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BLOCOS
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VIDAS EM
em anos depois do incio das obras do primeiro conjunto habitacional do governo federal
no pas a Vila Operria Marechal Hermes ,
mais de um milho de pessoas vivem
nesse tipo de moradia na cidade do
Rio, o que representa 17% da populao (6.320.446 de habitantes, segundo o Censo 2010 do IBGE) e se
aproxima dos cerca de
1,1 milho que vivem
Fotos de Custodio Coimbra
em favelas. Levantamento do GLOBO mostra que 304 mil unidades
habitacionais populares
foram construdas na
capital ao longo deste
um sculo, o que no resolveu o problema da
moradia, como revela
esta srie de reportagens que comea a ser
publicada hoje. O dficit
de domiclios no Rio ultrapassa 221 mil unidades, enquanto polticas
atuais como o programa
Minha Casa, Minha Vida,
do governo federal, no
conseguem atender
demanda.
A partir dos anos
90, com a reurbanizao
de favelas em foco, os
conjuntos tiveram a importncia minimizada
pelos governos, pelas
universidades e pela mdia, impedindo polticas
mais amplas e enfraquecendo o debate sobre a
habitao social disse a arquiteta Luciana
Corra do Lago, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ.
O comeo da poltica
habitacional nacional
lanou uma quase semABANDONO: diante da praa alagada em Marechal Hermes, dois sobrados do incio do sculo em pssimo estado de conservao, transformados em cortios, ao lado de um preservado
pre errante aventura de
erguer moradias populares no Brasil. Em 1 o- de maio de
1911, o ento presidente Hermes da
Fonseca instalou a pedra fundamental da Vila Operria Marechal Hermes (numa homenagem a ele mesmo). Na poca um longnquo subrbio, o local deveria receber 738 casas
Foi nas vilas e cidades-modelo
e sobrados para 1.350 famlias, alm
construdas pela indstria na
de creches, quatro escolas, materniEuropa do sculo XIX, principaldade, hospital e outros servios.
mente na Alemanha e na Frana
Trs anos depois, porm, quando a
para onde Marechal Hermes
vila foi ocupada, a realidade dava forviajou em 1908 e 1910, respecma a apenas dois colgios e 170 cativamente , que o militar se
sas (20% do previsto), como relata o
inspirou para projetar sua Vila
historiador Alfredo Oliveira.
Proletria carioca como presi Hermes enfrentou resistncias,
dente da Repblica.
mas foi pioneiro. Previu toda a inMas, se por aqui os conjuntos
fraestrutura para a autossuficincia
que vieram depois de Marechal
do lugar, como uma estao de trem.
Ruth Hallais Motta, de 92
no resolveram a falta de moraNo fim de 1913, no entanto, as obras
anos, que nasceu no bairro UMA MORADORA passa pelos casares antigos que j serviram como locao para filmes
dia digna, outros pases conseficaram paradas, aps o senador Piguiram, com o mesmo tipo de
nheiro Machado promover a demisiniciativa, equacionar seu dficit
so do diretor da comisso da consSimone Marinho
dncia dos Funcionrios Pblicos da
habitacional. o caso da prtruo da vila, Palmyro Pulcherio. E,
Unio (IPFPU), que encontrou um cepria Alemanha visitada por Herdepois de entregue, a vila passou a
nrio desolador: 128 casas desocumes, da Inglaterra e da ustria.
ser boicotada pelos governos libepadas e muitas inacabadas. Nessa faNeles, a soluo quantitativa do
rais posteriores, at cair no completo
se foram construdas 300 casas, o Ciproblema veio acompanhada da
esquecimento conta Oliveira. A
ne Lux, hoje em runas, e o Hospital
qualidade construtiva.
primeira poltica habitacional do
Carlos Chagas.
Esses conjuntos eram propas j nasceu descontnua.
como se Getlio retomasse
jetados com servios coletivos,
a obra de Hermes diz Oliveira.
como lavanderias e escolas
S nos anos 40 e 50 surgiriam nodiz a arquiteta Flvia Brito, do
vos empreendimentos habitacionais
Instituto do Patrimnio Histrido governo no bairro, concomitantes
co e Artstico Nacional (Iphan).
aos nascentes projetos de moradia
Eles surgiram com o cresci Hoje, grande parte dos casares da
dos Institutos de Aposentadoria e
mento das cidades e a indusPenses (IAPs). Com a transformatrializao dos anos 20.
vila, na rea central do atual bairro
o do IPFPU em Instituto de PreviNessa poca, em paralelo ao
de Marechal Hermes, est em runas
RUTH MOTTA, que se lembra de quando Marechal era um bairro chique
dncia e Aposentadoria dos Servidodficit habitacional acumulado
ou descaracterizada, como smbolo
res do Estado (Ipase), Marechal gae reconstruo da Europa no
de uma cidade que d as costas para
primeiro ps-guerra, vivia-se a
a sua histria. Sobrados foram inva- bairro que ganhava formas em torno Hermes (Nair de Teff), professora de nha 589 casas, um ginsio, uma mauma das escolas daqui. Ela era linda, ternidade e o Teatro Armando Gonebulio do Modernismo na ardidos para dar lugar a comrcios im- dos sobrados e da estao.
Marechal era um lugar chique. 31 anos mais nova que o presidente! zaga, projeto de Afonso Eduardo Reiquitetura, que influenciaria os
provisados. Um deles abriga seis faprimeiros conjuntos. Flvia cita
mlias, como num cortio. Apesar No trem, quando as meninas daqui E no h dvidas sobre a qualidade dy, com jardins de Burle Marx.
Nessa fase foram erguidos trs noconstrues em Viena, na usdisso, algumas ruas ainda remetem chegavam a Madureira, de to bem dos casares. Ningum conseguia entria, com ptios centrais, conheao incio do sculo XX e foram loca- vestidas, eram logo reconhecidas: fiar um prego nas paredes diz ela, vos conjuntos no lugar: o Comercial,
cidos como Hfe vienenses, e
o para filmes como A suprema fe- L vm as moas de Marechal que morou 22 anos num casaro da de 1948; o Trs de Outubro, em 1949;
seis conjuntos de Berlim, capital
licidade, de Arnaldo Jabor, e Chuva conta dona Ruth. Era na estao antiga Rua Sete de Setembro, at se e o do Ipase, de 1954. Ao redor da Vila Operria, eles compem um belo
de trem que as meninas encontra- casar e continuar no bairro.
alem, tombados pela Unesco,
de vero, de Cac Diegues.
Da infncia de dona Ruth at o um retrato da habitao social da
para ilustrar esse pioneirismo.
O passado motivo de orgulho pa- vam os melhores partidos.
Dona Ruth fala de um tempo ro- bairro chegar s dimenses imagina- primeira metade do sculo XX.
O nazismo e a Segunda
ra antigos moradores, como Ruth
Guerra interromperam esse
Hallais Motta, de 92 anos, que nasceu mntico no bairro, que at hoje das pelo marechal Hermes, seriam
necessrios mais 40 anos. S em
processo, que, com a reconstrunum dos casares, em 1919. Filha de guarda ruas largas e planejadas.
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Aos 12 anos, fui a primeira me- 1931 foram retomadas as obras, j na
o das cidades, seria retomaum escrivo de polcia, ela conta que
VDEO Historiador detalha como foi
criado o conjunto de Marechal Hermes
do, ainda sob inspirao do moa maioria das primeiras casas foi en- nina a andar de bicicleta em Mare- Era Vargas. Um ano depois de Getlio
oglobo.com.br/rio/info/conjuntos-habitaciodernismo diz Flvia.
tregue a funcionrios pblicos. E chal. Foi um escndalo. Outra que assumir a Presidncia, a posse da vinais
lembra, em detalhes, os costumes do deu muito o que falar foi a mulher de la foi passada ao Instituto de Previ-
E os casares,
no h dvidas
de sua
qualidade.
Ningum
conseguia
enfiar um prego
nas paredes.
Getlio retoma a
obra de Hermes
Os primeiros
conjuntos
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PRETO/BRANCO
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Fotos de Mrcia Foletto
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CIDA NEVES em seu apartamento: as filhas, aps se casarem, no conseguiram morar no conjunto
POPULAO DO CIDADE
ALTA EXPLODE E INVADE
TERRENOS VIZINHOS
Rafael Galdo e Rogrio Daflon
x -moradora da Favela
da Praia do Pinto, no Leblon, e h 43 anos no
conjunto Cidade Alta
(erguido em 1969, com 2.597
unidades), em Cordovil, Cida
Neves Moraes teve que se despedir de duas de suas filhas, que
deixaram o apartamento de dois
quartos rumo favela vizinha
de Vila Cambuci. Chana, de 31
anos, e Fabola, de 28, construram suas casas na comunidade
aps se casarem e no terem
condies de comprar ou alugar
um imvel no conjunto.
Com o crescimento das famlias, pelo menos 80% dos moradores das favelas em volta do
Cidade Alta so filhos e parentes
de moradores dos trs conjuntos do bairro. No caso das minhas filhas, o apartamento no
dava para tanta gente, e minha
famlia foi uma das que invadiram a Vila Cambuci conta Cida, que deixou a Praia do Pinto
aps um incndio que devastou
a comunidade em 1968.
Os trs conjuntos em Cordovil aos quais Cida se referiu sintetizam o fracasso da poltica
habitacional no Rio. Com 4.077
unidades habitacionais e, numa
estimativa modesta, pelo menos
14.600 habitantes, a maioria das
famlias chegou ali vinda de favelas removidas na Zona Sul. Os
conjuntos foram construdos
nas dcadas de 60 e 70, e, alm
de no garantirem a qualidade
de vida de seus moradores, deram origem a cinco favelas em
seu entorno: Vila Cambuci, Avil, Parque Proletrio, Divineia e
Pica-Pau. As comunidades so
frutos da exploso demogrfica
nos apartamentos dos conjuntos, sem que o poder pblico
fosse capaz de alocar as pessoas em moradias formais.
Um desafio s
leis da fsica
Viviane Pereira foi uma das
que fizeram o percurso do conjunto para a favela. H nove
anos, aps se casar e ter um filho, ela trocou o dois-quartos-esala da famlia no Cidade Alta,
onde na poca j residiam nove
pessoas, por uma casa na Divineia. E, mesmo com a sada dela,
a diviso de espao no apartamento desafia as leis da fsica.
Hoje so 11 pessoas no lugar. Cabe a Alcilene Pereira, irm de Viviane, tentar organizar tanta
gente: ela, o marido, quatro filhos, trs netos e dois genros,
que sustentam a casa com renda
em torno de mil reais por ms.
No meu quarto dormimos
eu e meu marido na cama, o
meu neto de 1 ano entre ns
dois, e a minha filha de 14 no
cho. Na sala, a minha filha,
meu genro e meu outro neto. E,
no outro quarto, meu filho no
cho, minha filha e o marido dela na cama e meu neto no carrinho de beb. A dificuldade
maior na hora de tomar banho de manh. uma baguna
conta ela, auxiliar de servios gerais desempregada.
No Cidade Alta, Alcilene e
seus vizinhos no vivem em
Favelas filhas
de conjuntos
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tacionais
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ARQUITETO MARCELO ROBERTO, um dos Irmos Roberto, em 1948, sobre o IAPI da Penha
CASAS GEMINADAS
do IAPI de Realengo
Mrcia Foletto
PRDIOS DO IAPI da Penha, considerado um dos exemplos mais bem-sucedidos dos projetos de habitao popular dos anos 40: moradores se organizaram em condomnios para garantir a conservao
Moradias em
larga escala
Custodio Coimbra
implesmente
duas mil habitaes. Isto era
um negcio
muito chocante,
porque, na poca, o mximo que o governo construa era 200 casas. O espanto do arquiteto Carlos Frederico Ferreira
em depoimento pouco antes de sua
morte, em 1994 ilustra como o primeiro conjunto habitacional em larga
escala do pas, o IAPI de Realengo, de
1942, na Zona Oeste, projetado por
ele, rompia com os padres da poca. Com 2.344 unidades, era o incio
da maior poltica de moradia popular
brasileira at ento, implementada
no governo de Getlio Vargas a fim
de oferecer casa aos trabalhadores
por meio dos Institutos de Aposentadoria e Penso (IAPs). Empreitada,
porm, que saa atrasada na corrida
contra os problemas urbanos no Rio
naquele perodo, quando milhares
de pessoas j se aglomeravam em favelas. Desde ontem, uma srie de reportagens do GLOBO mostra que,
em cem anos, os conjuntos habitacionais no resolveram os problemas de moradia.
Do IAPI de Realengo at 1950, foram construdos outros 12 grandes
conjuntos dos IAPs no Rio, num total
de 12.238 unidades, beneficiando
61.190 pessoas. No mesmo ano, o Servio Nacional de Recenseamento
contava 169.305 habitantes (7,12% da
populao) nas 58 favelas pesquisadas. E pior: a poltica de Getlio, seguida por seu sucessor, Gaspar Dutra,
voltada aos trabalhadores formais de
baixa renda, no atendia populao
marginalizada dos morros.
Todas as polticas habitacionais
a partir da mantm o padro: comeam correndo atrs de um prejuzo j
configurado. Enquanto o pas no entender a origem de seu passivo habitacional e, sobretudo, sua evoluo
histrica, no resolver o dficit de
moradias. O Rio um exemplo emblemtico disso diz o professor
Adauto Cardoso, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ.
Os velhos IAPs guardam, no entanto, uma diferena crucial: a qualidade
arquitetnica. Em Realengo, foram
erguidos os primeiros blocos de
apartamentos num conjunto no Brasil. Um deles tem nas varandas projetadas por Carlos Frederico com a
influncia da Bauhaus, a escola de arquitetura e design de vanguarda alem. H ainda casas de diferentes tipos, umas geminadas, outras isoladas, com a preocupao quanto
ventilao e iluminao. Padro de
qualidade comum a quase todas as
26.504 unidades habitacionais construdas de 1937 a 1964 pelos IAPs e
suas diferentes categorias, como as
dos Comercirios (IAPC) e dos Bancrios (IAPB), como se v em levantamento do arquiteto Nabil Bonduki,
que entrevistou Carlos Frederico.
Promessas do
paternalismo
Filho de tipgrafo, o aposentado
Rubens Esteves, de 75 anos, tinha 8
quando o pai levou a famlia para o
IAPI de Realengo, em 1943. Ele lembra o impacto do conjunto na vida
dos novos moradores.
O IAPI nos dava todo o mobilirio. Aqui havia comrcio, posto
de sade, creche. A partir da dcada
de 60, o governo no deu mais nada.
Muita gente chiou. Infelizmente, hoje a creche foi invadida, e nosso comrcio deixa a desejar. Mas as casas
Mudana de perfil
Morador de favela migrou para conjunto
Irene Oliveira, de 79 anos, conta uma histria de muitas mudanas e aflies. At chegar Cruzada So Sebastio, conjunto idealizado por Dom Helder Cmara no Leblon em 1955 para receber
moradores da Praia do Pinto, Irene vivenciou a primeira experincia de realocao de moradores de favela do Rio. Em 1942, com 5
anos, ela deixou a antiga favela do Largo da Memria, no Leblon,
para viver parte de sua infncia no Parque Proletrio da Gvea,
um dos trs centros de moradia provisrios criados da dcada de
40, quando se tentava pr em prtica a poltica incipiente de erradicao de favelas. Era um momento concomitante com a poltica dos IAPs e, de certa forma, representava uma mudana de
perfil dos moradores de conjuntos habitacionais da poca. Irene
no tem boas lembranas do parque proletrio, que, em 1950, j
era considerado uma favela pelo Censo.
No parque proletrio, sequer havia banheiro. A primeira
vez que eu usei um vaso sanitrio foi na Cruzada So Sebastio.
Eu amo isso aqui diz dona Irene.
Antes mesmo da Cruzada, na Zona Sul j existia o Conjunto
Dona Castorina, no Horto, fruto da remoo de moradores de
favelas. Outros conjuntos da Zona Sul, como o Pio XII, em Botafogo, tambm serviram para o mesmo fim.
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mas ao conjunto, como Vila Metral e Alto Kennedy diz Melo, constatando uma favelizao
que tambm atingiu todos os construdos por
Lacerda. Conjuntos que vieram depois na
prpria Vila Kennedy, como o Quaf e o Malvinas, passaram pelo mesmo problema.
A Cidade de Deus, que ganhou fama mundial
pelo cinema, sofreu ao semelhante. As primeiras casas do conjunto foram construdas
ainda no governo Lacerda. Com a enchente de
1966, j no governo Negro de Lima, recebeu
desabrigados de favelas destrudas. Dali para
frente, com cerca de cinco mil casas construdas em diferentes governos, acabou sendo o
destino de 63 favelas extintas por inteiro ou
parcialmente, prioritariamente as da Zona Sul,
como Catacumba, Parque Proletrio da Gvea
e Praia do Pinto.
Numa dessas levas de moradores veio Manuel Severino de Jesus, de 59 anos, que morava
Remoes no
contiveram favelas
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O BAR que
funciona num
puxadinho:
comrcio
informal
SONINHA
Batista, exporta-bandeira
da Mocidade:
moradora
ete mil e 200 apartamentos, em 180 blocos distribudos por uma rea de
cerca de 450 mil metros
quadrados (54 vezes o
gramado do Maracan).
O maior conjunto habitacional do
Rio, o Dom Jaime Cmara, construdo em 1969, atravessa dois bairros
Bangu e Padre Miguel tem cerca de 26 mil moradores, populao
superior de 37 dos 92
municpios do Estado
do Rio, e uma quantidade de problemas igualmente superlativa. Em
seus 42 anos, a fase de
crescimento do conjunto no cessa. Nele, pelo
menos 1.800 puxadinhos rompem com a homogeneidade dessa cidade de prdios gmeos. Gatos de energia,
prestaes acumuladas,
praas malconservadas,
ausncia de escolas de
ensino mdio e apartamentos invadidos pelo
trfico tambm compem o quadro.
Das centenas de puxadinhos chamados
de puxadas pelos
moradores , mais da
metade ocupada por
pequenos comrcios,
contabiliza o presidente da associao de
moradores do conjunto, Alex Ignacio, uma
espcie de sndico. Neles funcionam padarias, lanchonetes, lojas
de roupas, oficinas, lan
houses e toda sorte de
estabelecimentos que
suprem as necessidades do lugar, cujo projeto no previu lojas.
A cabeleireira Lucinete Bezerra da Silva, de
53 anos, dona um pequeno salo de beleza,
conta que as reas onde
hoje est o comrcio
eram espaos de lazer
dos blocos. Aos poucos,
foram substitudos por
garagens e, depois, alugados ou vendidos a coINFORMALIDADE: construes irregulares, a maioria com comrcio, ocupam espaos onde deveriam estar as reas de lazer dos prdios, que tambm sofrem com o trfico
merciantes.
A compra das puxadas apalavrada. ilegal. Mas, se dimplncia. H prdios com dvidas bandidos tomam imveis de viciados menos, no h mais disputa.
Minha me ficava me esperando na
a prefeitura cobrasse imposto, seria de at R$ 300 mil em conta dgua. em dvida. Ou simplesmente se apoA violncia no impediu que, do entrada da comunidade, com um
bom, valorizaria o lugar acredita. Uma bola de neve antiga, desde a deram de residncias vazias, que se- encontro de tanta gente de lugares lampio, pois o caminho era escuro.
Os puxadinhos, no entanto, no se chegada dos primeiros moradores. riam vendidas.
diferentes, surgisse uma comunidade Muita gente veio da Vila Vintm para
restringem ao trreo. Esto em quase Eles compraram o apartamento fios apartamentos, inclusive baluartes
O trfico funciona quase como unida e de identidade prpria.
todos os andares. Alguns prdios (to- nanciado pelo Banco Nacional de Ha- uma imobiliria. Invade e vende apar Se voc falar um ai, vem todo da Mocidade conta Soninha.
dos de cinco pavimentos) ganharam bitao (BNH) ou foram reassenta- tamentos conta a moradora.
mundo socorrer diz a moradora
perto dali, num conjunto vizinho
um sexto ou at stimo piso. H ver- dos de favelas pela Coordenao de
O trfico se concentra em duas Selma Rodrigues, de 44, ilustrando o ao Jaime Cmara, um dos dois do
dadeiros prdios anexos. Em algu- Habitao de Interesse Social (Chi- ruas, a L e a I, esta ltima uma das clima de solidariedade.
Instituto de Aposentadorias e Penmas reas, ruas se transformaram sam) e tiveram que assumir uma mais extensas e prximas da Vila
ses dos Industririos (IAPI) em Paem vielas, devido ocupao dos es- prestao pela casa prpria.
Vintm. chamada de Rua da Morte
dre Miguel, que fica um dos centros
paos pblicos. At igrejas evanglida cultura da Zona Oeste: o Ponto
Em 1977, quando a Companhia Es- por vizinhos. Mas a violncia se escas se estabeleceram nos puxadi- tadual de Habitao (Cehab) iniciou palha por todo o conjunto. Outra
Chique. Uma rua que rene a resisnhos, hoje um dos maiores motivos o despejo dos inadimplentes, 46,9% moradora diz que j assistiu da janetncia de movimentos como os do
de brigas no Jaime Cmara.
samba, do hip-hop, do funk e do
das famlias do local no tinham se- la a dois assassinatos. Nas duas ve Sempre contornamos brigas de quer contrato com a companhia e zes, o mesmo tipo de ao: tiros Bero da cultura na Zona Oeste, charme na cidade.
um vizinho acusando o outro de in- 17% deviam de 43 a 48 prestaes.
queima-roupa, em frente portaria um dos celeiros da escola de samba
Aqui o corao de Padre Mivadir o seu espao diz Ignacio.
do bloco das vtimas.
Mocidade Independente de Padre guel, onde todos se manifestam
Resolver essas questes no
A criminalidade remonta ocu- Miguel, o Jaime Cmara onde mo- diz Bernadete da Silva, uma das orsimples. Clculo da associao de
pao do conjunto. Em 1969, junto ra uma das mais renomadas porta- ganizadoras da Festa de So Jorge
moradores expe que apenas 20%
com moradores removidos, vieram bandeiras da agremiao, Soninha do Ponto Chique, que ms passado
dos apartamentos (cerca de 1.500)
gangues de favelas rivais.
Batista, ex-moradora da Vila Vin- reuniu mais de 30 mil pessoas.
esto em dia com suas documenta Havia uma disputa de poder. E, tm, que defendeu o pavilho verde
es. O restante est alugado, em in- Hoje, outro drama a invaso de como estavam todos misturados, foi e branco de 1978 a 1985.
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ventrios na Justia ou invadido, o apartamentos por traficantes, a uma poca de convivncia muito di Qual favelado no sonha sair da
GALERIA Veja mais fotos do
conjunto e suas puxadas
que dificulta a organizao dos blo- maioria da Vila Vintm. Sem se iden- fcil conta o morador Jorge Alber- favela? Como todo filho de pobre, eu
www.oglobo.com.br/rio
cos em condomnios e facilita a ina- tificar, uma moradora conta que os to de Sousa, de 57 anos. Hoje, pelo trabalhava de dia e estudava noite.
O corao de
Padre Miguel
A imobiliria
do trfico
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A refavela
Revela o salto
Que o preto pobre tenta dar
Quando se arranca
Do seu barraco
Prum bloco do BNH".
GILBERTO GIL, num trecho da msica "Refavela"
Mrcia Foletto
a Fazenda Botafogo,
apartamentos semelhantes a caixotes. Na
Vila do Joo, uma quadra inteira com apenas
um alicerce para todas
as casas. Em Antares, duplex de 26
metros quadrados. E, no Cesaro, tetos de amianto, que transformavam
os cmodos num forno no vero.
Nos classificados, provavelmente esses imveis no atrairiam muitos
compradores. Mas eram moradias
assim que o Banco Nacional de Habitao (BNH) oferecia populao
de baixa renda nos conjuntos habitacionais erguidos no Rio durante o regime militar. Criado em 1964 e extinto
em 1986, o BNH, por meio do Sistema
Financeiro Habitacional, captava recursos do Fundo de Garantia. Nunca
se construram tantas unidades na cidade como no perodo 64-86: foram
mais de 75 mil pelo BNH e parte
em parceria com a Companhia Estadual de Habitao (Cehab). Mas
eram moradias em condies subumanas, pelas quais os moradores se
endividariam por anos, revela mais
uma reportagem da srie Vidas em
blocos, iniciada domingo passado,
sobre os cem anos dos conjuntos habitacionais do Rio.
Em 1981, quando Jacira Mouro
trocou o aluguel na Baixada Fluminense por um imvel no Conjunto
Otaclio Cmara, o Cesaro, em Santa Cruz, realizou o sonho da casa
prpria mesmo que o novo lar (de
um quarto, sala, cozinha e banheiro)
no fosse o que imaginava para um
casal e quatro filhos. Em pouco tempo, no entanto, ela viu o sonho virar
um problema, ao ter que separar, da
pequena renda familiar, o dinheiro
para as prestaes da Cehab/BNH.
Era pouco. No fim, menos de
R$ 30 mensais. Mesmo assim,
atrasvamos porque no dava para pagar. Tnhamos que parcelar
as dvidas e pagar tudo de novo.
Eu precisava lavar roupa
para fora e ajudar meu
marido conta. O
nico quarto que construmos foi com dinheiro
poupado para a festa de
15 anos da nossa filha.
Muturios como Jacira
enfrentaram ainda o fantasma da hiperinflao.
Mais um motivo para o aumento da inadimplncia.
Muitos no meu conjunto no conseguiram
pagar. Alguns perderam o
imvel. E mesmo ns, que
pagamos, no temos a
certido definitiva diz
Aparecida Rodrigues, moradora do Conjunto Esperana, na Mar.
O CONJUNTO Fazenda Botafogo, de 1978, com 86 prdios e 3.440 apartamentos: os moradores reclamam de aperto nos imveis de 35 a 44 metros quadrados
O COMPLEXO
da Mar (ao
lado) e Maria
Eny (abaixo)
em frente
sua casa, uma
das poucas da
Vila do Joo
com as
caractersticas
originais
Paredes no
tinham reboco
Para piorar, a m qualidade dos imveis onerou
a vida de quem se mudou
para os conjuntos na poca. Loureno Cezar da Silva conta que, para tornar
seus lares menos desconfortveis, a grande maioria dos moradores da Vila
do Joo, na Mar, modificou as casas. Em 1982, quando
chegou ao conjunto, aos 12 anos,
ele at acreditava que ali era o paraso, pois pela primeira vez viveria numa casa de alvenaria, depois
de sair de uma palafita na Baixa do
Sapateiro (tambm na Mar). Logo, porm, percebeu que a realidade era outra:
As casas eram pssimas. O telhado de amianto retinha muito calor. As paredes no tinham reboco,
e a pintura era feita diretamente
sobre o tijolo diz Loureno, que
apontou a residncia de Maria Eny
de Oliveira como uma das poucas
com planta original no conjunto.
Na Fazenda Botafogo, de 1978,
com seus 86 prdios e 3.440 apartamentos (de 35 a 44 metros quadrados), aperto a palavra dos mora-
Custdio Coimbra
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VIDAS EM
O CONJUNTO HABITACIONAL
Amarelinho, em Iraj
Territrios proibidos
ocs no esto
com medo? A
pergunta de
uma adolescente aos reprteres do GLOBO
que faziam mais uma reportagem
da srie Vidas em blocos, sobre
os cem anos dos conjuntos habitacionais do Rio, mostra a realidade
dos moradores do Amarelinho, na
entrada do complexo de favelas de
Marcia Foletto
Acari. Na cidade
das Unidades de
Polcia Pacificadora (UPPs), o lugar
ainda est sob o
jugo do trfico armado. Em grande
parte dos conjuntos do Rio, quando
no existe o domnio de traficantes,
so milicianos que
impem o terror.
No Amarelinho,
o trfico onipresente.
Vocs no podem andar sozinhos aqui , perigoso alertou um
morador.
A presena de
criminosos prejudica servios bsicos.
H meses a comunidade no tem carteiro. E, das sete vagas para mdico
num dos postos do
conjunto, s trs
esto preenchidas.
Os traficantes
embalam drogas
numa praa do conjunto, a Joo FabiaO CONJUNTO AMARELINHO: a presena ostensiva de traficantes armados, que embalam drogas numa praa da comunidade, prejudica servios bsicos como o dos Correios
no, e andam armados pelas ruas. Eles
Custdio Coimbra
tambm tomam apartamentos irregularmente e cobram uma taxa de R$
20 de cada comerciante conta
uma moradora.
Nas entradas de Acari prximas ao
Amarelinho, visveis para quem passa pela Avenida Brasil, h barricadas
para dificultar a ao policial. Obstculos tambm ocupam as ruas do
Conjunto gua Branca, o Fumac, em
Realengo, embora ele fique em frente
UPP do Batam, do outro lado da
Avenida Brasil. O Fumac, alis, est
na lista de reas prioritrias para receber as prximas UPPs. O poder paralelo tambm se estende a conjuntos como Vila Kennedy, Vila Aliana,
Taquaral, Antares, Nova Cidade, Fazenda Botafogo, Vila do Joo, Novo
Moradora do Conjunto
Pinheiro, Senador Camar e os do
Getlio Vargas, em Deodoro
Moradora do Amarelinho
PAC em Manguinhos.
Os traficantes
embalam drogas
numa praa do
conjunto e
andam armados
pelas ruas. Eles
tambm cobram
R$ 20 de cada
comerciante.
Em conjuntos, ao
diferente da polcia
No Getlio Vargas, em Deodoro, se
no h barricadas, um valo entre os
19 blocos prximos Avenida Brasil
e os sete junto comunidade do Muquio serve como trincheira. Moradores aconselham no entrar.
Isso aqui um barril de plvora. Vivemos em meio a disputas
entre diferentes faces do trfico
disse uma moradora.
Titular da Delegacia de Represso
s Aes Criminosas Organizadas
(Draco), o delegado Alexandre Capote conhece bem o conjunto de Deodoro. De 2005 a 2008, ele trabalhou
na 30 a- DP (Marechal Hermes), onde
investigou uma srie de crimes no
Getlio Vargas. De suas incurses no
lugar, a sensao de ser observado o
marcou. Em qualquer ao em conjunto habitacional, alis, Capote afirma serem necessrias estratgias especficas, diferentes das usadas, por
exemplo, em favelas. Um fator fundamental, diz ele, so as vrias entradas
e sadas dos conjuntos, que exigem
cuidados ao se montar um cerco:
Muitas vezes, criminosos
usam apartamentos de inocentes
para guardar armas e drogas.
Durante a Operao Blecaute, em
abril, a Draco encontrou apartamen-
Isso aqui
um barril
de plvora.
Vivemos em
meio a disputas
entre diferentes
faces do
trfico de drogas.
EM REALENGO, troncos ocupam uma rua do Conjunto gua Branca: barricada contra a polcia
Marcia Foletto
Vida, em Cosmos. Nos trs, de acordo com denncias annimas, h imveis ocupados por paramilitares chefiados pelo ex-PM Ricardo Teixeira da
Cruz, o Batman, que est preso.
Reprteres do GLOBO estiveram
em 14 de abril nesses condomnios,
recm-entregues. Neles, smbolos da
milcia estavam pintados nos muros,
embora houvesse assistentes sociais
da prefeitura h trs meses no local.
Ao retornar, um dia depois, a equipe
Na Cruzada So Sebastio, no
Leblon, no h UPP, mas PMs vo
ao conjunto semanalmente.
Isso melhorou a Cruzada.
H dois anos, havia at fila de
viciados disse um morador.
Subchefe operacional da Polcia Civil, Fernando Veloso diz
que na Cruzada houve muita colaborao dos moradores:
Ali, h quem se incomode
no s com a arrogncia dos traficantes, mas com o trfico em si.
O GLOBO
RIO
14
O GLOBO
RIO
VIDAS EM
BLOCOS
O PEDREGULHO,
em Benfica
Marcelo
NO MINHOCO da Gvea, os corredores servem como espao de convivncia para os moradores: a proximidade do comrcio e de servios pblicos foi uma das preocupaes dos criadores do projeto
Amor concreto
DOMINGO PASSADO: Os cem anos do primeiro conjunto habitacional SEGUNDA-FEIRA: Na Era Vargas, teto para os trabalhadores TERA: As remoes
QUARTA: O maior conjunto do Rio QUINTA: A dura fase do BNH ONTEM: Territrios sob o domnio do trfico e a milcia AMANH: Cem mil unidades at 2016