animais silvestres, sebo, charque e penas de aves.
A vida econmica da Provncia passou a se desenvolver; ao longo
das regies ribeirinhas havia um crescente movimento de mercadorias e
pessoas, quebrando assim uma rotina de profundo paradeiro e abandono.
O mesmo decreto que habilitou o porto de Corumb ao comrcio criou
uma mesa de rendas. Em 1861, instalou-se a alfndega, e em 1862, o povoado foi elevado categoria de vila. (FONSECA, 1986, V. 1).
Depos de permanecer isolado pela conjuntura colonial portuguesa por mais de 150 anos, o Pantanal de Mato Grosso foi favorecido por
fatores que provocaram a dinmica do seu crescimento. Da abertura do
porto ao incio da guerra com o Paraguai, passaram-se somente oito anos,
perodo esse marcado pelo crescente crescimento da regio. O pantanal
mato-grossense passou ento a ser mais intensamente ocupado com a
abertura de fazendas de gado cujo o ncleo inicial surgiu nos arredores
de Cuiab. (CORRA, 1985, p. 30).
A populao, que antes da abertura do porto era de 100 habitantes,
saltou para 1315 em 1861, dos quais 1187 eram brasileiros, 29 italianos, 26
franceses, 2 alemes, 6 espanhis, 6 argentinos, 9 orientais, 3 bolivianos,
3 americanos e 44 escravos. (PORTO CARRERO apud FONSECA,
1986, V. 1).
No ano de 1864, a populao atingia 1500 habitantes, na maior
parte brasileiros, no excedendo o numero de estrangeiros a cem.
212

Paulo Marcos Esselin

(MOUTINHO, 1869, p. 245). A populao cresceu devido aos evidentes


progressos do comrcio: Cada dia augmenta o numero de edifcios de
modesta construco que servem de abrigo provisrio aos habitantes que
se preparam para entrar em uma vida de atividade e progressos. (BOSSI,
1863, p. 22).
Geralmente de origem europia, muitos imigrantes estrangeiros,
com possibilidade de ampliar seus capitais, vieram para Corumb na condio de mascates, acostumados ao comrcio fluvial na foz do Prata pelos
rios Uruguai e Paraguai e entre os portos de Buenos Aires, Montevidu e
Assuno. Alm de usufruir do grande comrcio que se estabeleceu com
as principais cidades do Prata, utilizavam pequenas embarcaes com as
quais singravam cada rio da plancie pantaneira, levando os mais variados produtos aos fazendeiros e seus pees. Isso em uma regio extremamente carente de meios para o seu auto-abastecimento. Retornavam com
suas embarcaes prenhes de couros do bovino, de animais silvestres e
outros produtos da regio.
O imigrante portugus Manuel Cavassa, que se estabeleceu em
Corumb em fins de 1857 e exerceu a atividade de mascate fluvial com
pequeno capital inicial, conseguindo acumular, em curto perodo, uma
considervel fortuna. verdade que, aqui tendo-me domiciliado, ganhei
muito dinheiro e estava satisfeitssimo, pois pelos balanos de 1864 as minhas casas representavo um capital de mil, quatrocentos e tantos contos
de reis. (CAVASSA, 1997, p. 21).
A abertura da navegao permitiu a alguns proprietrios rurais,
sediados nas proximidades de Corumb, ampliar os seus negcios comercializando a carne verde na cidade e exportando o gado em p via porto.
Foi o caso do baro de Vila Maria, que (...) pode ele ento dar sada ao
gado e expandir ainda mais, fundando a Fazenda do Barranco Branco
(Porto Murtinho) e Fazendas Firme e Palmeiras, entre os rios Taquari e
Negro. (PROENA, 3 ed., 1997, p. 82).
Antes do incio da Guerra do Paraguai, j era possvel identificar
grandes proprietrios na posse de imensos rebanhos bovinos:
213

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

(...) Joo Faustino do Prado, da fazenda Rodrigo com 10.000


cabeas de gado; Joo da Costa Lima (...) da fazenda Chapema,
com 10.000 cabeas de gado; Joaquim de Souza Moreira, na
fazenda Piqui, Joo Alves de Arruda, na fazenda Rebojo; Jos
Alves de Arruda na fazenda Jatob; Joaquim Alves Correia, na
fazenda do Taboco; Simplcio Xavier Ribeiro, na fazenda Cutape;
Leopoldino Lino de Faria, na fazenda Santa Voia; Joo Jos Pereira
Filho na fazenda Monjolinho e Henrique Ferreira Mascarenhas, na
fazenda Correntes, emigrado da Baa por obra da Sabinada, em que
se envolver. (SODR, 1941, p. 81).

Alm disso, uma expedio de engenharia militar, que atravessou


o sul de Mato Grosso em 1858, encontrou diversas fazendas do rio Paran
ao Miranda, algumas das quais alojavam grande rebanho. Aparentemente, uma, chamada Santa Gertrudes, prximo da fronteira do Paraguai,
tinha 10.000 cabeas de gado e 200 cavalos, enquanto duas outras, 2.000
e 5.000 cabeas cada. (SOUZA apud WILCOX, 2000).
Embora os relatrios produzidos na regio raramente mencionem
o nmero do rebanho eqino e bovino, Leverger estimou que em 1863 o
rebanho mato-grossense era de 500.000 cabeas. Considerando uma taxa
de desfrute de 5%, era possvel abater 25.000; destas, apenas de 10.000 a
17.000 eram vendidas a tropeiros mineiros, o restante iam para o consumo local, o que evidencia um muito baixo aproveitamento das possibilidades produtivas da regio.
O excedente bovino continuou a no ser totalmente vendido, fato
que s ocorreu durante a 1 Guerra Mundial, quando as exportaes de
carne cresceram enormemente graas aos frigorficos estrangeiros estabelecidos em So Paulo. (CORRA FILHO, 1955).
Embora o tratado de comrcio e navegao estivesse em pleno vigor, com o porto de Corumb recebendo no s navios brasileiros, mas
de todas as demais bandeiras, a guerra entre o Imprio e a Repblica
parecia ser uma questo de tempo.
Desde meados do sculo XIX, o Governo imperial, que at ento
pouca ateno havia dado ao sul da Provncia de Mato Grosso, passou a
tomar iniciativas visando assegurar o domnio das regies em litgio com
214

Paulo Marcos Esselin

o Paraguai, instalando novas colnias militares ao longo da fronteira, enquanto promovia conversaes com o governo daquela Repblica para a
abertura da navegao do rio homnimo. Encorajava, igualmente,o estabelecimento de colonos para manter permanente controle sabre a rea,
desenvolvendo atividades que pudessem, mais tarde, justificar a presena
brasileira.
Em maio de 1850, uma fora de artilharia e infantaria imperial,
a mando do Presidente da Provncia, Costa Pimentel, desembarcou na
encosta do morro Po de Acar, s margens do rio Paraguai, prximo
de Coimbra (forte construdo pela monarquia portuguesa em 1775 para
assegurar a exclusividade da navegao no mdio Paraguai e conter as
incures dos nativos) com a inteno de levantar ali um navio forte. O
governo paraguaio reagiu imediatamente, enviando uma frota com tropas; eram mais de 600 soldados, que cercaram a construo e expulsaram
os militares imperiais.
A segunda dessas colnias militares foi a de Nioaque, agora com
sucesso, instalada em 1850 margem do rio Urumbeva e que contava
com 226 praas e respectivos oficiais. (GUIMARES, 1999). Em 1855,
foi fundado, margem do rio Brilhante, outro pequeno forte, o de So
Jos de Monte Alegre. (ALMEIDA, 1951). Em 1860, foi construda uma
nova colnia militar, que tomou o nome de Miranda, localizada junto
cabeceira do rio homnimo, margem do seu afluente do lado direito, o
crrego Atoleiro. (GUIMARES, 1999). Por ltimo, foi criada a Colnia
Militar de Dourados, em 1861, margem direita do primeiro e maior
dos trs braos que formam o rio Dourados. (ALMEIDA, 1951). Todos
[os fortes] visavam, defender e proteger os moradores estabelecidos nessa
parte do territrio do Imprio, at as fronteiras do Iguatemi e do Apa,
contra as incurses dos selvagens, e a chamar stes por meio de catequese
civilizao. (CORRA FILHO, 1969, p. 536).
Os fortes no foram construdos com o objetivo de proteger e defender os moradores dos ataques dos selvagens, pois j no havia naes
indgenas insubmissas que pudessem colocar em risco qualquer iniciativa
215

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

de fixao. O desejo do Governo Imperial era impedir que, no futuro o


Governo paraguaio viesse fazer qualquer exigncia sobre aquelas reas e
criar condies para a instalao de alguns pioneiros nos territrios em
litgio para, posteriormente, garantir a possibilidade de soberania baseada
no princpio do uti possidetis.
(...) o Brasil nunca mudou suas exigncias nos tratados lindeiros,
e constantemente exigiu as fronteiras, ou mesmo menos do que
essas, pelas quais havia combatido desde a Independncia, limites
que, embora resultassem principalmente de convenes antigas,
reclamava exclusivamente, em nome de sua norma internacional, o
utipossidetis. (CALGERAS, 1945, 288).

O prprio Decreto de criao da Colnia Militar de Dourados, no


artigo 8, dava ao Presidente da Provncia de Mato Grosso e, com a sua
concordncia, o comandante da Colnia, autorizados a fazer concesses
gratuitas a colonos brasileiros, at uma lgua quadrada cada uma e o total
das concesses a 200 lguas, com a condio de serem habitadas imediatamente. (ALMEIDA, 1951, p. 314).
A Colnia Militar de Dourados, a mais importante das novas guarnies, foi construda no planalto arentico basalto Campo Grande-Maracaju ou no nominado Campos de Vacaria, rea disputada pelo Imprio
e pela Repblica do Paraguai, que engloba as bacias dos rios Brilhante,
Vacaria e Dourados e que hoje abriga os municpios de Rio Brilhante,
Sidrolndia, Maracaju, Dourados, Laguna Caarap, Caarap, Navira e
Ponta Por. Essa regio tem uma peculiaridade: estende - se Paraguai
adentro numa faixa de 100 km com a mesma uniformidade ambiental,
o que leva a imaginar que so regies irms. A prpria populao nativa
guarani, que ali habitava, era a mesma que ocupava o interior do norte
do Paraguai; portanto, tanto as condies ambientais como as humanas
eram as mesmas; havia uma continuidade paisagstica como tambm uma
grande disponibilidade nativa da erva-mate.
At meados do sculo XIX, o Estado brasileiro no tinha qualquer controle sobre essas reas, as quais, alis, eram freqentadas todos
216

Paulo Marcos Esselin

os anos por levas de paraguaios que chegavam para extrair a erva nativa
e prepar-la, enviando a produo para Assuno. Eles devassavam todo
esse territrio na crena de que as terras pertencessem ao solo ptrio.
Em meados so sculo XIX, o alferes Joo Crisstomo, do Exrcito Brasileiro, deixou registrado que a referida rea era um campo onde
se fazia a extrao da erva-mate para o consumo local.
Teriam os povoadores aprendido com os paraguaios tal mister
porque, vindos de outras provncias, no conheciam a planta, nem
o seu uso. Os paraguaios adentravam essa e outras regies para
extrair a erva mate, sem contudo, se fixarem. Vinham e voltavam..
(CAMPESTRINI e GUIMARES, 1995, p. 50).

Seguramente, muitos dos rebanhos que foram encontrados pelos


pioneiros brasileiros nos Campos de Vacaria eram ramanescentes dos arranchamentos paraguaios instalados para a colheita da erva.
J escrevi alhures e repito o que meu pai contava com entusiasmo;
Antnio Gonalves Barbosa, subindo o rio que navegava, chegou
aos campos do Er procura de local adequado para seu rocio
e ai encantou cheio de deslumbramento ao avistar uma ponta
de gado, s vacas, em verdadeiro dem de verdura. (BARBOSA,
1963, p. 13).

Desde o incio se estabeleceu uma pecuria incipiente nos fortes,


em parte apoiada no gado introduzido pelos paraguaios. Em 1854, uma
expedio que se dirigia de Cuiab ao Paran encontrou em Brilhante
uma guarnio composta de 16 soldados, alguns cavalos e 22 touros de
transporte e plantaes de mandioca, no somente para a prpria subsistncia mas para alimentar expedies que entravam na regio. De acordo
com seus comandantes, em 1862, Dourados tinha aproximadamente 60
soldados e cinco famlias, enquanto Miranda tinha 40 soldados e 15 famlias com 56 cabeas de gado, onze cavalos e algum cultivo de milho e
cana-de-acar para sua subsistncia. (MENDONA apud WILCOX,
2000).
217

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Enquanto o Governo brasileiro tomava iniciativas no sentido de


assegurar a propriedade das terras sulinas da provncia de Mato Grosso, construindo fortes, incentivando a abertura de fazendas, o criatrio,
o cultivo, aes que nada mais eram do que a manifestao da poltica lindeira dos gabinetes do Rio de Janeiro e a aplicao de um nico
princpio o uti possidetis, a Repblica vizinha no fazia muito diferente. O
medo da expanso brasileira no que era considerado territrio paraguaio,
juntamente com os ataques dos guaicurus desde fins do sculo XVIII,
levou ao estabelecimento de pequenos fortes ao longo do rio Apa com
estmulo permanente a colonos para se estabelecerem e manter permanente controle sobre a regio. J em princpios da dcada de sessenta do
sculo XIX, a fortaleza de Humait foi concluda. Aquela posio no rio
Paraguai fora artilhada, inicialmente, rpida e precariamente, quando da
expedio naval imperial de 1855. o Governo comprou da Inglaterra centenas de canhes e grande quantidade de munies, sendo que a esquadra
contava com dezessete pequenos vapores. (VERSEN, 1976). Aumentou,
igualmente, os seus efetivos militares, evidenciando, assim, a ameaa de
guerra com o declarar Imprio.
Em princpio de 1862, o Presidente Solano Lopes enviou a Mato
Grosso o oficial do seu Exrcito, Isidoro Resquim, disfarado de comprador de gado e terras para fazer um levantamento do rebanho eqino
e bovino das propriedades que concentravam maior nmero de cabeas,
dos armamentos que dispunham as unidades fronteirias, enfim, fazer o
mapeamento da regio. (GUIMARES, 1999).
Outro espio foi o tenente Andrs Hererro. Em 1863, ele visitou
Mato Grosso com o pretexto de que desejava estreitar relaes comerciais entre o Brasil e o Paraguai e assim anotou tudo que pudesse ser de
interesse militar. Passou por Coimbra, Albuquerque e o estabelecimento
naval de Dourados, margem direita do rio Paraguai; subiu o rio So
Loureno e o Cuiab e s no foi at a capital porque era estao da seca e
as guas baixas no permitiam o trfego de navios de alto calado. Como
os paraguaios pretendiam invadir Mato Grosso tambm atravs do rio,
218

Paulo Marcos Esselin

aproveitaram-se do trabalho de seus espies para estudarem previamente


as singularidades mesolgica e patomogrfica das reas-chave da regio
que iriam ocupar. (SILVA, 1999).
A guerra era iminente e foi deflagrada em 1864
Em 1864, as tropas imperiais invadiram a Repblica do Uruguai,
sob pretexto de proteger os proprietrios rio grandenses estabelecidos
nos departamentos setentrionais daquela nao, como se vivessem em
terras do Imprio. Apoiando a sublevao do colorado Venncio Flores,
pr- imprio e pr Buenos Aires, o governo procurava reestabelecer a
hegemonia que gozara sobre o Uruguai, em razo dos tratados de 1851
1852, apenas expirados. (PENA,1975). A invaso do Uruguai e a deposio do governo autonomista pelas foras de Venancio Flores e do
Imprio foram orquestradas por Bartolom Mitre, na cabea do governo
unitarista argentino, desde a vitria de 17 de setembro de 1861, no combate do arroio Pavn, sobre o federalismo argentino.
Em associao com o Imprio, Barlolom Mitre procurava pr
fim rapidamente aos dois aliados do federalismo provincial argentino
o Partido Blanco no Uruguai, e o governo autonomista, no Paraguai.
O governo paraguaio alertara o Imprio de que a invaso do Uruguai
seria considerada casus belli. Isso porque o governo scubo ao Imprio em Montevidu cerraria definitivamente a sada ao mar ao Paraguai,
pois Buenos Aires encontrava se nas mos do unitarismo argentino,
que voltara a sonhar com a prpria conquista da provncia desgarrada.
Abandonar o aliado oriental significava enfrentar se mais tarde com a
Argentina e o Imprio, sem qualquer aliado.
As hostilidades entre a Repblica do Paraguai e o Imprio do Brasil foram anunciadas em novembro de 1864, quando o Presidente Solano
Lopes deu ordens para capturar o vapor brasileiro Marqus de Olinda,
com a conseqente priso do Presidente nomeado para Mato Grosso, o
coronel Carneiro de Campos, que nele seguia como passageiro. (CUNHA
MATOS apud VERSEN, 1976). No mesmo ano, o Paraguai lanou um
ataque sobre Mato Grosso com duas poderosas colunas, uma fluvial e
outra terrestre. (RODRIGUES, 1993).
219

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

A coluna fluvial, comandada pelo coronel Vicente Barrios, era


constituda de quatro batalhes de infantaria (6, 7, 10 e 13), com 3.200
homens, e de doze peas raiadas e foguetes Congreve. Deixou Assuno
em 24 de dezembro de 1864, e, ao passar em Conceio, mais mil homens
de cavalaria reforaram a esquadra. (FRAGOSSO, 1934, V. 1). Os navios
que formavam a expedio eram os vapores Taquary, Paraguay, Igurey,
Rio Branco e Ipor, escunas Independncia, Aquidaban e Patacho Rosrio e lanches Humait e Cerro Leon. Mais tarde a ela se juntaram ainda
o Salto de Guayra, o Rio Apa e o Marqus de Olinda. (FRAGOSSO,
1934, V. 1).
Dois dias aps deixar Assuno, a esquadra paraguaia atracou a
poucos quilmetros do Forte Coimbra, e, aps o desembarque, os soldados a sitiaram e tomaram posio para o incio do bombardeiro. O Forte
constitua-se de 115 soldados, entre praas e oficiais, alm de 10 ndios
cadiuos, quatro vigias da Alfandega, trs ou quatro paisanos de Albuquerque e 17 presos. Ao todo 150 homens. (BARO DO RIO BRANCO apud FRAGOSSO, 1934, p. 225, V. 1).
Por ordem de Porto Carrero, que na ocasio comandava a fortaleza, foi enviada a lancha Jauru para Corumb com o objetivo de dar a
notcia da iminncia do ataque paraguaio.
No dia 27 de dezembro, o coronel Vicente Barrios enviou uma
intimao para rendio do forte, por intermdio de um oficial de suas
tropas. A notificao foi rejeitada, o que levou a que a tropa paraguaia iniciasse os primeiros bombardeios com auxlio dos vapores e das baterias.
A infantaria guarani, j estava em terra e avanou, aproveitando se da
alta vegetao que circundava o forte sendo recebida por forte fogo, que
reduziu a intensidade do assalto. A luta se estendeu at as primeiras horas
da noite, quando foram suspensos os ataques sem que lograssem xitos
os atacantes.
Na manh seguinte, os paraguaios voltaram ofensiva com a mesma intensidade, embora sem sucesso; no entanto, tornou-se impossvel
aos soldados imperiais resistir ao assdio, devido ao esgotamento da munio. Porto Carrero decidiu convocar uma reunio com todos os oficiais,
220

Paulo Marcos Esselin

que decidiram pela retirada de Coimbra. Na madrugada do dia 29 de


dezembro, a bordo do vapor Anhamba, toda a guarnio partiu rumo a
Corumb.
Ao amanhecer do dia 29 os paraguaios que se encontravam
preparados para desfechar nova ofensiva, tiveram a surpresa de
ver a fortaleza deserta e silenciosa. Pensando que se tratava de ardil
dos brasileiros ainda bombardearam Coimbra com sua artilharia,
por algum tempo. (PVOAS, 1995, p. 266, V. 1).

Em pesquisa recente, Doratioto contesta a verso de que a munio se esgotara. Segundo ele, (...) na lista do armamento capturado pelos
paraguaios em [Coimbra] constam 83.400 cartuchos de fuzil e 120 quilogramas de plvora fina. (DORATIOTO, 2002, p. 101).
Com a queda de Coimbra, o exrcito paraguaio continuou o seu
avano. Por terra, partiu uma coluna para ocupar Albuquerque e a fazenda Piraputangas, do Baro de Vila Maria, que reunia milhares de cabeas
de gado bovino, e outra pelo rio Paraguai, rumo a Corumb. Tanto a vila
de Albuquerque como a fazenda Piraputangas j haviam sido abandonadas: j o Baro de Vila Maria, partira, com a Baronesa, a cavalo, para a
Corte, em viagem de sacrifcio, a fim de transmitir ao Imperador a notcia
da invaso. (SOUZA, sd., p. 53 e 54).
Quando os retirantes de Coimbra chegaram a Corumb encontraram a vila tomada por um incontido pnico, devido s notcias que
chegaram pelo Jauru. O coronel Carlos Augusto de Oliveira, responsvel
pela organizao da defesa, resolveu pela evacuao da localidade, em
ato inopino de infamia e covardia. (SOUZA, sd. p. 55).
A lancha Jauru, comandada pelo tenente Balduno, seguiu para
Cuiab no dia 2 de janeiro transportando o cofre da Alfndega e algumas
famlias. Horas depois, o Anhamba partiu sob o comando de Jos Israel
Alves Guimares. A notcia da invaso e a fuga das autoridades responsveis pela segurana da populao fizeram com que o pnico tomasse
conta de todos aqueles que ali viviam, dando incio a uma desenfreada
corrida em busca de lugares nos vapores disponveis. Aqueles que no
221

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

conseguiam lugar a bordo aventuravam-se a fugir em barco e canoas a


vela ou a remo ou ento buscavam refgio nas matas.
A trs de janeiro de 1865, as foras do Exrcito paraguaio tomaram
Corumb. Os seus vapores conseguiram deter muitos daqueles que tentaram fugir sem contar com recursos para tal empreitada.
s 8 horas da noite mais ou menos aqu chegaram a canhonera
Taquary [Corumb] e parte das foras inimigas, que veio por terra,
vindo j nomeadas as auctoridades, que aqui vinham funccionar.
.../ Parecia aquella uma noite de So Joo: vinham mortos de fome
os invasores, pelo que tudo que encontravo, porcos, cabras etc., ia
para o fogo, e comeou o saque das casas de commercio que no
tinha moradores. (CAVASSA, 1997, p. 23).

A segunda coluna paraguaia, a expedio terrestre ou Diviso do


Norte, partiu de Conceio em 29 de dezembro de 1864 sob o comando
do coronel de cavalaria Isidoro Resquim e tendo como subchefe o major
Martim Urbieta, com um contingente de 2.500 homens de cavalaria e um
batalho de infantaria com outros 1.000. (FRAGOSSO, 1934, V. 1).
A Diviso do Norte, como era chamada, ganhou o territrio mato-grossense atravessando o Apa, em Bela Vista. Enquanto o grosso da
tropa se dirigiu para a Colnia de Miranda, Nioac e Vila Miranda, outro
grupo, com 200 cavaleiros e comandados por Urbieta, atacou a Colnia
de Dourados, onde, embora tenha encontrado pequena resistncia, venceu facilmente uma corporao que reunia 15 homens sob o comando do
tenente Antnio Joo.
No dia anterior ao ataque, a populao civil havia abandonado a
praa, embrenhando-se na mataria em busca de proteo.
Como Urbieta, Resquim tambm no encontrou dificuldades para
submeter os vilarejos do sudoeste de Mato Grosso. Em 7 de janeiro de
1865, comunicou ao comando superior de Assuno que na Colnia militar de Miranda no havia nenhum soldado, mas apenas duas senhoras
que se recusaram a acompanhar a populao fugitiva. (GUIMARES,
1992, V. 1). Ao receberem notcias da proximidade das tropas invasoras,
222

Paulo Marcos Esselin

famlias inteiras que residiam em Miranda marcharam em direo aos


morros das margens do rio Aquidauana, carregando o que podiam, a p
ou nas poucas carretas ali existentes, e avanando pelos pantanais com
enormes sacrifcios at acampar, em carter provisrio, nos altos da morraria. (NANTES, 1993).
Em Nioac, houve rpido entrevero com as tropas brasileiras comandadas pelo coronel Jos Dias que, aps negar rendio, abriu fogo
contra os inimigos. No entanto, o avano das tropas paraguaias e sua
superioridade numrica fizeram com que o comandante brasileiro decidisse pela fuga.
Assim, com o avano das tropas inimigas, Nioac e a Vila de Miranda foram evacuadas, tendo a populao procurado refgio transpondo a
serra de Maracaju.
As tropas de Lopes obtiveram pleno xito na invaso de Mato
Grosso: ocuparam com a primeira coluna, s margens do rio Paraguai,
o Forte de Coimbra, Albuquerque, Corumb e, com a segunda, a regio
entre o rio Apa, a serra de Maracaju e o Taquari, as colnias de Miranda e
Dourados e as Vilas de Nioac e Miranda, estendendo-se ainda at Coxim.
Ao se referir a invaso, Pandi Calgeras afirmou, que Lopes cometeu grande equvoco ao invadir Mato Grosso, alm da diviso de suas
foras essa Provncia no tinha nenhum objetivo militar pois a conquista
do territrio constitua mero alvo geogrfico. (CALGERAS, 1945).
Por outro lado, o general Tasso Fragosso afirmou que Lopez desfechou ataque Provncia de Mato Grosso por que;
(...) deseja apossar-se dos territrios em litgio, isto , porque uma
de suas principais fontes de inspirao guerreira precisamente
a que ele empresta com absoluta injustia aos seus adversrios.
Essa conquista territorial fascina-o de tal maneira que no se
preocupa com distrahir nela uma parte de suas fras, a qual
seria evidentemente mais til na operao fundamental que
iria empreender depois no rumo oposto, a saber, a invaso de
Corrientes e do Rio Grande do Sul. Os seus propsitos ficaram
registrados de modo indelvel nos seus primeiros movimentos
estratgicos. (FRAGOSSO, 1934, p. 219, V. 1).
223

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

J o general Flamarion Barreto Lima destacou que, alm da ocupao dos territrios contestados, a invaso paraguaia procurava neutralizar as foras brasileiras existentes nesta regio, assegurando a liberdade
de ao para o desencadeamento da ofensiva do sul. (LIMA, 5 edio,
1988, p. 29).
O memorialista, Joaquim Francisco de Mattos, afirmou que:
A estratgia de Lopez condenara previamente seu empreendimento
catstrofe: lanando suas foras sobre Mato Grosso sob o
comando de Barrios e Resquim que lhe deram sensao de
facilmente conquistar um vasto territrio, ocupou apenas o
deserto. (MATTOS, 1989, p. 122).

A possibilidade da invaso do territrio sul-mato-grossense para


neutralizar os efetivos ali estacionados no parecia fazer parte da estratgia militar do Exrcito paraguaio. Segundo o baro do Rio Branco, em
agosto de 1864, entre o Estado-Maior, engenheiros, corpo de sade, eclesisticos, infantaria, cavalaria e artilharia, havia 875 militares em toda a
Provncia. Destes, apenas 165 faziam parte do Distrito do baixo Paraguai
e da Vila de Miranda. (RIO BRANCO apud FRAGOSSO, 1934, p. 221222, V. 1). Portanto, a regio no tinha a menor expresso militar; estava
desarmada e indefesa, embora mantivesse em seus armazns uma grande
quantidade de armas e munies enviadas pelo Governo do Imprio no
ano de 1862. Em Maldita Guerra, Francisco Doratioto prope:
A negligncia militar dos gabinetes que governaram o Brasil fez com
que enviassem para Mato Grosso, desde 1862, grande quantidade
de armas, munies e outros artigos blicos, sem destinar a
tropa necessria para utiliz-las. Para defender a provncia eram
insuficientes aqueles 875 soldados, dispersos por cinco distritos
militares, e os seis pequenos vapores da Marinha imperial, dos
quais apenas um dispunha de dois canhes. (DORATIOTO, 2002,
p. 98-99).

O armazenamento de abundante e moderno armamento no sul do


Mato Grosso no constitua ato insensato do governo imperial, do ponto
224

Paulo Marcos Esselin

de vista militar. Ele teria permitido organizar rapidamente uma poderosa


segunda frente de combate, a sim dividindo as foras paraguaias, se a defesa da provncia no tivesse rudo pela falta de deciso de seus oficiais e
defensores. Realidade que pode justificar a macia interveno preventiva
das tropas paraguaias, que aps a conquista se retiraram em sua maior
parte da regio. O armamento mantido em Mato Grosso foi capturado
pelos paraguaios, fortalecendo o antiquado poder blico dos seus exrcitos. Na lista do armamento capturado pelos paraguaios constam: (...)
83.400 cartuchos de fuzil e 120 quilogramas de plvora fina. Na fortaleza
de Humait, instalou-se a bateria de Coimbra, assim denominada pelo
fato de os dez canhes que a compunham terem sido capturados no forte
brasileiro. (DORATIOTO, 2002, p. 101).
O ataque pelas tropas paraguaias justificava-se pela conquista de
um espao territorial em litgio, com a possibilidade de no transcorrer do
conflito as autoridades brasileiras solucionarem o problema fronteirio a
favor do Paraguai, mas todos os autores anteriormente citados no consideraram o fator principal que era a atrao que exerceu o rebanho bovino
e eqino, ento apascentado nas extensas pastagens sul-mato-grossenses.
O sudoeste de Mato Grosso era uma regio semi deserta, pouco
conhecida e separada dos grandes centros do Brasil por milhares de quilmetros, mas era extremamente cobiada pelos estrategistas paraguaios,
sobretudo em virtude do rebanho eqino e bovino que abrigava em seus
extensos campos de pastagem natural. poca, a cavalaria constitua-se
em um dos elementos mais importantes e necessrios guerra. Alis,
essa era uma preocupao que rondava os crculos dirigentes de Cuiab.
Gabriel Getulio de Monteiro e Mendona em correspondncia ao Baro
de Lajes afirmou (...) ser a cavalaria a tropa mais apropriada s excurses
no territrio vizinho (...) e que, em caso de guerra, a primeira providncia
a tomar deveria ser a apreenso da cavalaria inimiga, recomendava ainda,
que se fizesse forte a guarnio na fronteira do Paraguai a fim de proteger
nossa boiada e cavalhada (...). (MENDONA apud PROENA, 1958,
p. 94).
225

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Quanto ao gado bovino, era o principal recurso de boca para os


exrcitos em constantes deslocamentos: alm de empregado tambm no
transporte, era com eles que se transportava a artilharia. O alimento fundamental das tropas paraguaias e aliancistas durante toda a guerra foi
precisamente a carne vacum assada.
Os paraguaios tinham informaes seguras de que o sul do velho
Mato Grosso abrigava gado suficiente para manter os seus exrcitos em
guerra e ainda atender s necessidades da populao assuncenha.
To logo os soldados invasores ocuparam a regio, foram destacadas tropas para reunir gado, cavalo e mulas. Foi construdo um curral
para a retirada dos animais, justamente nas fazendas Firme e Piraputangas, do Baro de Vila Maria:
Curral do Soldado na fazenda Firme as margens do rio Negro,
O gado era transportado pela canhoneira Yapor, e isso s foi
possvel devido a enchente que permitia a embarcao alcanar o
porto da Manga para dentro do campo, numa distncia de mais de
duas lguas, at o capo que, depois dessa passagem, ficou batisado
pelo nome de Yapor. (BARROS, 1922, p. 16).

H controvrsias quanto ao nmero de animais que foram retirados do sul de Mato Grosso para serem enviados a Assuno e para alimentar as tropas estacionadas na provncia. Das propriedades do Baro
de Vila Maria, teriam sido retiradas 20.000 cabeas, todas conduzidas
para o Paraguai. (BOSSI, 1863). Segundo Thompson, s o Baro de Vila
Maria, o homem ento mais rico da provncia, possua cerca de 80.000
cabeas de gado em suas propriedades marginais do rio Paraguai. Todo
esse gado foi assenhorado pelos paraguaios. (THOMPSON apud ALMEIDA, 1951, p. 345). Mesmo tendo sido o seu rebanho saqueado pelos
paraguaios, dez anos depois da guerra as atividades pecurias eram ali
retomadas, com o restante do gado alado que os paraguaios no conseguiram reunir. (MACIEL, 1922, p. 16). Tudo isso comprova o grande
volume de cabeas que estavam apascentadas naquela fazenda. No distrito de Miranda, das 150.000 cabeas existentes, segundo o testemunho
226

Paulo Marcos Esselin

de Jos Barbosa Bronzique, 60.000 caram em mos dos exrcitos paraguaios. (TAUNAY, 1923, p. 114). Estes mantm ainda nesse distrito,
mil soldados; creio que os conservam por causa da grande quantidade de
carne seca que enviam todos os meses para Assuno. (TAUNAY, B, sd.,
154). J nas proximidades da Colnia Militar de Dourados, foram imediatamente arrebanhadas 1.200 cabeas de gado bovino e 80 guas, 1.000
em Nioaque, mais 600 em fazendas isoladas. O abate para a manuteno
dos soldados paraguaios e da populao civil brasileira de Corumb era
de 300 a 500 cabeas por ms. (Documentos 12.14 e 16, Colecion, Rio
Branco apud WILCOX, 2000, p. 25).
Muito mais ao sul entre os rios Pedra de Cal, tambm chamado
ribeiro das Cruzes, ou Pirapoc, e o Caracol, afluentes da
margem direita do Ap, e o espigo divisor das guas de pequenos
formadores dste, estendiam-se longos campos de pastos nativos,
em que se assinalavam pequenas elevaes, como lombadas. Ai
nesse territrio, Solano Lopez, por aquela poca do assalto ao
ncleo de Taquari, mandou fundar uma estncia pastoril, ponto
de recuperao, por onde passaram a escoar-se, em descanso, as
boiadas arrecadadas no solo matogrossense e destinadas pelo passo
de Bela Vista ao interior da Repblica. Os guaranis chamaram-na
Machorra, e nela edificaram estabelecimentos, que se elevariam a
oito, para abrigo de tropa e instalao de servios, grandes currais,
oficina de carrieiro e cortume. (ALMEIDA, 1951, p. 346).

O ataque ao sul de Mato Grosso consolidou a idia de que o rebanho bovino, embora tenha se multiplicado lei da natureza, com muitas
perdas e sem trato algum, havia crescido vertiginosamente. Representou estratgica retaguarda de abastecimento para as foras militares paraguaias. (CORRA, 1999, p. 48). Mesmo nas reas dos Campos de Vacaria, onde a ocupao se iniciava, o bovino foi encontrado aos milhares,
o que comprova que havia sido introduzido por colonos paraguaios que
promoviam a colheita da erva-mate, como tambm por guarnies do
Exrcito Brasileiro que se instalaram ao lado de alguns pioneiros, o que
contribuiu para elevar o rebanho da regio.
227

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Embora os soldados invasores tenham capturado muito gado bovino e eqino para manter seus exrcitos e envi-los para Assuno, a
maior parte desse gado permaneceu no territrio sul-mato-grossense sem
que pudesse ser retirado, devido presena devastadora de uma doena
fatal que atingiu a cavalhada, conhecida como a peste das cadeiras ou
Trypanosomiase eqina, que da Bolvia penetrou, por volta de 1850, em
Mato Grosso, cuja tropa de eqinos foi terrvelmente dizimada. (CORRA FILHO, p. 1969, p. 531).
Transportada da Bolvia em 1857, comeou aquella enfermidade
a grassar entre os cavallos, com todos os caracteres de epidemica.
Hoje tornou-se endemica. (...) A zona, em que actua esse mal,
estende-se do sul do districto de Miranda at Cuyab, exactamente
em todos os pontos, onde se do as inundaes peridicas e o
alagamento dos campos. (TAUNAY, 1923, p. 70).

Nos campos da plancie pantaneira os significativos estoques de


cavalos constituram motivo de atrao aos invasores quer para us-los
como montaria na regio, quer para serem enviados para outras frentes
de batalhas, sobretudo no sul, pois a atteno geral das potencias alliadas quasi exclusivamente voltada para o sul, para as operaes de guerra
travadas em torno de Curupaity e Humayt. (TAUNAY, A., sd., p. 6).
A doena, no entanto, comprometeu os planos dos oficiais paraguaios, que no tiveram animais sequer para formar tropas para tirar do
territrio sul-mato-grossense os bovinos ali apascentados. No relatrio
de Joaquim Ferreira Moutinho, ficou registrado que nas fazendas pblicas de Betione e Poeira, os paraguaios haviam deixado milhares de cabeas de gado bovino j marcados a ferro com as letras LP (La Ptria),
que se tornaram a maioria selvagem, visto que a regio foi abandonada.
(MOUTINHO, 1869).
Internamente, desde 1850, a Provncia sofria com as conseqncias da doena, pois a arrecadao reduziu drasticamente as rendas, que
em sua maior parte advinham da pecuria atravs da comercializao do
gado em p, que se fazia via tropeiros mineiros e paulistas e que foram
228

Paulo Marcos Esselin

temporariamente interrompidas pela falta de cavalos que pudessem fazer


o manejo. (CORRA FILHO, 1969).
A fora expedicionria que partiu de Uberaba com o propsito
de libertar Mato Grosso, e que foi imortalizada no livro A Retirada da
Laguna pelo Visconde de Taunay, sofreu todas as privaes devido
ausncia de animais de sela. Durante a estada no Coxim, morreram quase
todos os muares no escapando um s cavallo atingidos pela peste das
cadeiras. (TAUNAY, 1923).
O mesmo aconteceu com as tropas paraguaias que se dirigiram a
Coxim quando da invaso do territrio mato-grossense em abril de 1865.
Se bem tivessem levado excellente cavalhada, voltram muitos dos expedicionrios a p, pois que a peste, commun nestas localidades, incessantemente derribava os melhores animaes de sella. (TAUNAY, 1923,
p. 22). Destaque se igualmente, a baixa qualidade geral dos animais
de monta da poca. Quando a coluna brasileira, destinada invaso do
Paraguai pelo norte, transitou pelas terras sulinas do Coxim, dirigindo-se
Laguna, pde averiguar visualmente a extenso dos prejuzos da fra
da cavalaria dos invasores, estateada nas centenas de carcassas de animais
mortos na regio pantanosa, assaltados pela peste de cadeira. (ALMEIDA, 1951, p. 346).
Os memorialistas Campestrini e Guimares afirmaram que a fora
expedicionria, marchando por terras goianas de poucas fazendas e depois pela provncia de Mato Grosso quase desabitada, teve alguns transtornos no tocante ao provisionamento da tropa, concorrendo para isso a
pequena produo das roas por falta de chuvas no ano anterior. Alm
disso, o gado trazido de Gois, sado gordo dos campos, chegava esqueltico, em face das grandes distncias percorridas. (CAMPESTRINI e
GUIMARES, 1995).
No que se refere a Mato Grosso, sobretudo na plancie do Pantanal, o gado bovino era abundante, mas a sua obteno foi se tornando
difcil pela falta de cavalos. Taunay, que fazia parte da Fora Expedicionria Brasileira como segundo tenente de artilharia, revela que quando
229

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

saram do Coxim, com as provises meio esgotadas, confiavam no muito


gado que vagueava pelos campos. Eles eram vistos pastando em grandes
manadas; no entanto, bravios ao extremo, fugiam rapidamente quando
pressentiam a presena do homem, tornando difcil abat-los, como a
qualquer animal selvagem. (TAUNAY, 1923). Restou ao grupo, em grande parte da viagem, alimentar-se dos frutos nativos que encontravam
pelo caminho: chupavam o miolo de macaubeiros e comiam jatobs verdes, cujo sabor desagradvel sobrepuja ao cheiro nauseabundo, palmitos,
cocos, mel de abelha e guavira. (TAUNAY, 1923)
O gado muito arisco, fugia facilmente de nossos atiradores, cujas
armas de pederneiras e espoletas se inutilizavam com a chuva continua de maneira que estvamos reduzidos a chupar o miolo da palmeira imbocay( bocayuba, cco de catarro) o que os ndios denominavam
namuculi(TAUNAY, 1929, p.17).
A epidemia, que praticamente dizimou o rebanho eqino no Pantanal, aparentou, a alguns criadores, tratar-se de um problema insolvel.
(BARROS, 1922). Em 1870, no fim da guerra, o comandante da Fora Brasileira em Miranda relatou que no poderia cumprir as ordens de
conduzir gado a Bela Vista porque a doena havia dizimado o rebanho
eqino da regio. Essa empreitada foi confiada a tropeiros mineiros que
estavam trazendo cavalhada por terra, vendendo-a a preos fabulosos.
(TAUNAY, 1923).
Em alguns annos, a dificuldade de obter cavalhada tem impossibilitado o costo, sem o qual o gado se torna arisco e bravio, como o
que avistamos na base da serra de Maracaju (TAUNAY, p.60 61, 1929).
A peste das cadeiras fez avultar o preo dos cavalos, que chegou
cifra de 100 a 120$000 por cabea, dez vezes o preo de um animal
no Rio Grande do Sul da poca. Os muares, embora no se prestassem
ao servio das fazendas, atingiu a mesma cifra, o que obrigou o mato-grossense a fazer uso do boi manso, tanto para o transporte de cargas
(lenha, mantimentos) como para montaria. (...) muitas vezes v-se entrar
pela cidade tropas de bois arreados com cangalhas e os tocadores de lotes
230

Paulo Marcos Esselin

montados noutros que offerecem mais commodo no andar. (MOUTINHO, 1869, p. 34-35).
Um fator que motivou a invaso de tropas paraguaias em Mato
Grosso foi a oferta de bovinos e eqinos, disponibilizados em seus campos. Esperavam reunir milhares de cabeas para alimentar seus exrcitos
em combate e tambm a populao assuncenha. No entanto, o plano dos
invasores frustou-se quase que completamente devido falta de animais
de sela, o que os impedia de reunir os bovinos para conduzi-los a local
desejado.
De certa forma, a doena que atacou a cavalhada, embora tenha
desarticulado a nascente pecuria do Pantanal sul, acabou por tornar-se
benfica, na medida em que preservou os estoques bovinos da extrao
paraguaia. O mesmo no aconteceu com a mo-de-obra sulina. Os indgenas, sobretudo aqueles que eram objeto do intenso trabalho de catequese e que prestavam servios em torno dos ncleos urbanos, ou fugiram,
ou foram obrigados a prestar todo tipo de servios s foras invasoras.
Os ndios guans desse aldeamento [Matta Grande] foram levados
prisioneiros pelo coronel Barrios e no Paraguay empregados nos
trabalhos pblicos como escravos; [Ainda] durante a occupao
os paraguayos abriram uma excellente estrada de rodagem,
atravz de mattas virgens, entre Corumb e a villa de Santo
Corao na Bolvia, em cujo trabalho empregaram os prisioneiros,
especialmente indgenas, e no qual gastaram 152 dias de effectivo
servio. (BOSSI, 1863, p. 21-22).

O tratamento dispensado aos indgenas pelas tropas invasoras no


foi muito diferente daquele dado pelas brasileiras, revela Taunay:
Estamos na mais extraordinria das situaes; o comandante
obriga os pobres ndios Terenas e Quiniquinaus a trabalharem
sem trgua, apesar da necessidade em que esto de ir cultivar suas
terras e sustentar as infelizes famlias. Sem razo alguma retm
stes pobres coitados despachando escoltas para os prender, desde
que mostrem pouca vontade de vir submeter-se ao seu arbtrio.
(TAUNAY, B, sd., p. 196).
231

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

Em julho de 1866, o Presidente Solano Lopez ordenou que toda a


populao masculina da Provncia, sem distino de nacionalidade, deveria seguir para Assuno.(...) chegamos ao amanhecer a Albuquerque, em
cujo porto estavam j reunidos todos os ndios vares domesticados que
tambm deviam embarcar e effetivamente embarcaram entre as commoventes lamentaes de suas famlias, (...). (CAVASSA, 1997, p. 33).
O Forte de Miranda, antes que as tropas invasoras chegassem, foi
abandonado por sua populao, e o depsito de artigos blicos ficou entregue ao saque dos indgenas aldeados nas proximidades e, antes de cair
em poder dos paraguaios, como fatalmente aconteceu, os terenas, laianas,
kinikinaus, guaicurus, kadiuveos e baquilos trataram de se prover de espingardas, clavinas e de quanta plvora e bala puderam angariar; munio
de que dispuseram em abundncia durante todo o tempo da ocupao do
distrito, em seguida, alguns grupos transpuseram a serra para se juntar
populao fugitiva; os terenas se isolaram e os kadiuvus adotaram uma
atitude contrria a qualquer branco, ora atacando os paraguaios na linha
do Apa, ora assassinando famlias brasileiras inteiras. (TAUNAY, 1931, p.
33). Os kadiuvus, instigados e armados de fuzis pelos brasileiros, penetraram no rio Apa, assaltando as aldeias e os exrcitos paraguaios. (BOGGIANI, 1975, p. 267). Os guans, kinikinaus e laianas participaram da
guerra ao lado do Exrcito Imperial. J os terenas mantiveram-se esquivos; s depois de algum tempo que acabaram se juntando populao
fugitiva de Miranda e de seus entornos, lutando ao lado dessas foras
contra os paraguaios. (TAUNAY, 1931).
A transposio da serra de Maracaju permitiu a disperso desses
grupos e a ocupao, por eles, de uma extensa rea, do rio Brilhante s
nascentes do Vacaria e, destas, ao vale do Dourados. Esse foi um fator importante para a difuso do gado no planalto de Maracaju-Campo
Grande. Os nativos no levaram todo o rebanho que possuam, pois em
momento de fuga isso era impossvel, mas certamente conduziram parte
dele, contribuindo decisivamente para o povoamento daqueles campos,
aproveitando-se das ricas pastagens naturais, onde formaram uma col232

Paulo Marcos Esselin

nia de refugiados que reunia uma srie de ranchos vastos e cmodos, e


pouco a pouco regularizou-se o modo de viver daquelas colnias hbridas
de brasileiros civilizados e ndios. (TAUNAY, 1931, p. 33).
Tornou-se comum entre a populao que transps a serra durante
a ocupao paraguaia, buscar o gado bovino espalhado pelos campos da
vila de Miranda.
Por entre as rondas passavam, noute, os indios quando desciam
da serra para virem laar rses na plancie e ajouj-las com bois
mansos, tangndo-as assim para o alto dos acampamentos. E com
estas expedies repetidas sempre com xito, apesar da vigilncia
dos inimigos, abasteciam-se de carne fresca, ou ento seca ao sol, e
ao ar (o que se chama carne de vento) os moradores dos Morros. S
se podiam ento queixar da falta de sal, esta mesma, at certo ponto,
minorada pela explorao, embora imperfeitssima, dos barreiros ou
terrenos salitrosos, to abundantes de matria salina e numerosos
nesse sul de Mato Grosso. (TAUNAY, 1948, p. 270 e 271).

As naes indgenas j haviam adotado muitos costumes da cultura europia que lhes pareciam teis, e nesses acampamentos, os bovinos
desempenhavam importante papel: alm de servirem de alimento, eram
utilizados como trao e transporte tanto para puxar carroa como para
montaria. Taunay presenciou o uso do bovino pelos indgenas quando
esteve com as tropas brasileiras que se dirigiam a Laguna. (...) os ndios da Boa Vista (...) montados em bois, marchavam uns atraz dos outros, com a lentido grave daquelles ruminantes (...). (TAUNAY, 1923,
p. 113). Quando da formao de novas lavouras, eram com eles que se
derrubavam as matas, preparavam o solo, puxando arados de madeira
ou de ferro e, por fim, transportavam a colheita; alm do mais, com o
couro eram feitas as portas dos ranchos, as camas, as cordas, o recipiente
para carregar gua e mel, o moc ou alforge para levar comida, a maca
para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prend-lo
em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surres, a roupa de entrar no
mato, as sacas para armazenar o sal. (CAPISTRANO de ABREU, 3 ed.,
233

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

1934). Havia tambm as pelotas feitas com o couro e que portavam as


cargas e as pessoas que no sabiam nadar.
Um dos modelos de pelotas mais usuais nos passos dos arreios
ou rios de nado era preparado com o couro fresco de touro que,
depois de franzido em roda, toma a forma de uma grande bacia
ou de um cesto arredondado. A abertura da boca era mantida
por meio de um travesso de pau, e antes do passageiro embarcar
colocavam-se no fundo as suas bagagens, que serviriam de lastro;
frente nadava o condutor levando presa entre os dentes uma tira
de couro: uma das extremidades das tiras era agarrada pelo viajante
que, com outra mo, puchava o cavalo pelas rdeas. (HOLLANDA,
1945, p. 32).

No esforo para expulsar os paraguaios de Mato Grosso, em especial de Corumb e Miranda, duas frentes foram formadas, uma das quais
partiu do Rio de Janeiro em julho de 1865 para Uberaba, Minas Gerais,
onde se juntou a vrios batalhes oriundos de Ouro Preto, So Paulo,
Amazonas e Gois, constituindo um contingente de aproximadamente
3.000 homens. (GUIMARES, 1999). Em setembro do mesmo ano, as
tropas deixaram aquela cidade sob o comando do Coronel Manoel Pedro
Drago em direo ao noroeste at as margens do rio Paranaba, da tomaram o rumo de Coxim, descendo at Miranda, j sob o comando de
Carlos de Morais Camiso. A coluna se internou pelo territrio paraguaio,
onde ocorreu a epopia da Retirada da Laguna.
Uma segunda frente, formada para expulsar os paraguaios de Corumb, foi organizada na cidade de Cuiab com duas brigadas sob o comando do tenente coronel Antnio Maria Coelho. Tendo arquitetado um
ataque pela retaguarda e de surpresa, em 13 de junho de 1867, o povoado
caiu rapidamente em mos das tropas cuiabanas. No entanto, parte dos
habitantes da Vila vinha enfrentando uma epidemia de varola que grassava naquela regio com bastante intensidade. No dia seguinte retomada,
sem qualquer cautela, foi enviado um mensageiro para comunicar na capital o xito da expedio; como ele j havia contrado a doena, contami234

Paulo Marcos Esselin

nou todos aqueles com quem havia se comunicado, morrendo assim que
chegou a Cuiab. (MOUTINHO, 1869).
Em 24 de junho, quando chegou a Corumb o prprio Presidente
da Provncia, Jos Vieira Couto de Magalhes, a doena j tinha atingido
as tropas, alastrando-se com rapidez, o que as impossibilitava de ficar na
Vila; alm disso, chegavam notcias de que os paraguaios desfechariam
novo ataque.
Diante da situao, o Presidente deu ordens para a evacuao de
Corumb. Com o retorno para Cuiab de toda a tropa, sem os cuidados
que se faziam necessrios, a doena encontrou todas as condies para se
alastrar por toda a Provncia. A epidemia foi assim trazida para a Capital,
ceifando metade da populao cuiabana. (PVOAS, 1995, V. 1). Na
memria do povo, mais do que da Retomada de Corumb, 1867 seria o
Ano das Bexigas, da mxima provao a que se viu submetida a populao cuiabana. (CORRA FILHO, 1969, p. 551).
Embora no seja possvel revelar com exatido o nmero de pessoas atingidas pela varola, pois o responsvel pelo registro tambm faleceu
vitimado pela epidemia, o ofcio do Dr. J. V. Couto de Magalhes, dirigido ao Presidente da Provncia de Mato Grosso em setembro de 1867,
afirma: luctamos aqui com uma medonha epidemia de bexigas, a qual
do dia 14 de agosto a 17 do corrente nos arrebatou numero de victimas
superior a 1.500, s nesta capital. (MAGALHES, 1867).
Dessa situao, se aproveitaram os paraguaios para retornar a Corumb, ali permanecendo at o ano seguinte, quando as tropas brasileiras
renderam Humait e dirigiram-se para Assuno. Solano Lopes ordenou
a evacuao de todos os efetivos militares estacionados em Corumb, ltimo reduto paraguaio em Mato Grosso, para fortalecer os seus exrcitos
que mantinham reinhidos combates no sul, o que ocorreu em abril de
1868, pondo fim guerra em solo mato-grossense.
Foi somente em agosto de 1868, que as autoridades de Cuiab conseguiram a confirmao de que Corumb havia sido evacuada pelas tropas invasoras, aps enviarem uma patrulha de reconhecimento ao local.
235

O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo de Ocupao no Sculo XIX

A partir da, teve incio um perodo de restaurao das atividades comerciais que, no passado haviam impulsionado o crescimento da regio.
As comunicaes entre a Provncia de Mato Grosso e o Rio de Janeiro,
interrompidas desde o fim de 1864, foram restabelecidas em 1869, aps a
ocupao da capital paraguaia, pelos exrcitos brasileiros.
O fechamento do rio Paraguai, por quase cinco anos, comprometeu a economia de toda a Provncia, atingiu duramente o Pantanal sul e se
constituiu num verdadeiro desastre para a populao pantaneira.

236

Captulo 5
O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra
5.1.

A Situao da Provncia no Ps-Guerra e os


Problemas Relativos Mo-de-Obra Indgena

A Guerra da Trplice Aliana interrompeu um promissor processo de desenvolvimento econmico na regio do Pantanal sul de Mato
Grosso. Durante quase cinco anos, desapareceu a livre navegao no rio
Paraguai, sobretudo no trecho brasileiro, j que as cidades ribeirinhas
permaneceram sob o domnio do invasor. exceo de Santana do Paranaba, na fronteira de Minas Gerais e Gois, os poucos ncleos urbanos
organizados no sudoeste de Mato Grosso foram completamente arrasados pelos exrcitos invasores. Estava Miranda em runas (...). Ao partirem haviam-na os paraguaios incendiado. Ardera parte das construes,
mas eram evidentes os signaes de decadencia, anterior ao incndio que
succedera primeira phase de desenvolvimento e prosperidade. (TAUNAY, A., sd., p. 10).
O mesmo aconteceu em Nioaque: a vila foi invadida em 1865 pelas
tropas comandadas pelo coronel Resquim, que ali estabeleceu a capital do
departamento do Alto Paraguai.
Abandonou-a [Nioaque], aps destrui-la, com a aproximao da
Expedio de Mato Grosso, que chegou Vila em 24 de janeiro de
1867. Em junho seguinte, os paraguaios, perseguindo os retirantes

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

de Laguna, retornaram a Nioaque, incendiando o pouco que


restou. (PALERMO, 1922, p. 127).

Na Colnia Militar de Dourados, todos os ranchos e as instalaes


militares foram incendiados, em obedincia s instrues que trazia o
comandante paraguaio.
O Forte de Coimbra ficou em estado de completa destruio, a que
o reduziram os invasores paraguaios.
A vila de Corumb, maior beneficiria da abertura da livre navegao do rio Paraguai e que desempenhava a funo de principal entreposto
comercial e plo de todo o desenvolvimento da regio de Mato Grosso,
tambm no foi poupada pelas foras paraguaias.
A Vila, h dois anos florescente, no era agora mais do que um
acampamento incendiado e devastado; poucos brasileiros a
existiam entre mulheres e crianas; os homens e algumas famlias
que no foram mortas ai mesmo, Barros fizera-os partir para
Assuno. (FONSECA, 1986, p. 312, V. 1).

Corumb jazia deserta, com as casas comerciais saqueadas, os edifcios pblicos arrombados e muitos prdios incendiados. (SOUZA, sd.).
Muitas das reparties pblicas desses ncleos tiveram incinerados
os documentos e registros, escrituras de posse, certides de nascimento,
o que, com o fim do conflito, dificultava a comprovao da posse e da
prpria existncia da pessoa, obrigando alguns proprietrios a se deslocarem capital Cuiab para tentar recuperar os documentos de legitimao
das propriedades.
Essa foi a situao vivenciada por Joaquim Jose Pereira, que enviou
um requerimento ao Presidente da Provncia de Mato Grosso em 23 de
outubro de 1871, com os seguintes dizeres:
fazendeiro estabelecido no lugar denominado Trez Barras Freguesia
de Corumb, qui havendo perdido todos os seus papis por
occasio da evaso Paraguay precisa por Certido e despacho que
238

Paulo Marcos Esselin

teve em uma sua petio feita no anno de 1861 a Exma Presidencia


relativamente a permisso do dito lugar22 (...). (PEREIRA, 1871).

Isso serviu de subterfgio para que muitos daqueles soldados, que


haviam decidido pela fixao no sul do Pantanal, se apoderassem de grandes reas, alegando que lhes pertencia e que os documentos comprobatrios haviam sido destrudos pelas tropas invasoras.
Doenas como a varola e a clera deram sepultura a muitos dos
habitantes da Provncia. A guerra tambm contribuiu para o seu despovoamento: muitos fazendeiros reuniram seus haveres e suas famlias s
pressas e fugiram em busca de segurana, alguns dos quais foram para o
norte, em direo a Cuiab, outros se refugiaram nos morros da serra de
Maracaju, enquanto os comerciantes estrangeiros abandonaram a regio
de vez, devido interrupo da navegao do rio Paraguai. Os que resolveram permanecer foram aprisionados e levados para Assuno, onde
foram submetidos a uma srie de humilhaes e constrangimentos, inclusive o de trabalhar como escravos em terras guaranis (Paraguai). Muitos
deles no retornaram. O ltimo recenseamento apresentado por Joaquim
Moutinho em 1862, antes da guerra, revela uma populao de 65.000
habitantes, inclusos ndios e escravos, assim distribudos:
Populao Civilisada Livre
Populao Escrava
Populao Indgena
Total

35.000
6.000
24.000
65.000

Fonte: (MOUTINHO, 1869, p. 115).

Esses no eram dados confiveis, pois os recenseamentos, geralmente feitos por policiais ou pelos padres nas parquias, nem sempre
cobriam todas as localidades e, muitas vezes, o clculo do nmero da
populao era feito por estimativa. Assim sendo, os nmeros poderiam
se apresentar abaixo ou acima do real.

22 Requerimento de Joaquim Jose Pereira ao Presidente da Provincia de Matto Grosso em Cuyab,


em 23 de outubro de 1871. Manuscrito Lata 1871C, APMT. Cuiab MT.

239

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

O prprio Moutinho, quando apresentou esses nmeros, deixou


registrado que muitas pessoas autorizadas julgavam que a populao era
mais numerosa.
Uma evidncia clara de que a populao era maior foi o recenseamento de 1872, realizado dois anos aps o fim da Guerra da Trplice
Aliana.
Os resultados desse censo mostraram que a populao de Mato
Grosso era de 84.000 habitantes, dos quais 23.983 eram ndios. Considerando os nmeros, conclui-se que, mesmo com a guerra e enfrentando
as epidemias de varola e clera, a populao cresceu a uma taxa de 2%
ao ano, se comparada ao ltimo recenseamento de 1862, o que poderia
provar que ela era muito maior do que a anunciada, j que imediatamente
aps a guerra no houve compensao com a entrada de imigrantes estrangeiros. O prprio censo registrou que em todo o Mato Grosso havia
1669 estrangeiros, dos quais, 764 habitavam o sul da Provncia e desses,
apenas 226 eram paraguaios.
muito provvel, no entanto, que muitos dos soldados que deram baixa do Exrcito aps a guerra permaneceram em solo sul-mato-grossense, como tambm muitos outros voltaram sua terra natal e de l
trouxeram suas famlias para se fixarem nesses rinces, onde abundavam
a terra devoluta e o bovino selvagem. Entre 1872 e 1876, estabeleceu-se
para Mato Grosso uma corrente relativamente numerosa de brasileiros,
antigos combatentes da guerra, que buscavam comear vida nova. (ALMEIDA, 1951, p. 413).
Uma evidncia desse processo o fato de que antes da guerra,
exceo de Cuiab, os principais ncleos urbanos da Provncia contavam
com escassa populao. Levantamento de 1863 aponta que a Freguesia
de Miranda e inclusive a Colnia de Dourados contavam com a seguinte
populao:
Livres

Escravos

Freguesia de Miranda e Colnia de Dourados

720

106

Freguesia de Albuquerque

1315

500

Fonte: (CORRA FILHO, 1969, p. 568).

240

Paulo Marcos Esselin

O censo de 1872 revelou uma populao muito maior justamente


nas cidades que estiveram ocupadas pelos exrcitos paraguaios durante a
guerra e naquelas que sofreram com as agresses e pilhagem, para onde
marcharam contingentes militares do Imprio para expulsar os invasores.
Em 1862, em Corumb, existiam 36 edifcios de alvenaria, 29 em
construo e 109 ranchos cobertos de palha, habitados por 1315 pessoas.
Aps a guerra permaneceram em p apenas 20 dessas edificaes, quase
todas em runa. (PENNA apud CORRA, 1999, p. 100).
O censo de 1872 revelou que em Miranda a populao total era de
3.852 habitantes:
Homens
Mulheres
Escravos

1.888
1.822
142

Dessa populao recenseada em Miranda havia:


Brancos
Negros
Total

649
429
1.078

(16,8%)
(11,2%)
(28%)

Mestios:
Mulatos
Caboclos
Total

899
1.875
2.774

Brasileiros
Brasileiras
Estrangeiros
Total
Populao acima de 60
anos:
Adultos

1.978
1.874
3.852
396

(10,2%)

1.256

(32,6%)

Menores de 21 anos

267

(7,0%)

Escolares

461

(12,0%)

(23,3%)
(48,7%)
(72%)
(51,3%)
(51,3%)
habitantes

Inclusos escravos 45 homens e 18


mulheres
Inclusos escravos 22 homens e 18
mulheres
Inclusos escravos 6 homens e 3
mulheres
Inclusos escravos 7 homens e 5
mulheres

241

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Infantes
Populao livre
Populao escrava

1.472
3.710

(38,2%)
(96,3%)

142

(3,7%)

Inclusas 8 escravinhas
Sendo 1.888 homens e 1.822
mulheres
Sendo 90 homens e 52 mulheres.

Em Corumb, a populao total era de 3.361 habitantes:


Homens
Mulheres
Escravos

1.679
1.407
275

Da populao recenseada em Corumb havia:


Brancos
Negros
Total

1.525
366
1.891

(45,4%)
(10,8%)
(56,2%)

Mulatos
Caboclos
Total

1.342
128
1.470

(40,0%)
(3,8%)
(43,8%)

Brasileiros
Brasileiras
Estrangeiros
Total

1.342
1.393
664
3.361

(38,8%)
(41,4%)
(19,8%)
habitantes

Mestios:

Populao acima de 60
anos:

359

(10,7%)

1.838

(54,7%)

Menores de 21 anos

288

(8,5%)

Escolares

505

(15,0%)

Infantes

372

(11,1%)

3.086

(91,8%)

275

(8,2%)

Adultos

Populao livre
Populao escrava

Inclusos escravos 30 homens e 23


mulheres
Inclusos escravos 65 homens e 69
mulheres
Inclusos escravos 16 homens e 5
mulheres
Inclusos escravos 16 meninos e 9
meninas
Inclusos escravos 97 meninos e 275
meninas
Sendo 1.679 homens e 1.407
mulheres
Sendo 155 escravos e 120 escravas.

Fonte: (Censo geral do Imprio de 1872). (MATTOS, 1990, p. 171 e seg.).

242

Paulo Marcos Esselin

H um aumento significativo na populao das duas principais


cidades do Pantanal; na regio de Miranda, a populao saltou de 720
habitantes antes da guerra para 3.852 no ps guerra, e em Corumb, de
1.315 para 3.361 habitantes.
A pecuria, principal atividade econmica do Pantanal, passou a
ser feita por ex-soldados e seus familiares no primeiro momento. Com
o fim das hostilidades, iniciou-se a desmobilizao dos exrcitos. Como
conseqncia, muitos militares, que deram baixa, resolveram por fixar-se
nas terras do Oeste. Quando a obra de delimitao fronteiria terminou,
grupos de soldados foram se deixando ficar por ali. (SODR, 1941). A
existncia de grandes reas devolutas, as pastagens nativas em extensas
plancies providas de guas e barreiros e ainda grandes rebanhos bovino
selvagem exerceram forte atrao sobre os ex-combatentes.
Apesar desse expressivo crescimento populacional, os anos de
ps-guerra foram extremamente difceis e se caracterizaram pelo esforo
conjunto da populao e das autoridades em recuperar a economia da
Provncia.
A principal fonte de riqueza regional, a pecuria bovina, voltada
para o abastecimento parcial das Provncias do Sudeste, foi grandemente afetada pela guerra e sobretudo pela epidemia que atingiu os cavalos
(peste das cadeiras). A guerra provocou a desorganizao da produo,
uma vez que os proprietrios em fuga abandonaram suas terras, contribuindo para que os rebanhos passassem condio de selvagem. (...) at
os porcos domsticos que sobreviveram tinham se tornado selvagens,
criando-se regionalmente a expresso porco monteiro, que subsiste at
hoje. (VALVERDE, 1972, p. 107).
H entre os historiadores de Mato Grosso a crena de que, durante
a guerra, as tropas paraguaias tenham destrudo toda a populao bovina23; no entanto, grande parte do rebanho internou-se Pantanal adentro,

23 Sobre o assunto ver ainda CORRA FILHO, Virgilio. A Proposito do Boi Pantaneiro.
PONGETTI e S. Rio de Janeiro, p. 37 e seg. MATTOS, Joaquim Francisco de. A Guerra do
Paraguai: Centro Grfico do Senado Federal, Braslia, 1990. p. 174. VALVERDE, Orlando.
Fundamentos geogrficos do planejamento do municpio de Corumb in Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, 1972.

243

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

tornando-se selvagem, apesar de que os exrcitos invasores se apossaram


de grande quantidade desse gado, muito dele ficou disperso por toda a
plancie, contribuindo novamente para que o fenmeno das misses jesuticas se repetisse, essa disperso garantiu o crescimento vegetativo do
gado, mesmo durante o perodo de hostilidade. O avano da epidemia
que se abateu sobre os eqinos, fundamentais para o manejo do rebanho,
impediu que os paraguaios lanassem mo de todo o gado bovino, o que
garantiu que mais uma vez eles se tornassem estmulo para que forasteiros se afazendassem no sul de Mato Grosso, como tambm para que
aqueles que haviam abandonado suas terras voltassem para retom-las.
Os habitantes do sul de Mato Grosso, sobretudo aqueles residentes na zona de fronteira, foram, direta ou indiretamente, afetados pela
guerra, uma vez que, com o fechamento do rio Paraguai, a regio ficou
completamente isolada das demais regies brasileiras, sofrendo com isso
o aumento dos preos dos alimentos e de outros artigos, o que agravou a
situao material da populao pela falta de suprimentos. Joaquim Felicissimo dAlmeida Louzada, em correspondncia enviada Corte Imperial, d um panorama da situao enfrentada pela Provncia.
Toda essa gente esta nua, e sustenta-se so e unicamente de carne
sem sal tirada de nossas fazendas que esto se acabando (...)
estamos sem vintem nos cofres pblicos e no sabemos que fim
levou uns cem contos que h tempos para c mandou o Governo;
a tropa est desfardada e no temos fardamento para dar-lhe.24
(LOUZADA, 1865, Pasta 29).

Apesar do empenho das autoridades, ainda em 1872 o quadro era


desolador a ponto de o governo imperial ter sido obrigado a enviar alimento para Corumb para aliviar a fome que graava naquela cidade.
A desarticulao da produo agrcola, sobretudo no sul do velho Mato

24 Carta de Joaquim Felicissimo dAlmeida Louzada, de 12 de outubro de 1865. Arquivo do


Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro Lata 762; pasta 29.

244

Paulo Marcos Esselin

Grosso, resultante do conflito entre o Brasil e o Paraguai era conseqncia tambm da destruio das aldeias indgenas de Miranda e do Bom
Conselho em Albuquerque. Essas duas unidades desempenharam importante papel na produo de gneros alimentcios para o consumo e troca,
tais como o milho, a mandioca, a cana, o feijo, alguns produtos artesanais como chapus, redes para dormir, balaios, cermicas, tecidos que
eram absorvidos pela pequena populao urbana dos vilarejos prximos.
A invaso paraguaia, a priso do padre responsvel pelas aldeias,
Frei Mariano de Bagnaia, e a fuga em massa dos indgenas contriburam
para desmantelar completamente a produo, levando a populao a conviver nesse perodo com a ameaa da fome que se seguiu aos primeiros
anos aps o fim das hostilidades.
Com o fim dos combates e com o tratado de paz, os ndios iniciaram um movimento de retorno para as suas antigas aldeias, o que, entretanto, no foi possvel, uma vez que elas foram sendo invadidas por fazendeiros e militares desmobilizados do exrcito brasileiro e que passaram
condio de criadores de gado e preferiam se apossar das terras onde j
houvesse algum trabalho e algumas benfeitorias, tais como reas desmatadas, que facilitassem o comeo das atividades naqueles distantes rinces.
O ofcio do Diretor Geral dos ndios, no ano de 1871, comprova
que as terras dos nativos vinham sendo usurpadas pelos novos colonos:
(...) indio com mais alguns da sua tribu, em numero de 17, procuroume para representar que era filho do fallecido Pedro Tavares, Capito
da alda do Ipgue, no districto de Miranda, e seu substituto; que
por occasio da invaso paraguaya no s a sua tribu, como todas
as outras, e mais habitantes do districto abandonaro os seus lares
e retiraro-se para os montes e bosques,onde permanecero por
6 annos; que ultimamente, voltando os moradores a reoccuparem
os seos domicilios, elles Terenas encontraro a sua alda do
Ipegue occupada por Simplicio Tavares, por antonomsia Piche,
o qual lhes obsta a repovoarem e lavrarem suas antigas terras e de
seus antepassados, pelo que vinho pedir providencias para no
serem esbulhados de suas propriedades das quaes no podiam
245

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

desprender-se.25 (Officio do Diretor Geral dos Indios ao Presidente


da Provncia apud CORRA, 1999, p. 112-113).

O processo de expropriao das terras e escravizao do indgena,


que se iniciara no sculo XVI, intensificou-se no sculo XIX, sobretudo
aps a guerra com o Paraguai, devido expanso pastoril empreendida
pelos pioneiros que se afazendaram em diversos pontos da Provncia,
sobretudo no Pantanal sul. Com isso, a populao indgena foi se dispersando pelas fazendas da regio, na condio de vaqueiros e agricultores.
Quando da construo da rede telegrfica no trecho AquidauanaMiranda, Rondon, em contacto com os nativos, deixou o seguinte registro:
A linha naquele trecho passou pelos campos de quatro Fazendas
que possuem cerca de 6.000 cabeas de gado. Em trno destas,
outras se grupam com um nmero triplo de criao, sendo a mais
importante a do Cutape, de propriedade do Coronel Estevo
Alves Correa, com cerca de 10.000 rezes. .../ Os camaradas dessas
fazendas so, na sua maior parte, ndios Terna, os mais dceis que
conheo da raa amerndia. .../ Esto ja transformados e h mais
de sculo que sua gente no conhece mais o arco e a flecha. Andam
vestidos e apenas as mulheres nas aldeias gostam de andar mais a
vontade. .../ Cultivam a mandioca de que fazem farinha, a banana,
a batata, a cana de acar e o algodo com que fabricam rdes e
tecidos diversos. .../ Por estes motivos so muito procurados pelos
fazendeiros, que tambm os preferem em razo de se contentarem
com pouca remunerao, o bastante para se vestirem, comerem
e satisfazerem seus vicios. .../ So comumente explorados pelos
fazendeiros.26 (RONDON, 1900-1906, p. 83).

25 Officio do Diretor Geral dos Indios ao Presidente da Provncia em Cuiab 1871. Manuscrito.
Lata 1871 C, DOC. av. APMT. Cuiab MT apud CORRA, 1999, p. 112-113.
26 MISSO RONDON. Relatrio dos trabalhados realizados de 1900-1906 pela Comisso de
Linhas Telegrficas do Estado de Mato Grosso, apresentado s autoridades do Ministrio da
Guerra pelo major de Engenharia Cndido Mariano da Silva Rondon como chefe da Comisso
Publicao n 69-70 do Conselho Nacional de Proteo aos ndios, Ministrio da Agricultura
Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, p. 83.

246

Paulo Marcos Esselin

Os indgenas, sobretudo os terenas, transformaram-se no principal elemento de mo-de-obra nas fazendas que se organizaram no sul de
Mato Grosso, na condio de vaqueiros e em outras atividades que se desenvolveram por toda a regio, como lavoura, colheita e preparo da erva-mate, ipeca, borracha, e tambm nos transportes, como barqueiros ou
remeiros enfim, em todos aqueles postos que a nova civilizao exigia.
Mas no apenas os terenas foram utilizados; na ausncia de oferta
de mo-de-obra no sul, outros grupos tambm se constituram no principal elemento de trabalho, requerido em todas as reas do Pantanal.
Os remanescentes do povo guaicuru tornaram-se exmios vaqueiros e passaram a prestar servios em reas que se estendiam do Nabileque
a Corumb. Obviamente, esse grupo se enfraqueceu muito a partir de
1850, principalmente aps a guerra, quando sua cavalhada foi atingida
pela peste das cadeiras que dizimou quase todo seu rebanho. No entanto,
ainda nos dias de hoje so extremamente disputados pelos fazendeiros do
Pantanal, principalmente na regio do Nabileque.
Na poca das cheias, a conduo dos rebanhos para as reas mais
altas, no alagveis, um trabalho difcil que exige do vaqueiro habilidade, conhecimento e percia. Nesse perodo, os nativos so disputados
em verdadeiros leiles. No momento em que as guas esto subindo, o
rebanho bovino e eqino tem que ser retirado rapidamente, e no qualquer peo que se adapta s condies ambientais do Pantanal e que pode
realizar esse trabalho.
Os Guaikuru esto adaptados s condies da regio. Historicamente, eles incorporaram a questo da sazonalidade das enchentes anuais, pois acompanhavam o movimento das guas, levando e trazendo seus
rebanhos, aproveitando-se da renovao das pastagens para oferecer-lhes
uma melhor alimentao. (MARTINS, entrevista 22-9-2000).
O mesmo se sucedeu com os kinikinus, layanas, guats e guans,
uma vez que perderam muitas de suas terras para os invasores e se integraram ao trabalho nas fazendas de gado ou ento em outras lides por
toda a extensa faixa de fronteira.
247

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Os nativos, mesmo disseminados pelas novas reas que se abriam no


Pantanal sul-mato-grossense, continuaram a desempenhar papel essencial
tanto na produo de alimentos quanto como trabalhadores nas fazendas.
Embora os indgenas tenham, em sua maioria, lutado ao lado das
tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai, a segunda onda humana
de ocupao da regio sul de Mato Grosso, que se iniciou aps a Guerra
do Paraguai,
iria proporcionar aos grupos Guans e, especialmente aos Terna,
uma nova situao de conseqncias dramticas, para eles,
porquanto determinou o engajamento dessas populaes a uma
economia de carter escravista. A esse perodo referem-se os Terna
modernos como ao tempo do cativeiro. (OLIVEIRA, 1976, p. 57).

Mas, de forma muito clara, entre o terena e a colonizao branca


havia uma acomodao, uma interface comercial; o nativo precisava das
ferramentas que o colono possua sem as quais ele no conseguia produzir, por outro lado, o branco precisava do alimento que o nativo produzia.
Obviamente, isso no impediu que contra o indgena fosse praticada toda
sorte de arbitrariedades, inclusive a escravido.
No incio da dcada de 70 do sculo XIX, era tal o envolvimento,
sobretudo dos terenas, com a sociedade branca ocidental que o Presidente da Provncia de Mato Grosso, no intuito de pr fim aos constantes
ataques promovidos pelos ndios coroados, cajabis, barbados e outros do
norte de Mato Grosso, fez vir de Miranda o capito ndio, chefe dos terenas, Alexandre Bueno, e outros 61 ndios da mesma tribo, para contribuir
com a catequese e aldeamento dos grupos que se opunham presena
branca naquela regio. A expedio no alcanou os objetivos propostos;
pelo contrrio, contribuiu para tornar mais intenso o conflito entre os
grupos nativos insubmissos e os colonizadores de modo tal que os primeiros passaram a ameaar a prpria capital - Cuiab.27 (PEDROSA, 1878).

27 FALLA com que o Exmo. Sr. Dr. Joo Jos Pedrosa Presidente da Provncia de Mato Grosso
abrio a 1 Sesso da 22 Legislatura da respectiva assembla no dia 1 de novembro de 1878.
APMT. Cuiab MT.

248

Paulo Marcos Esselin

As autoridades cuiabanas sempre lanaram mo desse recurso de


utilizar um grupo indgena para facilitar outro. Os terenas por serem
extremamente dceis desempenharam esse papel em diversas ocasies.
Alm da sua reconhecida docilidade, eram agricultores e sedentrios, em
comparao com as demais tribos da Amrica meridional, possuam algum grau de civilizao, faziam parte de uma sociedade estratificada e j
tinham uma produo econmica regular e suficientemente abrangente
para interagir com os brancos.
Por todas essas condies, os terenas tornaram-se auxiliares preciosos para a fixao do colonizador, como tambm em muitas ocasies,
contriburam para pacificar outros grupos e ensinar-lhes as prticas laborais da lavoura.
As dcadas de 70 e 80 do sculo XIX, foram marcadas pela preocupao das autoridades mato-grossenses em aproveitar a mo-de-obra de
todos os indgenas que habitavam a Provncia, inclusive dos insubmissos
e tambm daqueles que no se dedicavam agricultura, para coloc-los,
mais tarde, disposio dos novos fazendeiros que iam se estabelecendo
em Mato Grosso.
Sendo de utilidade o chamar-se aldeamento os Indios Guats
que habito nas margens do rio So Loureno, onde vivem em
pequenos grupos dispersos occupando se na pesca e caa de que
se subsistem, sendo que esses ndios que da muito se relaciono
comnosco, dirigidos e aldeados por huma pessoa habil podem se
tornar uteis aos Fazendeiros daquella localidade, (...).28 (SANTOS,
1855, sp.).

Nas ltimas dcadas do sculo XIX, j havia poucas esperanas


entre as autoridades mato-grossenses de que a terra fosse colonizada por
imigrantes, como ocorria no sul e sudeste do Brasil.

28 Officio do Diretor Geral dos Indios em Cuyaba Antonio Luis Santos ao Presidente da Provncia
Ill mo e Ex mo Senr General Jose de Miranda da Silva Reis. Manuscrito. Lata 1885 E, APMT.
Cuiab MT.

249

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

O custo de um colono, que alcanava a cifra de 1000$000 ris, estava muito alm das possibilidades dos cofres provinciais. Alm disso, como
prosperariam eles to afastados da costa? No havia garantias eficazes
para suas lavouras, sempre ameaadas pelos indgenas (esse era um problema considervel no norte de Mato Grosso), nem vias de comunicao e
transporte fceis e rpidos para o escoamento da produo a um custo que
no a inviabilizasse. A tudo isso acrescentava-se ainda a crnica falta de
capitais, alavanca para qualquer empreendimento.29 (PEDROSA, 1878).
A soluo era o aproveitamento do indgena, atraindo-o ao aldeamento para a causa da evangelizao e preparao para o trabalho. O
Vice-Presidente da Provncia, Dr. Jos Joaquim Ramos Pereira, em mensagem Assemblia, destacou:
Tenho mandado fornecer aos comandantes no s brindes para
os ndios que se vo apresentando, como roupas ferramentas
agrcolas e de carpinteiro, recomendando-lhes que mandem
ensinar aos nossos ndios o officio de carpinteiro e ferreiro, que
faam grandes plantaes no somente para habituar os indios ao
trabalho como para diminuir a despeza com a sua manuteno (...).
Creio que j tempo de iniciarmos a colonizao indgena, ja que
poucas esperanas devemos nutrir de colonizar com a immigrao
estrangeira os nossos desertos to abundantes de riquezas
naturaes.30 (RAMOS FERREIRA, 1887, sp.).

Por outro lado, os fazendeiros que iam se estabelecendo na faixa de


fronteira para o criatrio bovino, carentes de mo-de-obra, solicitavam
permisso e apoio ao Governo Provincial para civilizar os ndios para
o trabalho em aldeamentos, alegando as vantagens do aproveitamento
dessa mo-de-obra potencial. Foi o caso de Joo Teixeira Ribeiro, pro-

29 FALLA com que o Exmo. Sr. Dr. Joo Jos Pedrosa Presidente da Provncia de Mato Grosso
abrio a 1 Sesso da 22 Legislatura da respectiva assembla. 1 de novembro de 1878.
30 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar a
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 sesso da 26 Legislatura em Setembro
de 1887.

250

Paulo Marcos Esselin

prietrio da fazenda Santa Gertrudes, prxima de Nioaque, no ano de


1874. (CORRA, 1999, p. 113 e 114).
Assim, muito rapidamente, e em especial no sul da Provncia, os
indgenas foram integrados ao trabalho que se desenvolvia nas grandes fazendas, responsabilizando-se no s pelo criatrio bovino como tambm
pelas lavouras que se desenvolviam, tornando-se inclusive modelo a ser
seguido nas reas onde havia maior resistncia por parte dos fazendeiros.
Em relatrio apresentado Assemblia Provincial, o Presidente
afirma: Os indios Terenas, Quiniquinos, Layanas, Guanas, Guatos e
Cadioeos, na fronteira do sul da Provincia, foro sempre amigos dos Brasileiros por quem eram bem tratados e votaro odio implacavel aos Paraguayos que os perseguiam com rigor. 31 (FONSECA, 1875, sp.).
Os principais grupos indgenas do sul de Mato Grosso foram apresentados pelo Presidente da Provncia como amigos dos brasileiros, at
mesmo os kadivus, os temidos cavaleiros que no passado ofereceram
dura resistncia aos colonos que pretendiam estabelecer-se na regio. A
catequese que se iniciou com os missionrios foi fortalecida com a ao
dos fortes ao longo da fronteira sul que, alm de deter as correrias praticadas pelos indgenas, desempenhou o papel de alde-los, contribuindo
para que eles fossem incorporando os costumes e a tradio ocidental e
perdendo parte de sua identidade cultural, o que evitou a sua disperso e
os habilitou a uma nova disciplina do trabalho que contemplava os fazendeiros que se instalaram na regio.
Segundo alguns historiadores, todo o nus do trabalho recaiu sobre
os ombros dos imigrantes paraguaios que entraram na Provncia aps o
fim da Guerra da Trplice Aliana32. Na verdade, foram necessrios alguns

31 Relatrio apresentado Assembla Provincial por Hermes Ernesto da Fonseca em 5 de julho


de 1875. APMT. Cuiab, MT.
32 Sobre esse assunto ver ainda WILCOX, Robert Wilton. Cattle ranching on the Brazilian
frontier: Tradition and innovation in Mato Grosso. 1870-1940. New York University 1992, p.
123 e 124. SODR, Nlson Werneck. Oeste: Ensaio sobre a grande propriedade pastoril. Rio
de Janeiro, Jose Olympio, 1941, p. 101. BARROS, Ablio Leite. Gente pantaneira: Crnicas da
sua Histria. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1998, p. 213 e seg.

251

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

anos para que a populao paraguaia se reestruturasse, consumida que


foi no esforo da guerra. Paul Lewis afirma que, ao iniciar a guerra, o
Paraguai contava com uma populao de 550 mil habitantes e, no final
da mesma, mais da metade havia morrido. Afirma ainda que dos sobreviventes apenas 14.000 eram homens. (LEWIS apud MORAES, 2000, p.
13). De acordo com Efraim Cardozo, dos cerca de um milho e trezentos
mil, habitantes paraguaios, apenas cerca de trezentos mil sobreviveram
guerra, sendo na sua maioria mulheres e crianas. (CARDOSO apud
MORAES, 2000, p. 13).
(...) La teoria de que el pueblo tena que expiar su adhesin al
tirano, freno la ayuda de los vencedores. El Paraguay qued librado
a su suerte. La parte ms dura de la empresa de reconstruir el
pas recay sobre las muyeres. Crearon un gnero de sociedad
poligmica, revivencia forzada de las costumbres del siglo XVI,
que permiti reponer rpidamente las prdidas demogrficas.
(CARDOZO, 1991, p. 121).

Carlos Pastore, citado por Jorge Lara Castro, diz que a populao
paraguaia no incio da guerra era estimada em 800 mil pessoas, tendo
ficado reduzida a pouco mais de 200 mil. Dos 68.379 homens que sobreviveram apenas 13.663 eram maiores de 24 anos. (CASTRO apud
MORAES, 2000, p. 13). Isso sem levar em conta os invlidos que, pela
natureza dos combates, certamente era um nmero significativo.
Os nmeros apresentados no deixam dvidas, so consensuais: a
nao paraguaia sofreu um duro golpe; a populao masculina sobrevivente era na sua grande maioria formada por crianas e idosos, mesmo
assim indispensveis ao esforo nacional de recuperao econmica do
pas no ps-guerra. As mulheres, grande maioria da populao, tiveram
que ocupar postos na produo e comrcio, at ento reservados aos homens, como o de empunhar o arado para tirar da terra o sustento dos seus
filhos ou exercer atividades comerciais e industriais.
O naturalista Herbert H. Smith, que esteve em Assuno na dcada de 80 do sculo XIX, deixou registrado:
252

Paulo Marcos Esselin

Quasi no se vem homens; a guerra tragou-os todos, e os rapazes


que cresceram depois procuram empregos na cidade ou na labuta
do rio. Agora os povoados tm quasi exclusivamente por habitantes
mulheres e crianas. (...) Talvez a parte de Assuno que mais
parece prosperar o mercado, que achamos bem supprido de carne
e vegetaes. Estava cheio de compradores e vendedores, na maior
parte mulheres (...). (SMITH, Herbert H. 1921, p. 231 e 232).

Aps o fim da Guerra da Trplice Aliana, a populao paraguaia


que emigrou para o Brasil era insignificante. Segundo o censo de 1872,
havia em Mato Grosso 1.669 estrangeiros computados em toda a Provncia. Destes, 764 habitavam a regio sul, dos quais 226 eram paraguaios,
sendo 122 homens, 101 solteiros, 18 casados e 3 vivos, e 104 mulheres,
93 solteiras, 5 casadas e 6 vivas. (MATTOS, 1990).
No sul do Pantanal Mato-Grossense, a mo-de-obra continuou a
ser preponderantemente indgena. Somente mais tarde, com as sucessivas crises econmicas e golpes de Estado no pas vizinho, os vencidos
pelo situacionismo comearam a cruzar a fronteira em busca de trabalho.
Muitos deles, exmios vaqueiros, no encontraram dificuldades em obter
abrigo nas fazendas de gado que se desenvolviam na regio.
O emprego da mo-de-obra indgena em atividades econmicas
no Pantanal sul de Mato Grosso no ocorreu sem alguma forma de resistncia. Como j havia ocorrido com os ofaies na regio do Taboco,
no Nabileque os kadivus foram vtimas de perseguies do proprietrio
da Fazenda Barranco Branco, Joaquim Antonio Malheiros. Comerciante,
empreiteiro fornecedor de barcos para a comisso demarcadora de limites do Guapor ao Madeira, ele foi tambm diretor dos ndios kadivus,
cargo do qual se aproveitou para persegui-los.33 (PEDROSA, 1879, sp.).
Esse portugus, Joaquim Malheiros, se estabeleceu entre os nativos e montou um alambique para fabricar aguardente, obteve consenti-

33 Relatrio com que o Exm. Sr. Dor Joo Jose Pedrosa, Presidente da Provincia de Matto Grosso,
abrio a 2 sesso da 22 Legislatura da Respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1879.
Cuyaba. APMT. Cuiab MT.

253

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

mento do Presidente da Provncia para fundar uma fazenda de criao


nas terras que pertenciam aos kadivus. A principio manteve boas relaes com eles; em troca de servios, fornecia-lhes aguardente, sal, panos,
munio e ferramenta. Mas medida que apertavam as exigncias do
fazendeiro, comearam a estourar conflitos; por fim, a tribo dividiu-se
em grupos, um hostil ao invasor, outro favorvel, formado pelos ndios j
demasiadamente viciados para se livrarem dos fornecedores de cachaa.
(RIBEIRO, 1977, p. 83).
A pretexto de que os nativos roubavam eqinos e bovinos das
suas fazendas e retiros, Malheiros, com o auxlio da polcia de Corumb, enviou contra eles por duas vezes, em 1897 e 1898, destacamentos
militares, conduzindo dois canhes de campanha. (RIVASSEAU, 1941).
Nesses sucessivos ataques, muitos indgenas morreram; os que sobreviveram resistiram s perseguies e, apesar das tentativas renovadas, conseguiram permanecer em suas terras.
No entanto, os kadivus, em fins do sculo XIX, encontravam-se extremamente reduzidos. As epidemias de varola, em 1886 e 1890,
fizeram entre eles um grande nmero de vtimas, aliadas s perseguies
promovidas por Malheiros com a cumplicidade das autoridades policiais
de Corumb. O grupo foi reduzido a 200 pessoas segundo o clculo de
Boggiane nas concluses do dirio de sua viagem feita em 1892 ao Nabileque (BOGGIANE, 1975). Em correspondncia de Jos Miranda da
Silva a Joo Lopes Carneiro de Fontoura, aps colher depoimento do capito Eduardo Carlos Rodrigues de Vasconcellos, o primeiro, comunicou
um crime que aconteceu na Vila de Miranda pelo suplente de delegado
Joo Batista Fonseca contra os ndios guaicurus, segundo ele:
(...) nada menos do que uma verdadeira carnificina o massacre
covarde e traioeiro de quarenta e dois ndios guaycuruy entrando
nesse nmero mulhery e crianas. O fato, segundo me conta o
capito Vasconcellos, passou se do seguinte modo: Existia nas
immediaes da fazenda de Fuo Gentil, denominada Campos
dos Veados, uma aldeia de ndios Guaycurus, e havendo entre
os fazendeiros e os ndios uma questo motivada por dois bois,
254

Paulo Marcos Esselin

que ou os ndios havio furtado, ou que reclamaram, pedio


aquelle fazendeiro providencias ao tal supplente de subdelegado
que se achava em exerccio, e este armando um crecioso numero
de homens, dirigiu se a aldeia onde os ndios o receberam
pacificamente, e os intimou a que os acompanhassem a povoao
no que foi pronptamente obedecido. Esse caminhando, receando
talvez alguma resistencia destacou dois ndios um certo numero
de homens e os mandou a diante para a povoao; e quando as
victimas menos esperavam , cahio sobre ellas e da maneira mais
barbara ai exterminou, seno algumas crianas esquartejadas vivas.
Apenas escapou uma india paraguaya, que conseguiu embrenhar
se no mato e que do a noticia em Miranda. O capito
Vasconcellos, que repito homem serio, mostra se horrorisado,
e foi com muita reserva que me communicou esse facto, que no
posso furtar me ao dever de levar quanto antes ao conhecimento
de VExa. porque me parece que ante o horror que deve inspirar
tanta perversidade,cesso qualquer consideraes. E da se isso
quando VExa. com tanta solicitude e despesas procura fazer dos
ndios homens da sociedade; quando a provincia clama por braos,
por populao. E bom que VExa saiba que o tal Fonseca irmo
de um genro do Major Pedro Jos Rufino, diretor dos ndios em
Miranda e commandantedo destacamnto do Corpo de Cavallaria
que esta na Villa. (Arquivo dos presidentes IJ1687Rel28 Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro)

O mesmo aconteceu com os uachis ou guachis, ndios que habitavam as cercanias da serra de Maracaju entre os rios que constituam as
divisas da Fazenda Taboco. (RONDON, 1949). Acostumados a descer
a serra pelo rio Negro, estendendo as suas incurses pelo Pantanal em
busca da caa, abatiam reses como se fossem veados ou porcos selvagens.
Com a expanso da fronteira pastoril, os nativos, cercados, tiveram suas terras usurpadas, e no tinham como fugir. Para sobreviver,
continuaram a promover suas caadas, sendo por essa razo chamados
de ladres de gado e dizimados como j havia ocorrido com os kadivus
no Nabileque.

255

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

O general Rondon, que poca estava frente da Comisso de


Linhas Telegrficas do Estado de Mato Grosso, deixou registrado os ataques que os latifundirios desfecharam contra os indgenas:
(...) eivados da falsa noo de que o ndio deve ser tratado e
exterminado como uma fera contra a qual devem fazer convergir
todas as suas armas de guerra, os fazendeiros ao envs de
reconciliarem-se com aqueles servicolas (sic), que de novo haviam
subido o rio Negro, at a Serra, os dade (sic) trucidando homens,
mulheres e crianas e aprisionando os que no havia logrado fugir.
(RONDON, 1949, p. 60).

medida que a organizao dessas expedies para prear o indgena chegava ao conhecimento de Rondon, ele procurava contactar os
fazendeiros, e em correspondncia com um deles pediu para evitar novos
ataques:
To logo tive notcia do primeiro ataque que projetavam contra eles,
escrevi uma carta ao coronel Jose Alves Ribeiro, como fazendeiro
mais inteligente da zona, pedindo-lhe que evitasse a carnificina
que projetavam contra os ndios. Respondeu-me evasivamente,
afirmando-me entretanto, que de forma alguma consentiria em
que os matassem. Dizia-me ser inteno dos fazendeiros apenas
afugenta-los. No entanto passado algum tempo confirmou-se a
notcia que eu tivera. Foram os indios atacados e mortos pelos
fazendeiros reunidos do Taboco, Proteo, Campo Formoso, Baia
e de cima da serra. (RONDON, 1948, p. 68).

Como suas injunes junto aos fazendeiros no haviam surtido


efeito e a matana continuava, o General resolveu apelar ao Presidente do
Estado para que este, com a autoridade que o cargo lhe conferia, desse um
basta quela situao e evitasse que aqueles atos se repetissem.
Embora tivesse recebido uma resposta favorvel de que o governo
da Provncia iria intervir para pr fim situao, aquela mesma cena se
reproduziu seis meses aps (RONDON, 1948), o que vem demonstrar
que se as autoridades no agiam de comum acordo com os proprietrios
de terras, tambm no impediam que eles continuassem as suas caadas
256

Paulo Marcos Esselin

e, o que pior, permitiam que os ndios que eram feitos prisioneiros se


tornassem escravos.
O Fazendeiro Joo Marques, de cima da serra, tem em seu poder
trs ndios escravizados; o soldado desertor Padilha tem em seu
poder um ndio. Um tal Antonio Taveira comprou por 200$000
um ndio do desertor Cordolino Antonio Vieira tem (...). Com o
fazendeiro do Tabco vi um belo tipo de menina Vachiri, que fora
roubada aos ndios da ltima incuro que fizeram contra estes.
(RONDON, 1948, p. 62).

Em pleno sculo XX, e no desabrochar da Repblica em solo mato-grossense, restabelecia-se a escravido, agora do indgena, sob os auspcios
do Governo provincial. Mas, pior que a escravido, era a crueldade dos colonos para com os nativos; segundo Rondon, no contentes com os assassinatos promovidos, abriam os ventres de ndias que se achavam em adiantado estado de gravidez. (RONDON, 1949, p. 61). Os novos estadistas
do Pantanal sul, com mtodos nada convencionais, foram quebrando assim, a resistncia dos indgenas e estabelecendo uma nova ordem, a deles.34
A explorao e a violncia contra o indgena foi to intensa e to
notria nesse perodo, que motivou a criao do Servio de Proteo ao
ndio, pelo Governo Federal, em 1910, sendo o seu primeiro diretor o
prprio general Cndido Rondon. Foi ele criado com o objetivo principal
de punir os crimes que se praticavam contra o nativo, como tambm fiscalizar o modo como eram tratados nas colnias e estabelecimentos particulares, evitando assim, que fossem vtimas de exploraes, violncias e
fraudes. (VIVEIROS, 1958).

34 A ausncia do poder pblico nessas reas de expanso da pecuria deu ensejo a que esses
oligarcas fossem formando milcias privadas para a defesa de seus bens, arregimentando
homens, armas e promovendo todo tipo de arbitrariedade contra a populao local. No incio
da dcada de 1930, ainda prevalecia a ordem emanada desses grandes coronis. Nelson Werneck
Sodr, ento capito do exrcito brasileiro, em diligncia policial a uma propriedade da regio
registrou: Ali mesmo [na cidade de Aquidauana] foi organizado o destacamento para ocupar e
revistar a Fazenda do Taboco. (...) As batidas revelaram armas que estavam escondidas em sacos
de mantimentos no depsito da estncia; o armamento era muito e variado, compreendendo at
fuzis-metralhadoras. (SODR, 1967, p. 153).

257

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

O perodo ps-guerra foi de consolidao, em que triunfou a grande propriedade rural dedicada ao criatrio bovino. Atravs de expedientes violentos e ilegais, o ndio foi sendo expropriado de suas terras e de
seus bens e incorporado ao trabalho escravo ou ento recebendo uma
insignificante remunerao, processo que se iniciou na dcada de 30 do
sculo XIX e se intensificou aps a Guerra do Paraguai.
A crnica ausncia de capitais entre os latifundirios pantaneiros
para investimentos em mo-de-obra escrava fez com que o indgena fosse
largamente empregado tanto nas lides domsticas como no trabalho da
lavoura e da pecuria.
Outro impulso utilizao da mo-de-obra do indgena veio com
a valorizao do negro no mercado de trabalho, devido aos impedimentos que a Inglaterra colocou ao trfego, e tambm com a expanso da
lavoura de caf no Brasil.

5.2. A Recuperao da Provncia de Mato Grosso; Novos


Impulsos ao Comrcio e Produo
Aps a guerra, as atenes do Governo imperial voltaram-se para
Mato Grosso, e medidas foram sendo tomadas para estimular a economia
local. A primeira delas, e a mais importante, foi a obteno da livre navegao do rio Paraguai, garantindo a comunicao martimo-fluvial da
Provncia com o Rio de Janeiro.
Ainda no ano de 1869, assim que as foras paraguaias deixaram o
territrio mato-grossense, o Governo imperial, como medida de apoio
ao desenvolvimento comercial da regio, baixou o Decreto n 4.388, de
15 de agosto, isentando de tributos todos os gneros de importao e
exportao comercializados em Corumb por um perodo de dois anos e
liberando o porto corumbaense para a entrada de todas as embarcaes
de qualquer origem. Essa concesso foi dilatada posteriormente at o
ano de 1879, dez anos, portanto. (PVOAS, 1995, p. 314, V. 1).
Essa foi uma deciso muito importante, uma vez que inmeras
embarcaes voltaram a transitar pelo rio Paraguai e seus afluentes. Em258

Paulo Marcos Esselin

presas nacionais e estrangeiras se estabeleceram e passaram a prestar


servios de navegao entre Corumb e as cidades do Prata, com o estabelecimento de linhas de cargas e de passageiros. Para o porto da vila
chegaram mercadorias dos mais longnquos pases. Corumb passou a
ser uma cidade-emprio constituda na sua maior parte de comerciantes,
de nacionalidades diversas. Era a porta de entrada para a Provncia de
Mato Grosso. (ROCHA, 1977, p. 78-108).
Essa pequena cidade porturia tornou-se o centro distribuidor da
Provncia e de todas as cidades e zonas ribeirinhas; era ali que se processava o transbordo para as embarcaes de menor calado, destinadas a
Cuiab, Cceres, Miranda, Coxim e escalas (SOUZA, sd.).
A cidade passou a desempenhar o papel de capital do rio Paraguai.
Era o entreposto entre os portos platinos e europeus e de toda a Provncia, tornando-se a principal porta de embarque da exportao dos bens
produzidos no Pantanal e da entrada da cultura platina, com todas as suas
decorrncias.
Investimentos do Governo imperial tambm contriburam no comeo da dcada de 70 do sculo XIX para alavancar a economia local;
a construo de um estaleiro da Marinha em Ladrio ofereceu muitas
oportunidades de emprego e se constituiu em tentativa de reanimar a
economia da regio. Ladrio converteu-se numa florescentssima povoao, com cerca de trs mil almas, vrias ruas e boa casaria. (FONSECA,
1986, p. 317, V. 1). No Arsenal, instalaram-se a Escola de Aprendizes
Marinheiros e as oficinas de habilitao tcnica de servios nuticos e
fabricao de acessrios de transportes fluviais.
Com o objetivo de resguardar Corumb e Ladrio de qualquer ataque, o governo imperial preparou um projeto defensivo com a construo
de cinco fortes s margens do rio Paraguai que iam desde o canal dos
Tamengos at a cidade de Ladrio. Dessa forma, dinamizou ainda mais o
setor de construo.
No ano de 1870, o comando do Exrcito em operaes no Paraguai deslocou o 21 BC para Corumb. Como de costume, um grupo de
259

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

mercadores encarregados de fornecer suprimentos tropa acompanhou-na e se estabeleceu na vila, contribuindo para o incremento do comrcio
e, mais tarde, atraindo um maior nmero de comerciantes. (FONSECA,
1986, V. 1).
Em 1872, a Alfndega foi reinstalada em Corumb com o objetivo
de vistoriar e controlar as mercadorias que entravam e saam pelo porto da
Provncia, alm de cobrar direitos dos produtos que no gozavam de iseno fiscal. Devido ausncia de edificaes pblicas para o armazenamento das mercadorias em trnsito, as instalaes alfandegrias funcionavam
tambm como depsitos dos artigos com destino a outras cidades.
Ainda no ano de 1872, instalou-se na cidade de Corumb o 2 Batalho de Artilharia a P, que reunia 605 homens.
Os investimentos do Governo imperial foram orientados tambm
para a recuperao das colnias militares no sentido de reanimar a agricultura e a pecuria nesses pequenos ncleos e estimular a colonizao
civil. No relatrio do Vice-Presidente da Provncia de Mato Grosso foi
registrado:
Durante a minha administrao foram restauradas as seguintes
Colonias Militares, a saber: a de Brilhante no Distrito Militar
e Municpio de Miranda, por acto de 6 de maio de 1876 sendo
nomeado Diretor e Commandante do Destacamento composto de
dez praas o capito honorario do Exercito Joo Caetano Teixeira
Muzi, de Miranda no mesmo Distrito e municpio por ato de 28
de maro de 1877, sendo nomeado Diretor e Comandante do
Destacamento composto tambm de dez praas o capito honorario
do Exercito Eduardo Carlos Rodrigues de Vasconcellos (...). Todas
estas Colonias, bem como as da Conceio de Albuquerque e
dos Dourados, e o nucleo Colonial do Taquary (...) segundo as
ultimas noticias recebidas, vo prosperando regularmente, e de
esperar-se que brevemente chegarao ao desejado desenvolvimento
e ao fim que se teve em vista com a sua criao.35 (BARO de
AGUAPEHY, 1878, sp.).

35 Relatrio com que o Exm. Sem Baro de Aguapehy, 1 Vice Presidente, passou a administrao
da Provncia de Mato Grosso ao Exmo Senr. General Hermy Ernesto da Fonseca em 4 de
Maro de 1878. Cuyaba. APMT. Cuiab MT. Manuscrito.

260

Paulo Marcos Esselin

Alm da recuperao das colnias militares praticamente destrudas durante a guerra, percebe-se pelo referido relatrio o estreito elo entre
as autoridades provinciais e os fazendeiros. Tanto Joo Caetano Teixeira
Muzi como Eduardo Carlos Rodrigues de Vasconcellos eram grandes latifundirios e, alm de concentrar grandes reas rurais, ficavam tambm
com o monoplio da fora policial.
Quanto s pendncias lindeiras, to logo terminou a Guerra da
Trplice Aliana, o imprio se apressou em firmar um tratado de paz e
outro de limites com a Repblica do Paraguai.
Pelo primeiro, fez reconhecer como dvida de guerra36 pelo pas
derrotado os gastos promovidos pelo Brasil durante o conflito e os
prejuzos sofridos pelos seus sditos, restabeleceu a liberdade de navegao
do rio Paraguai e outorgou ao Brasil o direito de conservar um Exrcito
de ocupao na Repblica vizinha para assegurar a manuteno da ordem
e a execuo de ajustes internos que melhor afeioassem ao imprio.
Pelo tratado de limites ficou estabelecido, no seu artigo 7, que:
O territrio do Imprio do Brasil devide-se com a Repblica
do Paraguai pelo alveo do rio Paran, desde onde comeam as
possesses brasileiras na foz do Iguau at o Salto Grande das Sete
Quedas, do mesmo rio Paran. Do Salto Grande das Sete Quedas

36 Segundo Francisco Doratioto, o tesouro real indicou um gasto de 614 mil contos de ris com
a guerra provindos das seguintes fontes.
Milhares de contos de ris
Emprstimo estrangeiro
49
Emprstimo interno
27
Emisso de dinheiro
102
Emisso de ttulos
171
Imposto
265
Total
614
O conflito custou, pois, ao Brasil, quase onze anos de oramento publico anual, (...) O governo
imperial reduziu, intencionalmente, a indenizao de guerra a ser cobrada do Paraguai. Uma
comisso do ministrio da Fazenda, estabelecida para esse fim, estipulou o custo monetrio
total do conflito, para o Estado brasileiro, a ser pago pelo Paraguai, em 460 718 contos de reis,
enquanto a estimativa do Tesouro, correta, indicava despesas de pouco mais de 614 mil contos
de ris. [A dvida no foi paga] e perdoada por Getulio Vargas, no incio dos anos de 1940.
(DORATIOTO, 2002, p. 462-465).

261

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

continua a linde divisria pelo mais alto da Serra de Maracaju at


onde ela finda; Da segue em linha reta, ou que mais se lhe aproxime,
pelos terrenos mais .elevados, a encontrar a serra do Amamba...
Prosegue pelo mais alto desta serra at a nascente principal do rio
Apa e baixa pelo alveo deste at sua foz na margem oriental do
rio Paraguai; Todas as vertentes que correm para o Norte, e Leste
pertencem ao Brasil e as que correm para o Sul e Oeste pertencem
ao Paraguai. A ilha do Fecho dos Morros do domnio do Brasil.
(RODRIGUES, 1993, p. 88).

Com o fim da guerra, o Paraguai, destroado, deixou de representar uma ameaa em relao a Mato Grosso, tendo sido obrigado a aceitar
os limites que a diplomacia do imprio pleiteava e todo o territrio em
litgio reclamado pela repblica foi incorporado ao Brasil. Era o Tratado
de Paz imposto pelo vencedor ao vencido.
Embora o Brasil tivesse assinado um tratado de paz com a Repblica vizinha, continuava a ocupao militar daquele pas desde 1869, com
interveno constante nos assuntos da poltica interna pelos comandantes
militares brasileiros, que contavam com a anuncia do Governo imperial.
No entanto, no comeo de 1876, o governo paraguaio firmou um tratado
de paz e amizade com a Confederao Argentina, e, no havendo mais
justificativas para a manuteno das tropas, a evacuao comeou em
maio do mesmo ano.
Com a retirada das foras brasileiras de Assuno, viero acompanhando os Corpos de linha que viero para Corumb mais de tres mil
mulheres paraguayas; viero tambm centenas de estrangeiros, muitos
delles paraguayos, procurar aqui o trabalho que no encontravo em Assumpo redusida ltima misria. (PAES de BARROS apud CORRA, 1985, p. 39).
Alm das dificuldades provocadas pela perda da guerra, um longo
perodo de seca e um ataque de gafanhotos s lavouras aumentaram ainda
mais as dificuldades na Repblica vizinha. O Paraguai oferecia pouco
sobrevivncia da sua populao, que continuava sacrificada e sofrendo.
262

Paulo Marcos Esselin

Com a retirada das tropas no havia outra alternativa quela populao,


que vivia de fornecer suprimentos aos soldados.
Assim se estabeleceu uma imigrao, na sua maioria de mulheres
paraguaias que eram encontradas entre a populao subalterna e entre
os militares. (STEINEN, 1942). Os imigrantes paraguaios eram poucos,
no mais que 200, seguramente filhos, que acompanhavam as mes.
O sul de Mato Grosso havia se transformado em uma frente de
investimentos. O Governo imperial, diante da difcil situao que vivia a
Repblica vizinha, optou por tirar proveito dela. Para resolver o problema
crnico da ausncia de mo-de-obra, autorizou o Consulado brasileiro
em Assuno a emitir passagens somente de ida para que os paraguaios
pudessem deslocar-se para Corumb. (WILCOX, 1992).
Para se ter uma idia do rpido crescimento de Corumb e Ladrio,
basta consultar o mapa estatstico de 1864, o censo de 1872 e as informaes prestadas por Joo Severiano da Fonseca em visita a Corumb em
1877 e 1878.
No relatrio de 1864, da lavra do tenente-coronel Porto Carrero,
consta que em Corumb havia:
Casas de pau-a-pique edificadas
Casas de pau-a-pique em construo
Ranchos cobertos de palha

36
29
109

A populao estimada era de 1.315 almas. (PORTO CARRERO


apud FONSECA, 1986, p. 315-316, V. 1).
Pelo censo de 1872, a populao de Corumb atingiu 3.361 almas,
e em 1878, com a contribuioparaguaia37, chegou casa de 8.000, qua-

se triplicando em apenas seis anos. (FONSECA, 1986, V. 1).

37 A contribuio paraguaia refere-se basicamente a mulheres que acompanhavam os soldados


brasileiros que estiveram prestando servios em Assuno, o contingente masculino no
exedeu a duas centenas.

263

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Com esse expressivo aumento da populao e a remoo das tropas de ocupao da cidade de Assuno para Corumb, a regio tomou
um novo impulso, elevando o nmero de casas para 870 ao todo:
Em Corumb
Casas cobertas de telha
Casas cobertas de telha em construo
Casas cobertas de zinco
Casas cobertas de zinco em construo

455
25
51
9

Em Ladrio
Casas cobertas de telha
Casas cobertas de telha em construo
Casas cobertas de zinco
Casas cobertas de zinco em construo
Totais
TOTAL GERAL

251
43
29
786

7
84
870

Fonte: (FONSECA, 1986, p. 315, V. 1).

A livre navegao do rio Paraguai e o rpido aumento da populao contriburam para um intenso desenvolvimento do comrcio local,
atraindo um grande nmero de comerciantes, que se fixaram em Corumb e estruturaram os laos comerciais com as cidades de Buenos Aires e
Montividu de onde vinha a maioria dos produtos ali consumidos.
Por outro lado, a entrada de alguns poucos imigrantes paraguaios
do sexo masculino foi extremamente benfica para o aceleramento das
obras do Arsenal da Marinha de Ladrio, as quais ocupavam centenas de
operrios que para aquela vila haviam se dirigido.
Joo Severiano da Fonseca, em visita regio, registrou:
Mas no debalde que se aglomera assim um povo de imigrantes,
a mor parte ociosa e parasita. .../ Em breve, tanto ai como na vila,
viram-se as ruas cheias de mendigos, uns enfermos e estropiados,
outros apenas afetados da preguia, esmolando a caridade pblica;
e a misria tocou a seu auge, quando, de um lado o governo, por
foradas economias, viu-se obrigado a suspender as obras do
264

Paulo Marcos Esselin

arsenal e despedir centenas de empregados; e de outro a retirada


para Cuiab de parte da tropa, que teve de abandonar o seu sqito
por no caber nas embarcaes que a conduziam. (FONSECA,
1986, p. 317, V. 1).

Embora florescente, a economia porturia de Corumb no foi


vigorosa o suficiente para absorver todos os imigrantes que rumaram
para aquela praa em busca de trabalho e de uma vida melhor, tanto que
muitos deles tiveram que viver da caridade pblica. Por outro lado, a interrupo das obras pblicas do Arsenal da Marinha levou dispensa de
um grande nmero de trabalhadores, o que agravou ainda mais a situao
social no s dos imigrantes como tambm da populao como um todo.
Alm disso, parte das tropas do Exrcito estacionadas em Corumb foram enviadas para Cuiab, levando com elas os viandeiros que as seguiam
desde Assuno.
Diante de tais fatos, o ritmo do comrcio diminuiu e as autoridades
brasileiras, temerosas de conflitos sociais na regio, ofereceram gratuitamente passagens para que a populao paraguaia fizesse a viagem de
volta ao seu pas.
Dessa situao se aproveitaram alguns fazendeiros para a utilizao
desses imigrantes em trabalhos forados na regio. Um deles, o Baro de
Vila Maria, em ofcio ao governador da Provncia, assim se manifestou:
(...) apresentou-se ao Snr Ministro da Agricultura soliscitando
de S. Exa um apoio afim de conseguir emigrantes para auxiliar
o alevantamento das fazendas do supplicante, destruidas pelos
Paraguayos, visto a defficiencia de braos nesta Provincia. S.
Ex attenta a exposio do supplicante e as vistas que tem do
melhoramento desta localidade, auctorizou ao supplicante que
por si ou por entermedeo de uma associao, procurasse conseguir
emigrantes, na qual empreza o Governo no podia tomar a iniciativa,
porem que daria de ajuda de custa a quantia de cincoenta mil reis
por cada um que recolhesse para esta Provincia. Empregando,
pois, o supplicante nesta diligencia os seos exforos, conseguio
trazer de Assumpo trinta e tantos Paraguayos, pelos quaes teve
de pagar um conto e setecentos mil reis de passagem, por no
265

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

haver accommodao nos vapores da Companhia.38 (Officio do


BARO de VILLA MARIA ao Presidente da Provincia de Mato
Grosso, 1872, sp.).

Os imigrantes trabalhavam escoltados pelos soldados do 2 Batalho de Artilharia a P. A justificativa para manter as tropas supervisionando o trabalho era a de impedir as fugas sem que fossem pagas as
despesas da viagem. Certamente para o Baro de Vila Maria os trabalhos
forados justificavam-se pelo fato de que, anos antes os soldados do Exrcito guarani haviam, durante a guerra destrudo suas propriedades.
Mesmo iniciativas como as do Baro de Vila Maria no conseguiram manter os paraguaios em solo sul-mato-grossense, tanto que no ano
de 1879, a populao de Corumb tinha sofrido uma grande reduo de
8.000 para 4.350, e a de Ladrio, de 3.000 para 2.000 almas.
A dcada de 70 do sculo XIX foi caracterizada como um perodo
de reorganizao da Provncia. O Governo imperial no s tomou medidas administrativas para estimular a economia da regio como tambm
liberou a navegao do rio Paraguai at a Vila de Corumb para embarcaes de qualquer origem, com a perspectiva de permitir o crescimento da
economia porturia da cidade de forma que seus ganhos fossem estendidos por toda a regio da fronteira.
No entanto, esse foi um perodo marcado por profundas dificuldades econmicas. As contas da Provncia apresentando dficits fiscais,
ano aps ano, a colocavam no caminho da insolvncia: no balano provisrio do exerccio de junho de 1876 a junho de 1877, o dficit alcanou
28:199$959 ris; no ano seguinte, embora houvesse melhora no desempenho das contas pblicas, foi registrado um novo dficit de 17:805$403 ris.
Os salrios dos servidores pblicos se mantinham em atraso, assim
como muitos dos credores da Fazenda Pblica no conseguiam receber
seus crditos.

38 Officio do Baro de Vila Maria dirigido ao Presidente da Provncia de Mato Grosso, Corumb
21 de Abril de 1872 Cx 1872. APMT. Cuiab

266

Paulo Marcos Esselin

A arrecadao, no exerccio de 1879, apresentou nmeros muito


piores do que os dos anos anteriores.39 (PEDROSA, 1878).
Receita prevista
Despesa
Dficit

170:018$800
269:034$791
98:853$991

Essas incertezas econmicas da Provncia levaram o Presidente a


afirmar:
E comprehendeis perfeitamente que se as despezas decretadas
excederem sempre as receitas arrecadadas, a provncia, com o seu
oramento assim desequilibrado, de dfict em dfict crescente
tendera para a insolvabilidade, caminhando de modo inevitavel
para a banca rota.40 (PEDROSA, 1878, sp.).

Para remediar esses crnicos saldos de contas negativas registradas, o Tesouro Nacional transferia recursos que permitiam igualar as receitas s despesas. S no ano de 1878, foram enviados 1:000.000$000 ris,
o que garantiu ao Governo colocar em dia alguns dos pagamentos em
atraso.41 (PEDROSA, 1878).
A Provncia permaneceu dependendo do Governo imperial por
muito tempo ainda, at que as receitas fiscais com o crescimento da produo interna passaram a cobrir as despesas.
Mesmo com todas as dificuldades, a invaso paraguaia em solo
mato-grossense produziu profundas modificaes econmicas, transformando completamente a face da Provncia. O trmino da guerra deu
grande impulso fixao de novos fazendeiros na rea central e meridional do Pantanal.

39 FALLA com que o Exm Snr Dr Joo Jose Pedrosa Presidente da Provincia de Mato Grosso
abrio a 1 sesso da 22 Legislatura da respectiva Assembla no dia 1 de novembro de 1878.
40 FALLA com que o Exm Snr Dr Joo Jose Pedrosa Presidente da Provincia de Mato Grosso
abrio a 1 sesso da 22 Legislatura da respectiva Assembla no dia 1 de novembro de 1878.
41 FALLA com que o Exm Snr Dr Joo Jose Pedrosa Presidente da Provincia de Mato Grosso
abrio a 1 sesso da 22 Legislatura da respectiva Assembla no dia 1 de novembro de 1878.

267

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

As comunidades indgenas passaram por um processo de completa


desagregao; sem alternativa, os grupos remanescentes tiveram que enfrentar o trabalho, muitas vezes escravo, nas fazendas que se organizaram.
A imigrao masculina paraguaia logo aps o fim da guerra foi
insignificante. S mais tarde, quando a populao se recuperou das perdas com a guerra, foi que muitos cidados daquele pas comearam a
entrar por toda a Provncia, contribuindo decisivamente para a formao
econmica, social e cultural no s do Pantanal como tambm de todo o
Estado do Mato Grosso.

5.3. O Crescimento do Capital Financeiro, as Exportaes


de Capitais e as Transformaes na Fronteira
A Revoluo Industrial, que comeou na Inglaterra em fins do sculo XVIII e se estendeu pelo sculo XIX, foi, durante algum tempo,
fenmeno exclusivamente ingls.
Com a introduo da maquinaria a vapor como fonte de energia
no processo de produo, o desenvolvimento do sistema capitalista verificou-se em ritmo extremamente acelerado. A incorporao de alta tecnologia e a associao do trabalho com a cincia permitiram que conquistas
revolucionrias fossem sendo cada vez mais aplicadas na linha de montagem das indstrias. Os novos descobrimentos tcnico-cientficos iam
sendo utilizados pelos capitalistas para, de tempo em tempo, reequipar
as indstrias, o que gerou o aumento das foras produtivas e barateou a
mercadoria. A revoluo nos transportes, com as importantes invenes
como a do navio a vapor e a locomotiva, uniu mais estreitamente a economia de todos os pases do mundo, colocando ao alcance da explorao
capitalista as mais distantes regies da terra.
No entanto, nem todos os capitalistas tinham acesso em igual medida nova tecnologia por no possurem recursos financeiros para aplicao na linha de produo de suas empresas. As novas conquistas da
cincia e da tcnica, devido ao seu alto custo, eram acessveis somente aos
grandes industriais.
268

Paulo Marcos Esselin

Utilizando recursos tcnicos mais sofisticados, os grandes capitalistas estavam em condies de vender as suas mercadorias mais em conta
do que os seus concorrentes. Assim, aproveitando-se dessa vantagem, os
detentores de uma base tecnolgica mais avanada iam arruinando os
pequenos e absorvendo as suas empresas.
Por outro lado, nessa primeira fase de desenvolvimento do sistema
capitalista, quando predominou a livre concorrncia, nos mais distintos
ramos econmicos, havia milhares de produtores dispersos que no se
conheciam, produzindo para um mercado ignorado e concorrendo entre
eles. No existia qualquer controle da produo. A lgica que preside o capital o lucro, assim, nessa fase, era impossvel promover o planejamento
do sistema capitalista. Era a lei da oferta e da procura que fazia o preo
da mercadoria subir ou descer. Produzindo cada vez mais com o objetivo
de aumentar suas margens de lucro, o produtor conduzia inevitavelmente
todo o sitema a grandes crises em decorrncia da superproduo.
As crises marcadas por uma oferta maior que a procura, inerente
ordem capitalista, significava que a produo superava todas as necessidades dos mercados, o que redundava na queda do preo da mercadoria,
que por sua vez implicava no desligamento da mquina, interrompendo a
produo e, conseqentemente, levando ao desemprego e a uma retrao
do mercado, devido reduo da massa salarial circundante responsvel
pela mais-valia.
Essas crises cclicas promoveram um processo seletivo entre os
prprios capitalistas. Sobreviveram a elas os mais fortes, ou seja, aqueles
que detinham mais capital e que podiam resistir queda do preo da mercadoria, enquanto os pequenos foram desaparecendo, absorvidos pelos
primeiros.
Por outro lado, os capitalistas, movidos pela lgica que preside o
sistema, o lucro, utilizavam-se dos instrumentos da concorrncia para levar falncia o seu competidor.
Todos os estratagemas de mercado eram utilizados para esse fim,
como o de baixar os preos das mercadorias, inviabilizando o negcio
do concorrente, que no podia fazer o mesmo. Para isso, o produtor ti269

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

nha que continuar evoluindo tecnologicamente na linha de montagem de


sua indstria. A revoluo das mquinas-ferramentas permitia aumentar
a velocidade nessa linha, e, conseqentemente, essas inovaes permitiam
uma produo muito maior, alm de que extraa do trabalhador quase
que a mais-valia absoluta, reduzindo, assim, drasticamente, a jornada de
trabalho na qual era pago o capital varivel, podendo abaixar ainda mais
os preos.
Aproveitando-se dessa situao de superioridade tcnica, os grandes capitalistas iam arruinando mais pesadamente os pequenos, apossando-se de seus capitais e ficando mais fortes ainda.
Esse fenmeno de concentrao da produo e constituio dos
monoplios com caractersticas prprias se estendeu a alguns pases da
Europa e aos Estados Unidos da Amrica.
Em meados do sculo XIX, a poltica da livre concorrncia defendida pela Inglaterra foi sendo rejeitada em diversos pases como Estados
Unidos da Amrica, Blgica, Frana, Rssia, Alemanha, que passaram
a adotar as tarifas protecionistas, garantindo o mercado interno s suas
respectivas indstrias. Com isso, os industriais ingleses foram perdendo
mercado para os seus produtos, passando a enfrentar srias dificuldades.
Os melhores clientes da Inglaterra j no mais precisavam comprar
produtos daquele pas, pois j podiam produzi-los para atender as suas
necessidades internas e at export-los.
Protegidos pelas tarefas protecionistas, indstrias incipientes
transformaram-se em indstrias gigantescas.
As crises cclicas do sistema, o aumento da velocidade na linha
de montagem das empresas atavs do emprego sistemtico da cincia e
da tecnologia, o uso por parte de alguns pases de tarifas alfandegrias
protecionistas e a concorrncia predatria entre os capitalistas fizeram
com que o capital maior derrotasse o menor, saindo da luta ainda mais
fortalecido.
Esse conjunto de fatores contribuiu para que o capitalismo da livre concorrncia se transformasse em monoplio, com a concentrao da
produo e a centralizao do capital.
270

Paulo Marcos Esselin

Quando, em 1870, havia se encerrado a Guerra do Paraguai, o


mundo estava entrando no perodo dos trustes e cartis. No havia mais
lugar para os pequenos negcios, que foram esmagados pelos grandes
ou com eles se fundiram para fazer um negcio ainda maior. Por toda a
Europa e pelos Estados Unidos, foram registradas fuses; concentraes
industriais gigantescas se formaram buscando o monoplio. O nmero
dos capitalistas diminua, ao mesmo tempo que aumentava o volume de
seus capitais e de seus negcios.
Todos os ramos da produo iam caindo em mos de um pequeno
nmero de grandes empresas, o que facilitava um acordo entre elas para
se associarem e elevarem o valor de suas mercadorias, aumentando seus
lucros ou desbancando outras empresas do mercado, estabelecendo assim
o monoplio no setor.
Essas associaes monopolistas foram denominadas trustes, sindicatos ou cartis.
(...) essas combinaes varreram todos os pases capitalistas
adiantados durante as duas dcadas aproximadamente, que
cercaram a passagem do sculo, e provocaram uma modificao
qualitativa no carter da produo capitalista. A livre concorrncia,
que fora o carter dominante (embora no exclusivo) do mercado
capitalista, foi definitivamente superada pelos vrios graus de
monoplio, como trao dominante. (SWEEZY, 1976, p. 295).

A materializao dessas aes aconteciam atravs do estabelecimento de acordos sobre as condies de venda, prazos de pagamentos,
diviso de mercados, fixao de preos e quotas de produo.
Pari passu ao processo de concentrao que ocorreu com a indstria, fenmeno semelhante aconteceu com os bancos. Os grandes conglomerados bancrios foram gradativamente absorvendo os menores, aumentando o volume de seus capitais e de seus negcios. Os bancos foram
adquirindo particular importncia: de intermedirios nos pagamentos
tornaram-se receptadores de todo o dinheiro livre em circulao de determinado pas. Esses capitais eram colocados disposio do investidor
271

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

que deles necessitava para reaparelhar sua empresa, torn-la mais competitiva ou mesmo para financiar uma nova.
(...) os bancos, devido a sua posio estratgica na emisso e venda
de novas aes, desempenham um papel peculiarmente importante
na formao de sociedades annimas, e o mesmo se aplica fuso
de empresas j existentes. Os bancos conservam para si uma parte
principal do lucro do organizador, nomeiam seus representantes
para participar da direo de empresas e exercerem grande
influncia sobre as polticas adotadas. (SWEEZY, 1976, p. 296).

Manejando recursos incomensurveis, os banqueiros passavam


a exercer domnio sobre as indstrias s quais forneciam crdito, como
tambm adquiriam suas aes, transformando-se, em alguns casos, em
scios ou mesmo em donos. Era comum que membros da diretoria
do banco figurassem como conselheiros de grandes conglomerados
industriais.
O processo de concentrao dos bancos tornou-se flagrante. Tanto
que Lenine constatou: Em fins de 1909, os nove grandes bancos berlinenses, contando com os bancos a ele ligados, controlavam 11.300 milhes de marcos, isto , cerca de 83% de todo o capital bancrio Alemo.
(LENINE, 2 ed., 1982, p. 598, V. 1).
Concomitantemente ao processo de concentrao da produo e
dos bancos aconteceu a fuso dos capitais industrial e bancrio, dando
origem ao capital financeiro.
Podem dispor do capital unicamente por intermdio do banco,
que representa, para eles, os proprietrios desse capital. Por outro
lado, o banco tambm se v obrigado a fixar na indstria uma
parte cada vez maior do seu capital. Graas a isso, converte-se,
em propores crescentes, em capitalista industrial. Este capital
bancrio por conseguinte, capital sob forma de dinheiro - que por
esse processo se transforma de facto em capital industrial, aquilo
a que chamo capital financeiro. Capital financeiro o capital que
se encontra a disposio dos bancos e que os industriais utilizam.
(HILFERDING apud LENINE, 2 ed., 1982, p. 610, V. 1).
272

Paulo Marcos Esselin

A fuso do capital bancrio com o industrial conduziu a uma acumulao que alcanou propores gigantescas e estabeleceu enormes excedentes nos pases industrializados. O que distinguia o velho capitalismo da livre concorrncia era a exportao de mercadorias, pois o que
caracterizava o capitalismo do fim do sculo XIX e incio do XX, no
qual comeava a ganhar corpo o monoplio, era a exportao de capital.
A possibilidade de exportao de capitais era possvel para os pases atrasados e para as colnias, por j estarem incorporadas na circulao
do capitalismo mundial, j disporem de alguma infra-estrutura e terem
asseguradas as condies elementares para o desenvolvimento da indstria. Nessa fase de desenvolvimento que atingiu a sociedade capitalista, o
capital adquiriu uma fluidez muito grande, tornando mais fcil sua movimentao a nvel internacional.
H nesse processo uma complementariedade: as economias dos
pases perifricos foram submetidas s polticas econmicas do centro
e desempenharam um papel importante. Os governos dos novos pases
independentes, frente necessidade de promover o desenvolvimento interno de suas economias mas no dispondo de recursos para faz-lo, recorriam aos investimentos externos, importando capital. Do outro lado,
os investidores estrangeiros viam essa oportunidade com bons olhos, j
que os investimentos ali realizados eram mais bem remunerados.
Foi justamente para essas regies, que no dispunham de capitais
prprios para custear o seu desenvolvimento, que as potncias imperalistas se lanaram numa corrida desenfreada por lucros. Os pases industrializados como a Frana, Alemanha, Itlia, Inglaterra, Blgica, Estados
Unidos, atravs de seus trustes e cartis, partiram em busca da conquista
do mundo procurando colocar nas colnias seus produtos, exportar capitais e controlar as fontes de matrias-primas. Nesse contexto, a periferia
participava do mercado mundial ofertando matria-prima e produtos alimentcios e recebendo capitais para modernizar-se.
Foi por esse caminho que capitais ingleses, franceses, alemes, belgas, entraram no Brasil, promovendo intenso processo de modernizao
do pas e dotando-o de uma infra-estrutura que atendia aos interesses
273

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

do capital financeiro internacional. Esse foi um perodo de intenso fluxo comercial exportador que beneficiou a agricultura pela expanso do
mercado europeu e desenvolvimento acelerado do capitalismo industrial.
A guerra contra o Paraguai, embora o Brasil estivesse ao lado das
foras vitoriosas, deixou um saldo trgico: 33 mil mortos e custos que
alcanaram 614.000 contos de ris, equivalente a quase onze oramentos
do Imprio, se tomado o do ano de 1864, cujo valor foi de 57.000 contos
de ris. (DORATIOTO, 2002).
As conseqncias foram extremamente nocivas para o errio, o
que levou ao desequilbrio do oramento, obrigando o tesouro a constantes emisses e a contrair novos emprstimos no exterior.
De 1863, um ano antes da guerra, a 1871, um ano depois, o Pas
recorreu a bancos ingleses para cobrir dficits da dvida flutuante e amortizaes de emprstimos anteriores que representaram 18.979.700, com
taxas de juros em torno de 4,5% e 5% a.a. (NORMANO, 1939).
Leon Pomer enfatizou que, ao terminar a guerra, o Brasil, exaurido economicamente, recorreu a emprstimos em Londres, contraindo
dvidas que montavam 45504.100 entre 1871 e 1889. (POMER, 1980).
Na verdade, apesar da guerra e da crnica dependncia dos capitais extrangeiros, o Pas atravessou uma fase de intensa prosperidade,
sobretudo a partir da dcada de 1860, que em nada lembrava o Primeiro
Reinado, com sensvel melhora nas finanas principalmente a partir do
instante em que o caf assumiu a liderana das exportaes, alterando
completamente a situao da balana comercial, que se manteve deficitria por toda a primeira metade do sculo XIX. O cenrio de guerra e os
esforos do Pas para derrotar o inimigo no impediram um processo de
intensa transformao econmica e social com a diversificao do comrcio e com impulsos positivos ao desenvolvimento da indstria. Esse foi
um perodo marcado pelo pleno desenvolvimento do mercado mundial
devido aos contnuos progressos industriais e a capacidade do capital em
promover o crescimento e acumulao.
A exportao atravs dos portos de Santos e Rio de Janeiro, escoadouros da produo cafeeira do centro-sul, em 1870, fim da guerra do Pa274

Paulo Marcos Esselin

raguai, alcanou duzentos milhes de quilos. Em 1889, a cifra se elevava


a trezentos e cinqenta milhes de quilos. A asceno foi extraordinria,
pois em 1835-40, a colheita anual atingira somente quarenta milhes de
quilos. (SODR, 2 ed., 1998).
Na dcada de 1870, a produo brasileira de caf representava
49,09% da mundial, enquanto na dcada seguinte saltou para 56,63%,
atingindo 66,68% em fins do sculo XIX. (NORMANO, 1939).
Internamente, no decnio de 1870, o caf significou 56,6% das
exportaes brasileiras, seguido do acar com 11,8%; do algodo, 9,5%;
couros e peles, 5,6%; e borracha, 5,5%. (BASTOS, Apud NORMANDO, 1939, p. 139). Na dcada seguinte, o caf passou a representar 61,5%
das exportaes brasileiras; o acar, 9,9%; a borracha, 8%; o algodo,
4,2%; couros e peles, 3,2%.
Outros dois produtos brasileiros, a partir da metade do sculo
XIX, passaram a ser largamente consumidos na Europa, o que contribuiu
para elevar os supervits da balana de pagamentos. Eram eles: o cacau
e a borracha.
A Bahia, principal produtora brasileira do cacau, apresentou os seguintes nmeros, com relao s exportaes:
Ano
1870
1875
1880
1890
1900
1910

Toneladas
1.215
931
1.168
3.502
13.131
25.142

Fonte: (PINTO, 1971, p. 141 e 142).

A borracha, extrada da seringueira, rvore nativa da floresta amaznica, industrializada desde 1839 na Europa, passou a ser produto largamente exportado principalmente depois da dcada de 1870, com o desenvolvimento da indstria de veculos e da fabricao de pneumticos.
Pode-se abaixo acompanhar as exportaes brasileiras:
275

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Ano
1870
1880
1890
1900
1910

Toneladas
2.591
8.679
16.394
27.650
38.177

Fonte: (AMARAL apud PINTO, 1971, p. 142).

O desempenho da economia brasileira pode ser melhor aquilatado


na balana de comrcio (1861-1900), apresentando-se deficitria em apenas trs exerccios no perodo de 40 anos:
Anos
1861/62
1862/63
1863/64
1864/65
1865/66
1866/67
1867/68
1868/69
1869/70
1870/71
1871/72
1872/73
1873/74
1874/75
1875/76
1876/77
1877/78
1878/79
1879/80
1880/81
1881/82
1882/83
1883/84

276

Export.
120,7
122,4
131,1
141,0
157,0
156,2
185,3
207,7
197,0
166,9
193,4
215,8
190,0
208,4
178,8
195,5
187,4
206,4
221,9
225,8
209,8
197,0
217,0

Import.
110,5
99,1
125,6
131,7
137,7
145,0
140,6
168,5
168,2
144,7
162,2
161,4
160,0
167,5
171,6
153,8
160,9
162,3
172,7
181,0
182,2
190,2
202,5

Balano
+ 10,2
+ 23,3
+ 5,5
+ 9,3
+ 19,3
+ 11,2
+ 44,7
+ 39,2
+ 28,8
+ 22,2
+ 31,2
+ 54,4
+ 29,2
+ 40,9
+ 7,2
+ 41,7
+ 26,5
+ 44,1
+ 49,2
+ 44,8
+ 27,6
+ 6,8
+ 14,5

Paulo Marcos Esselin

1884/85
1885/86
1886/87
1888
1889
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900

226,2
191,3
365,5
212,5
216,6
417,7
432,3
606,0
601,0
696,3
694,0
669,7
636,2
575,7
946,9

178,4
201,5
310,8
260,9
316,2
322,6
382,0
328,5
341,5
470,0
533,9
557,4
563,0
374,4
334,1

+ 47,8
10,2
+ 54,7
48,4
99,6
+ 95,1
+ 50,3
+ 277,5
+ 259,5
+ 226,3
+ 160,1
+ 112,3
+ 73,2
+ 201,3
+512,8

Fonte: (SODR, 1964, p. 82).

Os contnuos supervits na balana comercial proporcionaram um


maior equilbrio das contas externas, tanto que os novos emprstimos
deixaram de ser exclusivamente para cobrir dficits e passaram a ser utilizados na melhoria da infra-estrutura do Brasil.
Com o equilbrio interno e os investimentos e emprstimos estrangeiros houve um intenso processo de modernizao no Pas, com
excepcional crescimento do fluxo exportador e importador.
No perodo de 1864 a 1870, foram construdos 1.000 km de rede
ferroviria. (SODR, 3 ed., 1964). Em 1889, a referida rede alcanava
9.583 km. Internamente, a criao dessa infra-estrutura permitiu ampliar
as ligaes, torn-las mais rpidas, aumentar as reas de explorao agrcola e o mercado interno, possibilitando que a mercadoria circulasse mais
rapidamente e por isso tivesse seu preo diminudo sensivelmente.
A expanso da rede de trilhos no Brasil tinha forte ligao com o
setor agrrio exportador. Como as relaes capitalistas no Pas eram ainda muito atrasadas, ligadas basicamente produo de matrias-primas
e produtos agrcolas voltados exportao, os trechos que foram sendo
277

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

construdos procuravam beneficiar as regies cujos artigos tinham larga


aceitao no mercado internacional, como o caf, acar, couros, borracha, ou seja: os primeiros traados vieram para atender regies cuja
atividade econmica j estava consolidada.
A Inglaterra desempenhou papel relevante no processo de instalao da rede ferroviria brasileira, proporcionando os emprstimos necessrios aos empreendimentos como tambm a tcnica para o desenvolvimento e melhoria da infra-estrutura do Pas.
Alm da Inglaterra, houve a participao de outros pases nas construes ferrovirias brasileiras, como possvel identificar no relatrio do
Cnsul austro-hngaro em So Paulo: A construo dos caminhos-de-ferro brasileiros realiza-se, na sua maior parte, com capitais franceses,
belgas, britnicos e alemes (...). (LENINE, 1982).
As dvidas foram contradas pelo Imprio e, posteriormente, pela
Repblica, principalmente para atender a construo de ferrovias, ampli-las e melhor-las e para o reaparelhamento dos portos e modernizao
das grandes cidades, conforme relao abaixo:
Ano

Valor
nominal

Taxa
Juros

Fim a que se destina

Banqueiro

1883 4.599.600

4,5%

1886 6.431.000

5%

1888 6.297.300

4,5%

1889 19.837.000

4%

1895 7.442.000

5%

1898 8.613.717
1901
1902 16.619.320
1905

5%

Para melhoria de Estradas de FerN. M. Rothschild


ro, fornecimento de guas da capiSons
tal e outros servios.
Para cobrir dficits e dvida flutuid.
ante.
Para construo e prolongamento
id.
de Estradas de Ferro Federaes.
Converso.
id.
Para a E.F. Este de Minas com a
id.
garantia do Thesouro Nacional.
Funding Loan
id.

4%

Resgate de E. Ferro adquiridas.

278

id.

Paulo Marcos Esselin

1903
8.500,00
1905
1906 1.100.000

5%
5%

1910 1.000.000

4%

1908 4.000.000

5%

1910 10.000.000

4%

1911 4.500.000

4%

1911 2.400.000

4%

1913 11.000.000

5%

1908
100.000.000
1909

5%

1909 40.000.000

5%

1910 100.000.000

4%

1911 60.000.000

4%

Para melhoramentos do Porto do


Rio de Janeiro.
Para Lloyd Brasileiro.
Para Lloyd Brasileiro.
Para o melhoramento de fornecimento de gua para a Capital Federal e construo de estradas de
ferro federaes.
Converso do Resgate de ttulos
da E.F. Este de Minas e de emprstimo do Est de So Paulo.
Para melhoramento do Porto do
Rio de Janeiro.
Para estradas do Cear.
Para os portos de Pernambuco,
Paranagu e Corumb e a E. De
Ferro Oeste de Minas.

id.
id.
id.
id.

id.
id.
id.
id.

Banque de Paris and


Pays Bas Societ
Generale CampPara a E. Ferro Itapura Corumb.
ti or Nationale
dEscompte.
Banque Franaise
Para melhoramentos do Porto de pair Le Comerce et
lindustrie, Credit
Recife.
Mobilier Franais.
Credit Mobilier
Para Est. De Ferro de Goyaz
Franais.
Casse Commerciale
Para as estradas da Bahia
et industrialle.

Fonte: (NORMANO, 1939, p. 211).

Embora o capital financeiro europeu tenha tido papel preponderante no surto ferrovirio brasileiro, o conjunto das estradas paulistas foi
construdo com capitais oriundos do complexo cafeeiro e da disponibilidade de grandes capitais derivados do trfico negreiro, suspenso a partir
de 1852.
279

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

O fim da guerra com o Paraguai coincide com o surto ferrovirio


no Brasil. As hostilidades na fronteira de Mato Grosso deixaram claro
para as autoridades brasileiras que o Imprio precisava buscar recursos
para estabelecer comunicaes mais rpidas e eficientes com a imensa
rea do Centro-oeste para, em caso de guerra, proporcionar deslocamentos dos equipamentos militares e de soldados mais rapidamente42 e promover a colonizao e o desenvolvimento da regio, drenando para os
portos do Atlntico as matrias-primas e alimentos produzidos na regio,
alm de possibilitar o desenvolvimento de novas atividades econmicas
e assegurar ligaes mais estreitas com os pases vizinhos e o transporte
de passageiros.
No comeo da dcada de 1870, muitos projetos que ligavam por
via frrea So Paulo a Mato Grosso j eram constantemente debatidos
nos crculos governamentais ou fora deles.
Essa formidvel obra de penetrao pelo territrio de Mato Grosso
coube na parte final, Noroeste do Brasil, com que se realizou
lentamente uma velha aspirao alimentada por debates sucessivos,
(...) J em 1876, notvel comisso de engenheiros, presidida pelo
Visconde de Rio Branco, se debateu s voltas com dezesseis dles,
to discordes, lembra Euclides da Cunha, que, malgrado a valia
de juzes daquele porte, o controvertido tema no teve decisivo
desfecho e chegou ao nosso tempo (1905), disparatando em
trinta pareceres. Foi do Clube de Engenharia, do Rio de Janeiro,
que partiu o ltimo e mais vigoroso impulso para sua realizao
quando, em outubro de 1904, deliberou indicar ao govrno como
problema nacional inadivel o traado de um caminho de ferro
que, partindo de So Paulo dos Agudos (ou de Bauru), transpondo
o Paran e o Urubupunga, se dirigisse a um ponto do rio Paraguai
adequado a encaminhar para o Brasil o comrcio do sudeste
boliviano e norte paraguaio, permitindo ao mesmo tempo rpidas

42 O fim da guerra com o Paraguai coincide com a Guerra Franco-Prussiana na Europa, cuja
grande novidade fora a utilizao com extremo sucesso da rede ferroviria pelo exrcito de
Bismark, mobilizando e concentrando milhes de homens na fronteira, como nunca antes
ocorrera. (MEIRA MATTOS, 2003, p. A3). Certamente, esses acontecimentos influenciaram
o governo brasileiro e o estimulou a construir mais tarde a Rede Ferroviria Noroeste do Brasil.

280

Paulo Marcos Esselin

comunicaes do litoral com Mato Grosso, independentes do


percurso em territrio estrangeiro. Fundada a Companhia Estrada
de Ferro Noroeste do Brasil, de capitais mistos, brasileiro e francobelga, com concesso de garantia de juros pelo govrno federal,
em 1904, e incorporada por Teixeira Soares e Pereira da Cunha,
iniciou-se em 1905 a construo da estrada, cujo trecho de Bauru
a Itapura essa emprsa inaugurou em 1910 (...). (AZEVEDO, 2
ed., sd., p. 69-70).

A ferrovia de Bauru a Porto Esperana, no Paraguai, que se iniciou


em 1905, s ficou pronta e em condies de trfego em 1914.
Por outro lado, o mesmo processo aconteceu com a navegao:
(...) de 1839 a 1874, o nmero de viagens aumentou de 50% sob a
bandeira brasileira, e de 101% sob o pavilho de outras naes, a
tonelagem cresceu 130% no primeiro caso, e de 414% no segundo.
Em 1859, quase todos os barcos eram veleiros; ainda em 1873,
somente 29% eram movidos a vapor. (CALGERAS, 1945, p. 244).

Os navios a vela estiveram em maior nmero do que os movidos a


vapor at a dcada de 70 do sculo XIX. Foi somente a partir da, e sobretudo de 1880 em diante, que a frota foi dando lugar aos mais modernos.
Junto com o desenvolvimento das linhas frreas e da navegao
a vapor instalaram-se as primeiras linhas telegrficas e os cabos submarinos. Os portos foram organizados e reaparelhados, uma vez que eram
at ento meros ancoradouros. (SODR, 1978, p. 88).
No que diz respeito indstria, foram implantadas no decnio de
1860 sessenta e duas empresas, vinte companhias de navegao a vapor,
oito de minerao, trs de transporte urbano, duas de gs e oito estradas
de ferro. (PRADO JUNIOR, 5 ed., 1959).
Foi um perodo em que o Pas viu crescer as suas cidades, tirou
proveito do capital financeiro internacional para a explorao dos servios pblicos, transporte, fonte de energia e portos. Vieram os bondes, os
trens urbanos e as companhias de iluminao. Tais concesses foram feitas em virtude da ausncia de capitais nacionais interessados, sendo esses
campos de explorao entregues ao capital estrangeiro.
281

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Esse vento modernizador que tanto beneficiou o Imprio brasileiro no deixou de bafejar no Pantanal mato-grossense: enquanto aguardavam ansiosamente pelo trem, as autoridades procuraram desenvolver
a navegao.
A reabertura do rio Paraguai permitiu o contato direto da Provncia com as Repblicas sul-americanas platinas, como tambm o intercmbio com o Rio de Janeiro e o acesso ao Atlntico.
J em 1870, realizou-se em Montevidu uma licitao para a explorao de uma linha regular de navegao fluvial entre aquela capital
e Cuiab. A concorrncia foi vencida pela empresa Conceio e Companhia que, para esse fim, constituiu uma subsidiria, a Empresa Brasileira
de Paquetes a Vapor, tendo incio os servios de explorao da linha em
1871. (PVOAS, 1995, V. 1).
No ano de 1873, a Conceio e Companhia organizou uma nova
empresa, a Companhia Nacional de Navegao a Vapor, que incorporou
a Empresa Brasileira de Paquetes a Vapor, tendo com isso prolongado
suas linhas de navegao: uma primeira fazia o percurso de Montevidu
ao Rio de Janeiro; uma segunda, de Cceres a Assuno, passando por
Corumb.
Em 1884, o Lloyde Brasileiro mantinha linhas regulares tando de
cargas como de passageiros, ligando Corumb aos portos de Assuno,
Montevidu e Buenos Aires.
Essas companhias de cargas e passageiros colocavam a Provncia
em contato com o mundo. A intensidade e a regularidade dessa navegao
possibilitaram um surto de desenvolvimento para Mato Grosso. Embora
a Provncia tivesse uma populao extremamente rarefeita e por isso no
fosse uma grande consumidora de produtos platinos e europeus, a expanso do mercado se deu na perspectiva daquilo que a regio podia oferecer
de matrias-primas e alimentos.
A abertura de linhas regulares de navegao permitiu grande afluxo de comerciantes estrangeiros para a regio, negociantes de gado, couro e outras expedies cientficas. Mercadorias dos mais distantes pases
chegavam ao Porto de Corumb, no corao do Pantanal sul, e dele saam
282

Paulo Marcos Esselin

matrias-primas da terra, como peles, ipeca, charque, subprodutos do boi,


penas e mais tarde borracha e erva-mate. Era a que acontecia o transbordo das mercadorias para as embarcaes menores destinadas s cidades
ribeirinhas da Provncia, como Cceres, Cuiab, Miranda e Coxim. Os
grandes vapores da linha nacional no iam alm de Corumb, que recebia
as riquezas das frotas do mundo inteiro e depois funcionava como centro distribuidor da Provncia. Foi por essa condio que, alm das linhas
de navegao regulares, surgiram empresas armadoras organizadas por
comerciantes e empresrios dos portos regionais que conduziam passageiros e mercadorias por todo o alto e mdio Paraguai levando produtos
s pequenas cidades ou a determinados portos para atender fazendeiros
recm-estabelecidos e de l trazerem produtos produzidos na regio.
Dentre as principais empresas que operavam, destacavam-se: navegao a vapor Vierci Hermanos; Companhia Argentina de Navegao
Nicolas Minhanovich; Empresa de Navegao Teutonia; Empresa Corumbaense M. Cavassa Filho & Cia.; a grande firma comercial e Armadora Wanderley Bas & Cia.; Empresa Sul-americana Belga em Corumb,
Stofen, Schnack, Mulher e Cia.; Empresa Armadora Cacerense Jose Dulce & Cia.; Vicente Anastcio, de Miranda; os negociadores e armadores
mirandenses Pilades Rebu e Giasone Rebu; o armador corumbaense
Armindo Baptista de Azevedo; Firma Pereira, Carneiro & Cia., do Rio de
Janeiro; e ngelo Torres, de Corumb, representando a Empresa Saladeiro Baguari e Francisco Fanaya, de Cceres.
Herbert Smith, que em 1884 foi do Rio de Janeiro para Cuiab,
deixou registrado detalhes de sua viagem no trecho fluvial entre Corumb e Cuiab:
Os grandes vapores da linha nacional no vo alm de Corumb:
aqui transferiram-nos para o [vapor] Rio Verde, (...). Tinha uns 25
metros de cumprimento, e seis ou sete de largura entre a caixa
das rodas; metade do espao era occupado pela machina e pela
cozinha; havia um espao adiante para os passageiros de segunda
classe, e o salo comprehendia os 10 metros ou menos que
restavam, fechado apenas por cortinas dos lados, com um grande
283

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

banco que corria em torno, e uma longa mesa no centro. Acima de


tudo isto havia uma especie de segundo andar, em parte occupado
por um compartimento, em que estava um camarote de senhoras,
que media dois metros sobre cinco; dois quartinhos de apparato,
cada um com dois leitos, e dois quartos pertencentes aos officiaes,
quartos que geralmente so cedidos aos passageiros. O vapor
toma apenas passageiros, bagagens e malas, e depois de carregado
cala menos de um metro dagua. .../ Aos quarenta passageiros
que foram baldeados juntaram-se alguns de Corumb, incluindo
o Presidente e sua comitiva, [Presidente da Provncia de Mato
Grosso]; havia uns vinte de segunda classe; de sorte que, com os
empregados do vapor, iamos perto de noventa pessoas. Tinhamos
carvo para muitos dias; o poro, ou o que chamavam com este
nome, estava abarrotado de bagagem, e duas vaccas e um carneiro
foram accomodados entre os passageiros de seguda classe. .../
Fomos para bordo dispostos a arranjar-nos como pudessemos (...).
Ao jantar, empilhamo-nos junto mesa comprida do salo, e
noite all tomamos o nosso ch, em ambos os casos sendo to bem
servidos como no vapor grande. Acabado o ch, comearam os
criados a fazer as camas nos bancos que rodeavam o salo e em
outros da coberta: isto accomodou uns tantos passageiros, cada
um dos quaes ficava com a cabea ou os ps na cabea ou nos ps
do outro. Alguns deitaram-se na mesa, que, como mais larga que
os bancos, tornou-se objecto de rivalidade amigavel e de uma ou
duas disputas entre ns. O espao aproveitavel que ficava no salo
encheu-se de redes amarradas junto. Para chegar minha cama, que
era um banco na outra extremidade, tinha de ir me arrastando por
baixo de sete redes, retirando-me um pouco mais tarde, todas ellas
estavam occupadas. Como no podia avanar rojando de barriga,
procurei fazel-o de gatinhas, systema pelo qual minhas costas
entravam em contacto com os sete dormentes, que sem demora
acordavam e agradeciam em linguagem eloquente. (...) Pela manh,
iamos do banho nas duas banheiras que havia, no que levavamos
uma a duas horas; e como as senhoras s appareciam ao almoo,
vestiamo-nos com todo o vagar (...). (SMITH, 1822, p. 265-266).

As viagens em embarcaes de menor calado que partiam de Corumb para as demais cidades ribeirinhas eram ainda muito piores, sobretudo aquelas realizadas em igarits ou lanchas que faziam os mesmos
percursos dos pequenos vapores, conduzindo cargas e passageiros.
284

Paulo Marcos Esselin

Alem dos referidos vapores esto alguns Igaritez ou lanchas que


se emprego na conduo de cargas e alguns passageiros entre
Corumb e esta capital [Cuiab]. Estas lanchas no tem convez
abrigo as cargas com encerados, para os passageiros apenas ha
uma tolda asi armada sobre balaustres fixos nas bordas.
So do porte de 600 a 1000 @s e em numero de seis. Emprego-se
tambm 8 canoas na mesma... para igual fim ou antes entre o porto
de Cuiab e alguns sitios do rio abaixo.43 (CARDOSO JUNIOR,
1872, sp.).

Atravs da navegao, o Pantanal sul-mato-grossense foi incorporado ao mercado mundial. Em 1913, foi contrado emprstimo de
11.000.000 pelo Governo Federal para a modernizao de alguns portos, dentre eles o de Corumb, visando atender ao aumento dos negcios
locais. Foi criada a infra-estrutura adequada ao movimento realizado, beneficiando as construes e as condies de armazenagem.
Embora houvesse um surto de desenvolvimento do transporte, tanto naval como ferrovirio, por todo o Imprio, no interior da Provncia, as
dificuldades de locomoo e de escoamento dos produtos permaneceram
como um trao caracterstico dos problemas locais. As distncias entre as
sedes das fazendas e dos portos eram percorridos atravs das carretas44
puxadas a bois. Disso, reclamava o Presidente da Provncia em 1878:
A indstria de transporte ou de carreto ainda esta atrazadissima.
.../ Por terra as cargas so transportadas, em geral, sobre o dorso
de animaes bovinos, tambm aqui empregados como cavalgaduras
pelos fazendeiros; e por isso pode-se com propriedade dizer que

43 Relatrio com que o Exmo. Sr. Francisco Jos Cardoso Junior Presidente, da Provncia de Mato
Grosso, abriu a Assemblea Provincial. Cuiab em 1872. APMT. Cuiab. Manuscrito.
44 A carreta de bois utilizada no Pantanal por produtores ali estabelecidos tem caractersticas muito
peculiares. Um autor assim a descreveu A carreta pantaneira como chamada, diferencia-se do
carro mineiro por ser mais alta (previne as vazantes fundas), muito mais leve (apenas 2 juntas
de bois a puxam quando descarregadas) possui a janta (tala de ferro que envolve a roda) mais
larga (para que no penetre muito fundo na areia), no canta ( o canto produzido por um
dispositivo que emite som mais ou menos agudo, de acordo com a maior ou menor trao) a
exemplo do carro mineiro. (BARROS NETTO, 1979, p. 101).

285

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

o servio de transporte faz-se com a lentido do passo de boi.45


(PEDROSA, 1878, sp.).

Ainda na dcada de 1970, havia no Pantanal sul, 2.005 carros de


bois, o que torna possvel afirmar que no final do sculo XX, o carro de
boi continuava sendo o principal meio de transporte interno da regio.
Mesmo com essas dificuldades, em meados da dcada de 70 do
sculo XIX, comeou-se a perceber a presena do capital financeiro europeu em Mato Grosso.
Em 1895, constituiu-se na Anturpia a Compagnie des Produits
Cibils, que adquiriu e passou a explorar a Charqueada de Descalvado.46
Os negcios relativos borracha, que comearam a ganhar fora, atraram tambm capitais belgas, surgindo a Compagnie des Caoutchoucs du
Matto Grosso e a Albuna S. A. (STOLS apud ALVES, 1984, p. 49).
No comeo do sculo XX, diversas empresas estrangeiras se estabeleceram no Pantanal sul-mato-grossense para explorarem o criatrio
bovino:
Brazil Land Cattle, and Packing Company, com 763.568
ha. Corumb; The Brazilian Meat Company, com 5.000 ha.
Aquidauana; Fomento Argentino Sud-Americano, com 726.077
ha. Corumb; Fazenda Francesa, com 242.456 ha. Miranda; e
172.352 ha. em Corumb; The Miranda Estancia Company, com
219.506 ha. Miranda; Sud Amricaine Belge S. A., com 117.060
ha.; e SAR Rio Branco, com 549.156 ha. Corumb. (MARQUES,
1923, p. 156-157).

O interesse do capital financeiro internacional pelo criatrio bovino residia no s no aproveitamento da carne como tambm no de couro.
Como durante esse perodo ocorriam intensas disputas entre as potn-

45 FALLA com que o Exmo. Snr. Dr. Joo Jos Pedrosa Presidente da Provncia de Mato Grosso
abrio a 1 Sesso da 22 Legislatura da respectiva assembla no dia 1 de novembro de 1878.
APMT. Cuyaba. Manuscrito.
46 No item seguinte sero oferecidas maiores explicaes.

286

Paulo Marcos Esselin

cias imperalistas, ele foi caracterizado pela formao de grandes exrcitos


para manter os pases em guerra pela hegemonia mundial, ocasio em que
o couro ganhou extraordinrio valor comercial, j que no era possvel
organizar qualquer exrcito sem o largo emprego dessa matria-prima.
Praticamente, todo o equipamento conduzido por um soldado era
feito com couro: botas, mochila, cartucheira, invlucro para guardar armas, barracas, cinto, sela e arreio de animais.
O interesse do capital financeiro pela regio manifestava-se tambm na rea da extrao aurfera. Em 1902, a empresa australiana The
Transpacific Mining and Exploration Company, Limited comeou a operar com uma draga no rio Coxipo, prximo de Cuiab, com resultados
muito vantajosos. (LISBOA, 1909).
De 1905 a 1906, foram autorizadas a funcionar na Provncia de
Mato Grosso cinco empresas de minerao, todas fundadas em Buenos Aires com capitais ingleses. Eram elas: Mato Grosso Gold Dredging Company; The Cabaal Gold Dredging and Exploration Company;
The Brumado Gold Dredging and Exploration Company; Coxim Gold
Dredging Co e Diamantino Dredging Company. (LISBOA, 1909).
No sul do velho Mato Grosso, no local hoje conhecido como Campos de Vacaria, tem incio, em 1878, a explorao dos ervais nativos com
vistas ao fornecimento para o mercado platino, atravs da formao da
Companhia Matte Laranjeira, que tomou grande impulso em 1902, quando se associou a capitais argentinos e formou a Companhia Laranjeira,
Mendes e Cia., com sede em Buenos Aires.
Apesar de ser escassamente povoada, a Provncia de Mato Grosso
atraiu investimentos estrangeiros. Normalmente, o imperalismo prioriza
regies que tm maior densidade demogrfica, justamente para explorar
a fora de trabalho local, mas tem um critrio fundamental que no pode
ser desprezado que a busca incessante por fontes de matria prima, mesmo que no as explore, imediatamente, mas simplesmente para manter o
controle sobre elas.
No decorrer do ps-guerra com o Paraguai, o Baro de Vila Maria se deslocou Corte, no Rio de Janeiro, com o propsito de obter a
287

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

concesso para explorar a minerao do ferro no morro de Urucum, nas


proximidades de Corumb.47 No entanto, faleceu no decorrer da viagem
de volta, sem poder realizar seu projeto.
O Governo imperial estendeu viva do Baro a concesso para
explorar o ferro e outros metais, e ainda pela mesma poca, 1878-1882,
estendeu semelhantes concesses a J. B. Vieira de Carvalho e Vasconcellos, G. A. Gama e Francisco Couto da Silva, sem obter qualquer resultado positivo. Nenhuma indstria foi instalada, como nenhum estudo foi
desenvolvido para se verificar o valor das jazidas.
Em 1906, o Governo concedeu a explorao do minrio de ferro e
mangans Societ Anonyme dOugree Marihaye e Societ Anonyme
Metallurgique dEsperance Langdoz para a fabricao do ao, tendo a
se iniciado o processo de aproveitamento industrial daquelas jazidas com
capitais belga.
Coincidentemente, parte dos capitais que financiavam a construo da rede ferroviria era tambm belga. Mais tarde, quando concludo
o assentamento dos trilhos, os metais passaram a ser exportados tambm
pelo porto de Santos; inicialmente, eram conduzidos at o porto de Corumb e dali seguiam em vapores at Rosrio, na Argentina, ou Montevidu, no Uruguai, de onde eram levados para os mais longnquos pases.
A segunda revoluo industrial, marcada sobretudo pela concentrao da produo e pelo desenvolvimento dos transportes, diminuiu
distncias e aproximou as metrpoles europias dos emergentes pases
da Amrica, provocando profundas transformaes nos antigos centros
coloniais.
A regio pantaneira recebeu, no final do sculo XIX e comeo do
XX, grande impulso com a modernizao do porto de Corumb, a instalao da indstria da carne e siderrgica, a compra de grandes extenses
de terra por empresas estrangeiras. Tudo isso foi mudando as feies da

47 As montanhas do Urucum se localizam nas proximidades da cidade de Corumb; ainda nos


dias de hoje guardam extensas jazidas de ferro e mangans, aproveitveis industrialmente.

288

Paulo Marcos Esselin

regio. Em 1912, a iluminao pblica foi inaugurada em Corumb e


depois dela veio a rede de telefonia. (AMORIM, 1917). Em 1904, estava
concluda a ligao telegrfica do Pantanal, com a inaugurao da estao
de Corumb.
O Pantanal sul foi o grande beneficirio da expanso capitalista
que ocorreu na segunda metade do sculo XIX, com a internacionalizao da economia. A reabertura do rio Paraguai navegao permitiu intenso intercmbio comercial, como tambm o crescimento da economia
porturia e a penetrao de capitais estrangeiros tanto para o desenvolvimento da pecuria como para os transportes e a minerao.

5.4. O Substancial Crescimento do Rebanho Bovino e o


Desenvolvimento das Charqueadas
Durante o perodo da Guerra do Paraguai, poucas famlias permaneceram em suas propriedades. To logo foi anunciada a invaso, as
fugas se sucederam em massa; as cidades foram abandonadas e entregues
ao inimigo. No campo, o processo foi o mesmo: aqueles com mais posses
se dirigiram para Cuiab ou Santana do Paranaba, os de poucos recursos
se abrigaram na serra que circunda o Pantanal, e, dos que permaneceram,
muitos se engajaram nos exrcitos formados para deter o invasor, ficando
as fazendas abandonadas e o gado sem manejo.
Os rebanhos bovinos que estavam apascentados nessa grande rea
foram, em boa parte, apanhados; serviam para abastecer no s os exrcitos invasores como tambm a populao civil mato-grossense e assuncenha. Porm, a peste das cadeiras, que na ocasio atacou os eqinos,
permitiu que o gado bovino fosse se alongando e se juntando s grandes
manadas selvagens que h muito haviam se espalhado por todo o Pantanal, garantindo, assim, a sobrevivncia de considervel nmero de animais, de forma a tornar raro que alguma fazenda tivesse um nico animal
de sela para manejar o rebanho.
Protegido pela falta de eqinos e pela reduo do comrcio e do
consumo, uma vez que a populao abandonou praticamente todas as
289

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

reas do Pantanal Mato-grossense, palco da guerra, o gado bovino cresceu numericamente. Quando terminaram as hostilidades, ao retornar s
suas terras, os fazendeiros foram obrigados a recorrer ao mesmo estratagema que os seus antepassados utilizaram para juntar o gado bovino,
a bagualeao; no entanto, com maiores dificuldades devido falta de
cavalos. Aos poucos, os animais iam sendo juntados e as propriedades
rurais, reorganizadas. Os bois mansos, geralmente animais de carga, tornaram-se, por fora das circunstncias, animais de montaria; era com eles
que se fazia o manejo.
O desenvolvimento da atividade comercial em Corumb atravs
das casas de importao e exportao, geralmente entrepostos de Buenos
Aires e Montevidu, despertou o interesse de investidores estrangeiros
em expandir a indstria da carne em Mato Grosso.
Em 1885, estimava-se que havia em torno de 800 mil cabeas de
gado bovino em toda a Provncia48. (RAMOS FERREIRA, 1887). A falta
de cavalgaduras impedia um levantamento minucioso dos estoques; os
nmeros poderiam ser bem maiores.
A presena de enormes e baratos excedentes bovinos subutilizados
e a excelente posio de Mato Grosso para atender o mercado consumidor do Rio de Janeiro e do nordeste brasileiro estimularam a instalao
das charqueadas no fim do sculo XIX e no comeo do XX. A existncia
do mercado consumidor de charque e a livre navegao internacional dos
rios da Bacia Platina facilitaram o aproveitamento do gado bovino, pela
possibilidade de transportes mais rpidos e baratos e pelo interesse dos
investidores platinos. (MAMIGONIAN, 1986).
Esse perodo coincidiu com a crise da indstria do charque na Argentina e no Uruguai, devido ao rpido desenvolvimento nesses pases,
com vistas exportao de l, e criao de ovinos, que passaram a ocu-

48 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 Sesso da 26 Legislatura em Setembro
de 1887. Cuyaba. Manuscrito.

290

Paulo Marcos Esselin

par as pastagens antes destinadas pecuria bovina, abastecedoras das


charqueadas platinas que, alm disto, entraram em crise por causa da queda das exportaes de carne salgada ao Brasil, Cuba e Estados Unidos.
(PUIGGROS e DEFFONTAINE apud MAMIGONIAN, 1986, p. 48).
Por essas razes, houve um deslocamento de capitais platinos ligados exportao de charque, para a Provncia de Mato Grosso.
There were no local businessmen with sufficient capital at the time
in Mato Grosso, but wars end had attracted several merchants
upriver from Buenos Aires and Montivideo. Many had well placed
connections in these centers and access to credit not available to
their Matogrossense counterparts. (WILCOX, 1992, p. 137).

Assim, em 1873, um sdito argentino, Rafael Del Sar, estabeleceu


no Descalvado, municpio de Cceres, no Pantanal norte, prximo da
fazenda Jacobina, a primeira charqueada de Mato Grosso.
No incio do processo de produo, a indstria foi beneficiada pela
Assemblia Legislativa Provincial com iseno de tributos, por dois anos,
para todos os produtos produzidos, com exceo dos couros crs ou
sollas da xarqueada. (CORRA FILHO, 1926, p. 39). O gado, matria-prima do empreendimento, era adquirido do Sr. Joo Pereira Leite, proprietrio da fazenda Jacobina. O abate atingia cinco mil reses por ano,
compradas a 9.000 ris a cabea posta no curral. (CORRA FILHO,
1955, p. 34).
O nmero de cabeas abatidas manteve-se estvel por toda a dcada de 1870, embora a empresa dispusesse de condies para aument-lo.
O reduzido nmero de eqinos, devido peste das cadeiras, que dizimava
rebanhos inteiros, dificultava a tarefa de juntar o gado bovino, sobretudo
os selvagens.
Em relatrio apresentado por Pimenta Bueno possvel identificar
os produtos exportados pela Provncia no exerccio de 1878-1879; nele,
no so apresentados os artigos produzidos pela indstria e que recebiam
iseno fiscal.
291

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Carne secca
Couros de gado vaccum
Chifres
Crina
Sollas
Graxa

kgs
n
n
kgs
n
kgs

34.588
21.802
14.460
220
1.469
970

8:301$120
87.208$000
299$200
176$000
7296$000
194$000

Fonte: (PIMENTA BUENO apud CORRA FILHO, 1926, p. 39).

Em 1880, Del Sar vendeu a charqueada para o empresrio uruguaio Jaime Cibils Buchareo, proprietrio da empresa Jaime Cibils &
Hijo, cuja sede, localizada em Buenos Aires, fornecia mercadorias para
o comrcio de Corumb, especialmente o sal. De uma prspera famlia
de comerciantes, ele chegou a Mato Grosso com capital suficiente no s
para comprar o saladero mas tambm a antiga fazenda Jacobina, que foi
a leilo aps a morte de seu legendrio proprietrio Joo Carlos Pereira
Leite. (WILCOX, 1992, p. 139-140).
A fazenda Jacobina tinha uma rea de 240 lguas quadradas e
600.00049 cabeas de gado, na maior parte alado, por falta de cavalos.
Os limites dessa fazenda comeam na foz do Jaur, confinam com a
Fumaa, entram pelo territrio boliviano e abrangem todas as salinas de
Casalvasco. (CORRA FILHO, 1926, p. 38-39).
Essa empresa, sob o comando de Jaime Cibils, passou a produzir
tambm extrato e caldo de carne, que eram exportados para o mercado
europeu. A utilizao de mtodos revolucionrios no processamento da
matria-prima nesse ramo de produo, como por exemplo a maquinaria
a vapor, chamou a ateno do Presidente da Provncia, que a esse estabelecimento assim se referiu: Consta-me que uma fabrica em propores bastante desenvolvidas, empregando machinas movidas a vapr e
numeroso pessoal, que accusam mui avultado capital nella convertido.50
(BARO de BATOVY, 1884, sp.).
49 Os nmeros do rebanho bovino apresentados para a fazenda Jacobina parecem superestimados.
50 Relatrio com que o Exm. Sr. General Presidente da Provincia de Matto Grosso Barao de
Batovy abrio a 1 sesso da 25 legislatura da respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1880.
Cuyaba 1884. Manuscrito.

292

Paulo Marcos Esselin

Posteriormente, o Vice-Presidente da Provncia forneceu detalhes


do funcionamento da empresa, bem como indicou a necessidade de subsidi-la com a iseno de impostos para fortalec-la e proteg-la da concorrncia uruguaia e argentina, cujos comerciantes recebiam vantagens
concedidas pelos seus respectivos governos:
estabelecida no Descalvado a fbrica industrial mais importante
da provncia j pelo valor de material empregado e das fazendas
de gado que lhe estam annexas; j pela importancia dos impostos
que paga provincia. Fallamos da fbrica de caldos concentrados
e extrato de carne pertencente ao cidado oriental Jaime Cibils y
Buxaro. Este estabelecimento montado com machinas movidas a
vapor e dos sistemas os mais modernos, lucta com a competencia
que lhe fazem as fabricas de Fray-Bentos, Salto e outras, que
alem das vantagens que o governo oriental e argentino lhes
concedem tem ainda uma garantia de juros sobre o capital; e se
no for auxiliada nos primeiros annos, ter talvez de suspender os
seus trabalhos extinguindo-se assim uma das fontes de renda da
provincia.51 (RAMOS FERREIRA, 1887, sp.).

Segundo as estimativas de um autor, em Descalvado, sob a administrao de Jaime Cibils, abatiam-se 20 mil cabeas de gado bovino
anualmente, sendo a empresa responsvel por mais da metade das exportaes de Mato Grosso nas ltimas duas dcadas do sculo XIX. (STOLS
apud ALVES, 1984, p. 20). Isso demonstrou que o emprego da maquinaria moderna contribuiu para o aumento da produtividade e tambm da
arrecadao de impostos.
No ano de 1885, os cofres provinciais receberam 51341$138 de tributos relativos exportao, como demonstra o quadro abaixo, dos quais
mais de 60% correspondem exportao do gado bovino e de artigos
relativos sua industrializao.

51 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice-Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar a
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 Sesso da 26 Legislatura. Setembro de
1887. Cuyaba. Manuscrito.

293

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Localidade
Assucar, cafe, carne secca, crina de animaes,
umo e graxa
Cal de Pedra
Caldo de Carne
Couros
Chifres
Herva Matte
Ipecacuanha
Gado Vaccum
Totais

Vallor official

Imposto

2.084$380

208$438

4.072$000
43.200$000
141.290$000
2.460$000
337.083$000
43.739$500
66.036$000
637.750$880

203$600
4.320$000
14.129$000
246$000
16.854$150
4.373$950
11.006$000
51.341$138

Fonte: (Relatrio apresentado Assemblia Legislativa Provincial de Matto Grosso pelo


Presidente da Provncia Doutor Joaquim Galdino Maciel no dia 12 de Julho de 1886.
Cuyaba. 1886. Manuscrito).

No exerccio de 1886, o resultado no foi diferente. Mesmo com


as dificuldades da epizootia, peste das cadeiras, que liquidava o rebanho
eqino, um dos pilares de sustentao da pecuria bovina, (mais frente se ver), a produo pecuria aumentou substancialmente (conforme
tabela abaixo). A erva-mate, cuja explorao havia se iniciado em 1883,
tornou-se o principal produto de exportao da Provncia. oportuno,
no entanto, lembrar que o caldo de carne e o extrato, produzidos desde
1873, gozavam de iseno tributria, alm de que o contrabando do gado
em p era algo endmico e considervel. Seguramente, o movimento comercial dos produtos relativos pecuria era igual ou superior ao dos
extrativistas, como a erva-mate.
Qualidade
Herva Matte
Ipecacuanha
Somma

Ano
1886
1886

Valor official
481.476$000
55.140$350
536.616$350

Imposto
40.123$000
5.514$035
45.637$035

Qualidade
Couros
Gado Vaccum
Somma

Ano
1886
1886

Valor official
117.485$000
158.265$000
275.750$000

Imposto
11.748$500
21.102$000
32.850$000

Fonte: (Relatrio que o Exmo. Sr. Vice Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira
devia apresentar Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 sesso da 26
Legislatura em Setembro de 1887. Cuyaba. Manuscrito).

294

Paulo Marcos Esselin

Como Rafael Del Sar, J. Cibils Buchareo foi beneficiado com a


iseno de impostos pela instalao da indstria para a produo de extrato e caldo de carne. Em 1886, ele requereu, junto ao Governo provincial,
iseno por 15 anos dos direitos cobrados, tendo merecido boa acolhida
do Presidente da Provncia, que defendeu o atendimento do pedido junto
Assemblia Legislativa.
aqui opportuno fallar de um requerimento que foi-me
apresentado no qual Jayme Cibils Buxaro pede a esta Assemblea
iseno dos direitos Provinciais por espao de quinze annos para as
produes de sua fbrica de extrato de carne, estabelecida no lugar
denominado Descalvado, compromettendo-se em compensao
no s a conduzir gratuitamente as malas do correio em dez viagens
annuaes, pelo menos, feitas em vapores apropriados de Montevideo
a Corumb e dahi ao porto de Dourados nesta provincia e vice
versa, como tambm trazer gratuitamente do porto de Asumpo
ao de Corumb vinte e cinco emigrantes por ano.
No h na provncia outro estabelecimento de indstria similar
a do peticionrio. A concesso pedida no prejudica por isso
a terceiro, e na previso de um caso contrrio pode ser feita
condicionalmente. solicitada quando a fbrica acha-se montada,
funcciona, conhecida e acreditada no exterior pelos prmios e
medalhas que tem alcanado nas exposies da Amrica do Sul,
Amrica do Norte, da Europa e deve ser protegida pelos poderes
pblicos no interesse de fomentarem um dos ramos da indstria
que tudo indica que a de ser no futuro a principal riqueza e fonte de
renda da provncia. Traz a vantagem da communicao frequente
com o Rio de Janeiro e os Portos do Rio da Prata com os quaes a
provncia est em relaes comerciaes, o que por si recompensa de
sobejo e diretamente o sacrifcio que fara o oramento provincial
desistindo de arrecadar uma pequena verba de receita de que no
depende seu equilbrio.52 (PIMENTEL, 1886, sp.).

A Charqueada Descalvado utilizava tecnologia de ltima gerao,


o que fazia dela a empresa industrial mais importante da Provncia; ao

52 Relatrio apresentado Assemblia Legislativa Provincial de Matto Grosso na Primeira seco


da 26 Legislatura no dia 12 de Julho de 1886 pelo Presidente da Provncia o Exmo. Doutor
Joaquim Galdino Pimentel. 1886. Manuscrito.

295

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

receber iseno de impostos do Governo, pde baratear o produto final e


coloc-lo em boas condies no mercado.
Fornecendo para a Europa e sia, a produo mato-grossense alcanou a marca de 111.600 kg, exportados em 1883, e ganhou fora devido participao da empresa em exposies, onde os produtos eram
comparados aos do principal concorrente, o tradicional empresrio uruguaio Liebigs. Os nacionais sobressaram e foram considerados de melhor qualidade que os dele. (WILCOX, 1992).
Entretanto, apesar do excelente desempenho da empresa, problemas foram surgindo na Provncia, e, j em 1884, a produo declinou para
75.000 kg. A peste das cadeiras, endemia comum na regio do Pantanal,
reduzia a tropa de eqinos e impedia o manejo do bovino, como tambm a conduo com eficincia aos currais de abate, o que obrigava os
empresrios importao regular, com grande dispndio, de cavalos do
Paraguai, Uruguai e Argentina.
Um viajante, nesse perodo, na regio do Descalvado, onde funcionava a charqueada, pagou 180$ ris por um cavalo, exatamente o dobro
daquilo que valia. A razo alegada para o preo extorsivo era, segundo o
comerciante, muito simples: dizia ele, de te-los comprado a cem mil ris
e perdido quase metade, pelo que andava lhe cada um por cento e sessenta
mil ris, tendo certeza de ainda perder outros muitos; (...). (FONSECA,
1986, p. 369, V. 1).
A empresa enfrentou alguns outros problemas. Das 240 lguas da
antiga fazenda Jacobina, adquirida por Buchareo para instalar a charqueada e fornecer os suprimentos necessrios, 20 lguas se encontravam em
territrio boliviano. Frequentemente, vaqueiros do pas lindeiro entravam em terras que julgavam suas em busca de gado bovino, no tardando o surgimento de conflitos entre as partes, o que implicou em novos
custos para a charqueada, como a contratao de guarda particular para
combater os supostos ladres.
medida que os conflitos foram se amiudando, Cibils resolveu
pela venda da empresa a um sindicato belga em 1895.
296

Paulo Marcos Esselin

A charqueada Descalvado passou s mos da Societ Industrielle


et Agricola du Bresil, de capitais belgas e com sede em Bruxelas. Quando
da venda, a empresa, que se encontrava em franca decadncia, necessitou
ser recuperada. Para tanto, o grupo belga incorporou nova tecnologia
linha de produo, introduzindo maquinaria oriunda da Europa, como
tambm contratando trabalhadores no Uruguai, Argentina e Paraguai,
que tinham tradio no preparo do charque e do caldo e extrato de carne.
Em 1899, a charqueada foi vendida para o banco belga LOutre
Mer, o principal brao financeiro das aventuras do rei Leopoldo. (WILCOX, 1992).
Nessa nova fase, as operaes da empresa foram ampliadas com a
aquisio de um outro latifndio, a fazenda So Jos, margem esquerda
do rio So Loureno, com 400 lguas de extenso e mais de 100.000 reses.
Todo o gado desta estancia e do Descalvados foi abatido durante
annos na fabrica de extracto de carne, do syndicato Cibillis e,
apesar de no respeitarem sexo nem idade, pois toda a classe de
animais produzia extracto, ainda assim os Belgas no conseguiram
exterminar todo o gado das duas enormes fazendas. (MACIEL,
1922, p. 14).

Nesse perodo, o saladeiro abateu entre 20.000 a 30.000 cabeas


por ano. (LISBOA, 1909). Em 1895, exportou 156.000 kg de caldo de
carne, e 141.000 em 1900, incluindo carne seca. Em 1905, a exportao
atingiu apenas 30.000 kg de caldo de carne e a exportao de couros caiu
de 13.000 para 2.500 peas. (WILCOX, 1992).
O declnio da produo deveu-se a um abate indiscriminado do
rebanho, a um perodo de secas e inundaes entre 1902 e 1906, varola
em 1900, peste das cadeiras, que continuou assolando o rebanho eqino, e a contnuos conflitos com vaqueiros bolivianos.
A partir de 1906-1907, os abates foram interrompidos devido ao
quase aniquilamento do rebanho. (LISBOA, 1909). Em 1911, o saladeiro
foi novamente vendido, desta vez para Percival Farquahar, retomando
297

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

suas atividades durante a Primeira Guerra Mundial, sobretudo com a produo de charque.
Enquanto isso, nas reas do Pantanal sul continuava intenso processo de ocupao das terras e formao de novas propriedades rurais.
Aproveitavam-se os chegantes dos grandes estoques de gado bovino, herana dos tempos coloniais, submetidos natureza e procriando sob as
leis de seleo natural. Esse gado europeu, aps sculos de reproduo
natural, degenerou-se, adquiriu caractersticas prprias e ganhou o nome
de tucura ou pantaneiro, caracterizado como sendo:
(...) de estatura bastante pequena, pelle grossa, pello curto e luzidio,
cr de castanha mais ou menos escura ou vermelha, com tendencia
a cr mais clara pelo dorso, boca preta com listas brancas, cauda
comprida e delgada, e o quarto trazeiro francamente desenvolvido.
Tem os chifres curtos e finos, voltados para a frente, mas com as
pontas para cima e o craneo notavelmente curto, consideravelmente
largo nas visinhanas dos olhos, entre os quaes se nota uma forte
depresso frontal, e com a face posterior em sua maior extenso
convexa, saltada para traz (...). (LISBOA, 1909, p. 137).

Um conhecido fazendeiro serrano a respeito das caractersticas do rebanho bovino pantaneiro afirma: o gado pantaneiro era de
inferior qualidade, no tinha bom corpo, possua aspecto feio, muito
peludo na testa e no rabo com tanto cabelo que se assemelhava a uma
vassoura.(LIMA, 1978, p.161/2).
Outro autor acrescenta que o desenvolvimento desse rebanho
bovino nas condies auspiciosas do Pantanal permitiu a formao da
variedade pantaneira, de couro grosso, resistente s intempries e aos
mosquitos e affeita luta contra as guas, em que vive grande parte do
ano. (CORRA FILHO, 1926, p. 27).
To logo terminou o conflito com o Paraguai, o Governo provincial, preocupado em melhorar a qualidade do rebanho e o seu padro
racial, instituiu um prmio de $ 5.000 ris por touro de raa fina introduzido nas propriedades, como forma de estmulo aos criadores.
298

Paulo Marcos Esselin

Mesmo assim, em 1887, ao abordar a situao da indstria pastoril


na Provncia, o Vice-Presidente registrou:
(...) a indstria pastoril da provncia ainda a dos tempos
primitivos. O gado criado a lei da natureza, solto nos campos,
sujeito a intemprie, confiado a f pblica, no h estabulao; o
alimento adquire-o nos campos, qualquer que seja a estao; um ou
outro criador tem seus campos cercado, dando-se frequentemente
o abigeato entre os prprios vizinhos; as raas existentes, coevas
talvez dos tempos coloniaes, no tem sido melhoradas pelo
crusamento.53 (RAMOS FERREIRA, 1887, sp.).

Embora o rebanho tenha merecido a ateno das autoridades estaduais, continuou, por todo o sculo XIX e comeo do XX, a crescer
quantitativamente. As grandes distncias dos mercados consumidores, a
peste das cadeiras, que comprometia os eqinos, e o baixo preo dos bovinos no estimulavam investimentos para a melhoria da sua qualidade
racial, muito menos para a incorporao de novas tecnologias. Foi esse o
rebanho que deu suporte para o processo de reocupao do Pantanal sul,
pois em todas as regies teve incio um grande movimento de recuperao das antigas fazendas e formao de outras novas.
Nessa segunda onda de ocupao, resgatou-se uma antiga prtica
dos criadores de gado (em geral, aps a primeira etapa de implantao da
fazenda, os pioneiros convocavam parentes e amigos para fixarem-se na
regio). Foi o que de fato aconteceu no Pantanal (...). (CORRA, 1999,
p. 160).
Na regio de Miranda, to logo terminou a guerra do Paraguai, Jos
Alves Ribeiro assumiu a fazenda Taboco, com rea de 334.024 hectares,
fora o excesso que se verificou mais tarde de 32.000, herana de seu pai
Juca Costa, e algo em torno de 5.000 reses. Alm das lides na propriedade
rural, dedicou-se ao comrcio. Comprava vacas gordas e, conduzindo-as

53 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice-Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar a
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 Sesso da 26 Legislatura. Setembro de
1887. Cuyaba. Manuscrito.

299

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

ao Paraguai, trocava-as por mulas, as quais eram levadas at Cuiab, onde


eram vendidas aos seringueiros.
Pouco mais tarde, consolidadas suas posses, a seu convite foram
se estabelecendo parentes e amigos por toda a regio. Francisco Alves
Ribeiro, Manoel Alves Ribeiro, Joaquim Francisco, Aladim dos Santos
e Deoclesiano Augusto Ferreira encaminharam documento Magestade
Imperial requerendo, a ttulo gratuito uma sesmaria de terras devolutas
para cada um deles no municpio de Miranda a fim de fundarem estabelecimentos agrcola e pastoril.54
A esses requerimentos, seguiram-se muitos outros que eram muito
bem recebidos pela Cmara do municpio de Miranda, que sempre os deferia, sob a alegao de as concesses serem de real vantagem (...) para
o crescimento da cidade.
Enquanto isso, no Pantanal da Nhecolndia, os filhos do Baro de
Vila Maria procuraram recuperar o patrimnio do pai aps a sua morte
em 1876.
O filho mais velho, Jos Joaquim, que j havia iniciado o trabalho
de recuperao da fazenda Palmeira, no conseguiu realizar seu intento,
tendo sido assassinado por um escravo dois meses aps a morte do pai.
Severiano da Fonseca, que viajava pela provncia, deixou registrado suas
impresses sobre o primognito do baro:
H apenas dois anos via-se ainda no delta do Taquari uma fazenda,
que pelas promessas que fazia prometia vir a ser o modelo das da
provncia. Seu dono, jovem, ativo e empreendedor, inteligente e
dcil aos sos conselhos da experincia, empregava o melhor dos
seus esforos em benefici-la. Vastas sementeiras de alfafa estavam
sendo feitas do mesmo modo que campos imensos plantados com
gramneas de pasto. Seus gados no tinham preciso de percorrer
lguas para abeberarem: havia canais e audes e, mais, que no eram
requeridos pela necessidade e s por um excesso de previdncia.

54 Documentos avulsos. Requerimento de Manoel Alves Ribeiro, Francisco Alves Ribeiro,


Joaquim Francisco, Aladim dos Santos, Deoclesiano Augusto Ferreira. Lata 1885 E, APMT.
Cuyaba. Manuscrito.

300

Paulo Marcos Esselin

O jovem e inteligente fazendeiro ja enchia-se de legtimo orgulho,


observando como o seu gado prosperava de modo extraordinrio
relativamente aos outros no cuidados. Atendendo fazenda,
atendia a si e aos seus. Sua vivenda no seria um rancho, um
galpo, um miservel pardieiro como os de tantos outros mui
superiores em meios da fortuna; ia sendo construda conforme
suas posses atuais, mas com gosto e confortabilidade, e seguindo o
adiantamento da poca. Hortas, pomares e jardins, delineavam-se
em j prspero crescimento, para eles buscava sementes de tudo o
que era de utilidade e ornamento, consciente de que aumentandolhes a beleza mais encarecia o valor da vivenda. Em pouco tempo
seria ela o orgulho do seu laborioso dono e o espelho das da
provncia. .../ Mas a fatalidade pesou sobre ela, cortando com a
faca do assassino a vida do trabalhador esforado; e a fazenda da
Palmeira parece que morreu com o dono, tanto os vermes a esto
roendo. (FONSECA, 1986, p. 166-167, V. 1).

O filho mais novo do Baro de Vila Maria, Joaquim Eugenio (o


Nheco), retornou a Corumb para tomar posse das terras que por herana
lhes pertencia, iniciando a recolonizao de uma vasta rea.
Recuperadas as edificaes, construdas algumas novas, estruturado um pequeno rebanho, cultivadas algumas reas para a subsistncia,
colhidas algumas safras, enfim, aps ter-se estabelecido, Nheco tomou a
iniciativa de convidar amigos e parentes para se mudarem para o Pantanal
sul de Mato Grosso.
A respeito, Jos de Barros deixou registrado:
Eram tentadoras as promessas do Nheco. Disse-nos que possuia
quasi cem lguas de campos de criar; que dentro dos limites dsses
campos, poderamos estabelecer, escolhendo o lugar que mais
nos conviesse; que nos faria dao da extenso de campo que
precisssemos; que nos ajudaria na conduo do nosso gado e nos
daria tda e qualquer proteo, at que nos pudssemos reabilitar
dos prejuzos causados pela mudana. (BARROS, 1987, p. 31).

Assim, a partir de 1885, cinco anos aps a chegada de Nheco,


formou-se uma corrente contnua especiamente de livramentanos que,
aps pouco mais de meio sculo ocuparam mais de dois milhes e meio
301

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

de hectares. (BARROS, 1998, p. 94). O sucesso dessa iniciativa o fez


credor de destacada homenagem, ou seja, a regio ficou conhecida como
Nhecolndia.
As viagens para o Pantanal sul constituam verdadeiras epopias.
As famlias construam grandes balsas e o trabalho era imenso, pois ia
desde a escolha da melhor rvore e do seu corte at a construo da embarcao.
Agora esto prontos dois bateles de araputanga, unidos por um
soalho de tbuas. A tolda est presa nos fueiros e um tacho com
aria ser a cozinha. Dentro, as brazas estaro sempre acesas para
cozer o peixe, alimento mais fcil de ser conseguido. .../ A carga ir
por debaixo do Soalho, dentro dos bateles. Na popa da balsa, bem
no ponto onde as canoas se estreitam, h um buraco circular atravs
do qual se v a gua do rio. As meninas logo improvisaram uma
cortina com lenois e o recanto encoberto cumpriu discretamente
sua finalidade. (CHAMA, 1976, p. 38 e 39).

As embarcaes eram conduzidas a remo, e nos lugares, cuja profundidade era menor, utilizava-se a zinga. Geralmente, os condutores dessas embarcaes eram hbeis e conheciam todas as particularidades que
o rio apresentava, como o local onde redemoinhos ou outros problemas
pudessem colocar em risco a viagem. Por mais de trinta dias, navegavam
pelo extenso e perigoso Paraguai at atracarem no porto de Corumb, de
onde se dirigiam para as reas que passariam a ocupar.
Barros destaca que, ao tomar posse das terras do Firme, desde
o comeo o Nheco procurou cercar-se de parentes. Essa preocupao
parece indicar uma poltica de ocupao voltada segurana. (BARROS, 1998, p. 95). Essa interpretao poderia ser estendida maioria dos
colonos que se estabeleceram no Pantanal, uma vez que at o comeo do
sculo XX persistiu uma situao de violncia e insegurana em todos os
ncleos fronteirios. O prprio Presidente reconhecia a situao de abandono em que se vivia em determinadas reas da Provncia.
No ha muita segurana individual no interior da provincia,
devido isto no s a impunidade com que conto os criminosos
302

Paulo Marcos Esselin

pela facilidade da evaso, como principalmente, a ma indole,


geradora do crime, de uma grande parte da populao adventicia
de ordinario ja foragida de outras provincias e das republicas
vizinhas.55 (PEDROSA, 1879, sp.).

A fome por terra, preocupao que dominou as atenes da primeira frente de ocupao da plancie pantaneira na dcada de 1830, tambm estava presente entre os novos colonizadores. A exemplo dos primeiros, os que vieram na segunda onda se apossaram de grandes extenses,
reproduzindo processos que faziam lembrar as primeiras divises de terras no Brasil Colnia. O limite de suas ambies no eram modestos.
(BARROS, 1998).
Essa disposio dos adventcios era apontada pelas autoridades provinciais como um entrave ao desenvolvimento de Mato Grosso porque,
alm de desestimular a imigrao, eles no recolhiam impostos sobre a
terra Fazenda Pblica e no desenvolviam qualquer atividade produtiva.
Nesta provincia, graas a vastido do seu territorio, pouco cabedal
tem-se feito das grandes apropriaes territoriaes por parte de
alguns fazendeiros, que miro os lucros individuaes que ho de
colher, em futuro proximo, quando escassearem as terras devolutas
bem situadas. Entretando faz mal. Estas grandes apropriaes
tendem a dificultar o progresso da provincia, porque afugenta a
immigrao, pela falta de terras em condies procuradas. .../ E
essas propriedades quasi todas conservadas incultas, mantidas sob o
domnio desses fazendeiros que apenas querem satisfazer a vaidade
de grandes proprietrios, seno especular com o valr futuro dellas,
de modo algum concorrem para as despezas publicas retardando
ao contrario, o desenvolvimento da riqueza social, donde emanam
todas as fontes de receita.56 (PEDROSA, 1879, sp.).

55 Relatrio com que o Exm. Sr. Dor Joo Jose Pedrosa, Presidente da Provincia de Matto Grosso,
abrio a 2 sesso da 22 Legislatura da Respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1879.
Cuyaba. APMT. Manuscrito.
56 Relatrio com que o Exm. Sr. Dor Joo Jose Pedrosa, Presidente da Provincia de Matto Grosso,
abrio a 2 sesso da 22 Legislatura da Respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1879.
Cuyaba. APMT. Manuscrito.

303

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

A segunda onda de ocupao na plancie pantaneira encontrou


na peste das cadeiras um obstculo portentoso para o sucesso de seus
empreendimentos. A venda de bovinos em p, principalmente para
Minas Gerais, atividade que constitua riqueza importante da Provncia,
ficou extremamente prejudicada, j que a dificuldade em manter os
cavalos impedia no s o manejo nas fazendas, como tambm a retirada
dos animais para a comercializao.
Outrora avultou nesta provincia a renda proveniente da criao de
gado. Depois do apparecimento da epissotia perdidos os animaes
que prestavo-se ao servio do pastejo, o gado embraveco
espalhou-se, perdeu-se; boas fortunas extinguiu-se e prosseguindo
a mesma causa subsistem os mesmos effeitos.57 (CARDOSO
JUNIOR, 1872, sp.).

De maneira geral, os relatrios dos Presidentes e Vice-Presidentes


da Provncia demonstravam a preocupao das autoridades com a doena, que desde 1850 vinha dizimando o rebanho eqino, com vultuosos
prejuzos aos cofres pblicos e aos produtores. Essa situao difcil prolongou-se de meados do sculo XIX at incio do XX por toda a fronteira, agravando ainda mais as dificuldades da produo em Mato Grosso.
Entre os produtores rurais, havia sempre a preocupao de proteger os seus rebanhos eqinos da famigerada epidemia; procurava-se
impedir a entrada de cavalos nas propriedades cuja procedncia no era
conhecida, para evitar contgio. O Nheco foi nos dar encontro no Corixo, levando cavalos e arreios para tda a nossa comitiva: no queria que
os animais da viagem entrassem em seus campos temendo estivessem
afetados da peste de cadeira. (BARROS, 1987, p. 34).
Era muito comum uma fazenda perder quase todos os seus eqinos quando a peste, altamente contagiosa, se manifestava. Nesses casos,

57 Relatrio com que o Exmo. Sr. Francisco Jos Cardoso Junior, Presidente da Provncia de Mato
Grosso, abrio a Assemblea Provincial. 1872. Cuyaba. APMT. Manuscrito.

304

Paulo Marcos Esselin

se fosse imprescindvel o deslocamento at essa propriedade, geralmente


se fazia em lombo de bois, que no desenvolviam a doena.
O problema da falta de eqinos era remediado atravs do contrabando que os produtores promoviam no mercado boliviano e paraguaio.
O subdelegado de polcia de Corumb, em ofcio, denunciou irregularidades dessa natureza na compra de 400 cavalos no Paraguai. A suspeita
era a de que o Baro de Vila Maria estivesse contrabandeando eqinos.58
Outro recurso era comprar cavalos no Planalto de Maracaju Campo Grande, onde se instalaram algumas fazendas com gente vinda de
Minas Gerais e que se dedicavam ao criatrio de eqino para atender a
demanda da plancie pantaneira. Nessas regies, a tropa, comumente, no
era atingida pela doena.
Segui (...) para a serra com o fim de comprar animais. Comprei de
Gustavo, 13 cabeas de aminais entre cavalos e guas que importaram em
1.140$000. (BARROS, 1987, p. 48). Os preos atingiam cifras fabulosas,
em torno de 88$000 ris por cabea, muito elevados para os produtores
pantaneiros.
Um fazendeiro serrano revela os negcios entre os fazendeiros de
cima da serra e do pantanal.
(...) a animalada de cima da serra se encontra isenta da terrvel
peste, essa regio toda se transformou na rea de aprovisionamento
de animais destinados aos trabalhos nas fazendas do Pantanal,
compra se um cavalo velho de cima da serra por trs vacas (...). Em
tropas de oitenta ou mais, eram os animais conduzidos at a regio
pantaneira. A fazia se o comercio cada cavalo por seis vacas.
Negocio rpido sem qualquer pechincha. (LIMA, 1978,p.161).

Nesse recomeo, havia duas alternativas para os fazendeiros comercializarem os seus rebanhos: a primeira e a mais difcil era a venda de

58 Officio da subdelegacia de Corumb ao chefe de Polcia de Cuiab, em 5 de Agosto de 1872. Lata


1872 E, APMT. Cuiaba-MT. Manuscrito.

305

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

animais em p para tropeiros mineiros59 e a segunda, o abate das reses


na prpria fazenda para a produo da carne seca, que era vendida no
mercado local.
No primeiro caso, o gado bovino era conduzido no inverno por
tropeiros at Uberaba, percurso esse percorrido em quatro meses entre
ida e volta. (ABREU, 1976). No caminho, o gado perdia de 30 a 40% do
seu peso; aqueles que conseguiam sobreviver s dificuldades de dois meses de caminhada diria se recuperavam em pastagens por diversos meses
para readquirir o peso, e s depois eram levados para os abatedores do
Rio de Janeiro.
No segundo caso, era preparada a carne na prpria fazenda e transportada em carros de bois at as margens do rio Paraguai, onde era transferida para os bateles60 que a levavam at o porto de Corumb para ser
vendida. Da cidade porturia, vinham alguns poucos produtos que no se
conseguia produzir internamente.
O proprietrio da [fazenda] Firme, de tempo em tempo aprestava
uma grande chalana de casco de ferro, impulsionada zinga e vga
e fazia suas viagens para Corumb, trazendo carne secca, couros
de gado vaccum, pennas de gara e pelles de ona, para vender
e com seu produto fazer acquisio de caf, matte, sal, assucar,
fazendas, para uso seu, de sua Famlia e para supprimento de seus
camaradas. (MACIEL, 1922, p. 16).

59 Virglio Correa Filho afirmou que, na ausncia de compradores para o seu gado os fazendeiros
organizavam boiadas, de uma a quatro mil cabeas e em lotes espaados rumavam para Uberaba
para comercializarem seus rebanhos. O preo nem sempre compensava os imensos sacrifcios;
o comrcio servia apenas para escoar o acmulo de reses que j haviam atingido o mximo de
seu desenvolvimento, e se permanecessem nas fazendas estariam correndo o risco de morrer,
vtima de algum acidente, ou contrair alguma doena de conseqncias nefastas. (CORREA
FILHO, 1946, p. 117).
Parece que era comum, entre os fazendeiros detentores de grandes rebanhos, a prtica de
conduzir bois s invernadas mineiras enquanto aqueles de menor posse, no podendo arcar
com os custos dessas viagens, abatiam os animais para produzir a carne seca e comercializar no
mercado local ou ento vender, a preos mdicos, as suas boiadas aos grandes latifundirios.
60 Bateles, embarcaes robustas, geralmente feitas de madeira ou ferro, de fundo chato, usadas
para transbordo de carga, impulsionadas a remo, ou zinga.

306

Paulo Marcos Esselin

Com uma fauna variada e abundante, somente pelo porto de Corumb mais de 100.000 ples de animais silvestres [eram exportados],
destinadas aos cortumes norte americanos. Capivaras, caitets, queixadas
na grande maioria. (BARROS, 1934, p. 12), pelos fazendeiros do Pantanal, o que lhes permitia um substancial incremento de renda, uma vez que
as peles dos animais eram muito valorizadas no mercado europeu.
O comrcio ainda apresentava a opo do contrabando, externo
e interno. No primeiro caso, com a venda do gado bovino em p, geralmente para o pas vizinho, o Paraguai. Com os transtornos causados pela
peste de cadeira, os tropeiros paraguaios cruzavam a fronteira e auxiliavam os vaqueiros brasileiros a campear o gado, que depois era conduzido
para o outro lado sem recolher os impostos devidos. Essa foi uma prtica ampliada depois do fim da guerra. Dos dois milhes de reses que se
contavam nos campos paraguaios no incio das hostilidades, restaram,
em 1870, apenas 15.000. (PIMENTA BUENO apud CORRA FILHO,
1926, p. 37-38).
Obviamente, esse mercado carente do gado bovino oferecia preos
atraentes aos rebanhos que se desenvolviam no sul de Mato Grosso, e,
em contrapartida, os produtores sulinos preferiam comprar o sal e outros
artigos em Concepcion, onde pagavam um valor inferior aos praticados
no porto de Corumb.
Em maro de 1880, atravs de ofcio, o Diretor Capito do Estado Maior de 2 Classe Rogaciano Monteiro de Lima chamava a ateno
das autoridades provinciais para a necessidade de estabelecer um destacamento policial no lugar denominado Punta Por afim no s de
evitar-se a fuga de desertores e criminosos para a repblica do Paraguai,
como tambm, para oppor-se uma barreira ao contrabando.61 (BARO
de MARACAJU, 1880, sp.).

61 Relatrio com que o General Baro de Maracaju, Presidente da Provincia de Mato Grosso,
abrio a 1 Sesso da 2 legislatura da respectiva Assmbla no dia 1 de outubro de 1880. Cuyaba.
Manuscrito.

307

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Em 1901, um observador do Paraguai informou ao Governo Brasileiro que em torno de 60.000 cabeas de gado bovino tinham sido contrabandeadas para o Paraguai entre janeiro e agosto. Dois anos depois,
acreditava-se que 80.000 haviam cruzado a fronteira em direo s pastagens paraguaias. Nesse mesmo ano, estudos do Governo provincial estimaram que o valor do contrabando era maior que o dobro do comrcio
legal. (WILCOX, 1992).
Concorria para o desenvolvimento dessa atividade no somente o
atrativo valor que a mercadoria atingia no mercado da Repblica vizinha,
como tambm o fato de haver poucos postos fiscais e funcionrios para
acompanhar a movimentao dos rebanhos, fato que tornava difcil a ao
do fisco provincial no sentido de fiscalizar e cobrar impostos. Sendo a
fronteira muito extensa, os contrabandistas abriam trilhas clandestinas
com facilidade, o que permitia escoar o gado para as pastagens paraguaias.
Mas o verdadeiro incentivo ao contrabando interno e externo vinha dos elevados impostos estabelecidos pelo governo: de uma vaca ou
de uma novilha eram cobrados 10$000 ris: de cada boi, 2$000 ris. Para
isentarem-se destes valores, os tropeiros utilizavam rotas alternativas a
fim de evitar os agentes fazendrios.
Muito gado pode subtrair-se ao imposto sahindo para outras
provincias do imperio, e o que passa para a vizinha republica do
Paraguai atravessando a extrema linha do rio Apa procurando
naturalmente os passos numerosos de sahida franca que tem o
rio, para eximir-se do elevado imposto de 10$000 que se cobra
por vacca e novilha conjuntamente com o de 2$000 de cada boi.62
(MACIEL, 1886, sp.)

Um viajante que passava pela fronteira no comeo do sculo XX


deixou registrada sua impresso sobre as atividades comerciais praticadas
na Provncia. As rendas de Matto Grosso so bastante diminudas pelo
fato do contrabando que se pratica em grande escala na fronteira do Pa-

62 Relatorio apresentado a Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso pelo Presidente da


Provincia Doutor Joaquim Galdino Maciel no dia 12 de Julho de 1886. Cuyaba. Manuscrito.

308

Paulo Marcos Esselin

raguai e pelo Madeira com a ajuda do Guapor onde o controle quase


impossvel. (WALLE, 1916, p. 64).
A renncia fiscal custou muito caro aos cofres provinciais, pois a
perda de receita implicava contnuos dficits. Mesmo assim, o movimento
de exportaes de Mato Grosso foi crescendo constante e gradativamente
at se tornar superavitrio a partir de 1902, conforme quadro abaixo:
Ano

Importao

Exportao

1872

1.028:000$000

154:900$000

1873

1.524:341$000

153:039$000

1874

962:170$000

124:803$000

1875

1.177:785$000

144:225$000

1876

2.744:800$000

120:200$000

1893

1.440:064$000

648:568$000

1894

1.648:099$000

933:348$000

1895

1.742:630$000

413:507$000

1896

2.316:609$000

481:108$000

1897

1.922:103$000

1.225:006$000

1902

2.439:418$000

7.555:960$000

1903

2.284:033$000

7.031:074$000

1904

2.752:973$000

7.103:396$000

1905

2.789:755$000

6.701:656$000

Ano

Importao

Exportao

1906

2.552:467$000

5.969:900$000

1907

3.704:186$000

7.682:883$000

1908

4.017:779$000

8.129:279$000

1909

10.123:662$000

19.362:025$000

1910

7.766:100$000

24.984:994$000

1911

12.907:465$000

19.313:661$000

Fonte: (CORRA FILHO, 1922, p. 376).

No perodo que se estendeu de 1872 a 1897, quando os valores das


exportaes eram muito inferiores aos das importaes, a Provincia de
309

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

Mato Grosso recebia uma suplementao do governo central para equilibrar suas finanas. Isso veio demonstrar a preocupao das autoridades imperiais, que estavam, de certa forma, empenhadas em acelerar o
processo de desenvolvimento da regio e incorpor-la ao resto do Pas,
temerosas com novas possibilidades de agresses externas.
Embora o contrabando e o abate para a produo da carne seca
fossem expressivos, o rebanho bovino continuou subutilizado, uma vez
que essas atividades eram desenvolvidas por fazendeiros que tinham posses sobre imensos latifndios e que no eram forados a vender toda a sua
produo anual, cujos custos eram insignificantes em termos de trabalho
e terras. Assim, medida que o mercado no absorvia, o rebanho crescia
geometricamente, fenmeno que j havia acontecido em Cuiab no sculo XVIII. (MAMIGONIAN, 1986).
Na ltima dcada do sculo XIX, a pecuria mato-grossense, sobretudo a pantaneira, estava consolidada.
A descoberta de um medicamento revolucionrio, o Protosan, comeou a pr fim ao mal da peste das cadeiras, embora muito vagarosamente, devido ao despreparo do homem do campo mato-grossense. Sua
aplicao, por injeo endovenosa uma operao que no esta ao alcance dos nossos rudes trabalhadores das fazendas. Para quem tenha uma
idia, embora muito ligeira, do que seja o interior do Estado, evidente o
que acima ficou dito.63 (ALBUQUERQUE, 1916, p. 30).
Foi um perodo em que a pecuria iniciou um longo processo de
recuperao da hegemonia econmica perdida para a erva-mate, cuja explorao iniciou-se em 1883, transformando-a no principal produto de
exportao e tendo, em determinados momentos, representado 80% delas, estabilizando-se a partir de 1920. O quadro das receitas oradas do
Estado para os exerccios de 1893 at 1900, mostra essa reao dos produtos da pecuria estadual:

63 Mensagem dirigida pelo Exmo. Senhor General Dr. Caetano Manoel de Faria e Albuquerque,
Presidente do Estado de Matto Grosso Assembla Legislativa ao installar-se a 2 sesso
ordinria da 18 Legislatura em 15 de maio de 1916, p. 30.

310

1895

1896

1897

1898

1899

1900

25:000$000
22:900$000
30:000$000

PRODUTOS BO16:100$000
VINOS

COUROS E PEL15:000$000
LES EM GERAL

30:000$000

5:000$000

IPECACUANHA

BORRACHA

50:000$000

40:000$000

25:000$000

15:000$000

30:000$000

85:000$000

44:566$000

35:497$000

24:834$000

28:485$000

26:400$000

44:000$000

35:000$000

25:000$000

45:000$000

58:000$000

23:000$000

50:000$000

24:000$000

45:000$000

60:000$000

21:400$000

56:000$000

31:000$000

47:200$000

60:000$000

21:400$000

56:000$000

31:300$000

47:200$000

OBS.: O gado exportado pelo interior para Minas e So Paulo s aparece na estatstica de 1909 em diante.

Fonte: (AYALA & SIMON, 1914, p. 101).

15:000$000

30:000$000

200:000$000 220:000$000 250:000$000 300:000$000 250:000$000 250:000$000 250:000$000 250:000$000

1894

GADO VACCUM 20:000$000

HERVA MATTE

1893

Paulo Marcos Esselin

311

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

A populao bovina, que havia sido estimada em 1887 em 800.000


cabeas, alcanou a marca de 2.500.000 no princpio do sculo XX, representando um crescimento de 300%. Assim sendo, Mato Grosso iniciou o novo milnio na condio de ter o 4 maior rebanho do Brasil.
Considerando-se esse nmero e uma taxa de desfrute baixa, em torno de
20% ao ano, obtinham-se 500.000 cabeas para disponibilizar ao comrcio, sem que os estoques fossem diminudos. (AYALA & SIMON, 1914).
A exportao mdia de gado em p, no perodo de 1909 a 1911, foi
de 55.500 reses, nmero que poderia ser aumentado em torno de 20%,
isto , 11.100 cabeas, devido ao contrabando na fronteira64, totalizando
assim 66.600 cabeas. Nesse mesmo perodo, a mdia do consumo anual
do Estado, considerando-se as exportaes de couro, foi de 90.000 reses.
Somando-se as que foram exportadas s contrabandeadas e s destinadas
ao consumo interno anual, obtinha-se um total aproximado de 160.000
cabeas. Sendo a produo interna de 500.000 cabeas, enquanto o abate
e o comrcio ficavam em 160.000, havia um excedente anual de 340.000
cabeas. (AYALA & SIMON, 1914).65
Nessas condies, ficou evidente que, sem qualquer prejuzo para
o contnuo aumento dos estoques, o consumo anual poderia ser aumentado, com grande benefcio aos produtores.
A presena de grandes estoques de bovinos baratos e subutilizados
foi o grande estmulo para a instalao das indstrias de charque por todo
o Pantanal sul.
Outros fatores contriburam para atrair os investimentos estrangeiros. Orlando Valverde destaca a qualidade do bovino pantaneiro:

64 O contrabando era supostamente muito maior, embora tenha diminudo ao longo dos anos,
quando o Paraguai recomps o seu rebanho.
65 AYALA & SIMON, como CORRA FILHO, sustentam ser perfeitamente possvel obter uma
taxa de desfrute em torno de 20% no Pantanal sul-mato-grossense, no entanto, o Ministrio da
Agricultura estimou que no Brasil, apesar de detentor de um dos maiores rebanhos bovinos, a
taxa mdia de desfrute no seria muito superior a 10% do rebanho. No caso do Pantanal, ela
estaria em torno de 9 a 12% ao ano, muito abaixo daquela estimada pelos autores. Considerando
uma taxa perfeitamente plausvel de 10% ao ano, o excedente anual ficaria em torno de 90.000
reses, nmero extremamente expressivo, o que garantiria o crescimento geomtrico do rebanho.

312

Paulo Marcos Esselin

No Pantanal imperou durante todo esse perodo o sistema do livre


pastoreio. Embora no houvesse uma seleo dirigida, as condies
naturais foram forjando uma variedade de gado que se tornou
conhecida pelo nome de boi pantaneiro e, fora do Estado pelo de
cuiabano. Eram animais de pequeno porte, magros e musculosos,
bons para fazer charque. (VALVERDE, 1972, p. 115).

Contribuiu ainda para a instalao das charqueadas a facilidade


para o escoamento da produo pelo rio Paraguai, principal via de comunicao de Mato Grosso com o Brasil e que passava atravs do rio da
Prata nos vizinhos Uruguai e Argentina. Fator no menos importante foi
o baixo preo do gado bovino. Em 1908, ainda era possvel comprar uma
vaca por 15$000 e um novilho por 30$000. No entanto, em 1910, quando
as charqueadas estavam em pleno funcionamento, os valores saltaram
respectivamente para 26$000 e 45$000. (AYALA & SIMON, 1914). Ainda assim, o preo era muito baixo, pois no mesmo perodo em So Paulo e
no Rio de Janeiro pagavam-se 100$000 por um novilho. Esse conjunto de
fatores, aliado ao baixo custo da mo-de-obra, garantiu alta rentabilidade
aos negcios.
Aproveitando-se de todas essas condies, os capitalistas platinos
passaram a investir no Pantanal. Em 1907, foi fundada a Charqueada Miranda, em Pedra Branca, prximo da Vila de Miranda, de propriedade da
firma montevideana Deambrsio, Legrand & Cia. Em 1909, comeou a
funcionar a Charqueada do Barranco Branco no municpio de Porto Murtinho, pertencente Empresa Extrativa e Pastoril do Brasil S.A., com sede
em Montividu. Ainda em 1909, foi instalada tambm em Porto Murtinho o Saladeiro Terer, de propriedade de Moali & Grosso Ledesma,
igualmente de Montividu. Esses trs estabelecimentos tinham capacidade para abater de 50 a 60.000 reses por safra. (AYALA & SIMON, 1914).
At o princpio da dcada de 20 do sculo XX, a grande maioria
das indstrias de charque que se instalaram em Mato Grosso o fizeram
no Pantanal sul, s margens do rio Paraguai ou de seus afluentes. A escolha desses locais se explica pelos estoques de bovinos que existiam na
regio, uma vez que as charqueadas tm a necessidade de se instalarem
313

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

em locais onde h uma oferta regular de matria-prima; por outro lado,


o rio Paraguai se constitua no principal escoadouro para essa produo.
O mercado favorvel industrializao da carne estimulou a instalao de um grande nmero de saladeros; de acordo com Marques (1923,
p. 162-164), havia 22 desses estabelecimentos no Estado no incio de
1920. Eram eles:66
Estabelecimento
No Rio Paraguai
Saladero Descalvado
Saladero Bagoary
Saladero Corumb
Saladero Rebojo
Saladero Barranco Branco
Saladero Matto Grosso
No Rio So Loureno
Saladero Alegre
No Rio Cuiab
Saladero So Joo
Saladero Cuiaba
Estabelecimento
margem da estrada de ferro Noroeste do Brasil
Saladero Pedra Branca
66
SaladeroAquidauana
Saladero Campo Grande
Xarqueada Eliseu Cavalcanti
Xarqueada Salustiano de Lima
Xarqueada Antnio Igncio da Silva
Saladero Rio Pardo
Saladero Esperana
Saladero Serrinh
Xarqueada Matto Grosso
Xarqueada Santa Luzia
Xarqueada Villa Velha
Xarqueada Tombo

Municpio
So Luiz de Cceres
Corumb
Corumb
Corumb
Porto Murtinho
Porto Murtinho
Coxim
Pocon
Cuiab
Municpio
Miranda
Aquidauana
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Trs Lagoas
Trs Lagoas
Trs Lagoas
Trs Lagoas
Trs Lagoas

66 A Charqueada Pedra Branca, em Miranda, embora margem da ferrovia Noroeste do Brasil,


quando inaugurada, muito antes do incio do funcionamento da Cia. Ferroviria, possua
lanchas e chatas portadonas para conduzir os produtos de sua fbrica Corumb, onde era
efetuado o embarque para Montividu. (AYALA & SIMON, 1914, p. 293).

314

Paulo Marcos Esselin

Dos saladeros de Mato Grosso, oito estavam instalados no Pantanal sul, justamente os de maior importncia, o Saladeiro de Miranda e
o Terer de Porto Murtinho (AYALA & SIMON, 1914, p. 293), ou seja,
os que reuniam maior capacidade de abate e que foram estrategicamente
estabelecidos, onde havia uma oferta segura de bovinos.
A instalao das charqueadas permitiu o aproveitamento de toda a
produo excedente, e, paralelamente ao desenvolvimento delas, intensificaram-se as vendas de bois magros para os Estados de Minas e de So
Paulo.
Relato de importante fazendeiro da Nhecolndia deixa clara a situao que viveram os produtores antes da instalao dos saladeros: Vai
melhorando o preo do gado, j se podendo vender bois a 40$000, da
a melhora, tambm nas finanas dos criadores, que em outros tempos,
quando a produo era superior ao consumo foi excessivamente precaria. (BARROS, 1987, p. 59).
Com a instalao de novos saladeros, a produo do charque cresceu substancialmente, enquanto o caldo e o extrato de carne, apresentou
grande variao.
Produto
Caldo e extrato de Carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Caldo e extrato de carne

Ano
1902
1905
1903
1906
1904
1907
1905
1908
1906
1909
1908
1910
1909
1911
1910
1911

Quantidade
198.188
133.950
326.250
279.863
208.907
392.419
63.439
452.478
47.072
718.920
49.750
758.739
39.203
1.102.841
28.931
10.529

Valor
777:662$000
80:370$000
339:448$000
167:918$000
314:982$000
235:451$000
83:205$000
271:487$000
71:041$000
431:352$000
121:828$000
455:243$000
119:403$000
661:705$000
70:409$000
36:752$000

Fonte: (AYALA & SIMON, 1914, p. 120-121).

315

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

No perodo de 1914 a 1918, que coincide com a Primeira Guerra


Mundial, houve expressivo aumento da produo do charque, como tambm da venda do gado em p e do couro.
Ano
1914
1915
1916
1917
1918
1914
1915
1916
1917
1918
1914
1915
1916
1917
1918
1914
1915
1916
1917
1918

Quantidade (Kg)
1.733.973
2.703.267
3.755.310
4.052.811
4.144.736
810.586
630.394
1.026.327
1.053.290
887.068
29.091 n
40.033 n
67.865 n
67.599 n
75.594 n
51.469
54.798
51.034
66.689
62.545

Produto
Charque
Charque
Charque
Charque
Charque
Couro Secco
Couro Secco
Couro Secco
Couro Secco
Couro Secco
Couro Salgado
Couro Salgado
Couro Salgado
Couro Salgado
Couro Salgado
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas

Valor
1.560:575$700
2.703:267$000
3.755:310$000
4.863:373$000
4.973:683$200
1.008:984$400
881:704$450
1.197:383$540
1.470:264$860
1.257:257$350
546:453$200
765:356$400
1.425:666$333
1.621:242$870
1.814:256$000
2.573:450$000
2.739:900$000
4.082:720$000
6.668:900$000
7.505:400$000

Fonte: (CORRA FILHO, 1926, p. 55-56-57).

Fora o consumo interno, possvel aferir que em torno de 130.000


cabeas de gado bovino passaram a ser comercializadas pelos produtores
e industriais de Mato Grosso na primeira dcada do sculo XX; alm do
que, o contrabando continuou expressivo, tanto para o Paraguai e Bolvia
como tambm para So Paulo e Minas Gerais.
A melhora do preo do gado bovino e a absoro do excedente
produzido no interior das fazendas pelo mercado aumentaram os rendimentos dos produtores rurais, os quais estreitaram relaes com seus
316

Paulo Marcos Esselin

pares, sobretudo de Minas Gerais, e comearam a incorporar novas tcnicas ao processo de produo, cresce a especializao da prpria pecuria,
com o contnuo aumento da produo. Com relao ao manejo, muito
pouco mudou, mas a grande reavaliao foi o melhoramento do padro
racial do rebanho na busca do aumento do desfrute e da produtividade.
Desde o ltimo quartel do sculo XIX, os produtores de Uberaba
passaram a importar da ndia o gado zebu, cuja caracterstica era a rusticidade. Os animais se adaptavam muito bem ao clima tropical, podiam ser
criados extensivamente, no dependiam de muitos cuidados e se revelaram extremamente precoces, fortes para o trabalho do campo e de rpida
reproduo. Onde os animais das chamadas raas finas se estinguiriam
ele prosperava. (VALVERDE, 1972, p. 116).
Uma raa bovina como a zebuna se encaixou perfeitamente s
necessidades dos produtores de Mato Grosso, j que nada podia ser melhor para uma regio em que as propriedades estavam, em sua maioria,
mergulhadas num regime primitivo de explorao das riquezas e sem
chance de rpida locomoo, era importante que os bovinos fossem rsticos, antes de tudo lucrativos. (SANTOS, 1998, p. 89).
Lentamente, o gado azebuado foi ganhando a plancie pantaneira
e a preferncia dos produtores, de modo que em 50 anos, ou seja, no comeo da dcada de 60, os primitivos rebanhos coloniais desapareceram
completamente.
Um inimigo contumaz do zebu assim se referiu sua proliferao
em Mato Grosso:
Desgraadamente, aquela belssima regio de Mato Grosso,
como alis todo o serto, foi invadida pelo Zebu, esse fantasma
oriental, que a se introduziu, destruindo a capacidade do nosso
gado nacional, muito suscetvel de melhorar-se com um rpido
cruzamento de reprodutores finos j conhecidos e experimentados.
(COTRIM apud SANTOS, 1998, p. 565).

A crtica era para os mtodos utilizados pelos vendedores-boiadeiros de Minas, que trocavam lotes de reprodutores indianos por novilhos
317

O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra

de corte. Diz o prprio Cotrim que, no raramente, pegavam espertamente, 100 novilhos de corte por um nico garrote zebu. (COTRIM
apud SANTOS, 1998, p. 565).
Ao lado da melhoria do padro racial, o arame farpado comeou
a aparecer nas propriedades do Pantanal como condio essencial para o
azebuamento do rebanho. As fazendas foram sendo cercadas, e as pastagens, divididas, propiciando a seleo dos animais. Com isso, o rebanho
foi sendo direcionado e preparado para a produo de carne.O rebanho
regional era conhecido na poca por sua inferior qualidade e, exatamente
por dispor de exgua quantidade de carne, s poderia ter aproveitamento
industrial lucrativo nos saladeiros e charqueadas (ALVES, 1984.) e por
isso foi aos poucos sendo substitudo pelo gado grado de forma arredondada, muito andejo e com visvel acmulo de carne no posterior.
Embora as tcnicas de pastoreio tenham permanecido extensivas
no Pantanal, aquelas prticas primitivas de manejo pecurio foram sendo
substitudas. O vaqueiro que fazia o rodeio, jogando o lao, foi desaparecendo.
O trabalho do gado continuou sendo feito entre dezembro e fevereiro. O gado era recolhido nas proximidades da sede da fazenda, onde se
realizava a marcao a ferro das crias novas, no quarto posterior direito,
a marcao na orelha, por meio de um corte, e a castrao dos garrotes.
Em vez de se fazer violentamente essas operaes, como antigamente,
subjugando e derrubando a rs, ela era conduzida ao brete, onde ficava
imobilizada e no sofria as torturas costumeiras. Em julho, os bezerros
acima de oito meses de idade eram apartados das respectivas mes. Passado o auge da estao seca, fazia-se a queima do pasto, prtica ainda
tradicional no pantanal sul-mato-grossense. Procuravam os fazendeiros,
ao lanar mo desse recurso, eliminar a macega, o capim-carona, fazendo
renascer tenro pasto junto com outros pastos naturais, de modo a servir
de alimentao do gado. (VALVERDE, 1972).
O perodo que se estendeu de 1870 a 1910 foi marcado pela lenta
integrao do Pantanal sul de Mato Grosso, ao mercado nacional, quando
318

Paulo Marcos Esselin

foram sendo construdas as bases para o desenvolvimento da pecuria de


corte. Esse foi um perodo que coincidiu com a substituio da criao
do bovino pela ovelha na Argentina e Uruguai, com o conseqente deslocamento de capitais desses pases para a explorao dos imensos rebanhos que estavam subutilizados na plancie pantaneira. Pouco mais tarde,
quando grandes frigorficos ingleses se instalaram naqueles dois pases
para a exportao da carne congelada ou em conserva para o mercado
europeu, ambos deixaram de fabricar o charque que, em parte, era exportado para o Brasil, cujo mercado foi ento suprido exclusivamente pela indstria nacional. (FLORES da CUNHA, 1928, V. 1). Isso permitiu novo
aporte de investimentos no Pantanal sul de Mato Grosso, o que acelerou
o processo de transformao de toda a regio. Os produtores passaram a
vender mais e melhor e, conseqentemente, as fazendas comearam a ser
melhoradas, as benfeitorias foram sendo construdas, as cercas foram separando as propriedades e permitindo melhor seleo dos animais, o que
abriu caminho para a estruturao de um dos mais importantes plantis
de gado bovino do mundo.

319

CONCLUSO

Desde o momento que os reinos ibricos decidiram pelo incio do


processo de colonizao da Amrica, o gado bovino, ao lado do eqino,
constituiu fator essencial para a conquista do Novo Mundo. Antes de
Cristovo Colombo pisar solo americano, as lhamas e as alpacas eram
utilizadas pelos nativos como animais de carga nos planaltos andinos,
onde eram encontradas.
No se tem notcia do emprego desses animais em outras regies
do continente. So de pequeno porte e de pouca resistncia para o transporte, como tambm para os labores da agricultura, imprestveis para os
servios requeridos naquele momento em que se iniciava a conquista e,
portanto, logo refugados pelos primeiros conquistadores. Dessa forma,
tornou-se imperiosa ao europeu a importao do gado vacum e cavalar.
No sem pouco sacrifcio, os animais atravessavam o oceano em
navios a vela, cuja capacidade no excedia 200 toneladas, o que limitava
a quantidade do gado, enfrentavam uma srie de privaes, desde a falta
de alimentos at a de gua, em viagens que, dependendo das condies
do tempo, levavam de dois a seis meses, com alto ndice de mortalidade.
Essas importaes em nmero reduzido justificavam os altos preos que esses animais alcanavam quando desembarcavam nos portos
americanos.
Nos primeiros sculos da colonizao, o gado bovino constituiu
pea decisiva desse processo, garantindo o sucesso do empreendimento, pois tornou-se o agente motor dos meios de transporte, a trao da
agricultura e, alm de indispensvel alimentao, a sua pele (couro)

constitua matria-prima de suma importncia, empregada desde o vesturio at a habitao, como tambm valiosa moeda de troca, j que se
tornou importante artigo de exportao com larga aceitao no mercado
europeu.
Na segunda viagem que Colombo fez Amrica, em fins do sculo
XV, trouxe com ele os primeiros exemplares de bovinos, que pouca dificuldade encontraram para sua adaptao. Sendo assim, muito rapidamente rebanhos expressivos eram encontrados por todo o continente.
medida que o processo de colonizao foi avanando, o gado
vacum foi se dispersando. Na etapa inaugural, coube aos espanhis, depois de ocupar as grandes Antilhas e, logo aps, a conquista dos imprios
asteca e inca, com a descoberta de grandes jazidas de metais preciosos,
ouro e prata, de rentabilidade muito alta, acelerar a entrada do rebanho
bovino para dar o suporte necessrio ao avano colonizador.
Do outro lado, coube coroa lusa encontrar uma alternativa de
utilizao econmica da imensa costa brasileira. Portugal tornou-se o
pioneiro no processo de organizao e montagem de uma empresa de
explorao colonial cuja base era a agricultura, com o cultivo da cana-de-acar em larga escala para o comrcio europeu. A soluo aucareira
implicou, desde o incio, a importao de um grande nmero de reses.
Desde cedo, no princpio do sculo XVI, rebanhos significativos j estavam apascentados de So Vicente at a Bahia, no Nordeste, onde surgiram os primeiros engenhos.
Se nas reas que despertaram interesse econmico para as metrpoles, o gado bovino foi introduzido muito rapidamente, o mesmo no
aconteceu naquelas onde no se produziam artigos de exportao para
o mercado mundial. Alis, essa era uma situao compreensvel. Com
pouco brilho, algumas regies subsistiram pobremente, com restritas
relaes comerciais com o mundo exterior, e, por isso, desenvolveram
caractersticas econmicas prprias. No tinham produtos que despertassem o interesse da metrpole, conseqentemente, no tinham moeda que
pudesse garantir a participao no mercado mundial.
322

Obviamente, a fora tratora do boi, que foi empregada durante


sculos na Amrica, tanto na agricultura como nos transportes, e representou, em determinados momentos do processo de colonizao, fator de
desenvolvimento, demorou alguns anos para chegar a essas regies onde
os colonos no dispunham de recursos para adquirir o gado vacum.
O Paraguai, que nos interessa mais de perto, pois foi dali que partiram os primeiros rebanhos bovinos para onde hoje o Pantanal sul-mato-grossense, s recebeu algumas poucas cabeas por volta de 1550, cerca
de vinte anos aps o incio da colonizao, e assim mesmo por iniciativa
de alguns paulistas que, frustados com a impossibilidade da produo da
cana-de-acar em So Paulo, rumaram para o Paraguai com seus haveres, esperando encontrar ali melhores condies para se estabelecerem.
Os conflitos entre portugueses e espanhis nas fronteiras do imprio americano e as constantes ameaas de invases dos primeiros nas
zonas mineradoras fizeram com que as autoridades metropolitanas espanholas tomassem medidas para reforar os plos pioneiros de colonizao para assegurar a posse do imenso territrio e oferecer resistncia aos
instrusos, fortalecendo os ncleos existentes e fundando novas cidades
para formar um cordo que protegesse as zonas produtoras de metal.
Com esse propsito, os reis espanhis condicionaram a nomeao
do Adelantado do Rio da Prata a Ortiz Zarate; ela s ocorreria desde que
ele conduzisse por sua conta e risco 500 trabalhadores e soldados e introduzisse na regio 4.000 cabeas de gado bovino.
Essa exigncia significava o fortalecimento militar da regio, a garantia da colonizao, a incorporao de novas reas ao processo de produo e a estruturao de um rebanho bovino que assegurasse mais tarde
fonte de renda aos moradores locais.
Essas importaes, que seguiram at o final do sculo XVI, fortaleceram a pecuria do Paraguai, e permitiram a sua expanso. J em 1580,
havia uma populao bovina muito acima das necessidades da populao.
No chamado Pantanal sul-mato-grossense, os primeiros bovinos
foram introduzidos em fins do sculo XVI pelos colonos espanhis
323

oriundos de Assuno. Impulso decisivo ao desenvolvimento da pecuria


veio pouco mais tarde, no comeo do sculo XVIII, quando os jesutas
tambm se instalaram no Pantanal, na regio do Itatim, onde iniciaram a
converso ao cristianismo dos ndios guaranis que ali viviam.
A organizao dos indgenas em redues onde pudessem receber
educao religiosa sistemtica impunha o desafio da necessidade de produzir alimento em quantidade suficiente para mant-los aldeados. Qualquer proviso que faltasse era argumento para que voltassem para a selva
ou para as margens dos rios, onde pudessem encontrar o alimento para
saciar a sua fome, o que interrompia o trabalho de catequese.
As condies climticas da plancie pantaneira no favoreceram
o desenvolvimento das culturas tradicionais. As lavouras se perdiam, s
vezes por falta de chuvas; outras, pelo excesso; ou ainda pela geada. Essas dificuldades de oferta regular de alimentos obrigaram tanto colonos
como jesutas a uma contnua importao de bovinos do Paraguai. Porm, sendo a regio extremamente generosa para o pleno desenvolvimento da pecuria, com pastagens naturais variadas e ricas, que favoreciam
a rpida reproduo dos bovinos, o volume do rebanho foi aumentando
rapidamente.
Nessas extensas reas, sem qualquer tipo de diviso ou de cercas,
nada freava a fuga dos animais, que rapidamente se multiplicavam e se
dispersavam pela plancie do Pantanal. Por outro lado, os ataques de nativos insubmissos aos ncleos espanhis tambm contribuam para o alongamento dos rebanhos.
Mesmo assim, as redues prosperavam; com aproveitamento do
trabalho dos nativos, logo foram formadas pequenas propriedades rurais,
cuja atividade principal era a pecuria bovina.
Esse perodo de organizao das redues no Pantanal coincidiu
com o dos ataques sistemticos dos habitantes de So Paulo s aldeias
jesuticas espalhadas pelo imprio espanhol. Os bandeirantes, fortemente armados, organizavam grandes exrcitos para cativar os indgenas e
vend-los como escravos aos engenhos de acar do nordeste brasileiro.
324

Em duas ocasies, as misses do Itatim foram atacadas pelos paulistas. A resistncia local foi intil, e os jesutas derrotados transladaram
suas redues para as proximidades de Assuno, abandonando todo o
gado que haviam conseguido reunir.
Na plancie, os bovinos encontraram condies ambientais favorveis sua reproduo, mas outros fatores tambm foram importantes
para o desenvolvimento da pecuria, como as epidemias e enfermidades
que contriburam para o decrscimo da populao nativa do Itatim, vitimada por inmeras doenas transmitidas pelos europeus. A maioria dos
indgenas que sobreviveu aos ataques bandeirantes e s doenas foi novamente realdeada e conduzida para as proximidades de Assuno. Com
isso, o territrio do Itatim foi praticamente despovoado de sua populao
nativa, e os que j haviam incorporado a carne bovina sua dieta foram
transladados para muito longe, condio importante para a proliferao
do gado bovino, porque as demais naes indgenas que no foram aldeadas valorizavam outra dieta protica e abatiam caas que faziam parte
da fauna pantaneira, como o veado, a anta, a capivara. Assim, a pecuria
se expandiu atravs da reproduo natural do gado em campos imensos
providos de salinas naturais.
O gado das misses do Itatim e dos colonos espanhis ficou confinado na plancie pantaneira, protegido pelos acidentes geogrficos, a
serra de Maracaju e o rio Paraguai, que impossibilitaram o seu alongamento para o planalto. Essa regio hoje denominada Pantanal era, nos
sculos XVII e XVIII, conhecida como Vacaria, assim nominada pelos
portugueses aps estes deixarem registrado o encontro de rebanhos silvestres que vagavam na regio sem nenhum proprietrio que deles se
ocupasse economicamente. Do lado espanhol, as patrulhas organizadas
em Assuno, para acompanhar o movimento portugus, tambm davam
notcias de rebanhos bovinos vivendo silvestremente na plancie e sem
trato algum.
A descoberta dos metais em Cuiab pelos bandeirantes paulistas
no incio do sculo XVIII criou vnculos entre a rea mineradora e a pla325

ncie pantaneira. Todo o gado bovino utilizado no incio desse novo empreendimento era conduzido da plancie por tropeiros ou em pequenas
embarcaes e com eles os pioneiros estruturaram os primeiros rebanhos
na zona de minerao. Foi, portanto, com os bovinos descendentes das
redues do Itatim e de Santiago de Xerez que se iniciou a explorao da
pecuria nos arredores de Cuiab.
A tradicional historiografia mato-grossense tem afirmado que a
pecuria em Mato Grosso se iniciou em 1737, quando foram introduzidos
os primeiros exemplares vindo de Gois. No entanto, o registro de Joo
Cabral Camelo, a mais antiga narrativa das viagens monoeiras, esclarece
que, desde 1727, algumas cabeas de gado e cavalo foram sendo introduzidas, por ele mesmo, na regio de Cuiab e que em 1730 j havia em Cuiab
cinco engenhos de cana-de-acar em funcionamento, que seguramente
recorriam aos animais de trao para poder produzir. inadimissvel
acreditar que no houvesse um estoque de animais de servio por essa
ocasio na regio mineira, at porque os mineradores no iriam deslocar
seus escravos para outro ramo de atividade que no fosse a minerao.
Tambm no se pode deixar de considerar que, desde o ano de
1725, apenas sete anos aps a descoberta das jazidas de ouro em Cuiab,
o Capito General da Capitania de So Paulo, a quem Mato Grosso estava submetido, autorizou a conduo de gado da Vacaria para a regio
mineradora, fato que vem comprovar o intercmbio entre as duas reas e
o aproveitamento do bovino no incio das atividades em Cuiab.
O gado da Vacaria possibilitou ainda o surgimento de outros entrepostos comerciais, instalados nas barras dos principais afluentes do rio
Paran, no curso das mones, para garantir suprimentos queles que se
deslocavam de So Paulo a Cuiab ou vice-versa.
Assim que o rebanho bovino foi se estruturando em Cuiab, o
fluxo de tropeiros para a pega do gado na Vacaria foi diminuindo, o que
contribuiu para que o rebanho da Plancie no sofresse nenhum outro
desfalque e continuasse crescendo vertiginosamente.
326

Novo aparte de gado bovino para a plancie pantaneira veio com


os ndios cavaleiros, os temidos Guaikuru, no fim do sculo XVIII e
comeo do XIX.
A deciso das Coroas Portuguesa e Espanhola em consolidar suas
posies na fronteira do territrio sul-mato-grossense resultou, por parte
da primeira, no estabelecimento de presdios guarnecidos por tropas estrategicamente dispostas nos limites do imprio colonial, como o Forte
Coimbra, os povoados de Albuquerque e de Corumb e mais tarde, o de
Miranda.
Pelo lado castelhano, alm da construo dos fortes, o Governo
concedeu terras aos colonos, ficando os beneficirios obrigados a promover a defesa do territrio, e assim foram sendo formadas fazendas dedicadas basicamente pecuria na fronteira com o atual Mato Grosso do Sul.
No ano de 1791, o Capito-General da Provncia de Mato Grosso, Joo Albuquerque de Mello Pereira e Cceres, assinou tratado de paz
com a nao guaikuru e, aproveitando-se da belicosidade desta, passou a
estimular ataques aos novos plos de colonizao espanhola, oferecendo
apoio logstico para o sucesso das investidas. Os indgenas apoderavam-se dos estoques de bovinos e eqinos no territrio paraguaio e os introduziam na plancie pantaneira, contribuindo para o aumento ainda maior
do rebanho.
Com a continuidade dos ataques indgenas aos ncleos populacionais castelhanos, os espanhis passaram a organizar tropas para reprimi-los. As foras policiais invadiam os territrios da Coroa Portuguesa e
promoviam verdadeiros massacres contra os nativos. As autoridades lusas
acompanhavam distncia e com complacncia o enfraquecimento dos
seus aliados, os Guaikuru e, ao que parece, intencionalmente, porque se
por um lado, os ndios, ao atacar os espanhis, dificultavam a sua fixao na fronteira do Apa e evitavam presses sobre as reas do territrio
portugus, por outro, os ataques desferidos contra os ndios contribuam
sobremaneira para a destruio de um grupo que oferecia forte resistncia
queles que desejavam se fixar na plancie pantaneira, e, assim o amansa327

mento do Pantanal sul-mato-grossense foi sendo conquistado custa de


intensos massacres praticados contra a sua populao nativa.
No incio do sculo XIX, a plancie pantaneira j oferecia alguns
atrativos aos pecuaristas que desejassem se fixar na regio. Havia extensos campos de pastagens providos de salinas naturais, gua abundante, os
rebanhos alados eram facilmente encontrados, as terras eram devolutas
e os grupos nativos no ofereciam mais os riscos do passado.
Nessa poca, o Brasil conquistou a sua independncia ao se libertar
de Portugal. Alm das dificuldades polticas enfrentadas com o processo
emancipatrio, o Pas se viu envolvido com problemas de ordem econmica. A crise da agricultura tradicional brasileira, que se estendeu de 1821
at 1850, foi marcada pela reduo dos preos dos produtos exportveis
com a consequente queda das receitas e contnuos dficits oramentrios.
Essa escassez de recursos econmicos nos primeiros anos aps a conquista da independncia criou um clima de insatisfao entre as Provncias e
o Governo Central, com revoltas populares que se estenderam por todo
o imprio.
A Rusga, ocorrida em 1834 em Mato Grosso, provocou o deslocamento para o Pantanal sul de um expressivo nmero de fazendeiros que,
fugindo da Justia por crimes provocados contra portugueses em vrias
cidades no norte de Mato Grosso, internaram-se pela regio dos rios Taboco e Nioaque e nos vales do Miranda e Negro, onde se estabeleceram.
A fundao das Colnias Militares de Nioaque (1855), Dourados
(1856) e Miranda (1860) na fronteira com o Paraguai ofereceu algum suporte para essa primeira leva de povoamento.
H de se perguntar: por que os fugitivos se estabeleceram numa
regio to inspita como o Pantanal? Por que no se assentaram no
Planalto, rea mais prxima das Provncias de So Paulo, Minas e Gois,
onde poderiam realizar intensa atividade comercial com as regies mais
ricas do imprio e as oportunidades seriam muito maiores?
Ora, embora mais bem localizada e muito menos insalubre que o
Pantanal, l no havia um grande rebanho bovino e eqino esperando
328

pelos colonizadores, como era o caso do Pantanal. Essa sim foi a grande
diferena, pois com esses animais foi possvel organizar as primeiras propriedades: o gado foi sendo amansado, o couro era a principal mercadoria
de troca e a carne seca tambm oferecia alguns recursos para os pioneiros.
No comeo da dcada de 1850, tal era o volume do rebanho bovino que foram se estreitando os laos comerciais entre os produtores do
Pantanal sul e os tropeiros que vinham de Minas Gerais. Com o rpido
processo de urbanizao que o Brasil viveu a partir do incio do sculo
XIX, os tradicionais fornecedores do gado bovino, como Gois, So Paulo e Minas Gerais, j no conseguiam atender a demanda interna, sendo
necessrio recorrer ao rebanho sul-mato-grossense.
A assinatura do Tratado de amizade, comrcio e navegao entre
o Brasil e o Paraguai, que abriu o rio homnimo livre navegao, constituiu, entre outros fatores, um estmulo para os produtores ampliarem
as exportaes de couro e de carne seca, o que possibilitou o aumento
da renda interna. Com isso, algumas fazendas prosperaram e a Provncia
vagarosamente foi se integrando economia nacional.
Esse pequeno progresso foi interrompido com o incio da guerra
com o Paraguai. Durante quase cinco anos, a Provncia esteve ocupada
por tropas inimigas, sendo territrio completamente devastado e saqueado. Uma das razes que levou Lopes a invadir a Provncia de Mato Grosso, sobretudo a regio do Pantanal sul, foi a existncia dos estoques de
gado bovino e equino que povoavam toda a plancie.
O rebanho local abasteceu as tropas invasoras, a populao assuncenha e tambm os prisioneiros de guerra. H, entre os historiadores
mato-grossenses, um certo consenso de que os paraguaios teriam exterminado o rebanho bovino pantaneiro; no entanto, a peste das cadeiras
que atingiu o rebanho eqino com alta taxa de mortalidade acabou por
imobilizar os guaranis, no permitindo que reunissem condies para
realizar o manejo do gado.
Tal fator limitante contribuiu para que o gado fosse se alongando, juntando-se ao rebanho selvagem e colocando-se fora do alcance do
329

homem. Documentos e relatos dos contemporneos, testemunhas oculares dos acontecimentos, colhidos em crnicas, relatrios e cartas, dentre
eles, destacando-se Visconde Taunay e Joaquim Ferreira Moutinho, e de
Presidentes de Provncia, no deixaram dvida: havia um rebanho significativo que nem as tropas do Imprio Brasileiro nem as da Repblica
Paraguaia conseguiam manejar, devido peste eqina.
Essa referida doena, apesar dos seus malefcios do ponto de vista
econmico, acabou por contribuir decisivamente para a preservao do
rebanho bovino do Pantanal sul. O fenmeno, ocorrido em meados do
sculo XVII com o gado das redues jesuticas, repetia-se em pleno sculo XIX. Desta vez, a guerra e a falta de eqinos para o manejo do gado
contriburam para a sua disperso. Por isso, quando a guerra terminou,
havia grandes estoques por toda a plancie.
Preservado, o bovino alado exerceu forte atrao sobre os soldados do Exrcito Brasileiro que, desmobilizados, resolveram permanecer
em territrio sul-mato-grossense. Alm disso, as vastas reas cobertas de
pastagem nativa e devolutas, o fato de a pecuria no exigir grande quantidade de braos para o seu desenvolvimento, ao contrrio da agricultura,
bem como a possibilidade de deslocamento do rebanho para os centros
consumidores com poucos gastos tornaram-se estmulos para a fixao
no Pantanal.
Ao lado das iniciativas particulares, o Imprio, temeroso de novas
agresses na distante Provncia, decidiu adotar providncias que visavam
integridade territorial e unidade do Imprio. A reabertura do rio Paraguai navegao e as medidas de apoio ao desenvolvimento comercial,
como a iseno de tributos aos produtos de importao e exportao comercializados nos principais portos de Mato Grosso, abriram perspectivas para o desenvolvimento local, como tambm possibilitaram a entrada
de capitais estrangeiros, decisivos para o crescimento econmico da regio.
Embora houvesse relativo desenvolvimento econmico e populacional, a Provncia continuou enfrentando muitas dificuldades, sobretu330

do no campo. A peste das cadeiras continuou por todo o sculo XIX,


dizimando rebanhos eqinos inteiros, o que dificultava a venda do gado
para as regies onde se processava a engorda. O contrabando de gado
tornou-se endmico, sendo praticado de forma sistemtica para a Bolvia
e, principalmente, para o Paraguai. O Governo local no dispunha de
recursos humanos e financeiros para coibir prtica to danosa ao errio
pblico.
Mesmo com todas essas dificuldades, o rebanho crescia muito acima da capacidade do consumo da populao, porque no se conseguia
vender todo o excedente produzido nas fazendas.
Em 1863, o rebanho mato-grossense era estimado em 500 mil cabeas e em 1910, em 2.500.000.
Na dcada de 1870, Mato Grosso detinha grandes e baratos excedentes bovinos, subutilizados, e uma posio estratgica em relao
a Minas Gerais, centro onde se processava a engorda. Por outro lado,
havia um mercado de charque em franca expanso para os produtores
brasileiros.
Esse perodo coincidiu com a substituio do criatrio bovino pelo
do ovino na Argentina e Uruguai, pases que optaram pela exportao
de l para o mercado europeu, muito mais rendosa que a criao bovina.
Logo, alguns empresrios argentinos e uruguaios, ligados produo de
charque e sua exportao, sobretudo ao Brasil, resolveram se instalar em
Mato Grosso.
Em 1873, foi instalada a primeira charqueada no Pantanal norte,
ao sul de Cceres, com abate de 5.000 cabeas anuais. Essa iniciativa estimulou a instalao de algumas outras de menor porte na regio, como
a do Pindaibal, Triunfo, So Joo, e na regio do Pantanal sul, onde, na
primeira dcada do sculo XX, trs grandes indstrias foram instaladas.
Haviam-se passado menos de quarenta anos do fim da guerra com o Paraguai e mesmo com o abate indiscriminado durante parte do perodo de
hostilidade pelas tropas invasoras, com o intenso contrabando interno e
externo no ps-guerra, com o abate para o consumo local e para a pro331

duo de carne seca para a exportao, e tendo o rebanho continuado a


ser subutilizado, criou-se nesse perodo um excedente expressivo que garantiu um fornecimento seguro de matria-prima para o funcionamento
das charqueadas com oferta to significativa que o preo da rs atingiu $
40,00 no Pantanal sul, enquanto que no sudeste era de $ 100,00.
Tal fato demonstra claramente que no fim da guerra havia ainda
grandes estoques de bovinos na plancie e que no perodo do ps-guerra
houve intenso crescimento do rebanho, sendo essa a principal justificativa para a instalao das empresas de industrializao da carne na regio.
Outros fatores tambm cotriburam para a instalao destas charqueadas, tais como a entrada de grandes frigorficos no Uruguai e Argentina com emprego de mtodos mais eficientes no aproveitamento da
matria-prima, permitindo a oferta de melhores preos aos pecuaristas e
com isso dificultando a sobrevivncia das charqueadas locais. No conseguindo concorrer com essas modernas empresas, alguns empresrios
platinos transferiram suas atividades para o Pantanal sul.
Outro estmulo para a vinda de capitais platinos para o Pantanal
sul e a instalao de indstrias para a explorao da carne foi a cobrana
de impostos nas aduanas brasileiras sobre a importao do charque oriundo da Argentina e Uruguai.
A indstria de charque do Rio Grande do Sul enfrentou forte
concorrncia uruguaia e argentina durante longo perodo. Como ambas
haviam alcanado uma base tcnica mais poderosa, com produtividade
superior dos seus concorrentes, o Governo imperial resolveu adotar
tarifas protecionistas para dar competitividade indstria gacha. Para
fugir a essas restries, uruguaios e argentinos se instalaram em territrio
nacional exclusivamente para abastecer os mercados do Rio de Janeiro e
Nordeste, onde o consumo era significativo. Por outro lado, a reabertura
da navegao do rio Paraguai desde 1870 garantia com eficincia o escoamento da produo a preos relativamente baixos.
Esse conjunto harmonioso de fatores contribuiu para acelerar o
processo de desenvolvimento da pecuria pantaneira, que atingiu o seu
pice na primeira dcada do sculo XX.
332

O mercado nacional da carne vinha crescendo vertiginosamente.


medida que as potncias industrializadas se preparavam para a guerra,
o encarecimento dos produtos de importao constitua um estmulo
industrializao interna, desencadeando intenso processo de urbanizao
no Pas com o surgimento de grandes cidades de caractersticas metropolitanas, como So Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
Em 1889, havia em todo o Pas 900 fbricas com 54.200 operrios, tendo em 1914, evoludo para 7.430 fbricas e 275.500 operrios.
(CARONE, 1986). Como as tradicionais regies produtoras de gado bovino no conseguiam atender a esse mercado, os invernistas passaram a
buscar matria-prima com maior regularidade em Mato Grosso, a ponto
de, em 1909, o Estado exportar 59.401 cabeas em p para as invernadas
paulistas e mineiras, 718.920 quilos de charque e 39.203 quilos de caldo
de carne.
A efetiva incorporao de Mato Grosso ao mercado nacional e as
rendas auferidas com a comercializao plena tiveram impacto positivo
sobre os produtores rurais locais, os quais, com mais recursos, passaram a
modernizar a atividade com a incorporao de novas tcnicas de manejo,
de experincias de regies mais desenvolvidas do Pas, e introduziram
reprodutores selecionados, iniciando a melhoria do padro racial do rebanho e atendendo tambm s exigncias do novo mercado consumidor.
Aumentou-se, assim, a produtividade pecuria, as fazendas foram sendo cercadas e subdivididas em retiros, simplificando e melhorando a sua
infra-estrutura.
No comeo do sculo XX, as bases da pecuria pantaneira estavam solidamente estabelecidas; ao lado da erva-mate, j constituam a
principal atividade econmica do Estado, onde se iniciava a especializao na produo do gado de corte, na sua fase de cria e recria. A venda
do gado em p para invernistas do sudeste se justificava pela distncia do
Pantanal dos grandes centros de industrializao da carne.
A industrializao interna atravs das charqueadas, embora significativa, no tinha capacidade para absorver toda a produo pantaneira,
que s se completava com a venda do gado em p para outros Estados.
333

No conjunto da produo pecuria sobressaiu a indstria de transformao da carne que passou a ocupar lugar destacado na economia
regional, devido ao caracter capitalista, com o emprego de mquinas modernas e trabalhadores especializados, esses geralmente oriundos do Uruguai, Paraguai e do Rio Grande do Sul.
O mesmo, no aconteceu no campo, onde a pecuria manteve as
prticas pr capitalistas de produo, alias muito apropriadas estrutura
latifundiria da regio. Assim, as relaes sociais de trabalho permaneceram extremamente atrasadas com o emprego da mo-de-obra familiar
muitas vezes no remunerada, mantendo a massa humana que tirava a
sua subsistncia dali no mais lamentvel estado de pobreza e ignorncia, situao que vem se modificando atualmente devido as exigncias do
mercado.
O processo de colonizao do Pantanal, desde o princpio do sculo XVI, esteve estreitamente ligado pecuria. As limitaes impostas
pelo meio-ambiente foram superadas pelo bovino, que garantiu a ocupao econmica da plancie e contribuiu decisivamente para a incorporao da regio ao mercado nacional.

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ARAUJO, Nilson. Campo Grande, 12 de dezembro de 2002.
BARROS, Abilio Leite. Campo Grande, 13 de outubro de 2001.
BITTAR, Marisa. Campo Grande, 1 de maro de 2001.
FERREIRA JUNIOR, Amarilio Campo Grande, 29 de fevereiro de
2001.
FERREIRA JUNIOR, Amarilio Campo Grande, 9 de janeiro de 2002.
MACHADO de OLIVEIRA, Tito Carlos. Campo Grande, 19 de setembro de 2001.
MACHADO de OLIVEIRA, Tito Carlos. Campo Grande, 15 de abril
de 2002.
MARTINS, Gilson Rodolfo. Campo Grande, 22 de setembro de 2000.
MARTINS, Gilson Rodolfo. Campo Grande, 7 de janeiro de 2002.
MICHELS, Ido Luis. Campo Grande, 22 de dezembro de 2001.
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Relatorio com que o Exm. Snr. Dr. Joo Jose Pedrosa Presidente da
Provincia de Mato Grosso abrio a 1 Sesso da 22 Legislatura da
respectiva Assembla no dia 1 de Novembro de 1878. Cuyaba, 1878.
APMT. Manuscrito.
Relatorio com que o Exmo. Sr. Dor Joo Jose Pedrosa Presidente da
Provincia de Matto Grosso abrio a 2 Sesso da 22 Legislatura da
356

respectiva Assembla no dia 1 de Outubro de 1879. Cuyaba, APMT.


Manuscrito.
Relatorio com que o Exmo. Sr. Francisco Jose Cardoso Junior Presidente da Provincia de Mato Grosso abrio a Assembla Provincial.
Cuyaba. 1872. APMT. Manuscrito.
Relatorio apresentado a Assembla Legislativa Provincial de Matto
Grosso pelo Presidente da Provincia Doutor Joaquim Galdino Maciel no dia 12 de Julho de 1886. Cuyaba, APMT. Manuscrito.
Relatorio com que o General Baro de Maracaju Presidente da Provincia de Matto Grosso abrio a 1 Sesso da 23 legislatura da respectiva Assembla, no dia 1 de Outubro de 1880. Cuyaba. APMT.
Manuscrito.
Relatorio com que o Exmo. Sem Baro de Aguapehy 1 vice Presidente passou a administrao da Provincia de Mato Grosso ao
Exm Senr General Hermy Ernesto da Fonseca. Em 4 de Maro de
1878. Cuyaba, APMT. Manuscrito.
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FALLA com que o Exmo. Snr. General Baro de Batavy abrio a 1
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357

Relatorio Apresentado Assembla Legislativa Provincial de Matto


Grosso pelo Presidente da Provincia Doutor Joaquim Galdino Pimentel no dia 12 de Julho de 1886. Cuyaba, 1886. Manuscrito.
Mensagem dirigida pelo Exmo Senhor General Dr. Caetano Manoel de Faria e Albuquerque, Presidente do Estado de Matto Grosso
Assembla Legislativa ao installar-se a 2 sesso ordinria da 10
legislatura em 15 de maio de 1916.
Mensagem dirigida pelo Presidente do Estado Dr. Manoel Jose
Murtinho a Assembla Legislativa do Mmo Estado em sua segunda reunio 13 de maio de 1893.
Mensagem apresentada Assembla Legislativa em 1 de fevereiro
de 1896, pelo Exmo. Sr. Dr. Antonio Corra da Costa Presidente de
Estado. Cuyaba: Typographia do Estado, 1896.
Mensagem do Presidente do Estado de Matto Grosso Dr. Manoel
Jose Murtinho a Assembla Legislativa em sua 2 sesso ordinria
aberta em 13 de maio de 1895.
Mensagem dirigida pelo Coronel Pedro Celestino Corra da Costa
1 Vice-Presidente do Estado, em exerccio, Assembla Legislativa ao installar-se a 1 sesso da 8 Legislatura, em 13 de maio de
1909. Cuyaba. Typografia Official, 1909.
Mensagem apresentada pelo Exmo. Sr. Coronel Pedro Celestino
Corra da Costa Presidente do Estado Assembla Legislativa em
sua 2 sesso da 8 legislatura em 13 de maio de 1910.

358

Impresso e Acabamento

Triunfal Grfica e Editora


Rua Jos Vieira da Cunha e Silva, 920/930/940 - Assis/SP
CEP 19800-141 - Fone: (18) 3322-5775 - Fone/Fax: (18) 3324-3614
CNPJ 11.184.290/0001-97

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