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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES
Mestrado em Artes

NTOS

A I
RA
J
DOWLAN PARA ALAUDE
(COM ENFASE NAS PAVANAS E GALHARDAS)
SILVANA SCARINCI

PINAS -1998

F ICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA


BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

Sca73e

Scarinci, Silvana
Elementos para a interpreta9ao da obra de John
Do'-lllland para alaude: (com enfase nas pavanas e
gall1ardas) I Silvana Scarinci. -- Campinas, SP : [s.n.],

1998.
Orientador : Helena Jank.
Disserta9ao (mestrado)- Universidade Estadual de
Carnpinas, lnstituto de Artes.
1. Dowland, John, 1563?-1626. 2. Musica barroca.
3. Alaude. 4. Musica para alaude. 5. Musica e ret6rica.
I.
ank, Helena. II. Universidade Estadual de Campinas.
lnst: ituto de Artes. Ill. Titulo.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


INSTITUTO DE ARTES
Mestrado em Artes

ELEMENTOS PARA A INTERPRETA<;AO DA OBRA DE JOHN


DOWLAND PARA ALAUDE
(COM ENFASE NAS PAVANAS E GALHARDAS)
SILVANA SCARINCI

Dissertac;ao apresentada ao Curso de


P6s-Graduac;ao em Artes do Institute de
Artes da Universidade Estadual de
Campinas, como requisite parcial para a
obtenc;ao do Grau de Mestre em Artes
sob a orientac;ao da Profa. Ora. Helena
Jank.

Apoio: FAPESP
CAMPINAS- 1998

Ao Nigel, com amor


A Livia e a Sofia, com amor

III

A minha orientadora, Helena Jank, pela confian<;a, apoio intelectual e amizade.

A FAPESP cujo apoio foi fundamental para a realiza<;ao deste trabalho durante
dois anos e meio.

A FAEP que apoiou-me para a conclusao deste trabalho durante urn mes.

Ao Departamento de P6s-Gradua<;ao do lnstituto de Artes, pela


constante.colabora<;ao e eficiencia.

Ao meu pai e ao Arthur, pelo gosto das ideias.

A minha mae, pelo gosto da musica.

IV
RESUMO

Esta dissertac;ao pretende discutir a interpretac;ao hist6rica focalizada na


obra de John Dowland para alaude.
Utilizando exemplos escolhidos entre as Pavanas e Galhardas do autor, a
dissertac;ao constitui-se de reflexoes sabre performance hist6rica e dos passos
necessarios a serem tornados por qualquer interprete interessado em executar
esta musica.
Um quase manual de interpretac;ao se delineia nestas paginas - a tecnica
do alaude e descrita baseada em tratados e manuscritos da epoca do autor,
com comentarios necessarios para a melhor compreensao do interprete
moderno.
terreno mais proximo

a chamada

autor e apresentada e discutida: Dowland

"nova musicologia", a obra do

e um profunda conhecedor das artes

da ret6rica e sua musica e um poderoso meio de manipulac;ao do ouvinte.


conclusao se da em aspectos praticos de interpretac;ao: as Pavanas e
Galhardas sao descritas a partir do tratado de danc;a do seculo XVI de Thoinot
Arbeau. 0

conhecimento do universo das danc;as da corte elizabetana

enriquece a interpretac;ao com significados alem da danc;a propriamente dita.

v
A ret6rica e a ornamentac;ao sao elementos fundamentais para a boa
interpretac;ao da musica de Dowland e sao amplamente discutidos nos dais
ultimos capitulos da dissertac;ao.

VI

iNDICE

lntroduc;ao ............................................................................................................ 1
Capitulo I- lnterpreta<;ao hist6rica: contribui<;6es e limites ................................. 9
Capitulo II - 0 instrumento: ...............................................................................32
1. A Nota<;ao
2. Aspectos Tecnicos

Capitulo Ill - Os

na obra de John Dowland ........................................... .50

Capitulo IV- Pavanas e Galhardas: as dan<;as ................................................. 89


Capitulo V- Elementos de interpreta<;ao: ........................................................ 112
1. 0 uso da ret6rica em Dowland
2. Ornamenta<;ao

ANEX0 ............................................................................................................ 166


Bibliografia ...................................................................................................... 172

INTRODU<;AO

Executar a obra para alaude solo de John Dowland nao e tarefa facil. Um
dos compositores mais proficuos do perlodo elizabetano, Dowland compunha
para seu instrumento sem poupar enormes dificuldades tecnicas. Para superalas e alcan<;ar um nivel tecnico satisfat6rio, ou mesmo quando ja superadas tais
barreiras, o dever do interprete sera o de dominar um universe complexo de
questoes que se estendem por territories amplos e muito discutidos na area da
interpreta<;ao hist6rica. Este e um terrene acidentado e aberto a ampla
discussao. Talvez em nenhum outro memento da hist6ria da musica, a
interpreta<;ao tenha refletido tanto sobre si mesma, tornando-se tao auto
consciente. A musica antiga nao e apenas

interpretada, ela e

discutida e

revista dia ap6s dia, numa constante mudan<;a de conceitos, desde que o
movimento de reconstru<;ao hist6rica ensaiou seus primeiros passos no inicio
deste seculo. A figura do interprete de musica antiga liga-se ao do arque61ogo
escavando as ruinas do passado, mas mesmo consciente desta artificialidade
arqueol6gica, o resultado atingido pelos interpretes modernos tern sido na
maioria

dos

casas

revitalizante,

revestindo

de

frescor

aparente

espontaneidade uma musica ressuscitada das cinzas do passado.


Esta espontaneidade devera ser conscientemente construida por cada
interprete que se aventurar por estes campos. Esta foi
disserta<;ao de mestrado.

com a obra de

minha tarefa nesta


Dowland e propor-me

2
a toca-la da forma mais autentica possivel, colocou-me diante de diversos
desafios. Passo a passo dispus-me a enfrenta-los, como numa longa viagem a
urn Iugar desconhecido - com a surpresa e emo((ao da descoberta de novos
universos, e com a disposi((ao de urn jovem marinheiro, com a pena e o diario
de bordo as maos para relatar os ricos detalhes de suas experiencias ao voltar
para casa. Porem a casa nunca mais sera a mesma - a viagem e uma odisseia
que nao leva Ulisses de volta para seu universo familiar: a musica antiga e o
mundo novo que seduz e fascina os forasteiros, e os faz esquecer o caminho
de volta.
lnterpretar a obra de John Dowland, revelou-se uma experiencia unica e
apaixonante. 0

repert6rio e imenso, profunda e denso - outros autores

modernos para instrumentos modernos (em

meu caso o violao) tornaram-se

palidas lembran((as que pessoalmente perderam grande parte de sua antiga


atra((ao. 0 alaude e urn instrumento timbristicamente muito rico e apresenta
uma tessitura bern maior que do violao moderno. 0 caminho que percorri - do
violao ao alaude -

e semelhante

ao que a maioria dos alaudistas modernos

percorreram (como Nigel North, Paul O'Dette, Hopkinson Smith, etc). Esta
disserta9ao

poderc~

ser lida urn pouco como urn relata desta viagem, ou urn

manual de instru((6es ou reflex6es para o instrumentista que desejar aventurarse pelo mundo do alaude. No Brasil, com a limita((ao de informa((6es a este
respeito, considero estar colaborando modestamente neste sentido: espero que
trabalho possa ser util para alguns outros solitarios exploradores que

3
partam

busca de tesouros inimaginaveis nas minas profundas da musica

antiga.

No capitulo I apresento uma descrigao de como a performance hist6rica e


a figura do interprete-music61ogo tiveram inicio na Europa, no inicio do seculo
XX. Estudar musica antiga passou a ser nao s6 um objeto de pratica de
interpretagao,

mas de pesquisa musicol6gica obrigat6ria para todos os

interpretes desta area especifica.

A partir das interpretagoes romanticas do

repert6rio barroco do final do seculo passado, surgiu um personagem inovador Arnold Dolmetsch (nascido em 1858) que tentou recriar a antiga musica inglesa
para violas. De tal estatura e importancia no renascimento de instrumentos
antigos, devemos lembrar tambem Wanda Landowska, a primeira interprete de
cravo deste seculo. Depois deste inicio revolucionario, o movimento ganhou
cada vez maior numero de adeptos e a profusao de instrumentos antigos
produzidos e interpretes dispostos a toea-los tomou conta da Europa e mais
tarde dos Estados Unidos (sempre com alguns reflexos mais palidos em nosso
continente ). 0 resultado e que hoje escutar musica antiga de forma "autentica"
passou a ser quase obrigagao em um mercado exigente de qualidade e
novidade. A questao de autenticidade, no entanto, e uma discussao que levanto
neste capitulo, tratando a interpretagao hist6rica da mesma forma como a
tradw1ao

e hoje discutida. A relagao do interprete com um texto musical original

pode ser vista como aquela do tradutor com a tradugao de um texto que nao lhe
pertence. Quando um interprete ou tradutor le/re-le/interpreta uma obra, ele se

4
reapropria deste texto como se fosse seu, e cria um novo texto, uma obra jamais
antes ouvida ou executada. Neste plano, o interprete e tambem um

criador,

rebelando-se contra a figura paterna geradora de um texto original, que


impregna a pec;a com seus pr6prios tra<;os, sua propria concep<;ao. Significado
em musica

um terreno escorregadio, podendo gerar grandes discussoes

musicol6gicas. Susan McClary e uma autora inovadora, fascinante e audaciosa,


cuja

obra Feminine Endings: music, gender and sexuality teve enorme

influencia em meu trabalho ao desvendar o papel do interprete como gerador de


novos significados na obra de Dowland. A Galharda The King of Denamark pode
ser lida como uma simples
Guerre e La

Battle a exemplo das pe<;as de Jannequin (La

com seus temas imitando trompetes, um elogio ao rei da

Dinamarca. Paul O'Dette, reapropriando-se da pe<;a como novo autor, le na obra


uma grande provoca<;ao ao rei, zombando de suas mal sucedidas batalhas, ao
recria-la impregnada de uma ornamenta<;ao bem humorada e desrespeitosa.
A busca de autenticidade criou um verdadeiro canone de regras de

interpreta<;ao. Fugir a ele pode ser vista como desconhecimento, ignorancia ou


falta de bom senso. As vezes, porem, toda a pesquisa musicol6gica em torno da
interpreta<;ao autmtica pode tornar-se uma camisa de for<;as e restringir o
interprete ao inves de liberta-lo.

John Dowland foi um autor de extrema importancia no desenvolvimento


da musica na lnglaterra, no seculoXVI e XVII. Sua vida intelectual e artfstica
girava em torno de autores como Shakespeare, Baccon, Donne, Spencer,

5
Morley, Gibbons e Bird, entre outros. Foi um periodo extremamente aberto para
a cultura do continente, principalmente a francesa e italiana, e como estas,

redescoberta da cultura classica. Os mitos gregos eram usados em profusao


como meios para interpretar as relac;oes sociais, politicas e culturais do
momento. 0 mito de Orpheu representa a possibilidade do homem de se
diferenciar do mundo irracional das bestas. Orpheu, atraves de seu poder
ret6rico,

utilizando 0

persuasiva, da luz

poder da

a civilizac;ao.

musica aliada

palavra,

magicamente

A ret6rica classica era estudo obrigat6rio para

todo musico ou menino que recebe qualquer tipo de educac;ao mais elevada.
Dowland

dominava

ret6rica

conhecia

seus

poderes

utilizava-se

conscientemente dela para seduzir e manipular seu publico. Sua musica ora
joga o espectador na mais profunda angustia diante do desespero do exilio ou
da morte, ou lanc;a-o na mais obscura melancolia. Os bi6grafos tradicionais de
John Dowland retratam-no como um profundo melanc61ico.

A musica de

Dowland, na realidade, e distanciada e ir6nica - o autor conhecia mais do que


ninguem o poder daquilo que faz e era extremamente habilidosos para lidar com
os afetos, conscientemente manipulando as emoc;oes de seus ouvintes. Robin
Headlam Wells foi neste momento um autor de grande auxilio para compreender
Dowland dentro de um contexto mais ideol6gico.

A partir desta leitura, tento

demonstrar como atraves de sua musica, Dowland e tambem um autor que


resiste ao poder, capaz de zombar do proprio Rei ou ser sarcastico e acido
com a Rainha.

6
Para interpretarmos a obra de Dowland, e necessaria conhecer um pouco
da dan9a hist6rica, uma area ainda menos desenvolvida que a performance
musical hist6rica, pois em dan9a poucos tratados de epoca sobrevivem- e ainda
uma nota9ao precisa dos passos de dan9a ate hoje nao se desenvolveu
plenamente. Baseei-me neste capitulo na obra mais importante do seculo XVI
sobre dan(fa. Trata-se da Orcheseographie de Thoinot Arbeau. A hist6ria das
Pavanas e Galhardas e descrito pelo autor, e o tratado e extremamente claro
em suas descri96es de tais dan9as: com um pouco de pacimcia, podemos hoje
reconstruir com certa facilidade os passos das nobres e pomposas Pavanas e
das leves e virtuoslsticas Galhardas. 0 conhecimento destas dan9as, porem,
deve ser feito com certa cautela. As Pavanas e Galhardas de John Dowland
estao varios passos alem da musica simplesmente feita para dan9ar. Dowland
e um autor extremamente sofisticado, plenamente consciente de sua condi9ao sua musica vai alem de uma fun<fao de simples entretenimento, e a musica
sobre a musica. Os ouvintes da epoca de Dowland estavam familiarizados com
estas formas de dan<;as, e ouvi-las remetia-os a urn universo muito familiar.

0 ultimo capitulo trata especificamente de interpreta9ao. A tese se


conclui com fatores de aplica<fao pratica imediata. Como expliquei

em meu

primeiro capitulo, o estudo de musica antiga transforma o interprete nesta nova


figura: a do interprete-music61ogo. Normalmente excludentes no mundo da
musica, os dois aqui se unem em um unico personagem. A disserta9ao conclui-

7
se com dois fatores fundamentais para a interpretac;ao hist6rica da musica de
John Dowland. 0 uso da ret6rica em Dowland e a ornamentac;ao de sua obra.
A musica de Dowland, mesmo em sua versao puramente instrumental,
"fala", expressa paixoes e provoca tantos afetos nos ouvintes quanta Orpheu ao
mover montanhas e acalmar as feras. 0 interprete moderno devera entrar em
contato com a arte da persuac;ao (Ret6rica), e saber como extrair da musica
todos os significados que "maravilhosamente emocionam, mexem, provocam e
inflamam a mente dos ouvintes". 1
Scott Mitchell Pauley desenvolveu urn metoda para a interpretac;ao
ret6rica das canc;oes de Dowland. Avanc;ando urn pouco nesta ideia, sugiro que
o interprete devera pensar na obra solo como se proveniente de urn texto - e
este texto devera ser "cantado" pelo alaudista, provocando os mesmos affetos
que as canc;oes provocam com suas palavras.
Encerro a dissertac;ao com urn elemento de interpretac;ao fundamental
para os interpretes de toda a musica do periodo elizabetano: ornamentac;ao.
como pode- Utilizei-me de uma fonte historicamente apropriada para desvendar
o uso de ornamentos em Dowland: o Musick's Monument de Thomas Mace de
1676. Conclui com a realizac;ao da ornamentac;ao desta Pavana (Lachrimae)
realizada a quatro maos com o alaudista ingles Nigel North.

Em Dowland,

grande parte de sua obra constitui-se especificamente das divisions: variac;oes


advindas de praticas de improvisac;ao muito comuns na epoca. Tento

Sir Thomas More, Utopia; ver capitulo V

8
apresentar algumas regras de como criar suas pr6prias divisions dentro do estilo
de Dowland, apresentando no final uma versao (realizada tambem a quatro
maos com Nigel North) de divisions para a ultima parte da Pavana Resolution.

CAPiTULO I
INTERPRETA<;Ao HISTORICA: CONTRIBUI<;OES E LIMITES.

A musica que costumamos chamar de antiga - da ldade Media ao final do


periodo Barroco - tern ocupado urn espac;o vasto num terreno comum a duas
areas: a do music61ogo e a do interprete. 0 interprete atual de musica antiga
tornou-se necessariamente urn music61ogo, preocupado com quest6es como
autenticidade, fidelidade, originalidade, etc. Ao deparar-se com manuscritos e
tratados antigos de musica, este interprete-music61ogo viu-se forc;ado a se
afastar de uma longa tradic;ao de interpretac;ao romantica da musica dos mais
diversos periodos. lnterpretar musica barroca, ou renascentista ou medieval,
passou a ser uma area especifica de interpretac;ao, com urn grande repert6rio
de regras e c6digos a serem cumpridos, numa tentativa de "fidelidade" ao
original, de forma a tornar esta musica mais "autmtica" ou

"hist6ricamente

correta".

Esta uniao entre os dois especialistas comec;ou com Arnold Dolmetsch


(nascido em 1858), ao tentar reviver a antiga musica inglesa para violas. Nesta
epoca o pouco de musica barroca conhecida - Bach ou Handel - era executada
em grandes pianos e grandes orquestras, ou nas re-criac;oes romanticas de
Busoni. Surgiram ai tambem as recriac;oes de Stravinski sobre Pergolesi
(Pu!cinella) e mais tarde as de Benjamin Britten sobre Purcell. Mas neste caso
nao se trata de uma simples interpretac;ao e sim de uma experiencia alterada da

10
musica original, uma nova composigao. As interpretag6es de musica antiga de
entao baseavam-se no pressuposto de que aquela musica encontrava-se
esteticamente ultrapassada, e tentava seduzir o publico com suas vers6es
sinf6nicas, vers6es que hoje seriam pouco aceitas por urn publico familiarizado
com a performance hist6rica. Usava urn artificio historicamente deslocado, nao
fosse o valor em tentar ressuscitar esta musica ha tanto tempo esquecida.
Dolmetsh teve a "visao profetica de que o prazer de escutar Bach desta forma
poderia ser magnifico, mas nao era Bach - e que a musica antiga, familiar ou
nao, tornava-se ainda mais magnifica em suas sonoridades pr6prias". 1 Suas
performances por muitos anos eram acompanhadas de discursos exacerbados,
por se sentir incompreendido em suas execug6es de musica em instrumentos
originais.
Nao podemos esquecer, tampouco, os esforgos de Wanda Landowska
(Vars6via, 1879 - Connecticut, 1959), a primeira interprete do cravo neste
seculo. Em sua formagao como pianista ja apresentava grande entusiasmo pela
obra de Bach. Sob o apoio e influencia de seu companheiro Henry Lew, uma
autoridade em folclore hebraico, Landowska passou a pesquisar profundamente
a musica do s<:kulo 17 e 18. Em 1903 apresentou-se pela primeira vez em
publico tocando cravo e em 1909 publicou seu livro Musique ancienne. Logo
ap6s a primeira guerra, tocou continuo na Paixao segundo Sao Mateus,
executado no cravo pela primeira vez no seculo XX.

Robert Donington, "Why Early Music?'", em Early Music, janeiro 1983.

. 1925, instalou-se em

11
St-Leu-la-Foret, ao norte de Paris, onde fundou sua Ecole de Musique Ancienne
atraindo alunos de todo o mundo. Com a invasao dos nazistas durante a II
Guerra, viu-se obrigada a abandonar sua escola, deixando para tras uma
biblioteca de 10.000 volumes e sua colec;ao de instrumentos. Viveu o resto de
sua vida nos Estados Unidos, formando grandes cravistas e divulgando com
enorme sucesso seu instrumento 2 .

Robert Donigton descreve o inicio do movimento de musica antiga como


Iento e isolado no periodo anterior

a guerra.

0 movimento se reduzia a alguns

poucos amigos e alunos de Dolmetsch (entre eles Diana Poulton, a pioneira do


alaude e principal copiladora da obra de John Dowland). Ap6s a guerra, a
situac;ao mudou rapidamente e novos espac;os iam se abrindo para a nova
pratica da velha musica: A radio BBC de Londres, sob a produc;ao de Denis
Stevens, criou, em 1949, um programa de musica antiga, beneficiando diversos
interpretes e grupos. Sucede-se a criac;ao de diversas organizac;oes como a
Dolmetsch Foundation (1929), Society of Recorder Players (1937), Galpin
Society (1946), a Viola da Gamba Society of Britain (1948) e americana (1963),
Lute Society (1956), entre outras. Dai em diante, principalmente flautas doces

proliferaram aumentando o numero de interpretes e aficcionados . Cravos e


alaudes tambem ganhavam mais e mais espac;o, seguidos muito tardiamente
dos avanc;os tecnicos nos instrumentos de cordas e sopros originais. Donington

Stein and Day, Landowska on Music, Nova York, 1964.

12
cita alguns grandes interpretes do periodo, como Safford Cape (musica
medieval e renascentista), Noah Greenberg (conjunto New York Pro Musica).
David Munrow e, mais tarde Paul Grummer (gamba), August Wenzinger,
Nikolaus Harnoncourt, e finalmente Gustav Leonhardt. Dai em diante, ja
estamos falando de interpretes bern mais recentes, tanto pela idade como pela
facilidade de acesso em termos de gravac;oes ou mesmo performances.

0 resultado do trabalho destes pioneiros e dos interpretes que deram


continuidade a estas pesquisas foi que hoje ouve-se musica antiga de maneira
totalmente distinta de como se ouvia nas primeiras decadas deste seculo - e
possivel distinguir claramente,

mesmo por urn leigo, uma interpretac;ao

"autE'mtica" de urn "inautE'mtica". 0 movimento de musica antiga tornou-se amplo


e cheio de controversias e experimentos, uma grande quantidade de grupos de
varios tipos e formac;oes proliferam em todos os continentes onde quer que se
cultive a musica erudita. A busca de autenticidade anda para a frente e para
tras, recuando cada vez mais no passado ou passando a limpo obras cada vez
mais pr6ximas de n6s. lnterpretes "autenticos" avanc;am nos perfodos Classico e
Romantico, e hoje pode-se ouvir ate algumas tentativas de executar Wagner
com instrumentos e tecnicas de sua epoca. Ora deparamo-nos com exageros, e
ora somos surpreendidos com a musica mais antiga soando como a mais nova,
vigorosa e cheia de frescor, autentica em sua mais sincera interpretac;ao.

13
Para uma reflexao mais profunda sabre a questao da autenticidade,
necessitamos recorrer a outros campos do conhecimento, alem da musicologia
tradicional.

Pensar na interpretac;ao hist6rica de uma obra assim como se

pensa na tradU<;ao de um texto pode ser muito produtivo e enriquecedor.


Nikolaus Harnoncourt aponta nesta direc;ao quando diz:

Devido ao seu distanciamento do presente, e

a separac;ao de sua epoca,

a musica do passado tornou-se. no decorrer da hist6ria e em seu


contexto geral, uma lingua estrangeira. Certos aspectos particulares
podem ate possuir valor universal e intemporal, mas sua mensagem
particular e ligada

a epoca

e nao pode ser reencontrada, a nao ser que

se tente uma especie de tradw;ao para os dias atuais 3

Esta busca de autenticidade, se por um lado criou um corpo fascinante de


convenc;oes de interpretac;ao, colorindo esta musica com o frescor quase exotica
de uma epoca perdida, levanta questoes que vem de encontro ao que a teoria
da traduc;ao discute. A relac;ao do interprete com um texto musical original
assemelha-se

a relac;ao

do tradutor com o texto a ser traduzido. Ao se discutir

traduc;ao, sempre surge a mesma questao: 0 que deve ser mais importante, a
versao literaria ou a versao literal? E o tradutor, devera expressar o sentido do
original em qualquer estilo que lhe agradar?

Nikolaus Harnoncourt, 0 discurso dos sons. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1984.

14
Segundo George Steiner4 , a teoria da traduc;ao divide-se, desde o seculo
XVII em tres classes: a primeira compreende a traduc;ao como literalidade
absoluta, palavra ap6s palavra, elas devem se equivaler no original e no novo
texto. Na segunda classe, o tradutor

mantE~m-se

fiel, mas compoe urn texto que

e natural em sua propria lingua. A terceira classe e aquela da imitac;ao,


recreac;ao, variac;ao, extendendo-se por uma area difusa e mais livre, desde
transposic;oes do original a urn idioma mais acessivel ate ecos par6dicos ou
apenas alusivos.

Nesta ultima classe poderlamos incluir desde as

interpretac;oes romanticas de Bach iniciadas por Mendelssohn, passando por


Busoni, os interpretes modernos da musica antiga ate as par6dias de Stravinski
sobre Pergolesi. A n6s, dentro da interpretac;ao hist6rica. o que

interessara

mais e a segunda classe - o interprete debruc;a-se sobre o passado e esforc;a-se


por ser natural no presente.
Cada

performance

musical

uma

nova

criac;ao,

pois

nenhuma

interpretac;ao pode ser repetida da mesma forma. A linguagem, seja ela musical
ou nao, e naturalmente criativa, pois torna-se irreproduzfvel no simples ato de
manifestar-se. Nao ha como repetir algo sem modificar seu conteudo, as
mesmas palavras ditas por pessoas diferentes, terao sentidos diferentes.
lnterpretes da mesma obra executarao obras distintas. Ao mesmo tempo que a
performance conserva, reproduz o original, modifica-o. A musica no papel e urn

George Steiner, After Babel. Londres, Oxford University Press, 1976.

15
corpo sem vida enterrada no passado, o interprete a ressuscita impregnando-a
de nova paternidade, em seu novo tempo e espa<;o.
Ao interprete de musica antiga - ou qualquer musica, enfim - exige-se,
comumente, que se mantenha fiel ao autor (texto original) que interpreta. Esta
parece ser uma fic<;ao, pois

... seria ingenuo e simplista estabelecermos norm as de leitura que


contassem com a possibilidade do resgate total dos significados
"originais" de um texto, ou das intenc;oes de seu autor. 0 leitor de um
texto nao pode proteger os significados originais de um autor porque. a
rigor, nem o proprio au!or poderia estar plenamente consciente de todas
as inten<;:oes e de todas as variaveis que permitiriam a produ<;:ao e a
divulga<;:ao de seu texto. Da mesma forma, no momenta da leitura, o
leitor nao podera deixar de lado aquilo que o constitui como sujeito e
como leitor - suas circunstancias, seu momenta historico, sua visao de
mundo, seu proprio inconsciente. 5

A ideia de que urn sentido original possa ser simplesmente transposto


para a nova lingua, sem a interferencia do tradutor, tornou-se ultrapassada
dentro de uma visao da traduc;ao mais contemporimea. 0 azul do ceu para um
ingles e urn azul que se contrapoe aos longos rneses de nevoeiro e o azul do
ceu para urn brasileiro torna-se o azul brilhante dos tr6picos, carregado de

Rosemary Arrojo, Traduqao. desconstruqao e psicanalise, Rio de Janeiro, Imago editora, 993.

16
significados jamais sonhados por um europeu. Quando um tradutor!interprete
entra em contato com um texto e o traz novamente

a vida,

seja pela tradw;ao,

seja pela interpreta<;ao, comete um "ato de apropriagao do original". A relagao


que se estabelece e dupla, de amor e 6dio,

... alguma forma de violencia, alguma forma de parricidio

e inerente a

atividade do tradutor que, como qualquer leitor, inevitavelmente ocupa


um Iugar autoral no momenta de acionar sua produ<;ao de significados a
partir do texto do outro. 6

Segundo esta visao da tradugao, abre-se espa<_;;o para uma rela<_;;ao


verdadeiramente criativa do tradutor com o original. 0 interprete de musica
antiga depara-se com questoes semelhantes. Tradicionalmente, o trabalho de
recuperagao da musica do passado concentra-se na tentativa de encontrar a
interpretagao mais proxima possivel da forma de execugao daquela obra na
epoca em que foi

Como ser fiel a um texto escrito

300 ou 400 anos,

do qual nao sobrou mais do que a notagao extremamente imprecisa (apesar de


altamente elaborada) executada dentro de uma tradigao tao diferente da nossa?
Nikolaus Harnoncourt tambem analisa a dificuldade de se manter esta fidelidade
quando diz:

ibidem

17
Quando executamos atualmente musica historica, nao podemos faze-lo
como os nossos predecessores das grandes epocas. Perdemos aquela
espontaneidade que nos teria permitido recria-la na epoca atual; a
vontade do compositor e para nos autoridade suprema; encaramos a
musica antiga como tal, em sua propria epoca, e nos esfor<;amos para
recria-la de maneira autentica, nao por motivos historicos, mas porque
isso nos parece, hoje, o unico caminho verdadeiro para executa-la de
forma viva e digna. Mas uma
concep~ao

execu~ao

s6 sera fiel se ela traduzir a

do compositor no momenta da

composi~ao.

Sabemos

que isto e passive!, mas ate certo ponto: a ideia original de uma obra
deixa-se apenas adivinhar, sobretudo quando se trata de musica muito
distante de nosso tempo. Os indicios que nos revelam a vontade do
compositor se resumem nas indica<;oes referentes

execu<;ao, na

instrumenta<;ao e nas varias praticas de execu<;ao, em constante


evolu<;ao, e que o compositor supunha fossem

naturalmente do

conhecimento de seus contemporaneos. Tudo isso nos exige um estudo


muito aprofundado que pode levar-nos a cometer um serio erro: o de
tocarmos

conhecimentos.

musica

E assim

antiga

de

acordo

apenas

com

nossos

que nascem estas execu<;oes musicologicas

que vemos por ai: quase sempre irreprensiveis historicamente, mas que
carecem de vida.

E preferivel

uma execu<;ao inteiramente err6nea, do

ponto de vista historico, porem viva musicalmente. Os conhecimentos


musicol6gicos nao devem constituir-se um fim em si mesmos, mas
apenas proporcionar-nos os meios de chegarmos a uma melhor
execu<;ao que, em ultima instancia, sera autentica se a obra for expressa
de forma bela e clara?

Nikolaus Harnoncourt, 0 discurso dos sons, Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1988.

18

Por detras de toda performance "autenticada" pela pesquisa hist6rica,


existe sempre uma questao de gosto que e pouco mencionada. Edigoes tidas
como as mais fieis e bem elaboradas nos detalhes, podem tambem tornar-se
limitantes para o interprete:

Um excelente gambista, que recentemente produziu uma exuberante


edi9ao do primeiro livro de pe9as para viola de Marais, realizou um
trabalho de primeira classe, realmente herculeano de compara9ao
textual em averiguar o que ele descreveu como a versao definitiva" das
inten96es de Marais com rela9ao aos aspectos secundarios do texto:
arcadas,

ornamenta9ao,

dedilhado,

etc.

Mas

termo

nao

sera

enganador? Se a segunda edi9ao ( 1689) do livro mostra que nos tres


anos desde a primeira impressao, a maneira de Marais de tocar suas
pe9as havia mudado, porque nao assumir que tres anos mais tarde
haveriam ainda mais mudan9as em suas performances, e assim por
diante ate o final de seus dias? Chamar a edi9ao de 1689 de
"definitiva"seria impor as atitudes de um critico de texto do seculo XX a
um musico-executante do seculo XVIII. 8

A veneragao do manuscrito original, do instrumento original, do rigor


hist6rico, enfim, pode tornar-se limitante ao inves de liberador. 0 interprete

Richard Taruskin, ''The authenticity movement can become a positivistic purgatory, literalistic
and dehumanizing" em
Music, fevereiro 1984.

19
restrito a tais questoes acabara transformando sua musica nos "guinchos de um
papagaio, na conversinha de macacos, numa profanagao dos mortos" 9 . Tocar
numa reprodw;ao exata de um alaude da epoca de Dowland, lendo diretamente
dos manuscritos do autor, utilizando-se da tecnica descrita em manuais antigos,
nao vai assegurar nem autenticidade, muito menos uma interpretagao de
qualidade. 0 estranhamento do instrumento e da tecnica particular da epoca
podera ser um gatilho para novas ideias, para o rompimento com a velha rotina,
para o enriquecimento da interpretagao. 0 que se deve buscar e a surpresa da
novidade, uma sensagao de ter-se encontrado algo de novo, nunca antes visto
naquelas velhas paisagens. Entao sim, poder tocar esta musica com convicgao
e autenticidade.

Como ser fiel a um autor desaparecido e obedecer seus desejos de


significados, expressos num passado ja tao remoto? Mesmo ao se tratar de uma
obra contemporanea, quando executada por diferentes interpretes o compositor
abre espago autoral para estes novos interpretes. Nao existe garantia para a
autoridade do proprio compositor, pois como foi discutido acima, nem o autor
possui o controle dos significados de sua propria obra. Musicos normalmente
sao treinados com a nogao de que o significado em musica esta restrito a sua
organizagao interna, a sua gramatica sem referencia. Buscar significado em

Vladimir Nabokov. em On translating Eugene Onegin, em George Sieiner, ibidem.

20
musica, e quase urn territ6rio proibido, como se "algo terrivelmente importante
estivesse sendo escondido pela profissao" 10 do musico ou music61ogo. No
barroco esta questao nao era o tabu que se tornou com o passar dos anos - a
busca de significado em musica era uma preocupa9ao constante, a musica
passou a "falar'', e sua eloquencia era pensada sistematicamente. Urn exemplo
disto e Mattheson e seus textos sobre a expressao dos afetos (esta baseada em
Decartes) nos quais tenta enumerar todos os possiveis efeitos das figuras
musicals

11

A musica que sera abordada neste trabalho, encontra-se num momenta


de grandes mudan9as esteticas. Dowland foi contemporaneo e sofreu influencia
de duas correntes paralelas e afins em seus objetivos. Na ltalia, ao redor de
Giovanni Bardi (1534-1592), artistas e intelectuais reuniam-se em Floren9a,
formando a famosa "Camerata Fiorentina" para discutirem os novos destinos da
musica.

Fran9a, em torno de Pierre de Ronsard (1524-1585) buscava-se

uma coopera9ao mais profunda entre a palavra e a musica; que ambas as artes
pudessem provocar paix6es ou afetos, dos quais falara mais tarde Mattheson.
Os italianos rompiam com as leis do antigo contraponto, "sem deixar-se levar

Susan McClary, Feminine Endings. Minnesota, University of Minnesota Press, 1991, pg 4.


McClary desenvolve profundamente o tema da rela<;ao entre musica e sexualidade. Ela diz por
exemplo: ... a propria musica depende fortemente na simula<;ao metaforica da atividade sexual
para seus efeitos. Eu defenderei ... que a propria tonalidade - com seu processo de infundir
expectativas e subsequentemente adiar a esperada satisfa<;ao ate o climax - e o meio principal
durante o perlodo entre 1600 ate 1900 para provocar e canalizar o desejo .... Nunca antes, sexo
e genera se tornam preocupa<;oes tao fundamentais na cultura ocidental como no seculo XVII, e
as novas artes publicas todas desenvolvem tecnicas de excitar e manipular desejo, de
"enganchar" o espectador. Vejam por exemplo, a for<;a da tonalidade que emerge nesta epoca:
um metoda seguro para incitar e canalisar espectativas que facilmente suplantam os
procedimentos menos coercivos da modalidade".

10
11

21
deriva, como um mau nadador, que se deixa ser carregado para Ionge de seu
caminho, ... pois assim como a alma e mais nobre que o corpo, tambem as
palavras sao mais nobres que o contraponto." Dowland situa-se na passagem
da modalidade para a tonalidade, quando a pratica antiga torna-se insuficiente
na arte de mover paixoes, de seduzir o ouvinte 12 . Suas cang6es ja apresentam
algumas preocupag6es tipicas do barroco, como a utilizagao do word painting, a
musica colocada a servigo do texto e nao o contrario, quando as palavras
perdiam seu

significado nas malhas do contraponto. Baseada na ideia

aristotelica de mimesis, o word painting foi urn dispositive usado com o intuito
especffico de criar densidade psicol6gica para as palavras. Na cangao de
Dowland, If
Galharda

que aparece tambem em forma instrumental de

Captain Digorie his Galliard), pode-se notar a "pintura" da palavra

complaint (lamento) com as notas mi b - re, expressando urn verdadeiro suspiro


musical. Esta segunda menor aparece com insistencia durante toda a pega,
quase induzindo o ouvinte a suspirar permanentemente. Ela nao s6 aparece
como expressao do lamento, mas como motivo gerador da obra. Na segunda
segao, o intervalo de segunda menor descendente estrutura a configuragao
harmonica impedindo uma verdadeira modulagao para a dominante. 0 mi b cria
uma constante atragao para o re, caracteristica do modo frigio que possui urn
semiton entre o primeiro e segundo grau da escala. Sob as palavras 0, love I

12

ibidem.

22
live.

surge

uma

uma

melodia

diat6nica

ascendente

(la-si-do-re),

para

imediatamente retornar descendentemente (do-si-la) sob as palavras and die.

4. IF MY COMPLAINTS. COU~D PASSIONS MOVE~~


[Cap tam Otgone .P1per s Ga lllard]
-~~;~~

"

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VOICE

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If my com. pb.ints could pas My pas-sions were


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Thy wounds do

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23

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a
a

Jf my complaints could passions move,


Or make Love see wherein! suffer"' ror.~;
My passions were enough lo prove,
T hal my d~spairs had g-ovPrn 'd me ton ion:;
0 Love, I live and die in thee,
Thy grief in my deep sighs stlll >peek>
Thy wounds do freshly bleed 1n me,
My heart for thy unkindness breaks:
Yet thou dost hope when I despair,
And when I hope,thou mak'st me hope in va:r..
Thou say'st thou canst my harms repair,
Yet for redress,thou lct'st me still com;L1.in
2

Can Love be rich, and yet l want?


Is Lovemyjud;:;e,andyetam I conder.r.n'ct?
Thou plenty hast, yet me dost scant:
Thou made n God, and yet thy power conte:T.n'd.
That I do li\'e, it is thv power:
That 1 desire it is thy worth:
If Love doth make m~n's lives too so"'
Let me not love, nor live hensefort :. .
Die shall my hopes, but not my faith,
That you that of my fall may hearers be
May here despair, which truly saith,
l was more true to Love than Love to me

24

A tonalidade surge como forte instrumento de sedw;ao, de coen;ao e


canaliza<;ao de expectativas. Seu mecanismo funciona basicamente como um
esquema de for<;as, de atra<;ao e repulsao, de sustenta<;ao e climax que podem
ser facilmente percebidos (para o ouvinte familiarizado com a gramatica musical)
como investimento libidinal. A musica de Dowland desliga-se da tradi<;ao de
seus colegas renascentistas, daquela musica de pura eleva<;ao espiritual. Com
ele volta-se ao mundo mais terreno das paixoes, a musica e um instrumento de
catarse dos sofrimentos humanos, atraves dela ja podemos realizar nossos
desejos, experimentar nossas pr6prias emo<;6es. A musica passa entao a ser
misterioso dentro do qual parecemos encontrar

percebida como "um

nossos pr6prios. rec6nditos sentimentos" 13 . Sua musica ja pertence a um novo


universo

impregnado

de

significado

nao

podemos

interpreta-la

sem

reconhecer este fato.

0 interprete desta musica torna-se, portanto, um produtor de significados,


fazendo com que cada nova interpreta<;ao de uma obra erie um novo leque de
significados. Mas como poderia um interprete investir uma obra de significados,
novos e distintos, talvez jamais imaginados pelo proprio autor?

13

Susan McClary, ibidem.

25
Tomemos o exemplo de Paul O'Dette interpretando The King of Denmark's

Galliard. 14 Trata-se de uma long a Galharda que pertence a urn tipo de pe<;as
conhecidas como Battles ou "batalhas". Sua origem esta em duas pe<;as de
Jannequin, La Guerre e La Batail/e que ganharam enorme popularidade e
passaram a ser arranjadas para diversos instrumentos. As pe<;as originais de
Jannequin usam artiflcios para imitar uma batalha atraves de sons e palavras
onomatopeicas. A Galharda de Dowland nao e uma referencia direta

a obra

de

Jannequin, mas encontra-se dentro da mesma tradi<;ao: pode-se claramente


ouvir o som dos trompetes nos quatro las repetidos do inicio e recorrentes na
pe<;a toda:

14

Jonh Dowland, Complete Lute

Vol. 3, Paul O'Dette,

Harmonia

1996

26
Segundo Paul O'Dette e Robert Spencer15 , o patrao de Dowland,
Christian IV, Rei da Dinamarca, nao foi muito bern sucedido em batalha. Este
brilhante interprete/tradutor impregna a pega de impiedosa zombaria (nao em
relagao a Dowland obviamente, mas ao proprio "homenageado" da pega, o Rei).
Atraves de uma elaboradissima ornamentagao, O'Dette cria sua forte versao,
pontilhada de "brincadeiras" como:

----

15

Robert Spencer, prefacio ao CD de Paul O'Dette; John Dowland, complete lute works. vol. 3.
Harmonia Mundi, 1996,

27
para encerrar a pec;;a com um quase excentrico desrespeito:

Numa busca de autenticidade absoluta, o interprete deveria desaparecer,


para servir sem vontade propria aos designios de um autor do passado. Mas se
este interprete do seculo XX pode jurar fidelidade ao autor antigo, ele tambem e
um musico que

ouviu Beethoven, Schoenberg ou mesmo jazz. Seu

inconsciente musical e um complexo aparato de informac;;oes musicais, que


estarao presentes em toda sua relac;;ao com a musica, para tras ou para frente
no tempo, deixando um rastro de sua passagem em tudo aquilo que
toca/le/interpreta. Nesta relac;;ao dial6gica com o texto original, nao ha como
evitar os trac;;os pessoais, as pegadas deste novo leitor - ou desleitor - que toma
para si a obra do autor. Ou, como expressa Roland Barthes,

28

Existe algo inaudivel em Beethoven, eo que esta inaudibilidade designa


e uma

"inteligibilidade tangfvel"- a qual nao pode ser apreedida pela

velha estetica atraves da abstra<;ao ou interioridade, mas somente


atraves de uma atividade ou "leitura. Esta leitura nao consiste em
receber, conhecer ou sentir este texto, mas em escreve-lo novamente.
Para que serve a composi<;ao se ela for confinada aos precintos dos
concertos, ou

a solidao

da escuta no radio? Compor, ao menos por

propensao, e provocar 0 fazer, nao

ouvir. mas a escrita

A atividade do interprete e justamente a daquele que reescreve a obra e


a impregna de novos significados. Urn retorno a uma essencia original, a urn
texto puro, como se esta obra estivesse exaurida, sem suas multiplas camadas
de significados e infinitas possibilidades de leitura, nao passa de uma fic<;ao.
Todo texto e uma torre de Babel, apresentando uma "irredutibilidade natural de
a impossibilidade de se terminar, de
se totalizar, de se esgotar, de se completar algo da ordem da edifica<;ao, da
constru<;ao arquitetural, do sistema e da arquitet6nica ...
limite interno

a formaliza<;ao,

ha entao como urn

uma incompletude da construtura" 16 . Se esta obra

original encontra-se sempre incompleta, como poderia urn interprete resgatar


seu sentido original? 0 interprete forte e aquele que nao se esquiva de re-ler e
desvendar novos significados na inesgotabilidade das obras.

em: Rosemary Arrojo, ibidem.

29

0 trabalho dos music61ogos

a busca de autenticidade, contraposta a uma

reflexao sobre tradw;ao, nao invalida o que hoje se conhece como interpreta<;ao
hist6rica. Novos timbres, novos fraseados, articula<;6es, ornamentos - um
verdadeiro cEmone de interpreta<;ao - vieram se contrapor a velhos maneirismos
de interpreta<;ao. Talvez o que se considera hoje uma interpreta<;ao hist6rica
correta, venha a se tornar obsoleta em trinta anos.

E importante

notar, no

entanto, que interpretes fortes estarao sempre fazendo leituras fortes de obras
musicais. Nao ha como negar o valor de um Glenn Gould tocando Bach, por
mais que sua interpreta<;ao seja inaut{mtica

e idiossincratica. 0 trabalho de

pesquisa e necessaria para o interprete de musica antiga, mas nao pode ser
limitante em sua literaridade. Pausas com dura<;6es absolutamente corretas,
ataques, fraseados e ornamentos - todos perfeitamente embasados na pesquisa
hist6rica - nao podem se transformar numa camisa de for<;as para o interprete
moderno. Estas pesquisas precisam ser um meio e nao um fim em si mesmo um meio liberador, inspirador de novas possibilidades, de onde emerja o frescor
de uma musica jamais antes escutada.

E sempre mais facil escolher o caminho da

rigidez, estabelecer uma serie

de regras e segul-!as estritamente. A musicologia deve mostrar op<;6es ao


interprete e jamais restringi-lo. A musica e fascinante em sua multiplicidade e
transita por territ6rios sobre os quais manual ou tratado algum jamais podera
desvendar todos os misterios.

jorra das profundezas do inconsciente

atravessa muitas e muitas camadas ate chegar

a elabora<;ao

e o

30
artesanato da consciencia; diferentes linguagens se sucedem e se sobrepoem
umas as outras, num dialogo infinito, produzindo diversidade no espa<;o e no
tempo mas sem jamais se anular em sua sucessao hist6rica. Nao existe uma
evolu<;ao hist6rica no sentido cientifico em musica: Boulez nao e melhor que
Beethoven que nao e melhor que Bach que nao e melhor que Palestrina.
Respondemos a todas as musicas de forma aut6noma: o que vibra dentro de
n6s e a compreensao de urn sentido quase arquetipico da linguagem musical
(mesmo se filtrado por uma media<;ao cultural).
Para uma interpreta<;ao tornar-se valida, existem algumas delimita<;6es
cujos parametros estao ligados ao que se costuma chamar de estilo. Na opiniao
de Robert Donigton, "mais alem destes limites, nos falta a experiencia genuina
da musica, e encontramos apenas uma falsifica<;ao plausivel. Pois nesta
escuridao exterior, vale qualquer coisa" 17 . Encontra-se ai urn certo radicalismo
que poderia ser aplicado as primeiras

performances de musica barroca por

grandes orquestras sinf6nicas, e nada podera apagar a luminosidade de se


Bach por Martha

ou Glenn Gould ou Pablo Cassals, ou mesmo

Rubinstein num grande piano. Os interpretes da musica antiga criaram jamais


expulsarao de suas praias ensolaradas grandes musicos em seus instrumentos
modernos. 0 conhecimento de estilo e fundamental para o interprete com seu
instrumento original e mesmo para aquele com instrumento moderno, servindo
de guia mais rigoroso para a performance autentica e como fonte de inspira<;ao

31
para o outro interprete. Este trabalho pretende levantar o maximo de questoes
que

possibilitem uma boa interpreta<;ao hist6rica.

Alem de todas as

informa<;6es que sejam possiveis levantar para a interpreta<;ao hist6rica, existira


sempre um espa<;o incomensuravel, intangfvel, impossivel de ser transmitido neste espa<;o misterioso, habita a dimensao do indizivel nas artes. Esta
disserta<;ao pretende-se modesta, um quase manual de interpreta<;ao da obra
pesquisa na interpreta<;ao hist6rica e infindavel, mas par mais

de Dowland.

amplo que um trabalho destes possa ser, havera sempre as limita<;6es da


linguagem para tentar descrever

que nao e posslvel descrever na linguagem

misteriosa da musica. A estes misterios ficam reservadas poucas portas de


entrada,

poucos

escolhidos

as

Musas

permitirao

acesso.

CAPiTULO II
0 1:\STRUMENTO

1. A NOTACAO NO ALAUDE
Nem mesmo
detalhes

mais

uma partitura com a mais moderna notagao, com os

minuciosamente

apresentados

pode

refletir

as

intengoes

completas de um compositor. Existem sempre aspectos intanglveis que nao


podem ser expressos atraves dos meios desenvolvidos pela notagao musical,
mesmo sendo frequentemente admirada como "uma das mais altas conquistas
do esplrito humano" 1 Mais uma vez vamos de encontro

questao de

autenticidade - mesmo o mais objetivo, ou o mais treinado dos interpretes, se


encontrara fatalmente em terreno bastante subjetivo. Esta questao fica ainda
mais acirrada na medida em que recuamos no tempo e nos deparamos com
partituras mais antigas. Um interprete de musica antiga estara sempre obrigado
a "decifrar" um c6digo pouco acessivel ao interprete moderno, e bem menos
exato nas suas manifestagoes.
A notagao do alaude e feita tradicionalmente em tablatura. A notagao em
pentagrama ja faz parte de uma tradigao moderna de transcrigoes, sendo na
maioria das vezes uma tentativa de tornar o repert6rio do alaude acess

Frederick Dorian, The History of Music in Performance, W. W. Norton & Company Inc., New
York, 1966.

33
instrumentistas que nao conhecem tablatura. Este e o caso da edi9ao de Diana
Poulton da obra de John Dowland - todas as pe9as aparecem em dupla
nota9ao: o pentagrama acima, acompanhado da tablatura por baixo.
0 sistema de tablatura e conhecido desde o come9o do seculo XIV e em muitos
aspectos era mais elaborada do que a nota9ao em pentagrama, apresentando
varios simbolos que s6 serao adotados pelo pentagrama muito tempo depois.
As tablaturas de alaude, por exemplo, ja usavam barras regulares de compasso
ou ponto de aumento muito antes de serem adotados pela nota9ao tradicional.
Uma tablatura consiste basicamente de uma representa9ao direta da
tecnica do instrumento. No caso do alaude, a tablatura constitui-se de 6 linhas
representando as seis ordens (conjunto de uma ou duas cord as afinadas na
mesma altura ou, no caso dos baixos, em oitavas) superiores. Estas sao as
ordens que sao executadas tambem com a mao esquerda, ao contrario dos
baixos que sao tocados normalmente soltos, ou seja, sem a interven9ao da mao
esquerda. Existem tres tipos de tablaturas: a alema, um sistema extremamente
complicado utilizando simboios diferentes para cada nota; a italiana e a
espanhola, utilizando numeros para representar cada casa do brac;o do alaude;
e finalmente a francesa, adotada tambem pelos ingleses, que e a que nos
interessa neste trabalho. Esta

letras para cada altura do brac;o do

como sera melhor explicado a seguir.

Thomas Robinson. The Schoo/e of Musicke. Trad.: Carin Zwilling, em tese de mestrado: Thomas
Robinson, The Schoole of Musicke: tradw;fw comentada e transcri<;ao musical de um
tratado do inicio do seculo XVIi, Universidade Estadual de Campinas. 1996.

34
0

uso

de tablatura permite ao interprete a leitura em qualquer

instrumento com afinac;ao semelhante em seus intervalos. Ou seja, era possivel


executar o mesmo repert6rio em alaudes renascentistas em diversas alturas,
vihuelas, cistres, orphariums,

e outros instrumentos. pais o que esta

determinado pela tablatura nao sao as notas mas os intervalos. A afinac;ao era
bastante livre, devendo-se afinar a primeira corda "tao aguda quanta agOentar,
sem

rebenta-la .. 2 . Existe documentac;ao que mostra que a afinac;ao mais

comumente usada no a laude usado por Dowland

32

era a seguinte:

1a ordem (cord a simples): sol 1

2a ordem (cordas duplas): re 1


3a ordem (cordas duplas): Ia -1
4 8 ordem (cordas duplas): fa -1
58 ordem (cordas duplas): d6 -1

6a ordem (cord as duplas ): sol -2

88 ordem (cord as duplas oitavadas ):

(b) -2

ordem (cord as duplas oitavadas ): re -2


Estas cordas tambem recebiam a seguinte denominac;ao:
18 : canto (lta!ia), prima ou

2a : sottanelle. intermediaria me nor (Small mean)

No inicio de sua formar;:ao e carreira. Dowland usou um alaude de 7 ordens. como indica a
maior parte de suas obras ate 1603. A partir de 1604 ( surgimento de sua Lachrimae ). sua obra
passa a ser escrita para um alaude de 9 ordens.

35
3 3 : mezzanelle, intermediaria maior (Great mean)
4 3 : tenori, contra -tenor
5 3 : bordoni ou tenor
6a: bassi ou baixo (Bass)

As seis linhas da tablatura representam as seis primeiras ordens do


a laude:

sol

re

------------

Ia
ta
d6
sol

A indica<;ao da altura correta e feita atraves de letras, ou seja:

Resultando na afina<;ao do alaude mais comumente usada por Dowland,


com as seguintes alturas:

sol

re
Ia

fa
d6
sol

sol# - Ia - S b - d6- -d6 #


re - -m1 b- mi - - - - - - etc
m. - fa - -ta # - sol- - so! # - Ia- -si b- - etc
mi bsi bre - - - mi b- - ml- - ta - -tat- -etc
do - ao::: S'Jl # 1a
ta #- - sol si b- - -51 - - d6 - - -d6 #- - etc
re b- mi fa- -fa - - sol- -sol#- etc
d6 # etc
re- -mi b
sol#_ Ia - s b - si
d6- -d6 ti
~

=
-~

~~

36

Desta forma, podemos obter as alturas relativas. No seguinte trecho.


obteremos as seg uintes alturas:

I.

(\

..,

-,;:
\V

"u

()

.1

""' -u
,..

()

:J'-'

.,

(:1

-6-

As dura<;oes ficam determinadas pelos valores que aparecem acima da


tablatura.
Estas dura<;oes indicam as notas de valores mais curtos, vendo-se a
tablatura num sentido vertical, ou seja, relevando-se num primeiro memento seu
aspecto polif6nico, no qual aparecem valores distintos em vozes distintas. Para
facilidade de leitura, vai-se preenchendo os tempos conforme os valores vao
indicando a presen<;a de alguma nota. Cabe ao alaudista a "leitura" das vozes
escondidas dentro desta nota<;ao apenas esquematica.

37

aqui que come9a o trabalho de transcri9ao. 0 interprete senslvel

sabera distinguir as diversas vozes de um trecho; a boa transcri9ao sera aquela


que esclarece na partitura estas possibilidades polif6nicas. 0 mesmo trecho
acima apresentado poderia ter as seguintes transcri96es:

r-,

~'

,_

II

rv

II

tr r
..,

A obra de John Dowland e acessivel aos musicos de nosso tempo gra9as


ao trabalho exaustivo de Diana Poulton. Anteriormente, muitos alaudistas da
epoca de Dowland preocuparam-se em registrar obras que o compositor nao
escrevia. A dificuldade em registrar sua obra, segundo aponta Diana Poulton,
parece advir de uma certa relutancia em divulgar o melhor de suas composi96es
solo e os segredos

tecnico que ele possula para toea-las. lsto

38
ocorre com suas cang6es que foram todas publicadas em seus livros de
Cangoes (Song Books), onde aparecem apenas tres de suas pec;as solo. Outras
nove pec;as aparecem no Musical/ Banquet, o livro de alaude de Robert
Dowland, (filho de Jonh Dowland) e outras sete no Newe Booke of Tabliture de
William Barley, versoes consideradas imperfeitas pelo proprio Dowland.

No

entanto, sua obra esta presente em diversos manuscritos e publicac;6es da


epoca. Suas mais famosas pegas foram arranjadas para outros instrumentos por
varios compositores (Morley, Byrd, Robinson e outros) e suas variac;oes
(divisions) eram reescritas por seus colegas alaudistas (Bacheler e Cutting). A
coleta de todo este material por Diana Poulton deve ter sido extremamente
ardua. pois a obra

de Dowland encontra-se em manuscritos espalhados por

bibliotecas e museus da lnglaterra, Escocia, lrlanda, Pals de Gales, America do


Norte e continente europeu.

As transcric;oes de D. Poulton sao aceitas como

definitivas por alaudistas Quanto as diminui<;oes, torna-se uma questao a parte,


pois elas vern de uma tradigao de improvisa<;ao e era costume mesmo entre
grandes compositores, o constante "emprestimo" ou
trechos de outros

parodias de pegas ou

autores. As diminuic;oes de Dowland sao extremamente

elaboradas e em alguns casos ele mesmo desaprovava vers6es recolhidas por


outros musicos, como

eo

caso das pec;as que aparecem no Neue Booke of

Tabliture de William Barley. Para urn autor tao cioso de sua propria obra, e de
surpreender que ele mesmo nao tenha se preocupado em deixar sua propria
versao autorizada (coisa que fez com suas can goes publicadas em quatro
volumes durante sua vida).

um

39
cuidadoso na

compila<;ao do The Collected Lute Music of John Dowland,

comparando todos os manuscritos a que teve acesso (provavelmente todos os


encontrados ate hoje) e pode-se considerar o seu livro como a coletanea mais
fie! da obra de Dowland. As divisions, parte fundamental nas Galhardas e
Pavanas, abriam espa<;o para a demonstra<;ao criativa de outros interpretes ou
compositores, que podiam inventar suas pr6prias versoes. Dentro desta tradi<;ao
perfeitamente legitima, pode-se citar as grava<;oes de Paul O'Dette, criando
suas pr6prias diminui<;oes para as pe<;as recolhidas por D. Poulton. Desta
mesma forma, qualquer interprete poderia fazer o mesmo, re-escrever suas
pr6prias varia<;oes.Em alguns casos, como em Semper Dowland, semper
Do/ens, So/us Cum Sofa, Resolution, e Galliard to Lachrimae, o interprete ve-se
naturalmente obrigado a escrever sua propria versao. pois estao faltando
algumas divisions.

2. ASPECTOS TECNICOS DO ALAUDE

... Dowland to thee is deare; whose heavenly


tuch upon the Lute, doeth ravish humaine sense: ...
Richard Barnfield, 1598
(Dowland que vos
sentidos humanos)

e tao

caro, cujo toque celestial sabre o alaude maravilha os

40
A tecnica do alaude e uma tecnica toda reconstrufda, pois ap6s o seculo
XVIII, o alaude caiu em desuso, desaparecendo do mundo da musica ate o
seculo XX, quando o interesse pela musica antiga ressurgiu. Hoje existe
novamente uma boa escola de alaude, com principios tecnicos bem definidos,
que permite ao alaudista moderno um rendimento de alta qualidade.
surpreende e
renascido

das

0 que

fato desta tecnica hoje tao claramente desenvolvida ter


cinzas

de

pouquissimos

registros

deixados

por

nossos

antepassados alaudistas. As referencias a problemas especificos da tecnica sao


praticamente nulos ou explicados de maneira extremamente superficial. Existem
poucos metodos de alaude ou passagens sobre sua tecnica em algumas obras
didaticas de musica no seculo XVI e XVII 3 , mas todos sao extremamente falhos
ao tentar explicar, por exemplo, como extrair uma sonoridade de qualidade do
instrumento. Esta parece ser a maior dificuldade do instrumento devido a suas
cordas duplas, que facilmente podem se chocar uma com a outra e soar mal.
Sob este aspecto, deve-se reconhecer o trabalho nao somente arqueol6gico dos
alaudistas deste seculo, mas principalmente seus esfon;os de re-cria<;ao de uma
tecnica totalmente perdida. Em 1957, quando ainda come<;ava-se a discutir

Metodos de alaude que de alguma forma sabe-se que tiveram relac;ao direta ou indireta com
John Dowland:
Barley. William: A new booke of tabliture. London, 1596.
Dowland, Robert Vrietie of Lute-Lessons. Londres, 1610.
Besard, Jean-Baptiste: esta obra s6 sobreviveu atraves do metodo de Robert Dowland, onde se
encontra traduzida.
Le Roy, Adrien: A briefe and easye Instruction, traduzido para o ingles em 1567 por John
Kingston.
Mace, Thomas: Musick's Monument. 1676.
Robinson, Thomas: The Schoole of Musicke. Londres, 1603 (trad.: Carin Zwilling, tese UNICAMP,
1996)
3

.fl
sobre a tecnica do instrumento, Karl Sheit, um dos pioneiros a pesquisar o
alaude, queixava-se num col6quio realizado em Paris, da insuficiencia de
clareza nos metodos antigos:
II est

a remarquer que touts les traites de l'epoque enseignent Ia

technique du luth

a !'aide

de quelques regles plus

OU

mo1ns

arides accompaingees d'examples insuffisants .... on se rend


compte qu'il n'etait guere aise d'apprendre ce difficile instrument
pour lequel n'existait alors aucune methode capable de conduire
l'eleve du premier son jusqu"a Ia complete maitrise. Neanmoins,
ces regles et ces conseils peuvent nous etre d'une grande utilite

a nous luthistes d'aujourd'hui,

pourvu que nous sachions unir Ia

technique

des

et

Ia

science

anciens

maltres

nos

connaissances actuelles. 4

Esta posic;ao naturalmente definiu a pesquisa de uma tecnica moderna e


ao mesmo tempo hist6rica do alaude: Utiliza-se as referencias dos tratados de
epoca e cria-se soluc;oes para os problemas que nao eram explicados. Alem
destas fontes que sao OS tratados hist6riCOS, OS aiaudistas de nossa epoca
serviram-se de obras pict6ricas para obter algumas informac;oes adicionais
(Estas fontes, como diz Diana Poulton, precisam ser examinadas com reservas,
pois os modelos que posavam para o pintor muitas vezes nem tocavam o
instrumento, uma vez que era moda posar com urn alaude nas maos)5 .

Karl Sheit, "Les traites de luth des environs de 1600" em Le luth et sa musique, Editions du
Centre National de Ia recherche scientifique, Paris, 1980:
E marcante o fato que todos os tratados da epoca ensinam a tecnica do alaude com a ajuda de
algumas regras bastante aridas acompanhadas de exemplos insuficientes .... damo-nos conta
que nao era nada facil aprender este dificil instrumento para o qual nao existia entao nenhum

42
Existiam basicamente duas tecnicas de utilizar a mao direita no alaude
conhecidas como Thumb-under e thumb-over. A primeira, consistia em tocar
como polegar cruzando sob o indicador (figueta caste/lana), tecnica derivada do
alaude medieval quando se usava o plectra. Esta tecnica definia a acentua(_(ao

forte-fraco, forte-fraco do renascimento nas longas ornamenta(_(6es compostas


principalmente por graus conjuntos (runs). As mudan(_(as esteticas que estavam
ocorrendo justamente nesta epoca, com o aparecimento de linhas de baixos
mais definidas e consequentemente com o surgimento de alaudes com maior
numero de ordens graves, obrigaram tambem o alaudista a mudar sua tecnica.
0 polegar deveria a partir de entao ganhar independencia, e passou-se entao a
utiliza-!o distanciado dos outros dedos, de maneira semelhante

tecnica

moderna do violao. Sobre isto, ja aconselhava Besard na tradu(_(ao inglesa de

stretch out your Thombe with all the force you can, especially if
thy Thombe be short, so that the other fingers may be carried in
the manner of a fist, and let the Thombe be held higher than

metodo capaz de conduzir o aluno desde o primeiro som ate seu completo dominio. No entanto,
estas regras e estes conselhos podem ser de grande utilidade a nos, alaudistas modernos.
desde que saibamos unir a tecnica e a cimcia dos antigos mestres aos nossos conhecimentos
atuais.
5 Diana Poulton, "La tecnique en France et en Angleterre" em Le luth et sa musique, etc .
6
Jean Baptiste Besard, Thesaurus Harmonicus (1603), traduzido em "Necessarie Observations
Belonging to the Lute Playing" de Robert Dowland.
7
Esticai vosso polegar com toda a fon;a que puder, especialmente se vosso polegar for curto, de
forma que os outros dedos fiquem com o formato de um punho, e deixai que o polegar se
mantenha mais alto que estes.

43
Este metoda tambem era aconselhado por Luys venegas de Henestrosa,
no Libra de Citra Nueva para tee/a, harpa y vihuela de 1557.
Em 1592, Matthaeus Waissel considera a nova posi<;ao desfavoravel e defende
a alternancia polegar-indicador por desenvolver maior velocidade.
Dowland parece ter conhecido as duas tecnicas e usado a segunda ja no final
de sua carreira.

interessante notar que as pe<;as em que ocorre mais a

independencia do polegar, o alaude tambem utiliza um maior numero de baixos,


fato que acompanhou a evolu<;ao do alaude ate o periodo barroco, quando o
polegar fica totalmente independente dos outros dedos.
Por exemplo, em Piper's Pavan, no compasso 17, a digita<;ao e claramente a
"antiga (polegar-indicador; polegar-indicador). pois a passagem e um simples

run em tessitura grave:

-I

44
Ja na Pavana So/us cum Sola, na ultima sec;ao (compassos 33

a 40), fica

mais facil a uti!izac;ao do polegar fazendo os baixos e indicador, medio e anular


tocando os acordes superiores.

........

,.,

..,

I
~~

--

.....

~Ffli
I C.W

=== l.._d 1::!-J

Num pequeno trecho da Pavana Resolution. percebe-se a necessidade


de uma tecnica de polegar independente dos outros dedos. quando a escrita se
torna mais polif6nica. No compasso 25-6 fica muito diflcil utilizar a digitac;ao
polegar-indicador nas fusas da voz superior que antecedem o Re do baixo (9a
ordem), obrigando o polegar a saltar uma distancia muito grande em muito
pouco tempo. 0 mais indicado neste caso seria utilizar a digitac;:ao que comec;:a
a entrar em voga neste momento de transic;ao de estilos. 0 interessante e notar
que o restante da Pavana utiliza a "velha" digitac;ao, ou seja, nao ha como
determinar um momento preciso em que a velha tecnica foi substitufda

pela

nova, assim como nao ha como determinar quando fechou-se a porta do


Renascimento para abrir-se a do perlodo Barroco. Os antigos habitos vao se
transformando pouco

pouco, e por muito tempo, as tecnicas e estilos se

mesclam, anunciando novidades ou rememorando o passado.

45

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A utiliza<;ao ou nao das unhas e ainda hoje um fator de discordancia


entre executantes, principalmente devido

exigmcia que o violao moderno

impoe a seus interpretes de tocarem seu instrumento com unhas. Na epoca do


alaude

havia algumas discordancias sabre o assunto. mas os interpretes

modernos de alaude concordam sabre a absoluta impropriedade do usa das


unhas. Os instrumentos de cordas duplas como alaudes, vihuelas e guitarras
apresentam todos

a mesma dificuldade para a obten9ao de um som limpo,

onde cada ordem deve soar como se houvesse apenas uma corda, produzindose um sam cheio e ave!udado. As unhas tornariam o som bem mais aspero e
ficaria dificil fazer duas cordas soarem como uma, deixando a execu<;ao bem
mais suja. Um dos poucos autores da epoca que

se refere ao problema de

sonoridade e um autor de vihuela, Miguel de Fuenllana 8 :

los redobles

46
Tractado hemos de las compofturas y fantafias. Cofa rezonable
fera venir a tractar dela tercera cofa arriba ya dicha, que es lo q
toea a los redobles y a taner con limpieza: lo qual no es menos
neceffario que todo lo demas. . . Y puesto que en efta manera
de redoble, el dedo quando entra hiere Ia cuerda con golpe,
quado fale no fe puede negar el herir co Ia vna. y efta es
imperfectio, affi por no fer el punto formado, como por no auer
golpe entero ni verdadero.Y de aqui es que los que redobla con
Ia vna hallaraa facilidad en lo que hiziere, per no perfectio. Y efto
daquidigo no es para codenar ninguna manera de taner,pues
tengo por muy bueno lo que los fabios y aufisados en Ia mufica
exercitere, y aprobare por tal. ... pues como dicho es. t1ene gra
excellencia el herir Ia cuerda co golpe, fin que etremeta vna ni
otra manera de inuecion, pues en solo el dedo. como en cofa
biua cofifteel verdadero fpiritu, que hiriendo Ia cuerda eiefue le

Thomas Mace em seu Musick's Monument, tambem defende o uso do


ataque sem unhas:

Miguel de Fuenllana, Orphl!;nica Lyra, Sevilla, 1554; ed Charles Jacobs, Oxford University
Press, 1978.
9 Ja tratamos das composturas e fantasias. Coisa razoavel sera tratar da terceira coisa Ja dita
acima, que e 0 que se refere aos redobles e a tocar com limpeza 0 qual nao e menos necessaria
que o demais. E pois assim e que nesta maneira de redoble, o dedo quando entra fere a corda
com golpe e quando sai nao se pode negar o ferir com a unha, e isto e imperfeic;ao. assim por
nao ser o ponto (?) formado, como por nao haver golpe inteiro nem verdadeiro. E assim e que
aqueles que redoblam com a unha acharao facilidade, mas nao a perfeic;ao no que fazem. mas
nao perfeic;ao. E isto aqui digo nao para condenar nenhuma maneira de tocar, pois tenho em
muita considerac;ao o que os sabios e avisados?? Na musica exercitarao, e aprovarei como tal.
... pois como disse, tocar a corda com um ataque sem a inclusao da unha ou algum outro

47

But in the doing of This, take notice, that you ftrike not
your Strings with your Nails, as fame do, who maintain it
the Best way of Play, but I do not; and for This Reason;
because the Nail cannot draw fo Fweet a Sound from a
Lute, as the nibble end of the Flefh can dow

Mesmo quando um autor da epoca se referia a problemas de sonoridade,


nao havia uma descri<;ao realmente objetiva de como obter-se um som de
qualidade. Thomas Mace refere-se a esta questao, dizendo:
First, obferving ftill, all your former poftures carefully, with your
Thumb ever refting upon fame one of the Baffes, (where you
pleafe) put the End of your fecond Finger, a very little under the
Treble String, (about three inches above the Bridge) as if you did
intend only to feel your String, having your Fore-finger (at the
fame time) clofe adjoyning in readinefs, (yet not touching your
fecond

or the String with a pritty fmart Twitch, (yet gently

too) to cause it to speak ftrong and Loud; the which,

to do

feveral times, fa long, till at laft you perceive, (by feveral ways of
Tryal) you can draw a fweet, fmart, and pleasant Sound from
That String; and when that is done, ftrive to do the like with your

aparato, demonstra grande excelencia, pais somente o dedo. como uma coisa viva, consiste no
verdadeiro espirito, que ao tocar a corda comunica [a inten<;:ao do espirito.
10
Mas ao fazer isto, notai de nao tocar suas cordas com as unhas, como alguns o fazem.
alegando ser a melhor maneira de tocar; mas nao o fa<;:o eu, e par esta razao: par que a unha
nao e capaz de tirar um sam tao dace de um alaude, como a polpa do dedo pode faze-lo.

48
Fore-finger, (your fecond Finger keeping the fame Pofture of
clofenefs and readinefs, as your Fore-finger kept 11 .

A re-descoberta desta tecnica e muito recente e deu-se exclusivamente


gra<;as ao trabalho de alaudistas da nova gera<;ao Um bom ataque no alaude
consiste em pressionar as duas cordas (da mesma ordem) contra o tampo do
instrumento, e jamais ataca-las de baixo para cima, como se faz no violao
moderno (no alaude este tipo de ataque provoca um som de duplo ataque,
ficando audivel a presen<;a de duas cordas).

'' Primeiramente, observando todas as vossas posturas anteriores cuidadosamente, com vosso
polegar sempre descansando em algum dos Baixos (onde desejai), colocai o final de vosso
segundo dedo muito pouco abaixo da primeira corda [Treble] (por volta de tres polegadas acima
da ponte) como se quisesseis somente sentir vossa corda. mantendo vosso indicador (ao mesmo
a ser usado
assim sem tocar o seu segundo dedo, ou a corda, com um belo
toque (mas contudo, delicado) de modo a faze-lo falar alto e forte; o qual devereis tentar repetir
diversas vezes, tantas vezes ate que finalmente percebereis (por varias tentativas) poder tirar
um som belo e agradavel desta corda, e assim que isto estiver feito, tentai fazer o mesmo como
dedo indicador (o segundo dedo mantendo a mesma posi<;ao de proximidade e prontidao como
vosso indicador o fez anteriormente).

49
Um alaude de seis ordens, como aparece no livro de Adrien Le Roy, A Briefe

and Easye Instruction ( 1568)

AN

I N ST R V C T I 0 N T 0

T H E L V T E.

TIJt frfl Rule.

Nderfiaod this that the Lme is ordinarilie Orung with fixe Oringes,and althongh that thefe fix firinges be
d~Juble except the T rebble,and make a kauen in number. yet they muft be vnderftood to bee but fixe in
all, as thou maid\ fee them here marked on this Lute figured.

CAPiTULO Ill
OS AFFETOS NA OBRA DE JOHN DOWLAND

It was a time when silly bees could speak,


And in that time I was a silly bee,
Who fed on thyme until my heart 'gan to break,
Yet never found the time would favour me,
Of all the swarm I only did not thrive.
Yet brought I was and honey to the hive.
Then thus I buzz'd when thyme not sap would give,
Why should this blessed thyme to me be dry,
Sith by this thyme the lazy drone does l:ve,
The wasp, the worm, the gnat. the butterfly,
Mated with grief, I kneeled on my knees.
And thus complain'd to the King of bees.
'My liege, gods grant thy time may never end,
And yet vouchsafe to hear my plaint of thyme,
Which fruitless flies have found to have a friend,
And I cast down when atom:es do cllmtl.
The King replied but thus. Peace. peev:sh bee.
Thou'rt bound to serve the t:me. the thyme not thee'.

Uma das ultimas can96es de Dowland, no Third Book of Songes, com


letra atribuida a Robert, Earl of Essex, descreve sarcasticamente a situa9ao de
uma

pel as

e golpes de "moscas"

de

vermes e vespas rastejando diante de um Rei impiedoso e ingenuo. Este livro


de can((6es publicado pouco tempo ap6s a morte da Rainha Elizabeth. pode ter

Havia um tempo em que abelhas bobas podiam falar. I E neste tempo eu era uma abelha boba,
1 Que se al:mentava de tomilho ate que meu cora<;ao come<;ou a quebrar, I Ainda ass:m, nunca o
tempo me favoreceu. I De todo o enxame , eu apenas nao prosperava I Ainda assim trazia cera
e mel para a coimeia I Entao eu chiei quando tomilho nenhuma seiva me oferecia,/ Por que este
aben<;oado tomilho estaria seco para mim? I Sentado a seu lado o zangao pregui<;oso vive, I As
vespas, os vermes. os mosquitos, a borboleta. I Unido ao pesar. AJoelhei-me, I E entao me
queixei ao Re: das abelhas. I "Meu Senhor, que Deus nao term:ne Jama:s vosso tempo. I E ainda
garanta que escuteis meu pranto do Tomilho, I Do qual moscas sem frutos descobriram ter
amigos, 1 E eu as derrubo quando ousam subir'', I E o Rei responde apenas isto: "Paz, abelha
1

51
servido de meio para Dowland

expor publicamente seu desgosto com a

arbitrariedade de uma rainha despota que jamais em sua vida lhe oferecera um
Iugar na corte.
Susan McClary nos diz que "a maneira pela qual se comp6e, se executa,
se ouve ou se interpreta musica e fortemente influenciada pela necessidade de
estabelecer ordem ou resistir a e!a" 2 . A vida de John Dowland nao parece ter
sido

facil. Seus bi6grafos sempre chamam aten<;ao aos fatos mais tragicos de

sua vida para justificar o carater melanc61ico de diversas de suas pe<;as. Fatos
biograficos podem servir de pista para a compreensao de certas "atitudes"
musicais, ou como McClary diz, de estabelecer ordem ou resistir a ela. 0
objetivo final da apresenta((ao de um autor e o entendimento maior de sua obra.
Dowland compos musica para alaude solo, can<;6es para voz e alaude, ou
pec;as para consorts de violas e alaude. Alem de ser conhecido par toda a
Europa como compositor, como interprete sua fama era ainda maior. Sua
reputac;ao era tamanha que comparava-se

a do famoso poeta Edmund Spencer:

Dowland to thee is dear, whose heavenly touch


Upon the lute doth ravish huma'l sense:
Spenser. to me, whose deep conceit is such
As, passing ali conceit, needs no defence .. 3

rabujenta, Apesar de Vossa 1nclina<;:ao para o Tempo servir, o tomilho aVos nao vos pertence'.
(It was a time when slliy bees - John Dowland, Third Book of Songe or
Susan McClary. Femm1ne Endings, Music. Gender and Sexualtty Un1versity of Minnesota
Press, 1991.
3
"Dowland vos e querido cujo toque celestial sobre o alaude deLc,a os sentidos humanos;
Spencer, para mim, cujo profunda conceito tal que passando todo conceito. nao necessita de
defesa alguma". R1chard Barnfield, In Divers humors. em Diana Pouiton. Jonh Dowland, Faber
and Faber, Londres. 1972.

52
Retrato de Elizabeth I, de autor anonimo

53
Duas gravuras de Londres de 1600 (Wenceslaus Hollar, The British Museum)

~----------------~--=--

( 'u1l.o i I

\'\rltmntl.llttti.-tL.. L"

fl.t"J,

54

A lnglaterra de 1600 era um pais que tinha uma vida cultural intensa e
extremamente centralizada. Londres concentrava grande parte da populac;ao,
ultrapassando quase dez vezes suas rivais mais pr6ximas (Bristol e Norwich). A
maior parte da riquesa, da vida comercial, artistica e intelectual se encontrava
na Capital e seus arredores apresentavam uma concentrac;ao de cerca de um
quinto da populagao total

inglesa (200.000 habitantes). Alem disto, Londres

tambem era o centro politico, onde tudo girava em torno da familia real.
Dowland viveu sob o reinado de duas estirpes: inicialmente da Rainha Elizabeth
(o ultimo e mais Iongo reinado dos Tudor) e no final de James I (parente mais
proximo de Elizabeth I, que inaugurou a dinastia dos Stuart uma vez que a
Rainha nao teve filhos,t A hist6ria do perlodo e repleta de conflitos politicos,
conspirac;oes, golpes, complexos tramas envolvendo a corte e pessoas ligadas
a ela, resultando em grandes massacres, cabec;as cortadas, tortura e forca. Um
ambiente sombrio e amedrontador para quem perdia os favores da Rainha ou
do Rei. Desobedece-la ou afronta-la significava nao s6 a alienac;ao da vida da
corte, mas tambem castigos maiores como, por exemplo, a condenac;ao a anos
de escuridao e morte na torre de Londres.

0 perlodo imediatamente anterior ao em que Dowland viveu e marcado


Reforma da lgreja na lnglaterra. Henry VIII, desiludido com sua primeira
esposa, Catherine of Aragon, porter tido apenas filhas mulheres, para poder se
casar com Anne Boylen, na esperanc;a de ter um filho homem, decide enfrentar

55
a autoridade do Papa e cria a lgreja Anglicana, com leis que permitissem o
div6rcio. Do segundo casamento nasce Elizabeth, e novamente desiludido,
perseguido por fantasias de traigao e infidelidade, condena a segunda esposa a
ser decapitada. 0 monarca casa-se pela terceira vez com Jane Seymour. Esta
finalmente lhe da o filho tao esperado - e morre algumas semanas ap6s o parto.
0 rei ainda se casa mais tres vezes, e todas as esposas, exceto a ultima sofrem
destino tragico impingido por sua impiedosa tirania. A ultima, Catherine Parr,
sobrevive

a morte do Rei e escapa a decapitagao ou ao ostracismo do div6rcio e

expulsao da corte. Com a morte de Henry VIII, seu unico filho, Edward,

coroado rei com apenas 9 anos de idade. Seu reinado dura pouco, e aos 15
anos de idade, "finalmente envenenado pelos remedios que inicialmente o
tinham estimulado, com pernas e bragos grotescamente inchados e pele
enegrecida, com os dedos dos pes e das maos atacados pela gangrena, o
cabelo e as unhas

caindo e aos 6 de julho de 1553, Edward morre, fraco

demais para tossir, murmurando uma prece" 5 .

E sucedido

por sua irma mais

velha Mary, cujo reinado tambem e interrompido prematuramente por sua morte.
Finalmente Elizabeth e coroada em 1558, cinco anos antes do nascimento de
John Dowland.
Como relata Julie Anne Sadie 6 , a corte nao era apenas um Palacio, ou urn
espa<;o em particular. Era uma instituigao de cortesaos, administradores e

Donna Cooper e Bill Cliftland, Tudors and Stuarts, BBC Landmarks, Londres.
Cristopher Hibbert, The Virgin Queen. Elizabeth !, Genius of the Golden Age, Addison-Wesley
Publishing Company, Inc., California, 1991.
6 Julie Anne Sadie, Companion to Baroque Music, J.M. Dent & Sons Ltd. Londres, 1990.

56
serventes domesticos que se deslocavam para onde quer que o monarca fosse,
percorrendo varios palacios ou casas de campo em suas mudanc;:as no decorrer
do ano. Durante o tempo de trabalho, a corte ficava perto do Centro de Londres,
em Whitehall ou em um dos palacios ao logo do Rio Tamisa. A vida musical
girava em torno da corte e os mais afortunados eram empregados

sob a

juridisc;:ao de Lord Chamberlain. Para prover musica para a sec;:ao da corte


conhecida como Chamber, eram mantidos varios grupos, dos quais o maior e o
mais antigo era o coro real ( 12 crianc;:as, 32 cantores masculinos, mais dois ou
tres organistas). Apesar de reinar durante tao curto periodo, Edward marcou a
historia da musica inglesa de forma tragica. Continuando a reforma contra a
lgreja catolica iniciada por seu pai, imp6s o uso de livros liturgicos novos, nos
quais existiam muito poucas obras musicais, dissolveu estabelecimentos
musicais importantes, restringiu o uso da polifonia, ordenou a destruic;:ao de
orgaos, extinguiu corais, etc. Suas irmas e sucessoras na coroa da lnglaterra,
Mary e Elizabeth, esforc;:aram-se para recuperar a situac;:ao. mas ainda assim a
musica sacra inglesa nunca se recomp6s totalmente 7 .
A inaugurac;:ao da casa dos Tudor delineou toda uma nova gama de
comportamento social. A figura do Rei ou da Rainha passou a ser vista como
personagem divina, endeusada pelas vozes dos poetas, musicos e dramaturgos
da epoca. Em uma sociedade atomizada pelos conflitos religiosos e sociais,
somente a presenc;:a quasi-divina de um rei ou rainha poderia restaurar a

F. W. Sternfeld. Mus1c from the Middle Ages to the Renaissance. Weidenfeld & Nicolson
London, 1973.

57
harmonia perdida. 0 Rei ou Rainha passavam a fazer parte da mitologia da
epoca, sendo descritos ou mesmo confundidos com alguns personagens da
mitologia grega. Elizabeth I era descrita como a

rainha-musica, fortemente

engajada na prodU<;ao e mantenimento das artes na lnglaterra. A musica tornouse uma constante metafora da ordem social, apresentando a possibilidade de
multiplas e distintas vozes sociais entrarem em harmonia:

A c1tie or ciuill company is nothing else but a multitude of men


unlike in states or conditions, ... that may live the better, & are
ob1d1ent to the same Iawes and magistrates

Of such a

dissimilitude an harmonicall agreement ariseth by due proportion


of one towards another in their diuers order & estates, euen as
the harmonie in musicke consisteth ofvnequal vo1ces or sounds
agreeing equally togither 8

Sob o reinado de Elizabeth, o nfvel musical se desenvolveu de forma


nunca antes

e rara

depois

sua morte.

A medida

pais enriquecia e tomava conhecimento dos produtos artisticos do continente


com a importa<;ao de talentos estrangeiros ou atraves das visitas de artistas
ingleses ao exterior, o isolamento cultural da ilha diminuiu. Com a persegui<;ao
religiosa e o consequente enfraquecimento da musica sacra, abriu-se maior

Pierre de La Primaudaye, French Academie (1577) em Robin Headlam Wells Uma cidade ou
uma sociedade civil nao e outra co1sa senao uma multitude de homens diferentes em situac;:ao ou
condic;:ao , de modo que possam viver melhor, e sao obedientes as mesmas leis e magistrados ...
De tal dissimilitude uma concordanc1a surge na proporc;:ao de um contra outro em suas ordens e
estados distintos; da mesma forma como a harmonia em musica consiste de vozes ou sons
desiguais concordando equa!itariamente juntos.

58
espa9o para a musica secular, desenvolvendo-se magnificamente a musica para
violas e virginais, os madrigais e as ayres. 0 mundo intelectual e artistico de
John Dowland girava ao redor de Shakespeare, Bacon, Donne, Spencer e
musicos como Morley, Gibbons e Byrd. Foi um periodo extremamente aberto e
entusiasmado com a cultura francesa, classica e especialmente italiana. Na
poesia e na musica, fazia-se muita traduefao, adapta9ao, imita9ao e mesmo
plagio - mas tudo com muita inteligencia e humor, e mesclado com a cultura
nativa, produzindo um repert6rio muito particular e distinto de tudo o que se
ouvia no resto da Europa. Entre 1560 e 1570, uma enorme quantidade de
musica italiana circulava em manuscritos ingleses. Em 1588, foi publicada uma
coletanea de musica italiana, na qual aparecem inumeras pe9as de Luca
Marenzio,

compositor que Dowland admirava profundamente. Apesar da

abundancia econ6mica e da grande efervescencia cultural da epoca, a violencia


politica era extrema. 0 governo autoritario da corte cria, inventa, seus pr6prios
inimigos, de forma

a exercer ainda mais tiranicamente seu poder. Esta ideia,

originalmente de Nietzche,

comentada por Robin H. Wells da seguinte

mane ira:

As Nietzche observed long before Foucault made the other' a


fashionable concept,

authoritarian

governments

have more

59
needs of enemies than friends .... authority will typically produce
its other as a way of justifying its own exercice of power.

A lnglaterra passa a ser comparada com a Grecia antiga, o rei com


Cezar, ou a rainha com a esposa virgem do filho unico de Deus para governar
Sion. As narrativas mitologicas sao criadas para articular uma visao da
realidade, cada epoca e representada por sua propria mitologia e atraves de
uma reflexao sobre estes mitos presentes em todas as manifestac;oes
intelectuais, compreendemos o Iugar que, por exemplo, Dowland ocupava em
seu tempo. 10 0 movimento anti-essencialista de Francis Bacon, John Donne ou
Picco della Mirandolla considerava o homem "nem do ceu, nem da terra, nem
mortal, nem imortal" 1 \

ou seja, vendo o ser humano em sua natureza

inerentemente dividida, o homem "expulso", "caido", pode ou desenvolver seu


!ado racional ou seu !ado bestial, irracional, proximo dos seres selvagens. Um
dos mitos mais usados na epoca para representar a possibilidade do homem de
se diferenciar do mundo animal, eo mito de Orpheu. Este, atraves de seu poder
retorico, encanta e domina o mundo natural, elevando o homem de sua baixa
condic;ao. 0 renascimento adota os mitos classicos e reconta-os para interpretar
e validar a autoridade em sua epoca. 0 mito de Orpheu e do nascimento da

Como Nietzche observou muito antes de Foucault tornar o seu 'outro' um conceito da moda.
governos autoritarios possuem maior necessidade de inimigos do que de amigos ..... autoridade
produzira tipicamente seu outro com forma de justificar seu proprio exercicio de poder. Robin
Headlam Wells, Elizabethan Mythologies:Studies in Poetry, Drama and Music, Cambridge
University Press, 1994.
10
Para uma discussao aprofundada do assunto. ler Robin, H. Wells ibidem.

60
civiliza98o atraves da can<;ao tern ralzes na poetica classica. A palavra aliada
musica. magicamente persuasiva, da

a luz a civiliza<;ao.

Como o homem teria

perdido seu temperamento natural, ele agora necessita harmonizar sua queda
atraves das artes civilizat6rias. 0 Rei ou Rainha desta epoca tera sua figura
ligada ao Rei-musico,

pois atraves da musica e sus poderes ret6ricos

(civilizat6rios) ele podera restaurar a harmonia em seu reino. 0 mito de Orfeu


(ou Mercurio) e utilizado para a interpretagao do processo pelo qual a figura da
autoridade exerce seu poder, 12 que e baseado nas leis da ret6rica, induzindo a
aceitagao inconsciente de seus suditos. Reis e rainhas sao vistas como semideuses e sao frequentemente louvados na poesia da epoca incorporando estes
personagens. Assim tambem os pr6prios poetas e musicos identificam-se com
os personagens mitol6gicos e tornam-se totalmente imbufdos de sua nova
tarefa:

convencer, seduzir, persuadir, inebriar, encantar o ouvinte com sua

musica ou poesia. 0 poeta-musico le o mundo

a sua

maneira, interpreta e

constr6i sua propria imagem do mundo, nao o que o mundo e, mas sim o que
poderia ser: um reflexo de seu proprio desejo. Muitas vezes seu desejo e
conciliat6rio, outras vezes faz o papel da resistencia, da oposi<;ao. A relagao do
musico com a autoridade tern dois aspectos: a de validar uma corte tiranica,
atuando como um quase agente da propaganda ou,
subversivamente resistr a ela.
incentivando uma arte

Os

mitos sao

ao contrario,

manipulados

pelo

de

poder,

itica. Shakespeare e apontado pela critica literaria

Robin Head lam Wells, Elizabethan Mythologies, Stud1es in Poetry, Drama and Music,
Cambndge University Press, 1994.

61
como urn autor consciente da maneira como os politicos manipulam os mitos
com o intuito de assegurar e manter poder. A posi<;ao que Dowland ocupa
dentro desta circunstancia sera discutida a seguir.

No sonho neo-plat6nico de que a musica aliada a poesia move a mente


em direc;ao a virtude, a ascenc;ao da escalae naturae e urn objetivo comum
desta gerac;ao. A crenc;a de que o homem pode ascender atraves da mente os
degraus de uma escada do baixo mundo as mais altas elevac;oes espirituais e
comum nesta epoca, e aparece representada em diversas manifestac;oes
artisticas (Veja-se a famosa gravura de Durer, Melencolia. na qual aparece uma
escada ao !ado do anjo). Dowland nos oferece diversos exemplos musicais de
escalae naturae (Shall I sue; Come Again), no entanto seu tratamento destas
figuras liga-se ainda a questao da ironia, como veremos em seguida. Todas
estas descobertas criam urn ambiente de euforia e produc;ao intensa. 0 estudo
da ret6rica passa a ser uma preocupagao constante e todo menino que recebe
uma educac;ao erudita e iniciado nas artes da ret6rica (ver capitulo V). 0 periodo
elizabethano e inigualavel na hist6ria da musica e a riquesa das canc;oes, ou
das obras solo para os instrumentos da epoca, oferecem a qualquer interprete
moderno fonte inesgotavel de sofisticac;ao e deleite.

12

ibidem

62
John

Dowland

nasceu

em

1563

(baseando

calculo

nas

informa<;oes de seu prefacio ao livro de can<;oes A Pi/grimes So/ace(1612):


being now entered into the 50th yeare of mine agen). 13 Aos dezessete anos
viajou a Paris como servo de Sir Henry Cobham, Embaixador do Rei da Francta.
Durante os dois anos em que permaneceu na Francta. converteu-se ao
catolicismo. 0 movimento intelectual em Paris na epoca girava ao redor da
figura de Pierre Ronsard e outros poetas ligados a Pleiade, uma especie de
Academia, como a de Giovanni Bardi na ltalia. Seus objetivos eram paralelos,
preocupando-se em descobrir os

poderes da musica antiga grega atraves da

sua assossia<;ao com as palavras. As odes gregas eram supostamente


cantadas ao acompanhamento da lira, e esta foi substituida pelo alaude. Em
1571, Adrien Le Roy publicava uma colectao de can<;oes para voz solo e alaude,
o Livre d'Airs de Gaur, uma nova forma de can<;oes que refletem a nova estetica
musical da epoca. A air de cours se desenvolve com

crescente liberdade

ritmica - nao existem barras de compasso, a acentua9ao da musica e ditada


estritamente pelo ritmo das palavras, e a linha mel6dica sublinha com elegancia
o texto. As can96es de Dowland sofrem influencia direta da air de cour e em
alguns casas aproximam-se ate do recitativo italiano, como se pode observar
em Sorrow Stay. Segundo Mitchell, esta can9ao e uma das pe9as

mais

maduras que Dowland escreveu, representando um distanciamento das texturas


polifonicas de muitas de suas can<;oes com rela9ao as can96es mais simples e

13

John Dowland: A Pilgnmes Solace.

63
declamat6rias acompanhadas por baixo continuo. que vao se desenvolver mais
tarde. 14 Avan(_(ando um pouco mais no tempo, pode-se compreender de quem
Henry Purcell recebeu influmcia - urn resultado direto do espirito de Dowland, a
expressividade exacerbada, o uso dos afetos mais obscuros e dramaticos como
mota gerador da musica, que deve dominar totalmente o ouvinte. Sem a
influencia de Dowland, a musica de Henry Purcell nao seria o que e, e segundo
Robin H. Wells, Spencer e Sidney, juntamente com Thomas Morley e John
Dowland foram responsaveis por uma total transforma(_(ao da poesia e musica
inglesa de sua epoca. Segundo este autor, a forma de Soneto Petrarquiano eo
madrigal ao chegar

a lnglaterra,

criaram os meios principais para a realiza((ao

do ideal affetivo tao fundamental na musica desta epoca.

Em 1994, morre John Johnson, alaudista oficial da corte da Rainha


Elizabeth. Dowland tenta substitul-lo, mas nao e aprovado no concurso, e viaja
outra vez para o continente, visitando a corte do duque de Brunswick e Maurice
de Hesse. Como sua pretensao nao e de se estabelecer em nenhuma destas
cortes, apesar de lhe ter sido oferecido um posto.

parte para a ltalia, com o

intuito de conhecer o compositor Luca Marenzio, cuja musica tanto respeita. Na


lia, porem, Dowland e contatado por exilados cat61icos ingleses, e ve-se
envolvido numa conspiragao contra a Rainha Elizabeth. Assustado, escreve

14

Scott Mitchell Pauley, Rhetoric and the Performance of Seventh-Century English Continuo
Song, tese defend1da no Departamento de Musica da Universidade de Stanford, 1994.1

64
uma carta a Sir Robert Cecil, tentando desculpar-se do grave ocorrido e mostrar
sua fidelidade

.,,
'

a Rainha .

65

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.
1'-''

fvt>Cl-t'

. ?/Jdi'r

l\'1'"( .:.1!

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Carta

de

John

Dowland

Sir

Robert

Cecil,

1595

67
John Dowland culpa sua op<;ao religiosa como a razao pe!a qual um
posto na corte da Rainha Elizabeth jamais lhe fora oferecido. A persegui<;ao aos
cat61icos

na realidade, nao era tao intensa, principalmente aos musicos de

valor. Um bom exemplo

William Bird, compositor cat61ico, que era favorito da

Rainha. Segundo Diana Poulton, Dowland nao era um cat61ico tao assumido
como

faz parecer em sua carta. Muitas evidencias neste sentido podem ser

enumeradas: Em primeiro Iugar,

a Universidade de Oxford nao oferecia

diplomas a alunos cat61icos (Dowland recebeu seu Bacharelado em 1588, muito


ap6s sua suposta conversao ao catolicismo ). Seu filho Robert foi batizado
protestante;

viajante poderia cruzar as fronteiras sem uma licen<;a do

Conselho Privado da Rainha, com o intuito justamente de prevenir a ida e vinda


de cat61icos do continente para a lnglatera (Dowland s6 teria viajado com a
licen<;a de Sir Robert Cecil, conselheiro muito proximo de Elizabeth). 0
panorama parece mais tolerante do que Dowland descreve em sua carta.

provavel que a razao de nao ter sido aceito tivesse sido bem diversa: delatando
outros cat61icos por uma suposta trama contra a Rainha, arrependendo-se de
seu catolicismo, e jurando fidelidade

coroa, Dowland talvez estivesse

aproveitando a ocasiao para receber a simpatia e aceita<;ao para o desejado


posto no Palacio.

Apesar das tentativas, Dowland enfrentou tremenda

frustra<;ao, pois o posto de alaudista da corte, depois da morte de John


Johnson, ficou vago por quatro anos, sendo preenchido entao por Edward
Collard. Dowland, decepcionado, partiu para a Dinamarca em 1698, onde
recebe 500 dater por ano para servir ao Rei Christian IV, recebendo o maior

68
salario dentre todos os criados da

corte. 0 ambiente na corte da Dinamarca

parecia ser bastante diverso do ambiente comedido e asceta da corte da Rainha


Elizabeth.

Em uma carta da epoca, encontra-se uma descri<;ao de

um

banquete oferecido ao Rei da Dinamarca. na qual se percebe a exuberancia


dionisfaca de uma corte bem mais liberal que aquela

a qual

Dowland estava

familiarizado:
My good friend .

.. .from the day he (The King of Denamark) did come until this
hour, I have been well nigh overwhelmed with carousel and
sports of all kinds. The sports began each day in such manner
and such sorte. as well nigh persuaded me of mahomet's
paradise. We had women. and indeed wine too, of such plenty as
would have astonished each sober beholder. Our feasts were
magnificent and the two royal guests did most lovingly embrace
each other at table. I think the Dane hath strangely wrought on
our good

nobles. for those, whom I never could get to

taste good liquor. now follow the fashion and wallow in beastly
delights. The Ladies abandon their sobriety, and are seen to roll
about in intoxication .. but I neer did see such lack of good order,
discretion, and sobriety, as I have now done .... ' 5

:5

69
Retrato de Christian IV, Rei da Dinamarca (Peter lsacsh, 1612)

70
Rainha Elizabeth em idade mais avangada (Marcus Gheeraerts the Younger)

71
Dowland passou cinco anos de sua vida na corte da Dinamarca. Sabe-se
pouco sabre sua estadia, existem apenas registros de inumeros adiantamentos
salariais, em propon:;:ao mais crescente. Desta temporada data a publicagao de
seus livros de pe<;.:as para canto e alaude, cujo sucesso foi tao grande que seu
First Booke of Songes foi impressa e re-editado cinco vezes entre 1600 e 1613.
Em 1603 volta

a lnglaterra

onde publica The Third Booke of Songes, no qual

inclui duas can<;.:oes dedicadas a Rainha Elizabeth. Dowland seve dividido entre
o respeito bajulador e atrevida arrogancia - duas cangoes louvam a Rainha em
exageros extremos (Time stands still with gazing on her face e Say laue if euer
thou didst finde) e numa terceira, It was a time when silly bees, Dowland ironiza
acidamente a vida na corte, e a metafora da rainha abelha cercada de vermes
nao poderia ter sido mero descuido de um autor pouco consciente do poder das

72
palavras e da musica. Sua sorte com a Rainha Elizabeth nunca mudou. No mes
seguinte ela morreu, sendo sucedida por James I. Durante os anos que se
seguiram, Dowland publicou Lachrimae or Seven Tears, uma tradu<;ao propria
do Micrologus (um tratado teorico do Seculo XVI). Seu filho Robert publicou as
Varietie of Lute Lessons (contendo 9 obras de Dowland entre uma miscelanea
de outros autores contemporaneos, uma tradu<;ao das Necessarie Observations
belonging to Lute Playing de Beasardus, e Other Necessary Observations
belonging to the Lute! de sua propria autoria), e A Pi/grimes Solace, seu ultimo
volume de can<;6es. No prefacio deste ultimo livro, Dowland ainda encontra
espa<;o para queixar-se de sua sorte dizendo:
Valiosos cavalheiros, e bem-amados Countrymen; ... A verdade e que eu tenho vivido por Iongo
tempo obscurecido de sua vista, porque recebi um posto em clima estrangeiro, e nao pude nunca
ter um Iugar em minha terra natal. ... Mas se eu tivesse mantido minha cabec;a dentro destes
horizontes, nao teria tido sucesso em outras partes. Pois alguns de meus pobres labores
receberam favores nas melhores partes das Europas, e foram impressos nas oito mais famosas
cidades de Alem-mar, ou seja,

Antuerpia, Collein, Nuremberg, Franckfurt, Leipzig.

Amsterdam e Hamburg ... ainda assim devo vos dizer, pois tendo sido um estrangeiro. ainda
assim outra vez tenho me deparado com estranhos fatos depois de minha volta: especialmente
pela oposir;ao de dois tipos de pessoa que colocam a si mesmos sob o titulo de Musicos. Os
primeiros sao uma especie de simples Cantores. os quais apesar de parecerem excelentes em
divisao. nao passam de ignorantes, mesmo nos primeiros elementos da musica .... Os segundos
sao jovens. professores de alaude ... que vangloriam-se que antes de seu tempo nao havia
ninguem como eles (1603)

73
Dowland envelhece, lamenta os anos que se foram, lamenta ter sido
esquecido e encontra outras vozes cantando consigo seu canto de cisne: So
since (old friend) thy years have made thee white/ And thou for others, hast
con sum 'd thy spring, I How few regard thee. whom thou didst delight,! And farre
and neere, came once to heere thee singe; I lngratefu/1 times, and worthies age
of ours/ That let's vs pine, when it hath cropt our flowers 16
Dowland

being now gray, and like the Swan, but singing towards his end (

estando agora grizalho, e como o cisne cantando seus ultimos cantos), recebe
finalmente

de James I o tao esperado posto na corte, em 1612.

Vive seus

ultimos anos a servic;o do Rei e em 1626 morre, sendo sucedido por seu filho
Robert no posto

e que

por tao curto periodo.

John Dowland representa uma alegoria tipica de sua epoca.

Eo

poeta-

musico, com poderes misteriosos, magicos, capaz de envolver e persuadir o


ouvinte. Apesar de suas tentativas em se auto-descrever como um musico
injustic;ado por um destine pouco favoravel,
indiscu~lvel

nao reconhecido

pelo seu

valor musical, Dowland como autor, pouco tinha de inocente. Sua

musica, muitas vezes aparentemente submersa no humor melanc61ico tao em


voga na epoca, e na realidade distanciada e ir6nica, apresentando muitos
comentarios perspicazes e audaciosos em relac;ao ao poder vigente. Note-se

Peacham, em Minerva Britanna (1612) Assim desde que (velho amigo) vossos anos vos
fizeram branco,/e tambem para outros consumtram suas primaveras,/Quao poucos vos veem.

74
sua Galharda em homenagem ao Rei da Dinamarca, uma Battle Galliard, na
qual Dowland ironiza

Christian IV, um rei bebado e devasso, e um grande

fracasso em batalha. Ele usa sua musica como


manifesto - de forma sutil, porem ir6nica. A musica

resistencia, um quase

e uma piada sobre a batalha

de Christian IV, o rei, um palhac;;o. (Nao e surpreendente que Dowland acabe


perdendo seu posto na corte dinamarquesa). Os trompetes soam ridiculamente
pomposos no decorrer da Galharda, e a ornamentac;;ao sugerida destr6i
qualquer ideia de seriedade, tornando a pec;;a uma grande troc;;a.

Como

esclarece

Robin

H.

Wells,

o traba!ho

do

critico

nao

simplesmente de relac;;oes publicas entre a obra e o publico, mas o de vigilante


cuidadoso que examina a mercadoria ideol6gica que um texto esta tentando nos
vender. Dowland par tras de Dowland nao e apenas o lamentavel e melanc61ico
exilado como tantos bi6grafos tentam retrata-lo. ou como aparece em suas
canc;;oes quase auto-biograficas. Flow my Tears.
interpretada como um grande elogio

a melancolia.

exemplo, pode ser

ao exilado. Numa epoca em

que os humanistas se encontravam mais e mais interessados numa escrita


afetiva, melancolia, desespero e aflic;;ao eram sentimentos muito apropriados,

como verdadeiro alimento para a expressividade. Dowland e extremamente


habilidoso em lidar com os afetos, e sabe melhor do que qualquer

autor de

seu tempo manipular as emoc;;oes de seus ouvintes. seja fazendo-os padecer da


mais profunda angustia, ou outras vezes maliciosa e sutilmente expressando

aos quais delic1asseis/E de Ionge ou de perto, vinham outrora escutar-vos,/Epoca ingrata, inutil

75
seu distanciamento da pretensa melancolia. Segundo Robin H. Wells, o neoplatonismo renascentista chegou tardiamente

a lnglaterra. e foi entao tratado de

maneira critica e cetica. Shall I sue pode ser vista como uma cam;ao que faz
tro<;a de suas pr6prias ideias. Subindo a esca/ae naturae com os versos Or a
sigh can ascend the clouds, Dowland insinua sua incredulidade com uma figura
mel6dica descendente no final da frase to attaine so high, criando uma
perspectiva ir6nica.

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Em outros momentos, a arte do ocultamento

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e espirituosamente

usada

para dissimular uma canc;ao de cunho altamente er6tico. Sob a inocente


aparencia de uma queixa, o amante suplica a sua amada: Come again sweet
love doth now invite! thy graces that refrain I To do me due delight I To see, to

tempo em que vivemosJ que nos deixam definhar, quando as nossas fiores

Ja foram

ceifadas.

76
heare, to touch, to kisse, to die, With thee againe in sweetest sympathy..- As

palavras come

e dye em ingles possuem dois sentidos, um usual, o simples

verbo vir e morrer, e eufemisticamente, atingir o climax sexual. Musicalmente a


melodia ascendente

e representada

pela figura de ret6rica conhecida como

auxesis, e neste caso a ascen<;ao nao

e da

scala naturae, mas da escala da

luxuria.

Venhais novamente doce amor. agora convido, I de vossas grac;:as me abstenho I Oue me
provocam delicias I Para olhar, ouvir, tocar, beijar, morrer I convosco outra vez namais doce
simpatia (The first Booke of Songes. 1597).
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77
17. COME AGAIN: SWEET LOVE DOTH NOW INVITE
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3
All the day
The sun that lends me shtne,
By frowns do cause me J.;ine.
Aml feeds me with delay,
Her smiles my springs, that make> nw Jnys to grow,
Htr frowns the \\'lllters
my woe:

or

4
All the nig!.t
My slet~s are full of dreams.,
My eyes are full of streams.
My heart takes no deltght,
To see the fruits and Joys that some do f1nd,
And mark the storms are me as,wn'd.
5
Out alas.

lily faltb Is t>eJ true,


Yd Will she never rue,
Nor y1ciJ m~ ar.y grace:
lier Pyes of f1re, her hart of flint IS mad,-,
VdJOm tears,
trutl: rr.ay once Invade

Draw
Thou
For I
By s1ghs and
Dtd tempt

{)

Come aga1n:
Sweet love d0th now invite,
Thy graces tbat rdratn,
To do me due drllf!"ht,
To see, to hear, to tou. h, to k1s:;, to d1~, "(
W1th thee again Ill sweetest sympathy.

2
Come again
That l may cease to mourn,
Tluough thy unkind di><l.itn:
For now left and forlorn,
s1t, I sigh, I weep, J L>~r.t, l ct1e,- \
lr1 deadly pctlll and endless misery.

t1

t1

{'

6
Gentle Love
forth thy wounding dart,
can>! not plfJCe her heart,
that to apFove,
kars IW>re lwt than are tl:y shaft,,
1Ahile she for tnumph laughs.

79
Em seu terceiro livro de can<;6es, quando esta ja a ponto de perder seu
emprego como alaudista real da corte da Dinamarca, Dowland escreve a mais
terna can<;ao, elogiando a beleza de uma rainha a quem o tempo nao marca
com seus golpes impiedosos da decrepitude (Time stands still). As frases sao
compostas por delicadas melodias e do come<;o ao fim o que se ouve

e quase

uma lullaby que seduziria o ouvinte mais insensivel.


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THne stand" stoll "1th gaz.n,; on her fncc,


nJ slill and gaze, for mli:Ult>, hours and yenrs, to her give place:
All other things shall change, but she remains the same,
Till heavens changed have their courbtl and T11ne hath lost his name.
Cupid doth hover up and rlown blinded with her fair eyes,
A11<l fortune capt1ve at t.er feel contemn\! and conquor'J lies.

When fortunr,Love, ::.n:i TJme attend on


l!cr with my fortullc>, love, ~nd time I honour \\ill alone,
If bloodless Envy s~y, Du:y hath no dcscrl,
Duty replies that Envy kHows herself his f~itilful ile~rt,
My bttl.led vows nnd spntit66 fnith no fortune cJn remove,
Cnurul{c >hull how n1y lll""d Loill1, anu fn1lb hhull try my love.

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Dowland

se

mostra

inescrupulosamente sarcastico com a Rainha e sua corte. There was a time

e uma can<;ao

when Silly bees

leve, como se o autor estivesse inocentemente

escrevendo uma pequena can<;ao inconseqOente. A letra e feroz, mordaz e


agressiva. Dowland brinca com o poder, nao esconde sua insolencia as
conven<;6es da epoca.
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And in that time I was a. silly hee,
Who fed on thyme until my heart 'gan break,
Yet never found the time would favour me
or all the S\1\'f!_l"ffi I only did not thnve,
Yet brought I wax and honey to-i'he-hive.

Then thus I buzz'd

-..hen lhyme no sap wculd give,


Why should th1s blessed thyme to me be dry
Silh by thib lhyme the lnzy drone doth live,
ThB wasp, the worm,the gnat; the butterfly.
Mated with grief, I kneeled on. my knee6,
And thus comt~laio'd unto the l<ing of bees.

'My liege,gods grant thy lime may never end,


And yet vouchsafe lo hear my plaint of \hyme,
Wh1ch fru!tless'flf'es have found to have a friend,
And I cnsl down when atomies do clirr.b',
Tho: j{l!lf' replied buTthus, 'Peace,peevtsh oee.
Thou 'rtlbou11d
to serve the Time,ll;-e th.yme not thee'.
)

_____

Note
The word Tt'mt i~ so !'pelt tflfOlJ~hout th(' 1vric in oricJn.d cdJtJon, Lt,t tLv rl
on the wordu Tsn,r a.nri Tl:
"J!I !n1 ul>v!una.[K.U f]
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83
Dowland

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habil em sua capacidade ret6rica que nao economiza

artificios na cria<;ao da persona do melanc61ico 18 . Melancholy Galliard, Sorrow

stay, In Darkness let me Dwell, sao apenas alguns titulos dentre tantos outros
ligados ao humor melanc61ico. Seu aparente compromisso com a melancolia
culmina ainda em uma de suas mais belas e comoventes Pavanas para alaude
solo, no qual liga seu proprio nome

18

a dor eterna:

Dowland Semper Do/ens.

Esta ideia de que Dowland teria criado conscientemente uma persona melanc61ica para si
mesmo, e discutida por Robin H. Wells no ensaio: Dowland. Ficino and Elizabethan Melancholy.
em seu !ivro acima citado.

84

9 Semper Dmv!aJJd Semper Dolells


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87
Ler a obra de John Dowland como um texto complexo e permeado de
multiplas camadas de significados e tarefa complicada e bastante fertil no
campo da musicologia moderna, muitas vezes chamada de nova musicologia.
Descobri-lo como um autor consciente de seu poder manipulador, distanciado
ironicamente de sua obra, pode trazer algumas luzes para um melhor
entendimento daquilo que produziu. No entanto, pensar por exemplo na cangao

Time stand still como uma pega puramente de manipulagao e bajulamento, pode
apenas levar o ouvinte/interprete/leitor a uma relagao igualmente ir6nica com a
propria obra. 0 envolvimento emocional com a musica cessa, e o que se ouve
sao conceitos e especula<;6es te6ricas. Descobrir as verdadeiras inteng6es de
Dowland ao escrever uma pega tao doce e enternecida nao pode nos
acresentar muito. Em alguns casos, como na Galharda para o Rei da
Oinamarca, a descoberta do velado esplrito de troga pode influir positivamente
uma interpretagao, como e o caso da brilhante versao de Paul O'Dette.
Compreender o que se passa no inconsciente musical. realizar uma tentativa
psicanalise musical pode abrir um campo vasto na leitura da arte dos sons. Mas
como toda obra de arte, a musica se coloca alem de qualquer possfvel
interpretagao verbal, onde pensamos agarra-la, onde pensamos entende-la,
nosso raciocfnio cartesiano torna-se insuficiente. Se fosse possivel transformar
musica em palavras, deixariamos de fazer musica, chegariamos no maximo na
poesia. Ler as inteng6es de John Dowland por tras de sua musica e um
exercicio do intelecto - um jogo de detetives atras

possibilidades infinitas de

88
transgressoes, novas versoes da hist6ria do autor e fatos alem da musica. A
obra de Dowland esquiva-se furtivamente de nossas explica<;oes - sua
habilidade em mover nossos afetos e infinita, inatingivel, inexplicavel. A n6s,
ouvintes e interpretes de Dowland nao nos cabe senao a posi<;ao passiva de
nos deixarmos levar

pela mais sedutora das musicas, e nos entregarmos

docilmente a este magico e poderoso Orpheu.

CAPiTULO IV

PAVANAS E GALHARDAS: AS DANCAS

Is there any other art as elemental, as central to man's


nature, as music? There is one: dance. And it is surely a
supreme irony that these two complementary, indeed
often inseparable art forms should be often studied and
researched and - worse of all - performed in isolation
from each other. Even at a time in Western Society when
the quest for sophistication has drained dry much of the
essential spontaneity and ritual passion which animates
dance in other cultures, few of us can avoid dance in
some manifestation.'

Assim escreve Nicholas Kenyon no editorial da revista Early Music de


fevereiro de 1986. Um numero dedicado em grande parte ao estudo da danga
hist6rica. Se para o estudioso de danga, esta ligagao e interdependencia entre
as duas formas de arte

e essencial,

para o musico que tenta "reconstruir" uma

pega, torna-se uma obrigatoriedade investigar da danga propriamente dita, se


aproximar de obras com titulos de dangas.

' Nicholas Kenyon, editorial em Early Music. londres: fevereiro 1986 Existe alguma outra arte tao
elementar, tao central na natureza humana quanta a musica? Existe uma: a dan<;:a. E e
certamente uma suprema ironia que estas duas formas de arte, complementares e quase
sempre inseparaveis, deveriam ser tao frequentemente estudadas. pensadas, pesquisadas e ainda pior - realizadas isoladas uma da outra. Mesmo numa epoca em nossa cultura ocidental
em que a busca pela sofisticac;;ao tem extinguido a espontaneidade e paixao ritual que anima a
danc;;a em outras culturas, poucos entre nos pode evitar a danc;;a em algumas manifestac;;oes.

90
Pesquisa na area da hist6ria da dan<;:a apresenta problemas maiores do
que nas outras areas de performance. Musica e teatro, com seu sistema de
nota<;:ao altamente desenvolvido, reservou para as gera<;:6es futuras urn canone
de repert6rio muito mais acessfvel. A forma de executar com fidelidade

este

repert6rio e o objeto deste trabalho - porem o rigor nesta pesquisa torna-se


quase um preciosismo diante das enormes dificudades apresentadas para quem
se dedica

pesquisa da dan<;:a hist6rica. Segundo Meredith Little 2 , esta

dificuldade se deve basicamente a uma enorme limita<;:ao de exemplos. Todo o


repert6rio antigo de dan<;:a que ficou registrado, limita-se a aproximadamente
800 pequenas pe<;:as escritas em sistemas de nota<;:ao de natureza bastante
ambigua. A autora sugere que a dificuldade na reconstru<;:ao da dan<;:a se
assemelharia a tentar encenar Shakespeare se apenas fragmentos de pe<;:as
houvessem sobrevivido. Para os musicos, uma dificuldade semelhante se
encontra na reconstru<;:ao de musica medieval, em que grande parte da tradi<;:ao
era oral. Existem poucos manuais originais dedicados
conhecido

de

mais

facil

acesso

tratado

de

dan<;:a. 0
Thoinot

mais

Arbeau,

Orcheseographie. Neste capitulo, a Pavana e Galharda serao abordadas a partir


desta obra. 0 estudo destas dan<;:as

um auxilio para o interprete de musica

antiga, e nao um fim em si mesmo. Dedicar-se a outras fontes originais sobre


dan<;:a seria exaustivo e talvez um pouco exagerado para os fins a que este
capitulo se prop6e.

Meredith Little, "Recent research in European dance, 1400-1800" em Early Music. Londres,
fevereiro de 1986.

91

0 tratado de Thoinot Arbeau (pseud6nimo de Jean Tabourot) esta escrito


em forma de

dialogo entre o autor e urn certo Monsieur Capriol que deseja

aprender a arte da dan<;a. Thoinot Arbeau, publica sua Orcheseographie em


1589 para que toutes personnes peuvent facillement apprendre e pratiquer
l'honnete exercice des dances (todas as pessoas possam facilmente aprender e
praticar o honesto exercicio das dan<;as). Trata-se tambem de urn "manual de
savoir-vivre para o uso de un jeune-homme

a se

marier (urn jovem casadoiro)

da boa sociedade. 3
A dan<;a era vista na epoca como uma das sete arte liberais, e possuia
ela tambem seus principios ret6ricos. A este respeito se manifesta Thoinot
Arbeau:
Puis que ceft un art, il depend donq de l'vn des sept arts
liberaux. 4

E responde Thoinot Arbeau:

... Mais principalement touts les doctes tiennent que Ia


dance eft vne espece de Rhetorique muette, par laquelle
I'Orateur peult par fes mouuements, fans parler vn seul
mot, fe faire entendre, & perfuader aux fpectateurs, quil
eft gaillard digne d'eftre loue. ayme, & chery. N'eft-ce

Bernard Collin, prefacio da edic;ao facsimilada de Orcheseographie

92
pas a voftre aduis vne oraifon qu'il faict pour foy-mefme,
par fes pieds propres, en gendres demonftratif? Ne dit il
pas tacitementa Ia maiftreffe (qui le regarde danc;er
honnestement & de bonne grace)aymes moy, defires
moy? Et quat les mafquarades y font joinctes, elle ha
efficace grade demouuoir les affections,
cholere, tantoft
hayne, tantoft

tantoft

Ia

pitie & commiferation, tantoft

a l'amour.

C'omme nous lifons de Ia fille

d'Herodias, laquelle obtint ce quelle demanda au roy


Herode Antipe, apres quelle eut dance au banquet
magnifique qu'il fit aux princes de f6 royaulme,

a mefme

jours qu'il eftoit ne. Comme auffi Rofcius le fa ifoit bien


paroitre

a Ciceron, quant il adjanc;oit fes geftes & actions

muettes de telles fac;on , quau 1ugement de ceulx qui en


eftoient arbitres , il mouuoit autant ou plus les fpectateurs,
que Ciceron eut peut faire par fes elocutions oratoires.5

Thoinot Arbeau, Orcheseographie: Uma vez que e uma arte, ela depende portanto das sete
artes liberais.
5
Em Thoinot Arbeau (Ibidem): Eu vos disse, como ela depende da musica e de suas
modulac;oes, pois sem as virtudes ritmicas, a danc;a seria confusa e obscura. pois e necessaria
que os gestos dos membros acompanhem as cadmcias dos instrumentos musicais , e nao
podem os pes falarem de uma coisa e os instrumentos de outra . Mas principalmente todos os
doutores sabem que a danc;a e uma especie de Retorica muda , pela qual o orador pode, atraves
de seus movimentos, sem dizer uma unica palavra, se fazer compreender e persuadir os
espectadores de que ele e galhardo, digno de ser aceito, amado e querido. Nao e em vossa
opiniao uma orac;ao que ele faz para si mesmo, com seus P.es corretos , de forma demonstrativa?
Nao diz ele tacitamente a sua amada (que observa-o danc;ar honestamente , com boa disposic;ao)
amai-me, desejai-me. E quando os mascarados estao juntos, ela tern a grande eficacia de mover
afetos, seja a c61era , seja ao 6dio, seja ao amor. Como n6s Iemos sobre a filha de Herodias, a
qual obteve o que ela pedia ao rei Herode Antipe, ap6s haver danc;ado no banquete magnifico
que ele ofereceu aos principes de seu reino, no mesmo dia em que ele havia nascido. Como
tambem Rofcius se parecia com Cicero, quando ele usava gestos e ac;oes mudas de tal maneira
que ao julgamento daqueles que eram arbitros, ele emocionava tanto ou mais que aos
espectadores do que Cicero poderia ter feito com suas elocuc;oes orat6rias.

93

As Pavanas e Galhardas tern sua origem na Basse Dance. Segundo


Arbeau, elas ja estavam em desuso nesta epoca, mas o autor aconselha a sua
pratica, e que esta seja danc;ada pelas matrones faes & modeftes (senhoras
sabias e modestas), pois trata-se de uma danc;a pleine d'honneur et modeftie
(plena de honra e modestia).

A Basse Dance compoem-se de tres partes:

1. Basse Dance;

2. Retour de Ia Baffe Dance;


3. Tordion.
A figura ritmica caracterlstica de uma baffe dance e a seguinte:

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Para aprender a Baffe Dance, Arbeau sugere urn esquema para que seu
interlocutor Capriol a memorise:

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94
E logo explica seu significado:

R: Reverence (Reverencia)
b: Branle
ff: deux pas simples (do is passos simples)
d: double (duplo)
r: reprise (retomada)
c: conge (despedida)
Ap6s o par colocar-se no meio da sala e solicitar aos musicos uma Basse

Dance, eles entao fazem uma reverencia, como mostra o desenho de Arbeau: 6
A Pavana e a Galharda derivam-se da "Basse Dance" e do "Tordion".
Este ultimo nada mais

do que uma Galharda danc;:ada com movimentos

menores das pernas. A Pavana sera abordada em primeiro Iugar para depois
tratar do ''Tordion" e Galharda.
A Pavana

e uma

simplificac;:ao da "Baffe Dance", consistindo apenas de

dois passos simples (ff) e urn duplo (d). 0 compasso

e binario,

com o seguinte

ritmo basico:

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As ilustrac;oes que se seguem neste capitulo provem do volume facsimilado do tratado de danc;a
de Thoinot Arbeau, acima citado.

95

Ao chegar ao final da sala pode-se recuar com os mesmos passos ou


executar uma "conuerfion"

(conversao).

Arbeau aconselha optar por uma

conversao, caso contrario a mo<;:a poderia trope<;:ar em seu vestido. Ao chegar


ao fim da sala o cavalheiro mantem a mesma sequencia de passos, s6 que para
tras e a mo<;:a continua andando para a frente de modo que o par faz uma volta.
A Pavana e dan<;:ada com os pares em fila, percorrendo lentamente a sala.
Caprio! comenta os seguinte:

"le trouve ces pavanes & baffes-dances belles & graves, & bie
feantes aux perffones honorables, principalement aux dames et
damoifelles". 7

E responde Arbeau, fornecendo ao leitor de hoje urn belo quadro do que


teria sido urn baile daquela epoca:

"Le Gentil-homme Ia peult dancer ayant Ia cappe & lefpee: Et vous


aultres vestuz de voz longues robes, marchants honeftement avec vne
grauite pofee. Et les damoifelles avec vne contenance humble, les yeulx

Eu acho estas pavanas e "basses-dances" belas e graves, e bem apropriadas para as pessoas
honradas, principalmente as damas e mo<_;;as; em Orcheseographie, Thoinot Arbeau.

96
baiffez regardans quelquefois les affiftans auec vne pudeur virginale. Et
quant a Ia pauane, elle fert aux Roys, Princes & Seigneurs graues, pour
fe monftrer en quelque iour de feftin folemnel, auec leurs grands
manteaux & robes de parade. Et lors les Roynes, Princeffes, & Dames
les accompaignentles grands queues de leurs robes abaiffees &
traifnans, quelquesfois portees par damoiselles. Et font lefdites pauanes
iouees par hautbois & faque bouttes qui l'appellent le grand bal, & Ia font
durer iufques

a ce que ceux qui dancent ayent circuit deux ou trois tours

Ia salle: fi mieulx ils n'ayment Ia dancer par marches & defmarches. On fe


fert auffi defdictes

pauanes quant on veult faire entrer en vne

mafcarade chariotz triumphantz de dieux & deeffes, Empereurs ou Roys


plains de

maieste" 8

Sempre ap6s a Pavana, costumava-se danc;;ar a Galharda, mais leve que


a primeira e assim

chamada porque "if fault eftre gailfard et difpos pour Ia

dancer" (e preciso ser galhardo e disposto para danc;;a-la). Seu compasso e


ternario, eo ritmo basico eo seguinte:

0 cavalheiro pode danc;a-la com a capa e a espada: E os outros vestidos com longas roupas,
andando honestamente com uma despojada gravidade. E as moc;as com aparencia humilde, os
olhos abaixados, olhando as vezes OS assistentes com pudor virginal. E quanto a Pavana, ela
serve aos reis, Principes e Senhores graves, para serem vistos em dias de festins solenes, com
seus grandes mantos e vestimentas de desfile. E assim as rainhas, Princesas e Damas sao
acompanhadas pelas grandes caudas de seus vestidos longos que se arrastam pelo chao, as
vezes usados pelas moc;as. E sao as ditas Pavanas tocadas pelos oboes & saqueboutes a que
chamamos de grande baile, e elas duram ate que aqueles que danc;am hajam circulado duas ou .
tres vezes ao redor da sala: se porventura eles nao gostarem de danc;ar para frente e para tras.
As Pavanas servem tambem quando se quer fazer entrar numa mascarade (baile ou desfile de
travestidos) carruagens triunfantes de deuses e deusas, lmperadores ou Reis cheios de
majestade.

97

rr r

Gada minima corresponde a urn passo e a pausa no quinto tempo


corresponde a urn "foufpif' (suspiro ), ou urn salto. 0 pas so basico da Galharda e
o "Greue" (grou) ou "pied croise" (pe cruzado), que consiste num salto sobre urn
pe, cruzando o outro

a frente

do joelho oposto. Este passo pode ser usado em

todos os tempos da Galharda, menos no quinto que corresponde ao salto


(soufpir) e no sexto, correpondente

a "posture" (postura).

Sobre este esquema

basico, o danc;;arino aproveita suas habilidades para demonstrar sua galhardia e


fazer diversas variac;;oes, respeitando sempre o que e chamado de "cadence"
(cadencia), ou seja o "souspir" mais a "posture".
A riqueza de passos de uma Galharda e enorme e a seguir pode-se
examinar os passos e posic;;6es a que se refere Arbeau.

1. Reverence: Para iniciar uma Galharda, o cavalheiro toma a moc;;a pela mao,
faz uma reverencia descrita como na "Basse Dance", tirando o chapeu. Nao ha

98
referenda

durac;ao de compassos, mas Arbeau diz que os musicos

ja

comec;aram a tocar.
2. Pied joint oblique (pes juntos obliquos): Ap6s a revencia, junta-se os pes "pieds joints"- ou deixa-se um ou outro obliquo 9 .

3. Pieds largyz (Pes afastados):

Todas as ilustrat;:6es que seguem sao retiradas do livro de Thoinot Arbeau, acima mencionado.

99

4. Pieds largys oblique (Pes afastados obliquos): Uma varia<;ao do anterior:

5. Reuerence Paffagiere (Reverencia passageira): Semelhante


porem mais breve e sem tirar o chapeu:

primeira,

100

6. Pied Croife

(Pe cruzado): Salta-se sobre um pe e cruza-se o outro

frente do joelho como um grou. Este eo passo basico da Galharda.

7. Marque pied (Marca pe): Com um pe no chao, avanc;a-se como outro


em meia ponta.

101

8. Marque talon

(Marca calcanhar): Ao contrario do anterior, avan<;a-se

com o calcanhar para a frente.

9. Greue ou Pied en !'air (Grou ou Pe no ar): Um cruzamento de pes no


ar, substituindo o pe que fica no chao. Tambem chamado de "Entretaille".

102

10. Ruade (Coice): Com um pe firme no chao, joga-se ope oposto para tras.

11. Ru de Vache (Coice de vaca): Semelhante ao anterior, porem joga-se a


perna lateralmente.

103
12. Pofture

(Postura): Para realisar o final da Cadencia, ou o sexto tempo da

Galharda. Depois do salta ou suspiro do quinto tempo, cai-se na postura,


ou seja, com dois pes no chao, um um pouco

a frente do outro eo de tras

um pouco aberto para o lado.

13. Capriole ou fault majeur" (sa Ito maior): Feito sempre no quinto tempo.
Ambos os pes no ar, cruzando uma vez a mais do que o "Greue" e caindo
na postura. Este salta maior pode durar um pouco mais, dependendo de
uma

conjun<;ao

entre

musica

dan<;arino

que

decidem

espontaneamente alargar este tempo, criando uma quebra no ritmo. Diz


Arbeau:

Cadence n'eft aultre chofe qu'vn fault majeur fuiuy d'vne


pofture: Et comme vous voyez qu'es chafons muficales, les
ioueurs d'instruments ayant ioue l'accord penultime, fe
taifent vn peu de temps: Puis iouent le dernier accord pour
faire fin doulce & harmonieufe, ainfi le fault majeur qui eft
quasi comme

vn filence

des

pieds

& ceffation de

104
mouuements eft caufe

que Ia pofture qui le fuyt ha

meilleur grace. & fe treuue plus agreable .. w

A seguir pode-se examinar duas tablaturas de Galhardas


transcritas em notagao

Arbeau aconselha seu interlocuror

Caprio! a ser modesto, ou seja, iniciar dangando "baixo", pelo ''Tourdion"


(A musica para ambas as dangas

ea

mesma). Ou ap6s dar uma volta

inteira pela sala com seu par, deixa-la dangando a parte para s6 entao
dangar a Galharda. Nota-se ai uma caracterlstica tlpica desta danga que
demonstragao

virtuosismo. Como pode-se

seguintes, as variag6es sugeridas dao enfase

nas tablaturas

a criatividade do dan<;:arino,

a sua "galhardia".
Passos da Galharda

"AIR"
("Anthoinette'}

ocadencia nao e outra coisa que um salto maior seguido de uma postura: E como vedes que
sao as can<;:oes musicais, os tocadores de instrumentos tendo tocado o penultimo acorde calamse um pouco: Depois tocam o ultimo acorde para fazer um fim doce e harmonioso, assim o salto
maior que e quase como um silencio dos pes e a cessa<;:ao de movimentos e a causa pela qual a
postura que a segue tenha maior gra<;:a e se sinta mais agradaveL. ]

105
Greue gaulche
Greue droite
Greue gaulche
Greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche
Greue droicte
Greue gaulche
Greue droicte
Greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Pied croife droict
Pied croife droict
Pied croife gaulche
Pied croife gaulche
Sault majeur
Pofture gaulche
Greue droicte
Pofture droicte sans petit fault
Entretaille gaulche caufant greue droicte
Greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Greue gaulche
Pofture gaulche fans petit fault
Entretaille droicte caufant greue gaulche
Greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche

106

PASSOS DA GALHARDA

"AIR"
("Baifons nous

belle')
Ruade droicte
Pied croife ou greue gaulche
Ruade droicte
Entre faille droicte caufant greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Ruade gaulche
Pied croife ou greue droicte
Ruade gaulche
Entretaille gaulche caufant greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche
Piedz ioints
Greue droicte
Ruade droicte
Entretaille droicte caufant greue gaulche
Sault majeur
Pofture droicte
Piedzjoint
Greue gaulche - Ruade gaulche
Entretaille gaulche causant greue droicte
Sault majeur
Pofture gaulche

107
Estas descri<;oes das dan<;as podem nos dar uma visao de como
elas eram executadas pelos dan<;arinos: A pavana, em sua majestosa
sobriedade e a galharda, leve e virtuosistica. Qual a importancia do
aprendizado destas dan<;as para a interpreta<;ao das pavanas e galhardas
na obra de John Dowland?

"Dan<;a antiga era estudada como historia, nao como pratica:


era como se estudassemos o enredo, personagens e montagem das
operas de Handel mas 'nenhum de nos tivesse jamais ouvido um
compasso de sua musica, e ao pensarmos sobre tudo isto, imaginassemos
que soasse como

Para um interprete de musica antiga, ocorre

normalmente o inverso: conhece-se bern os compasses - e a dan<;a,


imagina-se como um trecho do lago dos Cisnes!

Dowland, tendo vivido

sempre proximo da corte, estava familiarizado com todas estas dan<;as.


Seu papel na corte da Dinamarca deve tambem ter incluido a composi<;ao
de musica para diversos bailes. Ao ouvirmos suas Pavanas e Galhardas,
com as

varia<;oes altamente elaboradas, de imagina<;ao exuberante e

generosidade em detalhes, logo nos ocorre uma pergunta: 0 que esta


musica tao refinada estaria fazendo ao lado de uma multidao de
danc;arinos desatentos e ruidosos numa noite de euforia na corte?

E muito

pouco provavel que esta musica de alto valor estetico fosse destinada a

11

Nicholas Kenyon, editorial em: Early Music. Londres: fevereiro, 1986.

108
urn uso tao fora de si mesma. A musica de John Dowland e uma musica
com urn fim em si mesma, destinada a interpretes e ouvintes atentos,
capazes de perceber todas suas sutilezas e seu virtuosismo tecnico. Por
outro lado, ap6s adqOirirmos uma certa fluencia para dan9ar as Pavanas e
Galhardas, ao tentar encaixar os passos nas dan9as de Dowland, somos
surpreendidos com a lentidao da musica em rela({ao aos passos: torna-se
praticamente impossivel juntar uma com a outra. Surgem entao duas
possibilidades: ou o andamento e muito Iento (e ai a reposta e simples:
nao ha como tocar suas complexas varia96es em andamento muito mais
rapido) ou estas pe9as nao se destinavam

pratica da dan9a.

Esta

segunda op9ao torna-se a mais 6bvia. No entanto, todo este estudo das
dan9as, num primeiro momento, parece ter sido em vao. Para que serviria
estuda-las se afinal as pe9as nao se destinavam mesmo ao uso da dan9a?

0 ouvinte ou interprete de Chopin jamais ousaria pensar em


dan9ar uma de suas valsas ou mazurcas. Ao referir-se a elas Charles
Rosen, em seu livro The Romantic Generation 1 diz:

I do not mean that Chopin's waltzes were intended for


pratical dance use ... but the waltz was arecognizable form
for Chopin's audience, who knew the proper steps and
understood the conventions of the rhythm. Not so with the

109
mazurka, which was considerably more ambiguous.As a
matter of fact, the mazurka is not a dance but a number of
very different kinds of dances. Descriptions tend to be
deplorably vague: "The dance has the character of an
improvisation, and is remarkable for the liberty and variety
in its figures," as we can read in the New Grove, which
adds that it is characterized by "a certain pride of bearing
and sometimes a wildness" and it "can express all kinds of
feeling and even shades of mood." This left Chopin with all
the freedom he could have wished. 12

As
profeticamente

Pavanas

Galhardas

antecipam a tradi<;ao

de

Dowland

romantica

de

quase
apoderar-se

que
de

elementos folcl6ricos para a composi<;ao altamente sofisticada de suas


obras. Chopin nao compoe Valsas e Mazurkas para o entretenimento nos
bailes de sua epoca - assim como Dowland nao compoe em vao para um
divertimento fugaz. Suas dan<;as sao obras sobre a dan<;a, com o
distanciamento ir6nico de um compositor que tinha perfeita consciencia da
sofistica<;ao de sua musica. Assim como para a audiencia de Chopin uma

."

Charles Rosen, The Romantic Generation. Massachussets University Press, 1995 .

<

Eu nao quero dizer que as Valsas de Chopin fossem feitas para o uso pratico da dan~a . mas a
valsa era uma forma conhecida para a audiencia de Chopin, que conhecia os passos pr6pnos e
entendia as conven~6es do ritmo. Nao era o mesmo com a Mazurka, considerada mais ambigua.
Na realidade, a Mazurka nao e uma danc;a, mas um grande numero de diferentes lipos de
danc;as. As descric;6es lendem a ser deploravelmente vagas "A danc;a tem o carater de uma
improvisac;ao, e e remarcavel por sua liberdade e variedade de figuras", como podemos ler no
New Grove , que acrescenta que e caracterizada por "um certo orgulho de ser e as vezes uma

110
Valsa era parte da cultura da epoca, para os ouvintes de Dowland, as
Pavanas e Galhardas possuiam uma referencia 6bvia, o que nao e
verdade para o ouvinte ou interprete de hoje. Dal a necessidade de se
adqOirir uma certa intimidade com estas dan<;as - mesmo que elas nao se
destinassem a este uso, a referencia precisa estar clara para o musico.
Dentro dela deve estar presente o espirito do nobre cavalheiro dan<;ando
com elegancia e galhardia, mirando doce e furtivamente sua donzela. Nas
varia<;6es virtuosisticas das Ga!hardas devem esconder-se as Caprioles de
urn jovem principe. Ao ouvirmos, por exemplo, as complexas mudan<;as
ritmicas de The Right Honourable Robert, Earl of Essex, His Galliard, logo
percebemos a impossibiiidade de encaixar passos pre-determinados nesta
musica. Nao seriam estas brincadeiras rftmicas uma referencia clara as
cabriolagens" de urn dan<;arino das galhardas?
lnterpretar ou traduzir uma pe<;a do passado deve canter em si toda
uma rede de significados,

verdadeira transfigura<;ao de uma epoca

ida e reencontrada. Mas a interpreta<;ao nao deve tampouco limitar-se


a urn simples jogo de referencias, deve manter-se ainda alem e acima de
tudo isto. A musica de Dowland, liberta de carater funcional, eleva-se a
condi<;ao de forma instrumental pura, em que as referencias podem auxiliar
o interprete mas devem acabar desaparecendo no misterio intraduzivel da
obra.

certa selvageria" e ela "pode expressar todos os tipos de sentimentos e mesmo nuances de
estado de espirito". Chopin ai encontrou toda a liberdade que podia ter desejado].

1 11

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CAPiTULO V

ELEMENTOS DE INTERPRETA(;AO:
1. ELEMENTOS EXPRESSIVOS: 0 USO DA RETORICA EM DOWLAND

Orpheus with his lute made trees,


And the mountains to;:Js that freeze,
Bow themselves, when he did sing.
To his music, plants and flowers
Ever sprung, as sun and showers,
There had made a lasting spring.

Everything that hearc him play,


Even the billows of the sea.
Hung their heads, and then lay by.
In sweet music is such art,
Killing care, and grief of heart,

A ret6rica

provavelmente um dos fatores mais importantes para a

interpretac;ao da obra de Dowland (ou de qualquer outro autor deste periodo).

William Shakespeare, King Henry VIII, Ill, I; in Scott Mitcheii Pauley, Rhetoric and the
Performance of Seventeenth-Century English Continuo Song, tese cefendida no Departamento
de Musica da Universidade de Stanford, 1994.

113
Costuma-se abordar a questao da ret6rica como um elemento fundamental para
a interpretagao da musica do barroco mais tardio, quando ela aparece bastante
sistematizada, como na obra Der Volkommene Capel/meister (1739) de Johann
Mattheson.

No entanto, sabe-se hoje que para a educagao

de meninos na

lnglaterra do Sec. XVI e XVII, a Ret6rica era materia obrigat6ria virtualmente


em todas as escolas 2 . No periodo elizabetano, a conduta era ja comum, como
pode-se verificar em William Kempe 3 quando diz que toda crianga deve
aprender a reconhecer "every trope, every figure, as well of words as of
sentences; but also the Rhetorical pronounciation and gesture fit for every word,
sentence and affection" 4
Por detras

da necessidade de uma ardua educac;ao para

desenvolvimento da capacidade intelectua! dos meninos ingleses em manipular


as palavras, existia a convicc;ao sabre o poder civilizat6rio destas palavras.
Thomas Wilson esclarece este ponto quando diz, em 1553, em seu The Art of
Rhetorique:
whereas men liued brutishly in open fielde, hauing neither house
to shroude them in, nor attire to clothe their backes, nor yet any
regard to seeke their best auaile: these appointed of God called
themalthogether

by

vtterance

of

speach,

and

persuwade

Scott Mitchell Pauley, Rhetoric and the Performance of Seventeenth-Century English Continuo
Song, tese defendida no Departamento de Musica da Universidade de Stanford, 1994.
3 William Kempe, The Education of Children in Learning (London, 1588). Cita<;ao em Scott
Mitchell Pauley, Rhetoric.
4
"cada tropos, cada figura, e tambem todas as palavras das senten<;as; mas tambem as
pronuncias ret6ricas e gestos certos para cada palavra, senten<;a e afeto".

114
withthem what was good, what was badde, & and what was
gainful! for mankind. 5

Pensa-se muito em ret6rica quando ligada as palavras, aos textos de


can<;6es.

E sempre

mais facil trabalhar sabre ret6rica dentro deste contexte,

porem a musica instrumental de Dowland,

"fala", expressa tantas "paixoes"

quanta suas can<;6es, e neste sentido devemos toma-las como obras providas
do mesmo sentido dramatico. A ideia que se difundia pela Europa de que a
musica deveria provocar afetos, paixoes, grandes rea<;6es emocionais no
ouvinte (ideias que vern a ser totalmente desenvolvidas e elaboradas pela
Camerata Fiorentina, dando nascimento a opera barroca) e ja um pensamento

constante na vida musical deste periodo. Encontramos evidencia disto na


tradu<;ao que o proprio Dowland realizou do Musice Active Micrologus ( 1517) de
Andreas Vogelsang ou Ornithoparcus, como preferia ser chamado:

Among those things wherwith the mind of man is wont to be delighted, I


can find nothing that is more great, more helthfull, more honest. than
Musicke: The power whereof is so great, that it refuseth neither any sexe.
nor any age, and

(as Macrobius, a man of most hidden & profound

learning saith) there is

brest so sauage and cruel!, which is not moued

with the touch of this delight. For it doth driue away cares. perswade men
to

gentlenesse,

represseth

and

stirreth

anger,

nourisheth

arts,

encreaseth concord, inflameth heroicall minds to gallant attempts,

Citado em Robin Headlam Wells, Elizabethan Mythologies, Studies in Poetry, Drama and Music,

115
curbeth vice, breedeth vertues, and nurseth them when they are borne.
composeth men to good fashion 6

Henry Peacham,

autor de um importante tratado de Ret6rica (The

Compleat Gentleman), em 1612, dedica um poema a

Dowland (Ad amicum

fuum Ooulandus Mufices peritiffunum, Jochannes DoulandusY A rela<;ao entre o


tratadista de ret6rica e o compositor torna-se evidencia do interesse e
conhecimento do segundo com as quest6es entao em voga
notar que neste mesmo ano, Dowland finalmente

(E interessante

acolhido na corte como

Lutenist to the King's Majestie, ambi<;ao antiga e jamais satisfeita durante o


reinado da Rainha Elisabeth. lnfe!izmente a partir deste periodo, como aponta
R. Spencer, Dowland abandona a composi<;ao, talvez em fun<;ao da seguran<;a
obtida com seu novo emprego ). A questao da ret6rica pode ser encontrada em
multiplas fontes, e muitas delas com rela<;ao direta ao autor. Thomas Lodge, em
1620, quando Dowland recebe um doutorado de Oxford, celebra o fato com as
seguintes palavras:

Cambridge University Press, 1994.


"Entre as coisas com as quais os homens desejam se deliciar, eu nao encontro nada que nao
seja maior, mais saudavel, mais honesto do que a musica: seu poder e portanto tao grande, que
nao recusa nenhum sexo, nenhuma idade, e (como Macrobius, um homem da mais discreta e
profunda sabedoria disse} nao ha besta tao selvagem e cruel que nao tenha sido tocada com sua
beleza. Pois ela dissolve preocupa<;oes, persuade OS homens a gentileza, reprime e provoca a
furia, alimenta as artes, aumenta a concordia, inflama as mentes her6icas a decisoes galantes.
destr6i o vicio, cria virtudes, e as alimenta quando nascem, estimulando os homens as boas
maneiras.
7
Robert Spencer, Songs from The Third and Last Booke of Songs. A Musical/ Banquet and A
Pi/grimes Solace, apresenta<;ao do Cd com Paul Agnew e Crosopher Wilson, Londres,
Metronome.

116
Musicke, ... ravisheth the minde much more by melody,than either
Bacchus by the taste of Wine. or Venus, by the itching pleasures of Lust.
This makes me admire Doctor Dowland, an ornament of Oxford; ... whose
Musical! concent (by reason of the aerial nature thereof) being put in
motion, moveth the body, and by purified aire, incitetth the aerial spirit of
the soule, and the motion of the body: by afect, it attempteth both the
sence and soule together; by signification, it acteth on the ninde: to
conclude, by the very motion of the subtill a ire. it pierceth vehemently and
by contemplation sucketh sweetly: by conformable qualitie it infuseth a
wondrous delight;

the nature thereof both spiritual! and material!, it

ravisheth the whole unto it selfe. and maketh a man to be wholy


Musiques, and for her cause onely his Thus much in memory of his
excellence .. .s

Do perlodo renascentista ao barroco, a percepc;ao da musica como um


agente provocador de paixoes e afetos

no ouvinte vai gradualmente se

modificando. Durante a Renascenc;a, a musica na Terra era percebida como um


reflexo da harmonia superior das esferas, e entre intelectuais e artistas, havia o
senso comum de que o ceu era feito de "esferas de crista!, que provocavam

Musica.. delicia a mente muito mais pel a melodia. que o proprio Bacchus pelo gosto do vinho,
ou Venus, pelos prazeres provocados pela Luxuria lsto me faz admirar Doctor Dowland. um
ornameto de Oxford: .cujo conceito musical (por razao de sua natureza aerea), tendo sido
colocada em movimento, move o Corpo, e atraves das puras airs, incitam o espirito aereo da
alma, e o movimento do corpo: pelo afeto, ela conjuga ambos os sentidos e a alma juntos; por
significado, ela atinge a mente: para concluir, pelo proprio movimento da sutil air, ela perfura
veementemente e por contemplac;:ao sorve docemente; por qualidade da harmonia, difunde
deleite maravilhosos; por sua natureza duplamente material e espiritual. ela delicia o todo dentro
de si, e transforma o homem em pura musica. e por sua causa somente sua: Portanto em
memoria de sua excelencia ... "

117
uma musica harmoniosa ao serem movidas pelos anjos". 9 Portanto, quando o
ouvinte reagia emocionalmente

a musica,

ele estaria vibrando em ressonancia a

esta musica dos ceus, "o que provocava a fluencia dos varios humores pelo
corpo, causando uma variedade de respostas emocionais ou afetivas". Estes
humores, constituiam-se de quatro tipos, cada qual correspondendo a quatro
espiritos que deveriam fluir atraves do corpo: sanguineo (sangue); fleumatico
(fleuma); melanc61ico (bile negra) e colerico (bile amarela). No tratado The
Passions of the Minde 10, Thomas Wright descreve homens colericos como tendo
tendencia

a furia;

melanc61icos

a tristeza;

sangulneos ao prazer; fleumaticos ao

6cio e alcoolismo. Na passagem que se faz gradualmente ao barroco, estas


ideias vao se modificando e a musica nao e mais um reflexo da harmonia
celeste, a musica agora cumpre a fungao de persuagao,

de emocionar o

ouvinte.
Rene Descartes, fil6sofo frances do Seculo XVI, descreve bem esta mudanga de
ponto de vista quanta

a func;ao da musica neste periodo.

The OBJECT of his Art is a Sound. The END; to delight, and move
various Affections in us .... Now, concerning those various affections, or
Passions, which Musick, by its various Measures can excite in us; we say
in Generall'that a slow measure doth excite in us gentle, and slugish
motions, such as a kind of Languor, Sadness. Fear, Pride, and other

Jamie James, The Music of the Spheres (London, Little, Brown and Company, 1994 ), em: S. M.
Pauley, Rethoric and. 28.
10 Thomas Wright, The Passions of the Minde (London, 1601 ), em S M. Pauley, Rethoric and ...

118
heavy, and dull Passions: and a more nimble and swift measure doth,
proportionately, excite more nimble and sprightly Passions. such as Joy,
Anger, Courage, &c. 11

Paul O'Dette confirma tambem a ideia de que apesar da ret6rica ser


comumente vista como a quintessencia da interpretac;;ao da musica barroca,
existem numerosas aparic;;oes desta questao ainda no seculo XVI. Ainda mais
relevante no caso da obra instrumental de Dowland, e a citac;;ao de Ganassi em
seu La Fontegara de 1535 12 , em que diz que a voz e o mais perfeito dos
instrumentos, mas os instrumentistas devem se esforc;;ar para imitar a voz de
todas as

formas possiveis, usando uma grande variedade de articulac;;oes,

assim como sao encontradas em textos vocais, de forma a fazer o ouvinte


pensar que esta ouvindo palavras.
Assim pode-se imaginar que as Pavanas e Galhardas de Dowland,
quando nao se referem diretamente a canc;;oes por ele criadas (ver capitulo 1,
pagina

$ onde aparece a relac;;ao de If my complaints em sua versao

instrumental ou de canc;;ao ), funcionem como verdadeiras canc;;oes, com suas


melodias absolutamente cantaveis. Se o proprio Dowland transformava suas

0 Objeto desta arte eo Som. 0 objetivo: emocionar, provocar varios afetos em nos .... Agora,
em rela<;ao a estes diversos afetos, ou paixoes, que a musica, atraves de seus varios
compassos podem excitar em nos; digamos, em geral, um compasso Iento provoca em nos
suaves e lerdos movimentos, como uma especie de langor, tristeza, medo, orgulho, e outras
paixoes mais pesadas e um compasso mais agil e veloz, proporcionalmente, provoca paixoes
mais mais ageis e vivas, como alegria, furia, coragem, etc. Renatus Descartes, Excellent
Compendium of Musick (London: Thomas Harper, 1653), em S.M. Pauley, Rhetoric.
12
Sylvestre Ganassi, Opera intitulada Fontegara ..... Veneza, 1581, em Paul O'dette, ensaio nao
publicado.
11

119
Galhardas ou Pavanas em can<;6es, ou se era costume na epoca poetas
colocarem letras em obras de seus colegas musicos, para interpretar esta
musica,

torna-se,

portanto,

uma

necessidade

pensa-las

como

obras

potencialmente providas de texto. Nao se pode desprover esta musica de seu


sentido expressive, de sua fun<;ao dramatica. Dowland, este Orfeu da musica
elizabetana, sabia que cantando ou nao, sua musica moveria montanhas

acalmaria as teras. lnterpretes do seculo XX deverao acreditar novamente neste


papel e arrancar lagrimas da plateia, como nos relata Thomas Mace em Utopia:
For all their musike bothe that they [the Utopians]

playe upon

instrumentes. and that they singe with mannes voyce dothe so resemble
and exprese natural! affections, the sound and tune is so applied and
made agreable to the thinge, that wheter it be a prayer, or else a ditty of
gladnes, of patience, of trouble, of mournynge, or of anger: the fassion of
the melodye dothe so represente the meaning of the thing, that it doth
wonderfullye move, stirre, pearce, and enflame the hearers myndes. ' 3

Ganassi tambem compara a musica com a pintura, dizendo que um pintor


talentoso pode reproduzir todas as cria<;6es da natureza atraves da varia<;ao de
suas cores. Um instrumento podera portanto imitar a expressao da voz humana

13

Por todas as musicas que eles (os ut6picos) tocam em seus instrumentos, e que cantam com
fortes vozes assim se assemelhando e expressando afetos naturais, o som e can<;ao e tao bem
aplicado a coisa [a letra, ou significado] e feito tao agradavelmente seja ela uma prece ou a
can<;ao de alegria, de paciE:mcia, de problema, de pesar, ou de furia: a forma da melodia entao
representa o significado da coisa, de maneira que ela maravilhosamente emociona, mexe,
provoca e inflama as mentes dos ouvintes". Em: Sir Thomas More, Utopia em: Paul O'Dette,
Expression in the Performance of Renaissance Music, ensaio inedito.

120
variando a pressao do ar, e colorir o tom por meio de uma digitac;ao apropriada.
Ganassi defende ainda que para alguns instrumentistas e possivel expressar
palavras atraves de sua musica. Pode-se perceber em Dowland e varios outros
instrumentistas intenc;6es timbristicas atraves de suas digitac;oes. Como as
tablaturas expressam inevitavelmente a digitac;ao, fica clara que Dowland tinha
intenc;oes conscientes quanta a timbres, que estao diretamente ligados
expressao e, nesta epoca

a ret6rica.

Como a arte da ret6rica deveria entao ser usada para a interpretac;ao da


musica de Dowland? 0 que um interprete moderno devera conhecer sabre
ret6rica para fazer esta musica soar de forma mais semelhante

a que os artistas

em 1600 faziam?
Walter Porter em seu prefacio ao Madrigal and Ayres (1632) 14 , enaltece o
trabalho do performer, dando a ele metade da responsabilidade para a
compleic;ao de uma obra:

A composer, when he hath set a Song with all the art he can, hath done
but halfe the worke, the other halfe is the well performing or expressing
that in singing or playing which he hath done in composing. 15

0 interprete moderno interessado na performance de obras do perlodo do


renascimento e barroco, devera ter algum contato com esta arte da persuasao,

Walter Porter, Madrigals and Ayres (London: William Stansby, 1632) emS. M. Pauley, Rhetoric.

121
uma vez que a ret6rica era materia presente na formac;:ao de todo estudante ou
jovem educado, como tambem eram, por exemplo, os musicos da epoca.
As figuras de ret6rica podem pertencer
locais), ou

a textura

do discurso (detalhes ou cores

a sua estrutura.

TROPOS (possuem urn efeito de textura)' 6 :


Metatoras:
Comparac;:ao

entre

dois

fen6menos

dissimilares.

John

Donne,

poeta

contemporaneo e colaborador de Dowland, produz uma metatora que se torna


famosa na hist6ria, comparando sua alma e a de sua amada com as pernas de
urn compasso de geometria.
Simile
Comparac;:ao apresentada por como ou assim.
Hie thee quicly from thy wrong,
So she ends her willing song

Atribuic;:ao de qualidades humanas

a objetos, ou seres inanimados.

But lift thy low looks from the humble earth.

Ironia
Discrepancia entre uma declarac;:ao literal de urn orador e sua atitude ou
intenc;:ao. Como em Nosso governo sempre tao honesto.

Um compositor, quando faz uma canc;ao com toda a arte que consegue, fez apenas a metade
do trabalho. A outra metade e a boa performance ou a expressao no cantar ou tocar daquilo que
foi feito ao compor.
'

122
Hiperbole
Exagero ou diminuic;ao de importancia

Metonimia
Substituindo uma palavra por outra, que de alguma forma se relacionam. Como
em Orpheu por Dowland.

Sinedoche
A parte representando o todo. Como o italiano por italianos.

Paralelismo
Construc;ao de sentenc;as ou frases que se parecem

umas as outras

sintaticamente.

Antiteses
Combinando opostos em uma t:mica afirma<;ao.
What heaven then governs earth,

0 none, but hell in heaven's stead ...


Congeries
Uma acumula<;ao de afirma<;oes ou frases que dizem essencialmente o mesmo.

Ap6strofe
Mudan<;a de uma audiencia para outra, que pode estar presente apenas em
imaginac;ao.

Enthymeme

'6 "Rhetoric: Rhetoric in literature THE NATURE AND SCOPE OF RETHORIC: elements of
rethoric .. " Britannica online. <Http://www.eb.com:180/cgi-bin/g?docF=macro/5005/51/1.html>

123
Forma silogistica de argumentar na qual o orador assume que algumas
premissas serao supridas pela audiencia.
lnterrogatio
A "questao ret6rica" que e colocada para efeito argumentativo e nao pede
resposta.
Shal I sue shall I seek for grace?/Shall I pray shall I prove?/Shall I strive to a
heav'nly joy/With an earthly love? ...
Gradatio
uma sequencia de afirma<;6es progressivas ate chegar a um climax.
To see, to hear, to touch, to kiss, to die, ...
Scheme (como nas a!egorias, um principia de estrutura)
Uma alegoria classica e a do autor ingles John Bunyan's em Pilgrim's Progress,
onde o metodo para a salva<;ao crista e comparada com uma estrada na qual se
caminha, e tal comparac;ao e de tal forma ampliada, que a alegoria estrutura
toda a obra.

As duas categorias, Schema e Tropos sao confundiveis e nem sempre claras


na exposic;ao sobre ret6rica da epoca. E muitas vezes, isto e inevitavel, pois
discursos bem construldos apresentam uma fusao da

estrutura e da textura.

Em geral as duas sao indistinguiveis.

Para musicos, as figuras de repetic;ao sao as mais importantes, dentro da


categoria de Anaphoras. Assim se subdividem:

124
Epanaphora
Quando a mesma palavra

e repetida

no inicio de varias frases.

Come ye heavy states of night, / .. ./Come Sorrow come her eyes that
sings,/. . ./Come you, virgens of the night.../Come Sorrow come her eyes that
sings ...

Epiphora
Quando varios membros de uma frase ou clausula terminam iguais .
... Silly heart then yield to die,/Perish in despair, /Witness yet how fain I
die,/When I die for the fair. 17
Symploce
Diversas frases comec;ando sempre com as mesma palavras causando maior
efeito

quando

numero

de

palavras

vai

aumentando

gradativamente.

1see my hopes must wither in their bud,/! see my favours are no lasting flow'rs,/1
see that words will breed no better good ... 18 .
Ploce
Quando urn nome proprio sendo repetido vai mudando seu significado.
Diaphora
Quando urn substantivo comum

17

18

e repetido e

mudando de significado.

John Dowland, Second Booke of Songs, 1600


Peacham (The Elder), Garden of Eloquence in: S. M. Pauley: Rhethoric...

125
What man is there living. that would not have pitied that case if he had bene a

Epanalepsis
Quando uma frase come9a e termina com a mesma palavra.
Farewell my friendes, a thousande times with bitter teares farewell 20 .

Anadiplosis
Quando a ultima palavra de uma clausula

e a primeira da segunda e assim por

diante.
With death, death must be recompensed, on mischiefe, mischiefe must be
heapte 21
Epizeuxis
Quando uma palavra

e repetida varias vezes para ganhar maior veemencia.

But down down down down I fall,/ And arise I never shall 22 .
Diacope
Quando uma palavra

e repetida, mas existe uma palavra diferente entre elas .

... Gold nor pearl, but sounds of sorrow:/ Come Sorrow come her eyes that sings,
By thee are turned into springs 23 .
Traductio
Quando uma palavra

19

20
21

22

John Dowland,
Peacham (The
Peacham (The
John Dowland,

e repetida diversas vezes durante uma ora9ao.

Second Booke
Elder), Garden
Elder), Garden
Second Booke

of Songs 1600
of Eloquence in: S. M. Pauley: Rhethoric .. .
of Eloquence in: S. M. Pauley: Rhethoric .. .
of Songs. 1600

126
One man hath but one soul,/ Which art cannot divide,/ If one soul must love,/
Two loves must be denied,/ One soul, one love, ... 24

Scott Mitchell Pauley desenvolve um metodo para a interpretac;ao "ret6rica de


uma obra. Assim o autor sumariza seu metodo:
Tome urn contato com a obra usando o texto primeiramente; observe as
"paixoes" do poema.
Procure o "afeto" principal e veja como o texto se relaciona a este afeto.
Procure afetos isolados em sentenc;as individuais, e encontre os tropos e figuras
de ret6rica; considere a pontuac;ao.
Pratique a leitura

texto

maneira a exaltar suas qua!idades "afetivas".

Entao observe a colocac;ao da musica para ver como o compositor interpreta as


qualidades "afetivas" do texto.
Observe cada linha do texto com a musica. Veja como a progressao de linha
ap6s linha cria um tratamento ret6rico em geral.
Observe as grandes divisoes estruturais do poema e veja se elas correspondem
as divisoes estruturais musicais.
Robert

Spencer5 tambem

sugere

seu

proprio

metodo

para

interpretar

retoricamente canc;oes da epoca:

23
24

25

John Dowland, Second Booke of Songs. 1600


John Dowland, Second Booke of Songs. 1600
Robert Spencer, Singing English Lute Song. "Lute Society of America Quaterly", august 1993.

127
1. Enuncie claramente o texto para que possa ser compreendido. Torne o
significado do poema claro atraves da

acentua~ao

seletiva, respirando nos

locais adequados e variando o tempo e volume.


2. Use gestual do corpo e do rosto, mas somente aquees que brotam
natural mente e que refor~am as palavras ...
3 ... Provoque "affetos" no publico simulando a

emo~ao

que voce deseja que

eles sintam. Colore as palavras- torne passionais o seu sentido auditivo.


Analisemos entao retoricamente a
versao solo e

a famosa

can~ao

Flow my Tears. (Esta Pavana

Lachrimae - impressa em 1596 ). A

em

letra foi

provavelmente acrescentada pelo proprio Dowland entre em 1597 e 1600,


segundo Robert Spencer.

Flow my teares fall from your springs.


Exiled for ever: Let mee marne
Where nights black bird hir sad infamy sings,
there let mee live forlorne,
Downe vaine lights shine you no more.
No nights are dark enough for those
that in dispaire their last fortunes deplore,
light doth but shame disclose.
Never may my woes be relieved,
since pittie is fled,
and tears, and sighes, and grones my wearie dayes,
of all joyes have deprived.
From the highest spire of contentment.
my fortune is throwne,
and feare, and griefe, and paine for my deserts,
are my hopes since hope is gone.
Harke you shadowes that in darcknesse dwell,
learne to contemne light,
Happie, happie they that in hell
feele not the worlds despite.

128

A pec;:a oferece varias


pec;:a de "celebrac;ao

figuras de ret6rica a serem analisadas.

a melancolia",

E uma

apesar de nao ficar exatamente claro de que

tipo de melancolia Dowland se trata. 0 Iongo lamento de que a pec;:a nos fala,
oferece uma (mica indicac;:ao de seu motivo: o exilio. Este pode ter sido um fato
real na vida do autor, que parece terse sentido exilado ao partir para o exterior
onde viveu como alaudista da corte do rei da Dinamarca.
A pec;:a apresenta uma repetic;:ao constante de quartas descendentes [Flow tears; fa! 1- springs; Ex- il'd; night's -her; in(famy) - sings; there -for (lorne)]. E o
mesmo intervalo de quarta aparece aumentado, criando maior tensao mel6dica.
A ideia do exilio como afeto principal (pathopeia) e refor<;ado melodicamente
com a pequena surpresa musical - a palavra exiled vern sublinhada pela
primeira vez por
conjuntos, como

uma quarta descendente sem interrupc;:ao

dos graus

apareciam ate entao, e como continuarao a aparecer em

seguida.
uma abordagem numerol6gica, familiar ao perlodo, o numero 4 simbolizava
diversas coisas: 4 esta<;6es, 4 elementos, 4 humores, etc. Dizia-se que a quarta
tambem expressava a condic;:ao terrestre do homem, sua condi<;ao incerta, fragil.
Em Dowland aparece com frequmcia a imagem musical da queda do homem. A
figura do passaro negro aparece logo no come<;o, como metatora da morte.
Existem duvidas sobre esta caracteristica melanc61ica na propria personalidade
de Dowland. Alguns autores o consideram uma personalidade melanc61ica,
outros acreditam que ele assumia a persona de melanc61ico como meio para

129
atrair atengao para sua obra, ja que a melancolia era um "estado" de alma muito
em moda na lnglaterra desta epoca. Descobrir a verdadeira personalidade do
autor tem, no entanto,

pouca importancia para sua obra. Sua musica tem a

capacidade de nos emocionar refletindo os mais melanc61icos sentimentos.


Neste sentido, Dowland e um orador por excelencia, altamente sofisticado na
arte de seduzir e provocar afetos no ouvinte.

130

2. FLO\X' MY TEARS
LACI(lMAli

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Where nighl1s black bird ht:r sed 1:.\arny ~ings,
There let me l1ve forlorn.
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Down vain lights shine you no mort!,


No nights are dark enough for tbuse
That in des pail' their last (ortun~~ deplore,
Light doth but shame disclose.

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Never may my woe:; be rdi~Vtd,
Since p1ty is fltd,
And tears, and olghs, and gro11.n~ my wea1 y duys
Of all Joy; hal'e dcprivcrl,

from the highe~l sp1re of contcctment,

My fortune is thrown,
And fear, and grid, aod pain fqr r:.y deberts
Are my hq>es biu~e lwpe i goue.

5
Hark you shadows that in darkntbB dwell,
Learn to contemn light,
Happy, happy they that in hell
Feel not the world's de~pite.

-~

133
Flow my Tears

uma pega que se tornou um verdadeiro hit da epoca, e e

provavel que esta seja uma das razoes para Dowland explora-la em tantas
vers5es diferentes - para alaude solo aparece na versao original de Pavana e
Galharda, e tambem nas Seven Tears, para consort, e finalmente na versao
cantada.

Logo no inicio podemos encontrar exemplos de word painting 26 (o que era


conhecido como pragnatopeia), uma tradigao ligada ao madrigalismo, diferente
do word painting da metade do seculo que normalmente "pinta" uma s6 palavra
e nao possui fungao estrutural.

A ideia de queda, e lagrimas descendo e

"desenhada"

. Mais adiante, as lagrimas aparecem

como verdadeiros pingos, com as notas em tergas ascendentes (gradatio)


seguidas de curtas pausas expressivas (exclamation), dando

a figura

grande

poder dramatico. As palavras ganham maior veemencia com a repetigao de


And... and... and, outra figura ret6rica (epizeuxis),
0 primeiro verso e construido com melodias descendentes, como ja vimos,
dando ideia de lagrimas descendo.

No segundo verso surgem melodias

ascendentes e no terceiro verso, o equilibria e atingido, depois de um climax


mel6dico com a figura ret6rica de epizeuxis, em Happy, happy, num passageiro
momenta de esperanga, para uma condenat;ao final

26

ver capitulo 1, pagina 19.

ao inferno (hell), num

134
tritono (diabolus in musica). e finalizando em estado de melanc61ica aceitagao
da condigao de rejeigao, de expulso do paraiso (Feel not the world despite).
Tratando-se da Pavana em sua versao para alaude solo, todas as
consideragoes acima deverao ser observadas com extremo cuidado. As pegas
instrumentais de Dowland devem tambem ser consideradas como pegas
ret6ricas, que falam, que persuadem o ouvinte, que provocam tantos afetos
quanto as can<;oes faladas. Portanto ao interpretar esta obra, deve-se pensar no
peso do texto

e "colorir",

enfatizar

todas as figuras

ret6ricas acima

mencionadas.
E o que fazer ao tratarmos de uma pega que nao existe em versao
cantada?
Na Pavana Resolution, uma pega para alaude solo, poderfamos atribuir-lhe uma
letra para que ao executa-la possamos sentir todo o peso ret6rico que a musica
sem palavras possue.

135
2. ORNAMENTAf;AO

De acordo com uma


Josquin

des

Prez

nao

anedota, surgida

suportava

ornamentando uma de suas can<;6es,

pela primeira vez em 1562,

ornamentos.

Ao

escutar

um

cantor

dirigiu-se a ele esbravejando: "Asno

imbecil! Par que colocais todos estes ornamentos? Se eu os quisesse, os teria


escrito eu mesmo. Se desejais aperfei<;oar composi<;6es ja prontas, escrevei
vossas pr6prias, mas deixai as minhas imperfeitas". 27
verossimel, pouco importa, pois
comum na epoca em rela<;ao

Mesmo nao sendo

o relato deste epis6dio reflete uma queixa

a ornamenta<;ao.

pe<;as suas publicadas por Anthony Barley,

Dowland, por exemplo, ao ver

considerou-as

inapropriadas, ou

pouco fieis ao que ele mesmo tinha composto. Se a ornamenta<;ao era uma
pratica comum aos intepretes, recomendada por diversos manuais publicados
na epoca 28 , muitas vezes solistas virtuoses cometiam exageros, destruindo o
carater da musica com sua decora<;ao excessiva. Na musica de John Dowland,
especialmente nas Pavanas e Galhardas, a ornamentagao complexa das

divisions ou diminui<;6es aparecee sempre escrita, e apresenta diferen<;as


marcantes de um manuscrito para outro. Poucos destes manuscritos sao

Howard Mayer
Embelishing 16th Century Music, Oxford University Press, 1976.
Howard Meyer Brown oferece uma lista de dez livros fundamentais para o estudo da
ornamentac;ao:
Silvestro di Ganassi, Opera intitulata Fontenagara (Venice 1535); Diego Ortiz, Tratado de Glosas
sabre Clausulas, Roma 1553; Giovanni Camillo Maffey, Delle Lettere .. .Libre Due. Napoles 1562;
Giovanni Sassano, Ricercari, Passagi et Cadentie , Veneza, 1585; Richardo Rogniono, Passagi
per potersi essercitari nel diminuire. Veneza, 1592; Giovanni Baptista Bovicelli, Regale. passagi di
musica, madrigali e motetti passegiatti. Veneza, 1594; Aureliano Virgiliano, II Dolcimello, Bologna,
1600.

27

28

136
aut6grafs

por

Dowland, e mesmo estas modificag6es sendo uma pratica

comum na epoca, nunca saberemos se o autor teria ou nao aprovado todas as


vers5es. Varios manuscritos de musica para alaude do seculo XVI, em sua
forma de intabulatura ( vers6es de obras
apresentam uma ornamentagao

cora is reduzidas para a laude)

na qual nao se reconhece a composigao

original, o que demonstra a extrema liberdade e ousadia com que os interpretes


se relacionavam com as obras.

Apesar dos manuais de ornamentagao

exporem regras e exemplos claros , as tendencias de ornamentagao de cada


periodo sao mescladas com as idiossincrasias de cada autor. Urn musico
sensivel, alem de prestar atenc;ao ao estilo pessoal do autor sobre cuja obra
esta improvisando,

desenvolve toda

favorecera suas pr6prias

uma gama propria de divisions que

como instrumentista.

Joachim Burmeister9 em 1606, definiu ornamento da seguinte forma:


A musical ornament or figure is a passage, in harmony as well as
in melody, which is contained whithin a definite period that begins
from a cadence and ends in a cadence; it departs from the
simple method of composition, and with elegance assumes and
adopts a more ornate character. There are two tipes of
ornaments: one pertaining to harmony, the other to melody.

29

Joachim Burmeister, Musical Poetics, 1606, trad. Benito Rivera, London, Yale U.P., 1993: um
ornamento e uma figura de passagem, tanto em harmonia quanta em melodias, contido num
determinado perlodo que sai de uma cadencia e termina em uma cadencia; ele parte de um
simples metoda de composiyao, e com elegancia assume e adota um carater mais ornamental.
Existem dois tipos de ornamentos: um pertencente harmonia, outro melodia.

137
Brincar com melodias, transformar longas notas em diversas notas
pequenas, preencher espac;os com todo o tipo de escalas, rapidas ou lentas,
enfeitar passagens criando novas densidades, parece ter nascido junto com o
habito de cantar. Hoje, na musica erudita, este habito praticamente se esgotou.
Em algumas manifestac;oes da musica popular,
instintivo e livre,
ornamentos.
renascenc;a

como no jazz com seu lado

esta tradic;ao continua viva. A musica oriental e repleta de

Durante a ldade Media ornamentava-se proficuamente. Na


os

ornamentos

passaram

a ser

melhor

sistematizados,

"finalmente, a pratica da ornamentac;ao improvisada ajudou a transformar


completamente o estilo musical, no fim do renascimento, quando a era Barroca
comec;ou". 30

Neste perfodo, a ornamentac;ao alcanc;ou o seu maior

desenvolvimento e esta ligada ao proprio conceito da musica barroca. 0 proprio


nome "barroco" entende-se com derivado das perolas de formato retorcido, que
levam este nome. Por mais equivocado que este conceito

possa ser, pois foi

adotado por autores do periodo seguinte ao barroco, este suposto "retorcido"


uma boa referencia
Nas

artes

a exuberEmcia da ornamentac;ao.
plasticas

a definic;ao

compreendendo-a visualmente,

pode-se

de

ornamento

transporta-!a

mais

clara

musica.

ornamento e geralmente concebido como alga a mais adicionado

e
Um

a estrutura

musical. A estrutura e o essencial, aquila de que a musica ou o objeto artistico


nao pode se desfazer. As colunas de uma catedral sao parte essencial de sua

30

Howard Mayer Brown, ibidem.

138
estrutura, sem colunas, a igreja se desfaz. As volutas,

e outros ornamentos

arquitet6nicos correspondem aos trinados, mordentes ou apogiaturas de uma


pe':{a musical. Como nos explica Frederick Neumann 31 , a ornamenta9ao possui
relactao direta com a estrutura, pois ela, ressalta momentos estruturais ou
expressivos de maior importancia.

"Ornamentos ligam notas; tornam-as mais

vivas ... dao a elas enfase e acentua9ao ... produzem maior expressao.'m
Cantores e

instrumentistas da

epoca eram co-autores das

pe9as que

executavam, eles deveriam saber onde e como colocar ornamentos, como criar
e improvisar suas pr6prias divisions. Tomas de Sancta Maria, por exemplo,
recomendava

a improvisactao de fantasias utilizando material mel6dico da

melhor musica vocal da epoca 33 . Grandes alaudistas do Seculo XVI como


Francesco da Milano, Pietro Paolo Borrono e Alberto da Ripa ficaram famosos
por sua grande capacidade de tocar a musica de outros autores, e improvisar
sobre obras pre-determinadas.

Em diversos manuais aconselhava-se o

instrumentista a imitar a voz, o mais perfeito dos instrumentos, e sobre isto se


expressava Ludovico Zacconi:

... Music has always been beautiful and becomes more so each
hour because of the diligence and study by which singers
enhance it; it is not renewed or changed because of the figures
[i.e., notes], which are always of one kind, but by graces and

3~

Frederick Neumann, Ornamentation in Baroque and Post Baroque Music, Princenton University
Press, New Jersey, 1983.
32 C.P.E. Bach, Essays, Berlin, 1753; em Robert Donington: The Interpretation of Early Music.
Faber and Faber, 1963.

139
ornaments it is made to appear aiways more beautiful. The
graces and accents are made by the breaking up of the notes
each time that one adds, in a tactus or a half, a quantity of figures
that are suitable to be uttered with velocity. These render such
pleasure and delight that we seem to hear so many trained birds,
who with their singing steal our hearts and leave us well
conented with their song. 34

A maior parte dos music61ogos atuais ou da Renascen9a esta de acordo com a


evidencia de que os instrumentistas e cantores do seculo XVI ornamentavam
sua musica agregando conjuntos de notas chamadas diminutions a uma melodia
basica. Notas de longa dura9ao, como breves, semibreves ou minimas eram
"quebradas" em formulas mel6dicas de menor dura9ao para produzir o que na
realidade mais tarde sera chamado de "varia9ao". Existe uma distin9ao entre
ornamentos aplicados sobre notas individuais, de curta dura9ao, chamadas de
grace-notes; ao contrario das passagens (passaggi ou divisions) mais longas e
livres, que preenchem o espa9o vazio entre as notas de longa dura9ao.

Divisions

33

Tomas de Sancta Maria, Libro //amado arte de taner fantasia, 1556 em Howard M. Brown.
Ludovico Zacconi,Prattica di musica. Veneza, 1596: em Readings in the History of Music in
Performance. ed. Carol MacCiintock, Indiana University Press, 1979 A musica tem sempre sido
bela,e se torna ainda mais a cada hora, gra<;as diligencia e estudo atraves do qual os cantores
a enaltecem; ela nao e renovada ou mudada em fun<;ao das figuras [notas], que sao sempre de
um s6 tipo, mas pelas grac;as e ornamentos que a fazem parecer ainda mais bela. As grac;as e
acentos sao feitos atraves da quebra das notas, cada vez que sao agregadas, num tactus ou
minima, uma quantidade de figuras que sao apropriadas para serem expressas com velocidade.
Estas provocam um tal prazer e deleite que parece que escutamos varios passaros treinados,
cujo canto rouba nossos cora<;oes e nos deixa bem contentes com seu canto.

34

140
A arte das divisions (ou diminuigoes; passagio,

minuta,

italiano; glosa,

diferencia, redobles, espanhol, etc), consiste em embelezar uma melodia


(embelished decoration) com diversas notas de curta duragao. lnclui uma serie
de ornamentos muito pr6ximos da tecnica de variagao. Existe evidencias de que
desde o seculo XIII e XIV ja se praticava

este tipo de ornamentagao. Esta

tradigao continuou a desenvolver-se, alcangando o seu auge no final de Seculo


XVI.
Principalmente os italianos desenvolveram esta arte

a um ponto extremo de

virtuosismo e refinamento. Sua tecnica aparece em diversos tratados da epoca


dos quais

o mais antigo que se conhece e o Opera intitulata Fontegara de

Ganassi, datado 1535. 35 Trata-se de um metodo de flauta, no qual o autor


desenvolve com extrema metodicidade uma explicagao sobre a execugao das

divisions. Seu metodo difere substancialmente dos de seus colegas pela vasto
numero de exemplos e pela liberdade ritmica de suas formulas. Lodovico
Zacconi aconselha o aprendizado das passagi atraves do ouvido, e nao por
escrito, pois ficaria diflcil escrever corretamente o ritmo de tais passagens.
Talvez Ganassi tenha tentado expressar graficamente esta liberdade ritmica
com mais precisao ao escrever suas complicadas quialteras de 5:4, 6:4 ou 7:4.

35

Sylvestro Ganassi, Opera intitulata Fontegara, Venice, 1535; tradu<;:ao para o ingles D.
Swainson, em Frederick Neumann, etc

141

Jl

Jgt: j:.

~~-

[J. i:~ I2f~:~!"'

Paul O'Dette coloca a seguinte questao em rela<;ao a ornamenta<;ao:


"Que fun<;ao a ornamenta<;ao cumpria durante a Renascen<;a, e seria esta
fun<;ao

a mesma para todos os instrumentos?" 36

Segundo ele, umas das

fun<;6es primordiais para os instrumentos de cordas pin<;adas (que possuem urn


ataque clara e uma rapida queda de volume da nota),

seria o de imitar as

nuances de dinamica da voz ou de instrumentos capazes de sustentar notas e


os de alta expressividade (como violas, por exemplo ). Uma vez que a musica
vocal era o genera preferido na renascen<;a, e apresentava longos acordes
sustentados,

em

sua

versao

para

alaude

(as

famosas

intabulaturas),

solucionava-se o problema de sustenta<;ao com a ornamenta<;ao. Preencher


longos espa<;os com notas menores, as vezes repetic;oes da mesma nota (como
o tremulo encontrado na pec;a de Dowland, Mounsier's A/maine), seria portanto
uma das fun<;6es da ornamenta<;ao para os instrumentos da familia do alaude.

No New Grove Dictionary of Music and musicians as divisions sao apresentadas


de forma sistematizada,

sem

no entanto fazer referencias as divisions

da

epoca elizabethana, especificamente. Alguns exemplos da classifica<;ao do

Groves Dictionary eram utilizados por alaudistas da epoca de Dowland, mas a

36

Paul ODette, Renaissance Ornamentation, em artigo nao publicado.

142
melhor fonte para a cria<;ao de divisions sao os proprios exemplos encontrados
na literatura para alaude. Os tratados de ornamentagao da Renascenga
costumam apresentar formulas melodicas para preencher espagos entre as
notas, em geral apresentando todos os intervalos melodicos ascendentes e
descendentes, e formas de elaborar as cadencias. No Fontenagara de Ganassi
(1535), o autor apresenta 175 variantes em uma (mica formula cadencial 37 .

Notas de passagem:
Sao notas que fazem a conexao entre duas notas separadas por uma terga
("appogiatura de passagem") ou tirata (em frances tirade, coulade), quando o
intervalo

e maior que uma ten:;;a.

unem o intervalo apenas

as

preenchem diat6nica ou cromaticamente, estas sao chamadas de tirata estrita.


Quando existe um salto da nota escrita para a primeira nota do ornamento,
chamada

por

muitos

autores

de

tirata

livre.

Giulio

Caccini

refere-se

especificamente a elas com nomes como cascata doppia (cascata dupla) ou


cascata per raccorre il fiato (cascata para juntar oar nos pulm6es)38 .
Exemplos:
A Galliard (on a ga/liard by Daniel Bacheler), compasso 19 e 26

37

38

Howard Mayer Brown, Embelishing 16th Century Music.


Giulio Caccini, Le Nuove Musique, Florenr;a. 1602.

143
Lachrimae Pavan compasso 20 e 28

Lachrimae ( 1 a 9)

Grupo (turn. double,

gosier, groppo, grupetto):

Diversos autores referem-se a esta figura, como podemos observar abaixo:


ii.

lJll''Ut..l (l:'iG-),

Tremolo

[ ornamented]

c. lJln.HJ, Tn:moletto

d. D1rut,:, TY, mole/to

.
~'

J oOU), nillo

(l

~- .~.~~~~*~~

:;o3 or 1 t10:l),

144

Em Dowland e uma figura muito presente. Podemos citar um exemplo de grupo


em Captain Digorie Piper's Galliard no terceiro tempo do compasso 9.

Ou em Resolution, compasso 7, terceiro tempo

Pode-se observar nas pr6prias divisions de Dowland, que poucas sao as regras
a seguir. Examinando bem o que o autor faz, pode-se levantar uma serie de
procedimentos que surgem frequentemente, passando a constituir seu estilo
proprio e um bom indicador de como construir divisions dentro

linguagem

propria de John Dowland.


Na categoria dos grupo, poderfamos incluir uma forma bem mais livre e bern
mais frequente nas divisions de Dowland. Sao notas que circundam as notas

145
originais, mas sem nenhuma forma fixa. Estas sao provavelmente as figuras de
oranmentagao

mais comuns

na obra de Dowland, e para

reproduzl-las

melhor seria seguir o conselho de Zarconni e aprender a arte das divisions de


ouvido, ou seja, familiarizar-se com a linguagem de Dowland e reproduzl-la
instintivamente.

Sequencias:
Pratica comum no barroco tardio, em Dowland as seqencias aparecem com
durag5es curtas, podendo tambem ser classificadas(,) em

ret6rica como

gradatio. Em geral, na passagem das notas originais para as divisions, uma das

vozes e conservada intacta, normalmente sendo o baixo a ficar igual, mas as


vezes pode ser o baixo que se torna ornamentado.
Exemplo: Gal/iard (on a galliard by Daniel Bacheler), compasso 10

ITl

[jQ
I

I "' '

\ v

lmitac-;ao:
As imitag5es servem basicamente para manter a unidade da pega. A recorrencia
de pequenos fragmentos e muito frequente.
Exemplo: Bacheler, compasso 7 para 11/12

~=I

....

Em muitos casos a voz superior passa para a inferior.


Exemplo:
So/us cum sola 37/38 para 45/46

LL-JJ \[M . ~

146

147
5. Figuras de cadencia:
As figuras de cadencia sao ilustrativas de como Dowland trabalhava as
divisions em suas pe<;as. Muitas vezes, na division

as figuras de cadencia

aparecem em forma mais simples do que em sua versao original, como na


Galliard (Bacheller),

do compasso 9 para o 18.

Mas em geral ela se torna mais complexa,

21 para o 30.

E muito comum a transforma<;ao de

.....

148

para

13.

,,

(So/us cum sola, compassos 19 para 27).

Ornamenta~ao

Em geral
Dowland(.)

Ha

e diffcil estabelecer regras para

os procedimentos na obra de

momentos em que pouco do original

apenas uma rela<;ao entre a tessitura dos dois trechos.


Exemplo Resolution compasso 19 para 26

Do compasso 5/6 para 11/12

e conservado,

mantendo

149

Na Pavana Resolution pode-se observar o uso de imitagoes entre duas


vozes e sequencias na mesma voz.

figura de cadencia,

ja

bern

ornamentada no original, torna-se ainda mais complexa.

Em So/us cum sola, nos compassos 7 a 15

pode-se tambem observar esta liberdade imaginativa de Dowland. Fica


impossivel inserir suas divisions em regras pre-estabelecidas. Para fazer com
que nossas divisions modernas soem fieis ao compositor e necessaria um
ouvido atento e repetidas tentativas -

mesmo assim poderemos estar

incorrendo nos mesmos erros dos compositores contemporaneos de Dowland,


cujas divisions foram tantas vezes condenadas por ele.
A seguir uma division da ultima segao de Resolution realizada a quatro
maos com Nigel North:

150

-..-=l~t

n "'
liT

1+17
1

-v

...

"

~7

,1.

ffff.Fffi Jffl.

....,..:;.

151
ORNAMENTOS CURTOS OU REPERCUSSIVOS
Os manuscritos do perlodo conhecido como Golden Age (Periodo de Ouro.
1550-1625) revelam que o uso de ornamentos era mais proficuo na lnglaterra
do que em qualquer outro Iugar do continente europeu.
A obra de John Dowland abarca dois periodos do reinado ingles:

o periodo

elizabethano ( 1558-1603) e o jacobeano ( 1603-1625 ). Os musicos deste


periodo referiam-se

a ornamentac;ao

notas "graciosas", que embelezam.

39

repercussiva como grace notes, ou seja,


,

Existem diversas fontes nas quais pode-

se pesquisar a ornamentac;ao da epoca.

David Marriott( 13 ) cita os seguintes

manuscritos: The William Ballet Lute Book (1590-95) e The Mynsha/1 Lute BooK
(1597 -1600). Do perlodo elizabethano, as unicas referencias

a ornamenta9ao

encontram-se no Schoole of Musicke de Thomas Robinson. Em Observations

Belonging to Lute-Playing
referencias

de Jean Baptiste Besard, encontram-se

as

a ornamentac;ao sao bastante reticentes:

You should have some rules for the sweet relishes and shakes if
they could be expressed here, as they are on the Lute: but
seeing they cannot by speach or writing be expressed. thou wert
best to imitate some cunning player ... ~ 0

39

David Mariott, English Lute Ornamentation. em "Guitar & Lute N. 9" - abril 1979
'V6s deverieis conhecer algumas regras para os doces relishes e shakes se eles pudessem
aqui ser expresses da maneira como o sao no alaude: mas vendo-se que eles nao podem. nem
por palavras nem por escrito serem expressos. a v6s cabera melhor imitar algum alaudista
especial'' Robert Dowland, Varietie of Lute Lessons, em David Marriott, etc

40

152
Uma fonte muito apropriada para a pesquisa sobre a ornamentac;ao na
obra de John Dowland e urn manuscrito do seculo XVII: o Musick's Monument
de Thomas Mace ( 1676). Apesar de ter escrito seu tratado bern mais tarde do
que o periodo em que Dowland viveu, Mace conheceu bern sua obra e se refere
ao compositor com pesar e saudosismo. lniciou seus estudos dois anos antes
da morte de Dowland e viveu o periodo da decadencia do alaude renascentista,
e do desenvolvimento da teorba. 0 tratado de Mace tern um clima de nostalgia,
mantendo sempre um olhar sobre o passado,

e apresenta um capitulo inteiro

sobre ornamentac;ao no alaude, descrevendo cada um dos ornamentos em


detalhe.

Para

desconsiderados,

este

trabalho

muitos

eram aplicados

dos

a musica

ornamentos

devem

ser

de um periodo posterior, mas

seguiremos a ordem de sua sistematizac;ao.

I will now, in thefe a Chapter following, lay down, all the other
Curiofities, and Nicities, in referenceto the Adorning of your Play:
(for your Foundations being furely Laid, and your Building well
Rear'd, you may proceed to the Beautifying, and Painting of your
Fabrick) And thofe. we call the Graces in your Play. 41

41

[Eu 1rei agora , no capitulo que se segue, explicar todas as outras Curiosidades e Belezas em
referencia a adornar a sua execuc;ao (pois seus fundamentos tendo sido expostos. e seu
entendimento bem assentado, podereis proceder ao Embelezamento e Pintura de seu Tecido) E
a estes chamamos as Ornamentac;oes de vossa Execuc;ao]. Thomas Mace,Musick's Monument,
Editions du Centre National de Ia Recherche Scientifique, Paris, 1958.

153
1. Shake (Trilo ): Representado pelo simbolo #, equivale ao trilo moderno.

No

seculo XVI, o trilo e iniciado na nota principal e ha uma alternancia com a


nota auxiliar superior ou inferior.

Remembering to stop the b, Hard and close, all the time of your
shaking: and if you will have a Soft. and Smooth Shake, then
only Beat the letter d Hard, and OUick, directly down, and up,
with the very Tip of your Little Finger .::

Este e o ornamento mais usado pelos alaudistas, e em linguagem


moderna, trata-se de um mordente invertido. Era tambem conhecido como um
half-shake (meio-trilo). Este tipo de ornamento aparece em geral em melodias

bastante rapidas. Um trilo mais Iongo seria apropriado para notas mais longas.
Thomas Robinson aconselha o uso de shakes mais longos para que a nota
longa possa durar mais tempo.
Apesar

mordente invertido ser o mais usado, o mordente regular (nota

real- nota inferior- nota real) era aplicado em diversas situac;:oes.


Numa melodia descendente, (do- si - Ia# - sol - fa), usa-se um mordente
invertido (la-si-la).
Numa melodia ascendente, (fa - sol - Ia# - si - do), usa-se o mordente
regular (la-sol-la).

154

2. Fall (appogiatura inferior): Representado pelo simbolo X ,

no periodo

Jacobeano por (, aparece com os names de fore-fall, half-fa// e beat. No


periodo elizabethano, trata-se de um ornamento que comec;a na nota auxiliar
inferior, indo para a nota real. Este ornamento cria uma dissonancia
acentuada. Thomas Mace descreve o ornamento da seguinte forma:

The Half-fall, is ever from a Half Note beneath, ... and is


performed, by striking that Half Note first; but so soon, as that is
so struck, you must readily Clap down the true note, (with the
proper Finger, standing ready) without any further striking.
Suppose I would make a Half-fall to f, upon the Treble (or
another string) I must place a finger in e, as if nothing else were
intended; but too soon as e has g1ven its perfect Sound, my next

42

Thomas Mace. etc

155
finger, must fall smartly into f; so that f may sound strongly, only
by that Fall; which will cause a Pritty, Neat and Soft Sound,
without any other striking, and this is the Half-fall. 43

Exemplo:

X
('
<

c@ r r r r II

>

o:=
~-

r'-

r r }f

3. Double-Fall (ou whole fall): Semelhante ao fall anterior (com o mesmo


simbolo X), aparece em intervalos maiores, normalmente uma ter<;a maior ou
me nor.

Suppose I would give a Whole -Fall to the letter Letter d, upon


the fifth string: then I must first stike a. upon that string; and then
fall my forefinger hard, upon b, on the same string, and so

43

"0 Half-fall comec;a sempre na nota inferior ... e executa do tocando a nota inferior primeiro;
mas assim que esta for tocada, v6s deveis rapidamente bater a verdadeira nota (com o dedo
apropriado, que ja deve estar pronto esperando) sem nenhum outro toque. Suponhamos que eu
queira executar um half-fall emf, na primeira corda (ou outra ordem) eu devo colocar o dedo em
e, como se nada mais eu pretendesse fazer, mas assim que o e tenha dado seu som perfeito,
meu proximo dedo deve cair perfeitamente em f, de forma que o f possa soar forte, somente pelo
Fall; que devera provocar um som bela, limpo e suave, sem nenhum outro toque, e este e o halffall." Thomas Mace, etc.

156
closely after, (holding b still stopt) fall my third or little finger. as
hard into the true intended letter d ., 44

J J

,P
CL

a;

f d

4. Shake + fall ou Fall with a relish: Este e um ornamento que e comentado


tambem por Thomas Robinson:
Now to your fall with a relish ... where [ is in the Treble,
because [ is sharp, must have his fall from the full note a, and [ having had h;s
fall. may so bee held without moving the forefinger, and the rel:sh
continued (with the Iitie finger) in d which is under half note .. 45

Este tipo de ornamento ou relish (o termo era empregado na epoca para


todos os tipos de ornamentos}, hoje seria chamado de inverted turn. Segundo
David Marriot, os alaudistas desta epoca provavelmente continuavam seu

shaking se o tempo assim o permitia, resultando num Iongo trilo, iniciando na

Suponhai que eu quisesse dar um whole fall a letra d, sobre a quinta corda: entao eu devere
primeiramente tocar a, nesta corda; e entao cair com o dedo indicador com fm9a sabre o b. na
mesma, e assim, logo depois, (segurando b ainda parado) cair com o terceiro ou quarto, bem
forte sobre a verdadeira nota d.
45
Agora para vosso Fall com relish ... onde [ fica na primeira corda. pois [ e sustenido, deve teseu fall da nota inteira de a, e [tendo tido seu fall, pode ser mantido sem mover o dedo indicador.
eo relish continuado (como dedo mindinho) em d que e sob half note.
44

157
nota auxiliar inferior e alternando com a nota principal e a nota auxiliar superior
por muitas repercuss6es.

........--:::.

IC:

I?

r.

ff1J

...
:A-I
/

t7

"
/I

Os ornamentos acima sao os mais usados

na musica do

periodo

elizabethano. No periodo que se segue, a escola francesa de alaude passa a


ter grande influencia na pratica de ornamentac;ao dos alaudistas ingleses. A
partir de entao, aparecem

ornamentos sobre a nota superior auxiliar que

modificam seu carater criando uma enfase harmonica

que contrasta

com a

estrutura musical subjacente.


4. Back-Fall:

Eo

que hoje conhecemos como appogiatura superior. 0 simbolo

usado era ) e era colocado antes da letra da nota (na tablatura). 0 simbolo
comec;a a aparecer na lnglaterra a partir de 1610.

Suppose I would Back-Fall a, upon the Treble string, then I must


1rst. Stop

r, upon the same string, and strike it, as if I did

absolutely intend r (only) should sound; yet so soon as I have so


struck r, I must, with the Stopping Finger, (only) cause the a, to
found, by taking it off, in a kind of a Twich.so that the letter a.

158
may sound, (by reason of that tw1ch, or falling back) presently
after the letter r is struck 46

fl

~"'
7_

I"

1':7'-

I,
-it-

/
/

5. Back-fall shake:

E uma combina<;ao do back-fall

que passa a ser shaked, isto

e, "tremido", repetido varias vezes. Resulta num trilo partindo da nota auxiliar
superior para a nota real. Hoje chamamos este ornamento de trilo preparado.
Os sfmbolos contem a combina<;ao do back-fall) e o shake # urn ao lado do
outro,

a frente e acima da letra da tablatura

)b#

46

Suponhai que eu queira fazer um back-fall sobre a, na primeira corda, entao eu necessito
primeiramente apertar r, na mesma corda, e toca-la, como se minha (mica intenc;;ao fosse fazer r
(somente) soar: assim logo que eu tiver tocado r. eu devo, com o dedo que apertava a nota

159

6. Beat-Shake: Trata-se da combinagao do beat (appogiatura inferior) que passa


a ser shaked (repetida), conhecida hoje em dia como trilo auxiliar inferior. 0
simbolo usado era X ou ( mais urn urn sinal de shake ao lado e acima de uma
letra.

l'""r'l

?"15
f

xfI

Q.,

~
F

'---

(A_,
I

!<

??)

"'
I

A seguir, apresento a realizagao da ornamentagao da Pavana Lachrimae,


segundo o manuscrito original e as sugest6es de Nigel North.

(somente) fazer soar a, ao puxar esta corda, com uma especie de be ;scao, de modo que a letra
a soe (par causa deste beliscao ou falling back) em seguida que a letra r e tocada.

160

161

162

r
n

l.

1-t=I

mj~

"

fr

----. ll 1

+
l

'I

t~H

--.

~I

163
'IV

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\7'.F-.-...

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164

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L_.;!.

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.:::01

--

ANEXO

Carta citada e corrigida para ortografia moderna por Diana Poulton, em seu livro:

John Dowland, Londres, Faber and Faber, 1972:


To the Right honourable Sir Robert Cecil knight, one of the

Queen's

Majesty's

most honourable Privy Councillors, these

Right honourable: as I have been bound unto your honour so I most humbly
desire your honour to pardon my boldness and

and make my choice of

your honour to let you understand my bounden duty and desire of God's
preservation of my most dear Sovereign Queen and Country: whom I beseech
God ever to bless & to confound all their enemies what & whom soever. Fifteen
years since I was in France servant to Sir Henry Cobham who was embassador

of the Queen's Majesty, and lay in Paris where I fell acquainted with one Smith a
priest, and one

Morgan sometime of her Majesty's Chapel, one Verstigan

who brake out of England being apprehended & one Morris a Welshman that
was our porter, who is at Rome; these men thrust many iddle toys into my head

of religion, saying that the papist' was the truth & ours in England all false, and I
being but young their fair words overrreached me & elieved with them. Within
two years after I came into England where I saw men of that faction condemn &
executed which I thought was great injustice taking religion for the only cause,
and when my best friends would persuade me I would not believe them. Then in

167
time passing one Mr Johnson died & became an humbler suitor for his place
(thinking myself most worthiest) wherein I found

many

good

and

honourable friends that spake for me, but I saw that I was like to go without it,
and that any may have preferment but I, whereby I began to sound the the
cause, and guessed that my religion was my hindrance. Whereupon my mind
being troubled I desired to get beyond the seaswhich I durst not attempt without
licence from some of the Privy Council, for fear of being taken and so haave
extreme punishment. And according as I desired there came a letter to me out of
Germany from the Duke of Brunswick, whereupon I spake to your honour & to
my Lord of Essexwho willingly gave me both your hands (for which I would be
glad if there were any service in me that your honours could command). When I
came to the Duke of Brunswick he used me kindly & gave me a rich chain of
gold, $ 23 in money with velvet and satin and gold lace to make me apparel, with
promisse that I would serve him he would give me as much as any prince in the
world. From thence I went to Lantgrave of Hessen, who gave me the greatest
welcome that might be for one

my quality who sent a

to my wife value at$

20 sterlings, and gave me a great standing cup with a cover gilt, full of dollars
with many great offersfor my service. From thence I had great desire to see Italy
& came to Venice and from thence to Florence where I played before the Duke &

got great favours, & one evening I was walking upon he piazza in Florence a
gentleman told me that he spied an English priest & that his name was Skidmore
& son and heir to Sir John Skidmore of the Court. So I being intended to go to

Rome to study with a famous musician named Luca Marenzio: stepped to this Mr

168
Skidmore the priest and asked him if he were an English man, & he told meyea:

& whose son he was, & telling him my name he was very glad to see me, so I
told him I would go to Rome & desired his help for my safety, for said I, if they
should mistake me there my fortune were hard, for I have been thrust off of all
good fortune because I am a Catholic at home. For I heard that her Majesty
being spoke to for me, said I was a man to serve any prince in the world, but I

was an obstinate papist. He


words true. So in

answered Mr Dowland if it be not so make her

further talk we spake of priests, & told him I did not think it

true that any priests (as we said in England) would kill the Queen or

once

go about to touch her finger, and said I whatsoever my religion be I would neither
meddle nor make with anything here done, so that they do not anything against
the Queen. Where unto he answered that I spake as a good subject to her
Majesty, but said he in Rome you shall hear Englishmen your own countrymen
speak most hardly of her and wholly seek to overthrow her & all England. And
those be the Jesuits said he who are of the Spanish faction. Moreover said he
we have many jars with them & withal! wished to God the Queen were a
Catholic, & said he, to defend my Country against the Spaniards I would come
into England & bear a pike on my shoulders.

Among our talk he told me that

he had orders to attach divers English gentlemen, & that he had been 3 years
[out of?] England, so I brought him to his lodging door, where he told me that
there was 9 priests come from Rome to go for England. He came but the day
before to Florence, & I think they came altogether, he told me that he would stay
there in the town and study in an abbey called Sancta Maria Novella, & that must

169
be in for one month, and that he would write letters of me to Rome, which I
shoud receive very shortly, but I heard not of him in a month after, and then ther
came two friars to my lodging the one was an Englishman named Bailey, a
Yorkshireman. The next day after my speech with Skidmore I dined with my Lord
Gray and Divers other gentlemen, whom I told of my speech with Skidmore
giving them warning. Whereupon my Lord Gray went to Sienna, and the rest
dispersed themselves. Moreover I told my Lord Gray Howsoever I was for
religion, if I did perceive anything in Rome that either touched her Majesty or the
state of England I would give notice of it though it wee the loss of my life, which
he liked well & bade me keep that secret. This friar Bailey before named
delivered me a letter which I have here sent your Honour. which letter I breack
open before Mr Josias Bodley, & showed what was written in it to him & divers
other,after this, this friar Bailey told me he had received letters from Rome to
hasten me forward, & told me that my discontentment was known at Rome, and
that I should have a large pension of the Pope, & taht his Holiness &all the
cardinals would make woundeful much of me, thereupon I told him of my
and children how to get them to me, wherunto he told me that I should have
acquaintance with such as should bring them over to me if she had any
willingness or else they would loose their lives for there came those into England
for such purposes, for quoth he Mr Skidmore brought out of England at his last
being there 17 persons both men and women, for wich the bishop weeps when
he sees him for joy. After my departure I called to mind our conference & got me
by myself & wept heartily, to see my fortune so hard thet I should become

170
servant to the greatest enemy of my prince:country: wife: children: and friends:
for want, & to make me like themselves. God knoweth I never loved treason nor
treachery nor never knew any, nor never heard any mass in England, which I
find is great abuse ofth people for on my sole I understand it not. Wherefore I
have reformed myself to live according to her majesty's laws as I was born
under her Highness, & that most humbly I do crave pardon, protesting if there
were any habilityin me, I would be most ready to make amend. At Bologne I met
with two men, the one named Pierce and Irishman, the other named Dracot.
They are gone both to Rome. In Venice I heard an italian say, that he marvelled
that King Philip had never a good friend in England that with his dagger would
dispatch the Queen's Majesty, but said he, God suffers her, in the end to give
her the greater overthrow. Right honourable this have I written that her Majesty
may know the villainy of this most wicked priests and Jesuits, & to beware of
them. I thank God I have both forsaken them and their religion which tendeth the
Queen's Majesty, & to confound all her enemies & to preserve your honour & all
the rest of her Majesty, & the other priests are all in England for he stayed not
he said he would to me, & friar Bailey told me that he was gone into France to
study the law. At Venice & along as I came in
Spain is making great preparation

Germany say that the King of

to come for England this next summer,

where if it pleased your Honour to advise me by my poor wife I would most


willingly lose my life against them. Most humbly beseeching your Honourto
pardon my ill writing & worse inditing, & to think that I desire to serve my country
& hope to hear of your good opinion of me.

171
From Nurnberg thisd 1Oth of November 1595.
Your Honour's most bounden
forever

Jo:Doulande

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Hence, Despair with thy tormenting fears:
0 do not my poor heart affright.
Pity, help now or never,
Mark me not to endless pain,
Alas I am condemned ever,
No hope, no help there doth remain,

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Or a wounded ey<',
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To attain so h1gh.

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IS (00 worthy r..r,
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C~t..-1 a11J but JU~t is she,

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di~gr<lce.

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Silly wretch fors.J.ke these dreams,
or a vain desire,
0 bethink what h1gh regard,
Holy hopes do require.
Favour is as (air as th1ngs are,
Treasure IS. not bought,
Favour is.not won with words,
Nor the wish of a. thought.

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P1ty h but a poor defence,

Jusll<'e g1ves each man hiS own,


Though my love be ;ust,
Yet will not she pity my grief,
Thadore die must,
Sllly heart then yield to d1e,
Perish in despair,
W!lllo:ss yet how faw 1 die,
Wh~11

di~

for the fair.

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