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A Intertextualidade: Cinema e Teatro1

ndrea SULZBACH2

RESUMO
Este trabalho possui como objeto de estudo a linguagem teatral presente no filme Csar
Deve Morrer (Paolo e Vittorio Taviani, 2012), o qual se apropria de elementos intertextuais
na construo da estrutura cenogrfica e representativa. O objetivo geral verificar os
suportes presentes no processo criativo. Os objetivos especficos versam sobre o
aprofundamento das interconexes percebidas, tendo como desdobramento principal a
presena das Artes Cnicas, preferencialmente em espaos no convencionais ao cinema
hegemnico. O estudo inicial analisa o enfoque e a arquitetura visual dos diretores dentro
de perodos cinematogrficos especficos que contriburam com suas obras. O movimento
identificado foi o Neorrealismo. A hiptese de que a apropriao da linguagem teatral
como intertexto proporciona um cinema reflexivo que concebido de maneiras diversas,
como estrutura fsica ou como ao/encenao, no referido filme do corpus. Para o estudo
do primeiro cinema so utilizadas as definies de Flvia Cesarino Costa. A anlise geral
dos elementos neorrealistas se apoia nas definies de Mariarosaria Fabris. O termo cinema
de opacidade segue os preceitos de Ismail Xavier. O conceito de intertextualidade de Julia
Kristeva completa o referencial terico.

Palavras-chave: cinema; teatro; intertextualidade; cenografia; atrao.

Introduo
A primeira imagem em movimento pde ser vista pela primeira vez em 1888, nos Estados
Unidos, atravs do cinescpio aparelho desenvolvido por Thomas Alva Edison. Essa
inveno consistia em uma pequena caixa com uma lente, o espectador inseria uma moeda e
observava, isoladamente, as imagens. O cinematgrafo, patenteado pelos Irmos franceses
Lumire, seguia um processo diferenciado, projetava a imagem em uma tela, muitas vezes
essa tela era um simples lenol ou mesmo uma parede. Devido a essa diferena, em que o
segundo aparelho se assemelha muito a forma de se exibir filmes atualmente, se legitimou
_________________________________
1
Trabalho final apresentado disciplina Cibercultura do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Linguagens da
Universidade Tuiuti do Paran.
2
Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paran. Linha de
Estudos do Cinema e Audiovisual. E-mail: [email protected]

como a primeira exibio cinematogrfica oficial a data de 28 de dezembro de 1895.


Momento em que fixada a inaugurao do cinema com a mostra, proporcionada pelos
Irmos Lumire, de vrios filmes de curta durao e a cave do Grand Caf em Paris, local
eternizado por comportar o incio da histria dessa grande arte.
O dilogo entre o cinema e o teatro ocorre desde a criao das primeiras imagens em
movimento. Essa intertextualidade obteve diferentes graus de aproximao de acordo com o
momento histrico e evolutivo no qual estavam inseridos. Em seu incio grande parte das
pelculas se desenvolvia a partir do teatro de atraes, em que o ltimo prevalecia no
intertexto. Com o avano da linguagem cinematogrfica as antes consideradas simples
imagens em movimento se transformam em filmes, provenientes da criao de variadas
concepes tcnicas e narrativas: enquadramentos; movimentos de cmera; elipses e
Linguagens, esse afastamento nunca causou uma ruptura completa, visto que o cinema se
utiliza de mtodos teatrais na preparao de seus atores at os tempos atuais. O propsito
deste trabalho analisar a retomada desse dilogo em uma recente produo
cinematogrfica, Csar deve morrer. A intertextualidade abordada nessa obra analisada
com o intuito de se verificar se difere do chamado cinema de origem, segundo os preceitos
aplicados e desenvolvidos por Flvia Cezarino Costa.

Os Primrdios do cinema
O cinema de atrao se desenvolve logo no incio das primeiras imagens em
movimento, com temticas variadas, desde registros caseiros a filmes teatralizados, os quais
eram produzidos por empresas, artistas, pesquisadores ou curiosos. A durao se dava em
mdia de 02 a 03 minutos, com cmeras fixas e pouco desenvolvimento psicolgico dos
personagens, mas j com o comeo da fico e marcao cnica. O termo cinema de
atrao originou-se do teatro. De acordo com Xavier (2005) Serguei Eisenstein define no
seu artigo manifesto, escrito em 1923, o termo teatro de atrao, o qual consistia em uma
encenao marcada com a inteno de criar uma iluso ao espectador, a partir de efeitos
pensados previamente para esse fim:
Uma atrao qualquer aspecto agressivo do teatro; ou seja, qualquer
elemento que submete o espectador a um impacto sensual e psicolgico,
regulado experimentalmente e matematicamente calculado para produzir
nele certos choques emocionais que, quando postos em sequencia
apropriada na totalidade da produo, tornam-se o nico meio que habilita
o espectador a perceber o lado ideolgico daquilo que est sendo

demonstrado atravs do jogo vivo de paixes. (EISENSTEIN apud


XAVIER, 2005, p.128).

Esse tipo de espetculo, teatro de atrao, acontecia principalmente no teatro de


Vaudeville, constitudos de acrobacia de animais ou uma comdia pastelo entre outras
formas de espetculos curtos, sem o desenvolvimento da narrao. E segundo Costa (2005,
p.43) o primeiro cinema, herda essa caracterstica de produes e exibies autnomas. Os
filmes eram feitos geralmente em uma nica tomada com pouco desenvolvimento narrativo.
Desde 1895 j circulava pela Frana outros tipos de filmes, que mostravam nmeros de
magia, gags burlescas, encenaes de canes populares e contos de fadas. Estes filmes
eram mostrados em quermesses, vaudevilles, lojas de departamento, museus de cera,
circos

e teatros populares. (COSTA, 1995-2005, p. 29) Sendo que o principal local de

exibio eram os vaudevilles, os quais surgiram a partir do teatro de variedades.


O teatro se faz muito presente no incio do cinema, em um primeiro momento
prevalece a este.
[...] o cinema foi usado, em geral, como uma tcnica meramente auxiliar,
para incrementar as atraes de alguns pavilhes. Participava como
coadjuvante em atraes visuais mais numerosas e populares, como era o
caso dos panoramas e dioramas, ou mesmo das performances teatrais.
(COSTA, 1995-2005, p. 23)

Costa (2005) ainda afirma que, por ser utilizado em um primeiro momento, de modo geral,
para ampliar as atraes o cinema inicialmente molda-se as j existentes formas de
espetculo. Mas percebe-se que com a passagem do tempo, o cinema afasta-se
gradativamente at conquistar sua autonomia enquanto linguagem, alcanada atravs de
sua evoluo tcnica e narrativa.

Teatro e Cinema
Um importante colaborador, no perodo inicial da cinematografia, foi Georges
Mlis, ilusionista que emigra para o cinema e contribui substancialmente com essa nova
linguagem, atravs de seu prvio conhecimento das Artes Cnicas. Segundo Kemp e
Frayling (2011, p. 20) seu filme mais conhecido Viagem Lua (1902), o qual possu
trucagens visuais misturadas tcnica de animao cut-out e cenrios teatrais gigantes.

Contudo, apesar de todas as inovaes cinematogrficas fascinantes que esse cineasta


desenvolveu e explorou seus filmes nunca conseguiram se libertar por completo de suas
origens teatrais. (KEMP; FRAYLING, 2011, p. 17)
Atualmente so vrios os elementos que diferenciam a linguagem teatral da
cinematogrfica. Primeiramente em relao mostrao: no teatro o ator faz sua
apresentao em simultaneidade fenomenolgica, com a atividade de recepo do
espectador: assim os dois dividem o tempo presente. O que no possvel ao cinema, que
apresenta agora, o que se passou antes. (JOST, 2009). H tambm o direcionamento do
olhar: no teatro o diretor no possui domnio sobre o olhar do espectador ou sobre o
enquadramento da cena, podendo no mximo fazer um recorte do espao cnico com um
pino de luz sobre o ator. J no filme o enquadramento, o ngulo e o movimento de cmera,
direcionam e aprisionam o olhar do receptor, o qual conduzido o tempo inteiro, de acordo
com o interesse do diretor. Jost (2009) aponta outros pontos divergentes entre essas duas
linguagens.
No decorrer dos eventos que formam a trama da narrativa, os atores de
cinema, ao contrrio dos de teatro, no so, ento, os nicos a emitir
sinais. Esses outros sinais, que vm pelo vis da cmera, so
plausivelmente emitidos por uma instancia situada de algum modo acima
dessas instncias de primeiro nvel que so os atores; por uma estncia
superior, portanto, que seria o equivalente cinematogrfico do narrador
escritural. essa instncia que Lafffay aponta quando fala de seu grande
imagista e que encontramos novamente, nomeado diferentemente, sob a
pena de inmeros tericos do cinema preocupados com os problemas da
narrativa flmica e que imputam a responsabilidade de tal ou tal narrativa
cinematogrfica seja ao narrador invisvel (ROPARS-WUILLEUMIER,
1972), ao enunciador (CASETTI, 1983; GARDIES, 1988), ao narrador
implcito (JOST, 1988), ou ainda, ao meganarrador (GAUDREALT,
1988). Essa instncia seria representada, no caso do teatro, por tudo aquilo
que coflui na encenao, e, portanto, por cada uma das performances da
pea. A narrativa cinematogrfica ope-se narrativa teatral por sua
intangibilidade, sendo caracterstica do teatro ser, a cada vez, um
espetculo diferente. (JOST. 2009, p.41)

O espetculo teatral possui uma organicidade diferente da presente no cinema, um


dos fatores principais o contato direto entre elenco e espectador. Outro fator o controle
do diretor sobre o trabalho do ator, no cinema a encenao, quando no est de acordo com
a ideia da produo, pode ser refilmada ou editada, j a arquitetura teatral no possibilita
esse processo.

So diversas as diferenas entre essas duas linguagens, mesmo assim acredito ser
possvel estabelecer um dilogo ou ainda uma intertextualidade entre as mesmas.
Atualmente percebe-se uma retomada, por alguns cineastas, dessa dualidade, em que o
teatro no vem propriamente em uma estrutura rudimentar, e sim com o intuito de
acrescentar narrativa novas propostas estticas. Para descrever esse recente vis
cinematogrfico foi selecionado, para exemplificao, o filme Csar Deve Morrer (Paolo e
Vittorio Taviani, 2012).
percebida, logo no incio do filme do corpus, a escolha do teatro como forma de
propiciar um cinema de opacidade, segundo os preceitos de Ismail Xavier (2005) que se
encontram no apenas presentes nesse dispositivo, mas tambm em outras reas de meios
de comunicao. O cinema das origens se avizinhava de experimentos cientficos, do
burlesco e do espetculo de feira, novas formas de ps-cinema fazem vizinhana s
televendas, aos jogos eletrnicos, aos CD-ROMs ao Imax. (SHOAT, Ella STAM, 2005: p.
393).
Essa vizinhana gera um dialogo no sentido de percebermos a opacidade, disponvel
tambm em outros ambientes comunicacionais.

muito instrutivo notar como a dialtica da opacidade e da transparncia, anunciada


como moribunda no cinema e na teoria mais recente, retorna agora com toda a fora
nos novos ambientes computacionais. Uma autoridade nessa rea como Oliver Grau,
em seu recente livro Virtual art, From ilusion to immersion (Cambridge: The MIT
Press, 2003), discute as determinaes ideolgicas do ilusionismo na realidade
virtual e no vdeo game e o faz numa direo terica que lembra estreitamente as
discusses em torno do dispositivo nos anos 1970. Ele se pergunta se ainda pode
haver lugar para a reflexo crtica distanciada nos atuais espaos de imerso com a
interface oculta (chamada ingenuamente de interface natural) afeta a instituio do
observador mais cnscio da experincia imersiva e podem portanto ser condutores
de reflexo. (MACHADO, 2005, p.07)

So diversas as formas e meios de comunicao passveis de proporcionar uma


autorreflexo aos seus receptores e o cinema ainda um deles, seja atravs da estrutura
fsica, ou como ao/encenao, ou ainda como metatexto.
Com distintas escolhas na arquitetura cinematogrfica, o filme Csar deve morrer
oferece um dilogo entre o teatro e o cinema, sendo assim o intertexto o foco principal
desta pesquisa.

Neorrealismo o semidocumentrio

O neorrealismo foi uma resposta s limitaes da indstria italiana de realizar


produes cinematogrficas durante e logo depois da Segunda Guerra Mundial. Seus filmes
recorriam a argumentos episdicos e a um estilo semidocumental, com uso de locaes e de
atores amadores ao lado de profissionais (BERGMAN, 2010). Em uma Itlia destruda pela
guerra, o neorrealismo, vem contra o cinema hegemnico, que na Itlia eram chamados de
filmes Telefono Bianco (Telefone Branco) os quais, na dcada de 1930, procuravam ao
mximo realizar cpias dos filmes hollywwodianos com temas da vida burguesa.
(BERGMAN, 2010).
Com a exibio do filme Roma Cidade Aberta, em 1945, o cinema passa a ocupar
um papel de destaque na cultura italiana do aps-guerra. O protagonista desse renascimento
cinematogrfico o neorrealismo. (FABRIS, 1996). Um cinema poltico que pretende
causar em seu pblico a reflexo sobre o sistema de governo sob o qual estavam sendo
regidos. Esse filme de fico a princpio estava destinado a ser um documentrio. Rossellini
se inspirou em suas prprias experincias enquanto se escondia das patrulhas nazistas que
procuravam jovens italianos para obrig-los a lutar pelo fascismo. (KEMP, 2011).
O neorrealismo alcana um considervel espao no universo cinematogrfico. Nos
anos 1940, o neorrealismo tornou-se uma influncia na ndia (Ray), no Egito (Chahine) e
em toda a Amrica Latina (Nelson Pereira dos Santos e Fernando Biriri). (SHOAT, Ella
STAM, 2005: p. 394). Na dcada de 1950 esse movimento perde a fora, mas suas
ramificaes podem ser percebidas at os tempos atuais. O filme Csar deve morrer um
claro exemplo disso.
O Shakespeare Neorrealista
Na acepo de Kristeva (1969-2005), todo texto a absoro e transformao de outro texto
e seu significado vai alm da simples escrita.
Em outros termos, a problemtica especfica da escritura destaca-se
totalmente do mito e da representao para pensar-se em sua literalidade e
espao. A prtica deve ser definida ao nvel do texto, na medida em que esta
palavra remete, daqui para diante, a uma funo que entretanto, a escritura
no exprime, mas da qual dispe. Economia dramtica, cujo lugar
geomtrico no representvel (ele se pratica). (KRISTEVA, 1969-2005,
p.45)

Essa prtica o que se pretende analisar aqui, com o cruzamento de diferentes textos,
presentes em uma mesma obra. O filme Csar deve morrer feito na priso de segurana

mxima de Rebibbia, Roma, com um grupo de prisioneiros selecionados para encenar a


pea Jlio Csar, de William Shakespeare, uma representao que em alguns momentos
possui grande enfoque no teatro, mesclando documentrio e por fim a fico. O espectador,
frente a tudo isso, no sabe com certeza, em alguns momentos, em qual caminho est
pisando, ou seja, se o que est sendo representado um documentrio ou uma fico. A
abordagem permeia temas que narram sobre morte, liberdade, vingana, presentes no texto
de Shakespeare, mas que se misturam vida dos prprios prisioneiros e respectivos atores
do filme.
A escolha de Jlio Csar, feita pelos irmos Taviani, no apenas
adequada por ser, nas palavras de Vittorio, uma histria italiana, uma
histria romana, uma histria que parte da imaginao coletiva do povo
italiano. Sendo encenada por presos cumprindo sentenas por
assassinatos e trfico, relacionados Mfia e Camorra, no presdio de
segurana mxima de Rebibbia, em Roma, os atores tm experincia de
vida comum a dos personagens, permeada por traio, conspirao, culpa
e amizade. Para completar, formam uma galeria fascinante de tipos
humanos, difcil de encontrar entre atores profissionais. (ESCOREL,
2012, p.2)

E essas representaes, em sua maioria, acontecem dentro do presdio, em


corredores, celas e ptios, momentos que teoricamente seriam os ensaios, mas que na
verdade se tornam o prprio filme. A apropriao de espaos no convencionais nesse filme
estabelece um dilogo entre o cinema e o teatro, no momento em que os atores
representam/encenam um ensaio nos corredores do presdio, simulando estarem no palco,
trabalham a diegese de forma diversa ao cinema hegemnico. A diegese pode ser solapada,
inversamente, todas as vezes em que aparecem sinais de que se trata de um discurso
construdo: o que acontece no teatro de Brecht, no cinema experimental, no descompasso
de som e imagem de filmes de Godart [...] (COSTA, 1995-2005: p. 32). A linguagem
desenvolvida em Csar deve morrer causa um distanciamento, induz a uma reflexo, no
apenas da condio carcerria, mas da condio humana, suscitada pela obra teatral de
Shakespeare, a qual permanece atual, e pelo espao cnico selecionado, o qual suscita as
teorias do terico teatral Bertolt Brecht. A interrupo da ao, que levou Brecht a
caracterizar seu teatro como pico, combate sistematicamente qualquer iluso por parte do
pblico. (BENJAMIN, 1987, p.133) Esse tipo de teatro pretende trabalhar as realidades do
mundo, como no filme dos irmos Taviani, o dilogo entre as duas linguagens acontece
aqui, cinema e teatro estabelecem um propsito em comum, o intuito no trazer os
elementos cnicos para perto do espectador e sim afastadas dele, para com isso causar um

estranhamento no pblico que o direcione a uma percepo do universo no qual se encontra


inserido.
Esse direcionamento resulta em outro fator, os irmos Taviani se apresentam como
autores produtores, segundo os preceitos de Walter Benjamin (1987), alm da esttica
diferenciada do filme, proporcionada por diversos fatores, entre eles a encenao dentro da
encenao, prisioneiros representando Shakespeare, em forma de ensaio, dentro de suas
prprias celas. Os cineastas se colocam ao lado do proletariado que nesse caso seriam os
prisioneiros. Os produtores do filme no condenam nem defendem os infratores, eles vo
alm, defendem que a arte pode ser no apenas consumida, mas produzida em todas as
esferas sociais. Uma arte responsvel, com refinada esttica e cunho poltico. Benjamin
afirma que Brecht criou o conceito de refuncionalizao para caracterizar a
transformao de formas e instrumentos de produo por uma inteligncia progressista e,
portanto, interessada na liberao dos meios de produo, a servio da luta de classes.
(BENJAMIN,1987, p. 127). Brecht acreditava que era de suma importncia abastecer o
aparelho de produo, ao mesmo tempo que o modificava
Os irmos Taviane no julgam seus participantes, na seleo dos atores, no
selecionaram os presos de acordo com o tempo de deteno, dando preferncia aos
detentores de penas leves. A escolha foi ecltica, desde ladres a assassinos, inclusive com
priso perptua. O foco demonstrar que a arte pode transformar o meio. Como afirma
Brecht, citado por Benjamin. (...) certos trabalhos no devem mais corresponder a
experincias individuais, com o carter de obras, e sim visar utilizao (reestruturao) de
certos institutos e instituies. (BRECHT apud BENJAMIN, 1987, p. 127) O trabalho
desenvolvido em Csar deve morrer alcana essa reestruturao, enquanto estariam
ociosos, caso no estivessem participando do filme, eles tiveram a oportunidade de estudar,
atuar e desenvolver novas formas de interao e relacionamento. E se esse fosse um projeto
contnuo em todos os presdios, qual seria o alcance dessa refuncionalizao?
A imagem a seguir demonstra com maior clareza a proposta dos diretores do filme,
em um espao sem nenhum cenrio adicional, somente o presdio, o elenco com seus
uniformes de detentos, apenas o ator que encena Csar est caracterizado, envolto em um
lenol presumidamente improvisado. Os nicos adereos, espadas de plstico presas na
cinta dos atores, finalizam a composio da cena.

Ptio do presidio, os prisioneiros de Rebbibia, encenam/ensaiam a cena em que Csar ser morto.

A cena em que Csar morto se desenvolve no ptio da priso, a qual seria um


suposto ensaio da pea de teatro. As falas de Shakespeare, representadas naquele espao,
por aqueles atores no convencionais e ainda tendo ao fundo vrios prisioneiros gritando,
de dentro de suas celas, morte a Csar, uma situao extremamente conflitante. Seria um
daqueles momentos em que o espectador se perde e procura, sem muito sucesso, encontrar
uma referncia. Esse estranhamento, obviamente proposital, um dos pontos de maior
destaque no filme. As indagaes ficam evidentes: est se vendo um documentrio sobre
presos representando Shakespeare? Uma pea de teatro e o seu ensaio? Um filme de fico?
A resposta seria sim para as trs perguntas, linguagens que em sua intertextualidade
formam um cinema de opacidade. Dificilmente poderia se dizer que essa obra, indita em
sua estrutura, provm de dois cineastas octogenrios e um dos precursores do cinema
neorrealista italiano.
Outra caracterstica desse perodo presente no filme a preservao dos dialetos
italianos. Os dialetos, considerados pelo fascismo como uma fora desagregadora da
almejada unidade lingustica nacional, haviam sido praticamente banido das telas.
(FABRIS. 1996 p. 71). E o neorrealismo o retoma, em uma cena de Csar deve morrer em
que os presos participam do seu primeiro ensaio, o diretor da pea de teatro pede para que
os atores mantenham o seu dialeto na encenao, uma clara referncia ao neorrealismo, e a
crtica poltica e social a que esse cinema se prope. A escolha do preto e branco na maioria

das cenas outra meno a esse movimento, o colorido aparece somente fora das celas, ou
na parte final do filme quando os atores esto no palco, e a pea est teoricamente pronta. O
pblico presente so os familiares dos presos.

O Processo de Manipulao
A cena final, que retrata a morte do personagem Brutus, arrependido por ter
contribudo no assassinato de seu amigo Csar, outra cena passvel de vrias
interpretaes: no olhar do ator fica a dvida se estamos vendo somente uma boa
representao ou se o ator expressando o arrependimento de seus atos em vida real que o
levaram a atual situao em que se encontra, ou seja, um prisioneiro.
O real e a fico dialogam constantemente, o encaminhamento selecionado pelos
cineastas possibilitam essa interao. A fotografia impressa na pelcula se mantm
inalterada, sem manipulao. Aqui a manipulao se refere ao termo discorrido por
Santaela, a autora afirma:

Na fotografia e no cinema, o corpo aparece como vestgio analgico de photons que se


inscrevem nas superfcies de filmes. Mais um passo se deu com a videografia, registro
eletrnico ao vivo, em tempo real. Mas esse corpo ainda analgico e, sob o olho
mecnico da cmera, mantm suas qualidades espaciais e temporais na sua inscrio
luminosa. Ao serem colocados em bancos de dados de memrias eletrnicas, esses
corpos eletrnicos passaram a ser manipulados infinitamente em mesas e menus de
processamento, adquirindo uma existncia sinttica muito diversa da natureza
analgica que os fixa em fotogramas de natureza qumica. O corpo convertido em
gros de pixels torna-se informao e pode ser metamorfoseado por meio de efeitos
especiais de botes e comandos. (SANTAELA, p. 91)

Esse corpo convertido em pixels torna-se o contedo, e apesar de seu ponto de


partida ainda ser um corpo mimtico, a meu ver ele perde sua identidade, j que resulta na
forma pela forma, mas que no transcende em contedo posto que o contedo a prpria
forma. No meio de tanta tecnologia, o que parece rudimentar, muitas vezes o que
transcende, e o que deveria transcender se torna rudimentar. O filme Csar deve morrer
seria um exemplo disso, sem se ater a gama de possibilidades tecnolgicas disponveis
atualmente, oferece a imagem a seguir, como em todo o resto do filme, na verso que foi
impressa, um momento peculiar, os atores no final de um longo trabalho de mais de seis
meses, o que vemos aqui vai alm da interpretao dramtica. A legitimidade presente um
dos destaques da cena.

10

Os atores (prisioneiros) no palco no final da representao da pea Jlio Csar,


texto de Willian Shakespeare.

No se pretende desmerecer o texto de Santaela, posto que suas colocaes e


exposies possuem extrema acuidade, o que se discute o vis que muitos artistas
oferecem arte e tecnologia, que em determinados momentos se atm mais ao aparato,
esquecendo-se de seu fim. A importncia da arte no apenas como esttica, mas tambm
como transformadora, ou ainda reestruturante, segundo os preceitos de Brecht.
Essa reestruturao pode ser vista ao final do filme do corpus, o qual termina com a
encenao no palco da pea Julio Csar de Shakespeare, a cena da morte de Brutus
produzida com larga utilizao da linguagem teatral. Encerra com os aplausos do pblico
presente no teatro, o agradecimento alegre dos prisioneiros/atores em pelcula colorida e por
fim a volta solitria de cada um as frias celas com o retorno da filmagem em preto e branco.
Um contraste entre os dois mundos, que conduz o espectador a refletir sobre sua prpria
condio.

Concluso
O teatro e o cinema possuem limites bastante distintos, por isso a afirmao de uma
intertextualidade, que ao longo do trabalho foram percebidos como possveis dilogos. Essa
dualidade pode acontecer sem tornar o filme, que dela se apropria, rudimentar, no momento
que rompe com certos padres presentes no cinema hegemnico, ao aplicar em sua

11

estrutura diferentes relaes entre contedo e obra/filme; arquitetura e encenao. O


primeiro cinema cinema de atrao, visto por alguns como um mero teatro filmado, de
forma a parecer se tratar de algo menor, serviu como ponto de partida para a grande
evoluo da linguagem cinematogrfica. Passado um longo perodo, foi possvel perceber
que essa expanso contnua aconteceu atravs de vrios elementos e um deles ainda pode
ser o teatro. Esse recurso visual e narrativo contribui para desenvolver conceitos novos
dentro da filmografia vigente. Os irmos Taviani alcanam esse mrito, pois ao se apoiarem
nas Artes Cnicas, selecionam a obra de um dramaturgo que referncia no teatro mundial,
abordam um tema que faz parte da histria italiana e no meio disso, ainda nomeiam um
espao, no mnimo atpico, para produzirem o seu filme. O social e poltico, presentes na
obra, se oferecem em forma de distanciamento, com o intuito de proporcionar uma reflexo.
O chamado cinema de opacidade, termo criado por Ismail Xavier (2005), o qual seria como
uma tela opaca, diferente de uma janela transparente que tudo que visto atravs dela
parece real, a tela opaca incomoda, distorce e provoca a um pensar. Esse pensar no seria
apenas como forma de reflexo filosfica, mas uma ponderao que auxilia, incentiva a
uma mudana de atitudes, frente ao mundo no qual o espectador encontra-se inserido.
Acredita-se que o filme, Csar deve morrer, que bebe grande poro da linguagem teatral,
consegue realizar a arte a que se prope e trilha um caminho diverso, quando no oposto, ao
cinema hegemnico. Ao mesmo tempo em que oferece um novo olhar linguagem
cinematogrfica proporciona uma reestruturao no tempo e espao escolhidos.

12

Verbetes
Opacidade e Transparncia: Quando o dispositivo ocultado, em favor de um ganho
maior de ilusionismo, a operao se diz de transparncia. Quando o dispositivo revelado
ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento e crtica, a operao se diz de
opacidade. (XAVIER. Ismail, O Discurso Cinematogrfico A opacidade e a
transparncia. So Paulo. Editora Paz e Terra. 2005. p. 06).

Primeiro Cinema: filmes e prticas a eles correlatadas surgidos no perodo que os


historiadores costumam localizar, entre 1894 e 1908. Traduzimos como primeiro cinema a
expresso inglesa early cinema. (COSTA, Flvia Cesarino. O primeiro cinema: Espetculo,
narrao, domesticao. Rio de Janeiro. Editora Azougue, 1995-2005. P. 34)

Cinema de atraes: (...) um cinema que se baseia na (...) sua habilidade de mostrar
alguma coisa. Em contraste com o aspecto voyeurista do cinema narrativo(...) este um
cinema exibicionista. (...) que representa esta relao diferente que o cinema de atraes
constri com seu espectador: as frequentes olhadas que os atores do na direo da cmera.
Esta relao, que mais tarde considerada como um entrave iluso realista do cinema,
aqui executada enfaticamente, estabelecendo contato com a audincia. (COSTA, Flvia
Cesarino. O primeiro cinema: Espetculo, narrao, domesticao. Rio de Janeiro. Editora
Azougue, 1995-2005. p. 52)

13

REFERNCIAS
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BERGAN, Ronald. ...ismos para entender o cinema. 1 edio. So Paulo: Globo, 2011.
BRECHT, Bertolt. Teatro dialtico ensaios. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
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Introduo

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XAVIER, Ismail. (org.). A experincia do cinema: antologia. 2 ed. rev. aum. Rio de
Janeiro: Edies Graal/Embrafilme, 1991.
______________ O Discurso Cinematogrfico A opacidade e a transparncia. So
Paulo. Editora Paz e Terra. 2005.

DOCUMENTO ELETRNICO
ESCOREL, Eduardo. Questes cinematogrficas. So Paulo. 2012. Disponvel em:
http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/cesar-deve-morrer.
Acesso em: 28/11/13.

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FILMOGRAFIA
CSAR deve morrer. Direo: Paolo Taviane e Vittorio Taviane.. Itlia, 2012. DVD (76
min.) son., color. Elenco: Cosimo Rega, Salvatore Striano, Giovanni Arcuri, Antonio
Frasca, Juan Dario Bonetti, Vincenzo Gallo, Rosario Majorana, Francesco De Masi
Gennaro Solito, Vittorio Parrella

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