O Candomblé de Caboclo

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O Candombl de Caboclo

"Ainda tem caboclo debaixo da samambaia"


O caboclo a entidade espiritual presente em todas as religies afrobrasileiras, sejam elas organizadas em torno de orixs, voduns ou inquices.
Pode no estar presente num ou noutro terreiro dedicado aos deuses africanos,
mas isto exceo. Seu culto perpassa as modalidades tradicionais afrobrasileiras candombl, xang, catimb, tambor de mina, batuque e outras
menos conhecidas , constitui o cerne de um culto praticamente autnomo, o
candombl de caboclo, e define estruturalmente a forma mais recente e mais
propagada de religio afro-brasileira, a umbanda.[1]
A origem dos candombls de caboclo estaria no ritual de antigos negros de
origem banto, que na frica distante cultuavam os inquices divindades
africanas presas terra, cuja mobilidade geogrfica no faz sentido e que no
Brasil viram-se forados a encontrar um outro antepassado para substituir o
inquice que no os acompanhou nova terra. Neste novo e distante pas, que
antepassado cultuar seno o ndio, o caboclo, como diziam os antigos
nordestinos? Os antigos habitantes, quem seno o verdadeiro e original "dono
da terra"? (Santos, 1995).
Apesar de preponderantemente identificados como ndios, h caboclos de
diferentes origens mticas, como boiadeiros, turcos e marinheiros ou marujos.
Caracterizam-se, em geral, pela comunicao verbal e proximidade de contato
com o pblico que freqenta os terreiros. Eles brincam, entoam cantigas e tiram
as pessoas para danar ao som de seu alegre samba. Alm da animao, outra
caracterstica marcante seu poder de cura e a disposio para ajudar os
necessitados, mais a sabedoria. Acredita-se que os caboclos conhecem
profundamente os segredos das matas, podendo assim receitar com eficcia
folhas para remdios e banhos medicinais. No imaginrio popular, o caboclo a
um s tempo valente, destemido, brincalho e altrusta, capaz de nos ajudar
para o alvio das aflies cotidianas. As pessoas que acorrem aos cultos afrobrasileiros, sobretudo as mais pobres, encontram nesta entidade um sbio
curandeiro, sempre pronto a vir em socorro dos aflitos.
O termo candombl de caboclo teria surgido na Bahia, entre o povo-de-santo
ligado ao candombl de nao queto, originalmente pouco afeito ao culto de
caboclo, justamente para marcar sua distino em relao aos terreiros de
caboclos. Nos anos 30, de acordo com relato da antroploga americana Ruth
Landes, que esteve na Bahia num perodo entre 1938 e 1939, usavam-se as
expresses me cabocla, seita cabocla, candombl de caboclo em oposio aos
termos dos candombls africanos. De uma visita que fez ao terreiro de Me
Sabina, famosa sacerdotisa cabocla, Ruth Landes registrou um dilogo
significativo entre esta me-de-santo e outras mulheres do templo, dilogo do
qual vale a pena relembrar este trecho:
Uma das mulheres, referindo-se americana, pergunta a Me Sabina:

"Ela sabe qual a nossa seita? Sabe que somos caboclos e os outros so
africanos?
Ao que responde Sabina:
A senhora deve saber essas coisas. Este templo protegido por Jesus e Oxal e
pertence ao Bom Jesus da Lapa. uma casa de espritos caboclos, os antigos
ndios brasileiros, e no vem dos africanos iorubs ou do Congo. Os antigos
ndios da mata mandam os espritos deles nos guiar, e alguns so espritos de
ndios mortos h centenas de anos. Louvamos primeiro os deuses iorubs nas
nossas festas porque no podemos deix-los de lado; mas depois salvamos os
caboclos porque foram os primeiros donos da terra em que vivemos. Foram os
donos e portanto so agora nossos guias, vagando no ar e na terra. Eles nos
protegem. (Landes, 1967, p. 196).
Hoje, na diferenciao com outras naes de candombl, como queto, jeje,
ijex, ef, angola e congo, fala-se numa nao caboclo[2], mas raramente podese encontrar um candombl de caboclo funcionando independentemente de um
candombl das outras naes. Embora muito associado ao candombl angola, o
rito caboclo j comeava, poca da visita de Landes Bahia, a ser
incorporado tambm a candombls de nao queto.
Na disputa por legitimidade e prestgio, os candombls de caboclos foram
considerados inferiores tanto pelo povo-de-santo como pelos pesquisadores,
que deles escreveram muito pouco. O primeiro trabalho cientfico tratando com
profundidade do candombl de caboclo somente apareceu em 1995, com a
publicao do livro O dono da terra, tese de mestrado defendida na USP pelo
antroplogo baiano Joclio Teles dos Santos. A dissimulao e mesmo a negao
do culto aos caboclos nos terreiros marcados pela ortodoxia nag, entretanto,
mantm-se at hoje, sendo comum a acusao de que em tal ou qual terreiro
queto que no tem caboclo, a me-de-santo ou outra pessoa de prestgio
recebe seu caboclo escondido ou, no mnimo, lhe oferece sacrifcios na mata.
Apesar de considerado inferior, o candombl de caboclo impregnou-se nas
demais naes e por meio delas propagou-se pelo Pas. De seu encontro com o
espiritismo kardecista, que resultou num grande embate tico, nasceu, no Rio
de Janeiro dos anos 30, a umbanda, com o desenvolvimento de ritos, ritmos e
panteo particulares. O velho candombl de caboclo continuou, contudo, com
vida prpria e, num outro movimento, chegou de novo ao Rio de Janeiro e So
Paulo, sempre associado ao candombl de orix e inquice, mas separado da
umbanda. E como tal se mantm e se reproduz.
No candombl de caboclo h predominncia de muitos elementos do
candombl angola, os atabaques so tocados com as mos, as msicas so
cantadas em portugus, com uso freqente de termos rituais de origem banto.
O apelo a uma cultura indgena, quase sempre idealizada, proporciona ao
candombl de caboclo uma valorizao de elementos nacionais, fazendo dele,
na concepo popular, uma religio "brasileira por excelncia". Elementos
simblicos nacionais so ressaltados, como a meno s matas, as cores verde
e amarelo, o sincretismo catlico e a miscigenao racial. Em todo seu

repertrio musical fala-se muito desse amlgama cultural que o Brasil. Esta
matriz cabocla foi inteiramente absorvida pela umbanda, que na forma um
candombl de caboclo, mas que contm uma elaborao tica da vida que
separa o bem do mal nos moldes kardecistas completamente ausente na
tradio cabocla e que fez da umbanda uma religio diferente e autnoma.
Hoje o candombl no mais uma religio tnica circunscrita populao
negra, pois j se espalhou pela sociedade branca abrangente, rompendo
preconceitos e fronteiras geogrficas, inclusive para fora do Pas. Legitimou-se
como mais uma opo religiosa e vem aos poucos garantindo seu espao no
disputado mercado religioso contemporneo. A propagao desta religiosidade
na populosa Regio Sudeste, a partir dos anos 60, deu-se principalmente a
partir dos terreiros umbandistas que a existiam desde os anos 30 e 40.
Numerosos filhos-de-santo da umbanda aderiram aoax da tradio negrobaiana, cuja fora vital era por eles considerada mais forte. A busca mgicoreligiosa da satisfao de anseios do metropolita moderno tornou o candombl
uma religio universalizada, isto , agora aberta a todos. eloqente o caso da
fixao do candombl em So Paulo (Prandi, 1991). Com o orix, o inquice e o
vodum do candombl veio o caboclo do candombl, que ritualmente e
doutrinariamente diferente do caboclo da umbanda.
No contexto da transformao religiosa que trouxe o candombl do Nordeste
para o Sudeste, que ainda encontra-se em curso, os caboclos certamente tm
sido protagonistas decisivos, afinal seu culto foi mantido e est presente hoje
em quase todos os terreiros de candombl, sejam eles de rito angola, queto ou
ef.
Caboclo em terreiro de candombl O candombl de caboclo atualmente
praticado paralelamente ao culto de divindades africanas, estando associado
aos terreiros de inquices, orixs e voduns[3]. Tudo se passa como se houvesse
duas atividades religiosas independentes, podendo mesmo se observar
separao dos espaos fsicos, no se misturando caboclo com orix. Mas o pai
ou me-de-santo obviamente a mesma pessoa, assim como os ogs alabs,
os tocadores de atabaque, e outros sacerdotes. Enquanto o candombl dos
deuses exige um complexo e demorado processo de iniciao, no candombl de
caboclo no h propriamente algo correspondente "feitura de santo". Novios
passam a freqentar os toques, podendo receber o encantado sem nenhuma
preparao preliminar baseada em longo perodo de clausura. Num mesmo
terreiro, h filhos "feitos", iniciados, para orixs-inquices que tambm recebem
seus caboclos, mas possvel observar nmero expressivo de filhos que
recebem caboclo e participam ativamente do candombl de caboclo, mas que
nunca so iniciados para a divindade africana, comportando-se ritualmente nos
toques de orixs como simples abis, iniciantes. Tambm no participam das
cerimnias sacrificiais aos orixs, reservadas aos filhos de orix "feitos". Em
muitos terreiros, contudo, primeiro observa-se a iniciao do filho-de-santo para
o orix, ocorrendo depois, geralmente na obrigao de um ano, a "chamada" do
caboclo, que ento incorpora no novo filho, podendo ser batizado ou no em
cerimnia descrita mais adiante.

Diferente da umbanda, o caboclo do candombl recebe sacrifcio, sendo suas


festas pblicas precedidas de cerimnias de matana, com ofertas de aves,
cabritos e bois. Em muitos terreiros, a oferta de bois e novilhos uma
demonstrao do poder sagrado do caboclo e de seu prestgio junto aos filhosde-santo. Suas festas podem ser muito mais fartas e concorridas que as
reservadas ao orixs. O caboclo de candombl, como os orixs, tambm pode
ter assentamento, isto , uma representao de base material, com
instrumentos de ferros e outras insgnias fixadas numa vasilha, em geral um
alguidar, junto ao qual se depositam as oferendas: seu altar. Tambm pode ter
seu quarto-de-santo, geralmente uma cabana ou um espao aberto ou semiaberto localizado no quintal do terreiro, rea que o caboclo compartilha com
orixs e inquices identificados com o mato e os espaos abertos, como Ogum
ou Incci, Oxssi ou Gomgobira, Ossaim ou Catend.
Os caboclos so espritos dos antigos ndios que povoavam o territrio
brasileiro, os antigos caboclos, eleitos pelos escravos bantos como os
verdadeiros ancestrais em terras nativas. So espritos, no deuses. So eguns,
na linguagem do candombl nag. Ao caboclo ndio tambm se designa
"caboclo de pena", referncia aos penachos e cocares que usa quando em
transe para marcar sua origem indgena. Mas h tambm caboclos de outras
procedncias: os caboclos boiadeiros, que teriam um dia vivido no serto na
lida do gado e que usam o chapu caracterstico de sua antiga ocupao; os
marujos ou marinheiros, sempre cambaleantes por causa do "tombo do mar"
que marca a vida nos navios. Alguns caboclos so originrios de lugares
imaginrios, como a Vizala ou a Hungria.
No candombl, os caboclos, que tambm podem ser do sexo feminino, so
considerados filhos dos orixs e os prprios caboclos incorporados a eles assim
se referem, quando dizem que foi o pai ou a me que os mandou vir terra
para a celebrao do toque, ou quando vo embora e dizem que foi o pai ou a
me que chamou. Estabelece-se assim uma correspondncia entre a
paternidade do caboclo e do filho-de-santo, de sorte que filhos de Oxum tm
caboclos de Oxum, filhos de Xang tm caboclos de Xang e assim por diante.
Vejamos uma lista de caboclos e caboclas com os respectivos orixs, notando
como os nomes dos caboclos tendem a fazer referncia a atributos do orix:
Ogum - Caboclo do Sol, Pena Azul, Giramundo, Serra Azul, Serra Negra, Sete
Laos, Trilheiro de Vizala, Sete Lguas, Rompe Mato, Lao de Prata;
Oxssi - Mata Virgem, Pena Verde, Jurema, Arranca-Toco, Sete Flechas,
Urubatam;
Ossaim - Junco Verde, Boiadeiro das Matas, Floresta, Guarani;
Omolu - Girassol, Tupinamb, Xapangueiro, Camba;
Nan - Treme Terra, Cabocla Camaceti, Rei da Hungria;
Oxumar - Cobra Coral, Cobra Dourada;

Xang - Mata Sagrada, Boiadeiro Zamparrilha, Boiadeiro Trovador, Boiadeiro


Corisco, Sete Pedreiras;
Ians - Ventania, Vento, Jupira, Zebu Preto, dos Raios;
Ob - Pena Vermelha;
Oxum- Lua Nova, Lua, Jandaia, Cabocla Menina, Estrela Dourada, Sulto das
Matas;
Logun-Ed - Laje Grande, Laje Forte, Bugari;
Iemanj - Sete Ondas, Indai, Juremeira, Estrela, Sete Estrelas, Iara;
Oxal - Pedra Branca, Pena Branca, Lua Branca, guia Branca.
Caboclos e orixs so tratados nos candombls como entidades de naturezas
diferentes. Alm das distines de carter meramente formal, h aspectos que
os distinguem e que so importantes na relao que se estabelece entre cada
um deles e seus devotos.
Todo filho-de-santo deve ser iniciado para um determinado orix (ou inquice, ou
vodum), que considerado seu antepassado, seu pai ou me, sua fonte de
vida. A iniciao implica recolhimento e ritos complexos que envolvem somas
de dinheiro elevadas, nem sempre compatveis com a extrao social dos
adeptos das religies afro-brasileiras, em geral, pobres. O culto do caboclo no
requer processo inicitico deste tipo, podendo ocorrer em algumas casas o
batismo do caboclo, um ritual de confirmao bem mais simples que a "feitura".
Enquanto os deuses africanos vm aos terreiros para danar e falam apenas
com algumas pessoas com cargos sacerdotais, os caboclos dirigem-se
diretamente a todos que os procuram nos toques ou nas festas. Conversar
sua caracterstica marcante. Todo caboclo falante. Pode ser simptico ou
carrancudo, amigvel ou arredio, irreverente ou reservado, mas sempre
falador. Para se conhecer a vontade dos orixs preciso recorrer ao jogo de
bzios, que somente a me ou pai-de-santo pode jogar. Parecem um tanto
distantes, portanto. J os caboclos dizem o que sentem sem nenhuma
mediao. A relao com o cliente direta, face a face.
A lngua outro fator importante nesta distino, pois grande parte das pessoas
que vo aos terreiros no compreende as lnguas rituais derivadas do iorub,
fom ou quicongo e quimbundo em que se cantam as cantigas. Nem mesmo a
maioria dos filhos-de-santo sabe o que est cantando, pois as lnguas rituais
hoje so intraduzveis. Aos caboclos, pelo contrrio, canta-se em portugus.
Suas cantigas so simples e sugestivas, com expresses e termos conhecidos
do catolicismo tradicional e do imaginrio popular. Um culto assim
menos afro e mais brasileiro, ou seja, mais "nosso" para muita gente.

Em alguns terreiros, os caboclos so concebidos como "mensageiros" dos


orixs. Segundo alguns pais-de-santo, eles so transmissores das vontades
divinas, afinal "eles falam o que os orixs no podem falar". Me Manod, 78
anos, chefe do terreiro angola que foi o primeiro a se estabelecer em So Paulo
como terreiro de candombl, nos anos 60, diz:
O caboclo mensageiro dos orixs. Ele tem que fazer o que os orixs mandam:
consulta, eb da prosperidade, eb da bno... o orix que determina, a
ento o caboclo pega o filho-de-santo para fazer eb.
Me Manod, reforando a idia da subordinao deles aos orixs, afirma a
importncia dos caboclos como mediadores na relao dos clientes com os
orixs, dizendo que afinal "eles sabem dar palestras", isto , conversar com
desenvoltura com fiis e clientes, coisa que orix no faz. Esta antiga me-desanto baiana reivindica ainda para o candombl angola a exclusividade da
devoo aos caboclos: "O candombl queto no cultua caboclo. O que existe
hoje inveno dessa gente. Caboclo sempre foi de angola, sempre, desde a
Bahia. Depois o queto copiou."
Hoje em So Paulo dificilmente o caboclo pode ser usado como divisor de guas
entre as naes de candombl de origem banto e iorub ou nag, embora todos
reconheam que sua origem est inscrita nos antigos terreiros de candombl
angola e congo da Bahia, cujas expresses maiores so os terreiros do Bate
Folha e o Tumba Junara, ambos em Salvador, ambos centenrios. O caboclo
est presente nos candombls de todas as naes. No cultuado em apenas
uns poucos terreiros africanizados, embora haja terreiros africanizados com
culto de caboclo. Mesmo terreiros tributrios dos mais antigos terreiros queto
da Bahia cultuam caboclo, ainda que o culto se resuma a uma nica festa
anual.
Batismo de caboclo Os ritos do candombl de caboclo so bastante simples
quando comparados com as cerimnias devidas a orixs e demais divindades
africanas. Na medida em que o caboclo vai sendo incorporado ao cotidiano dos
candombls de orix-inquice, algumas cerimnias tendem a ganhar
complexidade, s vezes nos moldes destes cultos. O rito relatado a seguir,
observado em terreiro paulista de candombl angola-queto, bastante
emblemtico.
poca esse terreiro realizava sesses semanais de consultas com caboclos,
em que um pblico de baixa renda, na maior parte, acorria em busca de
solues para toda sorte de problemas.
Nesse terreiro, aps ser realizada a obrigao de um ano de iniciao para o
orix do filho-de-santo, marcada a data em que o caboclo chamado a
possuir o ia, tornando-se o caboclo mais uma das entidades de culto particular
do filho-de-santo, que alm do orix principal, o dono de sua cabea, deve
obrigaes ao junt (o segundo orix) e ao Exu (mensageiro do orix principal),
ambos tambm assentados na obrigao de um ano.

Previamente a me-de-santo solicitou ao filho-de-santo os seguintes itens


necessrios ao ritual: um alguidar grande, uma quartinha de barro sem asas,
um litro de azeite de dend, um litro de vinho doce, um litro de mel, um quilo
de sal, cebola, ns moscada, canela, cravo, gengibre, uma pemba branca, velas
brancas e coloridas, alm de outros itens secundrios. Consultando o orculo do
jogo de bzios, a me-de-santo fez ver a vontade do caboclo, que solicitou
como oferenda trs galos, duas galinhas e um casal de codornas. Segundo a
me-de-santo, tambm Exu respondeu no orculo, indicando sua vontade de
receber um galo em sacrifcio.
Nesse terreiro, o caboclo assentado aps o conhecimento do seu ponto
riscado, espcie de desenho que o mesmo faz no cho com pemba branca, a
partir do qual uma ferramenta confeccionada em ferro. Este smbolo,
acompanhado de bzios, moedas e folhas frescas fixado num alguidar com
cimento, preparado com areia numa mistura com o amassi do caboclo (ervas
maceradas em gua). No caso aqui relatado, somente dali a algum tempo o
assentamento definitivo seria feito, pois antes da cerimnia o caboclo ainda no
se fizera conhecer.
Na noite anterior ao dia marcado, o filho-de-santo dirigiu-se ao terreiro levando
consigo todo o material necessrio. Na manh seguinte, acompanhado de
outros dois filhos-de-santo, dirigiu-se a uma mata prxima ao terreiro onde
colheu folhas de aroeira, cip-caboclo, goiabeira, mangueira, guin, comigoningum-pode, fumo, eucalipto, so-gonalinho, alm de arruda e tapete-deOxal, que eram cultivados no prprio terreiro. As folhas seriam maceradas e
serviriam para lavar o alguidar e a quartinha de barro do caboclo.
interessante observar que o filho-de-santo no banhou-se com essas ervas,
banhando-se com o ab (infuso de ervas que permanece num pote e que
temporariamente renovada) pertencente ao rito dos orixs.
A me-de-santo, acompanhada apenas do axogum (sacerdote do candombl de
orix responsvel pelo sacrifcio dos animais), dirigiu-se ao quarto de Exu onde
realizou o sacrifcio do galo. Os dois entoaram alguns cantos e saudaram Exu,
trazendo no final do ritual um alguidar de farofa amarela (farinha de mandioca
com azeite de dend), da qual sete punhados foram jogados na rua.
Enquanto o animal de Exu era limpo na cozinha-do-santo, a me-pequena da
casa incensou todo o terreiro entoando as seguintes cantigas:
Incensa, incensado a casa do meu av
Incensa, incensado em nome do Senhor
Estou orando, estou incensando (bis)
A casa do Bom Jesus da Lapa (bis)
Nossa Senhora incensou seus bentos filhos

Incensou para cheirar


Eu tambm vou incensar a minha casa
Para sorte e a felicidade entrar
Com todos os membros do terreiro reunidos no barraco (como conhecido o
salo de danas do terreiro), a me-de-santo deu incio ao ritual propriamente
dito. Os ingredientes anteriormente citados estavam colocados sobre uma
esteira, em que tambm estava sentado o filho-de-santo.
A me-de-santo entoou algumas rezas que so chamadas Angoroci, saudando e
pedindo licena a todos os orixs para cumprir o ritual em louvor do caboclo.
Tomou um adj (campainha ritual) e comeou a chamar, atravs de toadas, os
caboclos conhecidos no terreiro:
Angoroci daraa au (bis)
Angoroci mene mene
Tateto Sulto das Matas, oi si!
Assim sucessivamente saudou os caboclos Pena Branca, Juremeira, Laje
Grande, Pena Dourada. Logo depois, aproximando-se do filho-de-santo, soando
o adj. Acompanhando a me-de-santo, todos os presentes gritavam:
Xeto marrumbaxeto
Xeto na Vizala
Xeto !
Os gritos repetiram-se muitas vezes at que, num dado momento, o corpo do
filho-de-santo comeou a tremular. Seus gestos davam a impresso de estar
passando por uma convulso, sendo amparado por uma equede (espcie de aia
do orix) e pela me-pequena. Em seguida, todos ouviram um grito estridente,
como se fora o de um pssaro. Era o caboclo que havia possudo em transe o
filho-de-santo ali sentado. Era seu sinal.
Todos os presentes saudaram o caboclo que acabara de chegar com gritos de
Xeto marrumbaxeto, a saudao aos caboclos, e muitas palmas. O caboclo em
transe parecia muito esquivo. Em muito havia se modificado o semblante do
filho-de-santo, bem como seus movimentos fsicos.
O caboclo saudou a me-de-santo com certa cerimnia, abraando-a apenas.
Nenhum outro tipo de cumprimento foi feito, tal como o beijar a mo ou o
deitar-se no cho aos ps do outro, gestos tpicos, e obrigatrios, na etiqueta
dos terreiros de orixs e inquices. A me-de-santo ento perguntou ao caboclo
seu nome e pediu que entoasse seu canto de chegada. Com ar circunspecto, ele

identificou-se como Caboclo da Lua e cantou:


Caboclo flecheiro, sou da nao do Brasil
Sou da nao do Brasil, sou caboclo
Caboclo flecheiro
Todos os presentes, demonstrando grande alegria, gritavam entre palmas: Xeto
marrumbaxeto, xeto na Vizala, xeto !
O caboclo manteve-se ajoelhado e ligeiramente curvado na esteira. A mepequena colocou as folhas que haviam sido colhidas pela manh dentro de um
alguidar grande, juntando-lhes gua e macerando-as em seguida, tornando
essa mistura num lquido verde escuro de forte e agradvel olor, com que lavou
o alguidar e a quartinha pertencentes ao assento do caboclo.
A me-de-santo mandou vir os animais a serem sacrificados, mas, antes do
incio dos sacrifcios, despejou no alguidar um pouco de gua, azeite de dend e
mel. Num pote reservado ao preparo da bebida ritual dos caboclos colocou os
mesmos ingredientes acrescidos de canela, cravo e noz-moscada. A me-desanto iniciou o ritual entoando uma cantiga de saudao casa, h muito
incorporada ao repertrio da msica popular brasileira:
Deus vos salve esta casa santa (bis)
Onde Deus fez a morada
Onde mora o clice bento
E a hstia consagrada
Depois disso, o axogum, auxiliado por outro og, imolou com uma faca os galos,
enquanto todos cantavam:
Carangolo batula sangue
Sangue na xoro ro
Moasi sauere sangue na xoro ro
Sangue na palangana com maleme tateto
Sangue na palangana com maleme mameto
Em seguida foi a vez das galinhas, mas desta vez com a cantiga:
Sangue mona sa que sa la

coro mo sangue o (bis)


O casal de codornas foi dado ao caboclo, que sacrificou as aves mordendo o
pescoo e tomando do sangue que brotava. Nesse momento era cantada a
cantiga:
Batula batula san
Sangue na xoro ro
Moaci sauere sangue na xoro ro
O sangue das aves maiores foi derramado dentro do alguidar e em seguida no
pote de barro colocado ao lado deste, sendo mexido com uma colher de pau
pela me-pequena. A me-de-santo marcava com o sangue das aves as
tmporas do filho-de-santo "virado" no caboclo, que, a cada animal sacrificado,
emitia seu grito, seu il, saudando a oferenda recebida.
As cabeas e os ps das aves foram colocados num pequeno alguidar, que
depois foi enfeitado com as penas das mesmas.
Terminado o sacrifcio, os animais foram levados cozinha para serem limpos e
cozidos, enquanto outra cantiga era entoada:
Batul sai andando com os ps
Batul sai andando com os ps
As asas, o pescoo, o fgado, o corao e a moela de cada ave, depois de
cozidos, foram oferecidos ao caboclo, as demais partes foram comidas pelos
membros do terreiro, acompanhadas de outras iguarias como milho cozido,
moranga cozida, arroz e farofa.
O alguidar contendo o sangue dos animais, a quartinha com gua, as partes
cozidas dos animais, alm de milho cozido temperado com sal e azeite de
dend colocado numa moranga cozida foram depositados, juntamente com
frutas diversas, aos ps de uma rvore de so-gonalinho existente no terreiro.
Todos os filhos da casa beberam da mistura denominada menga, que, como nos
garantiram, uma bebida muito apreciada por todos.
O Caboclo da Lua permaneceu "em terra" at que as comidas estivessem
cozidas. Conversou com todos, bebeu cerveja e s no danou porque naquela
dia no havia toque.
Em outra ocasio tivemos a oportunidade de v-lo paramentado com um cocar
feito de penas de papagaio, vestindo um bombacho em tecido estampado.
Trazia um atacam (espcie de faixa) amarrado no tronco, terminando num lao
preso s costas. Numa das mos trazia uma lana de ferro e na outra, um galho

de aroeira. Cantou e danou ento gil, garboso e completamente integrado


comunidade do terreiro. J havia sido batizado e, conforme nos foi informado,
seu assentamento j havia sido "firmado".
Os sacrifcios aqui descritos so repetidos com regularidade, geralmente no
intervalo de um ano. Mesmo terreiros que no fazem o batismo conduzem as
cerimnias sacrificiais nos moldes do que aqui foi mostrado. Dificilmente haver
alguma festa que no seja precedida de sacrifcio.
Toque de caboclo Primeiro uma distino: toques ou giras so cerimnias
pblicas peridicas, em que os caboclos vm para "trabalhar", isto , dar
consulta aos necessitados, oferecer conforto aos carentes. Festas so
celebraes pblicas, geralmente anuais, em que os caboclos vm para serem
homenageados, para danar e conviver com seus devotos e amigos, como
ocorre com as festas dos orixs.
Em So Paulo os toques de caboclo podem ser semanais, quinzenais ou
mensais. Em alguns terreiros no tm periodicidade, podendo-se tocar
eventualmente. H pequenas variaes de caso para caso, mas em geral eles
tm essa seqncia: pad (oferenda de farofa com dend para Exu),xir (cantos
em lngua ritual, geralmente do rito angola, para os orixs ou
inquices), Angoroci (espcie de louvor aos caboclos), chegada dos caboclos no
transe ritual, cantos de invocao, intervalo para paramentar os caboclos,
retorno dos caboclos ao barraco com seus cumprimentos e danas e,
finalmente, consultas assistncia.
Os caboclos fumam charutos fumar o atributo indgena por excelncia e
bebem bebidas alcolicas (cerveja, vinho e a bebida ritual jurema), que
costumam compartilhar com seus consulentes. Algumas equedes auxiliam nas
consultas, seja traduzindo algumas expresses ou tomando notas. Nos toques
as pessoas formam filas para a consulta e em algumas casas chegam at a
utilizar senhas. grande a semelhana com uma sesso de umbanda.
A nfase das consultas a cura dos males do corpo, chamando a ateno a
quantidade de idosos entre os consulentes. Alguns trazem velas, outros flores
ou algum outro artefato prescrito anteriormente pelo caboclo. O fato que
todos depositam nele suas esperanas e com ele mantm relao de
cumplicidade. Problemas afetivos, da intimidade ou de ordem material so
tambm abordados, mas secundariamente. Para essas questes parece haver
duas alternativas: procurar entidades da umbanda como exus, pombagiras e
baianos ou recorrer ao orculo do jogo de bzios, que prerrogativa do pai ou
me-de-santo, sem intermedirios. Esta ltima opo sem dvida importante
na estratgia dos terreiros de candombl, seja porque abre caminho para o
ingresso de um novo aspirante, que dever aprofundar seus laos tambm com
os orixs, seja porque gera renda, dado que o jogo de bzios invariavelmente
pago. Os caboclos podem sugerir ao consulente qual seria seu orix, mas
convidando-o a voltar outro dia e jogar bzios com a me-de-santo, a fim de
obter a confirmao sobre o seu "dono de cabea".

Ainda com relao distino entre consulta espiritual com caboclo e jogo de
bzios, vale apontar que o primeiro considerado subordinado ao segundo,
cabendo ao jogo de bzios as decises consideradas mais srias e as
confirmaes. Como nos contou um pai-de-santo:
O caboclo ensina banho, remdio, mas no desfaz um malfeito, ele apenas
alivia. Ele pode dizer o que foi feito, mas no pode tirar. Isso s feito com eb,
depois do jogo de bzios.
A comunicao com os caboclos nos toques atende portanto a pessoas que
buscam respostas imediatas e acessveis, seno gratuitas, a suas aflies.
tambm uma porta de entrada para o jogo de bzios, o qual pode significar um
incio do processo de arregimentao religiosa, uma vez que o adepto em
potencial passa a interagir mais de perto com a me-de-santo, ou ento a
consolidao da condio de cliente.
Festa de caboclo As festas de caboclo acontecem anualmente em data que
varia de terreiro para terreiro, embora alguns prefiram o 2 de julho, segundo a
tradio baiana[4]. So em geral grandes encontros dos quais participam, alm
dos filhos-de-santo da casa, amigos, parentes dos iniciados, clientes,
simpatizantes e convidados de outros terreiros.
Diferente dos toques, as festas no so caracterizadas pelo atendimento ao
pblico, mas sim pelas danas, brincadeiras e pela comida que distribuda ao
final. Nessa ocasio os caboclos no vm para "trabalhar", mas para ser
homenageados.
Segundo a forma que mais se observa, a festa de caboclo iniciada com um
toque aos inquices. Mesmo os terreiros de tradio iorub (queto e ef)
costumam realizar esta parte preliminar do culto com ritmos e cnticos do
candombl angola, reconhecidamente a nao mais prxima dos caboclos,
embora haja terreiros queto que tocam em queto quando os orixs so
homenageados nesta primeira parte da festa de caboclo.
Segundo o costume angola, toca-se primeiro para Pambu Njila-Bombogira-Aluvi
(Exu), com uma oferta de farofa e bebida ou gua, depois para os inquices
masculinos, aproximadamente nesta ordem: Roximucumbe-Incci, Catend,
Gomgobira-Mutacalamb, Cafun-Cavungo, Angor, Tempo, Zzi, Vngi.
Seguem-se os cnticos para os inquices femininos, Matamba-Bamburucema,
Dandalunda, Nzumba, Cucuetu-Cai, encerrando-se com a homenagem a
Lemb e Nzambi.[5]
Na festa ocorrida em 6 de setembro de 1998 no terreiro de candombl angola
Sociedade Beneficente Caboclo Sete Flechas, tambm conhecido como Inzo
Nkisi Mussambu, localizado em Carapicuba, na Grande So Paulo, depois da
seqncia de cantigas aos inquices e antes do incio das homenagens aos
caboclos, ouviu-se a preleo de Tata Tau, o pai-de-santo, que interrompeu o
toque e falou:

Bem-vindos todos. O pessoal de outros terreiros, as visitas, os da umbanda


sintam-se todos em casa. Esta uma festa de caboclos. Mas algum pode
perguntar: "por que esto cantando para inquice?" Ns louvamos primeiro os
inquices por uma questo de espao fsico. Eles so donos desse espao aqui e
por isso ns cantamos para eles antes. Mas caboclos e inquices no tm nada a
ver, eles tm fundamentos diferentes. So duas coisas diversas. Como no
temos um espao separado para cada um, cantamos primeiro para os inquices
e pedimos licena. Ns vamos cantar agora pra caboclo.
O terreiro est todo enfeitado para a ocasio. O barraco est ornado com as
caractersticas bandeirinhas de papel de seda forrando o teto. Folhas, flores e
objetos indgenas decoram as paredes. Num quarto ao lado foi armada a juna,
o quarto do caboclo, povoado de imagens de caboclos e objetos indgenas,
onde esto as comidas preparadas com as carnes dos sacrifcios realizados no
dia anterior, muitas folhas e uma enorme profuso de frutas. A cabana do
caboclo um elemento indispensvel na festa de caboclo, podendo ser
montada, com bambu e folhas de coqueiro, no prprio barraco, quando o
espao o permite, ou fora dele. Nunca faltar a moranga, prato predileto do
encantado, nem o pote de jurema, bebida fermentada preparada com a casca
do arbusto da jurema (Pithecolobium torti), devidamente trazida da Bahia, vinho
doce, mel, ns moscada, gengibre, cravo e canela, ao que alguns terreiros
adicionam sangue dos sacrifcios ou dend, e que em certas casas recebe o
nome de menga.
"Abre-te campo formoso..." Com este verso, de uma cantiga que faz aluso ao
local imaginrio onde os seres encantados habitam, d-se incio chamada dos
caboclos, para mais uma vinda deles ao mundo dos mortais, ao mundo do
candombl.
No importa o local do encontro, se pequeno e modesto, imenso e abarrotado
de smbolos do imaginrio dos terreiros, o mais importante a festa em si,
sinnimo de reunio de pessoas com o fim de louvar, orar e estar na companhia
dos caboclos.
Na abertura, ao som dos atabaques e demais instrumentos de percusso
(xequer, maraca, agog etc.), canta-se:
Abre-te campo formoso (bis)
Cheio de tanta alegria
Cheio de tanta alegria
A atmosfera do terreiro j de muita alegria e, com uma segunda cantiga, os
caboclos so chamados a participar da festa:
E l vem seu boiadeiro
E l vem seu capangueiro

Cheio de tanta alegria


Cheio de tanta alegria
No terreiro Inzo Nkisi Mussambu, a me-de-santo dana rodeada por seus
filhos, que chamam pelo maior caboclo da casa, Sete Flechas, gritando "Xeto
Marrumbaxeto!" Chega o caboclo da me-de-santo com seu il, seu grito
caracterstico. uma grande festa. Um a um os caboclos vo apossando-se de
seus "cavalos" (filhas e filhos-de-santo por eles possudos). Ouvem-se palmas,
salvas, gritos. Batendo compassadamente a mo espalmada na boca, os filhosde-santo emitem um som muito caracterstico, como o que se ouve em filmes
americanos de ndios. O clima de entusiasmo ganha o espao do terreiro num
crescendo.
A entrada em transe ganha todas as atenes e um a um os filhos e filhas vo
se deixando "tomar" por seus encantados. Mas depois de certo tempo ainda
resistem heroicamente ao transe alguns "cavalos", vrios deles demonstrando
por gestos e expresses faciais que no desejam ser "possudos". Aqui observase algo inscrito no cdigo do terreiro, revelando uma dimenso da distribuio
hierrquica do poder religioso no candombl. Os "mais velhos de santo", isto ,
iniciados h mais tempo, demoram um pouco mais a serem possudos. Detm
maior controle do transe, pois conhecem o cdigo da possesso mais
apuradamente, podendo manobrar seus sinais e sabendo "correr" na hora em
que esses sinais se fazem sentir mais agudamente. Com o adiamento do transe,
afirmam sua posio na hierarquia do grupo de culto. Isto faz parte da "cena"
da possesso.
Na tentativa de trazer mais caboclos para o encontro, os ogs, assumindo ares
de superioridade que os caracteriza, pem-se a cantar:
Ainda tem caboclo debaixo da samambaia
Ainda tem caboclo debaixo da samambaia
Debaixo da samambaia
No p da samambaia
Ainda tem caboclo
Os renitentes vo por fim deixando aflorar o encantado. No se pode escapar
ao poder desta cantiga "de fundamento". Quem no quer entar em transe tem
que sair do barraco at passar o perigo.
Esto todos "em terra" agora: caboclos e caboclas, boiadeiros e marujos. hora
de paramentar os encantados. costume levar os caboclos em transe para o
ronc (quarto de recluso) para serem vestidos com trajes completos ou ao
menos serem adornados com os atacans, espcie de tiras de pano amarradas

no tronco, terminadas em laos, de modo a permitir livres movimentos nas


danas. Vestem-nos com tecidos de uma profuso de cores. Cocares de penas e
chapus de vaqueiro adornam as cabeas, dependendo se so caboclos ou
boiadeiros. Alguns trazem nas mos lanas, arco-e-flecha ou chocalhos.
Vestidos, voltam em fila ao barraco, danando a seguinte cantiga:
Tot, tot de maiong
maiongonb (bis)
Danam com o corpo inclinado para frente, com os braos estendidos frente
do corpo, num movimento de vai-e-vem. Os ps acompanham o movimento dos
braos, levando o corpo para a frente. Ao mesmo tempo, cumprimentam os
presentes, dando precedncia s autoridades religiosas presentes, terminando
com os mais simples presentes na platia que se aglomeram no espao do
barraco reservado aos clientes e visitantes.
A precedncia por tempo de iniciao tambm observada no momento em
que os caboclos retornam ao barraco e tambm no momento em que cada um
sada a casa e o pblico presente com suas salvas e cantos de chegada. Um
por um, numa ordem que revela a importncia do tempo de iniciao na
composio da hierarquia dos caboclos, comeando pelo caboclo da me ou
pai-de-santo, seguido dos mais velhos, cada caboclo posta-se na frente dos
atabaques, um joelho apoiado no cho, e canta as cantigas que lhe do
identidade. O caboclo reza sua orao e todos cantam com ele.
Dentre muitas cantigas do vasto repertrio dos caboclos, poderemos escutar:
E boa noite meus senhores
Boa noite minhas senhoras
Sou eu, Sete Flechas que cheguei aqui agora
Ou ainda:
Campestre Verde, a meu Jesus (bis)
Madalena e Maria no p da cruz (bis)
Com sete dias minha me me deixou (bis)
Me deixou numa clareira
Osanha quem me criou (bis)
um xeto , um xet a (bis)

Boiadeiro Trilheiro veio aqui pr vos saudar (bis)


E assim vo cantando e danando no ritmo frentico dos atabaques.
Ouve-se um misto de louvaes sobre as coisas e lugares do Brasil, saudaes
aos orixs ou aluses a Jesus Cristo e santos catlicos, emergindo da todo um
sincretismo presente com certeza nesse culto dos caboclos, os ditos senhores
desta terra.
Como exemplo, citamos alguns cantigas:
E l em Roma tem uma igreja (bis)
E dentro dela tem morador (bis)
L tem um anjo de braos abertos (bis)
E esse anjo Nosso Senhor (bis)
Aqui nesta aldeia
tem um caboclo que ele real
Ele no mora longe
mora aqui mesmo neste cazu
Pisa caboclo aqui nesta aldeia
Mostra o teu sangue que corre nas veias (bis)
Caboclo flecheiro, t s da nao do Brasil
Tu s da nao do Brasil, meu caboclo
Caboclo flecheiro
Mas ele vem pelo rio de Contas
Vem caminhando por aquela rua (bis)
Olha que beleza, seu Lua Nova
no claro da lua (bis)
Caa, caa no Canind
Cura , cura

Caa, caa no Canind


Pena Verde caador
A Juara, dona Juara eu vim te ver
A Juara, dona Juara como vai voc
Pedrinha de um lado
Pedrinha do outro
Pedrinha l na mata
Quem pode mais Deus do cu
Jesus, Maria e Jos
Pedrinha miudinha na aruanda
Lajedo to grande
To grande na aruanda
No somente os ogs puxam as cantigas, mas tambm os caboclos apreciam
faz-lo. Muitas vezes as cantigas trazem um pouco da histria mtica de cada
um, assim:
A Iemanj (bis)
Rainha sereia
S Cabocla do Mar (bis)
S caboclo, s flecheiro
Sindara cui
S Oxossi, s guerreiro
Sindara cui
Eu venho l da mata
Sindara cui
S filho de Iemanj
Sindara cui

Verde e amarelo
Mar do norte e sul
S Cabocla do Mar
Andando no mar azul
Caboclinho da mata virgem
das ondas do mar
S filho da Vizala
Filho da sereia do mar
Apesar da aparente desordem no barraco, os caboclos respeitam-se entre si e
se fazem respeitar por todos os presentes. So criteriosos ao solicitar algo,
mesmo que seja um charuto ou uma bebida, e fazem-no de modo jocoso,
revelando contudo sempre um formalismo, cuja etiqueta faz parte das
exigncias cotidianas do candombl:
dona da casa
Por Deus e Nossa Senhora
D-me o que beber
Seno eu vou-me embora!
Sem beber no fao samba
Sem beber, no sei sambar
Se por um lado existe o respeito mtuo, por outro pode-se estabelecer entre
eles a disputa pela melhor performance nas danas, ou o chamado "sotaque",
em que um chama o outro para uma espcie de desafio de cantigas, duelo
verbal to caro cultura popular nordestina.
Depois hora de danar por sobre uma vara de madeira colocada no cho em
frente aos atabaques. Os caboclos devem danar pulando de um lado a outro
da vara, como se estivessem embriagados, sem tropear ou mover o objeto no
cho. Neste ato ldico, a disputa sempre acirrada e muitas vezes cria uma
verdadeira competio na qual o caboclo do dono da casa dever sempre sairse bem, sob pena de ver posto em dvida seu poder mgico. Afinal, as
entidades do chefe da casa, quer se trate de orix, inquice ou caboclo, so
sempre consideradas as mais poderosas.

Entre outras cantigas podemos citar:


piaba, pula por cima do pau
piaba (bis)
Bate tambor solta a piaba
Caboclo do junco
caboclo da mata
Caboclo na mata corta dend
dend de samba angol
A festa uma profuso de danas, em que um a um os caboclos vo fazendo
seu solo. Os ritmos, muito prximos do samba da msica popular que deles se
originou, so alegres e contagiantes. Os encantados puxam suas cantigas que
so repetidas pelos alabs, demais caboclos, adeptos e simpatizantes da
platia. Fumam charuto o tempo todo e bebem numa cuia um preparado
fermentado, quando no vinho, cerveja ou outra bebida alcolica. Os alabs
tocam os trs atabaques, sempre percutidos com as mos, em ritmos
caractersticos do candombl angola, enquanto os caboclos oferecem sua cuia
aos amigos e autoridades presentes, os quais bebem virando-se de costas para
o caboclo, para que ele no o veja beber, conforme manda a etiqueta dos
tempos em que no se bebia na presena dos "mais velhos".
Mais adiante os caboclos convidam presentes a danar uma ou outra cantiga,
fazendo grande estardalhao:
Se eu era branco eu no era caboclo
Pe a moa bonita pra danar na roda
No se estabelece rigorosamente a durao da festa. O caboclo do dono da
casa autoridade mxima nesse ritual e decidir, na maioria das vezes, quando
deve ser finalizada a festa.
Ao final, um og canta uma cantiga de agradecimento a Deus pela presena
dos caboclos. o deus cristo que lembrado:
Graas a Deus, ora meu Deus
Louvado seja Deus, ora meu Deus
Graas a Deus, ora meu Deus
O dia em que Laje Grande nasceu

ora meu Deus.


O caboclo da dona da casa agradece a todos pela presena. Seguido pelos
outros caboclos, abraa cada um dos presente, e finalmente canta sua
despedida:
Eu j vou, j vou
Eu j vou pr l
O meu pai me chama,
eu sou filho obediente
Eu no posso mais ficar
Novamente a fila dos caboclos precedida por ele e danando, um a um,
cumprimentam a porta do terreiro, o ariax (ponto da fora sagrada do terreiro),
os atabaques, e encaminham-se para o ronc onde so despachados. Antes
sadam os presentes com os abraos caractersticos do candombl, em que se
tocam os ombros alternadamente por trs vezes.
s vezes a sada dos caboclos vai se fazendo aos poucos, retirando-se primeiro
os com menos tempo de iniciao, enquanto os outros continuam danando,
at sobrarem dois ou trs, que insistem em querer ficar:
Eu estava indo deste arraial
Eu j ia embora deste arraial
Resolvi, no vou mais
Todos aplaudem e apoiam a deciso do caboclo, mas j hora da festa terminar
e sempre alguma autoridade do terreiro mostrar ao caboclo que seu tempo
acabou.
Aos poucos os filhos "desvirados" vo voltando ao barraco. Todos esto
cansados, cavalos e ogs. Apesar dos semblantes exaustos de cada um dos
presentes, todos demonstram contentamento. Muitas palavras de alento
tambm foram escutadas dos caboclos. A festa no foi somente canto e dana.
Os caboclos estiveram na terra tambm para trazer mensagens, talvez dos
prprios orixs, ensinaram beberagens para vrios males, assim como deram
conselhos a muitos, estabelecendo um lao de confiana para que se perpetue
a sua imagem de pai e protetor. Mas sobretudo danaram, porque dia de
festa, no de trabalho. H um clima geral de alegria e um sentimento
compartilhado de misso cumprida. Agora vamos comer.
Uma festa termina com comida farta. Arroz, farofa, carnes, saladas so pratos

preferenciais. E muita fruta, pois no h festa de caboclo sem uma profuso de


frutas de todas as espcies: jaca, melancia, melo, laranja, tangerina, abacaxi,
mamo, abacate, banana, fruta-do-conde, caju, carambola, ma e at quiu,
alm de moranga, comida predileta dos caboclos. Refrigerante e cerveja
completam o banquete dos caboclos.
Caboclo, candombl e umbanda Na grande maioria dos terreiros de candombl
de So Paulo, praticamente todos os filhos da casa tm caboclo, com exceo,
evidentemente, dos no rodantes ogs e equedes. Alguns caboclos foram
trazidos diretamente da umbanda, a religio anterior de parte dos adeptos. Na
passagem da umbanda ao candombl, contudo, transcorre certo tempo antes
que o caboclo volte a se manifestar. Somente aps ter o filho-de-santo
aprendido as novas posturas, formas de danar e se expressar caractersticas
do candombl, geralmente na obrigao de um ano, o caboclo "baixa" no
candombl, j tendo assumido mudanas no jeito de falar e no gestual. Muitos,
no entanto, no conheceram a umbanda, comeando a carreira religiosa afrobrasileira diretamente no candombl.
No raramente, outras entidades umbandistas que no o caboclo podem
tambm estar presentes em terreiros de candombl. So os pretos-velhos, as
ciganas, os baianos, os exus da umbanda e as pombagiras. Esta mistura
religiosa to evidente que facilmente justifica ter-se forjado o termo
"umbandombl", usado pelo prprio povo-de-santo para referir-se a terreiros de
candombl com entidades e ritos da umbanda. Por um lado, isto mostra a
identificao simultnea de terreiros com duas modalidades. Por outro,
demonstra que h um pblico que atende a essas duas vertentes. Afinal, os
adeptos das religies afro-brasileiras em So Paulo conheceram primeiro a
umbanda e seus personagens povoam seu imaginrio. Para o paulista, o
candombl dos orixs de certa forma uma experincia cultural recente e sua
compreenso ainda mais difcil, como costumam explicar alguns lderes desta
religio. Mas verdade que a penetrao da umbanda no candombl no se
restringe a So Paulo e outras cidades do Sudeste e do Sul, marcando j uma
presena importante em terreiros de regies do Pas identificadas como
originrias das religies afro-brasileiras tradicionais.
Um ritual religioso afro-brasileiro logo remete imagem de pessoas
incorporadas por espritos, os guias, que oferecem consultas, do conselhos e
resolvem problemas. O candombl de caboclo em So Paulo atende
preferencialmente a um pblico que tambm se identifica com a umbanda, ou
seja, pessoas que esto acostumadas a um trao especfico da religio, a
comunicao verbal com o esprito incorporado. Do ponto de vista econmico,
trata-se de uma demanda evidente: uma populao que busca o servio
religioso, mas no pode pagar o preo do jogo de bzios, que varia hoje entre
trinta e cinqenta reais.
Na passagem da umbanda ao candombl, os terreiros redefiniram vrios
elementos rituais e simblicos, inclusive no mbito do sincretismo catlico, mas
no deixaram de lado o culto ao caboclo. O encontro do culto de caboclo do
antigo candombl com o kardecismo gerou no passado a umbanda. Atualmente,

o caboclo constitui, num outro movimento, um trunfo do novo candombl para


avanar sobre o espao umbandista. Como se a fora renovada do "dono da
terra" estivesse atuando nos movimentos que tm marcado a histria das
religies afro-brasileiras, histria que no estaria por certo concluda, pois
"ainda tem caboclo debaixo da samambaia".

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