Para Não Esquecer de Lembrar - A Imprensa Negra Do Século XIX (1833-1899)
Para Não Esquecer de Lembrar - A Imprensa Negra Do Século XIX (1833-1899)
Para Não Esquecer de Lembrar - A Imprensa Negra Do Século XIX (1833-1899)
(1833-1899)i
Ana Flvia Magalhes Pinto *
Resumo: Ao reconhecer a existncia da imprensa negra brasileira do sculo XIX e sistematizar
um conjunto de oito jornais, o trabalho apresentado neste artigo se inscreve nos estudos sobre os
processos de construo identitria de pessoas negras livres em meio vigncia do sistema
escravista e seus desdobramentos imediatos. Ainda que localizados em espaos e perodos
diversos Rio de Janeiro (1833), Recife (1876), So Paulo (1889 e 1899) e Porto Alegre (18921897) , esses peridicos vieram baila em momentos marcantes para a histria poltica brasileira
e trouxeram representaes, seno inversas, conflitantes. Entre as estratgias argumentativas,
empreenderam o aproveitamento dos valores da democracia moderna, dos ideais iluministas e
liberais para coloc-los a servio do combate discriminao racial e do estabelecimento de uma
democracia efetiva. Desse modo, colocaram em xeque as efetivas condies de realizao das
promessas da igualdade moderna no Brasil oitocentista.
Palavras-chave: sculo XIX, imprensa negra, identidades.
Abstract: When recognizing the existence of the press black Brazilian of the century XIX
and to systematize a group of eight newspapers, the work presented in this article he/she
registers in the studies on the processes of identities construction of free black people amid
the validity of the system escravists and its immediate unfoldings. Although located in spaces
and several periods - Rio de Janeiro (1833), Recife (1876), So Paulo (1889 and 1899) and
Porto Alegre (1892-1897) -, those newspapers came to he/she dances it in moments strong for
the Brazilian political history and they brought representations, or else inverse, conflictives.
Among the argumentative strategies, they undertook the use of the values of the modern
democracy, of the iluminists ideal and you liberate to place them to service of the combat to
the racial discrimination and of the establishment of an effective democracy. He/she gave
way, they placed in check the effective conditions of accomplishment of the promises of the
modern equality in the 1800Brazil.
Keywords: century XIX, presses black, identities.
71
A origem dessa fatura pode ser visualizada nas opes e nos recortes metodolgicos que
orientam a execuo das pesquisas. De uma parte, o reconhecimento alcanado pelas aes do
Movimento Negro no sculo passado serviu de estmulo gerao de narrativas que lhes
garantiram lugares um tanto distantes do esquecimento. De fato, inegvel a importncia de
feitos como os jornais negros paulistas do incio da dcada de 1910; a Frente Negra Brasileira,
nos anos de 1930; o Teatro Experimental do Negro, em sua atuao dentro e fora dos palcos,
que se inicia em 1944 e se estende em anos seguintes; as produes do Movimento Negro
Unificado (MNU), potencializadas por sua fundao em 1978, a exemplo do Jornal do MNU,
bem como tantos outros fatos. Somado a isso, quando outros trabalhos se voltam para
perodos anteriores, tem-se o prevalente interesse por certas experincias e formas de
resistncia desempenhadas pelos africanos e seus descendentes submetidos ao regime
escravista no Brasil na condio de cativo.
Para alm do reconhecimento da legitimidade de vrios desses estudos, as lacunas
deixadas muito em virtude da restrio a essas reas de interesse tm de ser admitidas.
Inmeras ocorrncias permanecem espera de um exame detido, o qual poder, at mesmo,
revelar outras conexes entre diferentes momentos e segmentos do grupo sociorracial negro.
At porque, tendo em mira o que se passou na ltima centria, o historiador Flvio Gomes
observa que:
De uma maneira geral, as lutas e as organizaes negras no Brasil do sculo XX tm
sido analisadas sob uma perspectiva a-histrica. Acusados de fracos, inconsistentes e
sem continuidade, associaes e movimentos sociais negros no Brasil republicano
foram desenhados em muitos estudos com um processo de luta anti-racista: ora
desdobramento linear de um abolicionismo inacabado, ora tradio romantizada das
lutas escravas, tipo quilombos. (...) Enfatiza-se, assim, uma viso de vazios e/ou
descontinuidades, que supostamente s haveria nestes movimentos e no em outros,
como por exemplo, nas lutas operrias e nos partidos polticos.iv
72
Daquela admirao aos dias atuais, encontrei ou fui encontrada por outros
peridicos com caractersticas muito prximas, contudo, publicados por pessoas diferentes,
em pocas e locais igualmente distintos. No fim das contas, foram reunidos oito ttulos, que,
apesar dos intervalos, compreendem um perodo que vai de setembro de 1833 ano do
surgimento de O Homem de Cr, primeiro peridico encontrado a agosto de 1899 quando
foi publicado O Progresso , aparecendo em vrias localidades do pas. Ao todo, esses jornais
negros respondem seguinte ordem de lanamento: no Rio de Janeiro (RJ), em 1833,
lanaram-se O Homem de Cr ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente; de
Recife (PE), em 1876, surgiu O Homem: Realidade Constitucional ou Dissoluo Social; na
So Paulo (SP) de 1889 circulou A Ptria Orgam dos Homens de Cr; da capital gacha,
Porto Alegre (RS), no ano de 1892, deu-se incio a publicao de O Exemplo; e finalmente,
tambm em So Paulo no ano de 1899 apareceu O Progresso Orgam dos Homens de Cr.v
Todos esses jornais remetiam a contextos onde estavam reunidos autores e leitores negros
unidos pelo interesse da circulao de informaes de interesse do grupo sociorracial.
Curiosamente, muitos dos recursos argumentativos e das caractersticas distinguidas
nesses ttulos oitocentistas seriam encontradas por Roger Bastide reproduzidas nos jornais
negros paulistas fortemente propagados nas dcadas de 1920 e 1930. Bastide assim descreve
sua amostra:
Em primeiro lugar, raramente, uma imprensa de informao: o negro letrado l o
jornal dos brancos, uma imprensa que s trata de questes raciais e sociais, que s
se interessa pela divulgao de fatos relativos classe da gente de cor. (...) Esses
jornais procuram primeiramente agrupar os homens de cor, dar-lhes o senso da
solidariedade, encaminh-los, educ-los a lutar contra o complexo de inferioridade,
superestimando valores negros, fazendo a apologia dos grandes atletas, msicos,
estrelas de cinema de cor. , pois, um rgo de educao. Em segundo lugar, um
rgo de protesto. (...) Outro carter comum a toda a imprensa afro-americana a
importncia dada vida social, s festas, aos bailes, as recepes, aos nascimentos,
casamentos e mortes a exigncia sociolgica de mostrar seu status social e sua
honrabilidade.vi
73
A partir das linhas gerais desse quadro, recorro sugesto de Antonio Candido viii
presente em suas reflexes sobre a formao do sistema literrio brasileiro e tomo as
categorias autor, obra e pblico, na qualidade de momentos da produo comunicativa,
como estratgia de explicao do conceito de imprensa negra. A noo de pertencimento,
sobretudo, tende a orientar essas trs instncias de acordo com suas especificidades. Nesse
sentido, o reconhecimento de um jornal como manifestao da imprensa negra passa pelos
laos desse com o contexto em que se insere.
S que, tal como observado no debate sobre as expresses da imprensa brasileira, a
depender dos objetivos, da ocasio e das perspectivas, esses requisitos de pertena no
precisaram ou precisam ser contemplados em sua totalidade para que um impresso se
afirmasse como tal. Mesmo porque, a histria e a historiografia da imprensa brasileira
fizeram-se muitas vezes a partir de obras capengas em alguns desses pontos sem que essas
no tivessem de ser descartadas ou consideradas ilegtimas.
Desse ponto de vista formal, imprensa negra, do mesmo modo que imprensa brasileira,
imprensa abolicionista, imprensa operria ou imprensa feminina, somente uma expresso
composta em que o adjetivo posposto ao substantivo sugere algumas possibilidades de
entendimento, s quais tambm se conectam questes relativas autoria, ao pblico e aos
objetivos jornais feitos por negros?; para negros?; veiculando assuntos de interesse das
populaes negras?.
Ao apresentar um panorama dos jornais da imprensa negra no sculo XIX, como
objetivo central, a investigao garantiu a veiculao de fragmentos de representaes
forjadas por homens negros livres ou at mesmo libertos acerca de questes caras ao seu
cotidiano. Lanando-me nesse duplo desafio, pude consolidar a prpria justificativa do
trabalho, ou seja, contribuir para a eliminao de algumas lacunas que envolvem o
conhecimento das trajetrias histricas dos descendentes de africanos em terras brasileiras.
Grosso modo, o que desenvolvi corresponde ao resultado de problematizaes voltadas tanto
para as representaes sociais que circulam nas falas dos jornais quanto para os processos de
construo das identidades ali registradas, como expresses culturais historicamente urdidas.
Nesse artigo, interessa-me, pois, salientar esquematicamente semelhanas, diferenas,
continuidades e, sobretudo, assinalar uma variedade dos recursos argumentativos utilizados
pelos publicistas nas prticas de combate ao racismo, inscrita nesses momentos iniciais do
jornalismo negro brasileiro. Proponho, com isso, o reconhecimento de um marco
relativamente mais antigo acerca da impulso da imprensa negra no Brasil a partir de ttulos
74
pouco ou nada conhecidos; e com estas palavras comear a escrever um micro-captulo sobre
essa longa histria dos descendentes de africanos no Brasil.
Com efeito, essa histria poderia ser iniciada com as seguintes palavras: Foi num
sbado de 1833, dois anos aps a abdicao de D. Pedro I (o Sete de Abril) e a criao da
Guarda Nacional, tambm chamada de milcia cidad. O cenrio era o da intensa agitao
em torno dos valores da democracia moderna que marcou o perodo regencial. Vivia-se um
momento de reafirmao prematura da cidadania brasileira. O primeiro jornal da imprensa
negra no Brasil, o pasquim O Homem de Cr, surge a 14 de setembro, da Tipografia
Fluminense de Paula Brito um homem negro instalado na capital do Imprio , pondo em
xeque as efetivas condies de realizao dessas promessas.
Em seu cabealho, reproduzido nos cinco nmeros do jornal, de setembro a novembro
de 1833, o que se v uma apresentao esquemtica de um debate presente em todos os
outros ttulos: no lado esquerdo, a transcrio do pargrafo 14 do artigo 179 da Constituio
de 1824, que diz: Todo o Cidado pode ser admitido aos cargos pblicos civis, polticos e
militares, sem outra diferena que no seja a de seus talentos e virtudes; no direito,
literalmente, reproduz-se um trecho de um ofcio de Manuel Zeferino dos Santos, presidente
da Provncia de Pernambuco, datado em 12 de junho de 1833: O Povo do Brasil composto
de Classes heterogneas, e debalde as Leis intentem mistur-las, ou confundi-las sempre
alguma h de procurar, e tender a separar-se das outras, e eis um motivo a mais para a eleio
recair nas classes mais numerosas.ix
Ao longo dessa proposta oficial de alcance nacional, estimulado pelo temor de os
homens de cor chegarem ao controle de importantes espaos polticos e pblicos, o
presidente da provncia prope a diviso da classe dos cidados de acordo com a tonalidade
da pele, de modo a essa pautar a distribuio diferenciada e hierarquizada de cargos pblicos.
O objetivo era a instalao de uma forma mais eficaz de controle do poder, em que, no caso
da Guarda Nacional, as altas posies no poderiam ser ocupadas pelos homens de cor, a
classe mais numerosa, por isso ameaadora... Os pasquins ocuparam-se de combater tal idia,
bem como outras to caprichosas e discriminatrias quanto.
Localizado na extensa trama de resistncia ao cotidiano hostil gente de ascendncia
africana, o que se v em O Homem de Cr pode ser conectado a feitos anteriores, a exemplo
da Revolta do Bzios no fim do sculo XVIII, fundamentada em atos comunicativos,x bem
como se associa a realizaes seguintes, entre as quais os prprios pasquins negros
posteriores. De fato, a colonizao lusitana ao lado de sua parceira preferida, a escravizao
75
76
estratgias forjadas por pessoas negras no intuito de se esquivarem dos tentculos da ordem
escravista. O prprio desenvolvimento dos espaos urbanos brasileiros manteve estreita
relao com as possibilidades de ascenso social do contingente de livres e libertos.
Idealizadas como regies fecundas para os sonhos de liberdade de muitos, as cidades da
colnia brasileira recebiam neste perodo grande nmero de libertos e livres de origem
africana, j que abriam caminho para o emprego em ocupaes urbanas, propiciavam maior
contato com livres e, por conseguinte, maior possibilidade de afastamento do passado
escravo.xvi
Dado marcante nos ttulos trabalhados, os conflitos gerados pelas mltiplas associaes
entre o racismo nomeado ali ora como preconceito de cor, ora como preconceito de raa
e o desrespeito cidadania dos indivduos negros, seguidos pela insatisfao dos atingidos
por tais arbitrariedades, figuram como a razo de ser de todas as folhas. Sob a vigncia ou no
do regime escravista, nos tempos da Monarquia ou da Repblica, a Nao brasileira nunca
apareceu nas pginas desses jornais oitocentistas como espao acolhedor para os descendentes
de africanos. Em vez disso, entre 1833 e 1899, emergem representaes cada vez melhor
ajambradas que atestam o acirramento das mazelas dirigidas ao grupo sociorracial negro.
Nas Constituies de 1824 e 1891, a universalidade da lei, a igualdade dos direitos civis
entre os cidados e o mrito, como elementos formadores, invalidavam a estratificao social
e a discriminao por conta de raa ou cor dos indivduos ainda que, na primeira, por conta
da legitimidade da propriedade, a escravizao absolutamente dirigida a pessoas negras
permanecesse intocada. Aqui outro dado importantssimo: as leis no eram instrumento feito
para ser levado a srio em todos os momentos. As situaes para tal teriam de ser criadas e
legitimadas inmeras vezes. No por acaso, grande parte da argumentao formulada nas
pginas dos peridicos negros destinou-se a essa empreitada. Fosse pelo carter moderno e
progressista que os ideais europeus vinham impingir ao cenrio brasileiro de atraso, fosse
pela necessidade de retirar o verniz da civilidade que recobria os atos arbitrrios comuns ao
sistema de privilgios vigente, os contra-argumentos acionados pregavam o respeito s letras
que visavam a instituir a ordem no pas.
No obstante esse dado comum, as formas de apresentao variaram bastante. Mais
restritos aos detalhes das disputas polticas hegemnicas entre liberais exaltados e moderados,
os pasquins fluminenses do perodo regencial no lograram avaliaes mais profundas;
embora, verdade seja dita, demonstrassem ateno ao que se passava em outras provncias do
Imprio, como Pernambuco. Em termos formais, os pasquins do perodo regencial
77
A imputao, alm de vaga, termina por nivelar os interesses da populao negra livre s
pretenses dos restauradores portugueses, como se no tivessem origens e diferenas bem
delimitadas. O trecho chama para si o descrdito, uma vez que o protesto emitido em O Homem
de Cr, mesmo com o marcado arrebatamento liberal exaltado, ignorado naquilo que o d
sentido sendo alvo de depreciaes da parte dos moderados. At a possibilidade de Francisco de
Paula Brito, membro do Partido Exaltado, ter influenciado a orientao do peridico, como
reconhece Hlio Vianna, no serviu de garantia, como tambm no livrou o tipgrafo de,
naquele perodo, ter seu estabelecimento depredado sob o argumento de ser restaurador.
Em Tempo de Histrias - Publicao do Programa de Ps-Graduao em Histria
PPG-HIS/UnB, n.9, Braslia, 2005
78
Agora, se o postulado por aquele pasquim e admitido por Vianna estiver correto, as
idias emitidas em O Homem de Cr se tornam, por motivos outros, mais instigantes, uma vez
que as demandas dos cidados negros, prximas ou no aos ideais dos liberais exaltados,
teriam sido usadas como plataforma de ao de um grupo no negro e portador de demandas
diversas. Isso tambm serve para potencializar sua relevncia naquele contexto, mesmo que
por fundamentos indignos.xxi
Censuras desse tipo tambm foram lanadas por Evaristo da Veiga a respeito do
Brasileiro Pardo. Porm, a partir de uma perspectiva inversa assumida no caso anterior. A
Aurora Fluminense sustenta ou prefere fazer acreditar que a redao do pasquim recaa sobre
o proprietrio da Tipografia Paraguassu, o branco portugus David da Fonseca Pinto, para
com isso deslegitimar a autoridade da folha:
Em Pardo e Brasileiro quis disfarar-se Sr. David da Fonseca Pinto, dignssimo
redator que foi do Poaqu, do V. Patriota, e ultimamente do Caramuru. Aquele que
tanto inventivou e encheu de injrias os de cabelo insubordinado, como ele dizia,
aquele que tanto simpatizou com os festejos de maro pela feliz chegada, e que
combateu, com Lusitano patriotismo a indignao brasileira, ento envolvida, quem
agora, torcendo o cabelo, e afetando indignao contra os garrafistas, se apresenta
na cena, como pardo e antigo exaltado, hoje converso para o bom partido, e saudoso
do homem que nos deixou.xxii
79
Para completar, a populao negra era temida, antes de tudo, por ser numerosa. Ao
longo da primeira metade do sculo XIX, a cidade do Rio de Janeiro contou com a maior
populao escravizada urbana do hemisfrio, bem como uma expressiva quantidade de
80
cidados negros, livres e libertos de tal maneira que vrios viajantes que estiveram no Rio
na primeira metade do sculo XIX estimaram que cerca de 2/3 da populao da cidade era de
cor.xxv Uma trama complexa que, em seus desdobramentos posteriores dcada de 1850,
motivou Sidney Chalhoub a cham-la de a cidade negra:
Com efeito, os escravos, libertos e negros livres pobres da Corte haviam institudo uma
cidade prpria, arredia, alternativa, ao longo de dcadas de luta contra a instituio da
escravido no sculo XIX. Esta cidade negra se fez atravs de movimentos e
racionalidades cujo sentido fundamental, independentemente ou no das intenes dos
sujeitos histricos, foi inviabilizar a continuidade da instituio da escravido na
Corte.xxvi
81
eles haviam sido nomeados por considerao de seus talentos e virtudes, conforme
preceitua a Constituio do Imprio.xxviii
82
83
84
85
Repblica, vinha a pblico anunciando ter o nico fim de prestar auxlio desinteressado
raa a que pertencemos.xli O trem da histria modernizadora, cada vez mais cheio de vages,
precipitava desejos de mudanas intensas, instava novos posicionamentos aos sujeitos sociais,
ainda que a paisagem passasse por alteraes bem mais lentas. Tais expectativas, ao deparar
com a conservao do estado de coisas, resultavam em expresses de desgosto, frustrao e
indignao, tais como esta de O Progresso:
Passou-se o perodo mais angustioso para os homens pretos. Surgiu a aurora de 13
de maio, data de imorredoura glria de muitos pretos que foram os arautos da
abolio como Luiz Gama, Jos do Patrocnio, Quintino de Lacerda, Rebouas e
tantos outros.
Proclamou-se a Repblica, o governo da igualdade, da fraternidade e quejandas
liberdades. No movimento republicano, contavam-se muitos pretos e mulatos (que
vem a dar no mesmo) que prestavam e prestam servios inolvidveis ao novo regime.
Espervamos ns, os negros, que, finalmente, ia desaparecer para sempre de nossa
ptria o estpido preconceito e que os brancos, empunhando a bandeira da igualdade
e fraternidade, entrassem em franco convvio com os pretos, excluindo apenas os de
mau comportamento, o que seria justssimo.
Qual no foi, porm a nossa decepo ao vermos que o idiota preconceito em vez de
diminuir cresce; que os filhos dos pretos, que antigamente eram recebidos nas
escolas pblicas, so hoje recusados nos grupos escolares; e que os soldados pretos
que nos campos de batalha tm dado provas de herosmo, so postos oficialmente
abaixo do nvel de seus camaradas; que para os sales e reunies de certa
importncia, muito de propsito no convidado um s negro, por maiores que sejam
seus merecimentos; que os poderes pblicos, em vez de curar do adiantamento dos
pretos, atiram-nos margem, como coisa imprestvel?xlii
86
dirigindo impressos com esse fim. Todavia, a imprensa abolicionista, no que a definia, no
necessariamente esteve em sintonia com as questes levantadas pela imprensa negra.
Por ora, diria ainda que esses momentos iniciais da imprensa negra no Brasil
demonstram que, a despeito de inmeros contratempos entre os quais o prprio escravismo
e seus instrumentos afins , indivduos e grupos negros aqui formularam falas prprias e
tornaram-nas pblicas. Ainda que no tenham alcanado simultaneamente todo o territrio
nacional, esses impressos so parte do esforo coletivo de controlar os cdigos da dominao
e subvert-los. Nas palavras de Frantz Fanon, falar poder usar certa sintaxe, possuir a
morfologia de uma ou outra lngua, mas , sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de
uma civilizao.xliii Uma vez engolfadas pelo sistema colonial, coube s populaes africanas
dispersadas pelo mundo se posicionar. Posicionamo-nos.
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Este artigo corresponde a uma sntese de minha dissertao de mestrado em Histria pela Universidade de
Braslia (UnB), com o ttulo De pele escura e tinta preta: a imprensa negra do sculo XIX (1833-1899),
defendida em setembro de 2006, sob a orientao da professora doutora Eleonora Zicari Costa de Brito, com
bolsa do CNPq.
*
Mestre em Histria pela Universidade de Braslia
ii
Utilizo o termo negra(o) nos contextos de referncia populao descendente de africanas(os) e a seus feitos,
em detrimento das variaes atuais disponveis sobre esses. Em algumas ocasies, sirvo-me do termo afrobrasileira(o). No entanto, nos momentos devidos, mantenho os termos utilizados nos jornais.
iii
Entre os vrios trabalhos existentes, destacaria alguns: BASTIDE, Roger. A Imprensa Negra do Estado de So
Paulo. In: BASTIDE, R. Estudos afro-brasileiros. So Paulo: Perspectiva, 1973; DOMINGUES, Petrnio Jos.
Negros de almas brancas? a ideologia do branqueamento no interior da comunidade negra em So Paulo, 19151930. Estudos Afro-Asiticos, ano 24, n. 3, 2002; FERNANDES, Florestan. A integrao do negro na sociedade de
classes. 3.ed. So Paulo: tica, 1978; FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). So
Paulo: FFLCH/USP, 1986; MOURA, Clvis. Histria do Negro Brasileiro. So Paulo: tica, 1992 e MOURA,
Clvis. Formas de resistncia do negro escravizado e do afrodescendente. In: MUNANGA, Kabengele (org.).
HISTRIA do Negro no Brasil o negro na sociedade brasileira: resistncia, participao e contribuio. Braslia:
Fundao Cultural Palmares, 2004; SILVA, Jnatas Conceio da. Vozes quilombolas: uma potica brasileira.
Salvador: EdUFBA; Il Aiy, 2004; SIMES PIRES, Antnio Liberac Cardoso. Associaes de Homens de Cor
Imprensa negra, movimentos negros e ideologias sociais (1915-1937). In: SALGUEIRO, Maria Aparecida
Andrade (org.). A Repblica e a questo do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Museu da Repblica, 2005; SOUZA,
Florentina da Silva. Afro-descendncia em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autntica, 2005.
iv
GOMES, Flvio. A nitidez da invisiblidade: experincias e biografias ausentes sobre raa no Brasil republicano.
In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). A Repblica e a questo do negro no Brasil. Rio de Janeiro:
Museu da Repblica, 2005, p. 49.
v
Brasileiro Pardo. Rio de Janeiro, Typographia Paraguassu, n. 1, 21 de outubro de 1833 (Obras Raras,
Biblioteca Nacional); O Cabrito. Rio de Janeiro, Typographia Miranda & Carneiro, n. 1, 7 de novembro de
1833; n. 2, 20 de novembro de 1833 (Obras Raras, Biblioteca Nacional); O Exemplo. Porto Alegre, n. 1, 11 de
dezembro de 1892 n. 52, 11 de dezembro de 1893 (Coleo particular de Oliveira Silveira); O Homem
Realidade Constitucional ou Dissoluo Social. Recife, Typographia do Correio do Recife, n. 1, 13 de janeiro de
1876 n. 12, 30 de maro de 1876 (APEJE Hemeroteca: DJ 027/ J30, Jornais Diversos); O Homem de Cr.
Rio de Janeiro, Typographia Fluminense de Brito, n. 1, 14 de setembro de 1833; n. 2, 28 de setembro de 1833
(Obras Raras, Biblioteca Nacional); O Lafuente. Rio de Janeiro, Typographia Paraguassu, n. 1, 16 de novembro de
1833 (Obras Raras, Biblioteca Nacional); O Mulato ou O Homem de Cr. Rio de Janeiro, Typographia
Fluminense de Brito, n. 3, 16 de outubro de 1833 n. 5, 4 de novembro de 1833 (Obras Raras, Biblioteca
Nacional); A Ptria Orgam dos Homens de Cr. So Paulo, n. 2, 2 de agosto de 1889 (Obras Raras, Biblioteca
Nacional); O Progresso Orgam dos Homens de Cr. So Paulo, Typografia Soler, n. 1, 24 de agosto de 1899
(Obras Raras, Biblioteca Nacional).
vi
BASTIDE, Roger, op. cit., p. 130.
vii
Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8.ed. So Paulo: T. A. Queiroz & Publifolha, 2000 (Grandes
nomes do pensamento brasileiro).
viii
Idem, ibidem.
ix
O Homem de Cr. Rio de Janeiro, Typographia Fluminense de Brito, n. 1, 14 de setembro de 1833, p. 1.
x
Cf. MATTOS, Florisvaldo. A comunicao social na Revoluo dos Alfaiates. 2.ed. Salvador: Assemblia
Legislativa do Estado da Bahia: Academia de Letras da Bahia, 1998.
xi
Cf. MOURA, Clvis. Formas de resistncia do negro escravizado e do afrodescendente. In: MUNANGA,
Kabengele (org.). HISTRIA do Negro no Brasil o negro na sociedade brasileira: resistncia, participao e
contribuio. Braslia: Fundao Cultural Palmares, 2004.
xii
JODELET, Denise. Um domnio em expanso. In: JODELET, Denise. (org.) As representaes sociais. Rio de
Janeiro: Ed. Uerj, 2001, p. 17.
xiii
CHARTIER, Roger. A histria hoje: dvidas, desafios e propostas. Estudos Histricos. Rio de Janeiro, vol. 7, n.
13, 1994. Disponvel em: www.cpdoc.fgv.br/revista/asp/dsp_edicao.asp?cd_edi=31. Acessado em: julho de
2004, p. 9.
xiv
Uma das vrias leituras nesse sentido se encontra em REIS, Joo Jos & SILVA, Eduardo. Negociao e Conflito
a resistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.
xv
Entre os jornais estudados, no encontrei a ocorrncia de algum redator que estivesse submetido escravido.
A imprensa negra oitocentista foi feita por cidados negros, conforme obrigava a lei.
xvi
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravido e direito civil no tempo de Antonio Pereira
Rebouas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, p. 47.
88
xvii
SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. 4.ed. (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p.
182.
xviii
MATTOS, Hebe Maria. Escravido e cidadania no Brasil monrquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
xix
VIANNA, Hlio. Contribuio histria da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1945, p. 219.
xx
O Indgena Brasileiro. Rio de Janeiro, Tipografia de Miranda e Carneiro, n. 10, 9 de novembro de 1833
(Microfilme, Biblioteca Nacional), p. 2
xxi
Sobre os comentrios de Hlio Vianna, caberia mais uma ressalva: embora os pasquins comentados pelo
historiador Homem de Cr, Brasileiro Pardo, Crioulinho e O Cabrito guardem considerveis diferenas
entre si, esse invalida em todos a possibilidade de terem sido produzidos por pessoas negras.
xxii
Aurora Fluminense. Rio de Janeiro, Tipografia Americana, volume 6, n. 833, 25 de outubro de 1833, p. 3550.
xxiii
Aurora Fluminense. Rio de Janeiro, Tipografia Americana, volume 6, n. 791, 10 de julho de 1833, p. 3368.
xxiv
REIS, Joo Jos & SILVA, Eduardo. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, So Paulo, n. 28,
dezembro de 1995-fevereiro de 1996m p. 27-28.
xxv
KARASCH apud CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade uma histria das ltimas dcadas da escravido na
corte. So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 270.
xxvi
Idem, ibidem, p. 185.
xxvii
REIS, Joo Jos & SILVA, Eduardo, op. cit., p. 35.
xxviii
O Homem Realidade Constitucional ou Dissoluo Social. Recife, Typographia do Correio do Recife, n.
1, 13 de janeiro de 1876, p. 1.
xxix
Idem, ibidem.
xxx
Idem, ibidem.
xxxi
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Imprio. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de
(org.). Histria da vida privada no Brasil: Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 83.
xxxii
Idem, ibidem.
xxxiii
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). Apndice. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). Histria da vida
privada no Brasil: Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 474 e 479.
xxxiv
O Homem Realidade Constitucional ou Dissoluo Social. Recife, Typographia do Correio do Recife, n.
3, 27 de janeiro de 1876, p. 2.
xxxv
Idem, ibidem.
xxxvi
MAIA, Clarisse Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 18651915. Recife, 2001. Tese (Doutorado em Histria), Universidade Federal de Pernambuco, p. 24.
xxxvii
Idem, ibidem, p. 34.
xxxviii
O Homem Realidade Constitucional ou Dissoluo Social. Recife, Typographia do Correio do Recife, n.
4, 3 de fevereiro de 1876, p. 2.
xxxix
Diferentemente do atual procedimento utilizado na imprensa, em O Exemplo, ocorrncias de suicdio no
apenas so notificadas, como tambm se apresentam informaes detalhadas sobre os falecidos. Existem ao
menos dois registros na amostra analisada. No nmero 38, l-se: Suicidou-se na tera-feira, 29 do passado, o
cidado Bello Antonio da Silva, estabelecido com casa de secos e molhados perto do Hospcio de Alienados. O
infeliz cidado, que para cometer esse ato de desespero utilizou-se de um revlver, disparando-o no olvido, deixa
seus filhos e viva em difceis condies de existncia (O Exemplo, n. 38, 3 de setembro de 1893, p. 2). Dez
nmeros depois, outro caso: Suicidou-se no sbado noite, atirando-se de bordo do vapor que ia para a
Margem, a jovem Maria ngela, residente no alto da Caridade. Ignoram-se os motivos que a levaram a esse ato
de desespero (O Exemplo, n. 48, 15 d3 novembro de 1893, p. 3).
xl
O Exemplo, n. 20,30 de abril de 1893, p. 1.
xli
A despeito de suas diferenas, ao que parece, essas duas empreitadas da imprensa negra em So Paulo
mantiveram certa relao. Essa possibilidade sugerida pela publicao em O Progresso de uma nota de
falecimento de Arthur Carlos, em 11 de agosto. O ex-redator de A Ptria era saudado como um prezado amigo e
companheiro de lutas. O Progresso informava sua inteno de publicar uma pequena biografia do companheiro,
mas isso no havia sido possvel naquele nmero em virtude do atraso em que o material chegou redao.
Todavia, prometia apresent-la na edio seguinte.
xlii
O Progresso, n. 1, 24 de agosto de 1899, p. 3 grifos meus.
xliii
FANON, Frantz. Pele negra mscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983 (Coleo Outra Gente, v. 1), p. 17.
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