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INSTITUTO DE ARTES
Mestrado em Artes
NTOS
A I
RA
J
DOWLAN PARA ALAUDE
(COM ENFASE NAS PAVANAS E GALHARDAS)
SILVANA SCARINCI
PINAS -1998
Sca73e
Scarinci, Silvana
Elementos para a interpreta9ao da obra de John
Do'-lllland para alaude: (com enfase nas pavanas e
gall1ardas) I Silvana Scarinci. -- Campinas, SP : [s.n.],
1998.
Orientador : Helena Jank.
Disserta9ao (mestrado)- Universidade Estadual de
Carnpinas, lnstituto de Artes.
1. Dowland, John, 1563?-1626. 2. Musica barroca.
3. Alaude. 4. Musica para alaude. 5. Musica e ret6rica.
I.
ank, Helena. II. Universidade Estadual de Campinas.
lnst: ituto de Artes. Ill. Titulo.
Apoio: FAPESP
CAMPINAS- 1998
III
A FAPESP cujo apoio foi fundamental para a realiza<;ao deste trabalho durante
dois anos e meio.
A FAEP que apoiou-me para a conclusao deste trabalho durante urn mes.
IV
RESUMO
a chamada
v
A ret6rica e a ornamentac;ao sao elementos fundamentais para a boa
interpretac;ao da musica de Dowland e sao amplamente discutidos nos dais
ultimos capitulos da dissertac;ao.
VI
iNDICE
lntroduc;ao ............................................................................................................ 1
Capitulo I- lnterpreta<;ao hist6rica: contribui<;6es e limites ................................. 9
Capitulo II - 0 instrumento: ...............................................................................32
1. A Nota<;ao
2. Aspectos Tecnicos
Capitulo Ill - Os
INTRODU<;AO
Executar a obra para alaude solo de John Dowland nao e tarefa facil. Um
dos compositores mais proficuos do perlodo elizabetano, Dowland compunha
para seu instrumento sem poupar enormes dificuldades tecnicas. Para superalas e alcan<;ar um nivel tecnico satisfat6rio, ou mesmo quando ja superadas tais
barreiras, o dever do interprete sera o de dominar um universe complexo de
questoes que se estendem por territories amplos e muito discutidos na area da
interpreta<;ao hist6rica. Este e um terrene acidentado e aberto a ampla
discussao. Talvez em nenhum outro memento da hist6ria da musica, a
interpreta<;ao tenha refletido tanto sobre si mesma, tornando-se tao auto
consciente. A musica antiga nao e apenas
interpretada, ela e
discutida e
revista dia ap6s dia, numa constante mudan<;a de conceitos, desde que o
movimento de reconstru<;ao hist6rica ensaiou seus primeiros passos no inicio
deste seculo. A figura do interprete de musica antiga liga-se ao do arque61ogo
escavando as ruinas do passado, mas mesmo consciente desta artificialidade
arqueol6gica, o resultado atingido pelos interpretes modernos tern sido na
maioria
dos
casas
revitalizante,
revestindo
de
frescor
aparente
com a obra de
2
a toca-la da forma mais autentica possivel, colocou-me diante de diversos
desafios. Passo a passo dispus-me a enfrenta-los, como numa longa viagem a
urn Iugar desconhecido - com a surpresa e emo((ao da descoberta de novos
universos, e com a disposi((ao de urn jovem marinheiro, com a pena e o diario
de bordo as maos para relatar os ricos detalhes de suas experiencias ao voltar
para casa. Porem a casa nunca mais sera a mesma - a viagem e uma odisseia
que nao leva Ulisses de volta para seu universo familiar: a musica antiga e o
mundo novo que seduz e fascina os forasteiros, e os faz esquecer o caminho
de volta.
lnterpretar a obra de John Dowland, revelou-se uma experiencia unica e
apaixonante. 0
e semelhante
percorreram (como Nigel North, Paul O'Dette, Hopkinson Smith, etc). Esta
disserta9ao
poderc~
ser lida urn pouco como urn relata desta viagem, ou urn
manual de instru((6es ou reflex6es para o instrumentista que desejar aventurarse pelo mundo do alaude. No Brasil, com a limita((ao de informa((6es a este
respeito, considero estar colaborando modestamente neste sentido: espero que
trabalho possa ser util para alguns outros solitarios exploradores que
3
partam
antiga.
repert6rio barroco do final do seculo passado, surgiu um personagem inovador Arnold Dolmetsch (nascido em 1858) que tentou recriar a antiga musica inglesa
para violas. De tal estatura e importancia no renascimento de instrumentos
antigos, devemos lembrar tambem Wanda Landowska, a primeira interprete de
cravo deste seculo. Depois deste inicio revolucionario, o movimento ganhou
cada vez maior numero de adeptos e a profusao de instrumentos antigos
produzidos e interpretes dispostos a toea-los tomou conta da Europa e mais
tarde dos Estados Unidos (sempre com alguns reflexos mais palidos em nosso
continente ). 0 resultado e que hoje escutar musica antiga de forma "autentica"
passou a ser quase obrigagao em um mercado exigente de qualidade e
novidade. A questao de autenticidade, no entanto, e uma discussao que levanto
neste capitulo, tratando a interpretagao hist6rica da mesma forma como a
tradw1ao
pode ser vista como aquela do tradutor com a tradugao de um texto que nao lhe
pertence. Quando um interprete ou tradutor le/re-le/interpreta uma obra, ele se
4
reapropria deste texto como se fosse seu, e cria um novo texto, uma obra jamais
antes ouvida ou executada. Neste plano, o interprete e tambem um
criador,
5
Morley, Gibbons e Bird, entre outros. Foi um periodo extremamente aberto para
a cultura do continente, principalmente a francesa e italiana, e como estas,
utilizando 0
persuasiva, da luz
poder da
a civilizac;ao.
musica aliada
palavra,
magicamente
todo musico ou menino que recebe qualquer tipo de educac;ao mais elevada.
Dowland
dominava
ret6rica
conhecia
seus
poderes
utilizava-se
conscientemente dela para seduzir e manipular seu publico. Sua musica ora
joga o espectador na mais profunda angustia diante do desespero do exilio ou
da morte, ou lanc;a-o na mais obscura melancolia. Os bi6grafos tradicionais de
John Dowland retratam-no como um profundo melanc61ico.
A musica de
6
Para interpretarmos a obra de Dowland, e necessaria conhecer um pouco
da dan9a hist6rica, uma area ainda menos desenvolvida que a performance
musical hist6rica, pois em dan9a poucos tratados de epoca sobrevivem- e ainda
uma nota9ao precisa dos passos de dan9a ate hoje nao se desenvolveu
plenamente. Baseei-me neste capitulo na obra mais importante do seculo XVI
sobre dan(fa. Trata-se da Orcheseographie de Thoinot Arbeau. A hist6ria das
Pavanas e Galhardas e descrito pelo autor, e o tratado e extremamente claro
em suas descri96es de tais dan9as: com um pouco de pacimcia, podemos hoje
reconstruir com certa facilidade os passos das nobres e pomposas Pavanas e
das leves e virtuoslsticas Galhardas. 0 conhecimento destas dan9as, porem,
deve ser feito com certa cautela. As Pavanas e Galhardas de John Dowland
estao varios passos alem da musica simplesmente feita para dan9ar. Dowland
e um autor extremamente sofisticado, plenamente consciente de sua condi9ao sua musica vai alem de uma fun<fao de simples entretenimento, e a musica
sobre a musica. Os ouvintes da epoca de Dowland estavam familiarizados com
estas formas de dan<;as, e ouvi-las remetia-os a urn universo muito familiar.
em meu
7
se com dois fatores fundamentais para a interpretac;ao hist6rica da musica de
John Dowland. 0 uso da ret6rica em Dowland e a ornamentac;ao de sua obra.
A musica de Dowland, mesmo em sua versao puramente instrumental,
"fala", expressa paixoes e provoca tantos afetos nos ouvintes quanta Orpheu ao
mover montanhas e acalmar as feras. 0 interprete moderno devera entrar em
contato com a arte da persuac;ao (Ret6rica), e saber como extrair da musica
todos os significados que "maravilhosamente emocionam, mexem, provocam e
inflamam a mente dos ouvintes". 1
Scott Mitchell Pauley desenvolveu urn metoda para a interpretac;ao
ret6rica das canc;oes de Dowland. Avanc;ando urn pouco nesta ideia, sugiro que
o interprete devera pensar na obra solo como se proveniente de urn texto - e
este texto devera ser "cantado" pelo alaudista, provocando os mesmos affetos
que as canc;oes provocam com suas palavras.
Encerro a dissertac;ao com urn elemento de interpretac;ao fundamental
para os interpretes de toda a musica do periodo elizabetano: ornamentac;ao.
como pode- Utilizei-me de uma fonte historicamente apropriada para desvendar
o uso de ornamentos em Dowland: o Musick's Monument de Thomas Mace de
1676. Conclui com a realizac;ao da ornamentac;ao desta Pavana (Lachrimae)
realizada a quatro maos com o alaudista ingles Nigel North.
Em Dowland,
8
apresentar algumas regras de como criar suas pr6prias divisions dentro do estilo
de Dowland, apresentando no final uma versao (realizada tambem a quatro
maos com Nigel North) de divisions para a ultima parte da Pavana Resolution.
CAPiTULO I
INTERPRETA<;Ao HISTORICA: CONTRIBUI<;OES E LIMITES.
"hist6ricamente
correta".
10
musica original, uma nova composigao. As interpretag6es de musica antiga de
entao baseavam-se no pressuposto de que aquela musica encontrava-se
esteticamente ultrapassada, e tentava seduzir o publico com suas vers6es
sinf6nicas, vers6es que hoje seriam pouco aceitas por urn publico familiarizado
com a performance hist6rica. Usava urn artificio historicamente deslocado, nao
fosse o valor em tentar ressuscitar esta musica ha tanto tempo esquecida.
Dolmetsh teve a "visao profetica de que o prazer de escutar Bach desta forma
poderia ser magnifico, mas nao era Bach - e que a musica antiga, familiar ou
nao, tornava-se ainda mais magnifica em suas sonoridades pr6prias". 1 Suas
performances por muitos anos eram acompanhadas de discursos exacerbados,
por se sentir incompreendido em suas execug6es de musica em instrumentos
originais.
Nao podemos esquecer, tampouco, os esforgos de Wanda Landowska
(Vars6via, 1879 - Connecticut, 1959), a primeira interprete do cravo neste
seculo. Em sua formagao como pianista ja apresentava grande entusiasmo pela
obra de Bach. Sob o apoio e influencia de seu companheiro Henry Lew, uma
autoridade em folclore hebraico, Landowska passou a pesquisar profundamente
a musica do s<:kulo 17 e 18. Em 1903 apresentou-se pela primeira vez em
publico tocando cravo e em 1909 publicou seu livro Musique ancienne. Logo
ap6s a primeira guerra, tocou continuo na Paixao segundo Sao Mateus,
executado no cravo pela primeira vez no seculo XX.
. 1925, instalou-se em
11
St-Leu-la-Foret, ao norte de Paris, onde fundou sua Ecole de Musique Ancienne
atraindo alunos de todo o mundo. Com a invasao dos nazistas durante a II
Guerra, viu-se obrigada a abandonar sua escola, deixando para tras uma
biblioteca de 10.000 volumes e sua colec;ao de instrumentos. Viveu o resto de
sua vida nos Estados Unidos, formando grandes cravistas e divulgando com
enorme sucesso seu instrumento 2 .
a guerra.
12
cita alguns grandes interpretes do periodo, como Safford Cape (musica
medieval e renascentista), Noah Greenberg (conjunto New York Pro Musica).
David Munrow e, mais tarde Paul Grummer (gamba), August Wenzinger,
Nikolaus Harnoncourt, e finalmente Gustav Leonhardt. Dai em diante, ja
estamos falando de interpretes bern mais recentes, tanto pela idade como pela
facilidade de acesso em termos de gravac;oes ou mesmo performances.
13
Para uma reflexao mais profunda sabre a questao da autenticidade,
necessitamos recorrer a outros campos do conhecimento, alem da musicologia
tradicional.
a epoca
a relac;ao
traduc;ao, sempre surge a mesma questao: 0 que deve ser mais importante, a
versao literaria ou a versao literal? E o tradutor, devera expressar o sentido do
original em qualquer estilo que lhe agradar?
Nikolaus Harnoncourt, 0 discurso dos sons. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1984.
14
Segundo George Steiner4 , a teoria da traduc;ao divide-se, desde o seculo
XVII em tres classes: a primeira compreende a traduc;ao como literalidade
absoluta, palavra ap6s palavra, elas devem se equivaler no original e no novo
texto. Na segunda classe, o tradutor
mantE~m-se
interessara
performance
musical
uma
nova
criac;ao,
pois
nenhuma
interpretac;ao pode ser repetida da mesma forma. A linguagem, seja ela musical
ou nao, e naturalmente criativa, pois torna-se irreproduzfvel no simples ato de
manifestar-se. Nao ha como repetir algo sem modificar seu conteudo, as
mesmas palavras ditas por pessoas diferentes, terao sentidos diferentes.
lnterpretes da mesma obra executarao obras distintas. Ao mesmo tempo que a
performance conserva, reproduz o original, modifica-o. A musica no papel e urn
15
corpo sem vida enterrada no passado, o interprete a ressuscita impregnando-a
de nova paternidade, em seu novo tempo e espa<;o.
Ao interprete de musica antiga - ou qualquer musica, enfim - exige-se,
comumente, que se mantenha fiel ao autor (texto original) que interpreta. Esta
parece ser uma fic<;ao, pois
Rosemary Arrojo, Traduqao. desconstruqao e psicanalise, Rio de Janeiro, Imago editora, 993.
16
significados jamais sonhados por um europeu. Quando um tradutor!interprete
entra em contato com um texto e o traz novamente
a vida,
e inerente a
ibidem
17
Quando executamos atualmente musica historica, nao podemos faze-lo
como os nossos predecessores das grandes epocas. Perdemos aquela
espontaneidade que nos teria permitido recria-la na epoca atual; a
vontade do compositor e para nos autoridade suprema; encaramos a
musica antiga como tal, em sua propria epoca, e nos esfor<;amos para
recria-la de maneira autentica, nao por motivos historicos, mas porque
isso nos parece, hoje, o unico caminho verdadeiro para executa-la de
forma viva e digna. Mas uma
concep~ao
execu~ao
do compositor no momenta da
composi~ao.
Sabemos
que isto e passive!, mas ate certo ponto: a ideia original de uma obra
deixa-se apenas adivinhar, sobretudo quando se trata de musica muito
distante de nosso tempo. Os indicios que nos revelam a vontade do
compositor se resumem nas indica<;oes referentes
execu<;ao, na
naturalmente do
conhecimentos.
musica
E assim
antiga
de
acordo
apenas
com
nossos
que vemos por ai: quase sempre irreprensiveis historicamente, mas que
carecem de vida.
E preferivel
Nikolaus Harnoncourt, 0 discurso dos sons, Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1988.
18
ornamenta9ao,
dedilhado,
etc.
Mas
termo
nao
sera
Richard Taruskin, ''The authenticity movement can become a positivistic purgatory, literalistic
and dehumanizing" em
Music, fevereiro 1984.
19
restrito a tais questoes acabara transformando sua musica nos "guinchos de um
papagaio, na conversinha de macacos, numa profanagao dos mortos" 9 . Tocar
numa reprodw;ao exata de um alaude da epoca de Dowland, lendo diretamente
dos manuscritos do autor, utilizando-se da tecnica descrita em manuais antigos,
nao vai assegurar nem autenticidade, muito menos uma interpretagao de
qualidade. 0 estranhamento do instrumento e da tecnica particular da epoca
podera ser um gatilho para novas ideias, para o rompimento com a velha rotina,
para o enriquecimento da interpretagao. 0 que se deve buscar e a surpresa da
novidade, uma sensagao de ter-se encontrado algo de novo, nunca antes visto
naquelas velhas paisagens. Entao sim, poder tocar esta musica com convicgao
e autenticidade.
20
musica, e quase urn territ6rio proibido, como se "algo terrivelmente importante
estivesse sendo escondido pela profissao" 10 do musico ou music61ogo. No
barroco esta questao nao era o tabu que se tornou com o passar dos anos - a
busca de significado em musica era uma preocupa9ao constante, a musica
passou a "falar'', e sua eloquencia era pensada sistematicamente. Urn exemplo
disto e Mattheson e seus textos sobre a expressao dos afetos (esta baseada em
Decartes) nos quais tenta enumerar todos os possiveis efeitos das figuras
musicals
11
uma coopera9ao mais profunda entre a palavra e a musica; que ambas as artes
pudessem provocar paix6es ou afetos, dos quais falara mais tarde Mattheson.
Os italianos rompiam com as leis do antigo contraponto, "sem deixar-se levar
10
11
21
deriva, como um mau nadador, que se deixa ser carregado para Ionge de seu
caminho, ... pois assim como a alma e mais nobre que o corpo, tambem as
palavras sao mais nobres que o contraponto." Dowland situa-se na passagem
da modalidade para a tonalidade, quando a pratica antiga torna-se insuficiente
na arte de mover paixoes, de seduzir o ouvinte 12 . Suas cang6es ja apresentam
algumas preocupag6es tipicas do barroco, como a utilizagao do word painting, a
musica colocada a servigo do texto e nao o contrario, quando as palavras
perdiam seu
aristotelica de mimesis, o word painting foi urn dispositive usado com o intuito
especffico de criar densidade psicol6gica para as palavras. Na cangao de
Dowland, If
Galharda
12
ibidem.
22
live.
surge
uma
uma
melodia
diat6nica
ascendente
(la-si-do-re),
para
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a
a
24
impregnado
de
significado
nao
podemos
interpreta-la
sem
13
25
Tomemos o exemplo de Paul O'Dette interpretando The King of Denmark's
Galliard. 14 Trata-se de uma long a Galharda que pertence a urn tipo de pe<;as
conhecidas como Battles ou "batalhas". Sua origem esta em duas pe<;as de
Jannequin, La Guerre e La Batail/e que ganharam enorme popularidade e
passaram a ser arranjadas para diversos instrumentos. As pe<;as originais de
Jannequin usam artiflcios para imitar uma batalha atraves de sons e palavras
onomatopeicas. A Galharda de Dowland nao e uma referencia direta
a obra
de
14
Harmonia
1996
26
Segundo Paul O'Dette e Robert Spencer15 , o patrao de Dowland,
Christian IV, Rei da Dinamarca, nao foi muito bern sucedido em batalha. Este
brilhante interprete/tradutor impregna a pega de impiedosa zombaria (nao em
relagao a Dowland obviamente, mas ao proprio "homenageado" da pega, o Rei).
Atraves de uma elaboradissima ornamentagao, O'Dette cria sua forte versao,
pontilhada de "brincadeiras" como:
----
15
Robert Spencer, prefacio ao CD de Paul O'Dette; John Dowland, complete lute works. vol. 3.
Harmonia Mundi, 1996,
27
para encerrar a pec;;a com um quase excentrico desrespeito:
28
a solidao
a formaliza<;ao,
29
reflexao sobre tradw;ao, nao invalida o que hoje se conhece como interpreta<;ao
hist6rica. Novos timbres, novos fraseados, articula<;6es, ornamentos - um
verdadeiro cEmone de interpreta<;ao - vieram se contrapor a velhos maneirismos
de interpreta<;ao. Talvez o que se considera hoje uma interpreta<;ao hist6rica
correta, venha a se tornar obsoleta em trinta anos.
E importante
notar, no
entanto, que interpretes fortes estarao sempre fazendo leituras fortes de obras
musicais. Nao ha como negar o valor de um Glenn Gould tocando Bach, por
mais que sua interpreta<;ao seja inaut{mtica
e idiossincratica. 0 trabalho de
pesquisa e necessaria para o interprete de musica antiga, mas nao pode ser
limitante em sua literaridade. Pausas com dura<;6es absolutamente corretas,
ataques, fraseados e ornamentos - todos perfeitamente embasados na pesquisa
hist6rica - nao podem se transformar numa camisa de for<;as para o interprete
moderno. Estas pesquisas precisam ser um meio e nao um fim em si mesmo um meio liberador, inspirador de novas possibilidades, de onde emerja o frescor
de uma musica jamais antes escutada.
a elabora<;ao
e o
30
artesanato da consciencia; diferentes linguagens se sucedem e se sobrepoem
umas as outras, num dialogo infinito, produzindo diversidade no espa<;o e no
tempo mas sem jamais se anular em sua sucessao hist6rica. Nao existe uma
evolu<;ao hist6rica no sentido cientifico em musica: Boulez nao e melhor que
Beethoven que nao e melhor que Bach que nao e melhor que Palestrina.
Respondemos a todas as musicas de forma aut6noma: o que vibra dentro de
n6s e a compreensao de urn sentido quase arquetipico da linguagem musical
(mesmo se filtrado por uma media<;ao cultural).
Para uma interpreta<;ao tornar-se valida, existem algumas delimita<;6es
cujos parametros estao ligados ao que se costuma chamar de estilo. Na opiniao
de Robert Donigton, "mais alem destes limites, nos falta a experiencia genuina
da musica, e encontramos apenas uma falsifica<;ao plausivel. Pois nesta
escuridao exterior, vale qualquer coisa" 17 . Encontra-se ai urn certo radicalismo
que poderia ser aplicado as primeiras
31
para o outro interprete. Este trabalho pretende levantar o maximo de questoes
que
Alem de todas as
de Dowland.
poucos
escolhidos
as
Musas
permitirao
acesso.
CAPiTULO II
0 1:\STRUMENTO
1. A NOTACAO NO ALAUDE
Nem mesmo
detalhes
mais
minuciosamente
apresentados
pode
refletir
as
intengoes
questao de
Frederick Dorian, The History of Music in Performance, W. W. Norton & Company Inc., New
York, 1966.
33
instrumentistas que nao conhecem tablatura. Este e o caso da edi9ao de Diana
Poulton da obra de John Dowland - todas as pe9as aparecem em dupla
nota9ao: o pentagrama acima, acompanhado da tablatura por baixo.
0 sistema de tablatura e conhecido desde o come9o do seculo XIV e em muitos
aspectos era mais elaborada do que a nota9ao em pentagrama, apresentando
varios simbolos que s6 serao adotados pelo pentagrama muito tempo depois.
As tablaturas de alaude, por exemplo, ja usavam barras regulares de compasso
ou ponto de aumento muito antes de serem adotados pela nota9ao tradicional.
Uma tablatura consiste basicamente de uma representa9ao direta da
tecnica do instrumento. No caso do alaude, a tablatura constitui-se de 6 linhas
representando as seis ordens (conjunto de uma ou duas cord as afinadas na
mesma altura ou, no caso dos baixos, em oitavas) superiores. Estas sao as
ordens que sao executadas tambem com a mao esquerda, ao contrario dos
baixos que sao tocados normalmente soltos, ou seja, sem a interven9ao da mao
esquerda. Existem tres tipos de tablaturas: a alema, um sistema extremamente
complicado utilizando simboios diferentes para cada nota; a italiana e a
espanhola, utilizando numeros para representar cada casa do brac;o do alaude;
e finalmente a francesa, adotada tambem pelos ingleses, que e a que nos
interessa neste trabalho. Esta
Thomas Robinson. The Schoo/e of Musicke. Trad.: Carin Zwilling, em tese de mestrado: Thomas
Robinson, The Schoole of Musicke: tradw;fw comentada e transcri<;ao musical de um
tratado do inicio do seculo XVIi, Universidade Estadual de Campinas. 1996.
34
0
uso
determinado pela tablatura nao sao as notas mas os intervalos. A afinac;ao era
bastante livre, devendo-se afinar a primeira corda "tao aguda quanta agOentar,
sem
32
era a seguinte:
(b) -2
No inicio de sua formar;:ao e carreira. Dowland usou um alaude de 7 ordens. como indica a
maior parte de suas obras ate 1603. A partir de 1604 ( surgimento de sua Lachrimae ). sua obra
passa a ser escrita para um alaude de 9 ordens.
35
3 3 : mezzanelle, intermediaria maior (Great mean)
4 3 : tenori, contra -tenor
5 3 : bordoni ou tenor
6a: bassi ou baixo (Bass)
sol
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38
ocorre com suas cang6es que foram todas publicadas em seus livros de
Cangoes (Song Books), onde aparecem apenas tres de suas pec;as solo. Outras
nove pec;as aparecem no Musical/ Banquet, o livro de alaude de Robert
Dowland, (filho de Jonh Dowland) e outras sete no Newe Booke of Tabliture de
William Barley, versoes consideradas imperfeitas pelo proprio Dowland.
No
parodias de pegas ou
eo
Tabliture de William Barley. Para urn autor tao cioso de sua propria obra, e de
surpreender que ele mesmo nao tenha se preocupado em deixar sua propria
versao autorizada (coisa que fez com suas can goes publicadas em quatro
volumes durante sua vida).
um
39
cuidadoso na
e tao
40
A tecnica do alaude e uma tecnica toda reconstrufda, pois ap6s o seculo
XVIII, o alaude caiu em desuso, desaparecendo do mundo da musica ate o
seculo XX, quando o interesse pela musica antiga ressurgiu. Hoje existe
novamente uma boa escola de alaude, com principios tecnicos bem definidos,
que permite ao alaudista moderno um rendimento de alta qualidade.
surpreende e
renascido
das
0 que
de
pouquissimos
registros
deixados
por
nossos
Metodos de alaude que de alguma forma sabe-se que tiveram relac;ao direta ou indireta com
John Dowland:
Barley. William: A new booke of tabliture. London, 1596.
Dowland, Robert Vrietie of Lute-Lessons. Londres, 1610.
Besard, Jean-Baptiste: esta obra s6 sobreviveu atraves do metodo de Robert Dowland, onde se
encontra traduzida.
Le Roy, Adrien: A briefe and easye Instruction, traduzido para o ingles em 1567 por John
Kingston.
Mace, Thomas: Musick's Monument. 1676.
Robinson, Thomas: The Schoole of Musicke. Londres, 1603 (trad.: Carin Zwilling, tese UNICAMP,
1996)
3
.fl
sobre a tecnica do instrumento, Karl Sheit, um dos pioneiros a pesquisar o
alaude, queixava-se num col6quio realizado em Paris, da insuficiencia de
clareza nos metodos antigos:
II est
technique du luth
a !'aide
OU
mo1ns
technique
des
et
Ia
science
anciens
maltres
nos
connaissances actuelles. 4
Karl Sheit, "Les traites de luth des environs de 1600" em Le luth et sa musique, Editions du
Centre National de Ia recherche scientifique, Paris, 1980:
E marcante o fato que todos os tratados da epoca ensinam a tecnica do alaude com a ajuda de
algumas regras bastante aridas acompanhadas de exemplos insuficientes .... damo-nos conta
que nao era nada facil aprender este dificil instrumento para o qual nao existia entao nenhum
42
Existiam basicamente duas tecnicas de utilizar a mao direita no alaude
conhecidas como Thumb-under e thumb-over. A primeira, consistia em tocar
como polegar cruzando sob o indicador (figueta caste/lana), tecnica derivada do
alaude medieval quando se usava o plectra. Esta tecnica definia a acentua(_(ao
tecnica
stretch out your Thombe with all the force you can, especially if
thy Thombe be short, so that the other fingers may be carried in
the manner of a fist, and let the Thombe be held higher than
metodo capaz de conduzir o aluno desde o primeiro som ate seu completo dominio. No entanto,
estas regras e estes conselhos podem ser de grande utilidade a nos, alaudistas modernos.
desde que saibamos unir a tecnica e a cimcia dos antigos mestres aos nossos conhecimentos
atuais.
5 Diana Poulton, "La tecnique en France et en Angleterre" em Le luth et sa musique, etc .
6
Jean Baptiste Besard, Thesaurus Harmonicus (1603), traduzido em "Necessarie Observations
Belonging to the Lute Playing" de Robert Dowland.
7
Esticai vosso polegar com toda a fon;a que puder, especialmente se vosso polegar for curto, de
forma que os outros dedos fiquem com o formato de um punho, e deixai que o polegar se
mantenha mais alto que estes.
43
Este metoda tambem era aconselhado por Luys venegas de Henestrosa,
no Libra de Citra Nueva para tee/a, harpa y vihuela de 1557.
Em 1592, Matthaeus Waissel considera a nova posi<;ao desfavoravel e defende
a alternancia polegar-indicador por desenvolver maior velocidade.
Dowland parece ter conhecido as duas tecnicas e usado a segunda ja no final
de sua carreira.
-I
44
Ja na Pavana So/us cum Sola, na ultima sec;ao (compassos 33
a 40), fica
........
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45
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onde cada ordem deve soar como se houvesse apenas uma corda, produzindose um sam cheio e ave!udado. As unhas tornariam o som bem mais aspero e
ficaria dificil fazer duas cordas soarem como uma, deixando a execu<;ao bem
mais suja. Um dos poucos autores da epoca que
se refere ao problema de
los redobles
46
Tractado hemos de las compofturas y fantafias. Cofa rezonable
fera venir a tractar dela tercera cofa arriba ya dicha, que es lo q
toea a los redobles y a taner con limpieza: lo qual no es menos
neceffario que todo lo demas. . . Y puesto que en efta manera
de redoble, el dedo quando entra hiere Ia cuerda con golpe,
quado fale no fe puede negar el herir co Ia vna. y efta es
imperfectio, affi por no fer el punto formado, como por no auer
golpe entero ni verdadero.Y de aqui es que los que redobla con
Ia vna hallaraa facilidad en lo que hiziere, per no perfectio. Y efto
daquidigo no es para codenar ninguna manera de taner,pues
tengo por muy bueno lo que los fabios y aufisados en Ia mufica
exercitere, y aprobare por tal. ... pues como dicho es. t1ene gra
excellencia el herir Ia cuerda co golpe, fin que etremeta vna ni
otra manera de inuecion, pues en solo el dedo. como en cofa
biua cofifteel verdadero fpiritu, que hiriendo Ia cuerda eiefue le
Miguel de Fuenllana, Orphl!;nica Lyra, Sevilla, 1554; ed Charles Jacobs, Oxford University
Press, 1978.
9 Ja tratamos das composturas e fantasias. Coisa razoavel sera tratar da terceira coisa Ja dita
acima, que e 0 que se refere aos redobles e a tocar com limpeza 0 qual nao e menos necessaria
que o demais. E pois assim e que nesta maneira de redoble, o dedo quando entra fere a corda
com golpe e quando sai nao se pode negar o ferir com a unha, e isto e imperfeic;ao. assim por
nao ser o ponto (?) formado, como por nao haver golpe inteiro nem verdadeiro. E assim e que
aqueles que redoblam com a unha acharao facilidade, mas nao a perfeic;ao no que fazem. mas
nao perfeic;ao. E isto aqui digo nao para condenar nenhuma maneira de tocar, pois tenho em
muita considerac;ao o que os sabios e avisados?? Na musica exercitarao, e aprovarei como tal.
... pois como disse, tocar a corda com um ataque sem a inclusao da unha ou algum outro
47
But in the doing of This, take notice, that you ftrike not
your Strings with your Nails, as fame do, who maintain it
the Best way of Play, but I do not; and for This Reason;
because the Nail cannot draw fo Fweet a Sound from a
Lute, as the nibble end of the Flefh can dow
to do
feveral times, fa long, till at laft you perceive, (by feveral ways of
Tryal) you can draw a fweet, fmart, and pleasant Sound from
That String; and when that is done, ftrive to do the like with your
aparato, demonstra grande excelencia, pais somente o dedo. como uma coisa viva, consiste no
verdadeiro espirito, que ao tocar a corda comunica [a inten<;:ao do espirito.
10
Mas ao fazer isto, notai de nao tocar suas cordas com as unhas, como alguns o fazem.
alegando ser a melhor maneira de tocar; mas nao o fa<;:o eu, e par esta razao: par que a unha
nao e capaz de tirar um sam tao dace de um alaude, como a polpa do dedo pode faze-lo.
48
Fore-finger, (your fecond Finger keeping the fame Pofture of
clofenefs and readinefs, as your Fore-finger kept 11 .
'' Primeiramente, observando todas as vossas posturas anteriores cuidadosamente, com vosso
polegar sempre descansando em algum dos Baixos (onde desejai), colocai o final de vosso
segundo dedo muito pouco abaixo da primeira corda [Treble] (por volta de tres polegadas acima
da ponte) como se quisesseis somente sentir vossa corda. mantendo vosso indicador (ao mesmo
a ser usado
assim sem tocar o seu segundo dedo, ou a corda, com um belo
toque (mas contudo, delicado) de modo a faze-lo falar alto e forte; o qual devereis tentar repetir
diversas vezes, tantas vezes ate que finalmente percebereis (por varias tentativas) poder tirar
um som belo e agradavel desta corda, e assim que isto estiver feito, tentai fazer o mesmo como
dedo indicador (o segundo dedo mantendo a mesma posi<;ao de proximidade e prontidao como
vosso indicador o fez anteriormente).
49
Um alaude de seis ordens, como aparece no livro de Adrien Le Roy, A Briefe
AN
I N ST R V C T I 0 N T 0
T H E L V T E.
Nderfiaod this that the Lme is ordinarilie Orung with fixe Oringes,and althongh that thefe fix firinges be
d~Juble except the T rebble,and make a kauen in number. yet they muft be vnderftood to bee but fixe in
all, as thou maid\ fee them here marked on this Lute figured.
CAPiTULO Ill
OS AFFETOS NA OBRA DE JOHN DOWLAND
pel as
e golpes de "moscas"
de
Havia um tempo em que abelhas bobas podiam falar. I E neste tempo eu era uma abelha boba,
1 Que se al:mentava de tomilho ate que meu cora<;ao come<;ou a quebrar, I Ainda ass:m, nunca o
tempo me favoreceu. I De todo o enxame , eu apenas nao prosperava I Ainda assim trazia cera
e mel para a coimeia I Entao eu chiei quando tomilho nenhuma seiva me oferecia,/ Por que este
aben<;oado tomilho estaria seco para mim? I Sentado a seu lado o zangao pregui<;oso vive, I As
vespas, os vermes. os mosquitos, a borboleta. I Unido ao pesar. AJoelhei-me, I E entao me
queixei ao Re: das abelhas. I "Meu Senhor, que Deus nao term:ne Jama:s vosso tempo. I E ainda
garanta que escuteis meu pranto do Tomilho, I Do qual moscas sem frutos descobriram ter
amigos, 1 E eu as derrubo quando ousam subir'', I E o Rei responde apenas isto: "Paz, abelha
1
51
servido de meio para Dowland
arbitrariedade de uma rainha despota que jamais em sua vida lhe oferecera um
Iugar na corte.
Susan McClary nos diz que "a maneira pela qual se comp6e, se executa,
se ouve ou se interpreta musica e fortemente influenciada pela necessidade de
estabelecer ordem ou resistir a e!a" 2 . A vida de John Dowland nao parece ter
sido
facil. Seus bi6grafos sempre chamam aten<;ao aos fatos mais tragicos de
sua vida para justificar o carater melanc61ico de diversas de suas pe<;as. Fatos
biograficos podem servir de pista para a compreensao de certas "atitudes"
musicais, ou como McClary diz, de estabelecer ordem ou resistir a ela. 0
objetivo final da apresenta((ao de um autor e o entendimento maior de sua obra.
Dowland compos musica para alaude solo, can<;6es para voz e alaude, ou
pec;as para consorts de violas e alaude. Alem de ser conhecido par toda a
Europa como compositor, como interprete sua fama era ainda maior. Sua
reputac;ao era tamanha que comparava-se
rabujenta, Apesar de Vossa 1nclina<;:ao para o Tempo servir, o tomilho aVos nao vos pertence'.
(It was a time when slliy bees - John Dowland, Third Book of Songe or
Susan McClary. Femm1ne Endings, Music. Gender and Sexualtty Un1versity of Minnesota
Press, 1991.
3
"Dowland vos e querido cujo toque celestial sobre o alaude deLc,a os sentidos humanos;
Spencer, para mim, cujo profunda conceito tal que passando todo conceito. nao necessita de
defesa alguma". R1chard Barnfield, In Divers humors. em Diana Pouiton. Jonh Dowland, Faber
and Faber, Londres. 1972.
52
Retrato de Elizabeth I, de autor anonimo
53
Duas gravuras de Londres de 1600 (Wenceslaus Hollar, The British Museum)
~----------------~--=--
( 'u1l.o i I
\'\rltmntl.llttti.-tL.. L"
fl.t"J,
54
A lnglaterra de 1600 era um pais que tinha uma vida cultural intensa e
extremamente centralizada. Londres concentrava grande parte da populac;ao,
ultrapassando quase dez vezes suas rivais mais pr6ximas (Bristol e Norwich). A
maior parte da riquesa, da vida comercial, artistica e intelectual se encontrava
na Capital e seus arredores apresentavam uma concentrac;ao de cerca de um
quinto da populagao total
tambem era o centro politico, onde tudo girava em torno da familia real.
Dowland viveu sob o reinado de duas estirpes: inicialmente da Rainha Elizabeth
(o ultimo e mais Iongo reinado dos Tudor) e no final de James I (parente mais
proximo de Elizabeth I, que inaugurou a dinastia dos Stuart uma vez que a
Rainha nao teve filhos,t A hist6ria do perlodo e repleta de conflitos politicos,
conspirac;oes, golpes, complexos tramas envolvendo a corte e pessoas ligadas
a ela, resultando em grandes massacres, cabec;as cortadas, tortura e forca. Um
ambiente sombrio e amedrontador para quem perdia os favores da Rainha ou
do Rei. Desobedece-la ou afronta-la significava nao s6 a alienac;ao da vida da
corte, mas tambem castigos maiores como, por exemplo, a condenac;ao a anos
de escuridao e morte na torre de Londres.
55
a autoridade do Papa e cria a lgreja Anglicana, com leis que permitissem o
div6rcio. Do segundo casamento nasce Elizabeth, e novamente desiludido,
perseguido por fantasias de traigao e infidelidade, condena a segunda esposa a
ser decapitada. 0 monarca casa-se pela terceira vez com Jane Seymour. Esta
finalmente lhe da o filho tao esperado - e morre algumas semanas ap6s o parto.
0 rei ainda se casa mais tres vezes, e todas as esposas, exceto a ultima sofrem
destino tragico impingido por sua impiedosa tirania. A ultima, Catherine Parr,
sobrevive
expulsao da corte. Com a morte de Henry VIII, seu unico filho, Edward,
coroado rei com apenas 9 anos de idade. Seu reinado dura pouco, e aos 15
anos de idade, "finalmente envenenado pelos remedios que inicialmente o
tinham estimulado, com pernas e bragos grotescamente inchados e pele
enegrecida, com os dedos dos pes e das maos atacados pela gangrena, o
cabelo e as unhas
E sucedido
velha Mary, cujo reinado tambem e interrompido prematuramente por sua morte.
Finalmente Elizabeth e coroada em 1558, cinco anos antes do nascimento de
John Dowland.
Como relata Julie Anne Sadie 6 , a corte nao era apenas um Palacio, ou urn
espa<;o em particular. Era uma instituigao de cortesaos, administradores e
Donna Cooper e Bill Cliftland, Tudors and Stuarts, BBC Landmarks, Londres.
Cristopher Hibbert, The Virgin Queen. Elizabeth !, Genius of the Golden Age, Addison-Wesley
Publishing Company, Inc., California, 1991.
6 Julie Anne Sadie, Companion to Baroque Music, J.M. Dent & Sons Ltd. Londres, 1990.
56
serventes domesticos que se deslocavam para onde quer que o monarca fosse,
percorrendo varios palacios ou casas de campo em suas mudanc;:as no decorrer
do ano. Durante o tempo de trabalho, a corte ficava perto do Centro de Londres,
em Whitehall ou em um dos palacios ao logo do Rio Tamisa. A vida musical
girava em torno da corte e os mais afortunados eram empregados
sob a
F. W. Sternfeld. Mus1c from the Middle Ages to the Renaissance. Weidenfeld & Nicolson
London, 1973.
57
harmonia perdida. 0 Rei ou Rainha passavam a fazer parte da mitologia da
epoca, sendo descritos ou mesmo confundidos com alguns personagens da
mitologia grega. Elizabeth I era descrita como a
rainha-musica, fortemente
engajada na prodU<;ao e mantenimento das artes na lnglaterra. A musica tornouse uma constante metafora da ordem social, apresentando a possibilidade de
multiplas e distintas vozes sociais entrarem em harmonia:
Of such a
e rara
depois
sua morte.
A medida
Pierre de La Primaudaye, French Academie (1577) em Robin Headlam Wells Uma cidade ou
uma sociedade civil nao e outra co1sa senao uma multitude de homens diferentes em situac;:ao ou
condic;:ao , de modo que possam viver melhor, e sao obedientes as mesmas leis e magistrados ...
De tal dissimilitude uma concordanc1a surge na proporc;:ao de um contra outro em suas ordens e
estados distintos; da mesma forma como a harmonia em musica consiste de vozes ou sons
desiguais concordando equa!itariamente juntos.
58
espa9o para a musica secular, desenvolvendo-se magnificamente a musica para
violas e virginais, os madrigais e as ayres. 0 mundo intelectual e artistico de
John Dowland girava ao redor de Shakespeare, Bacon, Donne, Spencer e
musicos como Morley, Gibbons e Byrd. Foi um periodo extremamente aberto e
entusiasmado com a cultura francesa, classica e especialmente italiana. Na
poesia e na musica, fazia-se muita traduefao, adapta9ao, imita9ao e mesmo
plagio - mas tudo com muita inteligencia e humor, e mesclado com a cultura
nativa, produzindo um repert6rio muito particular e distinto de tudo o que se
ouvia no resto da Europa. Entre 1560 e 1570, uma enorme quantidade de
musica italiana circulava em manuscritos ingleses. Em 1588, foi publicada uma
coletanea de musica italiana, na qual aparecem inumeras pe9as de Luca
Marenzio,
originalmente de Nietzche,
mane ira:
authoritarian
governments
have more
59
needs of enemies than friends .... authority will typically produce
its other as a way of justifying its own exercice of power.
Como Nietzche observou muito antes de Foucault tornar o seu 'outro' um conceito da moda.
governos autoritarios possuem maior necessidade de inimigos do que de amigos ..... autoridade
produzira tipicamente seu outro com forma de justificar seu proprio exercicio de poder. Robin
Headlam Wells, Elizabethan Mythologies:Studies in Poetry, Drama and Music, Cambridge
University Press, 1994.
10
Para uma discussao aprofundada do assunto. ler Robin, H. Wells ibidem.
60
civiliza98o atraves da can<;ao tern ralzes na poetica classica. A palavra aliada
musica. magicamente persuasiva, da
a luz a civiliza<;ao.
perdido seu temperamento natural, ele agora necessita harmonizar sua queda
atraves das artes civilizat6rias. 0 Rei ou Rainha desta epoca tera sua figura
ligada ao Rei-musico,
a sua
maneira, interpreta e
constr6i sua propria imagem do mundo, nao o que o mundo e, mas sim o que
poderia ser: um reflexo de seu proprio desejo. Muitas vezes seu desejo e
conciliat6rio, outras vezes faz o papel da resistencia, da oposi<;ao. A relagao do
musico com a autoridade tern dois aspectos: a de validar uma corte tiranica,
atuando como um quase agente da propaganda ou,
subversivamente resistr a ela.
incentivando uma arte
Os
mitos sao
ao contrario,
manipulados
pelo
de
poder,
Robin Head lam Wells, Elizabethan Mythologies, Stud1es in Poetry, Drama and Music,
Cambndge University Press, 1994.
61
como urn autor consciente da maneira como os politicos manipulam os mitos
com o intuito de assegurar e manter poder. A posi<;ao que Dowland ocupa
dentro desta circunstancia sera discutida a seguir.
12
ibidem
62
John
Dowland
nasceu
em
1563
(baseando
calculo
nas
crescente liberdade
mais
13
63
declamat6rias acompanhadas por baixo continuo. que vao se desenvolver mais
tarde. 14 Avan(_(ando um pouco mais no tempo, pode-se compreender de quem
Henry Purcell recebeu influmcia - urn resultado direto do espirito de Dowland, a
expressividade exacerbada, o uso dos afetos mais obscuros e dramaticos como
mota gerador da musica, que deve dominar totalmente o ouvinte. Sem a
influencia de Dowland, a musica de Henry Purcell nao seria o que e, e segundo
Robin H. Wells, Spencer e Sidney, juntamente com Thomas Morley e John
Dowland foram responsaveis por uma total transforma(_(ao da poesia e musica
inglesa de sua epoca. Segundo este autor, a forma de Soneto Petrarquiano eo
madrigal ao chegar
a lnglaterra,
14
Scott Mitchell Pauley, Rhetoric and the Performance of Seventh-Century English Continuo
Song, tese defend1da no Departamento de Musica da Universidade de Stanford, 1994.1
64
uma carta a Sir Robert Cecil, tentando desculpar-se do grave ocorrido e mostrar
sua fidelidade
.,,
'
a Rainha .
65
1-
.
1'-''
fvt>Cl-t'
. ?/Jdi'r
l\'1'"( .:.1!
-'
Carta
de
John
Dowland
Sir
Robert
Cecil,
1595
67
John Dowland culpa sua op<;ao religiosa como a razao pe!a qual um
posto na corte da Rainha Elizabeth jamais lhe fora oferecido. A persegui<;ao aos
cat61icos
Rainha. Segundo Diana Poulton, Dowland nao era um cat61ico tao assumido
como
faz parecer em sua carta. Muitas evidencias neste sentido podem ser
provavel que a razao de nao ter sido aceito tivesse sido bem diversa: delatando
outros cat61icos por uma suposta trama contra a Rainha, arrependendo-se de
seu catolicismo, e jurando fidelidade
68
salario dentre todos os criados da
um
a qual
Dowland estava
familiarizado:
My good friend .
.. .from the day he (The King of Denamark) did come until this
hour, I have been well nigh overwhelmed with carousel and
sports of all kinds. The sports began each day in such manner
and such sorte. as well nigh persuaded me of mahomet's
paradise. We had women. and indeed wine too, of such plenty as
would have astonished each sober beholder. Our feasts were
magnificent and the two royal guests did most lovingly embrace
each other at table. I think the Dane hath strangely wrought on
our good
taste good liquor. now follow the fashion and wallow in beastly
delights. The Ladies abandon their sobriety, and are seen to roll
about in intoxication .. but I neer did see such lack of good order,
discretion, and sobriety, as I have now done .... ' 5
:5
69
Retrato de Christian IV, Rei da Dinamarca (Peter lsacsh, 1612)
70
Rainha Elizabeth em idade mais avangada (Marcus Gheeraerts the Younger)
71
Dowland passou cinco anos de sua vida na corte da Dinamarca. Sabe-se
pouco sabre sua estadia, existem apenas registros de inumeros adiantamentos
salariais, em propon:;:ao mais crescente. Desta temporada data a publicagao de
seus livros de pe<;.:as para canto e alaude, cujo sucesso foi tao grande que seu
First Booke of Songes foi impressa e re-editado cinco vezes entre 1600 e 1613.
Em 1603 volta
a lnglaterra
inclui duas can<;.:oes dedicadas a Rainha Elizabeth. Dowland seve dividido entre
o respeito bajulador e atrevida arrogancia - duas cangoes louvam a Rainha em
exageros extremos (Time stands still with gazing on her face e Say laue if euer
thou didst finde) e numa terceira, It was a time when silly bees, Dowland ironiza
acidamente a vida na corte, e a metafora da rainha abelha cercada de vermes
nao poderia ter sido mero descuido de um autor pouco consciente do poder das
72
palavras e da musica. Sua sorte com a Rainha Elizabeth nunca mudou. No mes
seguinte ela morreu, sendo sucedida por James I. Durante os anos que se
seguiram, Dowland publicou Lachrimae or Seven Tears, uma tradu<;ao propria
do Micrologus (um tratado teorico do Seculo XVI). Seu filho Robert publicou as
Varietie of Lute Lessons (contendo 9 obras de Dowland entre uma miscelanea
de outros autores contemporaneos, uma tradu<;ao das Necessarie Observations
belonging to Lute Playing de Beasardus, e Other Necessary Observations
belonging to the Lute! de sua propria autoria), e A Pi/grimes Solace, seu ultimo
volume de can<;6es. No prefacio deste ultimo livro, Dowland ainda encontra
espa<;o para queixar-se de sua sorte dizendo:
Valiosos cavalheiros, e bem-amados Countrymen; ... A verdade e que eu tenho vivido por Iongo
tempo obscurecido de sua vista, porque recebi um posto em clima estrangeiro, e nao pude nunca
ter um Iugar em minha terra natal. ... Mas se eu tivesse mantido minha cabec;a dentro destes
horizontes, nao teria tido sucesso em outras partes. Pois alguns de meus pobres labores
receberam favores nas melhores partes das Europas, e foram impressos nas oito mais famosas
cidades de Alem-mar, ou seja,
Amsterdam e Hamburg ... ainda assim devo vos dizer, pois tendo sido um estrangeiro. ainda
assim outra vez tenho me deparado com estranhos fatos depois de minha volta: especialmente
pela oposir;ao de dois tipos de pessoa que colocam a si mesmos sob o titulo de Musicos. Os
primeiros sao uma especie de simples Cantores. os quais apesar de parecerem excelentes em
divisao. nao passam de ignorantes, mesmo nos primeiros elementos da musica .... Os segundos
sao jovens. professores de alaude ... que vangloriam-se que antes de seu tempo nao havia
ninguem como eles (1603)
73
Dowland envelhece, lamenta os anos que se foram, lamenta ter sido
esquecido e encontra outras vozes cantando consigo seu canto de cisne: So
since (old friend) thy years have made thee white/ And thou for others, hast
con sum 'd thy spring, I How few regard thee. whom thou didst delight,! And farre
and neere, came once to heere thee singe; I lngratefu/1 times, and worthies age
of ours/ That let's vs pine, when it hath cropt our flowers 16
Dowland
being now gray, and like the Swan, but singing towards his end (
estando agora grizalho, e como o cisne cantando seus ultimos cantos), recebe
finalmente
Vive seus
ultimos anos a servic;o do Rei e em 1626 morre, sendo sucedido por seu filho
Robert no posto
e que
Eo
poeta-
nao reconhecido
pelo seu
Peacham, em Minerva Britanna (1612) Assim desde que (velho amigo) vossos anos vos
fizeram branco,/e tambem para outros consumtram suas primaveras,/Quao poucos vos veem.
74
sua Galharda em homenagem ao Rei da Dinamarca, uma Battle Galliard, na
qual Dowland ironiza
resistencia, um quase
Como
esclarece
Robin
H.
Wells,
o traba!ho
do
critico
nao
a melancolia.
autor de
aos quais delic1asseis/E de Ionge ou de perto, vinham outrora escutar-vos,/Epoca ingrata, inutil
75
seu distanciamento da pretensa melancolia. Segundo Robin H. Wells, o neoplatonismo renascentista chegou tardiamente
maneira critica e cetica. Shall I sue pode ser vista como uma cam;ao que faz
tro<;a de suas pr6prias ideias. Subindo a esca/ae naturae com os versos Or a
sigh can ascend the clouds, Dowland insinua sua incredulidade com uma figura
mel6dica descendente no final da frase to attaine so high, criando uma
perspectiva ir6nica.
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d
1'
t::
;,
If
a
.....
t'
a
a
('
e espirituosamente
usada
tempo em que vivemosJ que nos deixam definhar, quando as nossas fiores
Ja foram
ceifadas.
76
heare, to touch, to kisse, to die, With thee againe in sweetest sympathy..- As
palavras come
e representada
e da
luxuria.
Venhais novamente doce amor. agora convido, I de vossas grac;:as me abstenho I Oue me
provocam delicias I Para olhar, ouvir, tocar, beijar, morrer I convosco outra vez namais doce
simpatia (The first Booke of Songes. 1597).
'
77
17. COME AGAIN: SWEET LOVE DOTH NOW INVITE
1'\
---'
I!)
11tt
VOICE
Come
a. gain:
Sweet
love-
doth
in vite,
no"
1'\
~~
-tt
-tt
...
fl
,..-
1a
LUTE
a
a
("
("
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All the day
The sun that lends me shtne,
By frowns do cause me J.;ine.
Aml feeds me with delay,
Her smiles my springs, that make> nw Jnys to grow,
Htr frowns the \\'lllters
my woe:
or
4
All the nig!.t
My slet~s are full of dreams.,
My eyes are full of streams.
My heart takes no deltght,
To see the fruits and Joys that some do f1nd,
And mark the storms are me as,wn'd.
5
Out alas.
Draw
Thou
For I
By s1ghs and
Dtd tempt
{)
Come aga1n:
Sweet love d0th now invite,
Thy graces tbat rdratn,
To do me due drllf!"ht,
To see, to hear, to tou. h, to k1s:;, to d1~, "(
W1th thee again Ill sweetest sympathy.
2
Come again
That l may cease to mourn,
Tluough thy unkind di><l.itn:
For now left and forlorn,
s1t, I sigh, I weep, J L>~r.t, l ct1e,- \
lr1 deadly pctlll and endless misery.
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6
Gentle Love
forth thy wounding dart,
can>! not plfJCe her heart,
that to apFove,
kars IW>re lwt than are tl:y shaft,,
1Ahile she for tnumph laughs.
79
Em seu terceiro livro de can<;6es, quando esta ja a ponto de perder seu
emprego como alaudista real da corte da Dinamarca, Dowland escreve a mais
terna can<;ao, elogiando a beleza de uma rainha a quem o tempo nao marca
com seus golpes impiedosos da decrepitude (Time stands still). As frases sao
compostas por delicadas melodias e do come<;o ao fim o que se ouve
e quase
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83
Dowland
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stay, In Darkness let me Dwell, sao apenas alguns titulos dentre tantos outros
ligados ao humor melanc61ico. Seu aparente compromisso com a melancolia
culmina ainda em uma de suas mais belas e comoventes Pavanas para alaude
solo, no qual liga seu proprio nome
18
a dor eterna:
Esta ideia de que Dowland teria criado conscientemente uma persona melanc61ica para si
mesmo, e discutida por Robin H. Wells no ensaio: Dowland. Ficino and Elizabethan Melancholy.
em seu !ivro acima citado.
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87
Ler a obra de John Dowland como um texto complexo e permeado de
multiplas camadas de significados e tarefa complicada e bastante fertil no
campo da musicologia moderna, muitas vezes chamada de nova musicologia.
Descobri-lo como um autor consciente de seu poder manipulador, distanciado
ironicamente de sua obra, pode trazer algumas luzes para um melhor
entendimento daquilo que produziu. No entanto, pensar por exemplo na cangao
Time stand still como uma pega puramente de manipulagao e bajulamento, pode
apenas levar o ouvinte/interprete/leitor a uma relagao igualmente ir6nica com a
propria obra. 0 envolvimento emocional com a musica cessa, e o que se ouve
sao conceitos e especula<;6es te6ricas. Descobrir as verdadeiras inteng6es de
Dowland ao escrever uma pega tao doce e enternecida nao pode nos
acresentar muito. Em alguns casos, como na Galharda para o Rei da
Oinamarca, a descoberta do velado esplrito de troga pode influir positivamente
uma interpretagao, como e o caso da brilhante versao de Paul O'Dette.
Compreender o que se passa no inconsciente musical. realizar uma tentativa
psicanalise musical pode abrir um campo vasto na leitura da arte dos sons. Mas
como toda obra de arte, a musica se coloca alem de qualquer possfvel
interpretagao verbal, onde pensamos agarra-la, onde pensamos entende-la,
nosso raciocfnio cartesiano torna-se insuficiente. Se fosse possivel transformar
musica em palavras, deixariamos de fazer musica, chegariamos no maximo na
poesia. Ler as inteng6es de John Dowland por tras de sua musica e um
exercicio do intelecto - um jogo de detetives atras
possibilidades infinitas de
88
transgressoes, novas versoes da hist6ria do autor e fatos alem da musica. A
obra de Dowland esquiva-se furtivamente de nossas explica<;oes - sua
habilidade em mover nossos afetos e infinita, inatingivel, inexplicavel. A n6s,
ouvintes e interpretes de Dowland nao nos cabe senao a posi<;ao passiva de
nos deixarmos levar
CAPiTULO IV
e essencial,
' Nicholas Kenyon, editorial em Early Music. londres: fevereiro 1986 Existe alguma outra arte tao
elementar, tao central na natureza humana quanta a musica? Existe uma: a dan<;:a. E e
certamente uma suprema ironia que estas duas formas de arte, complementares e quase
sempre inseparaveis, deveriam ser tao frequentemente estudadas. pensadas, pesquisadas e ainda pior - realizadas isoladas uma da outra. Mesmo numa epoca em nossa cultura ocidental
em que a busca pela sofisticac;;ao tem extinguido a espontaneidade e paixao ritual que anima a
danc;;a em outras culturas, poucos entre nos pode evitar a danc;;a em algumas manifestac;;oes.
90
Pesquisa na area da hist6ria da dan<;:a apresenta problemas maiores do
que nas outras areas de performance. Musica e teatro, com seu sistema de
nota<;:ao altamente desenvolvido, reservou para as gera<;:6es futuras urn canone
de repert6rio muito mais acessfvel. A forma de executar com fidelidade
este
de
mais
facil
acesso
tratado
de
dan<;:a. 0
Thoinot
mais
Arbeau,
Meredith Little, "Recent research in European dance, 1400-1800" em Early Music. Londres,
fevereiro de 1986.
91
a se
da boa sociedade. 3
A dan<;a era vista na epoca como uma das sete arte liberais, e possuia
ela tambem seus principios ret6ricos. A este respeito se manifesta Thoinot
Arbeau:
Puis que ceft un art, il depend donq de l'vn des sept arts
liberaux. 4
92
pas a voftre aduis vne oraifon qu'il faict pour foy-mefme,
par fes pieds propres, en gendres demonftratif? Ne dit il
pas tacitementa Ia maiftreffe (qui le regarde danc;er
honnestement & de bonne grace)aymes moy, defires
moy? Et quat les mafquarades y font joinctes, elle ha
efficace grade demouuoir les affections,
cholere, tantoft
hayne, tantoft
tantoft
Ia
a l'amour.
a mefme
Thoinot Arbeau, Orcheseographie: Uma vez que e uma arte, ela depende portanto das sete
artes liberais.
5
Em Thoinot Arbeau (Ibidem): Eu vos disse, como ela depende da musica e de suas
modulac;oes, pois sem as virtudes ritmicas, a danc;a seria confusa e obscura. pois e necessaria
que os gestos dos membros acompanhem as cadmcias dos instrumentos musicais , e nao
podem os pes falarem de uma coisa e os instrumentos de outra . Mas principalmente todos os
doutores sabem que a danc;a e uma especie de Retorica muda , pela qual o orador pode, atraves
de seus movimentos, sem dizer uma unica palavra, se fazer compreender e persuadir os
espectadores de que ele e galhardo, digno de ser aceito, amado e querido. Nao e em vossa
opiniao uma orac;ao que ele faz para si mesmo, com seus P.es corretos , de forma demonstrativa?
Nao diz ele tacitamente a sua amada (que observa-o danc;ar honestamente , com boa disposic;ao)
amai-me, desejai-me. E quando os mascarados estao juntos, ela tern a grande eficacia de mover
afetos, seja a c61era , seja ao 6dio, seja ao amor. Como n6s Iemos sobre a filha de Herodias, a
qual obteve o que ela pedia ao rei Herode Antipe, ap6s haver danc;ado no banquete magnifico
que ele ofereceu aos principes de seu reino, no mesmo dia em que ele havia nascido. Como
tambem Rofcius se parecia com Cicero, quando ele usava gestos e ac;oes mudas de tal maneira
que ao julgamento daqueles que eram arbitros, ele emocionava tanto ou mais que aos
espectadores do que Cicero poderia ter feito com suas elocuc;oes orat6rias.
93
1. Basse Dance;
frrrr
Para aprender a Baffe Dance, Arbeau sugere urn esquema para que seu
interlocutor Capriol a memorise:
R b ff d r d r b ff ddd r d r b ff d r b c
94
E logo explica seu significado:
R: Reverence (Reverencia)
b: Branle
ff: deux pas simples (do is passos simples)
d: double (duplo)
r: reprise (retomada)
c: conge (despedida)
Ap6s o par colocar-se no meio da sala e solicitar aos musicos uma Basse
Dance, eles entao fazem uma reverencia, como mostra o desenho de Arbeau: 6
A Pavana e a Galharda derivam-se da "Basse Dance" e do "Tordion".
Este ultimo nada mais
menores das pernas. A Pavana sera abordada em primeiro Iugar para depois
tratar do ''Tordion" e Galharda.
A Pavana
e uma
e binario,
com o seguinte
ritmo basico:
ct F I r
As ilustrac;oes que se seguem neste capitulo provem do volume facsimilado do tratado de danc;a
de Thoinot Arbeau, acima citado.
95
(conversao).
"le trouve ces pavanes & baffes-dances belles & graves, & bie
feantes aux perffones honorables, principalement aux dames et
damoifelles". 7
Eu acho estas pavanas e "basses-dances" belas e graves, e bem apropriadas para as pessoas
honradas, principalmente as damas e mo<_;;as; em Orcheseographie, Thoinot Arbeau.
96
baiffez regardans quelquefois les affiftans auec vne pudeur virginale. Et
quant a Ia pauane, elle fert aux Roys, Princes & Seigneurs graues, pour
fe monftrer en quelque iour de feftin folemnel, auec leurs grands
manteaux & robes de parade. Et lors les Roynes, Princeffes, & Dames
les accompaignentles grands queues de leurs robes abaiffees &
traifnans, quelquesfois portees par damoiselles. Et font lefdites pauanes
iouees par hautbois & faque bouttes qui l'appellent le grand bal, & Ia font
durer iufques
maieste" 8
0 cavalheiro pode danc;a-la com a capa e a espada: E os outros vestidos com longas roupas,
andando honestamente com uma despojada gravidade. E as moc;as com aparencia humilde, os
olhos abaixados, olhando as vezes OS assistentes com pudor virginal. E quanto a Pavana, ela
serve aos reis, Principes e Senhores graves, para serem vistos em dias de festins solenes, com
seus grandes mantos e vestimentas de desfile. E assim as rainhas, Princesas e Damas sao
acompanhadas pelas grandes caudas de seus vestidos longos que se arrastam pelo chao, as
vezes usados pelas moc;as. E sao as ditas Pavanas tocadas pelos oboes & saqueboutes a que
chamamos de grande baile, e elas duram ate que aqueles que danc;am hajam circulado duas ou .
tres vezes ao redor da sala: se porventura eles nao gostarem de danc;ar para frente e para tras.
As Pavanas servem tambem quando se quer fazer entrar numa mascarade (baile ou desfile de
travestidos) carruagens triunfantes de deuses e deusas, lmperadores ou Reis cheios de
majestade.
97
rr r
a frente
a "posture" (postura).
1. Reverence: Para iniciar uma Galharda, o cavalheiro toma a moc;;a pela mao,
faz uma reverencia descrita como na "Basse Dance", tirando o chapeu. Nao ha
98
referenda
ja
comec;aram a tocar.
2. Pied joint oblique (pes juntos obliquos): Ap6s a revencia, junta-se os pes "pieds joints"- ou deixa-se um ou outro obliquo 9 .
Todas as ilustrat;:6es que seguem sao retiradas do livro de Thoinot Arbeau, acima mencionado.
99
primeira,
100
6. Pied Croife
101
8. Marque talon
102
10. Ruade (Coice): Com um pe firme no chao, joga-se ope oposto para tras.
103
12. Pofture
13. Capriole ou fault majeur" (sa Ito maior): Feito sempre no quinto tempo.
Ambos os pes no ar, cruzando uma vez a mais do que o "Greue" e caindo
na postura. Este salta maior pode durar um pouco mais, dependendo de
uma
conjun<;ao
entre
musica
dan<;arino
que
decidem
vn filence
des
pieds
& ceffation de
104
mouuements eft caufe
ea
inteira pela sala com seu par, deixa-la dangando a parte para s6 entao
dangar a Galharda. Nota-se ai uma caracterlstica tlpica desta danga que
demonstragao
nas tablaturas
a criatividade do dan<;:arino,
a sua "galhardia".
Passos da Galharda
"AIR"
("Anthoinette'}
ocadencia nao e outra coisa que um salto maior seguido de uma postura: E como vedes que
sao as can<;:oes musicais, os tocadores de instrumentos tendo tocado o penultimo acorde calamse um pouco: Depois tocam o ultimo acorde para fazer um fim doce e harmonioso, assim o salto
maior que e quase como um silencio dos pes e a cessa<;:ao de movimentos e a causa pela qual a
postura que a segue tenha maior gra<;:a e se sinta mais agradaveL. ]
105
Greue gaulche
Greue droite
Greue gaulche
Greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche
Greue droicte
Greue gaulche
Greue droicte
Greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Pied croife droict
Pied croife droict
Pied croife gaulche
Pied croife gaulche
Sault majeur
Pofture gaulche
Greue droicte
Pofture droicte sans petit fault
Entretaille gaulche caufant greue droicte
Greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Greue gaulche
Pofture gaulche fans petit fault
Entretaille droicte caufant greue gaulche
Greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche
106
PASSOS DA GALHARDA
"AIR"
("Baifons nous
belle')
Ruade droicte
Pied croife ou greue gaulche
Ruade droicte
Entre faille droicte caufant greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Ruade gaulche
Pied croife ou greue droicte
Ruade gaulche
Entretaille gaulche caufant greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche
Piedz ioints
Greue droicte
Ruade droicte
Entretaille droicte caufant greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Piedzjoint
Greue gaulche - Ruade gaulche
Entretaille gaulche causant greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche
107
Estas descri<;oes das dan<;as podem nos dar uma visao de como
elas eram executadas pelos dan<;arinos: A pavana, em sua majestosa
sobriedade e a galharda, leve e virtuosistica. Qual a importancia do
aprendizado destas dan<;as para a interpreta<;ao das pavanas e galhardas
na obra de John Dowland?
E muito
pouco provavel que esta musica de alto valor estetico fosse destinada a
11
108
urn uso tao fora de si mesma. A musica de John Dowland e uma musica
com urn fim em si mesma, destinada a interpretes e ouvintes atentos,
capazes de perceber todas suas sutilezas e seu virtuosismo tecnico. Por
outro lado, ap6s adqOirirmos uma certa fluencia para dan9ar as Pavanas e
Galhardas, ao tentar encaixar os passos nas dan9as de Dowland, somos
surpreendidos com a lentidao da musica em rela({ao aos passos: torna-se
praticamente impossivel juntar uma com a outra. Surgem entao duas
possibilidades: ou o andamento e muito Iento (e ai a reposta e simples:
nao ha como tocar suas complexas varia96es em andamento muito mais
rapido) ou estas pe9as nao se destinavam
pratica da dan9a.
Esta
segunda op9ao torna-se a mais 6bvia. No entanto, todo este estudo das
dan9as, num primeiro momento, parece ter sido em vao. Para que serviria
estuda-las se afinal as pe9as nao se destinavam mesmo ao uso da dan9a?
109
mazurka, which was considerably more ambiguous.As a
matter of fact, the mazurka is not a dance but a number of
very different kinds of dances. Descriptions tend to be
deplorably vague: "The dance has the character of an
improvisation, and is remarkable for the liberty and variety
in its figures," as we can read in the New Grove, which
adds that it is characterized by "a certain pride of bearing
and sometimes a wildness" and it "can express all kinds of
feeling and even shades of mood." This left Chopin with all
the freedom he could have wished. 12
As
profeticamente
Pavanas
Galhardas
antecipam a tradi<;ao
de
Dowland
romantica
de
quase
apoderar-se
que
de
."
<
Eu nao quero dizer que as Valsas de Chopin fossem feitas para o uso pratico da dan~a . mas a
valsa era uma forma conhecida para a audiencia de Chopin, que conhecia os passos pr6pnos e
entendia as conven~6es do ritmo. Nao era o mesmo com a Mazurka, considerada mais ambigua.
Na realidade, a Mazurka nao e uma danc;a, mas um grande numero de diferentes lipos de
danc;as. As descric;6es lendem a ser deploravelmente vagas "A danc;a tem o carater de uma
improvisac;ao, e e remarcavel por sua liberdade e variedade de figuras", como podemos ler no
New Grove , que acrescenta que e caracterizada por "um certo orgulho de ser e as vezes uma
110
Valsa era parte da cultura da epoca, para os ouvintes de Dowland, as
Pavanas e Galhardas possuiam uma referencia 6bvia, o que nao e
verdade para o ouvinte ou interprete de hoje. Dal a necessidade de se
adqOirir uma certa intimidade com estas dan<;as - mesmo que elas nao se
destinassem a este uso, a referencia precisa estar clara para o musico.
Dentro dela deve estar presente o espirito do nobre cavalheiro dan<;ando
com elegancia e galhardia, mirando doce e furtivamente sua donzela. Nas
varia<;6es virtuosisticas das Ga!hardas devem esconder-se as Caprioles de
urn jovem principe. Ao ouvirmos, por exemplo, as complexas mudan<;as
ritmicas de The Right Honourable Robert, Earl of Essex, His Galliard, logo
percebemos a impossibiiidade de encaixar passos pre-determinados nesta
musica. Nao seriam estas brincadeiras rftmicas uma referencia clara as
cabriolagens" de urn dan<;arino das galhardas?
lnterpretar ou traduzir uma pe<;a do passado deve canter em si toda
uma rede de significados,
certa selvageria" e ela "pode expressar todos os tipos de sentimentos e mesmo nuances de
estado de espirito". Chopin ai encontrou toda a liberdade que podia ter desejado].
1 11
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CAPiTULO V
ELEMENTOS DE INTERPRETA(;AO:
1. ELEMENTOS EXPRESSIVOS: 0 USO DA RETORICA EM DOWLAND
A ret6rica
William Shakespeare, King Henry VIII, Ill, I; in Scott Mitcheii Pauley, Rhetoric and the
Performance of Seventeenth-Century English Continuo Song, tese cefendida no Departamento
de Musica da Universidade de Stanford, 1994.
113
Costuma-se abordar a questao da ret6rica como um elemento fundamental para
a interpretagao da musica do barroco mais tardio, quando ela aparece bastante
sistematizada, como na obra Der Volkommene Capel/meister (1739) de Johann
Mattheson.
de meninos na
by
vtterance
of
speach,
and
persuwade
Scott Mitchell Pauley, Rhetoric and the Performance of Seventeenth-Century English Continuo
Song, tese defendida no Departamento de Musica da Universidade de Stanford, 1994.
3 William Kempe, The Education of Children in Learning (London, 1588). Cita<;ao em Scott
Mitchell Pauley, Rhetoric.
4
"cada tropos, cada figura, e tambem todas as palavras das senten<;as; mas tambem as
pronuncias ret6ricas e gestos certos para cada palavra, senten<;a e afeto".
114
withthem what was good, what was badde, & and what was
gainful! for mankind. 5
E sempre
quanta suas can<;6es, e neste sentido devemos toma-las como obras providas
do mesmo sentido dramatico. A ideia que se difundia pela Europa de que a
musica deveria provocar afetos, paixoes, grandes rea<;6es emocionais no
ouvinte (ideias que vern a ser totalmente desenvolvidas e elaboradas pela
Camerata Fiorentina, dando nascimento a opera barroca) e ja um pensamento
with the touch of this delight. For it doth driue away cares. perswade men
to
gentlenesse,
represseth
and
stirreth
anger,
nourisheth
arts,
Citado em Robin Headlam Wells, Elizabethan Mythologies, Studies in Poetry, Drama and Music,
115
curbeth vice, breedeth vertues, and nurseth them when they are borne.
composeth men to good fashion 6
Henry Peacham,
(E interessante
116
Musicke, ... ravisheth the minde much more by melody,than either
Bacchus by the taste of Wine. or Venus, by the itching pleasures of Lust.
This makes me admire Doctor Dowland, an ornament of Oxford; ... whose
Musical! concent (by reason of the aerial nature thereof) being put in
motion, moveth the body, and by purified aire, incitetth the aerial spirit of
the soule, and the motion of the body: by afect, it attempteth both the
sence and soule together; by signification, it acteth on the ninde: to
conclude, by the very motion of the subtill a ire. it pierceth vehemently and
by contemplation sucketh sweetly: by conformable qualitie it infuseth a
wondrous delight;
Musica.. delicia a mente muito mais pel a melodia. que o proprio Bacchus pelo gosto do vinho,
ou Venus, pelos prazeres provocados pela Luxuria lsto me faz admirar Doctor Dowland. um
ornameto de Oxford: .cujo conceito musical (por razao de sua natureza aerea), tendo sido
colocada em movimento, move o Corpo, e atraves das puras airs, incitam o espirito aereo da
alma, e o movimento do corpo: pelo afeto, ela conjuga ambos os sentidos e a alma juntos; por
significado, ela atinge a mente: para concluir, pelo proprio movimento da sutil air, ela perfura
veementemente e por contemplac;:ao sorve docemente; por qualidade da harmonia, difunde
deleite maravilhosos; por sua natureza duplamente material e espiritual. ela delicia o todo dentro
de si, e transforma o homem em pura musica. e por sua causa somente sua: Portanto em
memoria de sua excelencia ... "
117
uma musica harmoniosa ao serem movidas pelos anjos". 9 Portanto, quando o
ouvinte reagia emocionalmente
a musica,
esta musica dos ceus, "o que provocava a fluencia dos varios humores pelo
corpo, causando uma variedade de respostas emocionais ou afetivas". Estes
humores, constituiam-se de quatro tipos, cada qual correspondendo a quatro
espiritos que deveriam fluir atraves do corpo: sanguineo (sangue); fleumatico
(fleuma); melanc61ico (bile negra) e colerico (bile amarela). No tratado The
Passions of the Minde 10, Thomas Wright descreve homens colericos como tendo
tendencia
a furia;
melanc61icos
a tristeza;
de emocionar o
ouvinte.
Rene Descartes, fil6sofo frances do Seculo XVI, descreve bem esta mudanga de
ponto de vista quanta
The OBJECT of his Art is a Sound. The END; to delight, and move
various Affections in us .... Now, concerning those various affections, or
Passions, which Musick, by its various Measures can excite in us; we say
in Generall'that a slow measure doth excite in us gentle, and slugish
motions, such as a kind of Languor, Sadness. Fear, Pride, and other
Jamie James, The Music of the Spheres (London, Little, Brown and Company, 1994 ), em: S. M.
Pauley, Rethoric and. 28.
10 Thomas Wright, The Passions of the Minde (London, 1601 ), em S M. Pauley, Rethoric and ...
118
heavy, and dull Passions: and a more nimble and swift measure doth,
proportionately, excite more nimble and sprightly Passions. such as Joy,
Anger, Courage, &c. 11
0 Objeto desta arte eo Som. 0 objetivo: emocionar, provocar varios afetos em nos .... Agora,
em rela<;ao a estes diversos afetos, ou paixoes, que a musica, atraves de seus varios
compassos podem excitar em nos; digamos, em geral, um compasso Iento provoca em nos
suaves e lerdos movimentos, como uma especie de langor, tristeza, medo, orgulho, e outras
paixoes mais pesadas e um compasso mais agil e veloz, proporcionalmente, provoca paixoes
mais mais ageis e vivas, como alegria, furia, coragem, etc. Renatus Descartes, Excellent
Compendium of Musick (London: Thomas Harper, 1653), em S.M. Pauley, Rhetoric.
12
Sylvestre Ganassi, Opera intitulada Fontegara ..... Veneza, 1581, em Paul O'dette, ensaio nao
publicado.
11
119
Galhardas ou Pavanas em can<;6es, ou se era costume na epoca poetas
colocarem letras em obras de seus colegas musicos, para interpretar esta
musica,
torna-se,
portanto,
uma
necessidade
pensa-las
como
obras
playe upon
instrumentes. and that they singe with mannes voyce dothe so resemble
and exprese natural! affections, the sound and tune is so applied and
made agreable to the thinge, that wheter it be a prayer, or else a ditty of
gladnes, of patience, of trouble, of mournynge, or of anger: the fassion of
the melodye dothe so represente the meaning of the thing, that it doth
wonderfullye move, stirre, pearce, and enflame the hearers myndes. ' 3
13
Por todas as musicas que eles (os ut6picos) tocam em seus instrumentos, e que cantam com
fortes vozes assim se assemelhando e expressando afetos naturais, o som e can<;ao e tao bem
aplicado a coisa [a letra, ou significado] e feito tao agradavelmente seja ela uma prece ou a
can<;ao de alegria, de paciE:mcia, de problema, de pesar, ou de furia: a forma da melodia entao
representa o significado da coisa, de maneira que ela maravilhosamente emociona, mexe,
provoca e inflama as mentes dos ouvintes". Em: Sir Thomas More, Utopia em: Paul O'Dette,
Expression in the Performance of Renaissance Music, ensaio inedito.
120
variando a pressao do ar, e colorir o tom por meio de uma digitac;ao apropriada.
Ganassi defende ainda que para alguns instrumentistas e possivel expressar
palavras atraves de sua musica. Pode-se perceber em Dowland e varios outros
instrumentistas intenc;6es timbristicas atraves de suas digitac;oes. Como as
tablaturas expressam inevitavelmente a digitac;ao, fica clara que Dowland tinha
intenc;oes conscientes quanta a timbres, que estao diretamente ligados
expressao e, nesta epoca
a ret6rica.
a que os artistas
em 1600 faziam?
Walter Porter em seu prefacio ao Madrigal and Ayres (1632) 14 , enaltece o
trabalho do performer, dando a ele metade da responsabilidade para a
compleic;ao de uma obra:
A composer, when he hath set a Song with all the art he can, hath done
but halfe the worke, the other halfe is the well performing or expressing
that in singing or playing which he hath done in composing. 15
Walter Porter, Madrigals and Ayres (London: William Stansby, 1632) emS. M. Pauley, Rhetoric.
121
uma vez que a ret6rica era materia presente na formac;:ao de todo estudante ou
jovem educado, como tambem eram, por exemplo, os musicos da epoca.
As figuras de ret6rica podem pertencer
locais), ou
a textura
a sua estrutura.
entre
dois
fen6menos
dissimilares.
John
Donne,
poeta
Ironia
Discrepancia entre uma declarac;:ao literal de urn orador e sua atitude ou
intenc;:ao. Como em Nosso governo sempre tao honesto.
Um compositor, quando faz uma canc;ao com toda a arte que consegue, fez apenas a metade
do trabalho. A outra metade e a boa performance ou a expressao no cantar ou tocar daquilo que
foi feito ao compor.
'
122
Hiperbole
Exagero ou diminuic;ao de importancia
Metonimia
Substituindo uma palavra por outra, que de alguma forma se relacionam. Como
em Orpheu por Dowland.
Sinedoche
A parte representando o todo. Como o italiano por italianos.
Paralelismo
Construc;ao de sentenc;as ou frases que se parecem
umas as outras
sintaticamente.
Antiteses
Combinando opostos em uma t:mica afirma<;ao.
What heaven then governs earth,
Ap6strofe
Mudan<;a de uma audiencia para outra, que pode estar presente apenas em
imaginac;ao.
Enthymeme
'6 "Rhetoric: Rhetoric in literature THE NATURE AND SCOPE OF RETHORIC: elements of
rethoric .. " Britannica online. <Http://www.eb.com:180/cgi-bin/g?docF=macro/5005/51/1.html>
123
Forma silogistica de argumentar na qual o orador assume que algumas
premissas serao supridas pela audiencia.
lnterrogatio
A "questao ret6rica" que e colocada para efeito argumentativo e nao pede
resposta.
Shal I sue shall I seek for grace?/Shall I pray shall I prove?/Shall I strive to a
heav'nly joy/With an earthly love? ...
Gradatio
uma sequencia de afirma<;6es progressivas ate chegar a um climax.
To see, to hear, to touch, to kiss, to die, ...
Scheme (como nas a!egorias, um principia de estrutura)
Uma alegoria classica e a do autor ingles John Bunyan's em Pilgrim's Progress,
onde o metodo para a salva<;ao crista e comparada com uma estrada na qual se
caminha, e tal comparac;ao e de tal forma ampliada, que a alegoria estrutura
toda a obra.
estrutura e da textura.
124
Epanaphora
Quando a mesma palavra
e repetida
Come ye heavy states of night, / .. ./Come Sorrow come her eyes that
sings,/. . ./Come you, virgens of the night.../Come Sorrow come her eyes that
sings ...
Epiphora
Quando varios membros de uma frase ou clausula terminam iguais .
... Silly heart then yield to die,/Perish in despair, /Witness yet how fain I
die,/When I die for the fair. 17
Symploce
Diversas frases comec;ando sempre com as mesma palavras causando maior
efeito
quando
numero
de
palavras
vai
aumentando
gradativamente.
1see my hopes must wither in their bud,/! see my favours are no lasting flow'rs,/1
see that words will breed no better good ... 18 .
Ploce
Quando urn nome proprio sendo repetido vai mudando seu significado.
Diaphora
Quando urn substantivo comum
17
18
e repetido e
mudando de significado.
125
What man is there living. that would not have pitied that case if he had bene a
Epanalepsis
Quando uma frase come9a e termina com a mesma palavra.
Farewell my friendes, a thousande times with bitter teares farewell 20 .
Anadiplosis
Quando a ultima palavra de uma clausula
diante.
With death, death must be recompensed, on mischiefe, mischiefe must be
heapte 21
Epizeuxis
Quando uma palavra
But down down down down I fall,/ And arise I never shall 22 .
Diacope
Quando uma palavra
... Gold nor pearl, but sounds of sorrow:/ Come Sorrow come her eyes that sings,
By thee are turned into springs 23 .
Traductio
Quando uma palavra
19
20
21
22
John Dowland,
Peacham (The
Peacham (The
John Dowland,
Second Booke
Elder), Garden
Elder), Garden
Second Booke
of Songs 1600
of Eloquence in: S. M. Pauley: Rhethoric .. .
of Eloquence in: S. M. Pauley: Rhethoric .. .
of Songs. 1600
126
One man hath but one soul,/ Which art cannot divide,/ If one soul must love,/
Two loves must be denied,/ One soul, one love, ... 24
texto
Spencer5 tambem
sugere
seu
proprio
metodo
para
interpretar
23
24
25
127
1. Enuncie claramente o texto para que possa ser compreendido. Torne o
significado do poema claro atraves da
acentua~ao
emo~ao
a famosa
can~ao
em
letra foi
128
a melancolia",
E uma
tipo de melancolia Dowland se trata. 0 Iongo lamento de que a pec;:a nos fala,
oferece uma (mica indicac;:ao de seu motivo: o exilio. Este pode ter sido um fato
real na vida do autor, que parece terse sentido exilado ao partir para o exterior
onde viveu como alaudista da corte do rei da Dinamarca.
A pec;:a apresenta uma repetic;:ao constante de quartas descendentes [Flow tears; fa! 1- springs; Ex- il'd; night's -her; in(famy) - sings; there -for (lorne)]. E o
mesmo intervalo de quarta aparece aumentado, criando maior tensao mel6dica.
A ideia do exilio como afeto principal (pathopeia) e refor<;ado melodicamente
com a pequena surpresa musical - a palavra exiled vern sublinhada pela
primeira vez por
conjuntos, como
dos graus
seguida.
uma abordagem numerol6gica, familiar ao perlodo, o numero 4 simbolizava
diversas coisas: 4 esta<;6es, 4 elementos, 4 humores, etc. Dizia-se que a quarta
tambem expressava a condic;:ao terrestre do homem, sua condi<;ao incerta, fragil.
Em Dowland aparece com frequmcia a imagem musical da queda do homem. A
figura do passaro negro aparece logo no come<;o, como metatora da morte.
Existem duvidas sobre esta caracteristica melanc61ica na propria personalidade
de Dowland. Alguns autores o consideram uma personalidade melanc61ica,
outros acreditam que ele assumia a persona de melanc61ico como meio para
129
atrair atengao para sua obra, ja que a melancolia era um "estado" de alma muito
em moda na lnglaterra desta epoca. Descobrir a verdadeira personalidade do
autor tem, no entanto,
130
2. FLO\X' MY TEARS
LACI(lMAli
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If
f.
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s
Never may my woe:; be rdi~Vtd,
Since p1ty is fltd,
And tears, and olghs, and gro11.n~ my wea1 y duys
Of all Joy; hal'e dcprivcrl,
My fortune is thrown,
And fear, and grid, aod pain fqr r:.y deberts
Are my hq>es biu~e lwpe i goue.
5
Hark you shadows that in darkntbB dwell,
Learn to contemn light,
Happy, happy they that in hell
Feel not the world's de~pite.
-~
133
Flow my Tears
provavel que esta seja uma das razoes para Dowland explora-la em tantas
vers5es diferentes - para alaude solo aparece na versao original de Pavana e
Galharda, e tambem nas Seven Tears, para consort, e finalmente na versao
cantada.
"desenhada"
a figura
grande
26
134
tritono (diabolus in musica). e finalizando em estado de melanc61ica aceitagao
da condigao de rejeigao, de expulso do paraiso (Feel not the world despite).
Tratando-se da Pavana em sua versao para alaude solo, todas as
consideragoes acima deverao ser observadas com extremo cuidado. As pegas
instrumentais de Dowland devem tambem ser consideradas como pegas
ret6ricas, que falam, que persuadem o ouvinte, que provocam tantos afetos
quanto as can<;oes faladas. Portanto ao interpretar esta obra, deve-se pensar no
peso do texto
e "colorir",
enfatizar
todas as figuras
ret6ricas acima
mencionadas.
E o que fazer ao tratarmos de uma pega que nao existe em versao
cantada?
Na Pavana Resolution, uma pega para alaude solo, poderfamos atribuir-lhe uma
letra para que ao executa-la possamos sentir todo o peso ret6rico que a musica
sem palavras possue.
135
2. ORNAMENTAf;AO
des
Prez
nao
anedota, surgida
suportava
ornamentos.
Ao
escutar
um
cantor
a ornamenta<;ao.
considerou-as
inapropriadas, ou
pouco fieis ao que ele mesmo tinha composto. Se a ornamenta<;ao era uma
pratica comum aos intepretes, recomendada por diversos manuais publicados
na epoca 28 , muitas vezes solistas virtuoses cometiam exageros, destruindo o
carater da musica com sua decora<;ao excessiva. Na musica de John Dowland,
especialmente nas Pavanas e Galhardas, a ornamentagao complexa das
Howard Mayer
Embelishing 16th Century Music, Oxford University Press, 1976.
Howard Meyer Brown oferece uma lista de dez livros fundamentais para o estudo da
ornamentac;ao:
Silvestro di Ganassi, Opera intitulata Fontenagara (Venice 1535); Diego Ortiz, Tratado de Glosas
sabre Clausulas, Roma 1553; Giovanni Camillo Maffey, Delle Lettere .. .Libre Due. Napoles 1562;
Giovanni Sassano, Ricercari, Passagi et Cadentie , Veneza, 1585; Richardo Rogniono, Passagi
per potersi essercitari nel diminuire. Veneza, 1592; Giovanni Baptista Bovicelli, Regale. passagi di
musica, madrigali e motetti passegiatti. Veneza, 1594; Aureliano Virgiliano, II Dolcimello, Bologna,
1600.
27
28
136
aut6grafs
por
desenvolve toda
como instrumentista.
29
Joachim Burmeister, Musical Poetics, 1606, trad. Benito Rivera, London, Yale U.P., 1993: um
ornamento e uma figura de passagem, tanto em harmonia quanta em melodias, contido num
determinado perlodo que sai de uma cadencia e termina em uma cadencia; ele parte de um
simples metoda de composiyao, e com elegancia assume e adota um carater mais ornamental.
Existem dois tipos de ornamentos: um pertencente harmonia, outro melodia.
137
Brincar com melodias, transformar longas notas em diversas notas
pequenas, preencher espac;os com todo o tipo de escalas, rapidas ou lentas,
enfeitar passagens criando novas densidades, parece ter nascido junto com o
habito de cantar. Hoje, na musica erudita, este habito praticamente se esgotou.
Em algumas manifestac;oes da musica popular,
instintivo e livre,
ornamentos.
renascenc;a
ornamentos
passaram
a ser
melhor
sistematizados,
artes
a exuberEmcia da ornamentac;ao.
plasticas
a definic;ao
compreendendo-a visualmente,
pode-se
de
ornamento
transporta-!a
mais
clara
musica.
e
Um
a estrutura
30
138
estrutura, sem colunas, a igreja se desfaz. As volutas,
e outros ornamentos
vivas ... dao a elas enfase e acentua9ao ... produzem maior expressao.'m
Cantores e
instrumentistas da
pe9as que
executavam, eles deveriam saber onde e como colocar ornamentos, como criar
e improvisar suas pr6prias divisions. Tomas de Sancta Maria, por exemplo,
recomendava
... Music has always been beautiful and becomes more so each
hour because of the diligence and study by which singers
enhance it; it is not renewed or changed because of the figures
[i.e., notes], which are always of one kind, but by graces and
3~
Frederick Neumann, Ornamentation in Baroque and Post Baroque Music, Princenton University
Press, New Jersey, 1983.
32 C.P.E. Bach, Essays, Berlin, 1753; em Robert Donington: The Interpretation of Early Music.
Faber and Faber, 1963.
139
ornaments it is made to appear aiways more beautiful. The
graces and accents are made by the breaking up of the notes
each time that one adds, in a tactus or a half, a quantity of figures
that are suitable to be uttered with velocity. These render such
pleasure and delight that we seem to hear so many trained birds,
who with their singing steal our hearts and leave us well
conented with their song. 34
Divisions
33
Tomas de Sancta Maria, Libro //amado arte de taner fantasia, 1556 em Howard M. Brown.
Ludovico Zacconi,Prattica di musica. Veneza, 1596: em Readings in the History of Music in
Performance. ed. Carol MacCiintock, Indiana University Press, 1979 A musica tem sempre sido
bela,e se torna ainda mais a cada hora, gra<;as diligencia e estudo atraves do qual os cantores
a enaltecem; ela nao e renovada ou mudada em fun<;ao das figuras [notas], que sao sempre de
um s6 tipo, mas pelas grac;as e ornamentos que a fazem parecer ainda mais bela. As grac;as e
acentos sao feitos atraves da quebra das notas, cada vez que sao agregadas, num tactus ou
minima, uma quantidade de figuras que sao apropriadas para serem expressas com velocidade.
Estas provocam um tal prazer e deleite que parece que escutamos varios passaros treinados,
cujo canto rouba nossos cora<;oes e nos deixa bem contentes com seu canto.
34
140
A arte das divisions (ou diminuigoes; passagio,
minuta,
italiano; glosa,
a um ponto extremo de
divisions. Seu metodo difere substancialmente dos de seus colegas pela vasto
numero de exemplos e pela liberdade ritmica de suas formulas. Lodovico
Zacconi aconselha o aprendizado das passagi atraves do ouvido, e nao por
escrito, pois ficaria diflcil escrever corretamente o ritmo de tais passagens.
Talvez Ganassi tenha tentado expressar graficamente esta liberdade ritmica
com mais precisao ao escrever suas complicadas quialteras de 5:4, 6:4 ou 7:4.
35
Sylvestro Ganassi, Opera intitulata Fontegara, Venice, 1535; tradu<;:ao para o ingles D.
Swainson, em Frederick Neumann, etc
141
Jl
Jgt: j:.
~~-
seria o de imitar as
em
sua
versao
para
alaude
(as
famosas
intabulaturas),
sem
da
36
142
melhor fonte para a cria<;ao de divisions sao os proprios exemplos encontrados
na literatura para alaude. Os tratados de ornamentagao da Renascenga
costumam apresentar formulas melodicas para preencher espagos entre as
notas, em geral apresentando todos os intervalos melodicos ascendentes e
descendentes, e formas de elaborar as cadencias. No Fontenagara de Ganassi
(1535), o autor apresenta 175 variantes em uma (mica formula cadencial 37 .
Notas de passagem:
Sao notas que fazem a conexao entre duas notas separadas por uma terga
("appogiatura de passagem") ou tirata (em frances tirade, coulade), quando o
intervalo
as
por
muitos
autores
de
tirata
livre.
Giulio
Caccini
refere-se
37
38
143
Lachrimae Pavan compasso 20 e 28
Lachrimae ( 1 a 9)
lJll''Ut..l (l:'iG-),
Tremolo
[ ornamented]
c. lJln.HJ, Tn:moletto
.
~'
J oOU), nillo
(l
~- .~.~~~~*~~
:;o3 or 1 t10:l),
144
Pode-se observar nas pr6prias divisions de Dowland, que poucas sao as regras
a seguir. Examinando bem o que o autor faz, pode-se levantar uma serie de
procedimentos que surgem frequentemente, passando a constituir seu estilo
proprio e um bom indicador de como construir divisions dentro
linguagem
145
originais, mas sem nenhuma forma fixa. Estas sao provavelmente as figuras de
oranmentagao
mais comuns
reproduzl-las
Sequencias:
Pratica comum no barroco tardio, em Dowland as seqencias aparecem com
durag5es curtas, podendo tambem ser classificadas(,) em
ret6rica como
gradatio. Em geral, na passagem das notas originais para as divisions, uma das
ITl
[jQ
I
I "' '
\ v
lmitac-;ao:
As imitag5es servem basicamente para manter a unidade da pega. A recorrencia
de pequenos fragmentos e muito frequente.
Exemplo: Bacheler, compasso 7 para 11/12
~=I
....
LL-JJ \[M . ~
146
147
5. Figuras de cadencia:
As figuras de cadencia sao ilustrativas de como Dowland trabalhava as
divisions em suas pe<;as. Muitas vezes, na division
as figuras de cadencia
21 para o 30.
.....
148
para
13.
,,
Ornamenta~ao
Em geral
Dowland(.)
Ha
os procedimentos na obra de
e conservado,
mantendo
149
figura de cadencia,
ja
bern
150
-..-=l~t
n "'
liT
1+17
1
-v
...
"
~7
,1.
ffff.Fffi Jffl.
....,..:;.
151
ORNAMENTOS CURTOS OU REPERCUSSIVOS
Os manuscritos do perlodo conhecido como Golden Age (Periodo de Ouro.
1550-1625) revelam que o uso de ornamentos era mais proficuo na lnglaterra
do que em qualquer outro Iugar do continente europeu.
A obra de John Dowland abarca dois periodos do reinado ingles:
o periodo
a ornamentac;ao
39
manuscritos: The William Ballet Lute Book (1590-95) e The Mynsha/1 Lute BooK
(1597 -1600). Do perlodo elizabethano, as unicas referencias
a ornamenta9ao
Belonging to Lute-Playing
referencias
as
You should have some rules for the sweet relishes and shakes if
they could be expressed here, as they are on the Lute: but
seeing they cannot by speach or writing be expressed. thou wert
best to imitate some cunning player ... ~ 0
39
David Mariott, English Lute Ornamentation. em "Guitar & Lute N. 9" - abril 1979
'V6s deverieis conhecer algumas regras para os doces relishes e shakes se eles pudessem
aqui ser expresses da maneira como o sao no alaude: mas vendo-se que eles nao podem. nem
por palavras nem por escrito serem expressos. a v6s cabera melhor imitar algum alaudista
especial'' Robert Dowland, Varietie of Lute Lessons, em David Marriott, etc
40
152
Uma fonte muito apropriada para a pesquisa sobre a ornamentac;ao na
obra de John Dowland e urn manuscrito do seculo XVII: o Musick's Monument
de Thomas Mace ( 1676). Apesar de ter escrito seu tratado bern mais tarde do
que o periodo em que Dowland viveu, Mace conheceu bern sua obra e se refere
ao compositor com pesar e saudosismo. lniciou seus estudos dois anos antes
da morte de Dowland e viveu o periodo da decadencia do alaude renascentista,
e do desenvolvimento da teorba. 0 tratado de Mace tern um clima de nostalgia,
mantendo sempre um olhar sobre o passado,
Para
desconsiderados,
este
trabalho
muitos
eram aplicados
dos
a musica
ornamentos
devem
ser
I will now, in thefe a Chapter following, lay down, all the other
Curiofities, and Nicities, in referenceto the Adorning of your Play:
(for your Foundations being furely Laid, and your Building well
Rear'd, you may proceed to the Beautifying, and Painting of your
Fabrick) And thofe. we call the Graces in your Play. 41
41
[Eu 1rei agora , no capitulo que se segue, explicar todas as outras Curiosidades e Belezas em
referencia a adornar a sua execuc;ao (pois seus fundamentos tendo sido expostos. e seu
entendimento bem assentado, podereis proceder ao Embelezamento e Pintura de seu Tecido) E
a estes chamamos as Ornamentac;oes de vossa Execuc;ao]. Thomas Mace,Musick's Monument,
Editions du Centre National de Ia Recherche Scientifique, Paris, 1958.
153
1. Shake (Trilo ): Representado pelo simbolo #, equivale ao trilo moderno.
No
Remembering to stop the b, Hard and close, all the time of your
shaking: and if you will have a Soft. and Smooth Shake, then
only Beat the letter d Hard, and OUick, directly down, and up,
with the very Tip of your Little Finger .::
bastante rapidas. Um trilo mais Iongo seria apropriado para notas mais longas.
Thomas Robinson aconselha o uso de shakes mais longos para que a nota
longa possa durar mais tempo.
Apesar
154
no periodo
42
155
finger, must fall smartly into f; so that f may sound strongly, only
by that Fall; which will cause a Pritty, Neat and Soft Sound,
without any other striking, and this is the Half-fall. 43
Exemplo:
X
('
<
c@ r r r r II
>
o:=
~-
r'-
r r }f
43
"0 Half-fall comec;a sempre na nota inferior ... e executa do tocando a nota inferior primeiro;
mas assim que esta for tocada, v6s deveis rapidamente bater a verdadeira nota (com o dedo
apropriado, que ja deve estar pronto esperando) sem nenhum outro toque. Suponhamos que eu
queira executar um half-fall emf, na primeira corda (ou outra ordem) eu devo colocar o dedo em
e, como se nada mais eu pretendesse fazer, mas assim que o e tenha dado seu som perfeito,
meu proximo dedo deve cair perfeitamente em f, de forma que o f possa soar forte, somente pelo
Fall; que devera provocar um som bela, limpo e suave, sem nenhum outro toque, e este e o halffall." Thomas Mace, etc.
156
closely after, (holding b still stopt) fall my third or little finger. as
hard into the true intended letter d ., 44
J J
,P
CL
a;
f d
Suponhai que eu quisesse dar um whole fall a letra d, sobre a quinta corda: entao eu devere
primeiramente tocar a, nesta corda; e entao cair com o dedo indicador com fm9a sabre o b. na
mesma, e assim, logo depois, (segurando b ainda parado) cair com o terceiro ou quarto, bem
forte sobre a verdadeira nota d.
45
Agora para vosso Fall com relish ... onde [ fica na primeira corda. pois [ e sustenido, deve teseu fall da nota inteira de a, e [tendo tido seu fall, pode ser mantido sem mover o dedo indicador.
eo relish continuado (como dedo mindinho) em d que e sob half note.
44
157
nota auxiliar inferior e alternando com a nota principal e a nota auxiliar superior
por muitas repercuss6es.
........--:::.
IC:
I?
r.
ff1J
...
:A-I
/
t7
"
/I
na musica do
periodo
que contrasta
com a
Eo
usado era ) e era colocado antes da letra da nota (na tablatura). 0 simbolo
comec;a a aparecer na lnglaterra a partir de 1610.
158
may sound, (by reason of that tw1ch, or falling back) presently
after the letter r is struck 46
fl
~"'
7_
I"
1':7'-
I,
-it-
/
/
5. Back-fall shake:
e, "tremido", repetido varias vezes. Resulta num trilo partindo da nota auxiliar
superior para a nota real. Hoje chamamos este ornamento de trilo preparado.
Os sfmbolos contem a combina<;ao do back-fall) e o shake # urn ao lado do
outro,
)b#
46
Suponhai que eu queira fazer um back-fall sobre a, na primeira corda, entao eu necessito
primeiramente apertar r, na mesma corda, e toca-la, como se minha (mica intenc;;ao fosse fazer r
(somente) soar: assim logo que eu tiver tocado r. eu devo, com o dedo que apertava a nota
159
l'""r'l
?"15
f
xfI
Q.,
~
F
'---
(A_,
I
!<
??)
"'
I
(somente) fazer soar a, ao puxar esta corda, com uma especie de be ;scao, de modo que a letra
a soe (par causa deste beliscao ou falling back) em seguida que a letra r e tocada.
160
161
162
r
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ANEXO
Carta citada e corrigida para ortografia moderna por Diana Poulton, em seu livro:
Queen's
Majesty's
Right honourable: as I have been bound unto your honour so I most humbly
desire your honour to pardon my boldness and
your honour to let you understand my bounden duty and desire of God's
preservation of my most dear Sovereign Queen and Country: whom I beseech
God ever to bless & to confound all their enemies what & whom soever. Fifteen
years since I was in France servant to Sir Henry Cobham who was embassador
of the Queen's Majesty, and lay in Paris where I fell acquainted with one Smith a
priest, and one
who brake out of England being apprehended & one Morris a Welshman that
was our porter, who is at Rome; these men thrust many iddle toys into my head
of religion, saying that the papist' was the truth & ours in England all false, and I
being but young their fair words overrreached me & elieved with them. Within
two years after I came into England where I saw men of that faction condemn &
executed which I thought was great injustice taking religion for the only cause,
and when my best friends would persuade me I would not believe them. Then in
167
time passing one Mr Johnson died & became an humbler suitor for his place
(thinking myself most worthiest) wherein I found
many
good
and
honourable friends that spake for me, but I saw that I was like to go without it,
and that any may have preferment but I, whereby I began to sound the the
cause, and guessed that my religion was my hindrance. Whereupon my mind
being troubled I desired to get beyond the seaswhich I durst not attempt without
licence from some of the Privy Council, for fear of being taken and so haave
extreme punishment. And according as I desired there came a letter to me out of
Germany from the Duke of Brunswick, whereupon I spake to your honour & to
my Lord of Essexwho willingly gave me both your hands (for which I would be
glad if there were any service in me that your honours could command). When I
came to the Duke of Brunswick he used me kindly & gave me a rich chain of
gold, $ 23 in money with velvet and satin and gold lace to make me apparel, with
promisse that I would serve him he would give me as much as any prince in the
world. From thence I went to Lantgrave of Hessen, who gave me the greatest
welcome that might be for one
20 sterlings, and gave me a great standing cup with a cover gilt, full of dollars
with many great offersfor my service. From thence I had great desire to see Italy
& came to Venice and from thence to Florence where I played before the Duke &
got great favours, & one evening I was walking upon he piazza in Florence a
gentleman told me that he spied an English priest & that his name was Skidmore
& son and heir to Sir John Skidmore of the Court. So I being intended to go to
Rome to study with a famous musician named Luca Marenzio: stepped to this Mr
168
Skidmore the priest and asked him if he were an English man, & he told meyea:
& whose son he was, & telling him my name he was very glad to see me, so I
told him I would go to Rome & desired his help for my safety, for said I, if they
should mistake me there my fortune were hard, for I have been thrust off of all
good fortune because I am a Catholic at home. For I heard that her Majesty
being spoke to for me, said I was a man to serve any prince in the world, but I
further talk we spake of priests, & told him I did not think it
true that any priests (as we said in England) would kill the Queen or
once
go about to touch her finger, and said I whatsoever my religion be I would neither
meddle nor make with anything here done, so that they do not anything against
the Queen. Where unto he answered that I spake as a good subject to her
Majesty, but said he in Rome you shall hear Englishmen your own countrymen
speak most hardly of her and wholly seek to overthrow her & all England. And
those be the Jesuits said he who are of the Spanish faction. Moreover said he
we have many jars with them & withal! wished to God the Queen were a
Catholic, & said he, to defend my Country against the Spaniards I would come
into England & bear a pike on my shoulders.
he had orders to attach divers English gentlemen, & that he had been 3 years
[out of?] England, so I brought him to his lodging door, where he told me that
there was 9 priests come from Rome to go for England. He came but the day
before to Florence, & I think they came altogether, he told me that he would stay
there in the town and study in an abbey called Sancta Maria Novella, & that must
169
be in for one month, and that he would write letters of me to Rome, which I
shoud receive very shortly, but I heard not of him in a month after, and then ther
came two friars to my lodging the one was an Englishman named Bailey, a
Yorkshireman. The next day after my speech with Skidmore I dined with my Lord
Gray and Divers other gentlemen, whom I told of my speech with Skidmore
giving them warning. Whereupon my Lord Gray went to Sienna, and the rest
dispersed themselves. Moreover I told my Lord Gray Howsoever I was for
religion, if I did perceive anything in Rome that either touched her Majesty or the
state of England I would give notice of it though it wee the loss of my life, which
he liked well & bade me keep that secret. This friar Bailey before named
delivered me a letter which I have here sent your Honour. which letter I breack
open before Mr Josias Bodley, & showed what was written in it to him & divers
other,after this, this friar Bailey told me he had received letters from Rome to
hasten me forward, & told me that my discontentment was known at Rome, and
that I should have a large pension of the Pope, & taht his Holiness &all the
cardinals would make woundeful much of me, thereupon I told him of my
and children how to get them to me, wherunto he told me that I should have
acquaintance with such as should bring them over to me if she had any
willingness or else they would loose their lives for there came those into England
for such purposes, for quoth he Mr Skidmore brought out of England at his last
being there 17 persons both men and women, for wich the bishop weeps when
he sees him for joy. After my departure I called to mind our conference & got me
by myself & wept heartily, to see my fortune so hard thet I should become
170
servant to the greatest enemy of my prince:country: wife: children: and friends:
for want, & to make me like themselves. God knoweth I never loved treason nor
treachery nor never knew any, nor never heard any mass in England, which I
find is great abuse ofth people for on my sole I understand it not. Wherefore I
have reformed myself to live according to her majesty's laws as I was born
under her Highness, & that most humbly I do crave pardon, protesting if there
were any habilityin me, I would be most ready to make amend. At Bologne I met
with two men, the one named Pierce and Irishman, the other named Dracot.
They are gone both to Rome. In Venice I heard an italian say, that he marvelled
that King Philip had never a good friend in England that with his dagger would
dispatch the Queen's Majesty, but said he, God suffers her, in the end to give
her the greater overthrow. Right honourable this have I written that her Majesty
may know the villainy of this most wicked priests and Jesuits, & to beware of
them. I thank God I have both forsaken them and their religion which tendeth the
Queen's Majesty, & to confound all her enemies & to preserve your honour & all
the rest of her Majesty, & the other priests are all in England for he stayed not
he said he would to me, & friar Bailey told me that he was gone into France to
study the law. At Venice & along as I came in
Spain is making great preparation
171
From Nurnberg thisd 1Oth of November 1595.
Your Honour's most bounden
forever
Jo:Doulande
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Nature
and
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3. SORROW, STAY
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Holy hopes do require.
Favour is as (air as th1ngs are,
Treasure IS. not bought,
Favour is.not won with words,
Nor the wish of a. thought.
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