A Pecuária Bovina No Processo de Ocupação e Desenvolvimento Econômico Do Pantanal Sul-Mato-Grossense PDF
A Pecuária Bovina No Processo de Ocupação e Desenvolvimento Econômico Do Pantanal Sul-Mato-Grossense PDF
A Pecuária Bovina No Processo de Ocupação e Desenvolvimento Econômico Do Pantanal Sul-Mato-Grossense PDF
2011
AGRADECIMENTOS
No trmino desta pesquisa, voltei meus olhos ao caminho que percorri para realiz-la e, assim, revendo essa longa e penosa caminhada de
aventura e desventuras, fui-me recordando de todos aqueles amigos e das
instituies que contriburam para que este trabalho fosse bem sucedido,
porque essa era a expectativa de todos que me auxiliaram.
Ao professor Dr. Earle Diniz Macarthy Moreira, agradeo as crticas e sugestes que em algumas ocasies mudaram o curso da pesquisa,
colocando-a em melhor caminho.
Aos professores Carlos Frederico Correa da Costa, Mrio Baldo,
Carlos Martins Jnior e Vera Lcia Vargas, todos do Departamento de
Histria do Campus de Aquidauana, agradeo pelas intensas discusses
durante todo o andamento da pesquisa, como pelo fato de me disponibilizarem farto material relativo historiografia sul-mato-grossense.
Aos professores Amarlio Ferreira Junior e Marisa Bittar, agradeo por compartilharem minhas dificuldades, discutindo minuciosamente
todas as dvidas que foram surgindo nas mais diversas fases da pesquisa.
Aos professores Antnio Firmino de Oliveira, Nilson Arajo e
Tito Carlos Machado de Oliveira, agradeo pelas valiosas sugestes e
contribuies que prestaram.
Ao professor Padre Pedro Igncio Schmitz, agradeo por franquear a Biblioteca do Instituto Anchietano de Pesquisas e a sua particular,
criando as melhores condies para que eu pudesse desenvolver o meu
trabalho.
SUMRIO
INTRODUO .....................................................................................................
1.
11
37
37
41
45
49
55
74
3.
INTRODUO
Elevados investimentos e esforos garantem anualmente a melhoria da produtividade e da qualidade da carne bovina. O Estado, praticamente, conseguiu seu credenciamento para exportar carne bovina para a
Comunidade Econmica Europia, o mais exigente mercado do mundo.
O Estado confunde-se com o gado. A maioria de seus mais destacados representantes no meio poltico tem estreita ligao com ele. So,
geralmente, latifundirios e pecuaristas que exercem o poder e nele se
revezam a cada eleio.
As campanhas polticas so marcadas pela influncia da cultura do
seguimento da pecuria, cujo discurso se faz presente em todos os palanques. Vrias manifestaes artsticas tm por inspirao o capim e o boi.
H uma tendncia generalizada entre os integrantes das camadas
mdias da sociedade de comprar terras e bois. Quer com isso ganhos e
ascenso social, uma forma de status que a pecuria garante.
Apesar da pujana da pecuria, no Estado poucos so os estudos
a seu respeito. A historiografia regional pouca importncia deu ao gado
bovino, como tambm influncia da pecuria na ocupao e desenvolvimento econmico do Estado.
Nos ltimos anos, a pecuria vem recebendo um tratamento privilegiado dos meios acadmicos, cujas pesquisas so direcionadas para oferecer s autoridades governamentais trabalhos cientficos com o propsito de fornecer informaes que orientem as polticas pblicas do setor.
O estudo da cadeia produtiva da carne bovina de Mato Grosso do Sul,
elaborado pelo grupo de estudos em agronegcios da Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul, realizado por meio de intensas
pesquisas, atravs das quais se constata a realidade desse importante setor
da economia regional e se oferecem instrumentos efetivos para o seu desenvolvimento. No entanto, esses estudos privilegiam a conjuntura atual.
Os trabalhos, at agora desenvolvidos, procuraram orientar empresrios
e autoridades governamentais; os primeiros, a adotarem procedimentos
tcnicos nas suas empresas rurais, com o objetivo de aumentar a competitividade da cadeia produtiva, e os ltimos, para colocarem em prtica
polticas pblicas que possibilitem, por exemplo, o aumento da produti12
pioneiros como dispersaram o gado por toda a regio do Pantanal sul-mato-grossense, onde os rebanhos puderam multiplicar-se livremente,
devido aos imensos campos de pastagem natural e aos terrenos salitrosos,
altamente favorveis para a sua reproduo.
O gado bovino bravio e em estado selvagem passou a atrair alguns
poucos aventureiros a se afazendarem na regio, no fim do sculo XVIII,
geralmente militares que se desligavam das guarnies de fronteira. Mas
o principal impulso colonizao veio dos conflitos entre nativistas e
portugueses, episdio conhecido como Rusga. A revolta nativista registrada em Mato Grosso, em 1834, foi propulsora, provocando os primeiros deslocamentos de fazendeiros para o sul, sobretudo no final da
dcada de 30 do sculo XIX. Homens de relevo na poltica e economia
desceram para a banda meridional da Capitania de Mato Grosso e, fugindo dos inconvenientes das perseguies polticas e da Justia, internaram-se no Pantanal, onde fundaram diversas fazendas.
A colonizao tardia e as dificuldades de transporte1 acabaram por
favorecer o desenvolvimento da pecuria. A comercializao do bovino
era extremamente reduzida, o que permitiu uma acumulao do excedente de produo de atividade criatria, resultando no crescimento do
rebanho, e isso propiciou, mais tarde, o desenvolvimento da indstria de
aproveitamento do gado e de seus subprodutos.
Colocada a hiptese, torna-se necessria a especificao do marco
temporal. Nesse caso, a abrangncia desta pesquisa abarca desde o terceiro quartel do sculo XIX at a primeira dcada do sculo XX, quando
surgiram as primeiras charqueadas no sul de Mato Grosso. No entanto, o
estudo buscou, nos registros referentes aos sculos XVI e XVII, explicar
as origens do gado bovino, sendo aprofundado a partir de 1830, quando
teve incio a efetiva ocupao do sul de Mato Grosso, se estendendo at
1910 quando se iniciou o fim de um modelo de explorao da terra e o
16
J no sculo XVII, as correspondncias dos jesutas fornecem informaes de constantes ataques promovidos por nativos que se opunham colonizao dos bandeirantes paulistas, os quais vinham em
busca dos indgenas, o que possibilitou a disperso de todo o rebanho
reunido nas redues pelo Pantanal.
E esses registros deixados pelos jesutas que prestaram servios no
Pantanal sul permitiram auferir que o gado das misses se propagou por
toda a plancie do Pantanal, como ocorreu no Rio Grande do Sul e no
Uruguai, em experincia semelhante.
Documentao importante tambm so as crnicas e relatos de
viagens organizadas por Afonso de E. Taunay nas obras Relatos Sertanistas e Relatos Monoeiros, onde esto reunidas narrativas de testemunhas oculares dos acontecimentos a que nos reportamos, muitas delas
minuciosas, outras objetivas, algumas com grande capacidade de observao, porm todas relevantes.
Por meio desses registros, foi possvel, em primeiro lugar, delimitar o territrio nominado Vacaria pelos sertanistas como sendo a Plancie
Pantaneira e no a regio do Planalto de Maracaju-Campo Grande como,
em parte, hoje conhecido. Em segundo lugar, foi possvel tambm identificar que os campos dos pantanais mato-grossenses estavam, no fim do
sculo XVII, abrigando grandes manadas de bovinos e eqinos que se
multiplicavam muito rapidamente, aproveitando-se das boas condies
ambientais. Em terceiro lugar, pde-se constatar que o gado da plancie
pantaneira foi, durante o ciclo do ouro, arrebanhado pelos sertanistas em
pequenos lotes e levados para Cuiab e outros povoados que surgiram
para atender os comerciantes que se deslocavam para a regio das minas,
o que contribuiu para sua disperso por todo o Planalto.
Outra fonte de consulta extremamente importante foi Bandeirantes no Paraguai, publicada pela Diviso do Arquivo Histrico do Departamento de Cultura, da Secretaria de Educao da Prefeitura Municipal
de So Paulo. A obra rene 29 documentos dos sculos XVII e XVIII
que trazem detalhes dos conflitos entre assuncenhos (colonos espanhis)
18
e bandeirantes paulistas. Muitos deles retratam a organizao de patrulhas em Assuno com o objetivo de observar e, se possvel, embaraar
os movimentos portugueses na plancie do Pantanal. Nessas constantes
arremetidas ao territrio do atual Mato Grosso do Sul, como de praxe,
seus lderes elaboraram relatrios que davam conta da existncia de muito
gado na regio, como tambm de que os paulistas deles se serviam para
promover suas costumeiras incurses pelos territrios supostamente da
Coroa Espanhola.
A documentao de Marcos Carneiro de Mendona, organizada
pela Biblioteca Reprogrfica Xerox, possibilitou o entendimento da poltica desenvolvida pela Coroa Portuguesa e, depois, pelo Imprio Brasileiro na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolvia. Retrata a unio e
amizade dos soldados e comandantes dos fortes do mdio Paraguai com
os nativos, o comrcio de gado, cavalos e peles realizado na fronteira e as
depredaes promovidas pelos Mbaya Guaicuru aos ncleos espanhis
na fronteira, com apoio logstico de militares portugueses e, mais tarde,
de brasileiros.
Se foi possvel reunir farta documentao sobre os sculos XVI,
XVII e XVIII com testemunhos dos contemporneos que permitiram
reconstituir as condies de vida da poca, os objetivos bsicos da colonizao, as expectativas dos colonizadores, as motivaes que os levavam
a enfrentar um ambiente hostil, os conflitos entre os plos, como tambm as condies de vida dos pioneiros, j sobre as primeiras dcadas do
sculo XIX, as fontes documentais so extremamente escassas, sobretudo quando se inicia a formao das primeiras fazendas no sul de Mato
Grosso. Durante a guerra com o Paraguai, os soldados dos exrcitos invasores destruram toda a estrutura administrativa existente na Provncia,
os documentos cartoriais e registros firmados em parquias dos antigos
ncleos urbanos desapareceram ou foram incinerados.
Para suprir esse vazio, foram utilizados os recursos tcnicos da
Histria Oral. Foi necessrio recorrer a outras fontes que possibilitassem
a produo de novos registros. Isso no significou que as entrevistas sim19
As entrevistas, alm de contribuir para preencher uma lacuna documental, enriqueceram sobremaneira o texto com depoimentos inditos
e fundamentais sobre os tempos que retrataram a vida nos primrdios de
Mato Grosso. Por outro lado, um autor alerta quanto ao uso do recurso
oral. Ainda hoje a cultura das classes subalternas (e muito mais, se pensarmos nos sculos passados) predominantemente oral. (GINZBURG,
1987, p. 18). Essa dificuldade de encontrar fontes primrias na regio do
Pantanal sul-mato-grossense, devido sua destruio quando da Guerra
do Paraguai, foi tambm, de certa forma, compensada com um amplo
levantamento realizado no Arquivo Pblico de Mato Grosso, onde foram
encontrados documentos relativos ao perodo de 1860 a 1910, ofcios, correspondncias particulares e oficiais e, sobretudo, relatrios e mensagens
de Presidentes e Vice-Presidentes de Provncias. Embora esses registros
oficiais revelaram em geral o ponto de vista das autoridades constitudas,
a sua utilizao contribuiu para construir a viso que as elites e o grupo
dirigente tinham de Mato Grosso, da pecuria e da populao que dela
tirava seu sustento, revelam as angstias e as dificuldades econmicas,
sociais, a vida e o ambiente material da regio.
20
Para trabalhar os grupos indgenas e a rarefeita populao no latifundiria, houve a necessidade de se utilizar outros tipos de fontes que
pudessem contribuir para construir as atitudes desses grupos. As descries de viajantes que estiveram em Mato Grosso em meados do sculo
XIX e os Relatrios do Gal. Rondon no comeo do sculo XX, quando
da construo da rede telegrfica no Pantanal sul-mato-grossense, contriburam para mostrar as relaes de trabalho entre os grupos nativos e os
colonos e a brutal explorao que os ltimos impuseram aos primeiros;
isso permitiu incorporar pesquisa experincias histricas de grupos, cuja
existncia tem sido freqentemente relegada pelos historiadores locais.
Tornou-se imprescindvel recorrer produo dos memorialistas
que, alm de contribuir com suas obras para a reconstituio da histria
das primeiras famlias que povoaram a regio, ainda forneceram subsdios para entender o dia-a-dia nas primeiras fazendas, as relaes com
os indgenas, as dificuldades com o meio-ambiente, o trabalho dentro de
uma unidade rural, a poca em que chegaram e se estabeleceram, como
viviam e o que e como produziam - enfim, informaes esclarecedoras
nesse processo de ocupao. No entanto, a superficialidade que bem caracteriza essas obras conhecida; a principal preocupao dos seus autores dar nfase a situaes com o propsito de valorizar os feitos dos seus
antepassados, ou seja, s qualidades pessoais dos primeiros colonizadores
como o altrusmo, a tenacidade, a generosidade, que garantiam o sucesso
do desbravamento da regio. Esse expediente no novo. Constitui,
na verdade, uma reproduo parcial da tradio quatrocent dos paulistas, cuja especialidade de uma raa de gigantes poderia ter deixado suas
sementes na frente oeste de colonizao. (LENHARO, 1982, p. 11).
Revendo a historiografia regional, foram encontrados poucos autores que pesquisaram sobre a temtica abordada por essa tese; dentre eles,
destacam-se Nelson Werneck Sodr, Demsthenes Martins, Luiza Rios
Ricci Volpato, Virglio Corra Filho e Aline Figueiredo, que procuraram,
em suas obras, explicar o desenvolvimento da pecuria em Mato Grosso.
21
Nelson Werneck Sodr entende que a entrada dos primeiros rebanhos no oeste do Brasil ocorreu em fins do sculo XVIII, favorecidos
pelo rio So Francisco, via natural e convidativa para uma penetrao
mais vigorosa, sendo por isso batizado como o rio dos currais. Ao longo deste rio, estabeleceu-se o contacto entre vaqueiros e bandeirantes,
uns iam em busca do ouro no sentido norte, outros vinham a procura
de pastagem no sentido do sul. Minas Gerais, j eregida em capitania
desmembrada de So Paulo, foi um grande centro distribuidor com uma
notvel condensao de populaes e de rebanhos.
O autor enfatiza o roteiro que o gado bovino, conduzido por tropeiros, percorreu para entrar em terras mato-grossenses, onde surgiram
as primeiras propriedades, cuja principal atividade era a pecuria. Segundo ele:
Pode-se marcar pelos fins do III sculo as primeiras penetraes
do gado em terras do oeste. (...) a vegetao limpa, os campos
abertos, as pastagens obrigatrias e os pontos em que as vias
fluviais permitiam vau, ofereceram a oportunidade por certo feliz
da passagem das terras de Minas para o oeste, para os chapades
goianos e para o territrio de Mato Grosso dos rebanhos que
aumentaram progressivamente e que marchavam sem termo.
[Majoritariamente a penetrao dos vaqueiros na posse de seus
rebanhos deu-se pelo Tringulo Mineiro]. (SODR, 1941, p. 60).
22
nhou em 1761 que sobejava para o consumo a criao bovina. (CORRA FILHO, 1943, p. 271).
No so do sculo XVIII as primeiras tentativas de penetrao e
ocupao de Mato Grosso, elas ocorreram ainda no sculo XVI e XVII e
foram de iniciativa dos espanhis com a fundao da cidade de Santiago
de Xerez e das redues jesuticas na plancie pantaneira. Embora essas
tentativas de fixao no tenham se consolidado, isto devido resistncia
dos grupos nativos, falta de relaes comerciais mais frequentes com os
outros mercados e, mais tarde, investida dos bandeirantes, tiveram os
colonos e os religiosos o mrito de introduzirem e aclimatarem os primeiros exemplares bovinos e eqinos.
De acordo com registros e documentos produzidos pelos padres
da Companhia de Jesus, que prestavam trabalhos de catequese no Itatim2 ,
os primeiros rebanhos introduzidos no atual territrio de Mato Grosso
do Sul vieram do Paraguai. Mais tarde, com a descoberta do ouro em
Cuiab, algumas rezes foram levadas da plancie para a rea de minerao,
provavelmente em embarcaes via rio Paraguai ou conduzidos por terra
por vaqueiros.
Para Aline Figueiredo, o gado bovino j se encontraria em territrio sul-mato-grossense no sculo XVII: Quando, no decorrer do sculo
XVII, adentraram os bandeirantes ao sul de Mato Grosso, para desalojar
o espanhol, o jesuta, e para prear o ndio, viram surpresos que aqueles
campos estavam repletos de bois. (FIGUEIREDO, 1994, p. 66).
Quando os bandeirantes adentraram em Mato Grosso, na dcada
de 30, no sculo XVII, encontraram o rebanho bovino ainda em processo de estruturao, j, que por essa poca, estavam sendo introduzidos os
primeiros lotes na regio pelos colonos e, nas duas dcadas seguintes, em
maior quantidade, pelos padres jesutas.
2 O Itatim estava situado entre os rios Apa e Taquari, no Pantanal sul de Mato Grosso, onde
os religiosos da Companhia de Jesus instalaram suas aldeias para promoverem a catequese dos
ndios da regio.
23
moo mais rpida para a fuga que, na poca, era o cavalo. Alm disso, a
pecuria, nos rinces de Mato Grosso, era uma atividade pouco rentvel
e o escravo muito caro, portanto ela se ajustava melhor ao emprego de
trabalhadores livres, geralmente mestios e nativos.
As atividades da pecuria e da minerao no se incompatibilizavam, pelo contrrio, se completavam, tanto que, em Mato Grosso, logo
foi se estabelecendo uma estreita ligao entre elas. O bovino tornou-se
um bem de valor inestimvel, era impossvel imaginar um povoado sem
os animais de trao que, realizando os servios mais pesados, liberavam
o negro para as atividades mais rendosas, tanto que em 1761, portanto
quarenta e dois anos aps a descoberta dos metais, j havia em torno de
Cuiab uma oferta de gado bovino muito superior necessidade de consumo local.
Os primeiros bovinos introduzidos em Cuiab vieram da plancie
pantaneira. Desde 1725, havia um Bando3, emitido pelo Capito General
da Capitania de So Paulo, Rodrigo Csar de Menezes, autorizando a conduo do gado bagual da plancie pantaneira, a chamada Vacaria, para as
minas de Cuiab. Alis, era muito mais fcil, rpido e barato conduzir a
rs da Vacaria para a regio mineradora, do que import-la da regio sul
e do vale do So Francisco. Os sertanistas paulistas conheciam bem os
caminhos que levavam s pastagens nativas que abrigavam os imensos
rebanhos de bovinos e eqinos e, tambm, como conduzi-los para as
reas de minerao.
Pelo caminho de Gois, citado pela autora, os primeiros lotes de bovinos foram introduzidos somente em 1737, trazidos por Pinho de Azevedo; no entanto, desde 1730, h registros de novilhas em Cuiab, procriando, conduzidos trs anos antes por um sertanista. (CAMELLO, 1863).
Na mesma poca, j havia em Cuiab cinco engenhos de cana-de-acar, todos em franca produo. Certamente, esses engenhos j em-
25
27
Muito antes de estabelecerem contatos com os brancos, os guaicurus tinham tendncias para o domnio de outras tribos de caadores e
coletores e sobre os tradicionais lavradores, os guans. Essas tendncias
foram reforadas quando eles adotaram o cavalo para o seu uso, para a
caa e, como arma de guerra, ganharam maior mobilidade e puderam
com isso impor vassalagem a grupos indgenas que viviam mais distantes.
Na condio de caadores coletores e tendo uma dinmica territorial extraordinria, os guaicurus se contrapunham aos grupos indgenas
agricultores, no podendo, portanto, com a sua ao preparar o campesinato, j que no tinham qualquer tradio agrcola, ou qualquer relao
produtiva com a terra.
Importante papel no processo de formao do peo no Pantanal
sul-mato-grossense foi desempenhado pelos religiosos e pelos soldados
dos fortes instalados ao longo da fronteira do Brasil com os atuais territrios das repblicas da Bolvia e Paraguai.
Nos fortes, os oficiais eram orientados a evitar a disperso dos
indgenas atraindo-os causa da evangelizao, estabelecendo relaes
de amizade com eles, promovendo aldeamentos nas imediaes para
prepar-los para o trabalho e para o desenvolvimento da agricultura, for28
Os depoimentos de Clemente Barbosa Martins, colhidos por Sodr, permitiram que este reconstitusse a histria da expanso pastoril no
Planalto Maracaju-Campo Grande e no no sudoeste de Mato Grosso,
como ele julgava ter feito.
O entrevistado, cuja prodigiosa memria chamou a ateno do
entrevistador, prestou relevante contribuio para o entendimento da
ocupao de uma importante regio de Mato Grosso, no entanto, nada
sabia da ocupao anterior que havia ocorrido dois sculos antes daquela
contada por ele, no tinha essa obrigao; havia nascido duzentos anos
depois dos acontecimentos que haviam se passado no Pantanal sul.
A obra Oeste tornou-se, ao longo dos anos, uma importante
contribuio para a historiografia mato-grossense, mas as fontes levantadas nesta tese se contrapem s concluses ali estabelecidas.
Esta pesquisa foi dividida em cinco captulos; no primeiro, tratou-se dos sculos XVI e XVII, procurando mostrar o caminho que foi
percorrido pelo gado bovino desde a sua introduo em So Vicente, no
litoral da Capitania de So Paulo, at a sua chegada em Assuno e depois, em Mato Grosso, atravs dos plos pioneiros de colonos e jesutas a
servio da Espanha. Foi feita uma descrio da geografia e da histria da
regio por meio de um cuidadoso levantamento de dados com base nas
fontes primrias para mostrar o desenvolvimento do rebanho bovino e o
volume que ele alcanou no comeo do sculo XIX, destacando o papel
dos nativos, sobretudo os Mbaya Guaicuru, no processo do seu adensamento.
No segundo captulo, procurou-se destacar as transformaes sociais, polticas e econmicas ocorridas em fins do sculo XVIII at meados do sculo XIX, com o aprofundamento da Revoluo Industrial,
o fim do monoplio comercial, a independncia do Brasil, a conquista,
pela Inglaterra, da condio de nao mais importante do mundo e os
desdobramentos de todas essas bruscas transformaes nos rinces de
Mato Grosso.
No terceiro captulo, tratou-se dos relatos dos viajantes que, a partir do comeo do sculo XIX, comearam a chegar a Mato Grosso, apro34
Captulo 1
A Origem do Gado Bovino no
Mato Grosso Colonial
1.1. Os primeiros rebanhos bovinos em So Vicente
Os europeus, quando imigraram para colonizar a Amrica, fizeram-no trazendo seus animais secularmente domesticados, sobretudo o
gado vacum e cavalar, que deram suporte s suas aes no esforo da
colonizao. Esses no faziam parte da fauna americana; para os servios
de trao e do cultivo, era empregada a lhama por algumas poucas etnias
estabelecidas nos planaltos andinos.
Os rebanhos bovino e cavalar, sobretudo, desempenharam relevante papel no processo de colonizao da Amrica, pois constituam importante fora de trao e fundamental meio de transporte, sendo ainda,
o primeiro, indispensvel alimentao.
As primeiras informaes sobre a presena do gado bovino no
Brasil datam de 1534, na Capitania de So Vicente, trazido da ilha da Madeira pela esposa do seu donatrio, Martim Afonso de Souza.
A perspectiva do sucesso do cultivo da cana de acar naquela
regio tanto animou o seu donatrio que o primeiro engenho na Terra de
Santa Cruz foi ali instalado, com o nome de Engenho do Governador,
para que se iniciasse a produo do acar.
O peso da carga de impostos pode ser verificado atravs dos seguintes dados:
Vale cada couro em cabelo
De o salgar e secar
De o carregar ao curtume
De o curtir
Importa tudo
Um meio de sola vale
De o carregar praia
Do frete do navio
De descarga para alfndega
Por todos os direitos
Importa tudo
2$100
$200
$040
$600
Rs2$940
1$500
$010
$120
$010
$340
Rs1$980
Verifica-se que impostos cobrados pelo fisco portugus representavam mais de 20% sobre o couro curtido e mais de 30% sobre o couro
em cabelo.
Aps a expulso dos holandeses do Brasil, apesar da vitria conseguida, o Governo portugus
annuiu (...) para a assignatura da paz definitiva, em pagar a
Hollanda uma indenizao de 4.000.000 de cruzados, cerca de L
6.000.000 em dinheiro, assucar, tabaco, e sal, tal o empenho que
havia de pr cobro a situao! Para essa indenizao ocorreu o
Brasil com 1.920.000 cruzados pagos em 16 annos, a razo de
120.000 cruzados por anno. (SIMONSEN, 1937, p. 182, T.1).
43
De acordo com Ruy Das de Gusmn, teriam entrado com esse grupo
em Assuno sete vacas e um touro, conduzidos pelo vaqueiro de nome
Gaete.que llego com ellas la Asuncion com grande trabajo y dificultad
solo por el inters de una vacca, que se le senal por salario de onde quedo en aquella tierra un proverbio que dice son mas caras que las vacas de
gaete. (GUZMN apud ABREU, 1940, p. 2140, V. 4)
Essas sete vacas e um touro, acrescidos posteriormente por outro
reprodutor importado do Peru, teriam dado origem parte do gado que
muito mais tarde povoaria os pastos nativos do Paraguai, do Rio Grande
do Sul, Uruguai, Argentina e Mato Grosso do Sul.
Ainda foi levantada a hiptese de que a primeira expedio trazendo gado bovino para o Paraguai foi a de Cabea de Vaca, que no dia 2 de
dezembro de 1540 partiu de Cadiz transportando soldados, sementes, 46
cavalos e guas e algumas vacas. (ARAJO. 1986).
No entanto, nos registros deixados por ele no h qualquer aluso
introduo de gado bovino no Paraguai atravs das suas embarcaes.
(...) y all desembarcaron y sacaron los caballos en tierra, porque se
refrescasen y descansasen del trabajo (....) requiri el maestre el agua que
llevaba la nao capitana, y de cien botas que meti no hall mas de tres,
y habam de beber de ellas cuatrocientos hombres y treinta caballos (....)
Llegado que hobo el gobernador con su armada a la isla de Santa Catalina, mand desembarcar, toda la gente que consigo llevaba, y veintisis
caballos que escaparon de la mar, de los cuarenta y seis que en Espan
embarc, (....). (CABEZA DE VACA. 1981, p. 154-55-56).
Nem mesmo a expedio anterior, de Pedro de Mendonza (1537),
que lanou as bases da colonizao espanhola no Prata e embarcou em
suas naus cargueiras cem cavalos e guas destinados reproduo, alm
de cavalos de propriedade particular dos oficiais que devia ser no mnimo
outro tanto. (ARAUJO, 1986, p. 21), teria trazido gado bovino.
Embora os espanhis valorizassem sobremaneira esses animais,
tendo por isso Cristvo Colombo introduzido na Amrica os primeiros exemplares em 1493, no Haiti, na segunda viagem que havia feito ao
Novo Mundo (FIGUEIREDO, 1994), foi somente em meados do sculo
44
6 Ulrico Schmidl era um soldado bvaro, tendo no mximo 35 anos quando se alistou na armada de
Dom Pedro de Mendonza, primeiro Adelantado do Rio da Prata. Por alguns anos, permaneceu
na Amrica do Sul incursionando pelo Pantanal. So dele as primeiras descries dessa to
importante regio de Mato Grosso do Sul.
7 Entre os autores platinos h um certo consenso de que o casco inicial da pecuria no Paraguai
tem sua origem nessas sete cabeas introduzidas por Gaete. Sobre esse assunto ver ainda Emlio
A. Coni, Fulgencio Moreno, Efrain Martinez Cuevas todos citados na Bibliografia.
45
Casco
Vacas
Fmeas
Machos
Total
1555
13
1556
18
1557
18
24
1558
24
10
32
1559
32
13
42
1560
42
16
54
1561
54
20
70
1562
70
24
10
10
90
1563
90
30
12
12
114
1564
114
38
15
15
144
1565
144
48
20
20
184
1566
184
58
24
24
232
1567
232
73
28
28
288
1568
288
90
36
36
360
1569
360
114
45
45
450
Em 1557, em Assuno, por ocasio do falecimento do Governador paraguaio Domingo Martnez de Irala, foi aberto o seu testamen46
Alm disso, os irmos Gis eram proprietrios de um grande engenho em So Vicente, Madre de Deus, na sesmaria das terras fronteirias a Enguaguau, herdado do fidalgo Pedro de Gis. (MADRE DE
DEUS,1975). Esses campos foram povoados com muito gado, pois tal
engenho foi formado com a perspectiva da produo da cana para o mercado europeu, o que justificava a necessidade de rebanhos bovinos para
os trabalhos de plantio, colheita e transporte da cana de acar.
(...) los ganados introducidos por los hermanos Gois nunca
pudieron ser menos de 40 a 50 cabezas y posiblemente un
nmero de alrededor de 70 vacas y 10 toros. En este ltimo caso,
y lo decimos como hiptesis de trabajo, las 7 vacas y el toro de
la leyenda sera el 10% del total, atribudo como recompensa al
tropero y cuidador, el tal Gaete, y para el caso de la primera cifra
este porcentaje andar en el orden del 25 o 20%. (...) Ptolomeu de
Assis Brasil, situ el procreo de las siete vacas y el toro de los Gois
en un mximo (ptimo y optimista) de 450 animales para 1569,
no es difcil suponer que la cantidad que yo establezco como ms
probable de animales realmente introducidos, diera un procreo
casi diez veces mayor, esto es de unos 4500 animales, o un poco
menos. (...) Lo que s parece ser una idea realista habida cuenta
que se considera que era suficiente para abastecer la poblacion de
Asuncin de ese entonces. (ASSUNAO, 1987, p. 151-152, V. 24).
Certamente que os Gis, quando decidiram pela fuga para o Paraguai, seduzidos pela possibilidade de enriquecimento, no o fizeram
deixando para trs o que tinham de mais caro, o seu gado que, ao invs
de oito, deveriam ser algumas dezenas de cabeas, como afianam as referncias anteriores.
8 Alejo Garcia, um dos nufragos da expedio de Juan Diaz de Solis, realizou uma jornada
notvel. Partiu de Santa Catarina por volta de 1523 e alcanou os contrafortes andinos; no seu
retorno com uma grande carga de metais preciosos, foi morto pelos nativos.
50
guai, encarregou o seu preposto Felipe de Cceres de conduzir os rebanhos do Alto Peru, o que aconteceu em 1568 pela via Santa Cruz de la
Sierra ao Alto Paraguai.
Junto con el ganado de Ortz de Zrate venan tambin los de
algunos conquistadores que regresaban a sus hogares; pero no
se conoce el nmero total de animales que alcanz a llegar a la
Asuncin. En el viaje, lleno de incidentes que culminaron en la
matanza de Itatn, con la muerte del infatigable Chaves, se perdi
gran cantidad de vacas. Antes de llegar a Santa Cruz ya haban
desaparecido 600; muchas otras se perdieron en el pasage del ro
Paraguay; y los expedicionarios mismos corrieron grandes peligros
en que descollaron el valor y la entereza del mestizo asunceno Juan
de Salazar hijo del fundador de la capital paraguaya. (SALAZAR
apud MORENO, 1985, p. 125).
Pelo relato de Salazar, duas situaes chamam a ateno. A primeira, trata-se dos incidentes no Itatim, em que os nativos atacaram a caravana de Ortiz Zarate, com a conseqente perda de grande quantidade de
gado bovino que se desgarrou do lote principal. Supostamente, esses animais, nas enormes extenses do Pantanal sul-mato-grossense, teriam se
multiplicado lei da natureza e dado origem pecuria local. No entanto,
no h qualquer referncia a rebanho bovino na regio antes da entrada
de colonos e jesutas espanhis no fim do sculo XVI e comeo do XVII.
A segunda, diz respeito ao esclarecimento que Salazar presta. Segundo ele, junto ao rebanho de Ortiz Zarate vieram tambm os de outros conquistadores, no significando isso, porm, que havia nessa leva
mais de quatro mil cabeas de gado vacum, j que o Governador teria
trs anos de prazo para conduzir esses animais a Assuno e, segundo
tropeiros prticos, conduzir uma boiada to grande seria muito difcil. O
recomendado seria um nmero nunca superior a 1500 cabeas. (RIBEIRO, entrevista 1999).
Para se ter um exemplo das dificuldades de se transladar o gado
de um determinado lugar a outro, devido ao desconhecimento ambiental,
52
Em uma situao atpica como a de 1568, em que a caravana enfrentou todos os tipos de problemas, como constantes ataques de indgenas, travessia de rios caudalosos, ataques de predadores e de ofdios e, de
certa forma, o desconhecimento da regio, que implica na falta de pastagens e aguadas, muitos animais no resistiram, tornando praticamente
impossvel a travessia. Em correspondncia, Pedro Dorantes diz que o
gado trazido por Felipe de Cceres, ao chegar ao rio Paraguai, teve extraviadas 130 vacas, havendo proprietrios de mais de 50 que s receberam
5. (DORANTES apud PORTO, 1954, V.3). A informao importante
na medida em que se pode estabelecer que apenas 10% do gado conduzido por Cceres chegou ao seu destino final, embora no conste nas fontes
consultadas o nmero de animais que teria deixado o Peru.
Aps ter sido confirmado em Madri por Felipe II no cargo de
Adelantado, Ortiz de Zarate desembarcou em Assuno e contraiu com
Garay a obrigao de introduzir no Paraguai 4000 vacas, 50 cabras e 300
cavalos e guas dentro de trs anos. (BRUXEL, 1960). Retomava-se em
linhas gerais o mesmo contrato que havia sido feito com Felipe de Cceres, que certamente no o havia cumprido integralmente.
53
Garay tambm no conseguiu cumprir o contrato que havia assinado, devido sua morte em 1583.
Foi justamente Juan Torres de Vera e Aragn, genro de Ortiz Zarate, quem introduziu 4000 ovelhas e 8500 cabeas de gado vacum no
Paraguai, sem se referir origem desse gado. (SIERRA, 1956, T. 1).
Seja como for, al finalizar el siglo XVI, existian varias haciendas
particulares para la cra de animales, que adoptaron desde entonces la
denominacin de estancias [no Paraguai]. (SIERRA, 1956, p.40, T. 1).
Reforado o gado assuncenho com esse novo aporte, o desenvolvimento
da pecuria foi rpido e, mais tarde, dele saram as sementes que povoariam todo o sul do continente, comeando por Santa F e seguindo pelo
Chaco, Buenos Aires, Uruguai e sudoeste de Mato Grosso.
No Paraguai, o bovino encontrou as melhores condies de clima
e solo, imensos campos de pastagens nativa e boas aguadas, e por isso
a pecuria se expandiu muito rapidamente, pois alm de uma estrutura
favorvel, o mercado consumidor insignificante no forava seus proprietrios ao abate dos animais e, medida que no eram comercializados, os
rebanhos aumentavam substancialmente. As estncias iam sendo fundadas e o pas, coberto com o casco do gado vacum. Embora no houvesse
mercado para a carne do gado vacum, Las cantidades elevadas de cuero
vacuno exportado superior al numero de cabezas faenadas para el consumo interno, nos indica que se sacrificaba el ganado para aprovechar solo
el cuero. (ARAD, 1973, p. 184). Naturalmente, havia ainda o mercado
para o sebo, casco e chifre que tinham largo uso em vrias indstrias europias sobretudo a da construo naval e alimentcia.
Os tigres que se criam por aquelas terras, so incontveis, assim
como o a multido de gado vacum silvestre que se acha a seu
dispor. Tanto que o que aqui se paga por uma galinha, l se
mostra suficiente para a compra de uma vaca, da qual s o sebo
chega a pesar arroba e meia e por vezes at duas. (MONTOYA.
1985, p. 27).
Es indudable que con la introduccin en masa del ganado al
Paraguay por dicho Adelantado [ORTIZ ZARATE] qued
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55
A regio escolhida como definitiva pelos espanhis para se instalarem fazia parte do Pantanal, hoje pertencente ao sudoeste estadual, na
fronteira com a Bolvia e o Paraguai. La tierra llamada Ytatyn aparece
pela primeira vez na relao que fez Domingo Irala ao descrever, no final
de 1542, sua primeira entrada em terras pantaneiras. Desde aquela poca,
a regio do Itatim descrita como um lugar plano, ameno e habitado por
numerosas e diferentes etnias indgenas.
56
Desde o incio do sculo XVI, os conquistadores espanhis penetraram nessa regio atravs do rio Paraguai em busca do Eldorado peruano. Foram eles os primeiros a registrar o fluxo das guas, como tambm
as lendas que cercavam a regio. Ulrico Schmidl, soldado alemo vindo
para a Amrica na expedio de Pedro de Mendonza e que esteve na
Companhia de Alvar Nunez Cabeza de Vaca em busca da serra de Prata,
revela:
Entonces marchamos hacia las sobredichas amazonas; esas son
mujeres com un [solo] pecho y vienen a sus maridos tres o cuatro
veces en el ao y si ella si embaraza por el hombre y es [nace] un
varoncito, lo manda ella a casa del marido, pero si es una ninita, la
guardan con ellas y le queman el pecho derecho para que ste no
pueda crecer; el porqu le queman el pecho es para que puedan
usar sus armas, (...). (SCHIMIDL, 1947, p. 86-87).
E, em seguida, ele aponta dificuldades de se locomover no Pantanal naquele perodo: (...) nosotros caminamos durante siete das entre el
agua hasta la cinta y la rodilla. Pero la tal agua era tan caliente como una
agua caliente que ha estado sobre el fuego. (SCHIMIDL, 1947, p. 88).
Naturalmente, os espanhis que escolheram o perodo das guas
para promover a sua entrada em busca do Eldorado foram obrigados a
retornar devido s cheias anuais do Pantanal.
Alvar Nuez deixa tambm registrado o fenmeno das inundaes
por ele testemunhado:
Por volta de janeiro as guas comeam a subir, e chegam a subir at
seis braas por cima das barrancas e se estendem por toda a plancie
terra adentro, parecendo um mar. Isso acontece religiosamente
todos os anos, cobrindo todas as rvores e vegetaes da regio.
Assim passam quatro meses, que o perodo em que dura a cheia,
de janeiro a abril.(CABEZA DE VACA, 1987, p. 193/4), no
entanto, as cheias podem se estender at junho.
58
Os espanhis desde Cabeza de Vaca alimentaram sonhos de encontrar metais, no Urucum, sobretudo a prata, to procurada por eles;
no entanto, aquelas montanhas guardavam apenas - e to somente - o
mangans e o ferro, muito pouco valorizados na poca.
A serra do Urucum forma ao seu longo um elo de elevaes outrora contnuas que, desde o macio Chiquitano, na Bolvia, se prolongam para sudeste pelas serras do Jacadigo e Urucum at a Bodoquena e
chegam acerca de 600 metros de altura. Puderam essas serras se manter
elevadas graas s espessas camadas de jaspilito que as recobrem. A parte
inferior de tais elevaes formada por calcrios e dolomitas da srie
Bodoquena. (VALVERDE, 1972).
A leste, o Itatim limita-se com a Serra de Santa Brbara na regio
de Aquidauana, composta de silbes, arenitos e tilitos, pertencentes ao Planalto dos Alcantilados e integrantes do Planalto Central Brasileiro. Ao
sul, tem o conjunto formado pela Serra de Maracaju-Amambai, constituda por derrames balsticos. (ALMEIDA & LIMA apud GADELHA,
1980).
Na verdade, essas serras so prolongamentos da serra de Maracaju
e formam uma cadeia contnua que rasga todo o territrio sul-mato-grossense, desde o extremo sul at a serra do Roncador, em Mato Grosso, separando as bacias do rio Paran e Paraguai e ao mesmo tempo a Plancie
Pantaneira do Planalto Central Brasileiro.
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63
Mapas dos Campo de Vacaria com as Serras que separam as Bacias dos rios Paran
e Paraguai.
MARTINS, Gilson Rodolfo. Breve painel etno-histrico do Mato Grosso do Sul.
Campo Grande: UFMS/FNDE, 1992. p. 16.
Em fins de 1835, os Barbosa chegaram vila de SantAna do Paranaba e depois fundaram uma fazenda em Santa Rita do Rio Pardo.
Em 1851, chegaram aos campos de Er, depois chamados de Vacaria.
(CORRA, 1999).
O que teria levado mudana do nome de campos de Er para
campos de Vacaria? Essa foi uma deciso dos pioneiros vindos de Minas
Gerais, pois o gado oriundo das misses, como mais frente se ver,
64
os ncleos de ocupao espanhola, Santiago de Xerez e as misses jesuticas do Itatim, onde os sertanistas encontraram o rebanho bovino e, por
isso, nomearam a regio de Vacaria.
E ainda durante muitos anos permaneceram os paulistas nos
campos de Vacaria e nos de Xeres. Ali, naqueles campos os
componentes de uma bandeira, chefiada por Salvador Moreira,
fundaram arraial e estabeleceram cultura de manuteno. Por
volta de 1690, Braz Moreira, irmo daquele chefe bandeirante,
insubordinou-se juntamente com alguns sorocabanos reclamando
providncias punitivas contra o insubordinado foi lavrado ato
por indisciplina 28 de julho daquele ano. No prprio arraial. O
incidente, documentado pelo escrivo Antonio Alvares Maciel,
expressava para registro histrico, a existncia da posse efetiva
das glebas do Vacaria pelos Bandeirantes. Na regio subserrana
do Mbotetei (Miranda), Pascoal Moreira e Andr de Zuniga, no
decurso de 03 lustros entre 1678 e 1695, se haviam mantido em
seus campos empaliados, com a sua frota de canoas em trfego de
pra. (ALMEIDA, 1951, p. 49).
69
zonte subsuperficial argiloso, cuja poro central formada por sedimentos arenosos transportados pelo rio Taquari e o sul, por sedimentos argilosos depositados principalmente pelos rios Miranda, Negro e Paraguai.
(MAZZA et al, 1994).
Quanto ao clima, a classificao de KOPPEN enquadra o clima
do Pantanal na mesma categoria do Planalto Central: Aw, ou clima das
savanas. (VALVERDE, 1972). As precipitaes, no total de 1164,6 mm
no perodo chuvoso, restringem-se ao mnimo de 60 milmetros mensalmente nas secas, entre junho e comeo de setembro. As temperaturas
mximas chegam a 40,6 e 40,8 C, em Corumb e Aquidauana, respectivamente, e a mnima, apenas em alguns dias do ano, prxima de zero. As
temperaturas mdias, no entanto, indicam 30,8 30,9C e 19,7 - 18,1C.
(CORR FILHO,1969).
As bruscas quedas de temperatura no Pantanal, entre os meses de
junho a setembro, com a ocorrncia de geadas, tm conseqncias prticas importantes. Embora pouco estudadas, constituem uma das causas
da ausncia de bernes no gado da regio, que escapa, assim, a um parasito
comum nos trpicos que reduz o peso e estraga o seu couro. (VALVERDE, 1972).
Graas s condies ecolgicas da regio, os rebanhos bovino e
eqino desenvolveram-se muito bem, encontrando as melhores condies de pastagens nativas e terra extremamente salitrosa, graas sobretudo ao elevado teor de cloreto de sdio; so os chamados barreiros9,
essenciais ao rebanho.
Embora, no Pantanal, os efeitos da baixa disponibilidade de forragens sobre os animais maior do que em outras regies tropicais,
porque um perodo de inundao antecede a estao seca. No per-
9 Chamam-se barreiros algumas baixadas salino salitrosas de cor acizentada puxando para o branco.
Todos os animais buscam com verdadeira sofreguido esses lugares, no s os mamferos, como
aves e rpteis. O gado lambe o cho e atolando-se nas poas, bebe com delcia aquela gua e come
o barro. Quando s vezes voltam noite desse pascigo, vm com o ventre empanzinado e as vacas
como se estivessem prenhas. (TAUNAY, 1923, p. 65 e seg).
71
O 2 tenente de artilharia Affonso dEscragnalle Taunay, que participou da Fora Expedicionria organizada para expulsar os paraguaios
do solo sul-mato-grossense, deixou registrado ainda: A fora apos haver
descrito enorme circuito de 2.200 km perdera um tero dos quadros graas a fadiga da marcha e a insalubridade do clima nos pantanaes de Mato
Grosso, onde a dysenteria, a malaria e o beriberi dizimaram os infelizes
soldados e oficiais. (TAUNAY, A., sd., p. 252). As limitaes ambientais
da regio ficam mais elucidativas ainda nos registros de Cndido Xavier
de Almeida e Souza, que bem deu a dimenso das dificuldades enfrentadas por aqueles que se decidiram ali se estabelecer.
no havia terras para marchar e nem agoas para navegar (...) nesta
regio mais do que em outra alguma he inflexivel o rancor dos
irracionais contra o homem, desde a desobediencia de Ado: em
terra as feras, as serpentes, as furmigas, e as mesmas arvores pella
maior parte armadas de espinhos denego a sua comunicao:
nos Rios, os jacars, os Sucuris, as Giboias e os mesmos peixes
conspiro contra a Humanidade. A preciza privao do S. S. nome
do Snr., o ardente calor proprio da zona torrida, a transpirao
dos suores, a vexao dos insetos; o halito insofrvel do almiscar
dos jacars, seus horrorozos bramidos, e a horrvel figura destes
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79
com o propsito de servir ao colonizador mas, sim, com o fim de estabelecer misses estveis em locais determinados e afastados das aglomeraes coloniais.
Os padres receberam amplos poderes para reunir os naturais em
povoados, governarem-nos sem qualquer dependncia das cidades e fortalezas vizinhas e se oporem em nome do Rei a quem quisesse sujeitar os
novos cristos ao servio pessoal dos espanhis sob qualquer que fosse
o pretexto. (MONTOYA, 1985). O propsito dos jesutas era fazer dos
indgenas, cristos.
Quando os padres iniciaram seu trabalho no Itatim, as aldeias das
mais diversas faces estavam dispersas pelas florestas, sendo que cada
uma delas reunia em torno de 100 a 200 famlias, que dispunham de reas
que lhes permitiam viver perfeitamente bem. Esses guaranis, que eram
agricultores e cultivavam milho, mandioca, batata doce e feijo, completavam a sua alimentao principalmente com produtos da caa, pesca e
a coleta de arroz silvestre, mel e palmito. O algodo nativo era colhido e
fiado pelas ndias, que ainda se dedicavam cermica, em cujas peas preparavam sua alimentao diria. (FERRER, in CORTESO, 1951, V. 2).
Antes da conquista, no possuam animais domsticos, exceo
de patos, papagaios e macacos. A sua permanncia entre os colonizadores
foi que permitiu, bem mais tarde, adotarem o galinheiro e a criao de
bovinos, eqinos e caprinos.
Entre os indgenas, as terras pertenciam ao coletivo, ou seja, a todos os membros de uma aldeia, sendo que cada famlia tinha um lote
particular, cultivado para o seu sustento. O crescimento demogrfico e
o esgotamento do solo devido ao uso de tcnicas rudimentares, como o
emprego sistemtico do fogo antes do desmate e posteriormente com a
coivara, obrigavam os indgenas a procurarem novos campos.
Ao adentrarem em uma nova comunidade e decidirem pela reduo
e excluso do modelo de aldeamento tradicional, os padres foram colocando o indgena sob o jugo da Igreja, e o seu sucesso dependia, antes de
mais nada, do rpido desenvolvimento da agricultura tradicional indgena.
81
teve muito ativa pelo contnuo aumento dos ndios aldeados. Tambm se
construram embarcaes de transportes, pequenos barcos, carros de boi,
arados de madeira e galpes para armazenar a produo.
O bovino e o eqino tornaram-se, dentro de um aldeamento, bens
de valor inestimvel, pois era com eles que se preparava o solo para o
cultivo, que se fazia arao, gradagem, tratos culturais e colheita. No
havia outras enxadas, seno as omoplatas de cavalos e de bois. (AZARA
apud LUGON, 1976). Cada uno tiene sua yunta de buyes para la labranza. (Documentos para la Histria Argentina, p. 734, 1929, T. 20). Todo
transporte da produo do campo para os armazns, da madeira para a
construo de casas, de carros de bois ou embarcaes, s era possvel
com o auxlio dos animais de trao. Alm de tudo isso, no princpio de
um aldeamento era a sua carne que compensava a insuficincia de qualquer gnero alimentcio.
Por experiencia vieron los Missoneros que no bastavan para que
tuvieran la subsistencia asegurada tanta muchedumbre de gente las
sementeras y cosechas, que por granizos, por falta de lluvias
o por la irremediable negligencia de los cultivadores, resultaban
escasas; y as hubieron de pensar en procurar animales, in especial
ganado vacuno, que ya en tanto numero se habia multiplicado en
las posesiones de los espaoles. (Documentos para a histria da
Argentina, p. 203, T. 20).
Quando os padres encontravam clima e solo que permitiam o cultivo de cereais, vegetais e frutos que se desenvolviam na Europa, como
trigo, batata, ma e pra, rapidamente dispunham de uma boa oferta
para atender aos nefitos, como ocorreu no Paran, Uruguai e Rio Grande do Sul. No entanto, no Itatim, eles se defrontavam com uma natureza
inspita e cujo clima quente impedia o desenvolvimento das tradicionais
culturas europias; alm disso, o total desconhecimento das condies
ambientais impediu o rpido desenvolvimento da agricultura. Enquanto
na Europa o clima bem definido, com quatro estaes e grande amplitude trmica anual, inverno frio, com queda de neve, e vero ameno, com
a precipitao de chuvas distribuindo-se uniformemente durante o ano,
84
Somente a partir da dcada de 40 que os padres foram se familiarizando com os caprichos climatricos do Pantanal e obtendo sucessivos
85
praticamente inofensivas para o organismo imunizado dos europeus provocou efeitos desastrosos nas populaes nativas, biologicamente sem
condies de fazer frente ao inimigo desconhecido. Desde os primeiros
contatos entre os nativos dessa regio e os padres da Companhia de Jesus,
ou mesmo os colonos espanhis e portugueses, h constantes registros
de epidemias que levaram morte muitos dos primitivos habitantes. [Em
1634] Como conseqncia da fome seguiu-se uma epidemia que, segundo o padre Boroa, dizimou 2/3 dos ndios reduzidos e em 1648 em fuga
os ndios foram acometidos de uma nova epidemia que tirou a vida de
muitos deles. (GADELHA, 1980, p. 246 e 270).
Outro fator importante foi que os jesutas recomearam um trabalho de realdeamento da populao do Itatim, dispersa aps a ltima
invaso, conseguindo com sucesso reunir 800 das 1000 famlias anteriormente aldeadas e conduzi-las para as margens do rio Ipan, a 40 ou 50
km de Assuno. (GADELHA, 1980). Ou seja, o territrio do Itatim foi
praticamente despovoado10. Os indgenas que j haviam incorporado
10 A tanto chegou o despovoamento que um padre jesuta que correu esses lugares por volta de
1657, deixou registrado que s achou algunos monumentos que manifestan el senorio que los
itatines tuvieron de todo el terreno e no passavan de un lugubre legado: grandes vasos de barro
com ossadas humanas, dos que usam os guarani a fim de neles meterem os seus defuntos.
(LABRADOR, 1910, p. 62).
89
O mesmo acontece em todo o Pantanal, que abriga em seu territrio 656 espcies de aves, 122 de mamferos, 264 de peixes e 162 de
rpteis. (COELHO NETO, 2002, p. 53).
A variedade da fauna pantaneira permitiu que os indgenas continuassem a consumir animais, como por exemplo aves, incorporadas culturalmente sua dieta, embora a base da alimentao deles no fosse a
carne. Gostavam de frutas, mel, insetos de todo gnero, rpteis, e eram
muito gulosos de uma lagarta que ataca o capim mimoso e que eram saboreadas vivas. (VIVEIROS, 1958).
Alm de todas essas condies favorveis ao desenvolvimento da
pecuria, h o fato de que o prprio rebanho instintivamente adota mecanismos de defesa para garantir a perpetuao da espcie. Os bovdeos
em estado natural so selvagens e a epizootia no os atinge, assim eles
engordam. Em completa liberdade, os animais selvagens refugiam-se nos
bosques e s saem noite para pastar. (BERTELLI, 1984, p. 224).
Quando o gado torna-se alado, preciso ca-lo, em noites de
lua saem os vaqueiros em cavalos amestrados, coluna por um,
costeando as ilhas de mato at que a inquietao da montada se
90
11 Segundo a tradicional historiografia portenha, foram abandonados cinco guas e sete cavalos,
no entanto essa pequena quantidade de animais, ainda que em condies timas, no justificaria
o enorme procrio que houve em Buenos Aires.
91
A formao de uma base de operaes na antiga Provncia do Itatim permitiu que no ltimo quartel do sculo XVII numerosas bandeiras
cruzassem toda essa regio, rasgando-a em vrios sentidos. Essa macia
presena portuguesa causava preocupaes e temores entre os espanhis,
justamente devido facilidade com que eles poderiam dispor de cavalos
e bovinos. Um jesuta espanhol, Pe. Diogo Altamirano, em correspondncia s instncias do Conselho das ndias, afirma: a ocupao daquelas
reas pelos portugueses era mais prejudicial at do que a da colnia de
Sacramento, por ficarem apartados dos olhos dos castelhanos e porque
ali podia dispor o invasor de cavalos, mulas e outros gados. (PASTELLS,
1912, V. 4).
Os registros de portugueses e espanhis permitem concluir que os
campos dos pantanais mato-grossenses estavam, no fim do sculo XVII,
abrigando grandes manadas de bovinos e eqinos que se multiplicaram
muito rapidamente, aproveitando-se das boas condies ecolgicas da regio.
Em carta enviada em 1687 ao Rei e ao Duque de la Plata, o Governador do Paraguai, D. Francisco Monforte, informa que:
(...) enviando los campos de Jerex, 50 espaoles para saber si
permanecian en ellas los portuguezes, remitiendose en esto a los
autos que envia, por copia, com la declaracion de un indio, que
compreende la noticia de las muchas vacas que hay cerce de los
campos de Jerez. (...). (PASTELLS, 1912, p. 142, V. 4).
Durante muitos anos, at quase um sculo depois de despovoada a Provncia, eram constantemente enviadas tropas de Assuno com
a incumbncia de observar e se possvel embaraar os movimentos dos
portugueses. A ao das autoridades no ia alm da vigilncia.
Por outro lado, foram os portugueses, em suas constantes incurses pela regio, que nominaram as reas de Vacaria aps o encontro
de diversos rebanhos silvestres. Delimitava-a Pedro Taques, em meados
do sculo XVIII, depois de afirmar que nos campos assim chamados
existiam enormes rebanhos sem haver algum senhor possuidor de tanta
grandeza, no s de gados vacuns mas tambm dos animais cavallares.
(TAQUES apud TAUNAY, 1930, V. 6).
No ano de 1682, uma das mais importantes bandeiras que fora organizada na cidade de Sorocaba partiu para o sul de Mato Grosso tendo
como capito mor Pedro Leme da Silva, que resolveu pela formao de
um arraial nas vacarias. Informa ele: aproveita-se a gente deste corpo
da abundncia dos gados que inutilmente multiplicam nestas campanhas
sem haver algum senhor possuidor de tanta grandeza, que no s dos
gados vaccuns, mas tambm dos animais cavalares. (TAUNAY, 1930,
p. 14, V. 6). Por outro lado, um escrito annimo, no datado, mas que,
segundo estudos, foi produzido por volta de 1695, sugere, atravs de seu
signatrio, a construo de um presdio na Vacaria, que afirmava achar-se
95
em terra portuguesa. Entendia que tal povoao seria uma base de conteno s pretenses castelhanas e de socorro para as operaes militares
futuras, no caso de se tornar necessria a invaso do Peru, desde que
irrompesse a guerra entre as duas coroas. Dizia ele:
fica um pais chamado hoje dos Paulistas, Vacaria entre o rio grande
e o rio Paraguai que ambos juntos como principais formam o
celebre Rio da Prata, chama-se vacaria pelo gado amontoado que
aqui h, cujo princpio trouxeram os castelhanos, quando tentaram
povoar a dita paragem. (TAUNAY, 1930, p. 19, V. 6).
As bandeiras preadoras de ndios foram substitudas pelas mones, que se especializaram na atividade comercial visando ao abastecimento do recm fundado arraial do Cuiab. A chegada de grandes
contingentes humanos tornou a vida de todos eles muito difcil. Como
conseguir se manter em uma regio to hostil onde tudo faltava, at mesmo os instrumentos para a minerao?
Muito rapidamente, porm, os empreendedores trataram de tirar
proveito dessas novas oportunidades para a agricultura e, sobretudo para
o criatrio do bovino e eqino. Desde o princpio, houve necessidade de
animais de trao para transportar artigos, movimentar moinhos, fazer
a lavoura e fornecer protenas, como tambm artigos outros que ia desde
vesturio e alimentos at ferragens e ferramentas.
[So Paulo] esta vila o interposto de todos os objetos de
exportao, e importao da Provncia; de Goyas, e Mato Grosso;
ou conduzidos por terra, ou pelos rios. As produes, que descem
dos estabelecimentos centrais, para sarem barra, so aucar,
o algodo, tecidos do mesmo, toucinhos, aguardentes, caf,
courama, fumo e carnes chamadas ensacadas; estes generos so
transportados, em sumacas, a outras Provncias, (...). Os principais
efeitos de importao vm a ser o ferro, o ao, o sal, as fazendas
scas e vinhos, e alm destes, em mais ou menos quantidade, todos
os que a Europa produz, e costumam ser exportados para o Brasil:
(...). (d ALINCOURT, 1975, p. 29).
Ao contrrio das bandeiras do sculo XVII, as mones usavam basicamente a navegao fluvial. Os bandeirantes seguiam quatro
roteiros, cuja primeira parte era comum: de Araritaguab (Porto Feliz),
desciam o rio Tiet at o Paran, o qual desciam tambm. A partir da,
decidiam-se por um dos roteiros, o primeiro marcava-se subindo o Ivinhema at suas cabeceiras entrando no Brilhante onde navegavam at um
97
porto mais tarde chamado Santa Rosa ou Sete Volta, a deixavam suas
canoas e caminhavam por terra at as cabeceiras do Nioaque ou Urumbeva, ali faziam novas embarcaes e navegando pelo Nioaque entravam
no Miranda e desse passavam para o Paraguai, atingindo o So Loureno
e encontravam o caminho fluvial das minas cuja descoberta deu lugar
fundao de Cuiab. O segundo, fixava-se atravs do rio Verde, o qual
subiam at o salto do mesmo rio, onde deixavam as canoas e da tomavam
por terra um caminho em torno de 25 dias at o Porto do Rio Piquiri,
aps cortavam os rios Correntes, Itiquira, e So Loureno at chegar a
Cuiab. O terceiro era subindo o Rio Pardo, entrava no Anhandui at o
Aquidauana, desse ao Miranda e da ao Paraguai onde se navegava at o
Rio Cuiab pelo qual se chegava cidade homnima. O quarto era balizado pela subida at os campos de Camapu.
98
99
Num curto varadouro, atingiam o Camapu, que os levava ao Coxim, desciam este at o Taquari e continuavam pelo roteiro comum at a
regio central. (SODR, 1941).
A preferncia que davam os monoeiros rota do rio Pardo,
Anhandui e Aquidauana, explica-se, sem dvida, pela grande abundncia
de gado que ali encontravam e que supria as dificuldades de transporte
dos mantimentos necessrios ao consumo durante a jornada. (HOLLANDA, 3 ed., 1990).
Essa rota foi abandonada a partir da criao de um estabelecimento
fixo na paragem de Camapu, em 1725, onde se organizaram as primeiras
roas. Tratava-se de uma grande fazenda onde os viajantes podiam refazer-se da longa viagem e suprir as suas necessidades. Ali era possvel obter
feijo, milho, galinhas, toucinho, tecidos, carne fresca de vaca e de porco, farinha de milho, arroz e aguardente de cana de acar. Alm disso,
contava com boas acomodaes para atender aqueles que se deslocavam
para a regio das minas ou retornavam a So Paulo. No dizer do primeiro
capito general da Capitania de Mato Grosso, com mais asseio do que ali
se podia imaginar. (MARTINS de PAIVA, et al (org), 1982, p. 15).
Essa fazenda foi fundada pelos irmos Leme, Antnio, Domingos,
Joo e Loureno, fugitivos da Justia paulista, e constituiu-se no primeiro
ncleo fixo portugus de Mato Grosso do Sul. Localizava-se em uma
faixa de terras que separa as cabeceiras dos rios Sanguessuga e Camapu
e os monoeiros atravessavam esse trecho geralmente a p, deslocando-se
atravs do Varadouro Camapu.
O desembarque para aqueles que se dirigiam s minas do Cuiab
era feito no Porto de Sanguessuga, onde as canoas eram descarregadas
e toda a carga e as prprias embarcaes eram colocadas sobre carretas
puxadas por bois que seguiam at as nascentes do rio Camapu, atravs
do qual, aps alguns dias de navegao, encontravam o Coxim, por onde
continuavam at o Cuiab.
A fazenda Camapu, como alguns outros entrepostos que surgiram posteriormente, para garantir suprimentos aos seus usurios, teve que
lanar mo do gado da Vacaria. To logo foi fundada, seus proprietrios
100
101
Em carta dirigida a Sua Majestade em 13 de setembro de 1727, assim expressou o Governador Rodrigo Czar de Menezes:
(...) j que a maior parte dos sertanistas desta capitnia intentava
enfrentar a sua marcha por hua paragem chamada Vacaria, a qual
ainda esta indicizo se pertence Real Coroa de V. Mg. Ou de
Castello por falta de demarcao; me pareceu embaraar-lhes no
continuassem aquelle caminho qcomo os catelhanos costumo
vir a dita paragem de anos em anos com cavallaria, a observarse os paulistas fazem ahi alguma prezistencia ou descobrimento,
[...]. (Documentos Interessantes para a Histria e Costume de So
Paulo, p. 19, V. 31).
102
Pelo relato do sertanista, conclui-se que os animais foram conduzidos e que entraram em Cuiab dois anos aps a assinatura do Bando.
Tratava-se de fmeas novas e que somente em 1730, portanto trs anos
aps, estariam aptas procriao. Hollanda afirmou que pode se supor
103
que a descendncia desses novilhos introduzidos por Camello foi sacrificada por falta de recursos, problema que afligiu os moradores de Cuiab
nos primeiros anos, o que justificaria a verso de Barbosa de S de que as
primeiras vacas s chegaram em Cuiab em 1739. (HOLLANDA, 1990).
Na verdade, em 1730, as dificuldades j tinham sido vencidas. Os
sertanejos paulistas estavam em Cuiab h doze anos, tempo suficiente
para organizarem a produo agrcola, submeterem os grupos indgenas,
apossarem-se de suas colheitas e implementarem um fluxo regular com
So Paulo, de onde vinham todos os produtos de que necessitavam. O
prprio Camello informa que em 1730 j havia em Cuiab cinco engenhos, sinal de prosperidade, onde se produzia a melhor cana-de-acar.
Certamente que esses engenhos tinham que recorrer a animais de trao
para poderem produzir e que havia uma oferta regular de alimentos para
garantir a subsistncia da escravaria, demais trabalhadores do engenho
e proprietrios. Portanto, por esse perodo, j havia gado suficiente para
suprir tais necessidades.
Nos registros do ano de 1730 da lavra do Baro de Melgao, no h
qualquer referncia a dificuldades de abastecimento ou falta de alimento
para a populao de Cuiab. Estavam os colonos ocupados em organizar
patrulhas para combater os ndios paiagus, que haviam atacado a mono do ouvidor Lanhas Peixoto e roubado sessenta arrobas de ouro15.
(MELGAO, 1952).
A propsito, depois de 1728, afrouxam-se as exaes, produzem-se melhores alimentos, submetem-se ou afastam-se da regio
os ndios bravos e anima-se enfim o povo a novos empreendimentos. (HOLLANDA, 1990).
Alm disso, muito importante o relato do sargento-mor, engenheiro Luiz DAlincourt, que em expedio pela regio registrou:
15 Sobre o assunto ver ainda NOGUEIRA COELHO, Felipe Jos. Revista Trimestral de Histria
e Geografia, memrias Chronolgicas da Capitania de Mato Grosso 2 Trimestre de 1850, p.
147. (BARBOSA DE S, Joseph. Relao das povoaes do Cuyaba e Mato Grosso de seos
princpios th os prezentes tempos. Cuiab Edies UFMT, 1975).
104
Com o gado da Vacaria tambm surgiram outros entrepostos comerciais nos mesmos moldes que a fazenda de Camapu e fixaram-se
alguns moradores nas barras dos principais afluentes do Paran no curso
das mones, junto a reas onde, pela sua fertilidade, era possvel o cultivo e a criao para fornecer os mais diversos gneros aos navegantes.
As notcias registradas pelo capito Antnio Pires de Campos em
1723 do conta de que, por esse perodo, ainda no existia nenhum morador na posse de roas na barra do rio Verde nem do rio Pardo, mas
que essas eram reas infestadas pelos ndios caiaps, que causavam danos
considerveis aos viajantes e mineiros que se dirigiam para Cuiab. Sem
mencionar nomes, afirma que esses nativos despovoaram todas as roas
que haviam sido fundadas s margens do rio Taquari e que os pioneiros
foram assassinados na sua maior parte e tiveram suas casas queimadas, o
que concorreu para que abandonassem aquele stio. O mesmo no aconteceu em Camapu, porque os roceiros ficavam em perptuo estado de
alarme, de armas s mos e mesmo assim, perderam mais de vinte escravos. (CAMPOS in TAUNAY, 1953).
J em 1727, Joo Antnio Cabral Camello dizia que entre a barra
do rio Tiet e a do Pardo havia dois moradores, nas duas margens do Paran, abaixo do Verde. O da direita tinha roas grandes de milho e feijo,
cujos produtos vendia pelo preo que impunha aos clientes.
106
Roa de
Manoel
Homem
Roas de
Bartolomeu Camapu
P. dos Rios
Roas de
Felipe de
Campo
no Cuiab
Cuiab
Oitavas
Oitavas
Oitavas
Oitavas
Oitavas
Mo de Milho
8.5
Alqueire de Farinha
12
14
Alqueire de Feijo
10
12
20
14
Alqueire de Milho
12
16 18
Arroba de Toucinho
32
Dzia de Abboras
Libra de Carne de
Porco
15
Idem Salgada
Frasco de Cachaa
15
Galinha
Dzia de Ovos
1 1.5
Nesses entrepostos, estabeleceu-se uma colonizao extremamente rudimentar que no podia dispensar o uso do gado vacum e cavalar, o
primeiro utilizado como trao e suprimento de boca e os cavalos para o
transporte e ocasionalmente para puxar carroa.
Embora no haja registros definitivos, esse gado era arrebanhado
na Vacaria, na plancie pantaneira, e levado at os stios, no planalto, ora
em canoas, com grande trabalho e despesa, requerendo em torno de 30
dias de navegao com dedicao exclusiva de muitos marinheiros, que
conduziam muitas vezes no mais que meia dzia de animais, e ora por
terra, castigados pelos nativos que se opunham ao trnsito dos condutores.
Esses colonos, estabelecidos no planalto central do Brasil, desempenharam importante papel na disseminao do gado bovino por toda a
regio conhecida hoje como Vacaria. Em sucessivas expedies plancie
pantaneira, reuniam pequenos magotes de bovinos e os conduziam aos
108
Fator importante para o desaparecimento dos entrepostos comerciais foi a abertura, em 1736, de um caminho por terra de Gois a Cuiab
que tornou menos freqentada a navegao por Camapu. Basicamente,
apenas as remessas feitas pelo governo continuaram seguindo pelos rios,
uma vez que os custos eram menores e o transporte mais eficiente para
determinadas mercadorias mais pesadas e volumosas, como artilharia e
munies.
Por outro lado, a abertura da navegao entre Mato Grosso e Par,
que se tornou importante linha de comunicao e comrcio para Vila
Bela e Cuiab, constituiu em duro golpe rota das tradicionais mones.
A nova rota permitiu o uso de embarcaes maiores, e mais bem
equipadas e com maior capacidade de cargas. As terras de Mato Grosso,
que eram consideradas pelos portugueses como que postas no fim do
mundo, pela dificuldade de seu acesso, tornaram-se mais fceis de serem
alcanadas do que as de Gois e Minas Gerais.
A partir de meados do sculo XVIII, o ouro comeou a declinar
em Cuiab, diminuindo, portanto, o nmero de migrantes que se deslocavam para as minas, o que significou o abandono quase que completo do
caminho fluvial de Porto Feliz quela cidade. O abandono da rota tradicional, que ligava o litoral queles longnquos sertes, teve conseqncias
positivas no desenvolvimento dos rebanhos na plancie pantaneira e no
planalto central.
A parte meridional da Provncia de Mato Grosso, que constituiu
rota obrigatria para aqueles que desejavam atingir as lendrias riquezas
cuiabanas, praticamente desapareceu para o florescimento de uma nova
via. Dessa antiga rota, que passava pelos campos de Vacaria, sobretudo
na plancie freqentemente visitada por pequenos sertanejos para reunir
magotes de gado e iniciar o criatrio em algum lugar ou vend-los em
qualquer regio onde fosse possvel o comrcio, esses sertanejos foram
aos poucos se distanciando, buscando outras regies onde pudessem se
estabelecer.
Sem a presena do homem branco, esses animais permaneceram
abandonados lei da natureza por mais de vinte e cinco anos, sem que
111
houvesse grandes abates, sendo esse mais um fator que permitiu o seu
rpido crescimento.
No caso do planalto, as deficincias do solo foram compensadas
pela postura que adotaram os nativos da regio em relao ao bovino. Os
Guarani Kayowa, hegemnicos na rea, no incorporavam sua dieta
uma srie de carnes, ou porque identificavam esses animais com algum
antepassado ou porque teriam uma funo totmica em relao quele grupo. Determinados macacos estavam ligados a ancestrais e alguns
pssaros no eram abatidos porque eram incorporaes de determinados
espritos que cultivavam. No caso do gado bovino, que no fazia parte de
sua cultura, porque no existia na Amrica, eles no o incorporaram sua
alimentao porque, sendo o boi ruminante, os naturais entendiam que
ele era portador da epilepsia e, se incorporassem essa carne a sua alimentao, poderiam contrair a doena. (MARTINS, entrevista 22/09/2000).
Portanto, as novas vias de acesso a Cuiab isolaram a parte meridional da Capitania, que raramente era visitada. No havia um nico
ncleo populacional a no ser a fazenda Camapu, o que permitiu que o
gado fosse se adensando, ganhando toda a plancie pantaneira.
16 O Chaco uma plancie de bosques situada no centro sul da Amrica do Sul que inclui
parte do Paraguai, Argentina e Bolvia. Possui uma extenso territorial de 790.000 km 2 .
Geograficamente, limita-se ao sul com os Pampas; a oeste, com a regio Andina; ao noroeste
com o planalto de Chiquitos e velasco, e a leste, com os rios Paraguai e Paran. (CARVALHO,
in Herbets, 1988, p. 66).
112
113
Entre os sculos XVI e XVII, eram encontrados, vivendo nessa rea geogrfica, da mesma forma os mbayas que, assentados mais ao
norte, viviam s margens ocidentais do rio Paraguai, ou seja, dentro do
ambiente chaquenho, no sculo XVI e primeira metade do sculo XVII.
(HERBERTS, 1988).
Antes dos primeiros contatos, na era pr-colonial, os guaicurus
dominavam outras etnias de caadores e coletores e os tradicionais agricultores, os guans. Raramente atravessavam o rio Paraguai, a no ser em
investidas espordicas, porque essa regio era habitada por outros grupos
nativos, como os guaranis, guaxaraps e outros a quem faziam guerra.
As reas em que habitavam os nativos eram, segundo as fontes
documentais, extremamente inspitas:
las tierras son en tiempo de aguas, tan pantanosas, y llenas de
anegadezos, que no se pueden andar, y en tiempo de seca son
tan ardientes los soles y falta de agua, que se abre, la tierra em
profundas grietas, y no hay quien se atreva a andarlas, porque los
caballos se ahogan de sed. (LOSANO, 1873, p. 67).
117
fazendas de gado e cavalos e instalando estncias para o criatrio at a calha do rio Apa na fronteira com o atual Mato Grosso do Sul, procurando,
assim, consolidar a ocupao territorial.
Os ervateiros e vaqueiros paraguaios progrediam para o Nordeste
e o Norte e foram explorar mate e pastagens na regio das cordilheiras e
da margem sul do Apa. No raro, ultrapassando a linha do Apa, davam
batidas nas manadas aladas da regio do Miranda e do altiplano vizinho.
No encontraram ali a presena de portugueses. Chegaram por vezes at
Camapu, alm de que manifestavam vivo interesse em construir um forte sobre o Mondego, antigo Mbotetei. (MELLO, 1959, V. 2).
Em julho de 1797, comitiva castelhana que visitava o forte Coimbra transmitiu ao capito Francisco Rodrigo do Prado a notcia do plano
da fundao de uma vila castelhana onde antes fora a cidade de Santiago
de Xerez. (ALMEIDA, 1951). Em resposta, as autoridades portuguesas
passaram a estimular os ndios guaicurus a se lanarem em incurses
predatrias ao norte do rio Ipan-Guau sobre as propriedades castelhanas, onde os ndios destruram cento e tantas fazendas, apoderando-se de
mais de 20.000 cavalos sic. (ALMEIDA, 1951).
Os assaltos s propriedades castelhanas continuaram, os guaicurus fizeram vrias incurses conduzindo agora inmeras cabeas de gado
bovino para as proximidades do forte Coimbra, nos campos nativos de
Vacaria, plancie pantaneira. (BRUNO apud MAZZA, 1994).
Os portugueses no s estimulavam os ataques s propriedades
castelhanas, como tambm interceptavam os produtos roubados pelos
indgenas.
Em correspondncia ao comandante do forte Coimbra, Ricardo
Franco de Almeida Serra, o Governador da Capitania de Mato Grosso
apresentou sugestes ao comandante de como este deveria responder aos
espanhis sobre os animais que estavam sendo comprados dos indgenas:
V.M. depois de sondar o seu nimo, far pelos persuadir de que
com efeito s os ditos soldados tm entrado nesta pequena e
insignificante negociao, e que isto longe de os escandalizar,
119
antes uma das provas mais evidentes de que somos uns vizinhos
justos e sinceros, pois se tivessemos as intenses sinistras que eles
nos querem atribuir, ento, ou por conta da Fazenda Real, ou dos
particulares, se faria negociar um grande nmero de animais para
escitar com este interesse que os referidos ndios fossem roubar,
ou derrotar-lhe as suas fazendas quando para o pequeno nmero
que os soldados tem comprado, so mais do que sobejo os que
possuem e so propriamente seus, permitindo-se s debaixo desta
boa f aquelas insignificantes compras, que no podem ser objeto
do cime espanhol.
Que o contrrio at se no pode acreditar sendo no s o oposto
a piedade e justia de S.M.F e as providentes Leis que tem dado
para a reduo e governo dos ndios, mas at seria diametralmente
oposta aos fins que se propem este Governo, o qual, querendo
arranca-los das trevas do paganismo e da sua natural barbaridade,
no lhes havia de inspirar ao mesmo tempo, roubos e assassnios
to incompatveis com a Moral civil e crist e com o intentado fim
da sua civilizao. (OFCIO Instrues de CAETANO Pinto de
Miranda Montenegro para Ricardo Franco de ALMEIDA SERRA.
27/07/1797, in MENDONA, 1985, p. 207).
Ao se lanarem nas incurses predatrias ao norte do Ipan-Guau, os guaicurus deixavam suas mulheres e os filhos pequenos entregues
guarda e ao zelo da guarnio do presdio de Coimbra. (ALMEIDA,
1951). Ou seja, os ataques aconteciam sob a proteo da autoridade portuguesa. E quando os ndios massacravam a populao de uma aldeia
espanhola e sentiam-se perseguidos, vinham se pr sob a proteo das
guarnies em solo mato-grossense. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Em correspondncia para o Governador da Capitania de Mato
Grosso, o Governador do Paraguai, Lzaro de Ribeira, denunciou a ao
dos indgenas com suporte dos fortes portugueses:
En effecto los Estabelecimentos Hespanholes han sido insultados
repetidamente y os aggressores si avanzam a las maiores emprezas,
favorecidos dos Fuertes de Coimbra, e Albuquerque en donde no
solo si les concede asilo y protecion si no que sus Comandantes
permittem a sus subditos comprar a los Yndios o fruto dos robos
e rapinas que han echo em esta provincia. Apezar de um sistema
120
eqinos das fazendas localizadas nas margens do rio Apa. Dessa vez, os
castelhanos, prevenidos, conseguiram reaver a maioria dos animais, que
j se encontravam muitas lguas ao norte do Apa. (BRUNO apud MAZZA, 1994).
A esse respeito presta importante contribuio Ablio Leite de Barros; diz ele:
Aqueles ndios, que aprenderam com os civilizados o uso do
cavalo como arma de guerra, tornaram-se terrveis saqueadores
das Colnias espanholas, (...) de onde retiravam principalmente
cavalos e gados. (...) Essa histria desfez um pouco o romantismo
com que costumvamos ver esses ndios cavaleiros. Eram ladres
de gado e ns, brasileiros, receptadores. Isso, no distante sculo
XVIII e comeos do XIX, tempo suficientemente distante para
amenizar nossa conscincia. Alis, os etnlogos nos ajudam nesse
amaciamento de culpa, pois nos garantem no se tratar de roubo.
Os ndios, nossos ancestrais, no tinham noo de propriedade.
timo!. (BARROS, 1998, p 77).
Mal sabia o senhor Ablio Leite de Barros que, atrs das iniciativas dos indgenas, estavam importantes autoridades provinciais como o
Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro e o comandante das
foras militares do baixo paraguaio, Ricardo Franco de Almeida Serra,
preservado em nossa memria como o militar exemplar que deteve heroicamente o ataque espanhol de D. Lzaro Ribeira em 1801.
Como os ataques s fazendas dos castelhanos passaram a ser comuns e inviabilizavam o projeto das autoridades espanholas de definir as
fronteiras com os portugueses, aqueles passaram a organizar tropas bem
armadas para repelir os indgenas. Primeiro, eles passaram a escorra-los e a impedir-lhes a entrada ao sul do Apa. Depois, enfastiadas com as
freqentes pilhagens e roubos de gado, as autoridades enviavam tropas
de Concepcion e So Carlos com o fim de persegui-los a ferro e fogo.
(MELLO, 1959, V. 2).
Entretanto, os indgenas continuavam as depredaes. Valendo-se
de suas habilidades eqestres e do conhecimento dos campos de Vacaria
123
Ricardo Franco reconheceu em sua missiva que os guaicurus vinham sendo duramente castigados pelas suas incurses em propriedades
castelhanas e, embora condodo, no impediu que os indgenas continuassem sendo armados para manter os ataques. (...) que a los barbaros, que
estan en medio de dos naciones civilizadas, se les dan en aquellos fuerte.
[Coimbra e Albuquerque] armas y municiones, ensenandoles su manejo,
(...). (Carta de D. LZARO Ribeiro para Caetano Pinto de M. Montenegro 23/02/1798, in MENDONA, 1985, p. 225).
Ao mesmo tempo em que os portugueses armavam os indgenas,
gado e cavalos por eles roubados dos colonizadores do Paraguai tinham
um mercado regular em Mato Grosso.
(...) Hei de remeter algumas ferramentas, e baetas para se comprar
aos ndios, uma partida maior de cavalos, e como uma mono do
prego est a chegar por estes dias, terei mais oportuna ocasio de
comprar as refferidas fazendas a melhor preo que os Armazns
Reais acham-se examidos absolutamente. Mas preciso manjar
V.M. esta negociao debaixo do maior rebuo por conta dos
nossos vizinhos.(...). (Correspondncia de Ricardo Franco de
Almeida Serra para Caetano Pinto de Miranda Montenegro Forte
Coimbra 31/06/1798, in MENDONA, 1995, p. 230).
com os ataques desferidos por seus rivais castelhanos, eles se asseguravam do enfraquecimento dos grupos e do incio da sua desagregao, e,
por outro lado, os ataques continuados desses s fazendas na regio do
Apa enfraqueciam a colonizao castelhana.
De certa forma, os portugueses iam se livrando de incmodos que
impediam o seu estabelecimento naquela regio, sobretudo a falta de segurana para os colonos, provocada pelos vizinhos fronteirios e pelos
indgenas.
Nos campos da Vacaria, o rebanho era estmulo importante. Os
estoques haviam aumentado substancialmente: devido aos assaltos dos
guaicurus nas fazendas dos castelhanos no Apa, o gado havia ganhado
todo o Pantanal e estava ali espera dos pioneiros que dele ouviram falar.
126
Captulo 2
O Panorama das Transformaes
Sociais Polticas e Econmicas no Limiar
do Sculo XIX no Brasil e as suas
Conseqncias em Mato Grosso
2.1. As Transformaes Sociais Polticas e Econmicas
em Meados do Sculo XIX no Brasil
No limiar do sculo XVIII, as Coroas de Portugal e Espanha ainda mantinham a maior parte de seus imensos domnios coloniais conquistados nos sculos XVI e XVII, e as relaes polticas e econmicas
entre eles giravam em funo dos interesses da burguesia mercantil e das
exigncias do Estado Moderno.
A fragilidade do emergente sistema capitalista e das novas instituies estatais, nesse longo perodo de transio entre o feudalismo e
o capitalismo, que no conseguiram adequar-se rapidamente s novas
formulaes de produo, distribuio e consumo, determinou a aliana
entre os mercadores e a Coroa, numa troca de servios e garantias que se
definiram por um sistema de monoplios e privilgios concedidos pelo
Estado aos comerciantes. (COSTA, 1971).
A poltica preconizada pela burguesia mercantil pressupunha uma
ampla interveno estatal, seja assumindo diretamente algumas ativida-
des econmicas ou criando condies altamente favorveis a determinados grupos, atravs do monoplio, assegurando a eles a exclusividade do
mercado do comrcio interno e externo da Colnia e da Metrpole.
Essa aliana entre burguesia mercantil e o Estado resultou na adoo de uma srie de medidas polticas e econmicas que permitiu acelerar
a acumulao de capital na Europa.
Esse conjunto de medidas, que visava ao fortalecimento do Estado
Nacional e de um grupo de mercadores, foi chamado de Poltica Mercantilista.
Efetivamente, a expanso da economia de mercado para assumir
o domnio da vida econmica europia, esbarrava com uma srie
de bices institucionais legados pelo feudalismo; ao mesmo tempo
(...), o grau de desenvolvimento espontneo da economia mercantil
no a tinha capacitado para ultrapassar os limites geogrficos em
que at ento se vinculava o comrcio europeu. A emerso dos
Estados do tipo moderno rompendo essas barreiras cria condies
de enriquecimento da burguesia mercantil e seu fortalecimento
face s demais ordens da sociedade europia. A poltica
econmica do mercantilismo ataca simultaneamente tdas as
frentes, preconizando a abolio das aduanas internas, tributao
em escala nacional, unidade de pesos e medidas polticas tarifrias
protecionista, balana favorvel com conseqente ingresso do
bulho, colnias para completar a economia metropolitana.
(NOVAIS, 1971, p. 50 e 51).
Do sculo XVI ao sculo XVIII, a chamada poltica colonial organizou as colnias a partir de pressupostos em que suas populaes nada
mais eram que fontes de rendas para as metrpoles e sua burguesia comercial, grandes fornecedoras de matria-prima e consumidoras de manufaturados.
Esse foi um perodo importante no qual as colnias desempenharam papel significativo, tendo o comrcio lucrativo permitido a acumulao de capitais e possibilitado que uma corrente de riquezas se concentrasse nas mos de alguns banqueiros e comerciantes europeus, riquezas
essas necessrias posterior expanso do sistema capitalista.
A descoberta das terras do ouro e da prata, na Amrica, o extermnio, a escravizao e o enfurnamento da populao nativa nas minas,
o comeo da conquista e pilhagem das ndias Orientais, a transformao
da frica em um cercado para a caa comercial s peles negras marcam a
aurora da era de produo capitalista. (MARX, 2 ed., 1985, p. 285, V. 2).
Na Europa, pari e passu ao processo de acumulao de capital, deu-se o processo histrico por meio do qual o produtor foi separado dos
meios de produo e foi sendo criada uma oferta de trabalho adequada
s novas necessidades da sociedade capitalista. Ai ento que comea a
desaparecer o arteso; o pequeno produtor independente, que trabalhava diretamente para o consumidor, vai sendo substitudo pelas grandes
unidades produtoras e as manufaturas passam a reunir grande nmero
de trabalhadores como simples assalariados e sob a direo de um patro
que dispunha do capital. (PRADO JNIOR, 5 ed., 1959).
Foi no final do sculo XVIII e no comeo do XIX, que esse fenmeno pde ser melhor visualisado. A sociedade ocidental europia experimentou um processo de transformao estrutural e de extraordinria
expanso econmica que marcou o estabelecimento do sistema capitalista
como modo de produo dominante. Alguns poucos pases desenvolvidos industrializaram suas economias, possibilitando assim que a burguesia, como classe social dominante, assumisse a hegemonia do poder poltico e dominasse a produo de riqueza, pois se tornou sua proprietria.
130
131
Exportao
1760
130 Sacas
1770
3.511 Sacas
1780
7.414 Sacas
1790
11.321 Sacas
1800
28.789 Sacas
1810
52.460 Sacas
1820
66.619 Sacas
Valor nominal
Taxa
1824
L 1333,300
1825
L 2352,900
1829
L 769.200
Idem
1839
L 411.200
Idem
1843
L 732.600
Idem
1852
L 1.040,600
4.5
Idem
138
32.644$020
Despesa Total
102.135$050
Dficit
69.490$430
dida que a crise ia se ampliando, os comerciantes portugueses (brasileiros adotivos) passaram a ser identificados com ela e a enfrentar renhida
resistncia por parte da populao urbana. No ano de 1831, sucediam-se
manifestaes em Mato Grosso, de civis, soldados e oficiais inferiores
pedindo a demisso dos brasileiros adotivos dos empregos pblicos, reivindicaes essas no atendidas.
Em uma regio em contnuo processo de decadncia, os estrangeiros ou os de fora, como eram chamados eram encarados como concorrentes, aqueles que tiravam dos nativos as oportunidades de trabalho
e emprego e que, tambm por isso, eram duramente combatidos.
Diante da nova situao menos promissora, a economia produtora
mato-grossense foi obrigada a lanar mo de novas alternativas, buscando
produtos que pudessem encontrar o caminho da exportao e devolver o
equilbrio s finanas pblicas.
Em 1802, estando em Cuiab como enviado da Coroa Portuguesa,
o padre Jos de Siqueira, Professor Real da Filosofia Racional e Moral da
Vila de Bom Jesus de Cuiab, elaborou um longo relatrio sobre a situao da minerao na Capitania, criticou a ausncia de tecnologia, apresentou alternativas para melhorar o desempenho da extrao do metal e
por fim revelou:
Esto as Minnas cansadas; os seus jornaes j no cobrem as
despezas do ferro, asso, alimento e vestuario dos escravos e
porisso o mineiro j desesperado se passa a lavrador ou creador
de gado, ou erije hum engenho daguardente e assucres: p.m onde
se poder dispor, e qual o equivalente para formar a troca que se
chama compra e venda. (SIQUEIRA apud HOLANDA, 3 ed.,
1990, p. 129).
j desde o sculo XVIII, existia uma insipiente, mas expansiva, economia agropecuria destinada ao abastecimento regional, como ocorreu em
Gois e principalmente em Minas Gerais. (MAMIGONIAN, 1986).
As novas alternativas econmicas se desenvolveram em grandes
propriedades territoriais e aos poucos tomou para si um nmero cada
vez maior de atividades: nessas unidades as matrias primas passaram
por todas as fases at o preparo definitivo para o consumo da populao
que ali vivia, tudo se obtinha dentro dos limites da unidade autnoma,
conhecida como complexo rural. (PAIM, 1957, p. 17).
O complexo rural inicialmente se organizou como atividade complementar a minerao, e essa economia foi ento se desenvolvendo para
produzir uma oferta de bens de consumo que pudesse atender a todos
aqueles que estavam envolvidos na atividade principal que era a minerao. Enquanto o ouro e o diamante eram encontrados abundantemente,
e tendo eles alto valor de troca, muito daquilo consumido internamente
era adquirido dos comerciantes portugueses. medida que a crise foi se
ampliando, sobretudo com o encarecimento dos produtos importados,
paulatinamente foi se desenvolvendo um processo substitutivo de importaes no interior dessas propriedades: comprava-se apenas aquilo que
no era possvel produzir internamente, como prataria, loua, ferragem,
etc.; o restante, muito rapidamente, passou a ser produzido nas grandes
propriedades, geralmente artigos de consumo, com emprego de tcnicas
extremamente rudimentares.
O mercado externo no proporcionou recursos suficientes para a
compra dos artigos de consumo dos quais necessitava a populao. Em
conseqncia, voltava-se produo direta, a fim de se superar este obstculo, promovendo no seio da agricultura as atividades manufatureiras.
Cada fazenda era uma unidade econmica autnoma, e, como o sistema
era adotado por todas as fazendas, as unidades autnomas constituam
ento a base da economia brasileira, na qual preponderava o setor natural
da produo. (PAIM, 1957).
Esse modelo de economia de autoconsumo se desenvolveu em algumas regies de Mato Grosso e, no sculo XIX, combinou caracters143
ticas de auto-abastecimento com alguma finalidade mercantil, no deixando de ser retratado pelos viajantes que galgaram a regio no incio do
sculo XIX. Referindo-se fazenda Jacobina, o desenhista da expedio
de Langsdorff deixou registrado: Grandes armazens, quatro engenhos
de assucar, dois tocados agua e dois por bois, uma olaria, uma machina
de soccar, milho, ranchos, tudo isso dava ao estabelecimento as apparencias de uma alde. (FLORENCE, 1875, p. 241).
Francis Castelnau, na dcada de 40 do sculo XIX, d mais informaes a respeito da fazenda Jacobina. O principal cultivo era o da cana-de-acar, da qual se extraa a aguardente. Cultivavam-se, ainda, mandioca, milho, feijo, banana, arroz, algodo, fumo, alm de produzir-se
tecido de algodo e manter-se um importante criatrio de gado bovino,
suno e de aves. (CASTELNAU, 2000).
Essas propriedades, estabelecidas nas proximidades dos centros
urbanos, garantiam uma produo regular de gneros, desde alimentos
at tecidos, que eram absorvidos pela populao.
Em 1828, Luis dAllincourt registrou o grau de expanso da economia pastoril mato-grossense: na capitania mor do Diamantino constatou
46 sesmarias, quasi todas destinadas lavoura, como as de Matto Grosso
(...), em Cuiab averbou 317 das quaes 92 so unicamente destinadas a
criao de gado vacum e cavallar. (DALLINCOURT apud CORRA
FILHO, 1926, p. 18).
Do resumo do seu recenceamento, que estava muito aqum da realidade, registrou:
Fazendas de gado grandes e pequenas
Total das Produo N de rezes que anualmente
Nmero
cabeas
Anual
vo aos cortes pblicos
CUIAB
51
161.416
40.300
995
DIAMANTINO
6
1.817
354
370
MATTO GROSSO
7
9.120
1.900
375
TOTAL
64
172.353
42.854
1.740
Localidades
144
Dessas propriedades, algumas se sobressaam. Era o caso da Jacobina, a mais rica fazenda da provncia, com rea de quatro lguas em
quadra, das quais dois quartos, quando muito, eram cultivados; o resto
era composto de florestas virgens, lizeiras e pastaria. Duzentos escravos
de trabalho dos dois sexos e sessenta crianas formavam a escravaria;
mas havia quase igual nmero de gente forra, entre agregados, crioulos,
mulatos e ndios, que trabalhavam mais ou menos para si, ou pagos pelo
proprietrio da terra, no imvel havia em torno de 60.000 rezes: a maior
parte em estado selvagem. (FLORENCE, 1875).
Desde 1830, havia um comrcio regular entre Cuiab e a costa. Os
comerciantes dispunham de quinze tropas, variando de 50 a 200 animais
cada uma, que faziam o intercmbio pelo caminho de Gois. No lombo
deles, exportavam o couro do gado vacum, peles de ona e de veados,
ouro em p, diamantes e ipecacuanha. Da costa vinham o vinho, sal,
plvora, chumbo, azeite e equipamento para engenho de acar. (CASTELNAU, 2000).
O principal excedente dessa economia foi o gado bovino, pois havia um grande volume dele em torno de Cuiab vivendo de forma extensiva, disponvel para a comercializao.
Pertencentes a grandes fazendeiros que no eram forados financeiramente a vender toda a produo anual, a pecuria se expandiu parcialmente, independente do mercado favorvel, com grandes reas de
pastagem natural, custos de produo insignificantes, quase nenhuma
mo-de-obra, terras geralmente obtidas atravs de doaes feitas pelo Estado e providas de salinas naturais ao sul e sudoeste de Cuiab. Sendo assim, desde o sculo XVII, medida que o mercado no absorvia a produo anual, o rebanho crescia geometricamente. (MAMIGONIAN, 1886).
Com os grandes estoques de bovinos que se formaram em Cuiab
e seus entornos, a partir de 1832, esforos foram feitos no sentido da
construo de uma picada que possibilitasse aos pecuaristas vender seus
excedentes. O caminho, concludo somente em 1835, bordejava o sop
145
Movimento
Ano
Provncia
RUSGA
1834
MATO GROSSO
FARROUPILHA
1835
CABANAGEM
1835
PAR
SABINADA
1837
BAHIA
BALAIADA
1838
MARANHO
PRAIEIRA
1847
PERNAMBUCO
Os amotinados cometeram atrocidades inauditas: cortaram as orelhas e partes pudendas das vtimas, queimaram cadveres, violaram esposas, alm de outros atos de selvagerias. (BARO DE MELGAO, 1949).
A revolta nativista foi vitoriosa e, restabelecida a normalidade, a
faco dos comerciantes portugueses foi subjugada completamente, a
quem a elite emergente substituiu frente dos negcios pblicos e do
comando militar da Provncia, cujas finanas, no entanto, ficaram mais
combalidas ainda. Em 1836, o oramento previa despesas de 69.673$000
para uma receita de 17.132$000, apesar de a arrecadao do ano anterior
ter sido de apenas 4.742$000. (CORRA FILHO, 1969).
Os portugueses tiveram suas casas comerciais invadidas e saqueadas, muitos morreram e muitos outros fugiram, promovendo uma grande
evaso de capitais para outras provncias. Alm disso, logo se iniciou um
processo repressivo cujo interesse mais premente no era o de levar a julgamento os responsveis pela rebelio, mas apenas afast-los rapidamente
do cenrio poltico mato-grossense. (CORRA, 2000).
Assim foi que, no mais podendo permanecer no norte e sob pena
de perseguies, alguns portugueses embrenharam-se para o sudoeste de
Mato Grosso, fronteira distante onde havia muita terra devoluta, grandes
manadas de gado alado e possibilidades de enriquecimento.
149
Captulo 3
O Sul de Mato Grosso no Sculo XIX no
Olhar dos Viajantes
3.1. A Fronteira na Primeira metade do Sculo XIX
Desde o sculo XVI, a parte meridional do velho Mato Grosso
vinha sendo utilizada como rota para as bandeiras paulistas que haviam
penetrado nesse territrio para prear os ndios e conduzi-los para So Paulo na condio de escravos, j que as fazendas ali organizadas produziam
trigo em larga escala para o mercado da Colnia e tambm da Metrpole.
(MONTEIRO, 1994). A partir do princpio do sculo XVIII, aumentaram as incurses nessas terras, que foram vasculhadas pelos mamelucos
paulistas, em busca do indgena, at que, por um golpe de sorte, descobriram ouro no norte, na Cuiab de hoje. Com isso, estabeleceu-se a primeira
colonizao permanente em Mato Grosso. Para o extremo oeste do Brasil,
se voltaram as atenes da Coroa e para l afluram milhares de pessoas, de posse de seus escravos, de onde extraram grandes quantidades de
ouro. A parte meridional da Capitania continuou como rea de passagem
vivel dos paulistas que se dirigiam s minas de ouro em Cuiab.
A ameaa do avano castelhano pela Amrica portuguesa, sobretudo pelas regies produtoras de metais, levou o Ministro dos Negcios
Estrangeiros e da Guerra, Sebastio Jos de Carvalho e Mello, em 1770, a
promover a demarcao e ocupao das fronteiras.
No sul, a fazenda Nacional de Albuquerque, prxima do rio Paraguai, abrigava expressivo rebanho bovino, desde sua fundao em fins do
sculo XVIII. O mesmo aconteceu com as fazendas fundadas na regio
de Miranda.
Em fins do sculo XVIII e comeo do sculo XIX, os contingentes militares do Governo central, instalados ao longo da fronteira meridional, mal cumpriam o seu papel de resguardar a integridade territorial.
No limiar do sculo XIX, as principais naes europias, sobretudo aquelas que promoveram as suas revolues industriais, procuravam
acompanhar os processos de independncia na Amrica, no deixando
de intervir em seus destinos, j que estavam interessadas na completa
destruio do sistema colonial, contribuindo assim para o nascimento de
novas naes que, sem a intermediao de uma metrpole qualquer, iriam
se inserir em uma nova ordem da histria mundial.
Por essa poca, representantes das diversas potncias europias,
religiosos, naturalistas, viajantes mantiveram seus respectivos governos
informados dos acontecimentos que se desenrolavam nas novas naes,
alm de revelar o que essas terras guardavam em suas entranhas.
A motivao destas expedies pela Amrica do Sul, como a do
Baro Gricory Ivanovitch Langsdorff (1825-1829) s provncias
de So Paulo, Mato Grosso e Par. A motivao desta expedio,
como as anteriores Spix e Martius 1821, (Saint Hilaire) (1822),
[CASTELNAU, 1845], e mesmo das que ocorreram durante
todo o sculo XIX em vrias partes do mundo, estava na busca
do conhecimento da natureza, populao e riquezas minerais de
regies disponveis, to necessrio para a dominao e explorao
pelas naes imperialistas emergentes do esplio deixado pelo
processo de desagragao dos imprios coloniais. (CORRA,
1999, p 20).
Nas vizinhanas do presdio, encontravam-se tambm os guaicurus, em torno de 300 almas. Viviam da criao de animais cavalares, da
caa e da pilhagem, tendo destrudo grande nmero de fazendas dos paraguaios, nossos vizinhos de fronteira. (DALLINCOURT, 1857).
Embora a populao em torno do forte fosse extremamente rarefeita, ela mantinha relaes de ordem econmica com os naturais ao seu
redor, e, a julgar pelas informaes dos viajantes, no eram relaes de
pouca importncia, j que ficou claro que os indgenas produziam tecidos
para atender aos brasileiros, como tambm muito daquilo que cultivavam
abastecia a referida populao, ou pelo menos completava o seu abastecimento com produtos que os brasileiros no eram capazes de produzir.
Os poucos sitiantes que viviam nas vizinhanas comercializavam o gado
eqino e bovino do indgena para vend-los em Cuiab, para onde conduziam os animais por terra, percorrendo oitenta lguas e atravessando
os rios Negro, Taquari e So Loureno. (DALLINCOURT, 1975). Tambm eram conduzidos bovinos e eqinos para a fazenda Camapu, os
quais eram trocados por tecidos. (FLORENCE, 1975). Como se pode
observar, o comrcio de gado entre o sul e o norte j era praticado nas
primeiras dcadas do sculo XIX, o que comprova que os estoques eram
significativos nesse perodo.
De Miranda a Camapu havia uma estrada a qual s era possvel
percorrer em lombo de animais, uma vez que o seu estado de conservao
era pssimo, sobretudo na poca da estao chuvosa. Ela atravessava os
pantanais que ladeavam o rio Paraguai e transpunha o planalto de Camapu, passando abaixo das nascentes do Aquidauana, sendo que eram
necessrios dez dias para cumprir o trajeto. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Havia na regio uma enorme quantidade de pau-roxo e de jacarand que, alm de serem usados como combustvel por seus moradores,
eram embarcados no Aquidauana com destino a Porto Feliz, na provncia
de So Paulo. Uma tbua de pau-roxo medindo de dois a trs metros de
comprimento, meio metro de largura e dois a trs centmetros de grossura
e pesando, em mdia, duas arrobas e meia, valia cerca de dois francos e
156
157
19 Planta natural nas matas de So Lus de Cceres em MT, cuja raiz tem qualidades vomitivas. Sua
exportao era significativa no perodo de 1830 a 1837, quando diminuiu, retornando depois
em 1845. (CASTELNAU, 1949, p. 105 e 168).
159
O Forte Coimbra foi edificado em um local cujas terras eram estreis para a agricultura, devido ao clcio, e, alm disso, a regio alagava
anualmente, impedindo o pastoreio do rebanho. A sua manuteno dependeu sempre do auxlio das outras unidades. Em determinadas pocas, era da fazenda Jacobina, nas proximidades de Cuiab, que vinham
vveres para atender a populao do Forte. Sua proprietria, dona Anna,
mandara seis grandes canas cheias de vveres Nova Coimbra no Paraguay para sustento gratuito da guarnio. No sabia que destino dar aos
mantimentos, disse-nos ella, e preferi perdel-os presentear o governo.
(FLORENCE, 1875, p. 240).
Ainda s margens do rio Paraguai, os portugueses fundaram, em
1778, o vilarejo de Corumb para ser sede de um distrito militar e plo de
colonizao. Em 1845, sua populao, formada por uma mescla de brancos, ndios e negros, girava em torno de cem habitantes, sendo setenta
adultos, dos quais cinqenta eram mulheres, uma desproporo significativa entre a populao masculina e a feminina. (CASTELNAU, 1949,
T. 2). Esse fato se explica pelo sucesso que alcanou a fazenda de gado de
Albuquerque e pela presena dos capuchinhos, que atraiu muitos descontentes do ncleo de Corumb.
Em um recenseamento anterior, de abril, 1791, constava sua populao de 141 almas, sendo um oficial e doze soldados de guarnio,
com seis crianas brancas; cinquenta ndios e nove pretos escravos, todos
do sexo masculino; onze mulheres e crianas brancas sessenta e duas ndias e tres negras escravas. (FONSECA, 1986, p. 315, V. 1).
No povoado que possua uma igreja em runas, diante da qual
ficava o posto militar, composto por trs soldados havia uma rua prin162
cipal com uma fileira de dez casebres unidos uns aos outros tendo como
fecho das portas e janelas o couro do bovino. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
A povoao de Corumb foi edificada, de acordo com as expectativas oficiais, para constituir-se em um ponto de apoio ao recm construdo
Forte de Coimbra, produzindo gneros e toda sorte de suprimentos para
a guarnio, no entanto ela mal sobreviveu, tendo vivenciado, at meados
do sculo XIX, a mais completa falta de recursos e abandono situao,
alis, que marcou toda a fronteira meridional. Em Corumb, o terreno era
de formao calcria, de onde se extraa a cal tanto para as construes
locais como para a exportao, sobretudo para Cuiab. Ela era encontrada
pura e quase superficialmente, sendo empregada para argamassa e caiao
dos edifcios. As tcnicas de extrao dessa substncia eram extremamente rudimentares: os habitantes deixavam que os blocos desmoronassem da
colina e se fragmentassem por si mesmos, para assim facilitar a retirada
dos ndulos calcrios envolvidos pela ganga, os quais eram submetidos
ao do fogo em pequenos fornos redondos. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Embora o calcrio tivesse grande aceitao no norte, para onde era
vendida grande parte da sua produo, ele nunca se constituiu numa alternativa econmica para a cidade, pois esta no prosperou e sua populao
vivia miseravelmente, mal produzindo o indispensvel sua subsistncia.
Quanto pecuria, as poucas cabeas que ali eram criadas encontravam dificuldade para a sua reproduo porque havia grande quantidade de morcegos que atacavam sobretudo os bezerros, tanto que, para que
escapassem das investidas dos quirpteros, eram colocados em currais
muito bem protegidos, o que dava muito trabalho quela pobre gente.
(DALLINCOURT, 1881).
Por outro lado, Bartolom Bossi, que visitou Corumb anos depois, afirmou: a cidade estava situada na margem occidental do rio Paraguai. As campinas intermedirias sobre as duas margens, espcie de pampas verdejantes e infinitos, podem alimentar milhes de animaes. Com
effeito na costa occidental j se comeava ver alguns rebanhos de gado
que pastam sobre essas campinas privilegiadas. (BOSSI, 1863, p. 22).
163
As dificuldades apresentadas para o desenvolvimento da pecuria haviam sido vencidas e os animais, dispondo das reas propcias ao
criatrio, cresceram de forma rpida, tendo certamente sido suficiente o
esmero dos vaqueiros para a adaptao do rebanho quela regio.
Outro importante ncleo na banda meridional da Capitania de
Mato Grosso foi a fazenda Camapu. Montada mais ou menos na metade do caminho que ligava Porto Feliz a Cuiab, embora constitusse
passagem praticamente obrigatria para aqueles que se deslocavam para
as minas de ouro do extremo oeste, entrou em plena decadncia no final
do sculo XVIII, sobretudo a partir da abertura da ligao terrestre entre
Cuiab e Gois, que colocava a Capitania em contato com o Rio de Janeiro e So Paulo, e da navegao Guapor-Madeira, que ligava ao Par,
sendo ento aquele caminho tradicional abandonado pelos comerciantes.
Contava a fazenda, em 1826, com 300 habitantes, dos quais a tera
parte era composta de escravos. Em geral, a populao era de negros;
poucos eram mestios e mulatos. Desta cor era o comandante do vilarejo.
(FLORENCE, 1975.). Viviam miseravelmente e, pelos bens que possuam, pouco se distanciavam do estado selvagem. Apenas os mais ricos
andavam vestidos com calas e camisas de pano grosso; o restante usava
ceroulas muito parecidas com tangas, enquanto que a maior parte das
mulheres cobria os seus corpos com uma saia. (FLORENCE, 1975). No
contavam com nenhum religioso, portanto no havia missa nem quem os
confessasse em caso de perigo. Isso era praticamente impossvel, porque
as distncias eram muito grandes. (MARTINS de PAIVA, et al, (Org.),
1982, p. 15).
Fabricavam grosseiros tecidos de algodo para uso dos moradores
e para remessas para Miranda, onde o produto era trocado por gado vacum e cavalar. Cultivavam a cana-de-acar, da qual faziam uma pssima
aguardente; o milho, para dele extrarem a farinha e o fub; o feijo e o
fumo. Para a produo da farinha recorriam ao antigo monjolo movido
gua; no entanto, uma inundao arrastou rio abaixo o nico existente.
A partir de ento, os negros escravos ficaram compelidos a manejar os
piles simples. (FLORENCE, 1975).
164
Criavam, alm de porcos e galinhas, gado de corte, do qual a fazenda mantinha o controle de seiscentas cabeas, enquanto que muitas outras
viviam espalhadas pelos campos, vivendo sem trato algum. (MARTINS
de PAIVA, et al, (Org.), 1982, p. 15).
A base da alimentao era o milho e o feijo (raramente usavam
a carne suna, bovina ou ovos), tudo sem sal, que era um artigo de luxo,
muito raro e caro: um prato raso custava 12 francos, 1$800. Todos os
pagamentos eram feitos em gneros, porque em Camapu se dispensava
o uso de moeda, verdadeira raridade na banda meridional da Capitania.
(FLORENCE, 1975).
Foi somente no sculo XIX que se generalizou o uso da moeda
metlica no Brasil. E isso nas regies litorneas, pois no interior ainda por
muitos anos continuou o uso do escambo para quase todas as relaes
econmicas, como pagamentos de servios, de mercadoria, de salrios e
pagamentos de impostos. O Governo portugus proibiu por muitos anos
a circulao, na Colnia, de moedas cunhadas em Portugal, e no permitia que elas fossem cunhadas no Brasil. Essa medida visava claramente
evitar a sangria de dinheiro da Metrpole para a Colnia. (ARMED e
NEGREIROS, 2000).
Na sede da fazenda Camapu havia duas casas de sobrado, telhas,
numa morava o comandante, que na ocasio era um alferes de
milcias (guarda nacional); outra fronteira, separada por vasto ptio,
que tem um engenho de moer cana tocado por bois. O ptio
fechado pela senzala dos escravos, toda ela baixa e coberta de sap.
noite, so eles metidos debaixo de chaves. A gente forra mora
do outro lado do rio Camapu. (FLORENCE, 1975, p. 73 e 74).
J a Praa de Nossa Senhora dos Prazeres, de So Francisco de Paula de Iguatemi, ou simplesmente o Forte de Iguatemi, foi fundado com o
propsito de abrigar quatrocentos a quinhentos homens, para combater
as foras espanholas que pressionavam a colnia do sacramento e a proteger as capitnias de Cuiab e Gois. (PEREGALLI apud KOK, 1998,
p. 297). Sua edificao tambm visava povoar os Campos de Vacaria, a
165
Indivduos
?
2 Chamacaros
200
3 Cadiueos
850
4 Beaqueos
5 - Coloqueos
500
6 Guatiedeos
130
Albuquerque
7 Guans
200
8 - Kinikanos
1000
9 Terenas
2000
Miranda
10 Laianas
300
Miranda
11 Guaxis
Miranda
12 Guats
500
Total
5680
Fonte: (FERREIRA apud AYALA & SIMON, 1914, p. 89). Essas informaes precisam
ser relativizadas, a obra de Ayala & Simon, foi produzida para divulgar Mato Grosso no
Brasil e no mundo, com o objetivo de atrair novos investimentos e pessoas de outras
localidades que pudessem se trasferir para o Estado. O nmero reduzido de ndios parece
proposital, se fosse apresentado o nmero real, poderia afugentar os que manifestassem
interesse em investir na regio ou vir a residir.
Por terra, o caminho mais comum era o que ligava Miranda a Sant
Ana do Paranaba e, da, a Franca, em So Paulo. Costeando sempre o rio
Paran, atravessava o Paranaba, cortando pequena poro da provncia
de Minas Gerais, que ficava entre a de Mato Grosso e a de So Paulo, e
entrava ento nesta ltima, transpondo para isso o rio Paran. As regies
que varava a partir da eram cada vez mais habitadas, at vila de Franca;
aps, seguia a Campinas, Jundia e da at a capital. A estrada era boa at
para os carros de boi. (CASTELNAU, 1949, T. 2).
Os fazendeiros que foram se estabelecendo em torno da Colnia
militar de Miranda e da Vila homnima com esforos prprios abriram
uma nova trilha em direo ao Piquiri que deu a eles a oportunidade de
colocar seus rebanhos no mercado de Minas e So Paulo.
O traado foi estabelecido acompanhando os rebordos da costa
do planaldo de Maracaju. Tomou a direo do serto dos Garcia,
passando pelo atual municpio de Campo Grande, da seguindo
para Coxim, fazenda Camapu, at Santana de Paranaba, de modo
a atingir o caminho de Piquiri ou de Uberaba. (GUIMARES,
1999, p. 56).
desenvolvida e por isso incorporaram mais rapidamente os aspectos materiais da cultura do branco, sobretudo as tcnicas agrcolas e o manejo
do gado bovino e eqino.
O reconhecimento da contribuio de algumas naes indgenas
ao progresso do Estado era tal que, no seu discurso, o Presidente da
Provncia do Mato Grosso, Jos Antnio Pimenta Bueno, na abertura da
Assemblia Legislativa Provincial, em 1 de maro de 1837, afirmou:
Muitas differentes naes de Indigenas vadeio os incultos e
extensissimos sertes da Provincia, em grandes pores ainda no
trilhadas por nossa parte; de algumas temos notcia, e de outras de
que seguramente existem bem fundadas conjecturas: (...) Temos
tirado no pequena vantagem para o servio de defesa do Baixo
Paraguay, dos guatos, Laianos, Terenos, Quinquenaos, e gunas
(...). (BUENO, 1840, p. 170).
comandante de um forte portugus, que era tambm fazendeiro e interceptava os animais furtados e os vendia em Cuiab. Em apenas um ano,
os indgenas entregaram a ele 1500 cabeas de cavalos e mulas em troca
de bebida alcolica. (Relato de 1825/26, Vila de Concepcion Paraguay
apud WILCOX, 2000).
Os guaicurus viviam desde o sculo XVII nas proximidades dos
fortes e no sculo XIX j mantinham estreitos contatos com seus dirigentes. A belicosidade guerreira havia sido substituda por singelas trocas
entre as autoridades brasileiras e os indgenas. Se antes, estes recebiam
proteo de oficiais portugueses para realizarem incurses, agora, o fruto
do roubo era trocado sobretudo pela bebida alcolica. Assim, com os
anos de convivncia pacfica, passaram de aliados senhoriais a simples
ndios dominados, de negociantes de cavalos prprios e roubados a meros
pees de fazenda. (RIBEIRO, 2 ed., 1977).
174
Captulo 4
O Sul de Mato Grosso: do Incio do Processo
de Ocupao no Sculo XIX Guerra da
Trplice Aliana
4.1.
20 O padre Simo de Toledo Rodovalho era vigrio da aldeia de SantAnna; ele props ao Capito
General Rolim de Moura a sua transferncia para o Fecho dos Morros no rio Paraguai. Tendo
em vista a distncia, as despesas que ocasionaria e o cime que despertaria aos espanhis, deixou
o governador de acolher a proposta daquele jesuta. (MENDONA, 2 ed., 1973, p. 105).
Os colonizadores que chegaram regio, antes da metade do sculo XIX, reproduziram os mesmos processos polticos a que estavam
afeioados no norte e trataram logo de tomar posse de grandes reas,
herana da conscincia do Brasil colonial, onde quem dispunha de terra
era considerado rico, poderoso, respeitado e gozava do prestgio social.
Como a apelao de senhor de engenho ou de fazendeiro, desde
remotos tempos coloniais, fora quase um ttulo de nobreza, pois traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. (ANTONIL apud
QUEIROZ, 1976, p. 52).
Havia a clara possibilidade de os pioneiros se apossarem de grandes
reas, achando-se no direito a elas, alm do que o fator que determinou
o tipo de propriedade fundiria foi a criao extensiva do gado bovino,
que por si s exigia grandes reas e impelia os colonos a se assenhorarem
delas.
No Pantanal, generalizou-se como unidade territorial a sesmaria
de uma lgua de frente por trs de fundo, o que eqivaleria a 13.068
hectares.
Raramente, porm, cada proprietrio rural contentar-se-ia com
uma nica, indicativa de comedidas aspiraes. Adquirida,
mediante concesso do Governador, a primeira sesmaria que
servisse de ncleo, em trno dela seriam requeridas as terras
contguas, at que perfizessem conjunto grandioso, (...). De mais
a mais, os limites mencionados vagamente abrangiam, no raro,
rea muitas vzes maior que a devida, quando no se processasse
a medio de acrdo com as exigncias legais. A facilidade na
aquisio, por ttulo gratuito, de glebas imenas, cujas divisas os
vizinhos longnquos respeitavam, por no lhes minguar terreno
bruto, (...). (CORRA FILHO, 1955, p. 20).
exigncia do pequeno suporte dos campos, que comporta em cada 3,3 ha,
apenas uma cabea.
Os bovinos eram criados solta at as primeiras dcadas do sculo
XX, pois no havia cerca para deter o seu avano e, medida que instintivamente procuravam melhores pastagens, fugindo das reas macegosas,
iam descobrindo novas pastagens, cujas terras os homens que acompanhavam os seus deslocamentos iam incorporando ao seu patrimnio e
requerendo junto s autoridades estaduais.
Com isso, foram surgindo megalatifndios no Pantanal Mato-grossense:
A lei de 1850 procurou limitar o tamanho das propriedades, evitando a concentrao fundiria, e estabeleceu que a nica forma de se obter
terra era comprando do Governo, o qual atuava como mediador entre o
pretendente e o domnio pblico. A terra, at ento em grande quantidade e que podia ser obtida atravs de ocupao e doao real, desde que no
primeiro caso fosse mais tarde legitimada por concesso, daquela data em
diante poderia ser obtida por qualquer pessoa desde que pudesse pagar
por ela. A lei expressou os interesses dos proprietrios rurais. Enquanto
no plano internacional o avano tecnolgico no setor de transportes, conhecido como Segunda Revoluo Industrial, abriu novas perspectivas
para a agricultura brasileira, com o desenvolvimento da lavoura cafeeira
em So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, dois problemas avultaram,
exigindo soluo: o da mo-de-obra e o da terra.
A libertao dos escravos exigncia internacional sobretudo da
Inglaterra e internamente amplos setores se mobilizavam para obt-la,
preocupados com a facilidade que ex-escravos e imigrantes teriam de se
apossar de terras, a oligarquia lanou mo da lei de 1850 para (...) criar
obstculos a propriedade rural, de modo que o trabalhador livre, incapaz
de adquirir terras, fosse forado a trabalhar nas fazendas. Portanto, os
tradicionais meios de acesso terra, ocupao, formas de arrendamento,
meao, - seriam proscritas. (COSTA, 1979, p. 133).
Em Mato Grosso, a lei cumpriu em parte o seu papel de negar
acesso de trabalhadores rurais terra e, por outro lado, constituiu fator de concentrao fundiria. Os governantes reconheceram os direitos
de todos aqueles que exibissem escritos particulares de compra e venda
ou provassem posse mansa e pacfica decorrente da ocupao primria.
(CORRA FILHO apud CORRA FILHO, 1951, p. 22). A prpria realidade levou a esse processo de concentrao das terras, uma vez que
no era possvel a prtica da pecuria em outros moldes que no fosse a
extensiva. Aproveitando o capital natural (a terra e o gado selvagem), a lu182
seguiu-se por anos a fio depois da ocupao meu pai contava que ainda
no incio da dcada de 30 do sculo XX havia muito desse gado pela regio. (BARROS, entrevista em 13/10/2001).
Geralmente, os vaqueiros saam em noite de luar para melhor visualizar os animais que tinham o hbito de pastar apenas noite, os quais
eram laados e amarrados em rvores, onde passavam horas nessa condio para que fossem quebradas as suas resistncias, e mais tarde, o peo
voltava ao local para conduzi-los. No era raro encontrar alguns animais
mortos. Morriam de pura raiva e, recolhidos, eram levados para as proximidades das sedes da fazenda. (PROENA, 1958, p. 72-73). Eram as
vaquejadas: vai-se escondido, pelos matos, e sai-se em cima do gado, de
repente... Pior, porm, era caar a rs feroz, em ermas regies, perante a
lua. A pega do gado bagual, de noite, trabalho terrvel. (ROSA, 5 ed.,
2001, p. 117).
Renato Alves Ribeiro, grande latifundirio sul-mato-grossense
que, pessoalmente, participou da pega e amansamento do gado selvagem,
deixou uma das maneiras de faz-lo, utilizando o sinoeiro:
A pega do nosso gado bravo o touro, principalmente, que era
uma verdadeira fera representava um desafio ao homem do
campo. Quantos e quantos cavalos morreram estripados pelos
chifres dos touros e vacas. A pega do gado bagual, ou selvagem
geralmente era feita levando-se um lote de gado manso que o
bagual seguia. Por corruptela ou espanholismo se chamava esse
gado manso de Sinuelo, mas a palavra certa Sinoeiro, por
ser aquele que carrega o sino. Para no espantar o gado bravo
no levvamos o sino e procurvamos no fazer qualquer outro
barulho pois, percebendo qualquer sinal estranho o gado logo
disparava para o mato. (...) Tinha-se que procurar ir sempre contra
o vento, pois, os animais tm melhor o sentido do olfato que o
da viso. Ento colocava-se o sinuelo em um ponto visvel para
o gado que se queria pegar e uns cinco a seis pees davam uma
enorme volta, fechando em forma de pina e procurando jogar o
gado bravo contra o Sinuelo. .../ Muitas vezes o gado obedecia esse
movimento, mas quase sempre os bois erados, e principalmente
os touros, no respeitavam os cavaleiros e voltavam em sentido
184
medida que esse rebanho encontrado pelos campos ia sendo recolhido, recebia imediatamente a marcao a ferro, o que determinava
185
que, daquela data em diante, ele estava na posse de um fazendeiro, passando condio de mercadoria e, conseqentemente, no poderia ser
abatido por outrem.
No final do sculo XIX, quando muito gado selvagem ainda estava espalhado pelo Pantanal, essa lgica do homem branco j havia sido
absorvida pelos ndios guaicurus, entre os quais j reinava a compreenso
de que o gado orelhano no dividido no marcado, portanto era gado
de ningum, era de todos, era gado bravio, era como bicho. (RIVASSEAU, 1941).
O fato de o pioneiro reunir em torno de 300 a 500 cabeas para
o seu criatrio inicial no significava que na rea onde ele instalara sua
fazenda no houvesse um nmero muito superior, tanto que as caadas
eram comuns, para a posterior retirada do couro.
Criaram-se geraes de bois midos e de cr avermelhada que
nunca tinha visto o homem. Quando ste apareceu (...) houve
chacina. E alguns dos recm chegados apareceram da a pouco,
com gibes de couro novo, o couro avermelhado dos boisinhos,
(...) mortos a tiros. (...). (PROENA, 1958, p. 70).
Os rebanhos dos primeiros que se afazendaram no Pantanal multiplicaram-se consideravelmente, mesmo sem receber os cuidados regulares. O fazendeiro no tinha recursos para marcar todos os nascidos, e
aqueles sem trato manifestavam tendncias para se afastar, tornando-se
ariscos e repelindo a presena do homem.
E, neste caso, ha um facto que se deu, facto perfeitamente
reconhecido: os touros que se tornaram bravios e so elles os
mais promptos e propensos a esta mudana buscam e aproveitam
todas as occasies para arrebanhar o gado ainda manso. Assim,
as manadas de gado bravio vo-se engrossando sempre em
detrimento dos criadores. (RIVASSEAU, 1941, p. 67).
E ainda: Quasi todos os antigos capatazes dessas fazendas [Pantanal da Nhecolndia] so, hoje, proprietrios de terras. Os vaqueiros
possuem gado, que criam nos campos dos patres, sem despesa alguma.
(BARROS, 1934, p. 23).
Eu ainda alcancei parte dos processos de ocupao do pantanal,
meu pai requereu muitas terras para ex funcionrios, que so hoje
grandes fazendeiros, ele tinha grande prestgio poltico e levava
para Cuiab lotes de requerimentos para a legalizao de terras
para aquela gente, pelo fato de ser deputado ele encontrava muitas
facilidades, em troca recebia bezerros, tourinhos, vacas velhas, de
alguns nunca recebeu nada. No por ser meu pai mas era um
homem muito bom, um mecena. (RIBEIRO, entrevista 1999).
As terras pblicas foram, assim, sendo distribudas justamente queles que estavam prximos do poder e que tinham os meios para
legaliz-las, enquanto que os ndios foram sendo expulsos e mortos ou
se tornando pees de fazenda. Os que lanavam mo de grandes quantidades de terra pblica, vendendo ou doando a particulares, eram ainda
considerados mecenas.
188
O equipamento metlico foi introduzido no norte de Mato Grosso, ao passo que no Pantanal sul, a produo era tocada por equipamento de madeira. Cultivava-se muita mandioca, que constitua, ao lado da
carne, a base da alimentao do sulino e era um produto to valorizado
como hoje o arroz. Da mandioca, antes da farinha, extraa-se o polvilho
para fazer o bolo e o po de queijo. Cultivava-se tambm o feijo, j que
os solos eram propcios ao desenvolvimento dessa cultura, que tem ainda
o conveniente de no ser muito exigente em gua e de fcil armazenamento, podendo ser utilizado muito tempo depois de colhido. O milho
era cultura obrigatria, pois, alm da canjica e da farinha, obtinha-se dele
o curau, a pamonha e muitos outros quitutes ainda hoje apreciados pelos
sul-mato-grossenses, mas que preferencialmente eram armazenados em
paiol para alimentar o porco que, alm da carne, fornecia a banha. (RIBEIRO, entrevista 1999).
189
guns ncleos populacionais do Pantanal sul de Mato Grosso como Miranda e Corumb.
Com o processo de colonizao do Pantanal sul, os pioneiros foram expropriando os indgenas de suas terras e de todo o seu gado e submetendo-os violentamente. Aqueles que no foram mortos internaram-se
pelo interior em busca de segurana, os que ficaram foram submetidos e
transformados em fora de trabalho. Nesse processo de expropriao, foram surgindo imensos latifndios que concentravam milhares de cabeas
de gado. Por volta de 1860, j havia algumas substanciais propriedades e,
frente delas, os primeiros colonizadores que se tornaram importantes
figuras na economia e poltica de Mato Grosso.
A presena do paraguaio em Mato Grosso visualizada somente
no final do sculo XIX e comeo do sculo XX.
Quando da independncia da Amrica Espanhola, o Ditador Supremo do Paraguai, Jos Gaspar Rodrigues Francia, atravs do confisco
ou de compras a baixo preo, adquiriu e distribuiu terras aos camponeses
paraguaios, arrendando-as a custos irrisrios, alm de fornecer-lhes implementos agrcolas, gado e sementes. Criaram-se as estncias da ptria,
onde os trabalhadores do campo produziam com o auxlio do Estado e
dispunham de parte da produo como homens livres. Das estncias,
saam carne e couro, sendo que o segundo era exportado. (CHIAVENATTO, 24 ed., 1979).
Essas estncias da ptria tornaram-se extremamente importantes
para a nao paraguaia, na medida que: desempenharam o papel de propiciar trabalho mo-de-obra assalariada.
No Paraguai no haver desempregados e, consequentemente, os
vadios e desocupados no vo constituir fenmeno social, como
ocorria aqui, na aluso Argentina. (...) Desta forma, verificar-se-
o caso nico de uma economia, que embora atrasada, permitir a
integrao nela da totalidade do povo humilde, base solidssima
para a formao de uma conscincia nacional. (POMER, 2 ed.,
1985, p.16).
192
Mais tarde, j no governo de Solano Lopes, o Paraguai, que possua um rebanho de sete miles de cabeas de gado vacum, colheu, no
incio da guerra, sete milhes de quilos de fumo, dois milhes e meio de
quilos de erva-mate. (CHIAVENATO, 24 ed., 1979). No final do governo de Antnio Carlos Lopes, o efetivo militar paraguaio era de quinze
mil homens e, prximo do incio da guerra, saltou para quarenta mil.
(VERSEN, 1976, p. 53).
Entretanto, o Paraguai vivia um momento de progresso e no
havia razes para que o povo se deslocasse para Mato Grosso, onde as
oportunidades naquele momento eram muito menores. Portanto, se aqui
paraguaios houvesse, eram fugitivos da Justia ou trabalhadores especializados que se dedicavam construo de currais, bretes e cercas, em que
esses hbeis artesos se destacavam.
Durante os sculos XV e XVI, na Europa, sobretudo na Inglaterra, comeava-se a criar a base do modo de produo capitalista, processo
esse marcado pela separao entre os trabalhadores e a propriedade, perodo de muita violncia e revolues que arrancou sbita e violentamente
as grandes massas humanas de seus meios de subsistncia e as lanou no
mercado de trabalho. (MARX, 2 ed., 1985, V. 2). Esse processo marcou
o ponto de partida da produo capitalista, a sua gnese, deixando profundas cicatrizes na classe trabalhadora. Quatro sculos depois, a banda
meridional de Mato Grosso foi palco de violncias que fizeram recordar
a aurora capitalista.
Enquanto no Velho Mundo a sociedade organizada se preparava
para entrar na fase superior do capitalismo - o imperialismo -, os pioneiros mato-grossenses se lanavam sobre as terras, o gado e o trabalho do
indgena.
Naturalmente que os conflitos foram se sucedendo e, embora a
populao indgena fosse a maioria, ela no tinha possibilidade de lutar,
devido inferioridade blica e tambm porque os pioneiros contavam
com o respaldo legal de autoridades dos fortes e do distante governo
provincial.
193
Em muito pouco tempo, os indgenas guans e terenas, de proprietrios de rebanhos bovinos e cavalares, se transformaram em pees
de fazenda.
Os [terenas so muito] procurados pelos fazendeiros, contentavamse com pequena remunerao, sendo, em geral, por les explorados.
Raramente se encontrava um camarada terena que no devesse os
cabelos da cabea ao fazendeiro seus servios no eram pagos
pelo que valiam e, nas fazendas efetuadas pelo patro, eram
tristemente roubados. Da uma escravido de nova espcie, porque
nenhum camarada de conta poderia deixar o patro antigo sem
que o novo se responsabilizasse pela dvida. E se tivesse a ousadia
de fugir, correria os maiores riscos de vexame e at de morte,
porque nos povoados e vilas, estava a polcia sempre em mos dos
fazendeiros. (VIVEIROS, 1958, p. 179-180).
Via de regra, os trabalhadores eram muito mal remunerados e dependiam inteiramente do patro para o fornecimento de gneros, como
roupas, calados, aguardente, enfim, aquilo que a propriedade no produzia. Esses artigos eram fornecidos a preos majorados, de forma que
sempre havia saldo prendendo o peo ao patro.
A populao nativa foi sendo aos poucos expropriada de suas terras e de seu gado e sistematicamente reduzida condio de servido.
Empobrecida, medida que ia sendo desapropriada de seus bens, juntava-se em bandos, perambulando pelas fazendas, mendigando por um local
onde pudesse se fixar, desenvolver lavouras de subsistncia e caar.
No fim do sculo XIX, alguns desses grupos eram vistos nas cabeceiras do rio Taboco, no alto Pantanal, em conflito com fazendeiros:
Esses ndios, sempre mansos, com o passar dos tempos foram
criando certos problemas, chegando a provocar um caso entre
meu av e Rondon [Gen. Rondon]. Nessas visitas que faziam
fazenda eles ganhavam pedaos de arame que, por no serem de
ao naquele tempo, eles laminavam e colocavam na ponta de suas
setas, dando s mesmas um maior poder de penetrao. Apesar
do meu av pedir-lhes que viessem em casa que ele daria at rolos
completos para eles, os ndios por comodidade, ingenuidade e
194
21 Na sua obra Taboco 150 anos. Balaio de Recordaes Renato Alves Ribeiro afirma que a
fazenda Taboco s comeou a ser cercada depois da dcada de 1920, quando o general Rondon
j havia registrado os conflitos entre os nativos e o seu av, que aconteceram entre 1900 e 1910.
195
tribo dos ofais, das cabeceiras dos rios Taboco e Negro. Estavam
sendo caados e exterminados por um coronel, porque matavam,
para comer, rses da fazenda. S a custa de energia, pertincia e
pacincia foi possvel obter do Govrno que reprimisse tais caadas
e mais difcil ainda foi convencer o fazendeiro de que eram essas
proezas assassnios execrveis. (VIVEIROS, 1958, p. 225-226).
J no engenho de Piraputangas,
Os ndios aprendio varios officios e trabalhavo em olarias.
Perfeito remeiros e pilotos, empregavo se e prestavo auxlio no
s ao commercio, como camaradas das canas que transportavo
generos de Corumb a Cuyb; como ainda nas fazendas de cultura
e criao, onde seus servios ero apreciados. (MOUTINHO,
1869, p. 137).
As jovens ndias iam recebendo os bons princpios da formao ocidental crist para tornarem-se prendadas empregadas domsticas,
cozinheiras, enfim, para realizarem todos aqueles servios que, por uma
razo ou por outra, tornavam-se pouco dignos de serem exercidos pelas
famlias oligrquicas que comeavam a se formar no Pantanal sul.
Era muito comum os fazendeiros da regio de Mato Grosso retirarem indiazinhas dos seios de suas famlias ainda em tenra idade sob
a alegao de oferecer-lhes uma melhor educao. Na verdade, desde os
primeiros dias de chegada casa dos patres, elas eram colocadas na lida
diria, primeiro divertindo os filhos e netos dos coronis e seus apaniguados, na condio de babs e, mais tarde, introduzidas nos demais afazeres
domsticos, geralmente sem ganho nenhum, merecendo por esses servios a honrosa condio de participarem do ciclo mais ntimo da famlia,
obterem um casamento arranjado pela condio de protegidas do coronel
ou alguns cuidados especiais em sua velhice.
197
A terra, por si mesma, no possuia valor algum. O trabalho humano nessas propriedades no lhes modificava a feio. Ficavam como que
nas condies em que eram encontradas. (SODR, 1941). As benfeitorias
eram poucas e de construo extremamente simples. As moradias eram
construdas de pau-a-pique com barro socado, e cobertas com a palha do
acuri ou ento do capim-sap, esse ltimo preferido devido a sua melhor
proteo quando das chuvas. O cho era de terra batida; os cmodos, altos e espaosos. Geralmente, junto casa havia uma varanda aberta, que
ficava em frente sala. As refeies eram tomadas nessa varanda, onde
havia uma grande mesa, feita de madeira grossa e sustentada por cavaletes, com longos bancos tambm confeccionados de madeira. Os quartos
eram amplos e seu mobilirio consistia em bas e canastras de madeira
ou de couro, onde se guardavam as poucas mudas de roupas. As redes
199
A cidade de Uberaba, no Tringulo Mineiro, havia se transformado em importante centro comercial. Devido a sua privilegiada posio ge202
rio Paraguai, havia um fator limitante, ou seja, ali s era possvel a venda
de peles de animais e plumagem de aves, pois as fazendas localizadas nas
proximidades de Corumb abasteciam os plos colonizadores de carne
seca e carne verde.
Manoel Cavassa, que chegou a Corumb em 1857, logo que foi
franqueada a abertura do rio Paraguai, deixou registrado esse comrcio
que havia naquela cidade entre os ncleos populacionais mato-grossenses.
(...) vim para esta cidade [Corumb], que era ento um lugar ermo,
onde smente havia quatro ranchos de palha e nem uma s casa,
pelo que vi-me obrigado a fazer do navio armazem, vendendo ahi
as mercadorias, que tinha trazido, aos habitantes deste lugar e s
embarcaes que vinho da capital, de Vila Maria e de Miranda.
(CAVASSA, 1997, p. 20 e 21).
Rebanho
Produo anual
9.500
9.975
10.474
10.998
11.548
12.125
12.731
13.367
14.035
14.737
15.473
16.246
17.058
17.911
18.806
19.746
20.733
21.769
22.857
24.000
25.200
26.460
475
499
524
550
577
606
636
668
702
736
773
812
853
895
940
987
1.036
1.088
1.143
1.200
1.260
1.323
Taxa de crescimento
anual
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
Produo
total
9.975
10.474
10.998
11.548
12.125
12.731
13.367
14.035
14.737
15.473
16.246
17.058
17.911
18.806
19.746
20.733
21.769
22.857
24.000
25.200
26.460
27.783
205
1841
1842
1843
1844
1845
1846
1847
1848
1849
1850
1851
1852
1853
1854
1855
1856
1857
1858
1859
1860
1861
1862
1863
1864
27.783
29.173
30.631
32.162
33.770
35.458
37.231
39.092
41.046
43.098
45.253
47.515
49.891
52.385
55.004
57.754
60.642
63.674
66.858
70.201
73.711
77.396
81.266
85.329
1.390
1.458
1.531
1.608
1.688
1.773
1.861
1.954
2.052
2.155
2.262
2.376
2.494
2.619
2.750
2.888
3.032
3.184
3.343
3.510
3.685
3.870
4.063
4.266
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
5% a.a
29.173
30.631
32.162
33.770
35.458
37.231
39.092
41.046
43.098
45.253
47.515
49.891
52.385
55.004
57.754
60.642
63.674
66.858
70.201
73.711
77.396
81.266
85.329
89.595
que faziam parte do Vice-Reinado. Entretanto, desse territrio emergiram trs pases independentes: Paraguai, Argentina e Uruguai.
Na cidade de Assuno, em junho de 1811, organizou-se uma junta
governativa que se decidiu pela formao da Repblica do Paraguai e que
esse novo Estado seria governado sem a interveno portenha. (ALMEIDA, 1951). Os revolucionrios paraguaios se opunham hegemonia de
Buenos Aires e sua pretenso de formar um nico pas e conservar o
monoplio do comrcio sobre o rio da Prata. A junta governativa de Buenos Aires considerou o ato como um movimento rebelde e, para reprimi-lo, formou um exrcito que invadiu o Paraguai, mas foi completamente
derrotado. Em outubro do mesmo ano, os argentinos foram obrigados
a conviver com um pas independente em territrio que julgavam ser da
Federao Argentina.
As primeiras dcadas aps a independncia da Amrica Espanhola
foram marcadas por violentos debates polticos e econmicos. Emergiram desse processo grupos internos contraditrios: de um lado, aqueles
que defendiam um atrelamento ao Imprio Britnico e desejavam organizar as novas repblicas independentes como fornecedoras de matria-prima indstria inglesa e consumidoras dos seus manufaturados; de outro,
aqueles que advogavam para seus pases um desenvolvimento autnomo
com medidas que protegessem a produo artesanal platina frente a um
impacto da manufatura inglesa, lanando mo dos mais variados recursos
para atenderem seus propsitos No caso do Paraguai, aps a sua independncia, o ento Presidente
havia assegurado um sensvel distanciamento frente ao
imperialismo ingls. (...) alm de monopolizar a navegao dos
rios interiores, o que lhe permitiu controlar rigorosamente todo
o comrcio de importao e de exportao, o governo paraguaio
tomou iniciativas que viabilizaram o desenvolvimento acentuado
das foras produtivas. Uma delas foi a estatizao das terras,
donde o surgimento consequente das estncias de la patria, que
expandiram vigorosamente a pecuria. Tambm o arrendamento
das terras agriculturveis, a baixo preo, rapidamente assegurou a
207
industrializados, suas matrias-primas exportadas favoreciam o desenvolvimento da indstria e do transporte, que era feito nos navios ingleses.
(DORFMAN apud RAMOS, 6 ed., 1974).
O Brasil, atravs de seu governo, manifestava constante preocupao com a integridade de seus territrios a oeste e mantinha conversaes
com o Governo paraguaio, sempre com o respaldo da Inglaterra, que
defendia seus objetivos comerciais.
O segundo Presidente do Paraguai, Antnio Carlos Lopes, no se
negava a abrir a navegao do rio homnimo para os navios brasileiros,
desde que fosse em troca de um tratado que desse fronteiras seguras
ao pas guarani. (POMER, 1979, p. 70). No entanto, alguns incidentes
envolvendo a Repblica do Paraguai e os Estados Unidos da Amrica do
Norte contribuiram para a abertura dos rios.
O agente da Companhia Paraguaia de Navegao Edward A. Hopkins, cnsul dos Estados Unidos no Paraguai, com aporte de capitais
privados e do Governo americano, iniciou a explorao da navegao a
vapor, do acar, do tabaco, do algodo e outras atividades. (CARDOSO,
1967). No entanto, alguns incidentes de pequenas propores e a soberba de Hopkins, ao tratar do assunto com o Presidente Antnio Carlos
Lopes, fizeram com que o Governo paraguaio cancelasse a autorizao
que lhe permitia atuar como cnsul e encerrou seus negcios no Pas.
(CARDOSO, 1967).
No ano seguinte, o vapor norte-americano Water Witch sulcava
as guas dos rios Paraguai e Paran enquanto sua tripulao promovia
estudos cientficos na regio, quando entrou em guas de navegao proibida, sendo por isso bombardeado, o que provocou a morte de um tripulante e o ferimento de vrios outros. (CARDOSO, 1967).
Esses incidentes trouxeram conseqncias imediatas, com o rompimento das relaes entre Paraguai e Estados Unidos da Amrica. O
Congresso norte-americano autorizou o Presidente James Buchanan a
adotar medidas e o uso da fora para exigir daquele Pas uma justa satisfao. Para garantir o sucesso da medida, foi enviada uma poderosa frota
naval que ficou ancorada na foz do rio do Prata em 1858, produzindo
210
A abertura da navegao pelos rios Paraguai e Paran deu a Corumb a condio de principal entreposto comercial da Provncia e porta
de acesso s mercadorias europias da Amrica do Sul e Europa. A principio, no havia muito que levar da regio: apenas couro do gado vacum
e de animais silvestres, sebo, charque e penas de aves.
A vida econmica da Provncia passou a se desenvolver; ao longo
das regies ribeirinhas havia um crescente movimento de mercadorias e
pessoas, quebrando assim uma rotina de profundo paradeiro e abandono.
O mesmo decreto que habilitou o porto de Corumb ao comrcio criou
uma mesa de rendas. Em 1861, instalou-se a alfndega, e em 1862, o povoado foi elevado categoria de vila. (FONSECA, 1986, V. 1).
Depos de permanecer isolado pela conjuntura colonial portuguesa por mais de 150 anos, o Pantanal de Mato Grosso foi favorecido por
fatores que provocaram a dinmica do seu crescimento. Da abertura do
porto ao incio da guerra com o Paraguai, passaram-se somente oito anos,
perodo esse marcado pelo crescente crescimento da regio. O pantanal
mato-grossense passou ento a ser mais intensamente ocupado com a
abertura de fazendas de gado cujo o ncleo inicial surgiu nos arredores
de Cuiab. (CORRA, 1985, p. 30).
A populao, que antes da abertura do porto era de 100 habitantes,
saltou para 1315 em 1861, dos quais 1187 eram brasileiros, 29 italianos, 26
franceses, 2 alemes, 6 espanhis, 6 argentinos, 9 orientais, 3 bolivianos,
3 americanos e 44 escravos. (PORTO CARRERO apud FONSECA,
1986, V. 1).
No ano de 1864, a populao atingia 1500 habitantes, na maior
parte brasileiros, no excedendo o numero de estrangeiros a cem.
212
o Paraguai, instalando novas colnias militares ao longo da fronteira, enquanto promovia conversaes com o governo daquela Repblica para a
abertura da navegao do rio homnimo. Encorajava, igualmente,o estabelecimento de colonos para manter permanente controle sabre a rea,
desenvolvendo atividades que pudessem, mais tarde, justificar a presena
brasileira.
Em maio de 1850, uma fora de artilharia e infantaria imperial,
a mando do Presidente da Provncia, Costa Pimentel, desembarcou na
encosta do morro Po de Acar, s margens do rio Paraguai, prximo
de Coimbra (forte construdo pela monarquia portuguesa em 1775 para
assegurar a exclusividade da navegao no mdio Paraguai e conter as
incures dos nativos) com a inteno de levantar ali um navio forte. O
governo paraguaio reagiu imediatamente, enviando uma frota com tropas; eram mais de 600 soldados, que cercaram a construo e expulsaram
os militares imperiais.
A segunda dessas colnias militares foi a de Nioaque, agora com
sucesso, instalada em 1850 margem do rio Urumbeva e que contava
com 226 praas e respectivos oficiais. (GUIMARES, 1999). Em 1855,
foi fundado, margem do rio Brilhante, outro pequeno forte, o de So
Jos de Monte Alegre. (ALMEIDA, 1951). Em 1860, foi construda uma
nova colnia militar, que tomou o nome de Miranda, localizada junto
cabeceira do rio homnimo, margem do seu afluente do lado direito, o
crrego Atoleiro. (GUIMARES, 1999). Por ltimo, foi criada a Colnia
Militar de Dourados, em 1861, margem direita do primeiro e maior
dos trs braos que formam o rio Dourados. (ALMEIDA, 1951). Todos
[os fortes] visavam, defender e proteger os moradores estabelecidos nessa
parte do territrio do Imprio, at as fronteiras do Iguatemi e do Apa,
contra as incurses dos selvagens, e a chamar stes por meio de catequese
civilizao. (CORRA FILHO, 1969, p. 536).
Os fortes no foram construdos com o objetivo de proteger e defender os moradores dos ataques dos selvagens, pois j no havia naes
indgenas insubmissas que pudessem colocar em risco qualquer iniciativa
215
os anos por levas de paraguaios que chegavam para extrair a erva nativa
e prepar-la, enviando a produo para Assuno. Eles devassavam todo
esse territrio na crena de que as terras pertencessem ao solo ptrio.
Em meados so sculo XIX, o alferes Joo Crisstomo, do Exrcito Brasileiro, deixou registrado que a referida rea era um campo onde
se fazia a extrao da erva-mate para o consumo local.
Teriam os povoadores aprendido com os paraguaios tal mister
porque, vindos de outras provncias, no conheciam a planta, nem
o seu uso. Os paraguaios adentravam essa e outras regies para
extrair a erva mate, sem contudo, se fixarem. Vinham e voltavam..
(CAMPESTRINI e GUIMARES, 1995, p. 50).
Em pesquisa recente, Doratioto contesta a verso de que a munio se esgotara. Segundo ele, (...) na lista do armamento capturado pelos
paraguaios em [Coimbra] constam 83.400 cartuchos de fuzil e 120 quilogramas de plvora fina. (DORATIOTO, 2002, p. 101).
Com a queda de Coimbra, o exrcito paraguaio continuou o seu
avano. Por terra, partiu uma coluna para ocupar Albuquerque e a fazenda Piraputangas, do Baro de Vila Maria, que reunia milhares de cabeas
de gado bovino, e outra pelo rio Paraguai, rumo a Corumb. Tanto a vila
de Albuquerque como a fazenda Piraputangas j haviam sido abandonadas: j o Baro de Vila Maria, partira, com a Baronesa, a cavalo, para a
Corte, em viagem de sacrifcio, a fim de transmitir ao Imperador a notcia
da invaso. (SOUZA, sd., p. 53 e 54).
Quando os retirantes de Coimbra chegaram a Corumb encontraram a vila tomada por um incontido pnico, devido s notcias que
chegaram pelo Jauru. O coronel Carlos Augusto de Oliveira, responsvel
pela organizao da defesa, resolveu pela evacuao da localidade, em
ato inopino de infamia e covardia. (SOUZA, sd. p. 55).
A lancha Jauru, comandada pelo tenente Balduno, seguiu para
Cuiab no dia 2 de janeiro transportando o cofre da Alfndega e algumas
famlias. Horas depois, o Anhamba partiu sob o comando de Jos Israel
Alves Guimares. A notcia da invaso e a fuga das autoridades responsveis pela segurana da populao fizeram com que o pnico tomasse
conta de todos aqueles que ali viviam, dando incio a uma desenfreada
corrida em busca de lugares nos vapores disponveis. Aqueles que no
221
J o general Flamarion Barreto Lima destacou que, alm da ocupao dos territrios contestados, a invaso paraguaia procurava neutralizar as foras brasileiras existentes nesta regio, assegurando a liberdade
de ao para o desencadeamento da ofensiva do sul. (LIMA, 5 edio,
1988, p. 29).
O memorialista, Joaquim Francisco de Mattos, afirmou que:
A estratgia de Lopez condenara previamente seu empreendimento
catstrofe: lanando suas foras sobre Mato Grosso sob o
comando de Barrios e Resquim que lhe deram sensao de
facilmente conquistar um vasto territrio, ocupou apenas o
deserto. (MATTOS, 1989, p. 122).
H controvrsias quanto ao nmero de animais que foram retirados do sul de Mato Grosso para serem enviados a Assuno e para alimentar as tropas estacionadas na provncia. Das propriedades do Baro
de Vila Maria, teriam sido retiradas 20.000 cabeas, todas conduzidas
para o Paraguai. (BOSSI, 1863). Segundo Thompson, s o Baro de Vila
Maria, o homem ento mais rico da provncia, possua cerca de 80.000
cabeas de gado em suas propriedades marginais do rio Paraguai. Todo
esse gado foi assenhorado pelos paraguaios. (THOMPSON apud ALMEIDA, 1951, p. 345). Mesmo tendo sido o seu rebanho saqueado pelos
paraguaios, dez anos depois da guerra as atividades pecurias eram ali
retomadas, com o restante do gado alado que os paraguaios no conseguiram reunir. (MACIEL, 1922, p. 16). Tudo isso comprova o grande
volume de cabeas que estavam apascentadas naquela fazenda. No distrito de Miranda, das 150.000 cabeas existentes, segundo o testemunho
226
de Jos Barbosa Bronzique, 60.000 caram em mos dos exrcitos paraguaios. (TAUNAY, 1923, p. 114). Estes mantm ainda nesse distrito,
mil soldados; creio que os conservam por causa da grande quantidade de
carne seca que enviam todos os meses para Assuno. (TAUNAY, B, sd.,
154). J nas proximidades da Colnia Militar de Dourados, foram imediatamente arrebanhadas 1.200 cabeas de gado bovino e 80 guas, 1.000
em Nioaque, mais 600 em fazendas isoladas. O abate para a manuteno
dos soldados paraguaios e da populao civil brasileira de Corumb era
de 300 a 500 cabeas por ms. (Documentos 12.14 e 16, Colecion, Rio
Branco apud WILCOX, 2000, p. 25).
Muito mais ao sul entre os rios Pedra de Cal, tambm chamado
ribeiro das Cruzes, ou Pirapoc, e o Caracol, afluentes da
margem direita do Ap, e o espigo divisor das guas de pequenos
formadores dste, estendiam-se longos campos de pastos nativos,
em que se assinalavam pequenas elevaes, como lombadas. Ai
nesse territrio, Solano Lopez, por aquela poca do assalto ao
ncleo de Taquari, mandou fundar uma estncia pastoril, ponto
de recuperao, por onde passaram a escoar-se, em descanso, as
boiadas arrecadadas no solo matogrossense e destinadas pelo passo
de Bela Vista ao interior da Repblica. Os guaranis chamaram-na
Machorra, e nela edificaram estabelecimentos, que se elevariam a
oito, para abrigo de tropa e instalao de servios, grandes currais,
oficina de carrieiro e cortume. (ALMEIDA, 1951, p. 346).
O ataque ao sul de Mato Grosso consolidou a idia de que o rebanho bovino, embora tenha se multiplicado lei da natureza, com muitas
perdas e sem trato algum, havia crescido vertiginosamente. Representou estratgica retaguarda de abastecimento para as foras militares paraguaias. (CORRA, 1999, p. 48). Mesmo nas reas dos Campos de Vacaria, onde a ocupao se iniciava, o bovino foi encontrado aos milhares,
o que comprova que havia sido introduzido por colonos paraguaios que
promoviam a colheita da erva-mate, como tambm por guarnies do
Exrcito Brasileiro que se instalaram ao lado de alguns pioneiros, o que
contribuiu para elevar o rebanho da regio.
227
Embora os soldados invasores tenham capturado muito gado bovino e eqino para manter seus exrcitos e envi-los para Assuno, a
maior parte desse gado permaneceu no territrio sul-mato-grossense sem
que pudesse ser retirado, devido presena devastadora de uma doena
fatal que atingiu a cavalhada, conhecida como a peste das cadeiras ou
Trypanosomiase eqina, que da Bolvia penetrou, por volta de 1850, em
Mato Grosso, cuja tropa de eqinos foi terrvelmente dizimada. (CORRA FILHO, p. 1969, p. 531).
Transportada da Bolvia em 1857, comeou aquella enfermidade
a grassar entre os cavallos, com todos os caracteres de epidemica.
Hoje tornou-se endemica. (...) A zona, em que actua esse mal,
estende-se do sul do districto de Miranda at Cuyab, exactamente
em todos os pontos, onde se do as inundaes peridicas e o
alagamento dos campos. (TAUNAY, 1923, p. 70).
montados noutros que offerecem mais commodo no andar. (MOUTINHO, 1869, p. 34-35).
Um fator que motivou a invaso de tropas paraguaias em Mato
Grosso foi a oferta de bovinos e eqinos, disponibilizados em seus campos. Esperavam reunir milhares de cabeas para alimentar seus exrcitos
em combate e tambm a populao assuncenha. No entanto, o plano dos
invasores frustou-se quase que completamente devido falta de animais
de sela, o que os impedia de reunir os bovinos para conduzi-los a local
desejado.
De certa forma, a doena que atacou a cavalhada, embora tenha
desarticulado a nascente pecuria do Pantanal sul, acabou por tornar-se
benfica, na medida em que preservou os estoques bovinos da extrao
paraguaia. O mesmo no aconteceu com a mo-de-obra sulina. Os indgenas, sobretudo aqueles que eram objeto do intenso trabalho de catequese e que prestavam servios em torno dos ncleos urbanos, ou fugiram,
ou foram obrigados a prestar todo tipo de servios s foras invasoras.
Os ndios guans desse aldeamento [Matta Grande] foram levados
prisioneiros pelo coronel Barrios e no Paraguay empregados nos
trabalhos pblicos como escravos; [Ainda] durante a occupao
os paraguayos abriram uma excellente estrada de rodagem,
atravz de mattas virgens, entre Corumb e a villa de Santo
Corao na Bolvia, em cujo trabalho empregaram os prisioneiros,
especialmente indgenas, e no qual gastaram 152 dias de effectivo
servio. (BOSSI, 1863, p. 21-22).
As naes indgenas j haviam adotado muitos costumes da cultura europia que lhes pareciam teis, e nesses acampamentos, os bovinos
desempenhavam importante papel: alm de servirem de alimento, eram
utilizados como trao e transporte tanto para puxar carroa como para
montaria. Taunay presenciou o uso do bovino pelos indgenas quando
esteve com as tropas brasileiras que se dirigiam a Laguna. (...) os ndios da Boa Vista (...) montados em bois, marchavam uns atraz dos outros, com a lentido grave daquelles ruminantes (...). (TAUNAY, 1923,
p. 113). Quando da formao de novas lavouras, eram com eles que se
derrubavam as matas, preparavam o solo, puxando arados de madeira
ou de ferro e, por fim, transportavam a colheita; alm do mais, com o
couro eram feitas as portas dos ranchos, as camas, as cordas, o recipiente
para carregar gua e mel, o moc ou alforge para levar comida, a maca
para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prend-lo
em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surres, a roupa de entrar no
mato, as sacas para armazenar o sal. (CAPISTRANO de ABREU, 3 ed.,
233
No esforo para expulsar os paraguaios de Mato Grosso, em especial de Corumb e Miranda, duas frentes foram formadas, uma das quais
partiu do Rio de Janeiro em julho de 1865 para Uberaba, Minas Gerais,
onde se juntou a vrios batalhes oriundos de Ouro Preto, So Paulo,
Amazonas e Gois, constituindo um contingente de aproximadamente
3.000 homens. (GUIMARES, 1999). Em setembro do mesmo ano, as
tropas deixaram aquela cidade sob o comando do Coronel Manoel Pedro
Drago em direo ao noroeste at as margens do rio Paranaba, da tomaram o rumo de Coxim, descendo at Miranda, j sob o comando de
Carlos de Morais Camiso. A coluna se internou pelo territrio paraguaio,
onde ocorreu a epopia da Retirada da Laguna.
Uma segunda frente, formada para expulsar os paraguaios de Corumb, foi organizada na cidade de Cuiab com duas brigadas sob o comando do tenente coronel Antnio Maria Coelho. Tendo arquitetado um
ataque pela retaguarda e de surpresa, em 13 de junho de 1867, o povoado
caiu rapidamente em mos das tropas cuiabanas. No entanto, parte dos
habitantes da Vila vinha enfrentando uma epidemia de varola que grassava naquela regio com bastante intensidade. No dia seguinte retomada,
sem qualquer cautela, foi enviado um mensageiro para comunicar na capital o xito da expedio; como ele j havia contrado a doena, contami234
nou todos aqueles com quem havia se comunicado, morrendo assim que
chegou a Cuiab. (MOUTINHO, 1869).
Em 24 de junho, quando chegou a Corumb o prprio Presidente
da Provncia, Jos Vieira Couto de Magalhes, a doena j tinha atingido
as tropas, alastrando-se com rapidez, o que as impossibilitava de ficar na
Vila; alm disso, chegavam notcias de que os paraguaios desfechariam
novo ataque.
Diante da situao, o Presidente deu ordens para a evacuao de
Corumb. Com o retorno para Cuiab de toda a tropa, sem os cuidados
que se faziam necessrios, a doena encontrou todas as condies para se
alastrar por toda a Provncia. A epidemia foi assim trazida para a Capital,
ceifando metade da populao cuiabana. (PVOAS, 1995, V. 1). Na
memria do povo, mais do que da Retomada de Corumb, 1867 seria o
Ano das Bexigas, da mxima provao a que se viu submetida a populao cuiabana. (CORRA FILHO, 1969, p. 551).
Embora no seja possvel revelar com exatido o nmero de pessoas atingidas pela varola, pois o responsvel pelo registro tambm faleceu
vitimado pela epidemia, o ofcio do Dr. J. V. Couto de Magalhes, dirigido ao Presidente da Provncia de Mato Grosso em setembro de 1867,
afirma: luctamos aqui com uma medonha epidemia de bexigas, a qual
do dia 14 de agosto a 17 do corrente nos arrebatou numero de victimas
superior a 1.500, s nesta capital. (MAGALHES, 1867).
Dessa situao, se aproveitaram os paraguaios para retornar a Corumb, ali permanecendo at o ano seguinte, quando as tropas brasileiras
renderam Humait e dirigiram-se para Assuno. Solano Lopes ordenou
a evacuao de todos os efetivos militares estacionados em Corumb, ltimo reduto paraguaio em Mato Grosso, para fortalecer os seus exrcitos
que mantinham reinhidos combates no sul, o que ocorreu em abril de
1868, pondo fim guerra em solo mato-grossense.
Foi somente em agosto de 1868, que as autoridades de Cuiab conseguiram a confirmao de que Corumb havia sido evacuada pelas tropas invasoras, aps enviarem uma patrulha de reconhecimento ao local.
235
A partir da, teve incio um perodo de restaurao das atividades comerciais que, no passado haviam impulsionado o crescimento da regio.
As comunicaes entre a Provncia de Mato Grosso e o Rio de Janeiro,
interrompidas desde o fim de 1864, foram restabelecidas em 1869, aps a
ocupao da capital paraguaia, pelos exrcitos brasileiros.
O fechamento do rio Paraguai, por quase cinco anos, comprometeu a economia de toda a Provncia, atingiu duramente o Pantanal sul e se
constituiu num verdadeiro desastre para a populao pantaneira.
236
Captulo 5
O Sul de Mato Grosso no ps-Guerra
5.1.
A Guerra da Trplice Aliana interrompeu um promissor processo de desenvolvimento econmico na regio do Pantanal sul de Mato
Grosso. Durante quase cinco anos, desapareceu a livre navegao no rio
Paraguai, sobretudo no trecho brasileiro, j que as cidades ribeirinhas
permaneceram sob o domnio do invasor. exceo de Santana do Paranaba, na fronteira de Minas Gerais e Gois, os poucos ncleos urbanos
organizados no sudoeste de Mato Grosso foram completamente arrasados pelos exrcitos invasores. Estava Miranda em runas (...). Ao partirem haviam-na os paraguaios incendiado. Ardera parte das construes,
mas eram evidentes os signaes de decadencia, anterior ao incndio que
succedera primeira phase de desenvolvimento e prosperidade. (TAUNAY, A., sd., p. 10).
O mesmo aconteceu em Nioaque: a vila foi invadida em 1865 pelas
tropas comandadas pelo coronel Resquim, que ali estabeleceu a capital do
departamento do Alto Paraguai.
Abandonou-a [Nioaque], aps destrui-la, com a aproximao da
Expedio de Mato Grosso, que chegou Vila em 24 de janeiro de
1867. Em junho seguinte, os paraguaios, perseguindo os retirantes
Corumb jazia deserta, com as casas comerciais saqueadas, os edifcios pblicos arrombados e muitos prdios incendiados. (SOUZA, sd.).
Muitas das reparties pblicas desses ncleos tiveram incinerados
os documentos e registros, escrituras de posse, certides de nascimento,
o que, com o fim do conflito, dificultava a comprovao da posse e da
prpria existncia da pessoa, obrigando alguns proprietrios a se deslocarem capital Cuiab para tentar recuperar os documentos de legitimao
das propriedades.
Essa foi a situao vivenciada por Joaquim Jose Pereira, que enviou
um requerimento ao Presidente da Provncia de Mato Grosso em 23 de
outubro de 1871, com os seguintes dizeres:
fazendeiro estabelecido no lugar denominado Trez Barras Freguesia
de Corumb, qui havendo perdido todos os seus papis por
occasio da evaso Paraguay precisa por Certido e despacho que
238
35.000
6.000
24.000
65.000
Esses no eram dados confiveis, pois os recenseamentos, geralmente feitos por policiais ou pelos padres nas parquias, nem sempre
cobriam todas as localidades e, muitas vezes, o clculo do nmero da
populao era feito por estimativa. Assim sendo, os nmeros poderiam
se apresentar abaixo ou acima do real.
239
Escravos
720
106
Freguesia de Albuquerque
1315
500
240
1.888
1.822
142
649
429
1.078
(16,8%)
(11,2%)
(28%)
Mestios:
Mulatos
Caboclos
Total
899
1.875
2.774
Brasileiros
Brasileiras
Estrangeiros
Total
Populao acima de 60
anos:
Adultos
1.978
1.874
3.852
396
(10,2%)
1.256
(32,6%)
Menores de 21 anos
267
(7,0%)
Escolares
461
(12,0%)
(23,3%)
(48,7%)
(72%)
(51,3%)
(51,3%)
habitantes
241
Infantes
Populao livre
Populao escrava
1.472
3.710
(38,2%)
(96,3%)
142
(3,7%)
Inclusas 8 escravinhas
Sendo 1.888 homens e 1.822
mulheres
Sendo 90 homens e 52 mulheres.
1.679
1.407
275
1.525
366
1.891
(45,4%)
(10,8%)
(56,2%)
Mulatos
Caboclos
Total
1.342
128
1.470
(40,0%)
(3,8%)
(43,8%)
Brasileiros
Brasileiras
Estrangeiros
Total
1.342
1.393
664
3.361
(38,8%)
(41,4%)
(19,8%)
habitantes
Mestios:
Populao acima de 60
anos:
359
(10,7%)
1.838
(54,7%)
Menores de 21 anos
288
(8,5%)
Escolares
505
(15,0%)
Infantes
372
(11,1%)
3.086
(91,8%)
275
(8,2%)
Adultos
Populao livre
Populao escrava
242
23 Sobre o assunto ver ainda CORRA FILHO, Virgilio. A Proposito do Boi Pantaneiro.
PONGETTI e S. Rio de Janeiro, p. 37 e seg. MATTOS, Joaquim Francisco de. A Guerra do
Paraguai: Centro Grfico do Senado Federal, Braslia, 1990. p. 174. VALVERDE, Orlando.
Fundamentos geogrficos do planejamento do municpio de Corumb in Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, 1972.
243
244
Grosso, resultante do conflito entre o Brasil e o Paraguai era conseqncia tambm da destruio das aldeias indgenas de Miranda e do Bom
Conselho em Albuquerque. Essas duas unidades desempenharam importante papel na produo de gneros alimentcios para o consumo e troca,
tais como o milho, a mandioca, a cana, o feijo, alguns produtos artesanais como chapus, redes para dormir, balaios, cermicas, tecidos que
eram absorvidos pela pequena populao urbana dos vilarejos prximos.
A invaso paraguaia, a priso do padre responsvel pelas aldeias,
Frei Mariano de Bagnaia, e a fuga em massa dos indgenas contriburam
para desmantelar completamente a produo, levando a populao a conviver nesse perodo com a ameaa da fome que se seguiu aos primeiros
anos aps o fim das hostilidades.
Com o fim dos combates e com o tratado de paz, os ndios iniciaram um movimento de retorno para as suas antigas aldeias, o que, entretanto, no foi possvel, uma vez que elas foram sendo invadidas por fazendeiros e militares desmobilizados do exrcito brasileiro e que passaram
condio de criadores de gado e preferiam se apossar das terras onde j
houvesse algum trabalho e algumas benfeitorias, tais como reas desmatadas, que facilitassem o comeo das atividades naqueles distantes rinces.
O ofcio do Diretor Geral dos ndios, no ano de 1871, comprova
que as terras dos nativos vinham sendo usurpadas pelos novos colonos:
(...) indio com mais alguns da sua tribu, em numero de 17, procuroume para representar que era filho do fallecido Pedro Tavares, Capito
da alda do Ipgue, no districto de Miranda, e seu substituto; que
por occasio da invaso paraguaya no s a sua tribu, como todas
as outras, e mais habitantes do districto abandonaro os seus lares
e retiraro-se para os montes e bosques,onde permanecero por
6 annos; que ultimamente, voltando os moradores a reoccuparem
os seos domicilios, elles Terenas encontraro a sua alda do
Ipegue occupada por Simplicio Tavares, por antonomsia Piche,
o qual lhes obsta a repovoarem e lavrarem suas antigas terras e de
seus antepassados, pelo que vinho pedir providencias para no
serem esbulhados de suas propriedades das quaes no podiam
245
25 Officio do Diretor Geral dos Indios ao Presidente da Provncia em Cuiab 1871. Manuscrito.
Lata 1871 C, DOC. av. APMT. Cuiab MT apud CORRA, 1999, p. 112-113.
26 MISSO RONDON. Relatrio dos trabalhados realizados de 1900-1906 pela Comisso de
Linhas Telegrficas do Estado de Mato Grosso, apresentado s autoridades do Ministrio da
Guerra pelo major de Engenharia Cndido Mariano da Silva Rondon como chefe da Comisso
Publicao n 69-70 do Conselho Nacional de Proteo aos ndios, Ministrio da Agricultura
Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, p. 83.
246
Os indgenas, sobretudo os terenas, transformaram-se no principal elemento de mo-de-obra nas fazendas que se organizaram no sul de
Mato Grosso, na condio de vaqueiros e em outras atividades que se desenvolveram por toda a regio, como lavoura, colheita e preparo da erva-mate, ipeca, borracha, e tambm nos transportes, como barqueiros ou
remeiros enfim, em todos aqueles postos que a nova civilizao exigia.
Mas no apenas os terenas foram utilizados; na ausncia de oferta
de mo-de-obra no sul, outros grupos tambm se constituram no principal elemento de trabalho, requerido em todas as reas do Pantanal.
Os remanescentes do povo guaicuru tornaram-se exmios vaqueiros e passaram a prestar servios em reas que se estendiam do Nabileque
a Corumb. Obviamente, esse grupo se enfraqueceu muito a partir de
1850, principalmente aps a guerra, quando sua cavalhada foi atingida
pela peste das cadeiras que dizimou quase todo seu rebanho. No entanto,
ainda nos dias de hoje so extremamente disputados pelos fazendeiros do
Pantanal, principalmente na regio do Nabileque.
Na poca das cheias, a conduo dos rebanhos para as reas mais
altas, no alagveis, um trabalho difcil que exige do vaqueiro habilidade, conhecimento e percia. Nesse perodo, os nativos so disputados
em verdadeiros leiles. No momento em que as guas esto subindo, o
rebanho bovino e eqino tem que ser retirado rapidamente, e no qualquer peo que se adapta s condies ambientais do Pantanal e que pode
realizar esse trabalho.
Os Guaikuru esto adaptados s condies da regio. Historicamente, eles incorporaram a questo da sazonalidade das enchentes anuais, pois acompanhavam o movimento das guas, levando e trazendo seus
rebanhos, aproveitando-se da renovao das pastagens para oferecer-lhes
uma melhor alimentao. (MARTINS, entrevista 22-9-2000).
O mesmo se sucedeu com os kinikinus, layanas, guats e guans,
uma vez que perderam muitas de suas terras para os invasores e se integraram ao trabalho nas fazendas de gado ou ento em outras lides por
toda a extensa faixa de fronteira.
247
27 FALLA com que o Exmo. Sr. Dr. Joo Jos Pedrosa Presidente da Provncia de Mato Grosso
abrio a 1 Sesso da 22 Legislatura da respectiva assembla no dia 1 de novembro de 1878.
APMT. Cuiab MT.
248
28 Officio do Diretor Geral dos Indios em Cuyaba Antonio Luis Santos ao Presidente da Provncia
Ill mo e Ex mo Senr General Jose de Miranda da Silva Reis. Manuscrito. Lata 1885 E, APMT.
Cuiab MT.
249
O custo de um colono, que alcanava a cifra de 1000$000 ris, estava muito alm das possibilidades dos cofres provinciais. Alm disso, como
prosperariam eles to afastados da costa? No havia garantias eficazes
para suas lavouras, sempre ameaadas pelos indgenas (esse era um problema considervel no norte de Mato Grosso), nem vias de comunicao e
transporte fceis e rpidos para o escoamento da produo a um custo que
no a inviabilizasse. A tudo isso acrescentava-se ainda a crnica falta de
capitais, alavanca para qualquer empreendimento.29 (PEDROSA, 1878).
A soluo era o aproveitamento do indgena, atraindo-o ao aldeamento para a causa da evangelizao e preparao para o trabalho. O
Vice-Presidente da Provncia, Dr. Jos Joaquim Ramos Pereira, em mensagem Assemblia, destacou:
Tenho mandado fornecer aos comandantes no s brindes para
os ndios que se vo apresentando, como roupas ferramentas
agrcolas e de carpinteiro, recomendando-lhes que mandem
ensinar aos nossos ndios o officio de carpinteiro e ferreiro, que
faam grandes plantaes no somente para habituar os indios ao
trabalho como para diminuir a despeza com a sua manuteno (...).
Creio que j tempo de iniciarmos a colonizao indgena, ja que
poucas esperanas devemos nutrir de colonizar com a immigrao
estrangeira os nossos desertos to abundantes de riquezas
naturaes.30 (RAMOS FERREIRA, 1887, sp.).
29 FALLA com que o Exmo. Sr. Dr. Joo Jos Pedrosa Presidente da Provncia de Mato Grosso
abrio a 1 Sesso da 22 Legislatura da respectiva assembla. 1 de novembro de 1878.
30 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar a
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 sesso da 26 Legislatura em Setembro
de 1887.
250
251
Carlos Pastore, citado por Jorge Lara Castro, diz que a populao
paraguaia no incio da guerra era estimada em 800 mil pessoas, tendo
ficado reduzida a pouco mais de 200 mil. Dos 68.379 homens que sobreviveram apenas 13.663 eram maiores de 24 anos. (CASTRO apud
MORAES, 2000, p. 13). Isso sem levar em conta os invlidos que, pela
natureza dos combates, certamente era um nmero significativo.
Os nmeros apresentados no deixam dvidas, so consensuais: a
nao paraguaia sofreu um duro golpe; a populao masculina sobrevivente era na sua grande maioria formada por crianas e idosos, mesmo
assim indispensveis ao esforo nacional de recuperao econmica do
pas no ps-guerra. As mulheres, grande maioria da populao, tiveram
que ocupar postos na produo e comrcio, at ento reservados aos homens, como o de empunhar o arado para tirar da terra o sustento dos seus
filhos ou exercer atividades comerciais e industriais.
O naturalista Herbert H. Smith, que esteve em Assuno na dcada de 80 do sculo XIX, deixou registrado:
252
33 Relatrio com que o Exm. Sr. Dor Joo Jose Pedrosa, Presidente da Provincia de Matto Grosso,
abrio a 2 sesso da 22 Legislatura da Respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1879.
Cuyaba. APMT. Cuiab MT.
253
O mesmo aconteceu com os uachis ou guachis, ndios que habitavam as cercanias da serra de Maracaju entre os rios que constituam as
divisas da Fazenda Taboco. (RONDON, 1949). Acostumados a descer
a serra pelo rio Negro, estendendo as suas incurses pelo Pantanal em
busca da caa, abatiam reses como se fossem veados ou porcos selvagens.
Com a expanso da fronteira pastoril, os nativos, cercados, tiveram suas terras usurpadas, e no tinham como fugir. Para sobreviver,
continuaram a promover suas caadas, sendo por essa razo chamados
de ladres de gado e dizimados como j havia ocorrido com os kadivus
no Nabileque.
255
medida que a organizao dessas expedies para prear o indgena chegava ao conhecimento de Rondon, ele procurava contactar os
fazendeiros, e em correspondncia com um deles pediu para evitar novos
ataques:
To logo tive notcia do primeiro ataque que projetavam contra eles,
escrevi uma carta ao coronel Jose Alves Ribeiro, como fazendeiro
mais inteligente da zona, pedindo-lhe que evitasse a carnificina
que projetavam contra os ndios. Respondeu-me evasivamente,
afirmando-me entretanto, que de forma alguma consentiria em
que os matassem. Dizia-me ser inteno dos fazendeiros apenas
afugenta-los. No entanto passado algum tempo confirmou-se a
notcia que eu tivera. Foram os indios atacados e mortos pelos
fazendeiros reunidos do Taboco, Proteo, Campo Formoso, Baia
e de cima da serra. (RONDON, 1948, p. 68).
Em pleno sculo XX, e no desabrochar da Repblica em solo mato-grossense, restabelecia-se a escravido, agora do indgena, sob os auspcios
do Governo provincial. Mas, pior que a escravido, era a crueldade dos colonos para com os nativos; segundo Rondon, no contentes com os assassinatos promovidos, abriam os ventres de ndias que se achavam em adiantado estado de gravidez. (RONDON, 1949, p. 61). Os novos estadistas
do Pantanal sul, com mtodos nada convencionais, foram quebrando assim, a resistncia dos indgenas e estabelecendo uma nova ordem, a deles.34
A explorao e a violncia contra o indgena foi to intensa e to
notria nesse perodo, que motivou a criao do Servio de Proteo ao
ndio, pelo Governo Federal, em 1910, sendo o seu primeiro diretor o
prprio general Cndido Rondon. Foi ele criado com o objetivo principal
de punir os crimes que se praticavam contra o nativo, como tambm fiscalizar o modo como eram tratados nas colnias e estabelecimentos particulares, evitando assim, que fossem vtimas de exploraes, violncias e
fraudes. (VIVEIROS, 1958).
34 A ausncia do poder pblico nessas reas de expanso da pecuria deu ensejo a que esses
oligarcas fossem formando milcias privadas para a defesa de seus bens, arregimentando
homens, armas e promovendo todo tipo de arbitrariedade contra a populao local. No incio
da dcada de 1930, ainda prevalecia a ordem emanada desses grandes coronis. Nelson Werneck
Sodr, ento capito do exrcito brasileiro, em diligncia policial a uma propriedade da regio
registrou: Ali mesmo [na cidade de Aquidauana] foi organizado o destacamento para ocupar e
revistar a Fazenda do Taboco. (...) As batidas revelaram armas que estavam escondidas em sacos
de mantimentos no depsito da estncia; o armamento era muito e variado, compreendendo at
fuzis-metralhadoras. (SODR, 1967, p. 153).
257
O perodo ps-guerra foi de consolidao, em que triunfou a grande propriedade rural dedicada ao criatrio bovino. Atravs de expedientes violentos e ilegais, o ndio foi sendo expropriado de suas terras e de
seus bens e incorporado ao trabalho escravo ou ento recebendo uma
insignificante remunerao, processo que se iniciou na dcada de 30 do
sculo XIX e se intensificou aps a Guerra do Paraguai.
A crnica ausncia de capitais entre os latifundirios pantaneiros
para investimentos em mo-de-obra escrava fez com que o indgena fosse
largamente empregado tanto nas lides domsticas como no trabalho da
lavoura e da pecuria.
Outro impulso utilizao da mo-de-obra do indgena veio com
a valorizao do negro no mercado de trabalho, devido aos impedimentos que a Inglaterra colocou ao trfego, e tambm com a expanso da
lavoura de caf no Brasil.
mercadores encarregados de fornecer suprimentos tropa acompanhou-na e se estabeleceu na vila, contribuindo para o incremento do comrcio
e, mais tarde, atraindo um maior nmero de comerciantes. (FONSECA,
1986, V. 1).
Em 1872, a Alfndega foi reinstalada em Corumb com o objetivo
de vistoriar e controlar as mercadorias que entravam e saam pelo porto da
Provncia, alm de cobrar direitos dos produtos que no gozavam de iseno fiscal. Devido ausncia de edificaes pblicas para o armazenamento das mercadorias em trnsito, as instalaes alfandegrias funcionavam
tambm como depsitos dos artigos com destino a outras cidades.
Ainda no ano de 1872, instalou-se na cidade de Corumb o 2 Batalho de Artilharia a P, que reunia 605 homens.
Os investimentos do Governo imperial foram orientados tambm
para a recuperao das colnias militares no sentido de reanimar a agricultura e a pecuria nesses pequenos ncleos e estimular a colonizao
civil. No relatrio do Vice-Presidente da Provncia de Mato Grosso foi
registrado:
Durante a minha administrao foram restauradas as seguintes
Colonias Militares, a saber: a de Brilhante no Distrito Militar
e Municpio de Miranda, por acto de 6 de maio de 1876 sendo
nomeado Diretor e Commandante do Destacamento composto de
dez praas o capito honorario do Exercito Joo Caetano Teixeira
Muzi, de Miranda no mesmo Distrito e municpio por ato de 28
de maro de 1877, sendo nomeado Diretor e Comandante do
Destacamento composto tambm de dez praas o capito honorario
do Exercito Eduardo Carlos Rodrigues de Vasconcellos (...). Todas
estas Colonias, bem como as da Conceio de Albuquerque e
dos Dourados, e o nucleo Colonial do Taquary (...) segundo as
ultimas noticias recebidas, vo prosperando regularmente, e de
esperar-se que brevemente chegarao ao desejado desenvolvimento
e ao fim que se teve em vista com a sua criao.35 (BARO de
AGUAPEHY, 1878, sp.).
35 Relatrio com que o Exm. Sem Baro de Aguapehy, 1 Vice Presidente, passou a administrao
da Provncia de Mato Grosso ao Exmo Senr. General Hermy Ernesto da Fonseca em 4 de
Maro de 1878. Cuyaba. APMT. Cuiab MT. Manuscrito.
260
Alm da recuperao das colnias militares praticamente destrudas durante a guerra, percebe-se pelo referido relatrio o estreito elo entre
as autoridades provinciais e os fazendeiros. Tanto Joo Caetano Teixeira
Muzi como Eduardo Carlos Rodrigues de Vasconcellos eram grandes latifundirios e, alm de concentrar grandes reas rurais, ficavam tambm
com o monoplio da fora policial.
Quanto s pendncias lindeiras, to logo terminou a Guerra da
Trplice Aliana, o imprio se apressou em firmar um tratado de paz e
outro de limites com a Repblica do Paraguai.
Pelo primeiro, fez reconhecer como dvida de guerra36 pelo pas
derrotado os gastos promovidos pelo Brasil durante o conflito e os
prejuzos sofridos pelos seus sditos, restabeleceu a liberdade de navegao
do rio Paraguai e outorgou ao Brasil o direito de conservar um Exrcito
de ocupao na Repblica vizinha para assegurar a manuteno da ordem
e a execuo de ajustes internos que melhor afeioassem ao imprio.
Pelo tratado de limites ficou estabelecido, no seu artigo 7, que:
O territrio do Imprio do Brasil devide-se com a Repblica
do Paraguai pelo alveo do rio Paran, desde onde comeam as
possesses brasileiras na foz do Iguau at o Salto Grande das Sete
Quedas, do mesmo rio Paran. Do Salto Grande das Sete Quedas
36 Segundo Francisco Doratioto, o tesouro real indicou um gasto de 614 mil contos de ris com
a guerra provindos das seguintes fontes.
Milhares de contos de ris
Emprstimo estrangeiro
49
Emprstimo interno
27
Emisso de dinheiro
102
Emisso de ttulos
171
Imposto
265
Total
614
O conflito custou, pois, ao Brasil, quase onze anos de oramento publico anual, (...) O governo
imperial reduziu, intencionalmente, a indenizao de guerra a ser cobrada do Paraguai. Uma
comisso do ministrio da Fazenda, estabelecida para esse fim, estipulou o custo monetrio
total do conflito, para o Estado brasileiro, a ser pago pelo Paraguai, em 460 718 contos de reis,
enquanto a estimativa do Tesouro, correta, indicava despesas de pouco mais de 614 mil contos
de ris. [A dvida no foi paga] e perdoada por Getulio Vargas, no incio dos anos de 1940.
(DORATIOTO, 2002, p. 462-465).
261
Com o fim da guerra, o Paraguai, destroado, deixou de representar uma ameaa em relao a Mato Grosso, tendo sido obrigado a aceitar
os limites que a diplomacia do imprio pleiteava e todo o territrio em
litgio reclamado pela repblica foi incorporado ao Brasil. Era o Tratado
de Paz imposto pelo vencedor ao vencido.
Embora o Brasil tivesse assinado um tratado de paz com a Repblica vizinha, continuava a ocupao militar daquele pas desde 1869, com
interveno constante nos assuntos da poltica interna pelos comandantes
militares brasileiros, que contavam com a anuncia do Governo imperial.
No entanto, no comeo de 1876, o governo paraguaio firmou um tratado
de paz e amizade com a Confederao Argentina, e, no havendo mais
justificativas para a manuteno das tropas, a evacuao comeou em
maio do mesmo ano.
Com a retirada das foras brasileiras de Assuno, viero acompanhando os Corpos de linha que viero para Corumb mais de tres mil
mulheres paraguayas; viero tambm centenas de estrangeiros, muitos
delles paraguayos, procurar aqui o trabalho que no encontravo em Assumpo redusida ltima misria. (PAES de BARROS apud CORRA, 1985, p. 39).
Alm das dificuldades provocadas pela perda da guerra, um longo
perodo de seca e um ataque de gafanhotos s lavouras aumentaram ainda
mais as dificuldades na Repblica vizinha. O Paraguai oferecia pouco
sobrevivncia da sua populao, que continuava sacrificada e sofrendo.
262
36
29
109
263
Com esse expressivo aumento da populao e a remoo das tropas de ocupao da cidade de Assuno para Corumb, a regio tomou
um novo impulso, elevando o nmero de casas para 870 ao todo:
Em Corumb
Casas cobertas de telha
Casas cobertas de telha em construo
Casas cobertas de zinco
Casas cobertas de zinco em construo
455
25
51
9
Em Ladrio
Casas cobertas de telha
Casas cobertas de telha em construo
Casas cobertas de zinco
Casas cobertas de zinco em construo
Totais
TOTAL GERAL
251
43
29
786
7
84
870
A livre navegao do rio Paraguai e o rpido aumento da populao contriburam para um intenso desenvolvimento do comrcio local,
atraindo um grande nmero de comerciantes, que se fixaram em Corumb e estruturaram os laos comerciais com as cidades de Buenos Aires e
Montividu de onde vinha a maioria dos produtos ali consumidos.
Por outro lado, a entrada de alguns poucos imigrantes paraguaios
do sexo masculino foi extremamente benfica para o aceleramento das
obras do Arsenal da Marinha de Ladrio, as quais ocupavam centenas de
operrios que para aquela vila haviam se dirigido.
Joo Severiano da Fonseca, em visita regio, registrou:
Mas no debalde que se aglomera assim um povo de imigrantes,
a mor parte ociosa e parasita. .../ Em breve, tanto ai como na vila,
viram-se as ruas cheias de mendigos, uns enfermos e estropiados,
outros apenas afetados da preguia, esmolando a caridade pblica;
e a misria tocou a seu auge, quando, de um lado o governo, por
foradas economias, viu-se obrigado a suspender as obras do
264
Os imigrantes trabalhavam escoltados pelos soldados do 2 Batalho de Artilharia a P. A justificativa para manter as tropas supervisionando o trabalho era a de impedir as fugas sem que fossem pagas as
despesas da viagem. Certamente para o Baro de Vila Maria os trabalhos
forados justificavam-se pelo fato de que, anos antes os soldados do Exrcito guarani haviam, durante a guerra destrudo suas propriedades.
Mesmo iniciativas como as do Baro de Vila Maria no conseguiram manter os paraguaios em solo sul-mato-grossense, tanto que no ano
de 1879, a populao de Corumb tinha sofrido uma grande reduo de
8.000 para 4.350, e a de Ladrio, de 3.000 para 2.000 almas.
A dcada de 70 do sculo XIX foi caracterizada como um perodo
de reorganizao da Provncia. O Governo imperial no s tomou medidas administrativas para estimular a economia da regio como tambm
liberou a navegao do rio Paraguai at a Vila de Corumb para embarcaes de qualquer origem, com a perspectiva de permitir o crescimento da
economia porturia da cidade de forma que seus ganhos fossem estendidos por toda a regio da fronteira.
No entanto, esse foi um perodo marcado por profundas dificuldades econmicas. As contas da Provncia apresentando dficits fiscais,
ano aps ano, a colocavam no caminho da insolvncia: no balano provisrio do exerccio de junho de 1876 a junho de 1877, o dficit alcanou
28:199$959 ris; no ano seguinte, embora houvesse melhora no desempenho das contas pblicas, foi registrado um novo dficit de 17:805$403 ris.
Os salrios dos servidores pblicos se mantinham em atraso, assim
como muitos dos credores da Fazenda Pblica no conseguiam receber
seus crditos.
38 Officio do Baro de Vila Maria dirigido ao Presidente da Provncia de Mato Grosso, Corumb
21 de Abril de 1872 Cx 1872. APMT. Cuiab
266
170:018$800
269:034$791
98:853$991
Para remediar esses crnicos saldos de contas negativas registradas, o Tesouro Nacional transferia recursos que permitiam igualar as receitas s despesas. S no ano de 1878, foram enviados 1:000.000$000 ris,
o que garantiu ao Governo colocar em dia alguns dos pagamentos em
atraso.41 (PEDROSA, 1878).
A Provncia permaneceu dependendo do Governo imperial por
muito tempo ainda, at que as receitas fiscais com o crescimento da produo interna passaram a cobrir as despesas.
Mesmo com todas as dificuldades, a invaso paraguaia em solo
mato-grossense produziu profundas modificaes econmicas, transformando completamente a face da Provncia. O trmino da guerra deu
grande impulso fixao de novos fazendeiros na rea central e meridional do Pantanal.
39 FALLA com que o Exm Snr Dr Joo Jose Pedrosa Presidente da Provincia de Mato Grosso
abrio a 1 sesso da 22 Legislatura da respectiva Assembla no dia 1 de novembro de 1878.
40 FALLA com que o Exm Snr Dr Joo Jose Pedrosa Presidente da Provincia de Mato Grosso
abrio a 1 sesso da 22 Legislatura da respectiva Assembla no dia 1 de novembro de 1878.
41 FALLA com que o Exm Snr Dr Joo Jose Pedrosa Presidente da Provincia de Mato Grosso
abrio a 1 sesso da 22 Legislatura da respectiva Assembla no dia 1 de novembro de 1878.
267
Utilizando recursos tcnicos mais sofisticados, os grandes capitalistas estavam em condies de vender as suas mercadorias mais em conta
do que os seus concorrentes. Assim, aproveitando-se dessa vantagem, os
detentores de uma base tecnolgica mais avanada iam arruinando os
pequenos e absorvendo as suas empresas.
Por outro lado, nessa primeira fase de desenvolvimento do sistema
capitalista, quando predominou a livre concorrncia, nos mais distintos
ramos econmicos, havia milhares de produtores dispersos que no se
conheciam, produzindo para um mercado ignorado e concorrendo entre
eles. No existia qualquer controle da produo. A lgica que preside o capital o lucro, assim, nessa fase, era impossvel promover o planejamento
do sistema capitalista. Era a lei da oferta e da procura que fazia o preo
da mercadoria subir ou descer. Produzindo cada vez mais com o objetivo
de aumentar suas margens de lucro, o produtor conduzia inevitavelmente
todo o sitema a grandes crises em decorrncia da superproduo.
As crises marcadas por uma oferta maior que a procura, inerente
ordem capitalista, significava que a produo superava todas as necessidades dos mercados, o que redundava na queda do preo da mercadoria,
que por sua vez implicava no desligamento da mquina, interrompendo a
produo e, conseqentemente, levando ao desemprego e a uma retrao
do mercado, devido reduo da massa salarial circundante responsvel
pela mais-valia.
Essas crises cclicas promoveram um processo seletivo entre os
prprios capitalistas. Sobreviveram a elas os mais fortes, ou seja, aqueles
que detinham mais capital e que podiam resistir queda do preo da mercadoria, enquanto os pequenos foram desaparecendo, absorvidos pelos
primeiros.
Por outro lado, os capitalistas, movidos pela lgica que preside o
sistema, o lucro, utilizavam-se dos instrumentos da concorrncia para levar falncia o seu competidor.
Todos os estratagemas de mercado eram utilizados para esse fim,
como o de baixar os preos das mercadorias, inviabilizando o negcio
do concorrente, que no podia fazer o mesmo. Para isso, o produtor ti269
A materializao dessas aes aconteciam atravs do estabelecimento de acordos sobre as condies de venda, prazos de pagamentos,
diviso de mercados, fixao de preos e quotas de produo.
Pari passu ao processo de concentrao que ocorreu com a indstria, fenmeno semelhante aconteceu com os bancos. Os grandes conglomerados bancrios foram gradativamente absorvendo os menores, aumentando o volume de seus capitais e de seus negcios. Os bancos foram
adquirindo particular importncia: de intermedirios nos pagamentos
tornaram-se receptadores de todo o dinheiro livre em circulao de determinado pas. Esses capitais eram colocados disposio do investidor
271
que deles necessitava para reaparelhar sua empresa, torn-la mais competitiva ou mesmo para financiar uma nova.
(...) os bancos, devido a sua posio estratgica na emisso e venda
de novas aes, desempenham um papel peculiarmente importante
na formao de sociedades annimas, e o mesmo se aplica fuso
de empresas j existentes. Os bancos conservam para si uma parte
principal do lucro do organizador, nomeiam seus representantes
para participar da direo de empresas e exercerem grande
influncia sobre as polticas adotadas. (SWEEZY, 1976, p. 296).
A fuso do capital bancrio com o industrial conduziu a uma acumulao que alcanou propores gigantescas e estabeleceu enormes excedentes nos pases industrializados. O que distinguia o velho capitalismo da livre concorrncia era a exportao de mercadorias, pois o que
caracterizava o capitalismo do fim do sculo XIX e incio do XX, no
qual comeava a ganhar corpo o monoplio, era a exportao de capital.
A possibilidade de exportao de capitais era possvel para os pases atrasados e para as colnias, por j estarem incorporadas na circulao
do capitalismo mundial, j disporem de alguma infra-estrutura e terem
asseguradas as condies elementares para o desenvolvimento da indstria. Nessa fase de desenvolvimento que atingiu a sociedade capitalista, o
capital adquiriu uma fluidez muito grande, tornando mais fcil sua movimentao a nvel internacional.
H nesse processo uma complementariedade: as economias dos
pases perifricos foram submetidas s polticas econmicas do centro
e desempenharam um papel importante. Os governos dos novos pases
independentes, frente necessidade de promover o desenvolvimento interno de suas economias mas no dispondo de recursos para faz-lo, recorriam aos investimentos externos, importando capital. Do outro lado,
os investidores estrangeiros viam essa oportunidade com bons olhos, j
que os investimentos ali realizados eram mais bem remunerados.
Foi justamente para essas regies, que no dispunham de capitais
prprios para custear o seu desenvolvimento, que as potncias imperalistas se lanaram numa corrida desenfreada por lucros. Os pases industrializados como a Frana, Alemanha, Itlia, Inglaterra, Blgica, Estados
Unidos, atravs de seus trustes e cartis, partiram em busca da conquista
do mundo procurando colocar nas colnias seus produtos, exportar capitais e controlar as fontes de matrias-primas. Nesse contexto, a periferia
participava do mercado mundial ofertando matria-prima e produtos alimentcios e recebendo capitais para modernizar-se.
Foi por esse caminho que capitais ingleses, franceses, alemes, belgas, entraram no Brasil, promovendo intenso processo de modernizao
do pas e dotando-o de uma infra-estrutura que atendia aos interesses
273
do capital financeiro internacional. Esse foi um perodo de intenso fluxo comercial exportador que beneficiou a agricultura pela expanso do
mercado europeu e desenvolvimento acelerado do capitalismo industrial.
A guerra contra o Paraguai, embora o Brasil estivesse ao lado das
foras vitoriosas, deixou um saldo trgico: 33 mil mortos e custos que
alcanaram 614.000 contos de ris, equivalente a quase onze oramentos
do Imprio, se tomado o do ano de 1864, cujo valor foi de 57.000 contos
de ris. (DORATIOTO, 2002).
As conseqncias foram extremamente nocivas para o errio, o
que levou ao desequilbrio do oramento, obrigando o tesouro a constantes emisses e a contrair novos emprstimos no exterior.
De 1863, um ano antes da guerra, a 1871, um ano depois, o Pas
recorreu a bancos ingleses para cobrir dficits da dvida flutuante e amortizaes de emprstimos anteriores que representaram 18.979.700, com
taxas de juros em torno de 4,5% e 5% a.a. (NORMANO, 1939).
Leon Pomer enfatizou que, ao terminar a guerra, o Brasil, exaurido economicamente, recorreu a emprstimos em Londres, contraindo
dvidas que montavam 45504.100 entre 1871 e 1889. (POMER, 1980).
Na verdade, apesar da guerra e da crnica dependncia dos capitais extrangeiros, o Pas atravessou uma fase de intensa prosperidade,
sobretudo a partir da dcada de 1860, que em nada lembrava o Primeiro
Reinado, com sensvel melhora nas finanas principalmente a partir do
instante em que o caf assumiu a liderana das exportaes, alterando
completamente a situao da balana comercial, que se manteve deficitria por toda a primeira metade do sculo XIX. O cenrio de guerra e os
esforos do Pas para derrotar o inimigo no impediram um processo de
intensa transformao econmica e social com a diversificao do comrcio e com impulsos positivos ao desenvolvimento da indstria. Esse foi
um perodo marcado pelo pleno desenvolvimento do mercado mundial
devido aos contnuos progressos industriais e a capacidade do capital em
promover o crescimento e acumulao.
A exportao atravs dos portos de Santos e Rio de Janeiro, escoadouros da produo cafeeira do centro-sul, em 1870, fim da guerra do Pa274
Toneladas
1.215
931
1.168
3.502
13.131
25.142
A borracha, extrada da seringueira, rvore nativa da floresta amaznica, industrializada desde 1839 na Europa, passou a ser produto largamente exportado principalmente depois da dcada de 1870, com o desenvolvimento da indstria de veculos e da fabricao de pneumticos.
Pode-se abaixo acompanhar as exportaes brasileiras:
275
Ano
1870
1880
1890
1900
1910
Toneladas
2.591
8.679
16.394
27.650
38.177
276
Export.
120,7
122,4
131,1
141,0
157,0
156,2
185,3
207,7
197,0
166,9
193,4
215,8
190,0
208,4
178,8
195,5
187,4
206,4
221,9
225,8
209,8
197,0
217,0
Import.
110,5
99,1
125,6
131,7
137,7
145,0
140,6
168,5
168,2
144,7
162,2
161,4
160,0
167,5
171,6
153,8
160,9
162,3
172,7
181,0
182,2
190,2
202,5
Balano
+ 10,2
+ 23,3
+ 5,5
+ 9,3
+ 19,3
+ 11,2
+ 44,7
+ 39,2
+ 28,8
+ 22,2
+ 31,2
+ 54,4
+ 29,2
+ 40,9
+ 7,2
+ 41,7
+ 26,5
+ 44,1
+ 49,2
+ 44,8
+ 27,6
+ 6,8
+ 14,5
1884/85
1885/86
1886/87
1888
1889
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900
226,2
191,3
365,5
212,5
216,6
417,7
432,3
606,0
601,0
696,3
694,0
669,7
636,2
575,7
946,9
178,4
201,5
310,8
260,9
316,2
322,6
382,0
328,5
341,5
470,0
533,9
557,4
563,0
374,4
334,1
+ 47,8
10,2
+ 54,7
48,4
99,6
+ 95,1
+ 50,3
+ 277,5
+ 259,5
+ 226,3
+ 160,1
+ 112,3
+ 73,2
+ 201,3
+512,8
Valor
nominal
Taxa
Juros
Banqueiro
1883 4.599.600
4,5%
1886 6.431.000
5%
1888 6.297.300
4,5%
1889 19.837.000
4%
1895 7.442.000
5%
1898 8.613.717
1901
1902 16.619.320
1905
5%
4%
278
id.
1903
8.500,00
1905
1906 1.100.000
5%
5%
1910 1.000.000
4%
1908 4.000.000
5%
1910 10.000.000
4%
1911 4.500.000
4%
1911 2.400.000
4%
1913 11.000.000
5%
1908
100.000.000
1909
5%
1909 40.000.000
5%
1910 100.000.000
4%
1911 60.000.000
4%
id.
id.
id.
id.
id.
id.
id.
id.
Embora o capital financeiro europeu tenha tido papel preponderante no surto ferrovirio brasileiro, o conjunto das estradas paulistas foi
construdo com capitais oriundos do complexo cafeeiro e da disponibilidade de grandes capitais derivados do trfico negreiro, suspenso a partir
de 1852.
279
42 O fim da guerra com o Paraguai coincide com a Guerra Franco-Prussiana na Europa, cuja
grande novidade fora a utilizao com extremo sucesso da rede ferroviria pelo exrcito de
Bismark, mobilizando e concentrando milhes de homens na fronteira, como nunca antes
ocorrera. (MEIRA MATTOS, 2003, p. A3). Certamente, esses acontecimentos influenciaram
o governo brasileiro e o estimulou a construir mais tarde a Rede Ferroviria Noroeste do Brasil.
280
Esse vento modernizador que tanto beneficiou o Imprio brasileiro no deixou de bafejar no Pantanal mato-grossense: enquanto aguardavam ansiosamente pelo trem, as autoridades procuraram desenvolver
a navegao.
A reabertura do rio Paraguai permitiu o contato direto da Provncia com as Repblicas sul-americanas platinas, como tambm o intercmbio com o Rio de Janeiro e o acesso ao Atlntico.
J em 1870, realizou-se em Montevidu uma licitao para a explorao de uma linha regular de navegao fluvial entre aquela capital
e Cuiab. A concorrncia foi vencida pela empresa Conceio e Companhia que, para esse fim, constituiu uma subsidiria, a Empresa Brasileira
de Paquetes a Vapor, tendo incio os servios de explorao da linha em
1871. (PVOAS, 1995, V. 1).
No ano de 1873, a Conceio e Companhia organizou uma nova
empresa, a Companhia Nacional de Navegao a Vapor, que incorporou
a Empresa Brasileira de Paquetes a Vapor, tendo com isso prolongado
suas linhas de navegao: uma primeira fazia o percurso de Montevidu
ao Rio de Janeiro; uma segunda, de Cceres a Assuno, passando por
Corumb.
Em 1884, o Lloyde Brasileiro mantinha linhas regulares tando de
cargas como de passageiros, ligando Corumb aos portos de Assuno,
Montevidu e Buenos Aires.
Essas companhias de cargas e passageiros colocavam a Provncia
em contato com o mundo. A intensidade e a regularidade dessa navegao
possibilitaram um surto de desenvolvimento para Mato Grosso. Embora
a Provncia tivesse uma populao extremamente rarefeita e por isso no
fosse uma grande consumidora de produtos platinos e europeus, a expanso do mercado se deu na perspectiva daquilo que a regio podia oferecer
de matrias-primas e alimentos.
A abertura de linhas regulares de navegao permitiu grande afluxo de comerciantes estrangeiros para a regio, negociantes de gado, couro e outras expedies cientficas. Mercadorias dos mais distantes pases
chegavam ao Porto de Corumb, no corao do Pantanal sul, e dele saam
282
As viagens em embarcaes de menor calado que partiam de Corumb para as demais cidades ribeirinhas eram ainda muito piores, sobretudo aquelas realizadas em igarits ou lanchas que faziam os mesmos
percursos dos pequenos vapores, conduzindo cargas e passageiros.
284
Atravs da navegao, o Pantanal sul-mato-grossense foi incorporado ao mercado mundial. Em 1913, foi contrado emprstimo de
11.000.000 pelo Governo Federal para a modernizao de alguns portos, dentre eles o de Corumb, visando atender ao aumento dos negcios
locais. Foi criada a infra-estrutura adequada ao movimento realizado, beneficiando as construes e as condies de armazenagem.
Embora houvesse um surto de desenvolvimento do transporte, tanto naval como ferrovirio, por todo o Imprio, no interior da Provncia, as
dificuldades de locomoo e de escoamento dos produtos permaneceram
como um trao caracterstico dos problemas locais. As distncias entre as
sedes das fazendas e dos portos eram percorridos atravs das carretas44
puxadas a bois. Disso, reclamava o Presidente da Provncia em 1878:
A indstria de transporte ou de carreto ainda esta atrazadissima.
.../ Por terra as cargas so transportadas, em geral, sobre o dorso
de animaes bovinos, tambm aqui empregados como cavalgaduras
pelos fazendeiros; e por isso pode-se com propriedade dizer que
43 Relatrio com que o Exmo. Sr. Francisco Jos Cardoso Junior Presidente, da Provncia de Mato
Grosso, abriu a Assemblea Provincial. Cuiab em 1872. APMT. Cuiab. Manuscrito.
44 A carreta de bois utilizada no Pantanal por produtores ali estabelecidos tem caractersticas muito
peculiares. Um autor assim a descreveu A carreta pantaneira como chamada, diferencia-se do
carro mineiro por ser mais alta (previne as vazantes fundas), muito mais leve (apenas 2 juntas
de bois a puxam quando descarregadas) possui a janta (tala de ferro que envolve a roda) mais
larga (para que no penetre muito fundo na areia), no canta ( o canto produzido por um
dispositivo que emite som mais ou menos agudo, de acordo com a maior ou menor trao) a
exemplo do carro mineiro. (BARROS NETTO, 1979, p. 101).
285
O interesse do capital financeiro internacional pelo criatrio bovino residia no s no aproveitamento da carne como tambm no de couro.
Como durante esse perodo ocorriam intensas disputas entre as potn-
45 FALLA com que o Exmo. Snr. Dr. Joo Jos Pedrosa Presidente da Provncia de Mato Grosso
abrio a 1 Sesso da 22 Legislatura da respectiva assembla no dia 1 de novembro de 1878.
APMT. Cuyaba. Manuscrito.
46 No item seguinte sero oferecidas maiores explicaes.
286
288
reas do Pantanal Mato-grossense, palco da guerra, o gado bovino cresceu numericamente. Quando terminaram as hostilidades, ao retornar s
suas terras, os fazendeiros foram obrigados a recorrer ao mesmo estratagema que os seus antepassados utilizaram para juntar o gado bovino,
a bagualeao; no entanto, com maiores dificuldades devido falta de
cavalos. Aos poucos, os animais iam sendo juntados e as propriedades
rurais, reorganizadas. Os bois mansos, geralmente animais de carga, tornaram-se, por fora das circunstncias, animais de montaria; era com eles
que se fazia o manejo.
O desenvolvimento da atividade comercial em Corumb atravs
das casas de importao e exportao, geralmente entrepostos de Buenos
Aires e Montevidu, despertou o interesse de investidores estrangeiros
em expandir a indstria da carne em Mato Grosso.
Em 1885, estimava-se que havia em torno de 800 mil cabeas de
gado bovino em toda a Provncia48. (RAMOS FERREIRA, 1887). A falta
de cavalgaduras impedia um levantamento minucioso dos estoques; os
nmeros poderiam ser bem maiores.
A presena de enormes e baratos excedentes bovinos subutilizados
e a excelente posio de Mato Grosso para atender o mercado consumidor do Rio de Janeiro e do nordeste brasileiro estimularam a instalao
das charqueadas no fim do sculo XIX e no comeo do XX. A existncia
do mercado consumidor de charque e a livre navegao internacional dos
rios da Bacia Platina facilitaram o aproveitamento do gado bovino, pela
possibilidade de transportes mais rpidos e baratos e pelo interesse dos
investidores platinos. (MAMIGONIAN, 1986).
Esse perodo coincidiu com a crise da indstria do charque na Argentina e no Uruguai, devido ao rpido desenvolvimento nesses pases,
com vistas exportao de l, e criao de ovinos, que passaram a ocu-
48 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 Sesso da 26 Legislatura em Setembro
de 1887. Cuyaba. Manuscrito.
290
Carne secca
Couros de gado vaccum
Chifres
Crina
Sollas
Graxa
kgs
n
n
kgs
n
kgs
34.588
21.802
14.460
220
1.469
970
8:301$120
87.208$000
299$200
176$000
7296$000
194$000
Em 1880, Del Sar vendeu a charqueada para o empresrio uruguaio Jaime Cibils Buchareo, proprietrio da empresa Jaime Cibils &
Hijo, cuja sede, localizada em Buenos Aires, fornecia mercadorias para
o comrcio de Corumb, especialmente o sal. De uma prspera famlia
de comerciantes, ele chegou a Mato Grosso com capital suficiente no s
para comprar o saladero mas tambm a antiga fazenda Jacobina, que foi
a leilo aps a morte de seu legendrio proprietrio Joo Carlos Pereira
Leite. (WILCOX, 1992, p. 139-140).
A fazenda Jacobina tinha uma rea de 240 lguas quadradas e
600.00049 cabeas de gado, na maior parte alado, por falta de cavalos.
Os limites dessa fazenda comeam na foz do Jaur, confinam com a
Fumaa, entram pelo territrio boliviano e abrangem todas as salinas de
Casalvasco. (CORRA FILHO, 1926, p. 38-39).
Essa empresa, sob o comando de Jaime Cibils, passou a produzir
tambm extrato e caldo de carne, que eram exportados para o mercado
europeu. A utilizao de mtodos revolucionrios no processamento da
matria-prima nesse ramo de produo, como por exemplo a maquinaria
a vapor, chamou a ateno do Presidente da Provncia, que a esse estabelecimento assim se referiu: Consta-me que uma fabrica em propores bastante desenvolvidas, empregando machinas movidas a vapr e
numeroso pessoal, que accusam mui avultado capital nella convertido.50
(BARO de BATOVY, 1884, sp.).
49 Os nmeros do rebanho bovino apresentados para a fazenda Jacobina parecem superestimados.
50 Relatrio com que o Exm. Sr. General Presidente da Provincia de Matto Grosso Barao de
Batovy abrio a 1 sesso da 25 legislatura da respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1880.
Cuyaba 1884. Manuscrito.
292
Segundo as estimativas de um autor, em Descalvado, sob a administrao de Jaime Cibils, abatiam-se 20 mil cabeas de gado bovino
anualmente, sendo a empresa responsvel por mais da metade das exportaes de Mato Grosso nas ltimas duas dcadas do sculo XIX. (STOLS
apud ALVES, 1984, p. 20). Isso demonstrou que o emprego da maquinaria moderna contribuiu para o aumento da produtividade e tambm da
arrecadao de impostos.
No ano de 1885, os cofres provinciais receberam 51341$138 de tributos relativos exportao, como demonstra o quadro abaixo, dos quais
mais de 60% correspondem exportao do gado bovino e de artigos
relativos sua industrializao.
51 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice-Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar a
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 Sesso da 26 Legislatura. Setembro de
1887. Cuyaba. Manuscrito.
293
Localidade
Assucar, cafe, carne secca, crina de animaes,
umo e graxa
Cal de Pedra
Caldo de Carne
Couros
Chifres
Herva Matte
Ipecacuanha
Gado Vaccum
Totais
Vallor official
Imposto
2.084$380
208$438
4.072$000
43.200$000
141.290$000
2.460$000
337.083$000
43.739$500
66.036$000
637.750$880
203$600
4.320$000
14.129$000
246$000
16.854$150
4.373$950
11.006$000
51.341$138
Ano
1886
1886
Valor official
481.476$000
55.140$350
536.616$350
Imposto
40.123$000
5.514$035
45.637$035
Qualidade
Couros
Gado Vaccum
Somma
Ano
1886
1886
Valor official
117.485$000
158.265$000
275.750$000
Imposto
11.748$500
21.102$000
32.850$000
Fonte: (Relatrio que o Exmo. Sr. Vice Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira
devia apresentar Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 sesso da 26
Legislatura em Setembro de 1887. Cuyaba. Manuscrito).
294
295
suas atividades durante a Primeira Guerra Mundial, sobretudo com a produo de charque.
Enquanto isso, nas reas do Pantanal sul continuava intenso processo de ocupao das terras e formao de novas propriedades rurais.
Aproveitavam-se os chegantes dos grandes estoques de gado bovino, herana dos tempos coloniais, submetidos natureza e procriando sob as
leis de seleo natural. Esse gado europeu, aps sculos de reproduo
natural, degenerou-se, adquiriu caractersticas prprias e ganhou o nome
de tucura ou pantaneiro, caracterizado como sendo:
(...) de estatura bastante pequena, pelle grossa, pello curto e luzidio,
cr de castanha mais ou menos escura ou vermelha, com tendencia
a cr mais clara pelo dorso, boca preta com listas brancas, cauda
comprida e delgada, e o quarto trazeiro francamente desenvolvido.
Tem os chifres curtos e finos, voltados para a frente, mas com as
pontas para cima e o craneo notavelmente curto, consideravelmente
largo nas visinhanas dos olhos, entre os quaes se nota uma forte
depresso frontal, e com a face posterior em sua maior extenso
convexa, saltada para traz (...). (LISBOA, 1909, p. 137).
Um conhecido fazendeiro serrano a respeito das caractersticas do rebanho bovino pantaneiro afirma: o gado pantaneiro era de
inferior qualidade, no tinha bom corpo, possua aspecto feio, muito
peludo na testa e no rabo com tanto cabelo que se assemelhava a uma
vassoura.(LIMA, 1978, p.161/2).
Outro autor acrescenta que o desenvolvimento desse rebanho
bovino nas condies auspiciosas do Pantanal permitiu a formao da
variedade pantaneira, de couro grosso, resistente s intempries e aos
mosquitos e affeita luta contra as guas, em que vive grande parte do
ano. (CORRA FILHO, 1926, p. 27).
To logo terminou o conflito com o Paraguai, o Governo provincial, preocupado em melhorar a qualidade do rebanho e o seu padro
racial, instituiu um prmio de $ 5.000 ris por touro de raa fina introduzido nas propriedades, como forma de estmulo aos criadores.
298
Embora o rebanho tenha merecido a ateno das autoridades estaduais, continuou, por todo o sculo XIX e comeo do XX, a crescer
quantitativamente. As grandes distncias dos mercados consumidores, a
peste das cadeiras, que comprometia os eqinos, e o baixo preo dos bovinos no estimulavam investimentos para a melhoria da sua qualidade
racial, muito menos para a incorporao de novas tecnologias. Foi esse o
rebanho que deu suporte para o processo de reocupao do Pantanal sul,
pois em todas as regies teve incio um grande movimento de recuperao das antigas fazendas e formao de outras novas.
Nessa segunda onda de ocupao, resgatou-se uma antiga prtica
dos criadores de gado (em geral, aps a primeira etapa de implantao da
fazenda, os pioneiros convocavam parentes e amigos para fixarem-se na
regio). Foi o que de fato aconteceu no Pantanal (...). (CORRA, 1999,
p. 160).
Na regio de Miranda, to logo terminou a guerra do Paraguai, Jos
Alves Ribeiro assumiu a fazenda Taboco, com rea de 334.024 hectares,
fora o excesso que se verificou mais tarde de 32.000, herana de seu pai
Juca Costa, e algo em torno de 5.000 reses. Alm das lides na propriedade
rural, dedicou-se ao comrcio. Comprava vacas gordas e, conduzindo-as
53 Relatrio que o Exmo. Sr. Vice-Presidente Dr. Jose Joaquim Ramos Ferreira devia apresentar a
Assembla Legislativa Provincial de Matto Grosso na 2 Sesso da 26 Legislatura. Setembro de
1887. Cuyaba. Manuscrito.
299
300
As embarcaes eram conduzidas a remo, e nos lugares, cuja profundidade era menor, utilizava-se a zinga. Geralmente, os condutores dessas embarcaes eram hbeis e conheciam todas as particularidades que
o rio apresentava, como o local onde redemoinhos ou outros problemas
pudessem colocar em risco a viagem. Por mais de trinta dias, navegavam
pelo extenso e perigoso Paraguai at atracarem no porto de Corumb, de
onde se dirigiam para as reas que passariam a ocupar.
Barros destaca que, ao tomar posse das terras do Firme, desde
o comeo o Nheco procurou cercar-se de parentes. Essa preocupao
parece indicar uma poltica de ocupao voltada segurana. (BARROS, 1998, p. 95). Essa interpretao poderia ser estendida maioria dos
colonos que se estabeleceram no Pantanal, uma vez que at o comeo do
sculo XX persistiu uma situao de violncia e insegurana em todos os
ncleos fronteirios. O prprio Presidente reconhecia a situao de abandono em que se vivia em determinadas reas da Provncia.
No ha muita segurana individual no interior da provincia,
devido isto no s a impunidade com que conto os criminosos
302
A fome por terra, preocupao que dominou as atenes da primeira frente de ocupao da plancie pantaneira na dcada de 1830, tambm estava presente entre os novos colonizadores. A exemplo dos primeiros, os que vieram na segunda onda se apossaram de grandes extenses,
reproduzindo processos que faziam lembrar as primeiras divises de terras no Brasil Colnia. O limite de suas ambies no eram modestos.
(BARROS, 1998).
Essa disposio dos adventcios era apontada pelas autoridades provinciais como um entrave ao desenvolvimento de Mato Grosso porque,
alm de desestimular a imigrao, eles no recolhiam impostos sobre a
terra Fazenda Pblica e no desenvolviam qualquer atividade produtiva.
Nesta provincia, graas a vastido do seu territorio, pouco cabedal
tem-se feito das grandes apropriaes territoriaes por parte de
alguns fazendeiros, que miro os lucros individuaes que ho de
colher, em futuro proximo, quando escassearem as terras devolutas
bem situadas. Entretando faz mal. Estas grandes apropriaes
tendem a dificultar o progresso da provincia, porque afugenta a
immigrao, pela falta de terras em condies procuradas. .../ E
essas propriedades quasi todas conservadas incultas, mantidas sob o
domnio desses fazendeiros que apenas querem satisfazer a vaidade
de grandes proprietrios, seno especular com o valr futuro dellas,
de modo algum concorrem para as despezas publicas retardando
ao contrario, o desenvolvimento da riqueza social, donde emanam
todas as fontes de receita.56 (PEDROSA, 1879, sp.).
55 Relatrio com que o Exm. Sr. Dor Joo Jose Pedrosa, Presidente da Provincia de Matto Grosso,
abrio a 2 sesso da 22 Legislatura da Respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1879.
Cuyaba. APMT. Manuscrito.
56 Relatrio com que o Exm. Sr. Dor Joo Jose Pedrosa, Presidente da Provincia de Matto Grosso,
abrio a 2 sesso da 22 Legislatura da Respectiva Assemblea no dia 1 de outubro de 1879.
Cuyaba. APMT. Manuscrito.
303
57 Relatrio com que o Exmo. Sr. Francisco Jos Cardoso Junior, Presidente da Provncia de Mato
Grosso, abrio a Assemblea Provincial. 1872. Cuyaba. APMT. Manuscrito.
304
Nesse recomeo, havia duas alternativas para os fazendeiros comercializarem os seus rebanhos: a primeira e a mais difcil era a venda de
305
59 Virglio Correa Filho afirmou que, na ausncia de compradores para o seu gado os fazendeiros
organizavam boiadas, de uma a quatro mil cabeas e em lotes espaados rumavam para Uberaba
para comercializarem seus rebanhos. O preo nem sempre compensava os imensos sacrifcios;
o comrcio servia apenas para escoar o acmulo de reses que j haviam atingido o mximo de
seu desenvolvimento, e se permanecessem nas fazendas estariam correndo o risco de morrer,
vtima de algum acidente, ou contrair alguma doena de conseqncias nefastas. (CORREA
FILHO, 1946, p. 117).
Parece que era comum, entre os fazendeiros detentores de grandes rebanhos, a prtica de
conduzir bois s invernadas mineiras enquanto aqueles de menor posse, no podendo arcar
com os custos dessas viagens, abatiam os animais para produzir a carne seca e comercializar no
mercado local ou ento vender, a preos mdicos, as suas boiadas aos grandes latifundirios.
60 Bateles, embarcaes robustas, geralmente feitas de madeira ou ferro, de fundo chato, usadas
para transbordo de carga, impulsionadas a remo, ou zinga.
306
Com uma fauna variada e abundante, somente pelo porto de Corumb mais de 100.000 ples de animais silvestres [eram exportados],
destinadas aos cortumes norte americanos. Capivaras, caitets, queixadas
na grande maioria. (BARROS, 1934, p. 12), pelos fazendeiros do Pantanal, o que lhes permitia um substancial incremento de renda, uma vez que
as peles dos animais eram muito valorizadas no mercado europeu.
O comrcio ainda apresentava a opo do contrabando, externo
e interno. No primeiro caso, com a venda do gado bovino em p, geralmente para o pas vizinho, o Paraguai. Com os transtornos causados pela
peste de cadeira, os tropeiros paraguaios cruzavam a fronteira e auxiliavam os vaqueiros brasileiros a campear o gado, que depois era conduzido
para o outro lado sem recolher os impostos devidos. Essa foi uma prtica ampliada depois do fim da guerra. Dos dois milhes de reses que se
contavam nos campos paraguaios no incio das hostilidades, restaram,
em 1870, apenas 15.000. (PIMENTA BUENO apud CORRA FILHO,
1926, p. 37-38).
Obviamente, esse mercado carente do gado bovino oferecia preos
atraentes aos rebanhos que se desenvolviam no sul de Mato Grosso, e,
em contrapartida, os produtores sulinos preferiam comprar o sal e outros
artigos em Concepcion, onde pagavam um valor inferior aos praticados
no porto de Corumb.
Em maro de 1880, atravs de ofcio, o Diretor Capito do Estado Maior de 2 Classe Rogaciano Monteiro de Lima chamava a ateno
das autoridades provinciais para a necessidade de estabelecer um destacamento policial no lugar denominado Punta Por afim no s de
evitar-se a fuga de desertores e criminosos para a repblica do Paraguai,
como tambm, para oppor-se uma barreira ao contrabando.61 (BARO
de MARACAJU, 1880, sp.).
61 Relatrio com que o General Baro de Maracaju, Presidente da Provincia de Mato Grosso,
abrio a 1 Sesso da 2 legislatura da respectiva Assmbla no dia 1 de outubro de 1880. Cuyaba.
Manuscrito.
307
Em 1901, um observador do Paraguai informou ao Governo Brasileiro que em torno de 60.000 cabeas de gado bovino tinham sido contrabandeadas para o Paraguai entre janeiro e agosto. Dois anos depois,
acreditava-se que 80.000 haviam cruzado a fronteira em direo s pastagens paraguaias. Nesse mesmo ano, estudos do Governo provincial estimaram que o valor do contrabando era maior que o dobro do comrcio
legal. (WILCOX, 1992).
Concorria para o desenvolvimento dessa atividade no somente o
atrativo valor que a mercadoria atingia no mercado da Repblica vizinha,
como tambm o fato de haver poucos postos fiscais e funcionrios para
acompanhar a movimentao dos rebanhos, fato que tornava difcil a ao
do fisco provincial no sentido de fiscalizar e cobrar impostos. Sendo a
fronteira muito extensa, os contrabandistas abriam trilhas clandestinas
com facilidade, o que permitia escoar o gado para as pastagens paraguaias.
Mas o verdadeiro incentivo ao contrabando interno e externo vinha dos elevados impostos estabelecidos pelo governo: de uma vaca ou
de uma novilha eram cobrados 10$000 ris: de cada boi, 2$000 ris. Para
isentarem-se destes valores, os tropeiros utilizavam rotas alternativas a
fim de evitar os agentes fazendrios.
Muito gado pode subtrair-se ao imposto sahindo para outras
provincias do imperio, e o que passa para a vizinha republica do
Paraguai atravessando a extrema linha do rio Apa procurando
naturalmente os passos numerosos de sahida franca que tem o
rio, para eximir-se do elevado imposto de 10$000 que se cobra
por vacca e novilha conjuntamente com o de 2$000 de cada boi.62
(MACIEL, 1886, sp.)
308
Importao
Exportao
1872
1.028:000$000
154:900$000
1873
1.524:341$000
153:039$000
1874
962:170$000
124:803$000
1875
1.177:785$000
144:225$000
1876
2.744:800$000
120:200$000
1893
1.440:064$000
648:568$000
1894
1.648:099$000
933:348$000
1895
1.742:630$000
413:507$000
1896
2.316:609$000
481:108$000
1897
1.922:103$000
1.225:006$000
1902
2.439:418$000
7.555:960$000
1903
2.284:033$000
7.031:074$000
1904
2.752:973$000
7.103:396$000
1905
2.789:755$000
6.701:656$000
Ano
Importao
Exportao
1906
2.552:467$000
5.969:900$000
1907
3.704:186$000
7.682:883$000
1908
4.017:779$000
8.129:279$000
1909
10.123:662$000
19.362:025$000
1910
7.766:100$000
24.984:994$000
1911
12.907:465$000
19.313:661$000
Mato Grosso recebia uma suplementao do governo central para equilibrar suas finanas. Isso veio demonstrar a preocupao das autoridades imperiais, que estavam, de certa forma, empenhadas em acelerar o
processo de desenvolvimento da regio e incorpor-la ao resto do Pas,
temerosas com novas possibilidades de agresses externas.
Embora o contrabando e o abate para a produo da carne seca
fossem expressivos, o rebanho bovino continuou subutilizado, uma vez
que essas atividades eram desenvolvidas por fazendeiros que tinham posses sobre imensos latifndios e que no eram forados a vender toda a sua
produo anual, cujos custos eram insignificantes em termos de trabalho
e terras. Assim, medida que o mercado no absorvia, o rebanho crescia
geometricamente, fenmeno que j havia acontecido em Cuiab no sculo XVIII. (MAMIGONIAN, 1986).
Na ltima dcada do sculo XIX, a pecuria mato-grossense, sobretudo a pantaneira, estava consolidada.
A descoberta de um medicamento revolucionrio, o Protosan, comeou a pr fim ao mal da peste das cadeiras, embora muito vagarosamente, devido ao despreparo do homem do campo mato-grossense. Sua
aplicao, por injeo endovenosa uma operao que no esta ao alcance dos nossos rudes trabalhadores das fazendas. Para quem tenha uma
idia, embora muito ligeira, do que seja o interior do Estado, evidente o
que acima ficou dito.63 (ALBUQUERQUE, 1916, p. 30).
Foi um perodo em que a pecuria iniciou um longo processo de
recuperao da hegemonia econmica perdida para a erva-mate, cuja explorao iniciou-se em 1883, transformando-a no principal produto de
exportao e tendo, em determinados momentos, representado 80% delas, estabilizando-se a partir de 1920. O quadro das receitas oradas do
Estado para os exerccios de 1893 at 1900, mostra essa reao dos produtos da pecuria estadual:
63 Mensagem dirigida pelo Exmo. Senhor General Dr. Caetano Manoel de Faria e Albuquerque,
Presidente do Estado de Matto Grosso Assembla Legislativa ao installar-se a 2 sesso
ordinria da 18 Legislatura em 15 de maio de 1916, p. 30.
310
1895
1896
1897
1898
1899
1900
25:000$000
22:900$000
30:000$000
PRODUTOS BO16:100$000
VINOS
COUROS E PEL15:000$000
LES EM GERAL
30:000$000
5:000$000
IPECACUANHA
BORRACHA
50:000$000
40:000$000
25:000$000
15:000$000
30:000$000
85:000$000
44:566$000
35:497$000
24:834$000
28:485$000
26:400$000
44:000$000
35:000$000
25:000$000
45:000$000
58:000$000
23:000$000
50:000$000
24:000$000
45:000$000
60:000$000
21:400$000
56:000$000
31:000$000
47:200$000
60:000$000
21:400$000
56:000$000
31:300$000
47:200$000
OBS.: O gado exportado pelo interior para Minas e So Paulo s aparece na estatstica de 1909 em diante.
15:000$000
30:000$000
1894
HERVA MATTE
1893
311
64 O contrabando era supostamente muito maior, embora tenha diminudo ao longo dos anos,
quando o Paraguai recomps o seu rebanho.
65 AYALA & SIMON, como CORRA FILHO, sustentam ser perfeitamente possvel obter uma
taxa de desfrute em torno de 20% no Pantanal sul-mato-grossense, no entanto, o Ministrio da
Agricultura estimou que no Brasil, apesar de detentor de um dos maiores rebanhos bovinos, a
taxa mdia de desfrute no seria muito superior a 10% do rebanho. No caso do Pantanal, ela
estaria em torno de 9 a 12% ao ano, muito abaixo daquela estimada pelos autores. Considerando
uma taxa perfeitamente plausvel de 10% ao ano, o excedente anual ficaria em torno de 90.000
reses, nmero extremamente expressivo, o que garantiria o crescimento geomtrico do rebanho.
312
Municpio
So Luiz de Cceres
Corumb
Corumb
Corumb
Porto Murtinho
Porto Murtinho
Coxim
Pocon
Cuiab
Municpio
Miranda
Aquidauana
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Campo Grande
Trs Lagoas
Trs Lagoas
Trs Lagoas
Trs Lagoas
Trs Lagoas
314
Dos saladeros de Mato Grosso, oito estavam instalados no Pantanal sul, justamente os de maior importncia, o Saladeiro de Miranda e
o Terer de Porto Murtinho (AYALA & SIMON, 1914, p. 293), ou seja,
os que reuniam maior capacidade de abate e que foram estrategicamente
estabelecidos, onde havia uma oferta segura de bovinos.
A instalao das charqueadas permitiu o aproveitamento de toda a
produo excedente, e, paralelamente ao desenvolvimento delas, intensificaram-se as vendas de bois magros para os Estados de Minas e de So
Paulo.
Relato de importante fazendeiro da Nhecolndia deixa clara a situao que viveram os produtores antes da instalao dos saladeros: Vai
melhorando o preo do gado, j se podendo vender bois a 40$000, da
a melhora, tambm nas finanas dos criadores, que em outros tempos,
quando a produo era superior ao consumo foi excessivamente precaria. (BARROS, 1987, p. 59).
Com a instalao de novos saladeros, a produo do charque cresceu substancialmente, enquanto o caldo e o extrato de carne, apresentou
grande variao.
Produto
Caldo e extrato de Carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Charque
Caldo e extrato de carne
Caldo e extrato de carne
Ano
1902
1905
1903
1906
1904
1907
1905
1908
1906
1909
1908
1910
1909
1911
1910
1911
Quantidade
198.188
133.950
326.250
279.863
208.907
392.419
63.439
452.478
47.072
718.920
49.750
758.739
39.203
1.102.841
28.931
10.529
Valor
777:662$000
80:370$000
339:448$000
167:918$000
314:982$000
235:451$000
83:205$000
271:487$000
71:041$000
431:352$000
121:828$000
455:243$000
119:403$000
661:705$000
70:409$000
36:752$000
315
Quantidade (Kg)
1.733.973
2.703.267
3.755.310
4.052.811
4.144.736
810.586
630.394
1.026.327
1.053.290
887.068
29.091 n
40.033 n
67.865 n
67.599 n
75.594 n
51.469
54.798
51.034
66.689
62.545
Produto
Charque
Charque
Charque
Charque
Charque
Couro Secco
Couro Secco
Couro Secco
Couro Secco
Couro Secco
Couro Salgado
Couro Salgado
Couro Salgado
Couro Salgado
Couro Salgado
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas
Numero de reses exportadas
Valor
1.560:575$700
2.703:267$000
3.755:310$000
4.863:373$000
4.973:683$200
1.008:984$400
881:704$450
1.197:383$540
1.470:264$860
1.257:257$350
546:453$200
765:356$400
1.425:666$333
1.621:242$870
1.814:256$000
2.573:450$000
2.739:900$000
4.082:720$000
6.668:900$000
7.505:400$000
pares, sobretudo de Minas Gerais, e comearam a incorporar novas tcnicas ao processo de produo, cresce a especializao da prpria pecuria,
com o contnuo aumento da produo. Com relao ao manejo, muito
pouco mudou, mas a grande reavaliao foi o melhoramento do padro
racial do rebanho na busca do aumento do desfrute e da produtividade.
Desde o ltimo quartel do sculo XIX, os produtores de Uberaba
passaram a importar da ndia o gado zebu, cuja caracterstica era a rusticidade. Os animais se adaptavam muito bem ao clima tropical, podiam ser
criados extensivamente, no dependiam de muitos cuidados e se revelaram extremamente precoces, fortes para o trabalho do campo e de rpida
reproduo. Onde os animais das chamadas raas finas se estinguiriam
ele prosperava. (VALVERDE, 1972, p. 116).
Uma raa bovina como a zebuna se encaixou perfeitamente s
necessidades dos produtores de Mato Grosso, j que nada podia ser melhor para uma regio em que as propriedades estavam, em sua maioria,
mergulhadas num regime primitivo de explorao das riquezas e sem
chance de rpida locomoo, era importante que os bovinos fossem rsticos, antes de tudo lucrativos. (SANTOS, 1998, p. 89).
Lentamente, o gado azebuado foi ganhando a plancie pantaneira
e a preferncia dos produtores, de modo que em 50 anos, ou seja, no comeo da dcada de 60, os primitivos rebanhos coloniais desapareceram
completamente.
Um inimigo contumaz do zebu assim se referiu sua proliferao
em Mato Grosso:
Desgraadamente, aquela belssima regio de Mato Grosso,
como alis todo o serto, foi invadida pelo Zebu, esse fantasma
oriental, que a se introduziu, destruindo a capacidade do nosso
gado nacional, muito suscetvel de melhorar-se com um rpido
cruzamento de reprodutores finos j conhecidos e experimentados.
(COTRIM apud SANTOS, 1998, p. 565).
A crtica era para os mtodos utilizados pelos vendedores-boiadeiros de Minas, que trocavam lotes de reprodutores indianos por novilhos
317
de corte. Diz o prprio Cotrim que, no raramente, pegavam espertamente, 100 novilhos de corte por um nico garrote zebu. (COTRIM
apud SANTOS, 1998, p. 565).
Ao lado da melhoria do padro racial, o arame farpado comeou
a aparecer nas propriedades do Pantanal como condio essencial para o
azebuamento do rebanho. As fazendas foram sendo cercadas, e as pastagens, divididas, propiciando a seleo dos animais. Com isso, o rebanho
foi sendo direcionado e preparado para a produo de carne.O rebanho
regional era conhecido na poca por sua inferior qualidade e, exatamente
por dispor de exgua quantidade de carne, s poderia ter aproveitamento
industrial lucrativo nos saladeiros e charqueadas (ALVES, 1984.) e por
isso foi aos poucos sendo substitudo pelo gado grado de forma arredondada, muito andejo e com visvel acmulo de carne no posterior.
Embora as tcnicas de pastoreio tenham permanecido extensivas
no Pantanal, aquelas prticas primitivas de manejo pecurio foram sendo
substitudas. O vaqueiro que fazia o rodeio, jogando o lao, foi desaparecendo.
O trabalho do gado continuou sendo feito entre dezembro e fevereiro. O gado era recolhido nas proximidades da sede da fazenda, onde se
realizava a marcao a ferro das crias novas, no quarto posterior direito,
a marcao na orelha, por meio de um corte, e a castrao dos garrotes.
Em vez de se fazer violentamente essas operaes, como antigamente,
subjugando e derrubando a rs, ela era conduzida ao brete, onde ficava
imobilizada e no sofria as torturas costumeiras. Em julho, os bezerros
acima de oito meses de idade eram apartados das respectivas mes. Passado o auge da estao seca, fazia-se a queima do pasto, prtica ainda
tradicional no pantanal sul-mato-grossense. Procuravam os fazendeiros,
ao lanar mo desse recurso, eliminar a macega, o capim-carona, fazendo
renascer tenro pasto junto com outros pastos naturais, de modo a servir
de alimentao do gado. (VALVERDE, 1972).
O perodo que se estendeu de 1870 a 1910 foi marcado pela lenta
integrao do Pantanal sul de Mato Grosso, ao mercado nacional, quando
318
319
CONCLUSO
constitua matria-prima de suma importncia, empregada desde o vesturio at a habitao, como tambm valiosa moeda de troca, j que se
tornou importante artigo de exportao com larga aceitao no mercado
europeu.
Na segunda viagem que Colombo fez Amrica, em fins do sculo
XV, trouxe com ele os primeiros exemplares de bovinos, que pouca dificuldade encontraram para sua adaptao. Sendo assim, muito rapidamente rebanhos expressivos eram encontrados por todo o continente.
medida que o processo de colonizao foi avanando, o gado
vacum foi se dispersando. Na etapa inaugural, coube aos espanhis, depois de ocupar as grandes Antilhas e, logo aps, a conquista dos imprios
asteca e inca, com a descoberta de grandes jazidas de metais preciosos,
ouro e prata, de rentabilidade muito alta, acelerar a entrada do rebanho
bovino para dar o suporte necessrio ao avano colonizador.
Do outro lado, coube coroa lusa encontrar uma alternativa de
utilizao econmica da imensa costa brasileira. Portugal tornou-se o
pioneiro no processo de organizao e montagem de uma empresa de
explorao colonial cuja base era a agricultura, com o cultivo da cana-de-acar em larga escala para o comrcio europeu. A soluo aucareira
implicou, desde o incio, a importao de um grande nmero de reses.
Desde cedo, no princpio do sculo XVI, rebanhos significativos j estavam apascentados de So Vicente at a Bahia, no Nordeste, onde surgiram os primeiros engenhos.
Se nas reas que despertaram interesse econmico para as metrpoles, o gado bovino foi introduzido muito rapidamente, o mesmo no
aconteceu naquelas onde no se produziam artigos de exportao para
o mercado mundial. Alis, essa era uma situao compreensvel. Com
pouco brilho, algumas regies subsistiram pobremente, com restritas
relaes comerciais com o mundo exterior, e, por isso, desenvolveram
caractersticas econmicas prprias. No tinham produtos que despertassem o interesse da metrpole, conseqentemente, no tinham moeda que
pudesse garantir a participao no mercado mundial.
322
Em duas ocasies, as misses do Itatim foram atacadas pelos paulistas. A resistncia local foi intil, e os jesutas derrotados transladaram
suas redues para as proximidades de Assuno, abandonando todo o
gado que haviam conseguido reunir.
Na plancie, os bovinos encontraram condies ambientais favorveis sua reproduo, mas outros fatores tambm foram importantes
para o desenvolvimento da pecuria, como as epidemias e enfermidades
que contriburam para o decrscimo da populao nativa do Itatim, vitimada por inmeras doenas transmitidas pelos europeus. A maioria dos
indgenas que sobreviveu aos ataques bandeirantes e s doenas foi novamente realdeada e conduzida para as proximidades de Assuno. Com
isso, o territrio do Itatim foi praticamente despovoado de sua populao
nativa, e os que j haviam incorporado a carne bovina sua dieta foram
transladados para muito longe, condio importante para a proliferao
do gado bovino, porque as demais naes indgenas que no foram aldeadas valorizavam outra dieta protica e abatiam caas que faziam parte
da fauna pantaneira, como o veado, a anta, a capivara. Assim, a pecuria
se expandiu atravs da reproduo natural do gado em campos imensos
providos de salinas naturais.
O gado das misses do Itatim e dos colonos espanhis ficou confinado na plancie pantaneira, protegido pelos acidentes geogrficos, a
serra de Maracaju e o rio Paraguai, que impossibilitaram o seu alongamento para o planalto. Essa regio hoje denominada Pantanal era, nos
sculos XVII e XVIII, conhecida como Vacaria, assim nominada pelos
portugueses aps estes deixarem registrado o encontro de rebanhos silvestres que vagavam na regio sem nenhum proprietrio que deles se
ocupasse economicamente. Do lado espanhol, as patrulhas organizadas
em Assuno, para acompanhar o movimento portugus, tambm davam
notcias de rebanhos bovinos vivendo silvestremente na plancie e sem
trato algum.
A descoberta dos metais em Cuiab pelos bandeirantes paulistas
no incio do sculo XVIII criou vnculos entre a rea mineradora e a pla325
ncie pantaneira. Todo o gado bovino utilizado no incio desse novo empreendimento era conduzido da plancie por tropeiros ou em pequenas
embarcaes e com eles os pioneiros estruturaram os primeiros rebanhos
na zona de minerao. Foi, portanto, com os bovinos descendentes das
redues do Itatim e de Santiago de Xerez que se iniciou a explorao da
pecuria nos arredores de Cuiab.
A tradicional historiografia mato-grossense tem afirmado que a
pecuria em Mato Grosso se iniciou em 1737, quando foram introduzidos
os primeiros exemplares vindo de Gois. No entanto, o registro de Joo
Cabral Camelo, a mais antiga narrativa das viagens monoeiras, esclarece
que, desde 1727, algumas cabeas de gado e cavalo foram sendo introduzidas, por ele mesmo, na regio de Cuiab e que em 1730 j havia em Cuiab
cinco engenhos de cana-de-acar em funcionamento, que seguramente
recorriam aos animais de trao para poder produzir. inadimissvel
acreditar que no houvesse um estoque de animais de servio por essa
ocasio na regio mineira, at porque os mineradores no iriam deslocar
seus escravos para outro ramo de atividade que no fosse a minerao.
Tambm no se pode deixar de considerar que, desde o ano de
1725, apenas sete anos aps a descoberta das jazidas de ouro em Cuiab,
o Capito General da Capitania de So Paulo, a quem Mato Grosso estava submetido, autorizou a conduo de gado da Vacaria para a regio
mineradora, fato que vem comprovar o intercmbio entre as duas reas e
o aproveitamento do bovino no incio das atividades em Cuiab.
O gado da Vacaria possibilitou ainda o surgimento de outros entrepostos comerciais, instalados nas barras dos principais afluentes do rio
Paran, no curso das mones, para garantir suprimentos queles que se
deslocavam de So Paulo a Cuiab ou vice-versa.
Assim que o rebanho bovino foi se estruturando em Cuiab, o
fluxo de tropeiros para a pega do gado na Vacaria foi diminuindo, o que
contribuiu para que o rebanho da Plancie no sofresse nenhum outro
desfalque e continuasse crescendo vertiginosamente.
326
pelos colonizadores, como era o caso do Pantanal. Essa sim foi a grande
diferena, pois com esses animais foi possvel organizar as primeiras propriedades: o gado foi sendo amansado, o couro era a principal mercadoria
de troca e a carne seca tambm oferecia alguns recursos para os pioneiros.
No comeo da dcada de 1850, tal era o volume do rebanho bovino que foram se estreitando os laos comerciais entre os produtores do
Pantanal sul e os tropeiros que vinham de Minas Gerais. Com o rpido
processo de urbanizao que o Brasil viveu a partir do incio do sculo
XIX, os tradicionais fornecedores do gado bovino, como Gois, So Paulo e Minas Gerais, j no conseguiam atender a demanda interna, sendo
necessrio recorrer ao rebanho sul-mato-grossense.
A assinatura do Tratado de amizade, comrcio e navegao entre
o Brasil e o Paraguai, que abriu o rio homnimo livre navegao, constituiu, entre outros fatores, um estmulo para os produtores ampliarem
as exportaes de couro e de carne seca, o que possibilitou o aumento
da renda interna. Com isso, algumas fazendas prosperaram e a Provncia
vagarosamente foi se integrando economia nacional.
Esse pequeno progresso foi interrompido com o incio da guerra
com o Paraguai. Durante quase cinco anos, a Provncia esteve ocupada
por tropas inimigas, sendo territrio completamente devastado e saqueado. Uma das razes que levou Lopes a invadir a Provncia de Mato Grosso, sobretudo a regio do Pantanal sul, foi a existncia dos estoques de
gado bovino e equino que povoavam toda a plancie.
O rebanho local abasteceu as tropas invasoras, a populao assuncenha e tambm os prisioneiros de guerra. H, entre os historiadores
mato-grossenses, um certo consenso de que os paraguaios teriam exterminado o rebanho bovino pantaneiro; no entanto, a peste das cadeiras
que atingiu o rebanho eqino com alta taxa de mortalidade acabou por
imobilizar os guaranis, no permitindo que reunissem condies para
realizar o manejo do gado.
Tal fator limitante contribuiu para que o gado fosse se alongando, juntando-se ao rebanho selvagem e colocando-se fora do alcance do
329
homem. Documentos e relatos dos contemporneos, testemunhas oculares dos acontecimentos, colhidos em crnicas, relatrios e cartas, dentre
eles, destacando-se Visconde Taunay e Joaquim Ferreira Moutinho, e de
Presidentes de Provncia, no deixaram dvida: havia um rebanho significativo que nem as tropas do Imprio Brasileiro nem as da Repblica
Paraguaia conseguiam manejar, devido peste eqina.
Essa referida doena, apesar dos seus malefcios do ponto de vista
econmico, acabou por contribuir decisivamente para a preservao do
rebanho bovino do Pantanal sul. O fenmeno, ocorrido em meados do
sculo XVII com o gado das redues jesuticas, repetia-se em pleno sculo XIX. Desta vez, a guerra e a falta de eqinos para o manejo do gado
contriburam para a sua disperso. Por isso, quando a guerra terminou,
havia grandes estoques por toda a plancie.
Preservado, o bovino alado exerceu forte atrao sobre os soldados do Exrcito Brasileiro que, desmobilizados, resolveram permanecer
em territrio sul-mato-grossense. Alm disso, as vastas reas cobertas de
pastagem nativa e devolutas, o fato de a pecuria no exigir grande quantidade de braos para o seu desenvolvimento, ao contrrio da agricultura,
bem como a possibilidade de deslocamento do rebanho para os centros
consumidores com poucos gastos tornaram-se estmulos para a fixao
no Pantanal.
Ao lado das iniciativas particulares, o Imprio, temeroso de novas
agresses na distante Provncia, decidiu adotar providncias que visavam
integridade territorial e unidade do Imprio. A reabertura do rio Paraguai navegao e as medidas de apoio ao desenvolvimento comercial,
como a iseno de tributos aos produtos de importao e exportao comercializados nos principais portos de Mato Grosso, abriram perspectivas para o desenvolvimento local, como tambm possibilitaram a entrada
de capitais estrangeiros, decisivos para o crescimento econmico da regio.
Embora houvesse relativo desenvolvimento econmico e populacional, a Provncia continuou enfrentando muitas dificuldades, sobretu330
No conjunto da produo pecuria sobressaiu a indstria de transformao da carne que passou a ocupar lugar destacado na economia
regional, devido ao caracter capitalista, com o emprego de mquinas modernas e trabalhadores especializados, esses geralmente oriundos do Uruguai, Paraguai e do Rio Grande do Sul.
O mesmo, no aconteceu no campo, onde a pecuria manteve as
prticas pr capitalistas de produo, alias muito apropriadas estrutura
latifundiria da regio. Assim, as relaes sociais de trabalho permaneceram extremamente atrasadas com o emprego da mo-de-obra familiar
muitas vezes no remunerada, mantendo a massa humana que tirava a
sua subsistncia dali no mais lamentvel estado de pobreza e ignorncia, situao que vem se modificando atualmente devido as exigncias do
mercado.
O processo de colonizao do Pantanal, desde o princpio do sculo XVI, esteve estreitamente ligado pecuria. As limitaes impostas
pelo meio-ambiente foram superadas pelo bovino, que garantiu a ocupao econmica da plancie e contribuiu decisivamente para a incorporao da regio ao mercado nacional.
334
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ENTREVISTAS
ARAUJO, Nilson. Campo Grande, 08 de julho de 2001.
ARAUJO, Nilson. Campo Grande, 12 de dezembro de 2002.
BARROS, Abilio Leite. Campo Grande, 13 de outubro de 2001.
BITTAR, Marisa. Campo Grande, 1 de maro de 2001.
FERREIRA JUNIOR, Amarilio Campo Grande, 29 de fevereiro de
2001.
FERREIRA JUNIOR, Amarilio Campo Grande, 9 de janeiro de 2002.
MACHADO de OLIVEIRA, Tito Carlos. Campo Grande, 19 de setembro de 2001.
MACHADO de OLIVEIRA, Tito Carlos. Campo Grande, 15 de abril
de 2002.
MARTINS, Gilson Rodolfo. Campo Grande, 22 de setembro de 2000.
MARTINS, Gilson Rodolfo. Campo Grande, 7 de janeiro de 2002.
MICHELS, Ido Luis. Campo Grande, 22 de dezembro de 2001.
SEREJO, Helio. Presidente Wenceslau Braz, 14 de abril de 2001.
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Impresso e Acabamento