O Candomblé de Caboclo
O Candomblé de Caboclo
O Candomblé de Caboclo
"Ela sabe qual a nossa seita? Sabe que somos caboclos e os outros so
africanos?
Ao que responde Sabina:
A senhora deve saber essas coisas. Este templo protegido por Jesus e Oxal e
pertence ao Bom Jesus da Lapa. uma casa de espritos caboclos, os antigos
ndios brasileiros, e no vem dos africanos iorubs ou do Congo. Os antigos
ndios da mata mandam os espritos deles nos guiar, e alguns so espritos de
ndios mortos h centenas de anos. Louvamos primeiro os deuses iorubs nas
nossas festas porque no podemos deix-los de lado; mas depois salvamos os
caboclos porque foram os primeiros donos da terra em que vivemos. Foram os
donos e portanto so agora nossos guias, vagando no ar e na terra. Eles nos
protegem. (Landes, 1967, p. 196).
Hoje, na diferenciao com outras naes de candombl, como queto, jeje,
ijex, ef, angola e congo, fala-se numa nao caboclo[2], mas raramente podese encontrar um candombl de caboclo funcionando independentemente de um
candombl das outras naes. Embora muito associado ao candombl angola, o
rito caboclo j comeava, poca da visita de Landes Bahia, a ser
incorporado tambm a candombls de nao queto.
Na disputa por legitimidade e prestgio, os candombls de caboclos foram
considerados inferiores tanto pelo povo-de-santo como pelos pesquisadores,
que deles escreveram muito pouco. O primeiro trabalho cientfico tratando com
profundidade do candombl de caboclo somente apareceu em 1995, com a
publicao do livro O dono da terra, tese de mestrado defendida na USP pelo
antroplogo baiano Joclio Teles dos Santos. A dissimulao e mesmo a negao
do culto aos caboclos nos terreiros marcados pela ortodoxia nag, entretanto,
mantm-se at hoje, sendo comum a acusao de que em tal ou qual terreiro
queto que no tem caboclo, a me-de-santo ou outra pessoa de prestgio
recebe seu caboclo escondido ou, no mnimo, lhe oferece sacrifcios na mata.
Apesar de considerado inferior, o candombl de caboclo impregnou-se nas
demais naes e por meio delas propagou-se pelo Pas. De seu encontro com o
espiritismo kardecista, que resultou num grande embate tico, nasceu, no Rio
de Janeiro dos anos 30, a umbanda, com o desenvolvimento de ritos, ritmos e
panteo particulares. O velho candombl de caboclo continuou, contudo, com
vida prpria e, num outro movimento, chegou de novo ao Rio de Janeiro e So
Paulo, sempre associado ao candombl de orix e inquice, mas separado da
umbanda. E como tal se mantm e se reproduz.
No candombl de caboclo h predominncia de muitos elementos do
candombl angola, os atabaques so tocados com as mos, as msicas so
cantadas em portugus, com uso freqente de termos rituais de origem banto.
O apelo a uma cultura indgena, quase sempre idealizada, proporciona ao
candombl de caboclo uma valorizao de elementos nacionais, fazendo dele,
na concepo popular, uma religio "brasileira por excelncia". Elementos
simblicos nacionais so ressaltados, como a meno s matas, as cores verde
e amarelo, o sincretismo catlico e a miscigenao racial. Em todo seu
repertrio musical fala-se muito desse amlgama cultural que o Brasil. Esta
matriz cabocla foi inteiramente absorvida pela umbanda, que na forma um
candombl de caboclo, mas que contm uma elaborao tica da vida que
separa o bem do mal nos moldes kardecistas completamente ausente na
tradio cabocla e que fez da umbanda uma religio diferente e autnoma.
Hoje o candombl no mais uma religio tnica circunscrita populao
negra, pois j se espalhou pela sociedade branca abrangente, rompendo
preconceitos e fronteiras geogrficas, inclusive para fora do Pas. Legitimou-se
como mais uma opo religiosa e vem aos poucos garantindo seu espao no
disputado mercado religioso contemporneo. A propagao desta religiosidade
na populosa Regio Sudeste, a partir dos anos 60, deu-se principalmente a
partir dos terreiros umbandistas que a existiam desde os anos 30 e 40.
Numerosos filhos-de-santo da umbanda aderiram aoax da tradio negrobaiana, cuja fora vital era por eles considerada mais forte. A busca mgicoreligiosa da satisfao de anseios do metropolita moderno tornou o candombl
uma religio universalizada, isto , agora aberta a todos. eloqente o caso da
fixao do candombl em So Paulo (Prandi, 1991). Com o orix, o inquice e o
vodum do candombl veio o caboclo do candombl, que ritualmente e
doutrinariamente diferente do caboclo da umbanda.
No contexto da transformao religiosa que trouxe o candombl do Nordeste
para o Sudeste, que ainda encontra-se em curso, os caboclos certamente tm
sido protagonistas decisivos, afinal seu culto foi mantido e est presente hoje
em quase todos os terreiros de candombl, sejam eles de rito angola, queto ou
ef.
Caboclo em terreiro de candombl O candombl de caboclo atualmente
praticado paralelamente ao culto de divindades africanas, estando associado
aos terreiros de inquices, orixs e voduns[3]. Tudo se passa como se houvesse
duas atividades religiosas independentes, podendo mesmo se observar
separao dos espaos fsicos, no se misturando caboclo com orix. Mas o pai
ou me-de-santo obviamente a mesma pessoa, assim como os ogs alabs,
os tocadores de atabaque, e outros sacerdotes. Enquanto o candombl dos
deuses exige um complexo e demorado processo de iniciao, no candombl de
caboclo no h propriamente algo correspondente "feitura de santo". Novios
passam a freqentar os toques, podendo receber o encantado sem nenhuma
preparao preliminar baseada em longo perodo de clausura. Num mesmo
terreiro, h filhos "feitos", iniciados, para orixs-inquices que tambm recebem
seus caboclos, mas possvel observar nmero expressivo de filhos que
recebem caboclo e participam ativamente do candombl de caboclo, mas que
nunca so iniciados para a divindade africana, comportando-se ritualmente nos
toques de orixs como simples abis, iniciantes. Tambm no participam das
cerimnias sacrificiais aos orixs, reservadas aos filhos de orix "feitos". Em
muitos terreiros, contudo, primeiro observa-se a iniciao do filho-de-santo para
o orix, ocorrendo depois, geralmente na obrigao de um ano, a "chamada" do
caboclo, que ento incorpora no novo filho, podendo ser batizado ou no em
cerimnia descrita mais adiante.
Ainda com relao distino entre consulta espiritual com caboclo e jogo de
bzios, vale apontar que o primeiro considerado subordinado ao segundo,
cabendo ao jogo de bzios as decises consideradas mais srias e as
confirmaes. Como nos contou um pai-de-santo:
O caboclo ensina banho, remdio, mas no desfaz um malfeito, ele apenas
alivia. Ele pode dizer o que foi feito, mas no pode tirar. Isso s feito com eb,
depois do jogo de bzios.
A comunicao com os caboclos nos toques atende portanto a pessoas que
buscam respostas imediatas e acessveis, seno gratuitas, a suas aflies.
tambm uma porta de entrada para o jogo de bzios, o qual pode significar um
incio do processo de arregimentao religiosa, uma vez que o adepto em
potencial passa a interagir mais de perto com a me-de-santo, ou ento a
consolidao da condio de cliente.
Festa de caboclo As festas de caboclo acontecem anualmente em data que
varia de terreiro para terreiro, embora alguns prefiram o 2 de julho, segundo a
tradio baiana[4]. So em geral grandes encontros dos quais participam, alm
dos filhos-de-santo da casa, amigos, parentes dos iniciados, clientes,
simpatizantes e convidados de outros terreiros.
Diferente dos toques, as festas no so caracterizadas pelo atendimento ao
pblico, mas sim pelas danas, brincadeiras e pela comida que distribuda ao
final. Nessa ocasio os caboclos no vm para "trabalhar", mas para ser
homenageados.
Segundo a forma que mais se observa, a festa de caboclo iniciada com um
toque aos inquices. Mesmo os terreiros de tradio iorub (queto e ef)
costumam realizar esta parte preliminar do culto com ritmos e cnticos do
candombl angola, reconhecidamente a nao mais prxima dos caboclos,
embora haja terreiros queto que tocam em queto quando os orixs so
homenageados nesta primeira parte da festa de caboclo.
Segundo o costume angola, toca-se primeiro para Pambu Njila-Bombogira-Aluvi
(Exu), com uma oferta de farofa e bebida ou gua, depois para os inquices
masculinos, aproximadamente nesta ordem: Roximucumbe-Incci, Catend,
Gomgobira-Mutacalamb, Cafun-Cavungo, Angor, Tempo, Zzi, Vngi.
Seguem-se os cnticos para os inquices femininos, Matamba-Bamburucema,
Dandalunda, Nzumba, Cucuetu-Cai, encerrando-se com a homenagem a
Lemb e Nzambi.[5]
Na festa ocorrida em 6 de setembro de 1998 no terreiro de candombl angola
Sociedade Beneficente Caboclo Sete Flechas, tambm conhecido como Inzo
Nkisi Mussambu, localizado em Carapicuba, na Grande So Paulo, depois da
seqncia de cantigas aos inquices e antes do incio das homenagens aos
caboclos, ouviu-se a preleo de Tata Tau, o pai-de-santo, que interrompeu o
toque e falou:
Verde e amarelo
Mar do norte e sul
S Cabocla do Mar
Andando no mar azul
Caboclinho da mata virgem
das ondas do mar
S filho da Vizala
Filho da sereia do mar
Apesar da aparente desordem no barraco, os caboclos respeitam-se entre si e
se fazem respeitar por todos os presentes. So criteriosos ao solicitar algo,
mesmo que seja um charuto ou uma bebida, e fazem-no de modo jocoso,
revelando contudo sempre um formalismo, cuja etiqueta faz parte das
exigncias cotidianas do candombl:
dona da casa
Por Deus e Nossa Senhora
D-me o que beber
Seno eu vou-me embora!
Sem beber no fao samba
Sem beber, no sei sambar
Se por um lado existe o respeito mtuo, por outro pode-se estabelecer entre
eles a disputa pela melhor performance nas danas, ou o chamado "sotaque",
em que um chama o outro para uma espcie de desafio de cantigas, duelo
verbal to caro cultura popular nordestina.
Depois hora de danar por sobre uma vara de madeira colocada no cho em
frente aos atabaques. Os caboclos devem danar pulando de um lado a outro
da vara, como se estivessem embriagados, sem tropear ou mover o objeto no
cho. Neste ato ldico, a disputa sempre acirrada e muitas vezes cria uma
verdadeira competio na qual o caboclo do dono da casa dever sempre sairse bem, sob pena de ver posto em dvida seu poder mgico. Afinal, as
entidades do chefe da casa, quer se trate de orix, inquice ou caboclo, so
sempre consideradas as mais poderosas.