Tese Adriana Lopes
Tese Adriana Lopes
Tese Adriana Lopes
Unicamp
Instituto de Estudos da Linguagem
2010
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Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp
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Lopes, Adriana Carvalho.
L881f
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Tese aprovada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutora em Lingstica no
Curso de Lingstica do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas, pela Comisso formada pelos professores:
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AGRADECIMENTOS
Este texto resultado de um trabalho de cinco anos. Porm, no posso dizer que ele
conseqncia, apenas, de um esforo individual. Muito pelo contrrio, a minha pesquisa e
o meu texto so o fruto de contribuies de diferentes pessoas que conheci nas mais
distintas cidades em que vivi ao longo deste perodo. Pessoas que transformaram muitas
idias em semente plantada. graas a elas que agora esta tese est a para o que der e vier!
A cada uma delas quero expressar o meu muito obrigada.
Meu primeiro agradecimento se destina ao Rajan, meu orientador, no s pelo seu
apoio, mas sobretudo pela sua aposta em mim. O Professor Rajan sempre me deu total
liberdade para desenvolver meu trabalho. E foi essa liberdade que me possibilitou trilhar o
caminho de um trabalho transdisciplinar que mais do que um compromisso terico, tem um
compromisso poltico com os sujeitos estudados. at difcil encontrar palavras para
agradecer ao querido Rajan por toda a sua confiana e amizade ao longo deste processo.
A minha passagem pelo Departamento de Estudos Afro-Americanos da
Universidade Califrnia, Berkeley, foi uma experincia nica e enriquecedora, porm
difcil. Desde o incio de minha vida em Berkeley senti na pele a arbitrariedade dos
essencialismos identitrios que existem por trs das mais variadas formas de racismo. Com
certeza, a racionalizao e a reflexo sobre esse confuso sentimento aconteceu graas
orientao (sempre em forma de longas conversas) com o Professor Percy Hintzen. Por ter
aberto as portas no s da Universidade de Berkeley, mas da prpria Califrnia, agradeo
ao Professor Percy.
No campus daquela universidade, encontrei vrias pessoas que estudavam msicas
que assim como o funk carioca so amplamente marginalizadas em seus respectivos Pases.
Esse encontro no aconteceu por um acaso. Foi a Professora Jocelyne Guilbault que abriu
as portas do seu curso sobre Estudos da Msica Popular para mim. Por ter lido com tanta
ateno e questionado inmeros pontos do meu trabalho e, alm disso, por ter me
proporcionado o encontro com outros estudantes que se dedicam as diversas manifestaes
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Aprendi muito com Samuel Arajo, que gentilmente me acolheu como aluna especial na
Faculdade de Msica da UFRJ.
Com a professora e grande amiga Adriana Facina aprendi tantas coisas, que at
difcil falar. Mas o mais importante foi descobrir com ela como conciliar pesquisa e
militncia poltica. Com Cludia Duarcha, minha Claudinha, aprendi a ser funkeira. Ns
trs viramos um tipo de coletivo do mundo funk. Meninas, muito obrigada, pois esta tese
tambm fruto de tudo aquilo que compartilhamos to intensamente o trabalho do nosso
trio!
A todos os funkeiros e as funkeiras que dividiram um pouco de suas vidas comigo.
Aos meninos e as meninas da Mar, em especial ao Bonde dos Magrinhos, o meu muito
obrigada por ter praticamente me introduzido no mundo funk. MC Dandara, a doce
guerreira Idaulina, por ter me mostrado a fora feminina que ela traz para a sua carreira,
para o seu cotidiano e para as pessoas que a cercam.
A todo pessoal da APAFunk e do Movimento Funk Cultura que criaram o
verdadeiro sentido desta tese. Ao Leonardo, ao Jnior, ao Teko, ao Pingo, ao Marquinho,
ao William, ao Galo, ao Dollores, ao Duda, ao Tuzim, ao Lasca, ao Marcelo Nego, ao
Juninho, ao Nil e todos aqueles artistas de funk que me apresentaram um outro Rio de
Janeiro, muito mais caloroso e interessante do que aquele que, como forasteira, sempre via
em cartes postais. Aos militantes do Direito Pra Quem (DPQ) que tambm fizeram parte
deste processo. A todo o pessoal de Acari, ao poeta e amigo Deley e ao querido Delrio
Black o meu muito obrigada. Com eles tambm virei carioca, assim como esta tese!
comunidade do Leme, Fabinha e Clara, por terem se tornado minhas irms. Aos
meus amados amigos de minha casa candanga, Erika, Clo, Marcus, Renata, Luiz, Juju e
Bia por fazerem parte de minha vida!
minha me, Thely, e a minha v, Therezinha, mulheres de tanta fibra e meus
maiores exemplos, meu muito obrigada. Ao Meu pai, Luiz Antnio, que sempre quis uma
filha estudiosa, in memorian. Ao meu querido irmo, Jnior, presente em todos os
momentos de meu caminho, mesmo quando a distncia fsica era grande. Ao marido de
minha me, Diego, por ter se tornado um grande amigo. minha Ceio pelo seu carinho e
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por ser minha famlia. O meu muito obrigada a essa minha pequena famlia por acreditar
em mim e me ajudar a tornar mais esse sonho possvel.
Ao meu amor Bruno no s por ser a parte essencial de minha vida, mas por ter, ao
final desta tese, me presenteado com o melhor e maior amor: o nosso Miguelzinho, que em
breve danar ao som do funk, como tantas outras crianas...
Finalmente, gostaria de registrar meu agradecimento Fundao de Amparo
Pesquisa do Estado de So Paulo, pela bolsa de doutorado concedida, sem a qual este
trabalho no teria sido possvel. Agradeo tambm Comisso de Aperfeioamento de
Pessoal de Nvel Superior, pela bolsa sanduche nos Estados Unidos, sem a qual a
experincia inesquecvel de Berkeley no teria acontecido.
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RESUMO
O funk carioca hoje uma das maiores manifestaes culturais de massa do Brasil e est
diretamente relacionado aos estilos de vida e experincias da juventude de periferias e
favelas. Trata-se de uma performance hbrida resultante de um intenso processo de
apropriao, transformao, nacionalizao e comodificao de ritmos da dispora africana.
Considerando que as identidades so performances polticas de linguagem, este trabalho
objetiva investigar como os atos de fala que definem os significados de raa, gnero e
territrio constituem a identidade do funk tanto da prtica musical, quanto de seus
sujeitos. Situado em um campo de estudos transdisciplinar, este estudo conjuga a anlise
lingstica e a interpretao etnogrfica. Por meio de certa vivncia nos bastidores do funk
carioca, como tambm de um dilogo com os atos de fala encenados pelos artistas e pelas
artistas de funk, mostro como essa prtica musical prope uma nova leitura sobre a
cartografia social da cidade do Rio de Janeiro, que tanto desafia o racismo velado da
sociedade brasileira, quanto reinventa novas identidades de raa e gnero.
Palavras-chave: funk carioca; performance; identidade; raa; gnero.
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ABSTRACT
Funk carioca is a one of the largest cultural manifestations of Brazil and is fundamentally
related to the lifestyles and experiences of youth from Rio de Janeiro's periphery and slums,
known as favelas. Funk carioca is a hybrid performance resulting from an intense process
of
appropriation,
commodification
and
nationalization
of
African
Diaspora
rhythms. Whereas identities are linguistic constructions, which is to say that identities are
performances, the aim of this research is to investigate how the speech acts that define the
meanings of race, gender and territory constitute the identity of funk carioca. Situated in a
transdisciplinary field, this study combines linguistic analysis and ethnography. Through
some backstage experience in funk carioca, but also through an interpretation of speech
acted out on stage, this work shows how funk carioca proposes a new reading of the social
map of Rio de Janeiro, which challenges a veiled racism in Brazilian society and reinvents
new identities of race and gender.
Keywords: Funk carioca; performance; identity; race; gender.
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SUMRIO
Agradecimentos..................................................................................................................... ix
Resumo................................................................................................................................ xiii
Abstract ................................................................................................................................ xv
Introduo ............................................................................................................................ 19
Captulo 1
Funk carioca e dispora africana.......................................................................................... 25
1a Cena: O funk dos subrbios e da Baixada ................................................................... 25
2a Cena: funk e arrasto ................................................................................................... 33
3a Cena: funk, sexo e trfico ............................................................................................ 45
Captulo 2
Funk: uma cultura, uma linguagem, uma fora.................................................................... 59
No dia em que o Parlamento cantou... ............................................................................. 59
Uma Pragmtica da Identidade ........................................................................................ 69
Contextualizando: identidade, globalizao e consumo .................................................. 69
Desconstruindo: Identidade, representao e performance.............................................. 71
Pode o subalterno ser ouvido? Princpios de uma etnografia performativa..................... 78
Captulo 3
De funk de raiz a movimento poltico e cultural.................................................................. 85
Bastidores do funk: um trabalho e uma inveno de mercado......................................... 87
Empresrios e MCs: Excluso e hierarquia do mercado fonogrfico .............................. 91
Em cena: inveno da tradio Funk de Raiz............................................................... 97
As Rodas Polticas.......................................................................................................... 101
Funk e voto: um relato sobre a arte nas fronteiras da cidadania .................................... 104
A Favela como Espao do Funk..................................................................................... 110
Vidigal, Rocinha, Cidade de Deus, Borel... A Favela tem nome prprio!..................... 113
Captulo 4
Vai descendo at o cho: sexualidade e gneros no funk carioca ................................. 129
Funk: o assunto sexo ................................................................................................... 132
Bastidores: a posio das mulheres e as relaes de poder na indstria funkeira.......... 136
Em cena: uma guerra dos sexos ..................................................................................... 143
O Jovem Macho Sedutor ............................................................................................ 144
Novinha .......................................................................................................................... 146
Fiel versus Amante......................................................................................................... 147
As cachorras ............................................................................................................... 150
Sou feia, mas t na moda: a cor e o preo da sensualidade ........................................ 158
Eles aprenderam a respeitar o meu rebolado: a Lacraia e os bondes .................... 161
Novo Feminismo no Funk?............................................................................................ 165
Palavras Finais ................................................................................................................... 171
Referncias bibliogrficas .................................................................................................. 179
18
INTRODUO
Por canais
19
20
Situado num campo de estudos transdisciplinar, este trabalho tem como objetivo
construir um dilogo com ou uma narrativa sobre a identidade dessa manifestao local
da dispora africana o funk carioca. Mas o que seria isso? Uma msica? Uma linguagem?
Uma cultura? Qualquer um dos trs, desde que compreendssemos que a msica no ,
apenas, um som; tampouco linguagem e a cultura so estruturas autnomas e universais. O
funk carioca uma msica, uma linguagem e uma cultura, pois sobretudo uma prtica
social historicamente situada: uma forma de cantar, de expressar, de construir, de vivenciar
e de sentir o mundo.
Entendemos que a identidade do funk, assim como as identidades sociais so
performances. Porm, nesse caso, o termo performance tem um sentido generalizado: tratase tanto daqueles atos de fala (lingstico-corporais) encenados nos palcos, como tambm
os atos de fala que constituem os sujeitos e a vida cotidiana (Derrida, 1982; Goffman,
2001). Como mostrarei ao longo deste trabalho, no h uma verdade por trs do ato ou
uma essncia por trs das mscaras. Portanto, esse trabalho uma performance (ou uma
prtica) que dialoga com outras performances (ou com outras prticas). Importa
compreender as performances que circulam e estruturam o mundo funk: tanto aquelas que
constituem os seus bastidores, quanto aquelas que formam a cena funk.
Vale destacar, de sada, que a interpretao que ora apresento resultado de um tipo
de leitura transdisciplinar. Como ensina o etnomusiclogo Seeger (2008, p. 21), uma
disciplina , at certo ponto, um dilogo. uma conversa com pessoas mortas e com
pretensos ouvintes que ainda iro viver. Por exemplo, um trabalho que estivesse inserido
na tradio disciplinar da lingstica estabeleceria um dilogo com outros lingistas: com
aquilo que eles j disseram (e dizem) sobre esse campo disciplinar e seus respectivos
objetos de estudo. Porm, a leitura que aqui represento (ou melhor, o texto que aqui
performatizo) no resultado de uma conversa que respeite essa fronteira disciplinar.
Primeiramente, o meu foco de interesse no um objeto de uma disciplina
especfica, mas sim um problema ou um tema de estudo o funk carioca. Assim,
estabeleo um dilogo com aqueles sujeitos que produziram conhecimento sobre tal tema,
no importando, desse modo, em que campo disciplinar eles esto situados
esto
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CAPTULO 1
FUNK CARIOCA E DISPORA AFRICANA
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possvel que um fato cultural saia do Bronx, o bairro negro e pobre de Nova
York e chegue a afetar um milho de suburbanos do Rio sem passar por qualquer veculo
25
da mdia? Tal pergunta o enunciado que abre uma reportagem1 do jornal Folha de S.
Paulo sobre a primeira etnografia dos chamados bailes funk da cidade do Rio de Janeiro,
realizada pelo antroplogo Hermano Vianna, em meados dos anos de 1980. Raramente
noticiado pela mdia corporativa e pouco conhecido pela elite branca dos bairros nobres
dessa cidade, nesse perodo, o hip hop, produzido inicialmente em solo estadunidense, foi
batizado, ressignificado e disseminado como funk carioca nas periferias da cidade do Rio
de Janeiro. Segundo algumas matrias jornalsticas publicadas nos anos de 1980 e a referida
etnografia de Hermano Vianna, o funk carioca j reunia, naquela poca, cerca de um
milho de pessoas nos 700 bailes que existiam espalhados pelos clubes e pelas quadras de
esporte das zonas norte e oeste do Rio de Janeiro os bairros mais populares da cidade.
Nos anos de 1980, as poucas matrias sobre funk veiculadas nos jornais de circulao local
e nacional apresentavam, invariavelmente, essa mesma indagao. Assim como Vianna, os
jornalistas tambm se perguntavam: como poderia uma manifestao cultural
completamente fora dos modismos burgueses, supostamente brancos, determinados pelo
eixo Rio/So Paulo (consideradas as capitais culturais do Pas), transformar-se em uma das
preferncias de grande parte dos jovens favelados e suburbanos (negros em sua grande
maioria) da cidade carioca?
Para Vianna (1988), essa migrao da periferia da cidade de Nova York para a
periferia da capital do Rio de Janeiro coloca em xeque a lenda de que o eixo Rio de
Janeiro/So Paulo dita e homogeneza, de uma vez por todas, os costumes e os gostos do
restante do Pas. Nas palavras do prprio autor,
Esse estranho consumo de msica importada vem, pelo menos (alm de fazer
a festa) provar uma coisa. Os grandes meios de comunicao de massa esto
longe de controlar a realidade cultural de nossas grandes cidades. O mundo
funk carioca escapa totalmente do que afirmam as teorias apocalpticas (...) da
indstria cultural. Muitos autores afirmaram e afirmam que essa indstria
estaria produzindo uma realidade cultural homognea em todos os pases. (...)
A existncia, no Rio, de bailes dedicados ao hip hop um sinal de
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1
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tambm constroem o hibridismo cultural que constitui aquilo que poder vir a ser
considerada (ou no) uma prtica ou uma cultura local/nacional. Nesse sentido, concordo
com Vianna (1988), quando esse autor argumenta que o funk carioca resultado de um
processo de hibridizao semelhante ao que a elite brasileira promovia nos anos de 1920,
com o movimento antropofgico s me interessa aquilo que no meu (p.101), ou seja,
preciso devorar as culturas importadas e reelabor-las com autonomia. Considerando essa
mesma perspectiva, Vianna (1988) destaca que o hip hop deglutido e reinventado no
Rio de Janeiro de uma maneira indita.
No entanto, essa comparao deve ir alm e levar em considerao no s os
distintos momentos histricos desses dois movimentos culturais de hibridizao, como
tambm os diferentes sujeitos que promovem tal mistura. Assim, em primeiro lugar,
preciso pontuar que enquanto o movimento antropofgico consagrou-se em 1930, poca em
que a nao brasileira estava sendo inventada como o Pas da mistura e da mestiagem
racial, os hibridismos culturais do funk carioca so encenados em um contexto no qual j
no h mais um projeto de construo da nao. Dito de outro modo, o funk carioca
constitui-se num momento em que a antiga imagem de Brasil como um Pas da
democracia racial e social comea a ser substituda por um retrato de uma nao
altamente fragmentada e permeada por conflitos.
Em segundo lugar, necessrio estar atento para os distintos sujeitos/agentes que
promovem essas misturas. Ao passo que o movimento antropofgico era constitudo por
uma elite branca que deglutia a cultura de uma determinada elite branca europia, o funk
carioca formado por jovens negros e pobres que deglutem, fundamentalmente, os
27
textos sonoros de uma cultura marginalizada produzida por outros jovens, tambm negros
e pobres.
Por essa via, compreendo que o funk carioca seria uma prtica local daquilo que
alguns intelectuais negros chamaram de manifestaes da dispora africana (cf. Hall, 2003;
Gilroy, 2001). Isso explicaria, por exemplo, uma outra questo levantada na etnografia de
Hermano Vianna. Como argumenta esse antroplogo, os jovens funkeiros, assim como
Oswald de Andrade, interessaram-se por tudo aquilo que era do outro, mas esse outro
no seria um outro qualquer. Os funkeiros no foram procurar a sua msica no
Paquisto ou na Indonsia, mas sim na cultura afro-americana (p.102). Vianna no explica
o porqu dessa escolha, pois seria necessrio buscar nessas manifestaes uma
ancestralidade africana original comum entre a msica eletrnica negra norte-americana e o
ritmo dos subrbios negros do Rio de Janeiro para estabelecer uma identificao entre
ambos (p.109). Porm, como pretendo mostrar, no necessrio uma busca por origens
para realizar a ligao entre essas manifestaes culturais, pois essas so prticas
diaspricas que tm como princpio no uma marca homogeneizante, mas sim um princpio
esttico/poltico que funciona como fonte de inspirao para a construo das mais
diferentes prticas musicais negras, adaptveis as suas prprias realidades locais.
A partir dos anos de 1970, comea a ser desenhado, no mapa global, um mercado
transatlntico para a cultura pop negra. Nela, a msica passa a ocupar um lugar central,
servindo de matria-prima para produo de novas identidades negras em torno de todo
globo2. Segundo Gilroy (2001), essa msica deslocada de suas condies originais de
existncia alimentou uma irradiao cultural negra, bem como promoveu uma nova
metafsica da negritude elaborada e instituda em outros lugares dentro de espaos
clandestinos e alternativos, estruturados em torno de uma cultura expressiva dominada pela
msica (p.175). Assim, compreendo que o hip hop faz parte dessa irradiao cultural
negra. Trata-se de uma linguagem diasprica disseminada atravs da msica e
intrinsecamente relacionada com a construo de identidades de jovens negros habitantes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Por essa via, podemos entender como as lojas de discos, as rdios e os clubes seriam um tipo de arquivo
popular disseminadores dessa linguagem popular negra (Gilroy, 1996).
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Assim, poderamos dizer que apesar de prticas musicais jovens como, por exemplo, o funk, o reggae
jamaicano, o samba-reggae na Bahia serem construes locais de representaes culturais juvenis
originariamente anglo-saxs, no exato afirmar que esses pases seriam o centro dessas culturas juvenis.
Como mostra Ari Lima (2002), num contexto global, a msica para os negros um smbolo afro-diasprico
que dispensa centro-periferia. Assim, a despeito dos aspectos etnomusicolgicos locais, tais prticas musicais
poderiam ter se originado na Jamaica, em terras anglo-saxs ou no Brasil.
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ou hip hop no Brasil pensam sobre as suas prprias prticas, separar o funk do hip hop
apaga certa historicidade negra comum que essas prticas culturais encenam, cada qual
sua maneira.
Em primeiro lugar, como j destaquei, o hip hop faz parte de uma tradio negra
diasprica, no se reduzindo, apenas, a uma nica noo homegeneizante do que venha a
ser hip hop.
movimento e a diferena. Nesse sentido, funk carioca uma ressignificao local dessa
cultura hip hop, assim como o reggueton em boa parte da America Latina, o raggamuffin
no Caribe, o Kuduro em Angola, etc. Em segundo lugar, essa separao possibilitou um
certo apagamento da questo racial nos estudos e na compreenso do funk carioca. Um
exemplo desse silenciamento da questo racial o estudo pioneiro sobre funk carioca de
Hermano Vianna (1988).
Chamo a ateno para as reflexes produzidas por esse antroplogo, pois foi tal
estudo que, de alguma maneira, forneceu visibilidade para o funk na mdia corporativa em
um momento inaugural. Nos anos 1980, dentre as oito matrias sobre funk veiculadas em
jornais impressos, trs tematizam a etnografia de Hermano Vianna. Porm, ainda que o
aspecto racial fosse apagado nessa voz de autoridade, os significados raciais aparecero,
implicitamente, em duas outras matrias dessa mesma poca, na qual o funk comparado
com um outro ritmo negro, considerado uma manifestao legitimamente nacional o
samba.
Antes de destacar tais matrias, vale esclarecer algumas questes sobre a cultura hip
hop. O graffiti, o basquete, o break e o rap (ritmo e poesia) so alguns dos elementos que
constituem tal cultura. Porm, o rap (ritmo e poesia), segundo Rose (1994), sempre tivera
mais fora dentro dessa cultura hip hop. No por acaso que o rap ganhou maior
visibilidade e tornou-se um dos principais elementos que se disseminou por outras
periferias do mundo. Essa forma de narrar cantando ou de cantar narrando composta
fundamentalmente por dois sujeitos: o mestre de cerimnia, chamado de MC, aquele que
canta e improvisa e o Disk-Jockey, chamado de DJ, que constri a batida e o ritmo
eletrnico do rap.
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Nos primeiros anos de existncia do funk no Rio de Janeiro, havia poucos MCs de
funk carioca. Os MCs entraro em cena somente nos anos 1990, produzindo msicas em
portugus. Assim, dois foram os sujeitos que adquiriram visibilidade nos anos 1980: os DJs
e os danarinos dos bailes funk. Assim, essas duas matrias desse perodo destacam esses
dois personagens. Uma das matrias veiculadas no Caderno de comportamento do Jornal
da Tribuna em 13/09/1989 traz o seguinte titulo, As batidas do corao suburbano. Na
reportagem, o jornalista apresentava aquele que, posteriormente, tornaria-se no s um dos
mais populares DJs do funk carioca, como tambm um dos principais empresrios dessa
prtica musical DJ Marlboro. No incio da matria, o baile de balano apresentado
como funk e ao mesmo tempo comparado ao samba e ao carnaval nos seguintes termos:
A voz dos subrbios j no mais do samba, agora ela est no vinil. que h algo
alm dos pagodes, na Baixada e nos subrbios. o funk, ou falando em portugus
claro, os bailes de balano. S quem j foi a um destes bailes que sabe a catarse
coletiva que uma bateria eletrnica e alguns efeitos sonoros provocam. Na verdade,
os bailes so muito parecidos com as nossas festas de carnaval.
A msica funk nessa matria a arte do DJ, a bateria eletrnica e os efeitos
sonoros. Cabe destacar que o funk tocado nesse perodo no o mesmo que,
tradicionalmente, reconhecido por crticos musicais como funk afro-americano. Esse
ltimo compreendido por esses mesmos crticos como uma das origens das diversas
formas de hip hop (Cf. Vincent, 1995). As msicas selecionadas, tocadas, mixadas e
sampleadas por esses DJs cariocas eram fundamentalmente o hip hop produzido na regio
da Flrida, nos Estados Unidos, chamado de Miami Base, por exemplo os grupos 2 Live
Crew, Cuccie Crew e Gigolo Tony. Segundo o estudioso de funk norte-americano Rickey
Vincent (1995, p.279), os raps desses grupos so um tipo de msica eletrnica resultante da
confluncia da batida quente e sensual do funk afro-americano com a batida tambm
quente e sensual dos ritmos negros caribenhos. Assim, essa msica, ao chegar na terra
do samba e do carnaval, parece encontrar um solo frtil para a sua reinveno e
disseminao. No por acaso que, em tal reportagem, a matria-prima do DJ, o vinil,
passa a ser ouvida como a nova voz dos subrbios e a performance dos danarinos como
uma catarse semelhante ao nosso carnaval.
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smbolos do estilo e do orgulho negro que foi disseminado pelo movimento afro-americano
nesse perodo. Tais bailes deixaram de acontecer no Caneco, quando essa casa passou a
ser considerada o palco nobre da Msica Popular Brasileira MPB. Transferidos, ento,
para os subrbios, os bailes foram renovados. O estilo Black norte-americano j no
prevalecia nos bailes de subrbios em meados dos anos 1980. Porm, isso no quer dizer
que os significados raciais no continuassem ali presentes. Tais significados foram
reinventados, medida que os danarinos (ou os funkeiros) danavam o som do hip hop,
misturando passos de break com movimentos de outros ritmos negros, considerados
nacionais, como o jongo e o samba. Ainda que, nesse momento, no houvesse funk cantado
em portugus, o processo de transformao do hip hop em funk carioca j comeava a
acontecer. A criatividade de DJs e danarinos era a marca das festas, na qual a dispora
africana era mais uma vez reencenada com novas misturas e novos elementos.
Por fim, cabe resumir que o funk, nesse perodo, veiculado unicamente nos
cadernos de cultura e de comportamento de jornais de circulao local e nacional. Nesses
textos, o funk tratado pela mdia corporativa como a festa e a diverso dos subrbios
desconhecidas pelo pblico da Zona Sul. Porm, esse discurso ir mudar radicalmente nos
anos 1990, quando o funk e o funkeiro sero transformados em notcias constantes nos
cadernos policiais desses mesmos jornais, como mostro a seguir.
5"#$%&"'#)*&+#%#"11".67-##
Nos anos 1990, o funk torna-se cada vez mais popular, principalmente, entre as
camadas mais pobres da populao carioca. Multiplicam-se os nmeros de bailes e entram
em cena os sujeitos que foram definitivos para a construo da identidade prpria desse
gnero musical, os MCs. A partir dessa poca, o funk comea a ser cantado em portugus.
As letras refletem o dia-a-dia das favelas e bairros pobres, ou fazem exaltao a elas
(muitos desses raps surgiram de concursos de rap promovidos dentro das comunidades,
como destacarei no captulo 3 desta tese). Nesse momento, o funk comea tambm a cruzar
as fronteiras simblicas da cidade do Rio de Janeiro, atraindo jovens de classe mdia para
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os chamados bailes de comunidade bailes que acontecem em favelas. O funk passa a ser
tocado tambm em locais da Zona Sul.
Todavia, junto com o expanso do funk, cresce um racismo inconfessvel, na forma
de um preconceito musical. Se nos anos 1980, o funk era veiculado em cadernos de cultura
e de comportamento dos jornais, nos anos 1990, este passar a ocupar, principalmente, os
cadernos policiais desses mesmos jornais. Segundo Herschmann (2000, p.180), o jovem
negro da favela ou o funkeiro vai sendo apresentado opinio pblica como um
personagem maligno/endemoniado e, ao mesmo tempo, paradigmtico da juventude da
favela, vista como revoltada e desesperanada.
Um acontecimento foi crucial para que tal imagem dos funkeiros ganhasse fora: os
chamados arrastes . Vale destacar que esse termo foi o nome dado pela mdia para uma
suposta invaso de uma das praias mais famosas do Rio de Janeiro por centenas de
jovens funkeiros, habitantes de favelas, que, segundo os jornais, s estavam l para saquear
os banhistas de classe mdia. Como j destaquei, o funk no teve incio com o arrasto,
mas esse evento acelerou o seu processo de popularizao, arremessando os jovens das
favelas para o centro do cenrio miditico. Tal evento, amplamente noticiado e estudado
por crticos culturais (cf. Herschmann, 2000; Ydice, 1997; Arce, 1997), tornou-se uma
espcie de marco no imaginrio coletivo da histria do funk e da vida social da cidade.
Pretendo, aqui, destacar um aspecto nas matrias sobre o funk e o arrasto que, de
alguma maneira, nos permite compreender como os significados raciais so silenciados e
articulados na construo da imagem da cidade do Rio de Janeiro. interessante notar
como essas notcias sobre os funkeiros considerados o novo pnico ou o novo medo
do Rio de Janeiro vieram, muitas vezes, acompanhadas de mapas da cidade, que
propunham identificar as favelas de provenincia desses jovens e alertar os leitores sobre
quais seriam as reas de risco na cidade e nas praias. Destaco, portanto, fragmentos
dessas narrativas do discurso jornalstico, que parecem tecer uma espcie de cartografia do
medo, intrinsecamente relacionada com a racializao dos espaos e das identidades
jovens na cidade do Rio de Janeiro.
Uma das matrias veiculadas no Jornal Folha de S. Paulo em 28/03/1992 tem como
ttulo Funkeiros vo s ruas para manter bailes e trata de um protesto dos funkeiros, no
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centro da cidade, contra o fechamento de bailes. No entanto, o que chama ateno nessa
notcia a confeco de um mapa que indica determinadas localidades, como mostro a
seguir.
Esse mapa tem como ttulo O Cenrio Funk: onde acontecem os bailes e os
arrastes e o fio condutor de sua narrativa uma organizao dos espaos da cidade, que
delimita e constri a trade, funk-favela-arrasto, to presente no discurso jornalstico da
poca. At mesmo o prprio tema da matria um protesto pblico dos funkeiros
apagado, medida que esse evento localizado e significado como mais um elemento que
contribui para a mencionada cartografia do medo. A legenda, que faz ler o mapa,
coloca lado lado os locais dos bailes e dos arrastes e, no centro desses eventos, o local do
protesto.
Como mostra De Certeau (2008), os mapas no so reflexos de uma espacialidade
exterior, mas so atos de fala que fundam e organizam uma espacialidade com suas
possveis trajetrias. Assim, um mapa faz ver os lugares e, nesse movimento, delimita as
trajetrias permitidas, em contraposio quelas que so proibidas. Portanto, parece-me que
tal mapa faz ver o funk e as favelas para aquele interlocutor que, supostamente, no os
conhece. No entanto, esse fazer ver vem acompanhado pela indicao de uma trajetria,
35
pois o objetivo dessa cartografia (in)formar, para esse mesmo interlocutor, a delimitao
de certos locais como proibidos onde o perigo do arrasto dos jovens das favelas
sempre iminente.
Essa delimitao fica mais explcita ainda em outro mapa da notcia Movimento Funk leva
desesperana veiculada no Jornal do Brasil em 25/10/1992. Nesse texto, os funkeiros so
localizados e comparados com os jovens cara-pintadas que lutaram pelo impeachment
do ento Presidente, Fernando Collor de Mello. Segundo essa matria, enquanto os jovens
cara-pintadas com as cores da Bandeira Brasileira encenam um show de democracia
pelas ruas do Pas, os funkeiros, com as suas caras naturalmente pintadas, so
significados como uma juventude sem perspectiva e que, como o ttulo da matria sugere,
leva o Brasil desesperana. No centro da notcia apresentado um mapa que mostra A
diviso da areia, como mostro a seguir.
Como o prprio ttulo indica, o mapa constri uma diviso e alerta os leitores sobre
as areias prximas s favelas, portanto o local que deve ser evitado. Abaixo do mapa,
traado o perfil do funkeiro. Diferentemente do perfil desse sujeito que, nos anos 1980,
36
aparece implicitamente nos jornais, nos anos 1990, esse perfil comea a ser amplamente
enunciado como uma estratgia para criminalizar tanto o funk quanto as favelas. Aqui o
funkeiro no s o jovem desempregado e de baixo poder aquisitivo que aprecia uma
prtica musical desconhecida pela Zona Sul, mas o morador de favela que gosta de
enlatados de terror e violncia e tem como heris artistas de funk e traficantes das
comunidades onde moram aqui o paralelismo artista de funk/traficante no por
acaso.
37
38
com aqueles outros locais racializados e imaginados como o perigo. Portanto, mais do
que uma mera descrio, esses mapas so um chamado que poderia ser legendado da
seguinte maneira: Ateno leitor, perigo! Jovens favelados e insubordinados por perto!"
Aps esse perodo, o medo do funk continuamente reatualizado. Essa prtica
musical estar quase sempre relacionada a algum ato ilcito e seus artistas sero ligados ao
chamado trfico de drogas. Os ttulos de matrias veiculadas nos cadernos policiais dos
jornais O Globo e O Dia, desse perodo, ilustram essa viso, como mostro a seguir.
Firma acusada de furtar energia e fazer exorcismo em baile funk
(O Dia 20/08/1993)
Funkeiros apedrejam nibus e ferem 3
(O Globo, 10/08/1993)
Funk Carioca: de James Brown ao Comando Vermelho!!
(O Dia, 23/04/1994)
Funkeiros tentam estupro
(O Dia, 26/08/1994)
Juiz manda apurar apologia ao trfico nos bailes funk
(O Globo, 13/06/1995)
Rap a nova arma do Comando Vermelho
(O Globo, 11/06/1995)
Febre Funk j matou 80
(O Dia, 12/09/1996)
Tanto o pblico quanto os artistas do funk passam a ser definidos como os
inimigos pblicos nmero um. Dito de outro modo, diante da diversidade de aes
criminosas cometidas por eles exorcismo, apologia, estupro, apedrejamento , esses
sujeitos so construdos como a causa para diversos males sociais. O baile funk ser
sempre ligado a alguma ao criminosa curiosamente, esse tipo de associao ocorrer
mesmo se o mencionado crime ocorrer fora do baile funk. Matrias que quantificam o
nmero de mortos e crimes na sada de bailes funks sero uma constante no s nos anos
39
1990, como tambm na primeira dcada dos anos 2000, como mostrarei mais adiante. Por
hora, vale destacar uma das matrias veiculadas no jornal O Globo em 18/02/1996,
intitulada Trs mortos e seis feridos na sada de baile funk.
Trs pessoas morreram e seis ficaram feridas a bala anteontem noite na sada de
um baile funk na quadra da Escola de Samba Imprio Serrano, em Madureira.
Testemunhas contaram aos policiais que os tiros foram disparados por trs desconhecidos
num taxi Chevette, de placa anotada. Os feridos foram socorridos em duas ambulncias do
Corpo de Bombeiros e levados para o Hospital Carlos Chagas. (...) Ricardo Rufino
baleado nas costas morreu no calado da Avenida Ministro Edgard Romero, em frente ao
numero 33, a menos de 20 metros da cabine do 9 BPM (Rocha Miranda), onde havia
apenas um soldado (...) O comandante da 9 BPM (Rocha Miranda), tenente-coronel Cesar
Pinto, entregar hoje requerimento ao Comando da Policia da Capital (CPC) solicitando a
interdio dos bailes funks da quadra da Imprio Serrano. (negrito no original)
Acontecendo ou no no interior do bailes funk, so essas as imagens morte,
violncia, assassinato que sero freqentemente associadas ao funk dos subrbios e das
favelas. Note-se que o termo funk grifado em todo o corpo desse texto jornalstico, como
uma maneira de destacar para o seu leitor que no se trata de um assassinato qualquer
cometido por trs desconhecidos. Nesse caso, o verdadeiro algoz parece ser o baile funk.
Em tais notcias, o funk um caso de polcia, portanto quem fala sobre ele sempre uma
autoridade policial. Dificilmente, as vozes dos prprios funkeiros compem esse tipo de
trama narrativa. Assim como nessa matria, a soluo para acabar com a violncia
sempre enunciada por uma voz policial que, de alguma maneira, sugere que a soluo a
eliminao do prprio funk, ou, nos termos do tenente-coronel, a interdio do baile.
Todavia, ser a construo jornalstica sobre envolvimento do funk com os supostos
traficantes que tornar essa prtica musical legitimamente criminalizada, aps o perodo do
arrasto. Enquanto os seus artistas passam a ser identificados como aqueles que cantam
apologia ao crime, os bailes estaro, no centro das discusses miditicas, como uma festa
financiada por bandidos. Assim, o funk foi durante esse perodo construdo como parte
integrante de um suposto crime organizado, existente nas favelas cariocas. Segundo
Herschmann (2000), aps as imagens dos arrastes, esteve em curso na mdia corporativa
40
Composta
fundamentalmente por relatos de jovens de classe mdia que curtem funk e por fotos
desses mesmos jovens muitos deles de pele branca e cabelos loiros , a notcia
composta pelos seguintes trechos que destaco a seguir.
At ento confinada aos subrbios cariocas, o funk rompe os limites dos bairros
populares e comea a conquistar a juventude dourada da Zona Sul. Mais emergente do
que nunca, o ritmo desafia o preconceito e parte para a ofensiva, embalando os bairros
nobres e as boates chiques. Como o Rio, inevitavelmente, exporta comportamento, a onda
comea a alcanar outras capitais, exporta comportamento, a onda comea a alcanar
outras capitais. Com uma estratgia ousada, faz a cabea de jovens abastados, carentes de
Beatles, dos Rolling Stones, do Nirvana, etc.o funk a bola da vez. Atravessou as
barreiras das favelas e a classe mdia aderiu. No dava para esconder cinco mil pessoas
danando no subrbio, comemora a funkeira sangue bom, Fernanda Abreu. Revistas,
programas de rdio, academias de Ginstica e milhares de discos vendidos transformaram
o movimento num negcio da China... em plena Zona Sul do Rio de Janeiro. (...)
Apelo violncia ou no, o fato que o funk est com tudo e atrai milhares de
adeptos. Termmetros das moda, as academias de Ginstica j malham no ritmo do
momento e quase todas contratam professores para ensinar o novo rebolado. Dou aula de
funk h dois anos. J dei curso at no Uruguai e virou febre por l, conta o professor, 30
anos, entre um passo e outro na agitada turma da tarde da Equipe 1, que tem em mdia 35
e 50 alunos.
Fernanda Metne, 18 anos, uma das que no perde o funk nosso de cada dia na
Equipe 1. Joana Marinho, de 16 anos, outra: Amo esse ritmo. Sempre escuto. Mas teve
poca que os meus pais implicavam com os bailes do Chapu Mangueira. Para no
41
desagrad-los, nem abandonar de vez a curtio, Joana comeou a danar funk nos
espaos da Zona Sul (...)(grifo meu)
Primeiramente, cabe destacar que sangue bom uma gria carioca que,
provavelmente, oriunda das favelas e dos subrbios, mas atualmente utilizada pela
juventude em geral. O sangue bom significa aquele sujeito que amigo ou parceiro.
Como o ttulo da matria sugere, o sangue bom no a juventude favelada, mas sim o
jovem da classe mdia. Note-se que o mesmo ritmo, ao ser consumido por essa juventude,
passa a ser significado de forma oposta aqui j no o som do inimigo pblico nmero
um, mas sim o ritmo da juventude dourada da Zona Sul. Portanto, o funk deixa de ser
uma coisa dos subrbios e dos bairros populares, no importando sequer se ele (ou
no) um apelo violncia. Quando consumido por essa juventude abastada o funk
transforma-se em negcio da China, pois a moda de academias e de boates
chiques.
Vale destacar tambm que, diferentemente dos funkeiros das favelas e subrbios,
essa juventude tem brilho, gosto e voz nos textos jornalsticos. No a instituio
policial que fala pelo funk. Muito pelo contrrio, so os inmeros relatos da juventude
dourada que compem a matria. Na fala de uma das jovens, o funk, o ritmo amado,
amplamente consumido, principalmente nos espaos da Zona Sul da cidade. Estabelecendo
uma comparao entre as matrias tanto aquelas que falam do funk nas favelas e nos
subrbios, quanto essas que tratam do funk da Zona Sul fica implcito que o grande
problema no o gnero musical, funk, mas sim quem o consome. Em outras palavras, o
racismo inconfessvel, na forma de preconceito musical, dissimula quem o verdadeiro
alvo da discriminao.
Uma outra matria intitulada O funk sai do Gueto, veiculada na revista Veja em
23/07/1997, tambm refora essa viso. A matria trata especificamente do sucesso e da
popularidade da dupla de funk MCs Claudinho e Buchecha. Ainda que esses artistas
tenham voz nesse texto, isso parece acontecer porque o pblico destacado na matria no
a juventude das favelas e dos subrbios, bem como o palco onde a performance da dupla
42
43
subordinao separatista. Desse modo, o gueto seria revestido de instituies bem definidas
e duplicativas que permitem ao grupo excludo ou isolado reproduzir-se dentro do
permetro espacial para ele estabelecido como se fosse um tipo de instituio prisional.
Porm, os bairros pobres e as favelas da cidade do Rio de Janeiro nunca se
configuraram como esse tipo de espao isolado. Muito pelo contrrio, seus sujeitos
possuem laos bem definidos tanto com a indstria, quanto com os bairros afluentes, aos
quais fornecem servios domsticos ou caseiros. Desse modo, utilizar o termo gueto para
significar esses locais, mais do que descrever, , como indica Wacquant (2004), cercear,
excluir e sobretudo produzir invisibilidades, uma vez que se apaga o papel importante que
esses sujeitos tm na construo e na manuteno da cidade como um todo. Essa
comparao foi altamente disseminada com o aparecimento do funk para a Zona Sul e
revela muito mais o preconceito das elites, que enxergam os jovens negros e pobres como
um outro irredutvel proveniente de um local visto como um exterior cidade4 , do
que a relao e as trocas efetivamente existentes entre os sujeitos desses espaos.
Favela transformada em gueto e suas prticas significadas como pelejas tribais o
tom do discurso da mdia corporativa. Porm, se a favela fosse gueto, as suas msicas no
seriam transformadas (como sempre foram na histria dessa cidade, basta lembrar do
samba!) na trilhas sonoras que as elites consumem avidamente. Se a favela fosse gueto, o
funk no teria dominado os espaos economicamente mais abastados da cidade e,
conseqentemente, os MCs Claudinho e Buchecha no embalariam a curtio da juventude
que freqenta a Ilha dos Pescadores na Barra da Tijuca e os shoppings da Zona Sul (todos
esses locais de elite), como destacado nessa matria.
A associao favela/gueto faz com que a mesma msica seja significada de forma
to diferenciada pela mdia corporativa, dependendo do espao em que ela executada: l
ela funk-caso de policia, aqui ela musica de vencedores, MPB como
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
Caso sejam considerados parte integrante da cidade, o Rio de Janeiro s poder ser visto como uma Cidade
Partida, como indica o ttulo do livro do famoso jornalista carioca Zuenir Ventura (1994). Vises como essa
tambm resultam na proposio de diversas aes polticas, como por exemplo, a construo de muros'
cercando as favelas localizadas na Zona Sul do Rio de Janeiro. Tal medida j foi proposta por diversos
governos do Estado do Rio de Janeiro, bem como pela recente prefeitura dessa mesma cidade.
44
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Apesar de todo o processo de criminalizao da mdia corporativa, o funk, nos anos
2000, passa a ser reconhecido como um ritmo legitimamente carioca ou nacional. A
indstria cultural funkeira ou seja, os programas de rdio e de TV bem como as casas
de shows dedicadas ao funk crescem. Ademais, nesse perodo, o ritmo do funk passar por
algumas alteraes e novos atores entraro em cena. A forma/contedo do funk assumir
45
um carter mais sensual e muitas mulheres comearo a ocupar os palcos do mundo funk,
como MCs e danarinas5.
Na primeira dcada dos anos 2000, o funk continuar a ser uma grande pauta ora
de jornais locais, ora de jornais de circulao nacional. Como destaca Herschmann (2005),
esse processo de estigmatizao do funk foi, paradoxalmente, acompanhado por certa
forma de glamorizao dessa prtica musical. O mesmo discurso que criminaliza aquele
que exalta. Assim, o funk tambm ser tratado como uma prtica extica, que tomou conta
dos espaos da cidade e que virou a cara do Rio de Janeiro (para a tristeza de muitos). O
funk e seus artistas ganharo mais e mais espao em revistas, programas de rdio de TV.
Desse modo, no por acaso que o funk ocupar a capa de um dos jornais mais
importantes do Rio de Janeiro, quando um famoso DJ de funk ser responsvel por um dos
palcos de uma das festas mais famosas da cidade o rveillon da praia de Copacabana.
Nessa mesma onda de glamorizao, documentrios e livros sobre o funk produzidos por
jornalistas e intelectuais acadmicos tambm sero notcias de jornal6. Alm disso, nesse
perodo, o funk tambm vira trilha sonora de personagens de novela da Globo7, bem como
de filmes nacionais que atingem popularidade internacional8.
Porm, ser o outro lado desse mesmo discurso aquele que ganhar grande
relevncia na mdia corporativa. O funk comear a primeira dcada do sculo envolvido
em uma srie de escndalos. Essa prtica musical ser responsabilizada pela gravidez de
adolescentes, pela disseminao do vrus HIV entre jovens, como tambm ser o palco da
morte do jornalista da Rede Globo, Tim Lopes. Seus artistas sero divididos e classificados
entre aqueles que cantam o funk do bem e os que cantam funk do mal msicas
chamadas de proibides que fariam apologia ao trfico. E, por fim, o funk fechar a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Por exemplo, o documentrio Sou feia, mas t na moda (2005) de Denize Garcia.
Msicas da MC Tati Quebra-Barraco e da dupla de MCs Amilkar e Chocolate foram temas de uma
personagem jovem branca e burguesa da novela Amrica que, revelia dos pais, comea a freqentar os
bailes funk de comunidade, bem como a se vestir como uma funkeira.
8
Vale destacar como exemplo dois filmes, Cidade de Deus (2002) dirigido por Fernando Meirelles e Ktia
Lund e Tropa de Elite (2007), dirigido por Jos Padilha. No posso deixar de comentar que essas narrativas
cinematogrficas possuem uma viso muito semelhante a da mdia corporativa no que diz respeito favela e
aos bailes funk que l acontecem: tais espaos so retratados como o lugar do perigo, do crime e da barbrie.
7
46
primeira dcada do sculo como sendo o palco das transgresses de dolos nacionais
famosos jogadores do futebol brasileiro.
Pretendo enfatizar, nesta Cena 3, dois momentos: o incio da primeira dcada de
2000, em que o funk ganhar grande projeo por uma suposta ligao com a prostituio
de menores, que culminar com essa prtica musical sendo o palco da morte do jornalista
da Globo Tim Lopes. E concomitante a isso, a ampliao do argumento de que o funk seria
sinnimo de trfico, ou pelo menos, uma parte do funk, chamado pela mdia corporativa de
funk do mal. Esse ponto de vista ter como o ponto mximo a criminalizao de dolos do
futebol brasileiro por freqentarem bailes funk, localizados em favelas.
Desse modo, vale destacar, primeiramente, alguns fragmentos de duas matrias.
Uma delas, intitulada Grvidas do Funk preocupam prefeitura, veiculada no Jornal Folha
de S. Paulo em 09/03/2001 e a outra veiculada no Jornal O Dia em 08/03/2001, com o
seguinte titulo, Dana do sexo nos bailes funk.
47
bailes de Austin e de Olinda com minhas amigas, diz Jaqueline Amarante, 16, grvida de
sete meses.
Folha de S. Paulo (09/03/2001)
48
49
teria ido favela trs vezes. Ao retornar, dia 2 de junho, para documentar o baile com uma
micro-cmera teria desaparecido no prprio baile.
No demorou muito para que a notcia sobre os responsveis pelo crime fosse
veiculada. Cinco dias aps o desaparecimento do jornalista, o Jornal Nacional apresentava
as testemunhas que confirmavam que Tim Lopes teria sido morto e torturado pelo chefe do
trfico local, Elias Maluco. Imagens das favelas e de adolescentes utilizando drogas e
portando armas misturavam-se com a denncia da morte de Tim Lopes. Alm disso, eram
recuperadas as notcias que previamente foram veiculadas sobre a suposta epidemia de
HIV e a de gravidez que vitimavam adolescentes na dana do trenzinho do funk. Tudo
veiculado com grande comoo. Homenagens e passeatas da paz compuseram as notcias
do caso. Com apoio e respaldo das entidades sindicais, tanto a de jornalistas profissionais
do Municpio do Rio de Janeiro, como da Federao Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o
caso Tim Lopes passou a ser tratado no s como um crime brbaro, mas principalmente
como um atentado ao jornalismo investigativo e a liberdade de expresso. Vale destacar
uma das primeiras notas que aparecem nos jornais, quando noticiado pelo jornal O Globo
em 04/06/2002 o desaparecimento do referido jornalista.
50
51
52
tal reportagem nunca poderia ter sido entregue a Tim Lopes, ainda mais que esse jornalista
no possua nenhum tipo de proteo. Como destaca Jakobskind (2003), Tim Lopes
adquirira, alguns meses antes de sua morte, grande visibilidade pblica, quando produziu
uma srie de reportagens sobre a feira de drogas nas favelas cariocas, ganhando o Prmio
Esso de jornalismo por tal matria e tendo o seu rosto estampado em todos os canais de TV.
Nesse sentido, considerando outras vozes e fazendo uma anlise mais ampla sobre o papel
do jornalismo investigativo, Jakobskind (2003, p. 95) coloca a seguinte questo como o
ttulo de um dos captulos de seu livro: Quem matou Tim Lopes?. Esse autor chama a
ateno para o perigo dessa mdia sensacionalista que est sempre em busca da grande
notcia que atrai o leitor, o ouvinte ou o telespectador , no importa a troco de qu.
(p.95)
Parece-me, ento, que a mdia no problematizou, tampouco tratou com devida
seriedade e honestidade a morte de Tim Lopes, mas s com uma suposta verdade
aquela ligada ao pensamento nico que freqentemente vendido pela mdia como A
Histria de um crime sensacional, na qual bandidos e mocinhos so quase sempre os
mesmos. O caso Tim Lopes foi mais uma narrativa da mdia que explica a violncia urbana
de forma maniquesta, situando os pobres sempre do lado de l dessa dicotomia. Assim,
qualquer atividade do lado de l suspeita o baile funk mais uma vez utilizado como
mote, cenrio e justificativa para cmeras, vigilncia e punio sobre aqueles que vivem a
53
coisas no devem ser ditas, ou melhor, que dizer certas coisas um crime de apologia. Nesse
sentido, parece-me evidente que a liberdade de expresso varia de acordo com quem fala, sobre
o qu e para quem se fala.
Em 2005, alguns MCs do funk tornam-se notcias no por sua arte, mas por um suposto
crime. Assim como nos anos de 1990, na primeira dcada deste novo milnio, os artistas de
funk so acusados de cantarem msicas que fazem apologia ao crime e ao criminoso. Mais uma
vez tambm so acentuados os sentidos que ligam o funk das favelas diretamente ao trfico de
drogas. Aqui vale a pena destacar alguns ttulos e subttulos dos jornais.
Reao da Lei
Policia Civil indicia 12 MCs por trfico. Em letras de funks do mal, h at promessas
de destruir Caveiro, blindado da PM
(O Dia 30/09/2005)
54
LIGAES PERIGOSAS
Dois episdios envolvendo os jogadores Vagner Love e Adriano, do
Flamengo, mostram a arriscada e irresponsvel proximidade dos craques
cariocas com o trfico de drogas
Fora do campo, longe da alegria dos estdios, a semana passada foi marcada por
duas relaes estarrecedoras envolvendo a proximidade de dois dos maiores dolos do
futebol carioca com o trfico de drogas. No domingo (14), o programa Fantstico, da Rede
Globo, exibiu um vdeo que flagrava o jogador Vagner Love, do Flamengo, chegando a um
baile funk da Rocinha escoltado por bandidos. Ao lado do craque, marginais exibiam com
desenvoltura armas como fuzis (...) Dois dias depois, uma bomba: o jornal O Dia flagrou
uma transao suspeitssima protagonizada pelo companheiro de Love no ataque do clube
da Gvea, Adriano. dolo rubro-negro, o Imperador comprou uma motocicleta Honda
Hornet preta, de 600 cilindradas (...) e registrou no blido nome de Marlene Pereira de
Souza, uma senhora de 64 anos que nem sequer tem carteira de habilitao. Moradora da
Chatuba, um dos morros do Complexo do Alemo, Marlene a me de Paulo Rogrio de
Souza Paz, o Mica, de 32 anos, chefe do trfico naquela rea da cidade e amigo prximo
do atleta. A Chatuba, no por coincidncia, j havia alcanado sbita notoriedade na
semana anterior, quando Adriano e sua namorada, Joana Machado, protagonizaram uma
briga fenomenal s portas de um baile funk loca. O traficante Mica, um dos homens mais
procurados do Rio de Janeiro, contra o qual existem sete mandatos de priso, era um dos
anfitries da balada. (...)
O Comando do Flamengo preferiu fazer vista grossa, justificando tal
comportamento como inevitvel. No temos como proibir que eles voltem ao lugar de
onde vieram diz Michel Assef Filho, advogado do clube. E os envolvidos, mostrando todo
o seu raciocnio distorcido, sentiram-se injustiados. Em sua nica entrevista Vagner Love
disse reportagem da TV Globo que considera normal andar ao lado de traficantes
armados at os dentes. J pedir muitos amigos na criminalidade, mas nunca usei drogas.
No vou deixar as minhas origens e as minhas Razes, afirmou o jogador do Flamengo.
(...) Pois possvel estar prximo aos seus sem freqentar festas de bandidos e nem
pedir favores a marginais. Na posio de atleta consagrado, d para fazer melhor: tentar
influenciar a seguir o seu caminho, e no dos bandidos. o que faz o lateral direito Cafu,
capito da Seleo Brasileira de Futebol campe na Copa 2002. Craque dentro e fora de
campo, ele mantm um projeto assistencial no pauprrimo bairro Jardim Irene, na
Periferia de So Paulo, onde passou toda a sua infncia. (grifos meus)
Ao longo desse fragmento de texto, destaquei o termo flagrado, pois a sua
recorrncia parece-me muito significativa: como se estar num baile funk, ser amigo de
uma pessoa da favela ou simplesmente estar em uma delas fosse por si s uma atitude ilcita
ou, no mnimo, suspeita. Mais uma vez o suposto flagrante, transformado em escndalo,
55
56
***
Ao longo de trs dcadas o funk carioca consumido na favela vai sendo construdo
como sinnimo de crime. Tal construo deixa evidente que o preconceito contra o funk
insere-se num processo mais amplo de estigmatizao das favelas e de seus sujeitos. Para
alguns funkeiros, esse preconceito ser a causa para a transformao do funk em um
movimento poltico de luta contra a criminalizao das favelas e suas prticas, como
mostrarei no prximo captulo.
57
CAPTULO 2
FUNK: UMA CULTURA, UMA LINGUAGEM, UMA FORA
!
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Naquela manh, muitos jovens, em sua grande maioria habitantes de inmeras
favelas, entravam pela primeira vez na Assemblia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
59
ALERJ. Como a maior parte dos brasileiros, esses jovens no entendiam quais as funes
e as obrigaes daquela casa, mas sabiam exatamente o que iriam fazer ali: defender o
funk.
O funk no uma novidade para a ALERJ. Alis, nenhum outro gnero, nos ltimos
13 anos, foi objeto de tantas leis ali sancionadas. Visto e ouvido como um ritmo maldito
pela mdia e pelos setores da classe mdia e elites, o funk foi freqentemente tratado no
ordenamento jurdico como um caso de polcia ou uma questo de segurana pblica. A
novidade, portanto, no era o funk na ALERJ, mas sim a organizao de uma audincia,
cuja plenria era composta pela massa funkeira. Tratava-se de um dia histrico, pois a
ALERJ recebia sujeitos que lhe pareciam, at ento, invisveis. Ali, estavam MCs, DJs,
produtores e empresrios do funk. Aqueles para o quem o funk sobretudo uma forma de
trabalho.
Naquela manh, as esferas artstica e poltica habitavam o mesmo espao fsico e
simblico. No estavam em jogo valores estticos universais e transcendentais, mas
questes muito locais. Era o momento de reconhecer o tratamento diferenciado e desigual
que dado s manifestaes culturais das classes populares em contraste quelas de
determinada elite. Enquanto essas ltimas so concebidas como paradigmas estticos de
arte, a cultura popular tem de lutar para ser legitimada. Uma prova dessa batalha foi a
organizao de uma audincia pblica, que buscava debater uma lei estadual na qual o
funk seria reconhecido como uma das maiores manifestaes culturais da cidade do Rio de
Janeiro.
A mesa da Assemblia, presidida pelo Deputado Marcelo Freixo do PSOL (Partido
Socialismo e Liberdade), contava com a presena de dois artistas, dois intelectuais e dois
representantes do Estado. J de incio, o Presidente ressaltara que no foi por acaso a
ausncia de qualquer rgo de segurana pblica naquela mesa. Estavam presentes, apenas,
as representantes de cultura e de educao do Rio de Janeiro.
Dois acadmicos foram convidados para compor a mesa: Hermano Vianna e
Adriana Facina. Abrindo mo de qualquer viso que possa atribuir ao conhecimento um
ponto de vista neutro sobre os fatos investigados, ambos construam e expunham ali, cada
um a sua maneira, as suas pesquisas como uma forma de intervir nesse mundo funk. Se, no
60
fim da dcada de 1980, Hermano Vianna dera visibilidade ao mundo funk como uma das
principais formas de lazer da juventude suburbana e favelada, nos fins da dcada de 2000,
Adriana Facina reiterava com outras vozes do funk o carter poltico de tal manifestao,
fazendo com que o funk passasse a ser respeitado por movimentos e militantes de esquerda.
No parlamento de uma cidade conhecida por celebrar uma suposta democracia
racial e social, esses intelectuais acionavam atos de fala que colocavam em xeque tal
imagem. Na fala de Vianna ecoavam outras vozes, que ao longo de trinta anos de histria
do funk no Rio de Janeiro pediram socorro, mas nunca foram ouvidas. Assim como
crianas e jovens das favelas, o funk foi abandonado pelo poder pblico e tratado
unicamente como um problema policial. Adriana Facina reiterava para a platia, negra em
sua grande maioria, que a discriminao contra o funk mais um captulo de uma histria
antiga de criminalizao da cultura negra no Brasil. As mesmas vozes que ontem
construam o samba como vadiagem e arruaa, hoje enunciam o funk como violncia e
imoralidade.
Na mesa, a presena de Fernanda Abreu, uma cantora branca ouvida,
principalmente, pela juventude de classe mdia do Brasil, tambm mostrava que o funk,
mesmo sofrendo todo o tipo de discriminao, conseguira penetrar os bairros e os espaos
simblicos da classe mdia com suas rgidas fronteiras. Os versos da msica Pra que
discutir com madame?, epgrafe deste captulo, foram recitados por Fernanda Abreu.
Composto na dcada de 1956 por Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, a msica
originalmente destaca a viso que a madame possui sobre o samba, ou seja, uma msica
barata e sem valor, um pecado e uma cachaa, uma mistura de raa e de cor. Ao
citar tais versos, Fernanda substitui o termo samba pelo termo funk. O jogo com essas
palavras escancara que a discriminao racial no est no passado, mas se renova de formas
sempre muito semelhantes. Numa terra onde o racismo no se confessa, o preconceito
manifesta-se na maneira pela qual as madames percebem e significam a cultura desse
grupos como manifestaes rudes, incivilizadas, violentas etc. Assim, o preconceito contra
o batido do funk nada mais do que uma atualizao da discriminao contra os
batuques do samba.
61
Aps essas falas, a resposta da massa funkeira foi imediata. Acostumados com uma
esfera pblica que se constituiu, ao longo da histria, longe dos formatos dos partidos
polticos, dos sindicatos e da cultura letrada, a massa funkeira respondera quelas falas
com o maior e, talvez, o nico capital cultural que possuem: a sua arte. Alguns MCs, ao
fundo da plenria, comearam a entoar os versos do famoso funk Rap do Silva
contagiando a todos e fazendo com que aquele parlamento cantasse. A plenria ficou toda
de p, muito sujeitos estendiam os braos e de punho fechado cantavam os seguintes
versos: o funk no modismo/ uma necessidade/ pra calar os gemidos que existem
nessa cidade.
A empolgao da plenria aumentaria ainda mais quando outro integrante da mesa,
MC Leonardo mostrasse como o microfone uma poderosa arma para o movimento
funk. E j que necessrio estar de p para o tipo de batalha lingstica que os MCs gostam
de travar, o artista de funk pediu licena para deixar a mesa e subir na tribuna. De l, o MC
anunciava que o funk , acima de tudo, uma linguagem da juventude das favelas.
MC Leonardo enunciava que o funk uma poderosa e democrtica forma de
comunicao. O apoio da plenria, composta por mais de 600 pessoas, entre elas MCs e
DJs do funk (em sua grande maioria negros e favelados) e danarinas de funk (algumas
travestis e drag queens), confirmava no s a fora agregadora dessa linguagem, como
tambm sua capacidade de colocar em cena sujeitos que so tratados como invisveis. Por
meio do funk, as vozes desses sujeitos, habitantes de posies sociais to distantes dos
padres hegemnicos de uma classe mdia branca, faziam-se ouvir.
A linguagem do funk no uma forma abstrata de transmitir conhecimento na qual
o emissor passa a mensagem ao receptor, que a assimila de forma passiva. Quando
encenam o ritmo e a poesia (rap) no microfone, esses MCs performativizam a sua
experincia de tal modo que essa experincia parece ser recriada naquele momento e
naquela pessoa que a recebe. Assim, antes de deixar a tribuna, MC Leonardo finalizara a
sua fala cantando, fazendo com que o funk fosse vivido por todos ali. Ainda que de forma
silenciosa, a plenria acompanhava a realidade do funk e dos seus sujeitos, medida que o
MC entoava o seguinte rap, composto em parceria com seu irmo, MC Junior.
62
T tudo errado
Comunidade que vive a vontade
Com mais liberdade tem mais pra colher
Pois alguns caminhos pra felicidade
So paz, cultura e lazer
Comunidade que vive acuada
Tomando porrada de todos os lados
Fica mais longe da tal esperana
Os menor vo crescendo tudo revoltado
No se combate crime organizado
Mandando blindado pra beco e viela
Pois s vai gerar mais ira
Naqueles que moram dentro da favela
Sou favelado e exijo respeito
So s meus direitos que eu peo aqui
P na porta sem mandado
Tem que ser condenado
No pode existir
Est tudo errado
at difcil explicar
Mas do jeito que a coisa est indo
J passou da hora do bicho pegar
Est tudo errado
Difcil entender tambm
Tem gente plantando o mal
Querendo colher o bem
Me sem emprego
Filho sem escola
o ciclo que rola naquele lugar
So milhares de histria
Que no fim so as mesmas
Podem reparar
Sinceramente no tenho a sada
De como devia tal ciclo parar
Mas do jeito que esto nos tratando
S esto ajudando esse mal se alastrar
Morre polcia, morre vagabundo
E no mesmo segundo
Outro vem ocupar
O lugar daquele que um dia se foi
Pior que depois geral deixa pra l
Agora amigo, o papo contigo
63
64
trs das palavras ditas, mas constitua a verdade nas suas prprias palavras. Usando-as
como uma arma, o MC tecia ritmicamente a verdade de seu papo: as representaes e
os sentidos das vozes historicamente marginalizadas. Com o seu papo, o MC construa
uma narrativa e instaurava explicitamente um interlocutor, o amigo.
E como a fora de um ato de fala sempre nos interpela, fazendo com que a histria
tenha tempo presente, o MC avisa, desafia e exige dilogo com o poder pblico: Agora
amigo, o papo contigo/s um aviso pra finalizar/ o futuro da favela depende do fruto que
tu for plantar.
***
O funk fora enunciado como uma cultura, uma linguagem e uma forma de
comunicao da favela. Quais os significados dos termos cultura, linguagem e
comunicao em tais afirmaes? De que maneira essas enunciaes fornecem identidade
social para essa prtica musical e para os seus sujeitos? Que historicidade essas
enunciaes carregam? Quais so as negaes que essas afirmaes dissimulam? E, para
alm dessas questes, como ser possvel falar desses enunciados nesta tese? De que
maneira pretendo conjugar a anlise lingstica prtica etnogrfica como uma forma de
construir outros atos de fala que tambm fornecero identidade ao funk?
Todas essas questes apontam para o objeto e metodologia de estudo desta tese: as
representaes ou as performances resultantes de um dilogo entre mim e inmeros jovens
que habitam o chamado mundo funk carioca. De um modo geral, pretendo compreender as
representaes ou as performances que constituem a identidade do funk carioca: as
representaes que so encenadas no palco, bem como aquelas construdas na vida
cotidiana. Todavia, vale ressaltar, que toda representao (seja ela teatral ou ordinria)
atravessada por significados de raa e gnero. Desse modo, busco entender como tais
significados articulam-se na constituio da representao da identidade do funk carioca e,
ainda, de que modo essa representao reitera e/ou subverte a idia de uma identidade
nacional brasileira.
Para tanto, situo a minha discusso no interior de uma lingstica que entendida
como um campo de estudos tais como estudos feministas, teoria queer, estudos latino-
65
americanos, etc. , que rene pesquisadores de diversas reas focalizando temas em comum
(Moita Lopes, 2006). Como mostra Pennycook (2006), sob a influncia das criticas pscolonial e ps-moderna9 e, ainda, da conseqente virada lingstica10 nas cincias sociais,
esse campo passa a privilegiar temas como a produo da identidade/alteridade, que at
ento eram estranhos lingstica (Cf. Moita Lopes, 2002, 2006, Rajagopalan, 2003,
Pennycook, 2001). Tal interesse est relacionado com a compreenso de que a linguagem
tem um papel fundamental na inteligibilidade dos problemas sociais contemporneos, pois
a dominao colonial foi (e continua sendo) no s econmica, como tambm simblica.
!
so
No meu objetivo aqui explicitar as incompatibilidades entre as inmeras perspectivas tericas que so
sinalizadas com o prefixo ps. Para esse trabalho, vale, apenas, considerar que tanto as vises ps-coloniais,
quanto as ps-modernas estabelecem uma crtica ao sujeito transcendental, na medida em que realizam uma
reviso de diversas filosofias fundacionalistas. No entanto, h especificidades presentes em cada uma dessas
vises. Segundo Hutcheon (1994), o par ps-moderno/ps-colonialista anti-fundacionalista, porm, ao passo
que o primeiro coloca em questo o sujeito do humanismo e seu essencialismo, o segundo desafia e
desconstri o sujeito do imperialismo e sua narrativa de progresso.
10
Para Hall (2003), a virada lingstica tem a ver com a nfase no sentido na definio de cultura, uma vez
que essa deixa de ser entendida como um produto e passa a ser compreendida como um processo: uma prtica
de produo e troca de sentidos diversos entre membros de uma sociedade ou grupo.
66
uma realidade anterior e exterior a ela. Como destaca Canclini (2008), essa noo foi
central para o poder colonial, fundamentado pelo pressuposto filosfico que se resume na
certeza de que h uma coincidncia ontolgica entre realidade e representao, entre a
sociedade e as colees de smbolos que a representam (p.163). Assim, o que se define
como patrimnio e identidade pretende ser o reflexo fiel de certa essncia nacional .
Ao realizar uma forte crtica ao colonialismo e aos pressupostos que constituem as
naes modernas, os Estudos Culturais trazem para o centro de sua discusso a noo de
representao, porm mostram que esta no reflete uma essncia a priori. Dialogando com
estudos ps-estruturalistas, os Estudos Culturais destacam que a linguagem uma estrutura
instvel e indeterminada, incapaz de refletir algo, mas capaz de constituir aquilo mesmo
que ela significa. Questiona-se, desse modo, a capacidade descritiva de determinados
conceitos (utilizados dentro e fora da lingstica e das cincias sociais): a lngua, a cultura e
a histria e as noes essencialistas presentes nas grandes metanarrativas de progresso
nacional que tais conceitos ajudaram a construir.
A separao entre cultura, lngua, histria e sociedade e as respectivas disciplinas
responsveis pela investigao de cada uma dessas instncias revelam-se como
construes muito fragmentadas, que no do conta da complexidade da vida social. Em
minha pesquisa, por exemplo, a construo do objeto de estudo j de sada um
empreendimento transdisciplinar. Importa, aqui, compreender a identidade: uma categoria
tradicionalmente estudada na antropologia. No entanto, para a compreenso da identidade
no utilizo apenas teorias antropolgicas, uma vez que as identidades so entendidas como
performances de linguagem: uma perspectiva elaborada em certo campo da pragmtica
lingstica. Alm disso, preciso considerar tambm os arquivos que fornecem
historicidade para a identidade, bem como os processos macrossociais na qual essa
identidade local ganha sentido e relevncia. Portanto, tanto o objeto de estudo como a
prpria forma de compreend-lo constituda por um campo aberto onde habitam vrias
disciplinas. Como diria Canclini (2008), nesse campo circulam cincias nmades, ou
seja, entendimentos capazes de atravessar campos disciplinares, sem se reduzir a nenhum
deles (Canclini, 2008: p.19). Todavia, o fio condutor que permite colocar em dilogo uma
gama de conhecimento gerado em campos diversos o entendimento de que a
67
representao social (artstica, cientfica, cotidiana) no uma descrio, mas sim uma
performance: atos lingsticos reiterados, que condensam uma historicidade e assumem
significados culturais locais em relao as estruturas sociais mais amplas.
Ademais, a coincidncia entre a representao e a performance localiza a temtica da
identidade numa teoria mais geral da ao. Assumir a identidade como representao em
termos performativos mostra que esta no uma essncia, mas sim uma construo
lingstica resultante de contnuas aes de sujeitos inseridos em hierarquias e estruturas de
poder. No importa, desse modo, recuperar ou resgatar qual seria a verdadeira identidade
do funk, mas em dilogo com os sujeitos inseridos nesse universo, questionar de que forma
esta performativizada e continuamente reconstruda.
Portanto, o termo performance tem aqui um sentido generalizado. Dito de outro
modo, a performance est relacionada tanto com a dramatizao da personagem teatral,
quanto com o processo de construo cotidiana do sujeito social. Dentro e fora dos palcos,
os sujeitos esto sempre inseridos nesse exerccio de re-citar ou de performativizar as
suas identidades. Ainda que no palco os sujeitos encenem uma performance que possui um
significado diferente daquele fornecido performance da vida cotidiana, ambas possuem
uma caracterstica fundamental em comum: as performances ordinrias ou teatrais so
sempre repeties (sejam elas meras imitaes ou subverses) de atos anteriores (Derrida,
1982). Desse modo, as performances teatrais e cotidianas revelam as escolhas efetuadas
pelos sujeitos no interior de significados consolidados historicamente.
Considerando essa relao intrnseca entre linguagem, representao e performance
proponho duas abordagens tericas e metodolgicas para compreender a construo da
realidade e das identidades. A primeira delas chamada pragmtica da identidade e a
segunda etnografia performativa. Dialogando principalmente com a vertente dos Estudos
Culturais que leva em conta a crtica ps-estruturalista, essas abordagens so
fundamentalmente transdisciplinares e partem do pressuposto de que a linguagem
performance, ou melhor, uma forma de ao social.
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Em seu famoso ensaio intitulado Pode o subalterno falar? Gayatri Spivak (1993)
afirma que a identidade um erro. Ento, qual seria a funcionalidade desse conceito?
Mesmo assumindo a identidade como um erro, essa a possibilidade de existncia pblica
dos sujeitos. Ainda segundo Spivak (1993), apesar de toda a contingncia que constitui as
identidades e inviabiliza a sua prpria delimitao, estas
identidades estruturam-se menos em torno da lgica do Estado do que pela dos mercados.
Nas palavras do prprio autor (op.cit., p.48),
Nas novas geraes as identidades se organizam menos em torno dos
smbolos territoriais-nacionais, os da memria ptria, do que em torno dos
de Hollywood ou Benetton. Ao mesmo tempo em que nas grandes
cidades os centros histricos perdem peso, as populaes se disseminam:
!
69
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Entretanto, ser necessrio fazer funcionar o termo identidade em sua forma
desconstruda (Hall, 2000, p.104). Dito de outro modo, o conceito identidade ser
repensando sob um ponto de vista pragmtico. Nessa perspectiva, a identidade uma
representao, que por sua vez, no um reflexo da realidade, mas sim uma forma de ao
uma performance. A identidade um processo contnuo de redefinir-se, de inventar e
reinventar dialogicamente sua prpria histria na linguagem. Portanto, a identidade s nos
revelada como algo a ser criado lingstica e discursivamente, e no descoberto; como
alvo de um esforo, de um objetivo; como coisa que ainda precisa ser significada e
construda entre as alternativas possveis. preciso lutar pela identidade e proteg-la
lutando mais e mais mesmo que para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a
fragmentao, a condio precria e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda
a ser, suprimida e silenciada temporariamente.
Como diria Spivak (1993), as identidades acabam reivindicando certa
homogeinizao, baseada numa essncia que no tem nada de a-poltico ou a-histrico.
Muito pelo contrrio, ainda que, aparentemente, as identidades tenham um aspecto natural
(os sujeitos so assim porque sempre foram assim), esse , apenas, um efeito de um
essencialismo politicamente estratgico. tal movimento que permite, por exemplo, a
representao de uma identidade no singular: sempre uma iluso provisria e necessria,
que faz funcionar um campo altamente contestado.
A identidade uma luta por representao, tal como aquela batalha que ocorreu no
dia em que o parlamento cantou funk. Ainda que a identidade do funk seja
fundamentalmente heterognea, no parlamento, o funk foi enunciado no singular. Naquela
manh, era preciso unir foras e lutar contra um inimigo em comum: as representaes
71
hegemnicas que ao longo da histria significaram essa prtica musical como um caso de
polcia.
Naquele parlamento, a unio dos funkeiros e a enunciao do funk no singular
exemplifica a forma pela qual as representaes so constitudas segundo o tipo de
interao ou de audincia que estas estabelecem. Como mostra Goffman (2001, p.77), a
representao da realidade um trabalho de equipe que em muito se assemelha
representao de uma pea teatral. De um lado, os sujeitos, assim como os atores, encenam
uma linguagem na qual posicionam-se e so posicionados sob o olhar ou a presena de um
pblico; de outro, esses mesmos sujeitos/atores acionam um idioma de fundos ou de
bastidores (Goffman, 2001), em que se preparam para a representao pblica. Assim
como no teatro, as performances da vida social organizam-se em duas regies: o palco/cena
e os bastidores/fundos. Essas regies seriam diferentes linguagens que os sujeitos assumem
ao se posicionarem como parte integrante de uma representao coletiva.
Por essa via, compreendemos que as representaes acionadas no parlamento so
performances de palco: as diferenas que constituem a identidade do funk necessitavam ser
dissimuladas gramaticalmente e ideologicamente. Em outras palavras, naquela manh,
alguns parlamentares mencionaram uma das divises freqentemente enunciadas no mundo
funk, mas que foram rapidamente questionadas por outros parlamentares com apoio das
palmas da plenria. Wagner Montes (PDT), um dos autores da lei que reconhece o funk
como cultura, argumentou que lutaria pelo funk do bem. (Essa diviso funk do bem X
funk do mal muitas vezes mencionada no mundo funk para se referir s produes
funkeiras que teriam boas letras em contraposio quelas que fariam apologia ao crime
ou pornografia.) No entanto, em seguida, o deputado Jorge Babu (PT) questionou tal
diviso afirmando que o funk era uma coisa s. Aqui no pretendo afirmar que tal diviso
seria mais verdadeira, uma vez que ela enunciada em outros contextos do mundo funk,
mas exemplificar como identidade no singular performativizada em momentos
estratgicos.
Porm, diferentemente das representaes de palco, nos bastidores do mundo funk,
dificilmente poderamos enunciar sua identidade no singular (essa questo ser amplamente
discutida no captulo 3). Nessa regio, os sujeitos encenam uma linguagem em que os
72
conflitos so trazidos tona e as diversas posies sociais ocupadas por seus distintos
atores na construo da cena comum revelam fragmentaes, hierarquias, relaes de poder
e de explorao. No entanto, quando o funk entra em cena para a sociedade mais ampla ,
na maioria das vezes, constitudo como uma identidade homognea e sua identidade
enunciada no singular11.
A identidade , portanto, uma representao dialgica construda nas interaes
sociais atravessadas por hierarquias e relaes poder. Como diria Goffman (2001), no h
um self anterior dramatizao cotidiana. Em vez disso, o self nasce como resultado
dos acordos e dos conflitos constitutivos das representaes publicamente validadas. Nesse
sentido que entendemos que a representao ocupa um lugar central na teorizao
contempornea sobre identidade. Questionar o self (para utilizar o termo goffmaniano) ou
a identidade significa questionar esses sistemas de representao que lhes do suporte e
sustentao.
Em outras palavras, se a identidade representao e essa ltima no reflete algo
anterior e exterior , ento indagar sobre o que uma identidade no buscar uma essncia
por trs das representaes, mas perguntar-se sobre quais so as performances que
constituem determinada identidade. No se trata de uma teoria sobre o sujeito congnoscente
sobre o que ele mesmo em sua essncia , mas sim de uma teoria sobre as performances
que constituem e conferem existncia pblica aos sujeitos sociais.
Assim, a representao em sua forma desconstruda est relacionada com a
maneira pela qual a linguagem entendida no campo da Pragmtica Lingstica. Uma das
premissas fundamentais de tal campo a de que os signos no refletem um estado de
coisas, mas produzem esse estado de coisas. Essa formulao ancora-se fortemente na
reviravolta provocada por Austin (1975[1962]) na filosofia com a criao do enunciado
performativo. A ao dos signos possvel porque, como Austin sabiamente percebeu, as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
Vale ressaltar que uma das estratgias para a construo marginal da diferena a sua homogeneizao: os
outros so diferentes, logo todos so iguais. No entanto, como na representao que encontramos a
possibilidade no s de existncia, como tambm de agncia dos sujeitos, esses, muitas vezes, utilizam a
representao que os oprimem, fazendo com que essas funcionem em seu favor. Se nas representaes
hegemnicas o funk singularizado e generalizado como um caso de polcia, na representao encenada no
parlamento, essa mesma representao citada e revertida: o funk caso de cultura.
73
palavras, para alm de representarem estados de coisas, so aes por meio das quais
fazemos coisas.
Ao longo de seu livro How to do things with words (1975[1962]), Austin constri
uma anlise aportica e em constante transformao (Derrida, 1982). Assim, ao fim de
sua reflexo, o filsofo deixa de lado a distino que ele mesmo forjou entre performativo e
constativo, concluindo que essa distino frgil para dar conta do alcance operacional da
linguagem e da fora dos atos de fala. Austin argumenta que a linguagem como um todo
no formada por enunciados constativos que descrevem algo, mas sim por enunciados
performativos que fazem com que alguma coisa acontea. O filsofo leva s ltimas
conseqncias a performatividade da linguagem, mostrando, dessa forma, uma identidade
entre dizer e fazer, insistindo na presena do ato na linguagem; ato que transforma opera
(Pinto, 2002, p.77). Assim, entende-se que a linguagem no reflete algo; ao contrrio, ela
age, ou seja, constri aquilo que, supostamente, parecia s descrever.
Nesse sentido, as afirmaes funk cultura e funk linguagem
performativizadas na ALERJ no refletem um estado de coisas anterior ou exterior a essas
afirmaes, tampouco a inteno de um nico MC. Muito pelo contrrio, entendemos que
esses enunciados so performances, que instituem determinada identidade para o funk e
para os seus sujeitos. No se trata de uma identidade que se forma no vazio, mas numa
arena de significados historicamente repetidos e, muitas vezes, cristalizados. De acordo
com Butler (1993), as identidades so performances iterveis, isto , performances
presentes que ecoam performances passadas e, por conseguinte, performances que
acumulam e condensam historicidade.
Ao longo da histria do funk, essa prtica musical foi freqentemente significada
nas representaes hegemnicas como um caso de polcia e os seus sujeitos como uma
espcie de marginal. Como demonstra Herschmann (2006) em sua anlise sobre a
representao do funk e dos funkeiros na mdia impressa, na dcada de 1990, a palavra
pivete foi substituda por funkeiro para tratar dos supostos jovens marginais cariocas.
Em uma perspectiva semelhante, Zaccone (2008, p.21), ao interpretar as representaes do
discurso hegemnico, argumenta que esteretipo de bandido
74
75
equivalentes, pois o funk uma manifestao que no s constitui a realidade para esses
sujeitos, como tambm fala e coloca em cena, para a sociedade mais ampla, a maneira
pela qual os jovens das favelas significam as suas prprias identidades e prticas.
Vale destacar, como j foi dito anteriormente, que a linguagem no um reflexo das
coisas, mas sim uma forma de ao, uma performance. Ento, como os termos linguagem
e cultura estariam relacionados com a idia de comunicao? Tradicionalmente, a
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77
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Uma linguagem, uma cultura e uma comunicao (ou uma fora): essas so as
definies que, naquela manh, forneceram existncia ao funk carioca e aos seus sujeitos.
Antes que a plenria se manifestasse ou mesmo que fosse concedida a palavra ao MC
Leonardo, eram parlamentares (principalmente, na figura do Deputado Marcelo Freixo) e
intelectuais que construam esses sentidos para o funk. Sem a interveno dessas vozes, os
funkeiros no seriam ouvidos naquele espao e daquela forma.
As diversas vozes de autoridade no s se misturavam com as do funk, como
tambm forneciam legitimidade ao ritmo musical. Como as relaes de poder, presentes em
qualquer dilogo, regulavam ou controlavam esse mistura? At que ponto tal mistura no
apaga o que seria originalmente a voz do funk? Ou melhor, tal dilogo possibilitou
efetivamente que os prprios termos dos funkeiros fossem enunciados?
Essas questes apontam no s para o movimento dialgico que ocorreu na ALERJ,
mas tambm para a prpria metodologia que ser empreendida neste trabalho: a juno e a
representao de diferentes vozes imersas em hierarquias e relaes de poder. Ainda que o
objetivo daquela audincia pblica fosse dar voz e legitimidade para o funk carioca, at
que ponto esse movimento possvel? O que se ganha e o que se perde na traduo do funk
para uma linguagem jurdica ou parlamentar? Nesse mesmo sentido, o que se pretende
nesta tese tambm dialogar e ouvir as vozes do funk. Porm, como os termos utilizados
nesta tese podem (ou no) encenar os prprios termos do funk?
De acordo com Gayatri Spivak (1993) quando o subalterno tem a sua voz registrada
numa impresso ocidental qualquer, essa j no mais a voz do subalterno. Dito de outro
modo, o sujeito subalterno, ao ser enunciado na linguagem da razo, (poltica e
epistemologicamente) silenciado, pois ele, desde o incio, no possui o papel de falante no
discurso dominante. Assim, sua verdadeira identidade perde-se devido inabilidade que
tem o ocidental de compreender os prprios termos do sujeito subalterno. Submetido a
vrias crticas, esse argumento de Spivak sobre a impossibilidade de compreenso
ocidental e o conseqente silenciamento do subalterno no deixa de ser uma boa
oportunidade para refletir sobre as relaes de poder constitutivas dos dilogos que
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!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Sem desconsiderar a materialidade que constitui essas posies, preciso reconhecer que esse exerccio
pode contribuir para o deslocamento ou para a desconstruo das prprias fronteiras que delimitam os espaos
da subalternidade e da dominao.
79
Essa
Tanto a chamada anlise do discurso francesa quanto a crtica (escola de Lancaster) separam, em alguma
medida, a prtica discursiva da prtica social. Ainda que essa ltima vertente tenha um compromisso maior
com a prtica social, Fairclough (2001) argumenta que o discurso seria tridimensional. Fundamentado por
essa perspectiva, esse autor acaba fazendo aquilo mesmo que ele critica: um mtodo que permite que
pensemos e analisemos o texto em si mesmo para que, posteriormente, esse seja inserido em sua dimenso
social, ou seja, em seu contexto.
14
Isso tambm garante a construo de distintos objetos de estudos e suas respectivas fronteiras disciplinares.
80
81
representaes constitudas por sujeitos que ocupam diferentes posies sociais. Nesse
sentido, a traduo no um mero exerccio de substituio e combinao de sentenas em
abstrato e, sim, uma prtica de traduo cultural. Trata-se de interpretar, colocando em
dilogo as diversas formas pelas quais os sujeitos produzem os significados por meio dos
quais compreendem e experienciam o mundo e as relaes sociais.
Fundamentada pela crtica derridiana ao logocentrismo e ao fonocentrismo, essa
traduo no pressupe um texto original e uma fala verdadeiramente autntica. Em
outras palavras, esta traduo cultural no se fundamenta por um princpio logocntrico de
que haveria no texto um significado presente, latente, que pode ser recuperado, descoberto
ou resgatado em sua plenitude. Alm disso, tambm posto em xeque o fonocentrismo,
instaurador da dicotomia fala e escrita, em que essa ltima seria uma representao de
segunda ordem ou uma deturpao da fala, entendida como um meio de comunicao mais
autntico e mais puro15. Segundo Derrida (1982), o que se diz pertencer fala tambm
observado na escrita, indicando, desse modo, que toda presena da fala j , desde sempre,
habitada pelo germe da escritura.
Todavia, se no h uma fala ou um texto original, qual seria o limite da
interpretao construda nesta traduo cultural? Segundo James Clifford (1986), ainda que
a ausncia de um original evidencie como a interpretao um devir ou um processo
sempre em aberto, a interpretao possui limites, pois moldada pelos discursos que
constituem determinado momento histrico, no qual esto inseridos sujeitos pesquisados e
pesquisadores.
de extrema importncia, portanto, reconhecer que as linguagens que a traduo
rene so historicamente desiguais. Assim, est no centro da metodologia desta pesquisa a
capacidade da linguagem (ou da representao, entendida em termos performativos)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Questionar essa dicotomia cria de sada um grande problema para etnografia pensada em termos
positivistas. Nessa perspectiva, a etnografia seria concebida como um registro escrito de uma oralidade que
se coleta em trabalho de campo. Permeia, aqui, certa noo de que essa oralidade seria mais pura, anterior
ou exterior a escrita um fora ou um antes do texto etnogrfico. Mantm-se, desse modo, a crena na
relao direta da voz com o referente, no signo espontneo e transparente. Assim, tal dicotomia permite que,
por um lado que a voz do outro seja concebida como o signo da prpria autenticidade e, por outro lado, que
o texto etnogrfico aparea como um salvador dessa voz. Vozes puras e escrituras (concebidas como
transparentes) fazem com que o texto etnogrfico apague as relaes de poder to problematizadas por Spivak
(1993) nessa transposio dos termos do outro, ou melhor, nessa passagem do oral para o escrito.
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CAPTULO 3
DE FUNK DE RAIZ A MOVIMENTO POLTICO E CULTURAL
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Ainda que a autenticidade seja uma inveno, preciso ouvir quem a reivindica e
quem tem o poder de faz-la. Diferentemente daquela raiz que foi construda para o samba
quando este estava em vias de se tornar a msica legitimamente nacional, a reivindicao
do funk no feita por sujeitos da elite16. Muito pelo contrrio, trata-se de uma
reivindicao de sujeitos marginalizados acionada no interior de uma prtica musical que,
em certa medida, tambm marginal. Digo em certa medida, pois ainda que o funk
continue sendo criminalizado por vrios setores da sociedade brasileira, no contexto em
que essa prtica musical constri um mercado especfico e ganha certa visibilidade nas
cenas carioca e nacional que alguns sujeitos comeam a reivindicar seu espao e sua
identidade de raiz.
Ao entrarem em cena, esses funkeiros fornecem um significado explicitamente
poltico para as suas performances de palco e para o prprio funk carioca. Nesse processo,
comeam a divulgar e a constituir suas identidades em espaos alternativos de difuso
multimdia, bem como a organizar eventos pela cidade do Rio de Janeiro, chamados de
Roda de Funk. Esse movimento de politizao do funk resultou na criao de uma
associao chamada APAFunk (Associao dos Amigos e dos Profissionais do Funk) e na
aprovao da Lei 5.544/09, que reconhece o funk como cultura do estado do Rio de Janeiro.
Nas rodas, grande parte dos MCs ligados a esse movimento performativizam funks que no
so tocados pela grande indstria funkeira, ou seja, nos principais canais de rdio e
televiso que divulgam o funk. Como destacarei a seguir, essas produes colocam em cena
atos de fala lricos por meio dos quais as favelas e os bairros pobres do Rio de Janeiro e
suas prticas so nomeados e positivados, pois so significados sob o ponto de vista
daqueles que habitam tais locais.
3".62,-1%.#,-#)*&+'#*=#61"/"@L-#%#*="#2&I%&F7-#,%#=%1;",-##
A inveno do funk de raiz est fundamentalmente relacionada inveno do funk
como um mercado. Desde meados da dcada de 1990, o funk carioca deixou de ser apenas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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uma diverso da juventude pobre e favelada do Rio de Janeiro. Atualmente, o funk carioca,
alm de ser uma espcie de porta-voz dessa juventude, uma prtica musical que penetrou
o universo da chamada classe mdia, como tambm transformou-se em uma cadeia de
produo e consumo, criando novas oportunidades econmicas sobretudo para os jovens de
baixa renda.
O funk carioca incluiu a criao e a profissionalizao de diversas categorias de
trabalhadores (DJs, MCs, operadores e produtores de som, msicos e msicas, danarinos e
danarinas, para citar apenas alguns exemplos), bem como transformou alguns agentes, em
sua origem pequenos produtores independentes, em empresrios culturais. Alm disso,
atualmente, o funk veiculado tanto na grande mdia (aqui me refiro a programas de rdio
FM e canais de televiso aberta), como tambm disseminado por canais alternativos de
difuso (meios eletrnicos de comunicao como os blogs, filmes no youtube, etc.)
O impulso bsico do mercado funkeiro ocorreu na dcada de 1990. Para
compreender esse processo, vale destacar alguns argumentos de Hermano Vianna presentes
em sua etnografia sobre o funk realizada na dcada de 1980. Em seu livro O Mundo Funk
Carioca (1988), o autor mostra que, nesse perodo, as msicas consumidas nos bailes funk
eram essencialmente um produto importado. Para Vianna, os bailes funk no servem para
nada e a identidade dos funkeiros puro gasto (p.102). Alm disso, o autor afirma que o
funk norte-americano a maior diverso de centenas de milhares de jovens de camadas
populares que moram no Rio de Janeiro (p.109); que participar do mundo funk carioca s
constitui uma identidade nos moldes clssicos para o pequeno grupo de donos de equipe e
discotecrios que vivem todo o seu cotidiano em funo dos bailes (p.105); que para estes
o disco um produto descartvel, tanto quanto a musica para os danarinos, que no
conhecem o nome dos sucessos nem dos artistas, e que,
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para que o funk ganhasse popularidade fora das favelas e subrbios e, tambm, para que
essa performance hbrida passasse a ser compreendida como algo efetivamente carioca e/ou
nacional.
Embora sejam vrias as expresses culturais e ritmos produzidos ontem e hoje nas
periferias cariocas, o funk passa a ser o ritmo privilegiado dessa juventude. Um dos
motivos para essa preferncia reside no fato de o funk ser uma msica cujos processos de
gravao e distribuio so mais acessveis (fceis e baratos) quando comparados a outros
ritmos produzidos por artistas tambm oriundos de favelas e subrbios, como o samba e o
pagode. Vale destacar uma fala de MC Dolores, que teve o incio de sua carreira nesse
perodo:
eu sempre quis ser cantor, eu vivia cantando pagode, samba. Mas o caminho do funk
muito mais fcil do que o caminho do pagode. O pagode, o samba muito difcil, apesar de
ser tambm cultura da favela. A entrei para o festival, que era tambm uma grande
brincadeira, a maior diverso das galeras. Fizemos o rap e ganhamos, mas nunca
imaginamos que o funk daquela brincadeirinha fosse virar o que virou. Mas infelizmente
hoje tentam colocar a gente fora dessa brincadeirinha e a gente tem de lutar porque somos
a raiz disso tudo.
Para Ydice (2004), o funk brasileiro atualmente ocupa o mesmo espao do samba
mais tradicional. Porm, para esse autor, os funkeiros em nada se identificariam com os
sambistas. No entanto, como pude observar em meu trabalho de campo, assim como no
relato de MC Dolores, quase todo funkeiro queria ser um sambista, quase toda danarina de
funk, uma passista. Assim, no se trata de uma falta de identificao, mas de uma
reinveno do prprio samba de acordo com o contexto especfico e com os recursos
disponveis desses jovens. preciso lembrar que a ascenso do samba musica nacional
coincide com a elitizao dessa prtica musical e seus respectivos processos de produo,
de distribuio e de consumo. Portanto, o funk coloca-se como um trabalho artstico
acessvel e sensvel cultura do jovem favelado (ou como diz MC Dolores, um trabalho
que cultura da favela).
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Porm, ainda que o funk seja uma forma de trabalho para a juventude pobre, muitos
desses MCs argumentam que foram explorados nesse processo de crescimento do funk ou,
nos termos do prprio artista, ficaram de fora dessa brincadeirinha. Segundo eles, o capital
e o prestgio construdos no funk ficaram concentrados nas mos de alguns poucos
produtores, que atualmente so donos de editoras e programas de rdio e TV de funk.
Como mostra Essinger (2006), pouqussimos foram os MCs de funk que gravaram
um disco individual, a maior parte deles foram MCs de um nico sucesso. Porm, esses no
podem ser classificados como cantores de hits que cantaram uma nica musica de um
nico vero (Dias, 2000, p. 78). Muito pelo contrrio, esses artistas produziram funks que
atravessaram veres e geraes, sendo tocados at os dias atuais. Nesse sentido, MC
Dolores reivindica que esses MCs tambm seriam a raiz disso tudo.
Mesmo havendo um consenso entre MCs, DJs, produtores e donos de gravadora
sobre a importncia desses MCs e de suas criaes para o funk carioca, a forma pela qual o
funk passa a ser gerenciado e comercializado um tema bastante polmico no mundo funk.
Passo, agora, a discutir em detalhe as controvrsias sobre essa temtica, explicitando os
argumentos e contra-argumentos que permeiam os bastidores do mundo funk carioca sobre
o funk de raiz e a produo funkeira atual.
M=H1%.:12-.#%#N$.'#M4;@*.7-#%#L2%1"1>*2"#,-#=%1;",-#)-&-C1:)2;-#
#
Os anos de carreira do DJ e empresrio Grandmaster Rafael praticamente coincidem
com a idade do funk carioca. Em umas das entrevistas que realizei com Grandmaster, o DJ
diz que os MCs da antiga perderam espao na indstria funkeira, pois eles teriam parado
no tempo e deixado de acompanhar as mudanas ocorridas no funk nos ltimos dez anos,
como mostro no fragmento a seguir.
Eles ficaram parados no tempo e a msica dinmica, ela no pra, entendeu? No d pra
hoje a gente ficar tocando os funks do passado, a coisa evolui, a gerao que ouve outra.
Ento o pessoal reclama por causa disso. Eu acho uma grande besteira, a coisa foi
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Ao fim da dcada de 1990, a indstria fonogrfica passou por uma das mais graves
crises enfrentadas pelo setor. Como mostra Dias (2000), uma das conseqncias dessa crise
foi a proliferao de pequenas empresas produtoras de discos, as quais, aliadas s
facilidades postas pelo desenvolvimento do aparato tecnolgico, comeam a especializar-se
em gneros especficos. nesse contexto que devemos compreender a terceirizao de
servios e o aparecimento de produtoras independentes no Brasil19. Nesse perodo, o
garimpo de novos talentos foi terceirizado, ficando por conta de selos independentes com
os quais as grandes multinacionais fechavam contratos de distribuio.
, portanto, por meio dessas produtoras independentes que o funk carioca passa a ser
divulgado e regulado. A partir do fim da dcada de 1990, so quatro as grandes
multinacionais no Brasil Sony BMG, Universal Music, EMI e a Warner Music Group
e duas as principais produtoras independentes de funk na Cidade do Rio de Janeiro Link
Records e Furaco 2000. Os donos dessas produtoras tambm so os donos dos principais
selos e da maioria dos programas de funk nas rdios e na televiso. Nesse sentido, MC
Leonardo, um dos poucos MCs que gravou, juntamente com seu irmo, MC Junior, um CD
solo, destaca como na indstria funkeira haveria um monoplio. Segundo o MC,
Existe uma "monocultura do funk", voc s escuta um tipo de funk e no pode existir s
isso. O problema que h um monoplio no funk. Os mesmos caras so donos de tudo: do
selo, da gravadora, da rdio, da TV, de tudo. E o funk da favela. Ele produzido,
composto, cantado, divulgado, tudo dentro da favela. Todos os funks que voc ouvir em
qualquer lugar tiveram que tocar primeiro na favela para depois sair no mercado. E a
favela no fica com nada.20
Assim, embora o funk tenha se estabelecido como uma possibilidade de emprego para
inmeros jovens favelados, no correto afirmar, como argumenta Hermano Vianna, que o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
"#!Ainda que sejam inmeras as empresas abarcadas pelo rtulo Produtora Independente, de um modo geral,
essas empresas passaram a configurar-se como produtoras de servios das grandes empresas, ou seja, das
chamadas majors multinacionais (Dias, 2000).
20
Entrevista de MC Leonardo concedida ao Jornal Vozes da Comunidade. Funk: um grito de Socorro que
ecoa das comunidades. Disponvel em http://apafunk.blogspot.com/2009_03_01_archive.html Acesso: julho
de 2009.
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funk seria uma espcie de folclore, ou seja, algo que pertence a todos21. possvel
reconhecer que, como uma manifestao cultural, o funk de todos, mas preciso dar um
passo adiante. Atualmente, o funk tambm um produto a ser comercializado em um
mercado que , nitidamente, monopolizado, ou seja, para a indstria funkeira, o funk tem
dono! Segundo os MCs, as empresas de funk estabelecem uma srie de contratos altamente
abusivos: muitas vezes os MCs cantam de graa em casas noturnas (para eles paga-se
apenas o dinheiro do transporte), tm as suas imagens divulgadas gratuitamente em
produtos dessas empresas, no tendo sequer seus direitos pagos nos termos da lei. Esses
termos, por sua vez, so estabelecidos por meio de contratos em que os MCs cedem boa
parte de seus direitos autorais para tais selos22.
Em uma das entrevistas realizadas com DJ Marlboro, o principal personagem do funk
carioca na cena da grande mdia, o DJ argumenta que o mercado do funk carioca possui
suas prprias regras. Segundo ele,
Quando eu comecei, eu trabalhei dois anos de graa, dois anos eu fui explorado, eu no
ganhava nada. Ento eu acho que a mesma coisa acontece com MCs, com os artistas, o
negcio assim: eu toco a sua msica e voc faz show de graa pra mim. A depois a
gente paga um pouco, a gente chama esse pagamento de o dinheiro do carro, uns 100
reais. E pra um garoto da favela ganhar 100 reais por noite muito! Se no fosse o funk,
ele ia trabalhar o ms todo pra nem ganhar um salrio mnimo (...) tipo assim, o funk,
um mercado que t se modelando (...) Ento eu acho isso, existe as regras do mercado
fonogrfico, de editora, de gravadora, regra estabelecida mundialmente, mas como esses
movimentos musicais ficaram marginalizados pelas grandes gravadoras, eles fizeram o
seu prprio mercado, sua prpria maneira de sobrevivncia. (...)23
Nos bastidores do mundo funk, DJ Marlboro ocupa uma posio de dominao, pois
ele o maior produtor e empresrio de funk carioca. Situado nesse lugar, ele justifica as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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suas aes pelas que sofreu: eu fui dois anos explorado. Numa lgica perversa, ele acaba
reproduzindo as relaes de explorao, pois, segundo ele, para um garoto de favela o
pouco (100 reais por show)24 muito! Ainda que o funk seja uma das principais culturas
populares de massa do pas, o posicionamento desse empresrio mostra no s o abandono
dessa prtica musical pelo Estado, que poderia funcionar como uma espcie de assegurador
das necessidades coletivas dos artistas, como tambm evidencia que esse mercado funkeiro
acaba funcionando como uma frvola frmula de homogeneizao, ou como diz MC
Leonardo, transforma o funk em uma monocultura.
Ao estudar a msica e o mercado fonogrfico que se desenvolve s margens dos
sistemas formais de economia, Larkin (2004) destaca que ao mesmo tempo em que tal
mercado pode ser uma possibilidade de acesso e consumo para a populao pobre, tambm
acaba formando suas regras rgidas com suas formas de explorao semelhantes s da
indstria mainstream.
So freqentes os casos de MCs que assinam contratos vitalcios com as editoras,
uma prtica que no usual no mercado fonogrfico. Alm disso, toda essa negociao
feita num contexto especfico da indstria fonogrfica em que h uma relao altamente
desigual entre msicos, editoras e produtoras. Desde a dcada de 1970, vem crescendo o
privilgio dos produtores e das gravadoras sobre as msicas, quando comparados aos seus
compositores e intrpretes (Negus, 2007). Ademais, nesse mundo pop, o aumento da
tecnologia acabou por baratear os custos de produo das gravadoras, gerando um tipo de
msica faceless (ou seja, msicas sem rosto oculto por trs de uma parafernlia
tecnolgica) (Herschmann & Kischinhevsky, 2005). Assim, os dolos duradouros foram
substitudos por essas mquinas faceless. No funk carioca, pouqussimos so os artistas que
se tornam caras conhecidas, mesmo que suas msicas tenham se transformado em
grandes sucessos que atravessaram geraes.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
Como acompanhei em minha pesquisa de campo, os artistas ganham entre 100 reais e 200 reais por show,
mas no lucram o total desse montante, uma vez que divido entre vrias pessoas: motorista, empresrio
individual e danarinos. Vale destacar que, atualmente, existem vrios grupos de funk, chamados de bondes,
compostos por trs ou mais integrantes. Os integrantes ganham e dividem essa mesma quantia. Como forma
de ganhar um pouco mais, os artistas chegam a fazer de trs a seis shows por noite nos mais distantes pontos
da cidade. No por acaso, h inmeros acidentes de carro envolvendo artistas de funk.
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Porm, o mesmo no pode ser dito sobre alguns poucos DJs de funk que tambm so
os donos de produtoras, editoras e programas de funk. Nesse sentido, o funk h mais de
dez anos vem produzindo artistas descartveis de msicas duradouras. Entretanto, para a
grande mdia, o rosto que incorpora esses textos sonoros so esses poucos empresrios do
funk, que comandam o monoplio do mercado funkeiro.
M=#;%&"'#2&I%&F7-#,"#61",2F7-#OP*&+#,%#Q"2ER##
Esses conflitos e as relaes de explorao dos bastidores fizeram com que alguns
artistas entrassem em cena no mundo funk, significando as suas identidades como
performances explicitamente polticas. Esses funkeiros comeam a se auto-denominar funk
de raiz e passam a organizar e enunciar o funk carioca como um movimento cultural e
poltico.
Cabe destacar que a reivindicao de uma raiz para o funk (re)inventa uma
tradio. Em outras palavras, a raiz dessa identidade no uma verdadeira essncia
fixada numa arqueologia histrica, mas sim uma construo estratgica (Spivak, 1994) de
uma identidade coletiva, que se constitui medida em que os sujeitos engajam-se num
exerccio de narrar a si prprios, estabelecendo vnculos com e re-contando um
passado. A raiz no uma essncia original de um passado incontestvel, mas sim uma
reivindicao poltica do presente. A raiz de uma identidade algo a ser (re)inventado
dialogicamente e no descoberto. Portanto, parto do pressuposto de que interpretar a
identidade da raiz do funk carioca dialogar com as reivindicaes do presente de
sujeitos inseridos em estruturas de poder.
Em minha pesquisa de campo, acompanhei a criao dessa identidade de raiz.
Alis, mais do que acompanhar, participei ativamente do processo de formao e
organizao dessa identidade25. Assim, dois espaos foram fundamentais para a construo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25
Nesse sentido, assumo que a minha performance desde o trabalho de campo redao desta tese
contribui para a construo da identidade que ora analiso. Como destaquei no Captulo 2, no h um momento
de pura constatao na linguagem, pois todos ns estamos condenados a performativizar!
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Com fotos e as histrias da carreiras desses artistas, o site fornece uma pluralidade de
caras e particularidades para o mundo funk. Artistas esquecidos ou silenciados nas
cenas atuais do funk so significados como a sua origem. A visibilidade proporcionada pelo
site fez com que alguns artistas reanimassem suas carreiras, fornecendo para si, para as
suas trajetrias e para o funk, um novo sentido.
Se o site foi uma ferramenta fundamental por meio da qual os artistas interagiam
virtualmente e viam suas identidades reiteradas novamente na cena funk, as rodas de funk
foram eventos cruciais para o contato direto entre eles e para que o funk comeasse a tomar
um formato de um movimento cultural e poltico e, alm disso, para que os funkeiros
passassem a entender a sua arte como um tipo de militncia, como mostro a seguir.
S.#Q-,".#?-@K62;".##
Esse evento acima de tudo um evento POLTICO, uma roda POLTICA! (MC Leonardo
na abertura e apresentao da roda de funk realizada na Central do Brasil)
O Funk me levou para a luta e a luta trouxe muita gente pro funk (MC Leonardo na
apresentao de uma Roda de Funk)
O microfone nossa arma para lutar contra o preconceito (MC Pingo em uma
apresentao de Roda de Funk)
As rodas foram idealizadas como um espao onde os artistas, excludos do mercado
funkeiro, discutiriam sobre seus direitos, sobre arte e poltica e trocariam experincias.
Tudo isso sempre ao som de muito funk. Era preciso tambm ser ouvido pela sociedade e
chamar a ateno daqueles que tm preconceito com o funk. Isso seria mais difcil, pois a
cidade do Rio de Janeiro toda dominada pelos empresrios. Partimos para coisa
alternativa, que no fim to ou mais importante que qualquer festa, que qualquer casa de
show. (Fragmento de entrevista com MC Leonardo, coletada apos a realizao da Roda de
Funk)
Posso dizer que hoje o funk mais importante pra mim. Antigamente era s a coisa da
minha carreira individual. Hoje o funk uma questo coletiva, uma militncia, um
compromisso social. Isso que eu vejo na realizao do Festival e nas rodas de funk.
(Fragmento de entrevista de MC Mano Teko, realizada na casa do artista)
101
Inmeros so os estudos sobre o funk carioca que apontam que a identidade de seus
sujeitos, se existe alguma, algo efmero e totalmente apoltico. No Rio, os crticos
culturais normalmente vem os funkeiros como alienados. Os rappers (do movimento hip
hop) endossam essa opinio e at lanaram um projeto para converter a tribo funkeira.
Segundo Ydice (2007, p.179), a cultura do funkeiro rejeita a promessa de cidadania
advinda dos polticos e intelectuais, sejam eles de esquerda ou de direita ou mesmo do
Movimento Negro.
Radicalmente oposta a situao na qual se configura a identidade de raiz do funk
carioca. Assim acredito que no seja o caso de afirmar, como o faz Ydice, que o funk
rejeita a promessa vinda de polticos, de intelectuais e do Movimento Negro, mas de
perceber at que ponto, na curta histria dessa prtica musical, houve uma efetiva interao
entre os funkeiros e esses sujeitos.
Nesse sentido, entendo que a identidade do funk de raiz algo indito no s para o
universo funkeiro, como tambm para os militantes de esquerda. A construo dessa
identidade uma espcie de co-produo que envolveu a interao entre alguns funkeiros
explorados nos bastidores e apagados da cena funk e intelectuais, estudantes, professores
e militantes de esquerda. essa forma de interao que MC Leonardo significa em seu ato
de fala, quando enuncia, o funk me levou para a luta e a luta levou muita gente pro funk.
Portanto, por um lado, os funkeiros, ao interagirem com esses sujeitos, passaram a
construir a sua arte como uma forma de mobilizao social em torno da reivindicao e da
promoo de seus direitos. Esse movimento fez com que a prpria profisso e identidade
funkeira fosse ressignificada por esses artistas, como enuncia MC Mano Teko, hoje o funk
uma questo coletiva, uma militncia.
Por outro lado, para os atores de esquerda, a identidade funkeira, apesar de altamente
heterognea, deixou de ser vista como uma performance alienante e passou a ser
compreendida como o resultado, ou melhor, como uma resposta subalterna a formas de
opresso e explorao. Desse modo, a identidade do funk foi inserida num contexto mais
amplo de luta contra o preconceito, a discriminao e a criminalizao dos pobres, da
populao favelada do Rio de Janeiro e de suas prticas.
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A sada da Estao Central do Brasil (um local pblico onde circulam milhares de
trabalhadores), universidade e escolas pblicas, acampamento do Movimento dos Sem
Terra, escadarias da Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro, delegacias de polcia onde
funcionam o Projeto Carceragem Cidad, favelas ocupadas por policiais onde o funk
proibido: esses so os espaos alternativos nos quais esses funkeiros realizaram as rodas de
funk.
Cabe destacar que faz parte da poltica do governo atual a implementao de
Unidades de Polcia Pacificadoras (UPP) como uma forma de combater o chamado
trfico de drogas. Como compreendi em minha pesquisa de campo, o termo
pacificadora um ato de fala que possui uma dupla fora: por um lado, reifica e legitima
um tipo ao policial nas comunidades pobres para o resto da sociedade, ou seja, a policia
(logo o Estado) l est para fazer uma ao benfica, uma pacificao; por outro lado,
dissimula e esconde a violncia contida nessa mesma ao. O termo pacificadora institui
um significado positivo para a ao do Estado, mas faz esquecer que a pacificao s
pode acontecer quando parte-se do pressuposto de que um determinado local est em
guerra. E como em toda guerra, todos os direitos dos indivduos que ali encontram-se esto
suspensos, pois trata-se de inimigos. Assim, em nome da pacificao, o Estado comete
vrias arbitrariedades contra a populao que mora na favela, principalmente contra os
sujeitos que se encaixariam no perfil sociolgico dos supostos traficantes ou seja, a
grande maioria de jovens que vive em comunidades! Invaso de casas residenciais sem
mandado policial, toque de recolher nas ruas aps as nove horas da noite, proibio dos
bailes funk nas favelas so, apenas, algumas das aes que o Estado executa e nomeia
como pacificadoras. Como uma forma de lutar pacificamente contra essa pacificao
violenta do Estado, os MCs realizaram rodas de funk nesses locais.
Como uma forma de performativizar o carter fundamentalmente poltico desse
eventos e a ligao da identidade do funk com outros grupos de mobilizao social,
transcrevo aqui um relato etnogrfico de uma roda de funk realizada no Rio de Janeiro, em
21/10/2008, dia das eleies para Prefeito e Vereadores no Projeto Carceragem Cidad.
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P*&+#%#I-6-'#*=#1%@"6-#.-/1%#"#"16%#&".#)1-&6%21".#,"#;2,","&2"#
Dia de eleio para Prefeitos e Vereadores nas cidades brasileiras. Chego em casa
por volta das 22h, ligo a TV e vejo as notcias sobre a boca de urna, a vitria e a derrota de
alguns candidatos no primeiro turno, o erros e os acertos das pesquisas eleitorais etc. Estava
exausta, mas ainda continuava a mil por hora. Tinha presenciado um marco histrico, que
talvez passasse despercebido para a maioria dos indivduos. Mas no para o grupo de
pessoas que estava na 52a Delegacia de Polcia de Nova Iguau: tanto para os presos
provisrios, delegado e agentes carcerrios, quanto para os amigos e profissionais do funk,
para militantes do Movimento Sem Terra, intelectuais e jornalistas de esquerda aquela data
ficaria na memria.
Pela primeira vez na histria deste Pas, presos provisrios exerciam um direito que,
teoricamente, sempre tiveram: o direito ao voto. cruel pensar que, ao mesmo tempo em
que o Estado enuncia a cidadania para todos, comete soturnamente um crime eleitoral,
impedindo determinados sujeitos que tm direito ao voto de exerc-lo. Acredito que essa
contradio mostra os silncios que os termos direito universal e igual para todos
evocam. como se o espao onde se exerce essa universalidade de direitos s se
constitusse pelo contraste com territrios de um outro que incorpora tudo aquilo que se
ope a uma pretensa civilidade. Territrios que so imaginados como zonas nohabitveis da vida social, que, todavia, so densamente povoadas por aqueles que sequer
possuem status de sujeito.
A universalidade parece silenciar indivduos e territrios no incorporveis
lgica neoliberal, deixando para eles apenas as caricaturas de seres perigosos que
assombram a nao. No foi, portanto, o pequeno nmero de votos dos presos
provisrios daquela delegacia que transformou nossa tarde em marco histrico, mas sim
um evento que, aos poucos, com o voto e com o funk, quebrou, por alguns momentos, essas
fronteiras sociais silenciosas com seus inmeros desdobramentos perversos.
Assim que chegamos 52a Delegacia, Orlando Zaccone, delegado e escritor, que
coordena o projeto Carceragem Cidad, explicou que, apesar das duas celas serem
divididas de acordo com a rivalidade entre as faces, no haveria problema para um MC,
104
habitante de uma determinada favela dominada por certa faco, entrar na cela da faco
inimiga. Alis, complementou o argumento, dizendo mais ou menos assim: aqui
conseguimos milagre!! Uma faco emprestar o aparelho de som para a outra para que a
Roda de Funk acontea nas duas celas!!!
Dali, j comecei a sentir um dos efeitos da arte, ou melhor, do funk e sua
capacidade
de
comunicao
na
carceragem.
Primeiro
que
ironia:
inimigos
compartilhando algo como se fossem amigos! E depois disso, ainda que com algum
temor ampliado pelo grande barulho que vinha das celas, como tambm pela expectativa
de entrar em territrio desconhecido , os MCs decidiram que cantariam em ambas as celas,
independentemente do lugar onde moram. Afinal, como celebram nossos amigos funkeiros,
ns damos a festa s em troca de amizade.
Nas celas, os MCs tomaram palavra, mostrando que, para o movimento Funk, no
h neurose, pois a sua maior arma o microfone. Aos poucos nosso temor foi
desaparecendo, medida que alguns presos provisrios, embalados pelo batido,
entoavam juntamente com os MCs os maiores sucessos do funk antigo. Fiquei mais uma
vez perplexa com o poder das composies de funk produzidas na dcada de 1990.
Atualmente, a poltica de criminalizao do mercado de drogas ilcitas nas favelas chegou a
tal ponto que enunciar o pertencimento a uma delas pode significar uma sentena de morte.
Mas, nos raps dos anos de 1990, a palavra favela tem nome prprio, sem ser, no entanto,
propriedade de ningum!! Nas letras desses funks, o nome de cada favela aparece para
destacar que todas elas so morros sangue bom onde a diverso baile funk, paz e
amor povoada por jovens que so, antes de tudo, funkeiros de uma mesma massa de
valor. Mesmo com resistncia e desagrado de algumas pessoas em entoar os nomes de
certas favelas, foi nesse clima que os MCs mostravam que sua palavra cantada minava, aos
poucos, as fronteiras simblicas que interditam territrios como perigosose transformam
seus sujeitos em esteritipos demonizados. Naquele dia, as pessoas eram muito mais do
que o rtulo que elas carregam. Ainda que a condio insalubre do local nos lembrasse a
todo o momento onde estvamos, o funk no s proporcionava interao direta entre todos,
mas tambm instaurava outras possibilidades de existncia para aquele local e para aqueles
sujeitos. A gigantesca classe de perigosos, que povoa a grande mdia e, logo, nosso
105
106
***
Nas rodas de funk, a msica utilizada como uma plataforma poltica por meio da
qual a juventude da favela dialoga com seus pares, com a sua prpria comunidade de um
modo geral e com o restante da sociedade. Foi exatamente essa plataforma que levou os
funkeiros ao lado de militantes e polticos de esquerda a realizarem as rodas na carceragem
e em tantos outros locais. Nesses eventos, a msica encena um retrato diferenciado da
juventude pobre, negra e favelada porque essa a sua fora comunicativa e sua forma de
interveno na esfera pblica, ou melhor, sua maneira de tentar abri-la. No foi por acaso
que na roda da carceragem, local habitado por jovens pobres e negros em sua grande
maioria, muitos presos provisrios participaram no s como platia, mas como um MC de
funk. Nesses eventos, os estigmas so contestados e cada sujeito toma palavra para se
constituir como um artista, narrando biografias sempre relacionadas realidade das favelas
e dos bairros pobres do Rio de Janeiro.
Foi essa profunda ligao entre o funk e esses espaos que uniu e inseriu tantos outros
sujeitos polticos na construo da identidade do funk de raiz. Segundo Adriana Facina
(2009), intelectual acadmica, militante de esquerda e uma das principais agentes nesse
processo de interao, o funk de raiz possibilitou uma sensibilizao dos movimentos
sociais e da esquerda como um todo para a defesa de uma manifestao cultural legtima do
povo favelado, explicitando que a criminalizao dessa cultura anda de braos dados com a
criminalizao da pobreza.
Esse trabalho coletivo consolidou e organizou a identidade do funk de raiz como
uma associao de artistas da cultura popular e de trabalhadores (todos provenientes de
favelas e bairros pobres do Rio de Janeiro) chamada APAFunk (Associao dos
Profissionais e Amigos do Funk). As rodas de funk comearam, ento, a ser organizadas
em nome da associao e passaram a ser duas as suas principais reivindicaes. A primeira
relacionada busca de meios alternativos de produo e de divulgao para fazer frente ao
monoplio da indstria funkeira. E a segunda, que, no perodo do meu trabalho de campo,
ganhou maior relevncia, foi a luta para aprovar uma lei que assegurasse o reconhecimento
do funk como cultura.
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#8MC.:4B8.!
Primeiramente, cabe destacar que esse texto de lei foi a ltima verso de um
trabalho textual coletivo, em que participaram alguns artistas de funk, acadmicos, polticos
108
e intelectuais. O texto foi amplamente debatido em algumas rodas de funk e nos canais de
difuso multimdia. Para compreender a autoria desse texto, vale fazer referncia ao que
Benjamin (2008) chama de intelectual como produtor textual. Segundo o filsofo, o
intelectual produtor no um autor especialista, pois do ponto de vista intelectual, o que
conta no o pensamento individual, o talento inventivo, mas a arte de pensar na cabea
dos outros (p.126). Nesse sentido, o intelectual produtor busca interferir no processo de
produo capitalista literalizando as mais diferentes experincias uma vez que tais
experincias s ganham importncia na sociedade, quando os seus sujeitos tomam a
palavra. Desse modo, necessrio romper com a dualidade autor/leitor. Todo leitor torna-se
um autor/produtor. Ainda de acordo com Benjamim, o autor/produtor no informativo,
mas sim operativo, pois a sua misso no relatar, mas combater ele no um
espectador, mas um participante coletivo e ativo.
Entendo, portanto, que esse texto transformou vrios sujeitos inseridos no mundo
funk em autores/produtores textuais em um espao institucional a ALERJ. De alguma
maneira, foi experincia de criminalizao dessa prtica musical (e, logo de muitos jovens)
que foi amplamente literalizada, transformada em fonte de debate, em textos de combate
e, finalmente, em texto de lei. Porm, esse processo no alheio ao conflito e s relaes
de poder. Essa produo textual de vrios autores , como destaquei no captulo 2, um
processo dialgico de traduo cultural que envolve sujeitos que ocupam posies
historicamente desiguais. Portanto, h nessa diegese concesses de ambos os
posicionamentos.
Desse modo, h, por um lado, na redao final do texto (transformada em palavra
legtima e legal), o prevalecimento do formato legal - as narrativas e as temporalidades que
nelas irrompem so traduzidas em artigos. Alm disso, nem todo funk assegurado como
cultura, como mostra o pargrafo nico da lei: No se enquadram na regra prevista neste
artigo contedos que faam apologia ao crime.26 No entanto, preciso reconhecer que, por
outro lado, esse mesmo texto promove uma interveno dos funkeiros na esfera pblica,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
Como mostrarei mas adiante, esse processo de qualificao de algumas produes funkeiras como apologia
ao crime tambm se insere no contexto mais amplo de criminalizao dessa prtica musical como um todo
109
uma vez que a lei uma tentativa legtima de abertura do Estado para a cultura de massa,
ainda to discriminada em meios polticos de direita e de esquerda. Aqui eles so
produtores textuais, na medida em que so autores de atos de fala que buscam intervir no
processo de produo funkeira e de seus sujeitos. Com a lei, boa parte desses jovens
reivindicam do Estado no a ao policial, mas sim a interferncia de uma poltica cultural.
Como mostra Butler (1997), a temporalidade de um ato de fala sempre contingente:
o ato de fala condensa uma historicidade que aponta para o passado e para o futuro, ou seja,
um ato de fala sempre carrega as marcas de um passado, mas as faz funcionar de uma
maneira que no pode ser prevista por antecipao. Nesse sentido, acredito que mais do que
uma garantia de direitos, essa lei um ato de fala legtimo que quebra e nega as marcas
estigmatizantes associadas ao funk, instaurando uma nova representao para essa prtica
musical e, conseqentemente, abrindo para o funk um novo e indeterminado futuro.
#S#P"I%@"#;-=-#M.H"F-#,-#P*&+##
Nesta seo, interpreto a forma pela qual esses artistas passaram a compreender e a
delimitar as suas produes na cena do mundo funk. Isto , analiso os significados da
produo dos artistas considerados de raiz diante de outras produes funkeiras, como
tambm diante do pblico em geral.
De acordo com esses MCs, os raps produzidos por eles, na dcada de 1990, so a
verdadeira raiz do funk. Tais msicas surgiram nos concursos chamados Festivais de
Galera, realizados por vrias equipes de som que existiam na cidade. Os festivais eram
compostos por vrias etapas e uma delas era a etapa do rap. Para esse grupo de pessoas,
esses raps, alm de falar na linguagem da favela, tambm reproduzem a realidade sobre a
favela. Em uma das entrevistas realizadas com um desses artistas, ele define a si prprio e a
raiz do funk da seguinte maneira:
Ns somos a raiz do funk, mas no somos MCs da antiga como muita gente fala. Antiga
pra mim museu (...) Ns somos a raiz do funk porque falamos a verdade sobre o pessoal
favelado do Brasil, falamos da nossa comunidade (mas no s da nossa), mas o que todas
as comunidades (independente de credo, cor e religio) pedem. Porque a mesma coisa, a
!
110
mesma realidade que fere aqui sangra l. E a gente fala de tudo. No somos hipcritas, a
gente fala bem da favela porque a nossa casa, mas a gente fala que no tem apoio de
ningum. S quem pode contar isso a gente27.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
111
112
falar Alvorada l no morro que beleza? No! Voc est falando da poesia de Cartola,
de Noel? (...) S essa galera que poesia pra voc? Porque eu coloco MC Dolores,
Cidinho e Doca como os atuais poetas da favelas. So sim e me incluo nessa tambm. 30
Depoimento retirado do filme Favela On Blast, gravado na Rocinha no ano de 2008. Disponvel em
http://www.youtube.com/watch?v=SoKgV9u75lc. Acesso em janeiro de 2009.
31
Butler (1997, p.29), em sua teoria dos atos de fala, destaca que embora o nome prprio seja uma
conveno (e como toda conveno no deixa de ser um ato genrico), tem o poder de conferir singularidade
s coisas.
113
desenhando diferentes
percursos na Cidade do Rio de Janeiro. O funk veste com nome prprio cada favela e os
espaos no interior dela.
Como mostram alguns autores da geografia cultural, o espao no uma entidade
fsica, inocente e a-poltica. De acordo com Lefebvre (1991, p.26), o espao uma prtica
discursiva determinante na constituio das identidades sociais. Partindo desse pressuposto,
alguns autores fazem uma distino entre espao e lugar produzida socialmente, til
para compreender a forma pela qual determinados sujeitos no s interagem, como tambm
se situam e significam o mundo. De acordo com Forman (2002), ambos possuem uma
relao dialgica, mas enquanto o lugar definido pela interao humana local imediata,
o espao mostra as trajetrias mais amplas e genricas. De forma semelhante, De Certeau
(2008) argumenta que o local uma prtica que se constri no ato de caminhar pela cidade
e o espao no ato onividente de observar, medir e delimitar.33 Segundo De Certeau (2008),
essas prticas locais e espaciais so como atos de fala que constroem mapas das cidades.
Se o discurso hegemnico aciona atos de fala para constituir e delimitar a favela
como um espao dominado pelo chamado trfico de drogas, os MCs, com os seus atos de
fala lricos, fornecem um outro tipo de existncia para esses territrios. Estes passam a ser o
local do funk, onde os bailes e as prticas que o constituem so detalhadamente
enunciados. Um exemplo notrio dessa identidade o rap Endereo dos Bailes dos MCs
Junior e Leonardo, em que os artistas fazem ver um outro mapa do Rio de Janeiro, como
mostro a seguir.
Endereo dos Bailes
(MCs Junior e Leonardo)
No Rio tem mulata e futebol,
Cerveja, chopp gelado, muita praia e muito sol, ...Tem muito samba, Fla-Flu no
Maracan,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Aqui utilizo tal termo em sua dupla acepo: tanto como o significado de algo, como tambm para designar
uma direo.
PP!O local est para o caminhante, assim como o espao est para o cartgrafo.!
114
115
Em Endereos dos Bailes, os artistas fazem mais do que uma descrio dos bailes.
Enfatizando os aspectos positivos dessa diverso, eles realizam um convite aos olhos. O
Rio de Janeiro deixa de ser visto apenas como o espao genrico do samba, do futebol e da
praia os to consagrados smbolos nacionais , para ser tambm o local onde acontecem
inmeros e especficos bailes funk. Num momento em que os MCs buscavam dar
visibilidade e legitimidade ao funk, eles acabaram por fazer o mesmo com o local em que
este era produzido e consumido. Tais locais passam a ser enunciados como parte integrante
da cidade.
Vrios funks produzidos na dcada de 1990 tm nome de favelas especficas, por
exemplo, o Rap da Rocinha, Rap do Vidigal, Rap da Cidade de Deus. Da mesma maneira,
muitos MCs do funk de raiz tambm eram conhecidos como representantes de certa
galera ou de uma favela especfica, como por exemplo, William e Duda do Borel, Galo da
Rocinha, Mascote do Vidigal etc. O nome dos raps e dos artistas de funk indica um
referencial comunitrio. Os artistas de funk existem publicamente como um sujeito coletivo
da Rocinha, do Vidigal etc.; e, ainda, enunciam em nome de suas prprias favelas ou
comunidades34.!Nessas poesias, os aspectos positivos das favelas so reiterados, medida
que os MCs nomeiam as ruas, esquinas e os lugares de entretenimento de cada um desses
locais, como mostro no rap a seguir.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
34
Atualmente, os funkeiros j no utilizam, como na dcada de 1990, nomes de favelas especficas nos funks,
pois enunciar o pertencimento a um delas pode ser entendido como enunciar o pertencimento a certa faco
criminosa. Tal fenmeno deve-se ao um aumento da violncia no mercado varejista de drogas diretamente
relacionado ao acirramento, nos ltimos quinze anos, de uma poltica de Estado que criminaliza a pobreza e as
favelas cariocas.
116
117
Esse rap foi gravado em 2003, um ano depois do lanamento do filme Cidade de Deus, dirigido por
Fernando Meirelles. Esse filme popularizou e projetou a Cidade de Deus, internacionalmente, como o
espao da barbrie e de uma violncia brutal.
118
e v se no esquece de Deus
Cidade de Deus
C -I- D- A- D- E- D- E- D- E- U- S
e v se no esquece de Deus
Cidade de Deus
Cidade de Deus
Dizem que ns somos violentos,
mas desse jeito eu no agento.
Dizem que l falta educao,
mas ns no somos burros no.
Dizem que no temos competncia,
mas isso sim que violncia.
Que s sabemos fazer refro
se liga sangue bom,
mas no assim.
Ns temos escola
ns temos respeito
se quer falar de ns
v se fala direito.
Estou documentado doutor
cidado brasileiro e tenho o meu valor.
Meu pai pedreiro, mame costureira
e eu cantando rap pra massa funkeira
O ritmo quente alucinante
ta povo do funk ta povo gigante.
Eu quero ouvir geral no refro
Cidade de Deus Cidade de Deus
C -I- D- A- D- E- D- E- D- E- U- S
e v se no esquece de Deus
Cidade de Deus
C -I- D- A- D- E- D- E- D- E- U- S
e v se no esquece de Deus
Cidade de Deus
Cidade de Deus
Mas se tu no sabe eu te conto,
mas eu no sei se tu est pronto.
Nem tudo o que falam verdade.
Queremos paz, justia e liberdade.
Quando tiver um tempo sobrando,
se liga no que estou falando
vai l conhecer minha cidade.
!
119
Segundo Facina (2008, p.3), esse termo foi publicizado pelo rapper MV Bill e explicita um aspecto tpico
da cultura carioca: a existncia de uma lngua produzida a partir das interaes sociais que ocorrem nas
favelas e que impem grias e modas lingsticas ao conjunto dos habitantes das cidades.
120
121
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37
H ainda uma quantidade significativa de funks que tm como temtica o romance, as relaes amorosas e
sexuais. Tais funks sero tratados no prximo captulo desta tese.
38
Os artigos 286, 287 e 288 do Cdigo Penal tratam das aes que so consideradas uma apologia ao crime.
122
s uma forma de existncia pblica39, mas sobretudo uma forma de poder. Mais uma vez
preciso lembrar que a linguagem que subalterniza e estigmatiza determinados sujeitos
fornece-lhes, paradoxalmente, forma de existncia pblica e at mesmo estratgias de
resistncia. Segundo Butler (1997, p.38), os termos pelos quais somos saudados so
raramente aqueles que escolhemos, mas esses termos que ns nunca escolhemos so a
ocasio para algo que poderamos chamar de agncia: a repetio de uma subordinao
originria para outro fim, cujo futuro parcialmente aberto. Nesse sentido, o proibido
um smbolo de estigma passa a ser repetido, utilizado e ostentado por muitos MCs no s
como uma maneira de se fazer visvel, mas tambm como um smbolo de fora e perigo.
Atualmente, os proibides esto disseminados pela cidade do Rio de Janeiro,
sendo, inclusive, consumidos avidamente pela juventude de classe mdia. Se na dcada de
1990, os mais conhecidos eram os proibides que tinham como temtica o crime local,
nos anos 2000, torna-se popular um outro tipo de proibido, aquele que tem como assunto o
sexo. Msicas que tambm fornecem visibilidade e estratgias de resistncia para outros
sujeitos subalternizados: as mulheres e aqueles que transgridem a matriz heterossexual dos
gneros no mundo funk (estes sero tratados no prximo captulo).
No pretendo analisar, neste capitulo, os probides criados nos dias atuais, mas
aqueles que foram produzidos pelos funkeiros de raiz na dcada de 1990. Trata-se das
primeiras msicas classificadas como funk proibido. Segundo esses artistas, dois processos
foram fundamentais para que essas msicas ganhassem fora na dcada de 1990. Primeiro,
o tipo de poltica do Estado direcionada a essa prtica musical. Como destaquei, mesmo
com toda a popularidade do funk, este nunca foi contemplado com nenhum tipo de poltica
cultural efetiva. Muito pelo contrrio, foi constantemente criminalizado por se tratar de algo
da favela. Segundo, o fortalecimento do monoplio da indstria funkeira nas mos de
alguns poucos empresrios.
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39
Atribuem-se outras denominaes, menos usuais, que so: funk de faco, funk neurtico ou funk de
contexto. Essa ltima denominao interessante, pois o que se nomeia exatamente a localidade. Trata-se
de um funk de contexto, pois seria uma exaltao a um determinado contexto, ou seja, a um certo local.
123
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40
Vale lembrar que a apologia somente assim ser considerada se ocorrer publicamente, sendo essa condio
essencial para a caracterizao do delito. (Delmanto, 2002)
124
Lalalaou lalaue
chega de ser violento e deixa a paz renascer
Lalalaooooo Lalalaueeee
paz, justia e liberdade, somos Borel, somos CV
Lalalaou lalaue
chega de ser violento e deixa a paz renascer
Lalalaooooo lalalaueeee
para os funkeiros sangue bom somos Borel at
morrer
se liga minha gente em o que ns vamos falar
de um morro to querido
e as letras vo abalar
l no Borel amigo unio paz e amor,
Depois na comunidade vai dizer pra gente abalou
o morro mais humilde do Bairro Tijuco
por que meus amigos nos somos todos irmo.
L como uma famlia gente de monto
no morro e na favela s tem gente sangue bom
porque meus amigos, l na comunidade
nos fazemos a festa em troca de amizade
e uma das festa para os morro sangue bom
pra poder fazer amizade com os outros irmo
lalalaou lalaue
chega de ser violento e deixa a paz nascer
Lalalaooooo lalalaueeee
para os funkeiros sangue bom somos Borel at
morrer
Essa msica foi composta e produzida num perodo em que boa parte das produes
funkeiras tinha como tema o pedido de paz nos bailes funk. No caso desse funk, o pedido
de paz feito pelos MCs do Borel acompanhado pelo elogio a sua prpria Favela de origem
e aos seus habitantes. Ambas as verses fazem essa exaltao, mas o que torna uma delas
proibida o fato de enunciar o lema e o nome prprio de uma faco criminosa do Rio de
Janeiro (Paz, Justia e Liberdade do Comando Vermelho), bem como o nome prprio de
determinados sujeitos (Jlio, P de Pato, Tacudo, etc), considerados traficantes. Nesse
125
no
126
Como um movimento de
127
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
128
CAPTULO 4
VAI DESCENDO AT O CHO: SEXUALIDADE E GNEROS
NO FUNK CARIOCA
Em uma das primeiras rodas de funk realizadas pelo Movimento Funk Cultura,
organizada na casa da professora universitria Adriana Facina, foi lido e aprovado o
129
manifesto que ora apresento na abertura deste captulo. Esse texto no s destaca o funk
como uma das principais formas de cultura, de lazer e de trabalho da juventude das favelas,
como tambm enuncia a problemtica sobre o monoplio presente na indstria funkeira (j
citada no captulo anterior). Porm, ao mesmo tempo em que esse manifesto torna-se um
instrumento para a disseminao e fortalecimento da identidade desse grupo de funkeiros,
enuncia implicitamente qual o tipo de excluso que essa identidade constri. No
manifesto, inclui-se como cultura a crtica social reconhecida como a verdadeira
poesia da favela e se exclui o chamado funk putaria, entendido, neste manifesto, como
uma mesmise e uma conseqncia da censura velada imposta pelo monoplio da
indstria funkeira.
Nesse sentido, vale lembrar que toda identidade tambm uma forma de excluso.
Dito de outro modo, os sujeitos, ao fornecerem e enunciarem certo sentido para si e para
suas prticas, acabam deixando de lado aqueles que no se encaixam em tal definio.
Trata-se de um tipo de essencialismo estratgico (Spivak, 1985), ou seja, da fabricao de
uma identidade para a qual necessria uma idealizao mnima embora insuficiente,
problemtica e contestada em momentos cruciais. Como j afirmei no captulo anterior, a
identidade do funk de raiz uma co-produo que envolveu a participao de militantes e
intelectuais de esquerda. Assim, foi por meio do dilogo com esses sujeitos que o funk de
raiz assumiu uma identidade de funk consciente no qual seriam encenadas as verdadeiras
mensagens sobre a realidade da favela. Esse movimento foi fundamental para que o funk
ganhasse um outro tipo de visibilidade pblica, porm fez com que inmeras produes
funkeiras fossem excludas de tal movimento. No por acaso que praticamente no
existem, na APAFunk, MCs mulheres e os grupos de funkeiros chamado de bondes
aqueles que so os principais artistas representantes da vertente de funk ora enunciado
como funk putaria (uma referncia s letras), ora como funk montagem (uma referncia ao
ritmo). Vale destacar que essa excluso produziu alguns efeitos polticos. Por exemplo, no
faz parte da plataforma da APAFunk qualquer reivindicao de gnero ou de luta por
direitos sexuais uma plataforma que, ao meu ver, seria central para transformar a vida da
juventude das favelas.
130
Neste captulo, pretendo tratar dessa ltima vertente do funk. Aqui, represento a
identidade do funk putaria seguindo o mesmo princpio utilizado no captulo 3, em que
discuti a constituio do funk de raiz. Desse modo, busco mostrar como as relaes entre
os sujeitos estruturam os bastidores do mundo funk, considerando, principalmente, a
posio das mulheres nessas relaes, bem como interpreto quais so os significados dessa
performance funkeira quando ela entra em cena. Ademais, argumento que o tema sexo
no algo estranho s manifestaes da dispora africana, to presentes na cultura e na
cano brasileiras.
Cabe destacar que, para esses jovens e para essas jovens, o funk tambm uma
forma de trabalho, de identidade e de visibilidade pblica. No entanto, trata-se de uma
identidade e de uma visibilidade que se constroem por meio de significados pornogrficos
nos quais os papis de gnero so altamente marcados e enunciados. Dois argumentos
contrrios emergem no contexto da crtica a essa prtica musical. Por um lado, a
performance dessas jovens tem sido considerada por alguns setores da classe mdia
brasileira como uma msica que corrompe menores, ou ainda, como uma msica que
incentiva a violncia contra as mulheres. Por outro lado, recentes estudos desenvolvidos
sobre as mulheres no funk tm apontado que essas jovens com suas performances altamente
sensuais encenariam um tipo de novo feminismo, no qual falariam abertamente sobre
sexo em nome das jovens mulheres das favelas (Lyra, 2007). Ambos os argumentos so
problemticos.
A primeira acusao do funk como uma violncia de gnero est inserida no
contexto mais amplo de criminalizao dessa prtica musical e de tudo aquilo que oriundo
da populao favelada e pobre no Rio de Janeiro. Alm disso, conforme analisarei ao longo
deste captulo, o funk to misgino quanto outras prticas musicais at mesmo aquelas
ligadas a uma elite intelectual burguesa e, supostamente, branca. Portanto, o problema da
violncia de gnero no est no funk, mas na cultura brasileira de um modo geral.
O segundo argumento de que o funk seria um tipo de novo feminismo passa por
uma compreenso muito superficial dos bastidores do mundo funk, como tambm do
prprio termo feminismo. preciso reconhecer que, no chamado funk putaria, muitas
jovens ganharam voz e visibilidade na cena funk, bem como algumas performances
131
fiel ou a
132
Aqui, vale fazer uma breve retrospectiva e destacar que, na dcada de 1990, poca
do surgimento das primeiras composies desse gnero, o funk possua duas caractersticas
especficas: a batida do funk tinha como base o ritmo do rap produzido na regio da
Flrida (EUA), chamado de Miami Bass e as letras eram, quase sempre, longas narrativas
que falavam de paixo e de desiluses amorosas, retratavam os prazeres e as dificuldades
de se viver em uma favela ou pediam paz nos bailes42. Esses funks eram cantados, em sua
grande maioria, por dois rapazes que formavam uma dupla MCs.
Nesses primeiros dez anos de produo e consolidao do funk, a cena era
praticamente dominada por essas duplas de MCs masculinos43. Foi somente em meados dos
anos 2000, quando o funk j havia firmado-se no Rio de Janeiro como um dos mais
populares ritmos da cidade, que os bondes e MCs mulheres ganharam projeo. Nesse
momento, o contedo e o ritmo do funk carioca passavam por algumas transformaes. A
batida do miami bass cedia espao para o ritmo do chamado tamborzo e a maior parte
das letras comea a ter um contedo considerado mais sensual e ertico. Se o rap, cantado
nos primeiros anos de funk por uma dupla de MCs masculinos era chamados de rap-funk
ou funk-consciente, nos anos 2000, os raps que se disseminam pelas cidade do Rio de
Janeiro passaram a ser reconhecidos ora como funk-montagem, ora como funk-putaria.
Esse ltimo formado por pequenas narrativas que, geralmente, so constitudas por trs ou
quatro versos, continuamente repetidos. O funk-montagem ou apenas montagem (como
freqentemente chamado) refere-se s mixagens de ritmos e melodias produzidas pelos
DJs em uma bateria eletrnica. Nesse caso, o recurso eletrnico mais importante que a
narrativa ou a voz do MC. Nesses dois tipos de funk, a relao entre os sexos a
principal temtica das performances. Os interlocutores desses funks no so apenas
homens, mas homens que falam com mulheres e vice-e-versa. Porm, como mostrarei
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
Nos anos 1990, tornou-se popular um tipo de baile funk conhecido como baile de corredor. Nesses
eventos, as galeras funk de vrias partes da cidade se confrontavam violentamente nos chamados
corredores: uma linha divisria imaginria que separava as galeras consideradas amigas e as inimigas,
denominadas de alemes. Esse corredor, portanto, funcionava como uma espcie de arena onde os rapazes
simultaneamente combatiam e danavam (Ceccheto, F. & Farias, P., 2002). nesse contexto que muitos MCs
comeam a cantar raps em que a temtica era um pedido de paz nos bailes.
43
Dandara e Cacau foram as nicas MCs que tiveram projeo no funk carioca na dcada de 1990.
133
adiante, nada faz supor que esse dilogo leve necessariamente a uma relao de simetria
entre sexos.
Nos anos 2000, os palcos de funk passam a ser ocupados pelos bondes termo
utilizado para designar um grupo de jovens rapazes que cantam msicas sobre os
comportamentos sexuais e danam de forma altamente feminina. Entre outros artistas, tais
bondes inspiram-se em um danarino de funk conhecido como Lacraia: uma ex-dragqueen que, juntamente com o cantor, o MC Serginho, dana, segundo Lacraia, como uma
quase-mulher. Alm disso, muitas mulheres passam a fazer parte da cena funk, cantando a
sua sexualidade. Assim como nos anos 1990, quando os artistas produziam duas verses
(uma para tocar nas rdios e outra considerada proibida por fazer apologia ao crime e ao
criminoso), os MCs e as MCs do funk-putaria tambm produzem duas verses: uma
considerada mais light e outra para ser tocada nos bailes em que o contedo qualificado
pelos meios de comunicao corporativos como proibidos por possurem uma linguagem
que fala de sexo explicitamente.
Cabe destacar, primeiramente, que a erotizao do funk no deve ser vista como um
fenmeno singular e isolado, uma vez que sexo no um tema estranho s manifestaes
da dispora africana constitutivas da cultura brasileira. Segundo o jornalista e o crtico
musical Rodrigo Faour (2008), o lundu, o maxixe, a marchinha, o samba e a prpria MPB
sempre foram permeados por temas erticos. No de hoje que pardias, duplos e triplos
sentidos, refres pornogrficos fazem parte de muitos gneros musicais brasileiros. As
marchinhas de carnaval por exemplo, Mame eu quero (1936), de Jararaca-Vicente Paiva,
ou Eu dei (1937), de Ary Barroso sempre se prestaram bastante a esse papel. Da mesma
forma, as msicas do Nordeste tambm so um bom exemplo desse tipo de canes
pornogrficas de duplo sentido Passei a noite procurando tu (1970), do Trio Nordestino.!!!!
Tais msicas sempre tiveram suas verses mais pornogrficas executadas pelos
cantantes em seus ambientes prprios, por exemplo, os clubes, blocos carnavalescos, festas
e forrs. No entanto, a ampliao dos circuitos de execuo e produo se deu
posteriormente. Mais especificamente, podemos falar que isso ocorreu no Brasil a partir do
que veio a ser chamado ax music. Segundo Ceccheto & Farias (2002), na virada dos anos
1980 para os 1990, esse gnero musical
134
especularizao do ato sexual a partir de letras de msica cada vez mais explcitas, assim
como coreografias tpicas (p.57). Tais msicas passaram a dominar o mercado fonogrfico
nacional, inaugurando o que um crtico musical denominou como bunda music (cf. Trik
de Souza, apud Villaa, 1999).
Com isso, quero dizer, em suma, que o contedo e a forma ertica/pornogrfica no
um privilgio do funk, mas sempre fez parte de nossas canes e de nossas prticas
culturais como um todo, desde os anos trinta at os dias atuais. Porm, o que h de
especfico nos dias de hoje que houve uma mudana do lugar da pornografia. De acordo
com Ceccheto & Farias (2002), na virada deste sculo, a pornografia sai do canto do palco
e transforma-se no centro das atenes. Dito de outro modo, a pornografia como estilo
algo dominante, ou quase, na indstria cultural como um todo essa a novidade (p.59).
Por que isso ocorre? Uma das explicaes possveis seria que o sexo transformouse, nos ltimos anos, em uma temtica que, mais do que nunca, publicamente e
amplamente enuncivel, pois a sexualidade passou a ser encarada como um projeto ou
uma propriedade do indivduo e no mais como um fenmeno da natureza. Segundo
Giddens (1992), essa popularizao do sexo est inserida em um contexto ultramodernizante, no qual assistimos a uma expanso do mercado do erotismo e da
pornografia e uma conseqente ruptura de muitas convenes mais restritivas do passado
o tema sexo deixa de ser um assunto unicamente privado.
Por essa via, Michelsen (2001) argumenta que os ltimos anos foram
acompanhados por um enorme crescimento da indstria do sexo, ou seja, pela globalizao
da pornografia que afetou a indstria cultural de um modo geral. Ainda segundo Michelsen
(2001), essa indstria encontra-se em franca expanso, envolvendo um sistema global de
entretenimento sexual que vai de vdeos porn e shows de streap tease prostituio, casa
de massagens, danarinas exticas, sexo explcito na Internet, entre vrios meios. Somente
no Brasil, cerca de dez milhes de mulheres tm envolvimento nessa rede; dessas, meio
milho seriam crianas (Michelsen, 2001).
Segundo algumas antroplogas feministas, essa disseminao e mercantilizao do
sexos teria um impacto diferente em meios populares. Por exemplo, para Heilborn (1999),
os sistemas de gnero em meios populares seriam mais tradicionais, pois os pobres,
135
136
moram com a me ou a av. Essas provedoras, quando possuem emprego, trabalham como
ambulantes ou faxineiras. Os funkeiros e as funkeiras, que normalmente j exercem alguma
outra funo (como ajudantes de obra, flanelinhas, empregadas domsticas, etc) e j so,
em sua grande maioria, pais e mes, buscam o funk no s como diverso, mas tambm
como uma forma de reconhecimento pblico e uma fonte de renda a mais.
So rarssimos os/as funkeiros/as que trabalham sem o auxlio de pequenos
empresrios esses ltimos, muitas vezes, so pessoas, tambm, oriundas das favelas. Tais
empresrios, muitas vezes, j foram artistas de funk. So eles que auxiliam na negociao
entre os artistas e as duas nicas empresas de funk do Rio de Janeiro. A relao entre os
artistas, os pequenos empresrios e essas duas empresas de funk altamente conflituosa.
Embora seja necessrio reconhecer que a autoria dos funks uma questo altamente
controversa, uma vez que essas produes so, muitas vezes, um produto coletivo, tais
produes acabam sendo registradas no nome de uma ou mais pessoas44.
Segundo Morelli (2000), roubo e venda de msicas so uma prtica comum na
indstria fonogrfica de um modo geral. Nos bastidores do mundo funk, pude observar
como essa uma prtica freqente, bem como a disputa de artistas por diferentes
empresrios. Cabe destacar que o show, a produo e a disseminao da msica de estdio,
de um modo geral, envolve a participao de inmeros sujeitos. Mesmo havendo uma
relao dialgica entre os artistas, os pequenos empresrios e as duas grandes empresas de
funk no Rio de Janeiro, preciso considerar as relaes de poder que estruturam essas
trocas. Nesse caso, os pequenos empresrios e a grande indstria de funk tm um papel
determinante sobre essas produes. Se, por um lado, os pequenos empresrios fazem os
contatos com as rdios, com as gravadoras e com as casas de show, estipulando o valor do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
44
Como nos lembram alguns etnomusiclogos (Harrison, 2002; Feld, 1994), msicas folclrias ou indgenas,
bem como as msicas da dispora africana (como o jazz, por exemplo) so produes coletivas, que
dificilmente se encaixam na noo de propriedade e de autoria presentes nas leis dos direitos autorais. A
reividincao da autoria como sendo o produto de uma mente solitria e individual a que se daria o nome de
autor nos remete quilo que Derrida (1997) cunhou de metafsica da presena e que pressupe o argumento
logocntrico da totalidade da presena na significao nesse caso, na marca autoral. Assim, a autoria no
processo de produo de msicas funk no pode ser entendido segundo tal argumento logocntrico. Os refres
que viram sucesso no funk surgem, muitas vezes, nas favelas e nos bailes de comunidade e dificilmente
podem ser atribudos a um nico autor. No entanto, como necessrio registrar as msicas, essas produes
passam a ser concebidas como produtos ou propriedades individuas.
137
trabalho artistas, por outro lado, as duas grandes empresas de funk determinam quais so os
contedos e os formatos dos shows.
Tanto os bondes quanto as mulheres MCs trabalham muito. Esses artistas fazem
shows em casas noturnas situadas na baixada fluminense, nos subrbios e nos bairros mais
pobres da cidade do Rio de Janeiro, de quinta a domingo. Eles realizam uma mdia de
cinco a oito shows por noite nos mais diferentes pontos da cidade45. Porm, os artistas
fazem essa quantidade de shows quando j atingiram certo nvel de popularidade muitas
vezes, isso acontece quando a msica passa a ser tocada na rdio ou no programa de TV
dessas duas grandes empresas de funk no Rio de Janeiro. Essa popularidade tem uma vida
muita curta, no passando de um ano. Por exemplo, ainda que o formato seja bem
semelhante, os grandes sucessos do momento do funk j no so mais aqueles produzidos
pelos artistas de funk que conheci no anos de 2006 e de 2008 perodo em que realizei as
duas etapas de minha pesquisa de campo. Os artistas recebem por apresentao um
montante que os grandes empresrios do funk passaram a denominar o dinheiro do carro,
ou seja, o dinheiro que os artistas gastariam com o transporte equivalente a R$ 100,00 ou
R$ 200,00. O dinheiro adquirido nos shows dividido entre os artistas, os motoristas e os
pequenos empresrios.
Os bondes, normalmente formados por rapazes muitos jovens que esto estreando
no funk, so vulnerveis s decises desses pequenos empresrios. As mulheres que
conheci, a despeito de sua maior experincia do que os bondes no mundo funk (segundo o
critrio de idade, mas tambm de acordo com o tempo que tm de carreira artstica),
tambm tm o rumo de suas carreiras decidido por esses pequenos empresrios. Cabe
destacar que as mulheres habitam o mundo funk, apenas, como MCs e danarinas. De um
modo geral, no encontramos, nos bastidores do mundo funk, mulheres empresrias ou
DJs. Com a exceo de Vernica Costa (conhecida como a Me Loira do Funk) que j foi
vereadora e possui uma produtora de funk e, ainda, um bonde de mulheres chamado
Bonde da Juliana e as Fogosas, que tem a sua me como empresria, as mulheres, em sua
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
45
Inmeras so as histrias de artistas que se acidentam (at fatalmente) nesses percursos. Freqentemente o
tempo curto e a distncia que eles se prope a percorrer muito longa.
138
grande maioria, so empresariadas por homens que muitas vezes so pessoas com quem
elas tm algum grau de parentesco (irmos ou maridos).
Considerando essa posio das artistas funkeiras nos bastidores do mundo funk,
vale a pena lembrar aquilo que algumas estudiosas da performance dessas mulheres
destacaram em estudos recentes. Para Kate Lyra (2007), essas artistas sem papas na
lngua seriam como as rappers norte-americanas, mulheres jovens e negras que esto
desenhando um novo tipo de feminismo. Apesar de essa ser a realidade de muitas rappers
norte-americanas, jovens que, no interior do hip hop produzido naquele Pas, desempenham
as mais distintas funes elas tambm so DJs, empresrias, donas de selos e muitos
desses grupos possuem o seu prprio estdio46 o mesmo no pode ser dito sobre as
funkeiras cariocas. A msica de estdio um trabalho dialgico, mas sempre o produtor
(que, muitas vezes, tambm o empresrio dessas artistas) quem d a palavra final sobre as
msicas. Assim, muitos funks famosos encenados por mulheres, no fim, so performances
nas quais os homens tm um grande poder de deciso sobre a sua forma/contedo.
Alm disso, preciso analisar qual a fora dos atos de fala encenados por essas
mulheres, considerando a historicidade do termo feminismo. Segundo Costa (2002), o
sujeito do feminismo no uma categoria essencial que falaria em nome de um suposto
sujeito homogneo e tambm essencial: a mulher. Articuladas com a poltica de identidade
e a crtica ps-estruturalista, as tericas feministas assumem a categoria mulher como uma
posicionalidade, ou, dito de outro modo, como um lugar de enunciao geopoltico. Ainda
que esse lugar seja mltiplo e marcado por vrias interseccionalidades (ou seja, atravessado
por outros vetores de identificao como, por exemplo, a classe, raa, gerao, territrio,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
46
139
etnia etc), o feminismo uma busca constante por dilogo como esse lugar de enunciao
assumindo toda a sua provisionalidade e contingncia. Nesse sentido, at que ponto essas
produes fruto de relaes de gnero to assimtricas presentes nos bastidores do funk
poderiam ser consideradas como um novo tipo de feminismo?
Ou ainda,
essas
produes dialogam com o que j foi dito sobre o comportamento de mulheres e homens,
buscando, de alguma maneira, estabelecer solidariedade entre as mulheres e alterar as
relaes hierrquicas de gnero? Acredito que no. Com rarssimas excees, tanto as
moas quanto os rapazes integrantes de bondes que entrevistei ao longo de meu trabalho de
campo, ao falarem sobre o contedo pornogrfico de suas produes, no se situam como
sujeitos que estariam preocupados em desafiar as rgidas regras de gnero, tampouco em
lutar por seus direitos sexuais. Ao contrrio, nesse caso, eles e elas repetem e respondem
como reprodutores de uma determinada lgica compulsria dos gneros, pois tal lgica
que, segundo eles, vende ou as pessoas gostam.
Porm, como no h um exterior linguagem, essa repetio muitas vezes provoca
uma subverso dos sujeitos de gnero. Como destaca Butler (2003, p.209), somente no
interior das prticas de significao repetitiva que se torna possvel a subverso da
identidade . Como mostrarei na prxima seo, alguns artistas de funk quando entram
em cena acabam subvertendo certas posies que, tradicionalmente, constituem o lugar do
feminino e do masculino. Todavia, essa subverso, na maior parte das vezes, no se
configura como um tipo de resistncia, tampouco como uma espcie de plataforma
feminista.
MC Dandara, uma das nicas artistas mulheres que iniciou a sua carreira na dcada
de 1990, cantando o funk-rap, abandona essa prtica musical por alguns anos e retoma a
sua carreira em meados dos anos 2000 cantando o funk-putaria. Encenando o funk Pode
me chamar de Puta, a MC volta a ser um grande sucesso no mundo funk, que, segundo ela,
transformou-se numa grande putisse. Aqui, vale a pena destacar um trecho da primeira
entrevista que realizei com essa artista.
Adriana Ento, Dandara, me fala o que voc acha assim da imagem das mulheres no
funk?
140
Dandara (risos) depende. O que voc quer ouvir? Quer saber o que t na moda pra essas
jornalistas?
Adriana O que t na moda?
Dandara Putisse, ora, putisse! O funk virou uma grande putisse! Se voc quiser eu falo
putisse, porque isso que t na moda, t me dando espao nos jornais e as jornalistas
gostam de ouvir.
Adriana T, mas e a Dandara do Rap da Benedita?
Dandara Eita que essa um dia vai voltar! Mas agora, a minha boca t toda suja.
Primeiro vendi pra o marido da Valesca, um empresrio, a msica em que eu dizia que era
uma piranha, eu achava que no ia ter coragem de cantar aquilo. Mas a eu vi a piranha
estourar na boca da Gaiola das Popozudas. A eu resolvi fazer pior, vou fazer a puta.
(...) Eu virei a puta do funk e foi s assim que consegui meu espao no funk. E se a
puta que eles querem assim que eu vou comear (risos) ... Dandara do cu, Zumbi que me
perdoe!
Nesse trecho da primeira entrevista que realizei, Idaulina dos Santos, que escolheu
como nome artstico Dandara em homenagem mulher de Zumbi, devolve a minha
pergunta o que voc acha da imagem das mulheres no funk? com uma outra pergunta
Depende. O que voc quer ouvir? Uma estratgia que, segundo Thomas (1995), seria de
controle de turno. Dandara que, nesse perodo, j havia fornecido entrevistas para
Programas de TV da Rede Record e para revistas de pblico feminino, em que o tom dessas
entrevistas destacam um suposto carter revolucionrio das funkeiras femininas, averigua
primeiro se isso que eu quero ouvir. No entanto, as minhas duas outras perguntas afastamme do lugar de enunciao desses entrevistadores. Primeiro, tambm respondo com uma
outra pergunta o que est na moda? e depois com outra pergunta destaco que sei a
histria da artista, quando digo, mas e a Dandara do Rap da Benedita? Trata-se de um
funk-rap que a artista produziu em 1998 para um festival de funk, em que a letra era uma
defesa da ento senadora negra e favelada, Benedita da Silva. Como se a autora desse rap
fosse uma outra personagem que um dia vai voltar, Dandara conta que, inicialmente, no
queria cantar o que ela chama de putisse. Porm, aps compor a msica Solteira ou
Piranha (dependendo da verso) e vender para o empresrio do grupo Gaiola das
Popozudas que, na poca, tambm era seu empresrio, a artista resolve fazer pior ou,
como ela diz, virar puta do funk.
Como afirmei anteiriormente, a venda e o roubo de msicas prtica comum no
mundo funk. Assim, a msica que Dandara vendeu para o empresrio por uma quantia
!
141
muito pequena vira, com a interpretao do grupo Gaiola das Popozudas, um dos grandes
hits do ano de 2007. Dandara abandona esse empresrio, que tambm marido da vocalista
da Gaiola das Popozudas e decide, com apoio de um outro empresrio, compor e cantar
msicas de contedo pornogrfico. Nesse sentido, vale a pena destacar at que ponto o
falar de sexo sinnimo de resistncia, ou ao contrrio, uma das alternativas impostas
pelo prprio mercado funkeiro s mulheres, pois, de acordo com Dandara, o que t na
moda, o que t me dando espao nos jornais e as jornalistas gostam de ouvir.
At mesmo a funkeira Tati Quebra-Barraco, que estourou com a msica Me chama
de cachora e se transformou em um dos maiores cones dessa vertente feminina do funk,
em entrevista que forneceu a jornalistas, tambm destaca que canta esse tipo de msica no
por alguma causa feminista, mas sim porque o produto que vende. Segundo Tati, No
posso cantar msica romntica. As pessoas no esperam isso da Tati (Essinger, 2005, p.
218). Quando questionada sobre uma suposta militncia feminista, a cantora responde: no
me considero feminista. Mas se ser feminista falar sobre sexo, ento ns todas somos
(apud Medeiros, 2006, p. 88).
Segundo o jornalista Faour (2008), a invaso do sexo no espao pblico e na mdia
transformou a liberdade sexual numa iluso. Nas palavras do prprio autor, a liberdade
sexual est muito ligada ao comrcio e industrializao do erotismo. Tudo fica
condicionado a interesses econmicos. Tudo bem que a cachorra sacuda a bunda, mas ela
tem de ter vontade de fazer isso, e no, apenas, para aparecer na televiso (p.345). Assim,
parece-me que o funk incorporado pela indstria pornogrfica, pois o sexo que vende e,
conseqentemente, a prpria funkeira incorpora a pornografia (ou o que Dandara chamou
de putisse), pois s assim ela pode conseguir espao no funk e chamar a ateno da mdia
corporativa.
Com isso no estou querendo dizer que essas jovens no possuem agncia e no
efetuem escolhas. Agncia, no entanto, no sinnimo de resistncia. Segundo Butler,
enquanto a agncia47 est ligada capacidade de ao de um sujeito (no transcendental)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
47
Como mostra Butler (1997, 16), a demolio do sujeito soberano no equivale demolio da agncia. Se o
sujeito desde o incio constitudo linguisticamente, a agncia comea onde o sujeito soberano abatido.
142
nos discursos, a resistncia est relacionada no s com a ao desse sujeito, mas tambm
com a possibilidade de que essa ao resulte, de alguma maneira, em uma ressignificao
radical dos discursos (Butler, 1997). Ainda que em algumas performances essa agncia
possa ser lida como um tipo de subverso do feminino, acredito ser problemtico afirmar
que esse movimento por si s se configure como uma resistncia feminista. Como mostrei
no fragmento de entrevista que realizei com MC Dandara, ela escolhe esquecer a funkeira
que outrora cantava o Rap da Benedita na medida em que fala em nome da personagem
puta. No entanto, a constituio de tal personagem e da cena funk atual determinada
no s pela pornografia que vende, como tambm por escolhas efetuadas por homens nos
bastidores do mundo funk um espao no qual as mulheres no ocupam as posies de
deciso e de maior poder sobre o rumos e os sentidos do funk e de suas prprias carreiras.
M=#;%&"'#*="#C*%11"#,-.#.%4-.#
Como j enfatizei no captulo 2, uma vez que as identidades de gnero so
constitudas na linguagem, no h, portanto, um gnero que preceda a linguagem. Em
outras palavras, no uma identidade que faz uma linguagem, mas uma linguagem que
faz um gnero. No h um eu fora da linguagem, pois a identidade sobretudo uma
prtica significante. Sujeitos culturalmente inteligveis so efeitos de um discurso e no a
sua causa. Assim, no h um gnero falso ou verdadeiro, pois no h uma essncia
anterior linguagem. Nesse sentido, toda identidade de gnero uma performance ou uma
pardia ou seja, uma cpia de uma cpia (j que no h uma essncia, no h um
original). Porm, ainda que os gneros sejam construes, os sujeitos no realizam qualquer
tipo de performance. As identidades de gnero so reificaes que seguem determinados
padres ligados a um modelo normativo indissocivel das relaes de disciplina, de poder
e de regulao (Butler, 1993, p. 232).
Algumas tericas dos gneros mostram que esses padres acabam por definir os
gneros de forma relacional (Leal, 1988). Assim, homens e mulheres, rapazes e moas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
143
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personagens
145
<-I2&L"##
A novinha outra personagem feminina tpica encenada nos atos de fala da cena
funk. Trata-se de uma amante que significada pela sua pouca idade. Essa tambm
cantada nas msicas de funk como um objeto de desejo ou como aquela que d prazer ao
homem, como mostro no funk a seguir.
Vai Novinha
(Bonde dos Magrinhos)
Vai Novinha, vai novinha
Vai no baile
Eu vou te deixar maluca
Tu vai ficar suadinha.
No baile, eu vou te pegar de jeito,
gata para de gracinha
os magrinhos, com as novinhas
Se voc quer a presso,
gata para de gracinha
os magrinhos
Mandando para a novinhas
Vai Novinha, vai novinha
Rebolando bem gostoso
Tu vai ficar suadinha.
os Magrinhos
Mandando para as novinhas
Tu vai ficar suadinha
Tu vai ficar maluquinha
146
putaria isso ampliado, uma vez que algumas de suas personagens sexuais so significadas
como meninas de pouca idade.
De maneira semelhante, poderamos compreender uma outra personagem encenadas
por um MC feminina, chamada de Vanessinha Pikachu o mesmo nome de um desenho
infantil. Em um dos seus raps que tambm tem o nome de Pikachu, a MC canta a sua
decepo diante do parceiro, decretando seu verdadeiro desejo: Me chamou para sair/olha
que decepo/Me levou pra o cinema para assistir o Pokmon/(...) Eu quero ir pro baile
brincar com Pikachu.
Esses atos de fala demonstram a proximidade desses jovens com o universo infantil,
ao mesmo tempo em que eles marcam a sua distncia desse universo, atravs da stira
quero ver o Pikachu(aqui uma referencia ao rgo genital do homem), olha o preo do
leite ninho, hein! (um alerta para a necessidade de preservativo no ato sexual). A distncia
entre a adolescncia e a infncia , deste modo, construda atravs do alardear da atividade
sexual, que marcaria a entrada na idade adulta.
Ao longo de meu trabalho de campo percebi que, na atualidade, a figura que causa
mais polmica dentro e fora do mundo funk a personagem Novinha. Muitas crticas so
feitas, at mesmo por alguns funkeiros (principalmente, aqueles pertencentes vertente do
funk de raiz). O grande problema com essas letras estaria no fato de essa personagem
significar a passagem da infncia para a adolescncia muito precocemente Novinha
um termo que se refere s jovens menores de idade. Desse modo, parece que a erotizao
do funk encaixa-se muito bem no contexto de expanso da indstria pornogrfica, como
sugeri anteriormente que inclui um nmero grande de mulheres e, entre elas, muitas
crianas. No por acaso que alguns funkeiros que cantam essa vertente do funk, por
exemplo, MC Serginho e Lacraia, tambm criticam essa personagem. Em entrevista que
realizei com a dupla, bem como em suas apresentao, os artistas dizem que cantam para
as mulheres experientes ou para as velhinhas.
P2%@#!"#$%$&S="&6%##
Na linguagem do funk, existe uma nfase na dominao masculina e nos padres
assimtricos das relaes de gnero, mas isso no significa que as mulheres se posicionem
147
148
149
S.#O;";L-11".R###
Entretanto, incorporando, principalmente, a performance de cachorra e seus
inmeros
desdobramentos
(piranha,
puta
boa,
solteira,
mulher
fruta,
cicciolina, cachorra etc) que a maioria das mulheres tomou conta da cena funk.
interessante notar como as funkeiras, que comeam a cantar msicas que so consideradas
mais light (ou seja, em que o contedo sexual no to evidente) ou msicas mais
romnticas, acabam mudando de gnero musical isso tambm acontece com os homens.
Tais artistas passam a ser classificadas como cantoras e cantores de pop romntico. Aqui
parece haver uma restrio nas identidade de gnero que podem ser encenadas no gnero
musical funk.
Destaco, agora, algumas performances de MC mulheres que exemplificam a forma
pela qual as cachorras encenam as identidades de gnero no mundo funk. Primeiramente,
apresento as artistas e as suas msicas e, posteriormente, realizo uma anlise conjunta de
suas produes.
Cantando msicas compostas em parceria com seu irmo, a MC Tati Quebra-Barraco
foi a primeira a utilizar o termo cachorra em seus funks. Depois dela, vrias outras
artistas comearam a cantar msicas com termos semelhantes, por exemplo, MC Dandara e
o grupo Gaiola das Popozudas que encenam a boa, a piranha etc. Em suas letras, a
temtica sempre sobre a sua agncia na conquista e no sexo. Porm, a reivindicao para
si sobre o poder de ao no jogo da paquera acontece por meio de um vocabulrio que
fundamentalmente masculino.
A primeira msica que trouxe o termo cachorra foi Boladona de Tati QuebraBarraco, cantada sob o ritmo do chamado tamborzo e composta pelos trs seguintes
versos: Me chama de cachorra, que eu fao au-au/ Me chama de gatinha, que eu fao
miau/ Se tem amor a Jesus Cristo. Depois disso, outros grupos gravaram funks com tal
termo, bem como Tati na msica Boladona III que leva o nome de seu primeiro CD.
Boladona
Na madruga boladona,
sentada na esquina.
150
Esperando tu passar
altas horas da matina
Com o esquema todo armado,
esperando tu chegar
pra balanar o seu coreto
pra voc de mim gostar
Sou cachorra sou gatinha
no adianta se esquivar
vou soltar a minha fera
eu boto o bicho pra pegar (grifo meu)
No ano de 2007, o grupo Gaiola das Popozudas, composto por trs mulheres (uma
vocalista e duas danarinas), ganha grande popularidade com a msica Agora eu t
piranha ou Agora t solteira (dependendo da verso). Destaco a seguir a verso putaria
Agora t Piranha que encenado pelo grupo Gaiola das Popozudas.
Agora, T piranha
Eu vou pro baile
Eu vou pro baile
Sem calcinha
Agora, eu sou piranha e
Ningum vai me segurar
Eu vou pro baile
Procurar o meu nego
Vou subir ao palco
Ao som do tamborzo
Sou cachorrona mesmo
E late que eu vou passar
Agora, eu sou piranha
E ningum vai me segurar.
Uma das mulheres mais antigas no funk MC Dandara. Nos ltimos trs anos, a
artista s encena o funk-putaria. Em seu ltimo CD de trabalho, MC Dandara conta que,
entre as doze faixas do CD, gravou a msica Pode me chamar de puta que, na sua
opinio pior do que a Piranha encenada pela grupo da Gaiola das Popozudas ,
bem como um outro funk em que ela faz uma homenagem s prostitutas chamado de
Cicciolina do Funk. Em uma das entrevistas que realizei com MC Dandara, a artista
conta: se das prostitutas que o mundo fala mal, em nome delas que eu vou cantar um
151
Cicciolina do Funk
152
dos integrantes do Bonde dos Magrinhos, sob encomenda de Juliana. A artista conta que
queria cantar uma msica para as mulheres que falasse mal dos homens.
A porra da buceta minha
A seu Otrio!
S porque no consegui fuder comigo
Agora fica me difamando n.
Eu vou te dar um papo
V se para de gracinha
Eu d pra quem quiser
Que a porra da buceta minha
Se liga no papo
No papo que eu mando
S porque no dei pra tu
Voc quer ficar me difamando
Agora, meu amigo,
Vai tocar uma punhetinha
Porque eu d pra quem quiser
Que a porra da buceta minha
Antes de analisar essas narrativas, vale fazer uma ponte com as idias de Bakhtin
(1999) sobre o grotesco nas manifestaes carnavalescas. Em seu estudo sobre a esttica
medieval ocidental, o filsofo russo ir dizer que o grotesco se caracteriza por uma
concepo alegre e festiva do corpo, cujo trao marcante o rebaixamento, ou seja, a
nfase no plano material, em contraposio a tudo que ideal e abstrato. Nas palavras de
Bakhtin (1999, p.19),
Degradar significa entrar em comunho com a vida da parte inferior do corpo, a
do ventre e dos rgo genitais, e portanto com atos como o coito, a concepo,
a gravidez, o parto, a absoro de alimentos e a satisfao das necessidades
naturais. A degradao cava o tmulo corporal para dar lugar a um novo
nascimento, e por isso no tem somente um valor destrutivo, negativo, mas
tambm positivo, regenerador: ambivalente, ao mesmo tempo negao e
afirmao.
153
154
modo, a MC do grupo Gaiola das Popozudas encena atos de fala em que ela se posiciona
como uma jovem que vai pro baile, procurar o seu nego. Tati Quebra-Barraco, por seu
turno, coloca-se como agente no jogo da seduo quando canta que est com o esquema
todo armado, esperando o homem chegar e MC Dandara rompe com aquilo que no deve
ser dito pelas mulheres, ao enunciar que gosta de piroca grossa a noite inteira.
Assim como em outros gneros da cano brasileira, no funk, homens e mulheres
so significados de forma antagnica por uma formao vernacular altamente sexista, na
qual a masculinidade valorizada e a mulher sempre retratada pela dicotomia santa
versus puta ambas as construes so equivalentes. Em outras palavras, na cano
brasileira, a mesma mentalidade que situa a mulher num pedestal aquela que idealiza a
sua sexualidade. Segundo Beltro (1993, p.48), a viso masculina que coloca a mulher no
campo do sagrado, abrangendo um endeusamento, uma adorao, a mesma que faz da
mulher um objeto que presta servios ao homem e que a ele entrega o prprio corpo.
Alm disso, preciso considerar a forma pela qual os gneros so encenados no s
na cano brasileira, mas nos textos sonoros da dispora africana. Paul Gilroy (2001)
ressalta que, entre outros elementos,
155
discursiva49. Esses sujeitos no esto livres das tradicionais formas de poder constitudas
por esse discurso ertico, porm, ao cit-lo, os sujeitos femininos reiteram tal discurso,
podendo (ou no) coloc-lo em novo formato. Como mostra Butler (1997), o sujeito que
enuncia o texto sexista no tem um controle soberano sobre a disseminao de seus
sentidos. O mesmo vocabulrio que oprime e objetifica o feminino, transformando-o em
pura corporalidade pode funcionar, tambm, como uma possibilidade de agncia para esse
mesmo sujeito. O nome que fere fornece, paradoxalmente, a possibilidade de existncia
social para o sujeito, uma vez que este inserido na vida temporal da linguagem (Butler,
1997).
esse movimento que MC Dandara encena, quando diz: se todo mundo fala mal
das putas, em nome delas que eu vou cantar um funk. Da mesma maneira, essas jovens
apropriam-se dos termos que interpelam e ferem o sujeito feminino: puta, piranha,
cachorra, etc. Na performance das mulheres, quando esses termos so enunciados pelos
sujeitos que deveriam silenciar, parece haver uma subverso das posies de gnero, j que
esses termos deixam de ser totalmente negativos e passam a constituir a identidade de
sujeitos femininos, que desafiam a autoridade e o poder masculinos no jogo da seduo.
Desse modo, nesses atos de fala encenados no funk, homens e mulheres se igualam: ambos
tm desejos permanentes para o sexo. Nessa vertente do funk-putaria, entra em cena uma
nova modalidade de relao entre os sexos, com a emergncia de uma sexualidade feminina
que se ope passividade sexual.
Segundo Ceccheto & Farias (2002), possvel observar nas performances dessa
vertente do funk carioca uma forte rejeio por parte dessas jovens s atividades
desenvolvidas comumente pelas mulheres das classes populares como, por exemplo, lavar
pratos e cho , e o privilgio de outros espaos de lazer e de consumo: o baile onde se
namora e o shopping onde se compram roupas. H, portanto, uma ntida recusa a papis
subalternos ligados ao trabalho domstico servil.
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49
Aqui, no pretendo afirmar que essas jovens no existissem anteriormente, mas foi com a erotizao do
funk que as MCs femininas passaram a ter uma identidade, ou seja, uma forma de existncia na cena funk.
156
rivalizam com e diminuem o outro sexo. (p.132, traduo livre). Muito pelo contrrio,
o feminismo sobretudo uma reivindicao que busca desnaturalizar e ampliar as escolhas
157
dos gneros, aumentando, nesse caso, o campo de possibilidades de ser mulher e de ser
homem.
OZ-*#)%2"9#=".#6[#&"#=-,"R'#"#;-1#%#-#H1%F-#,"#.%&.*"@2,",%#
De um modo geral, os significados raciais so apagados no funk carioca: tanto na
vertente do funk de raiz, quanto nas performances de gnero encenadas no chamado funkputaria . Com rarssimas excees50, o funk sinaliza uma atitude especfica, de no
explicitao do tema da cor. Embora se fale o tempo todo de corpo e boa parte das MCs
que cantam funk-putaria possam ser consideradas negras ou mulatas, apenas
implicitamente que elas articulam os significados raciais na constituio de suas identidade
de gnero. Alm disso, a construo dessa identidade sexual das mulheres parece acontecer
na medida em que elas apagam certos smbolos de beleza negra (disseminados pelas
manifestaes da dispora africana) em seus corpos.
Primeiramente, cabe destacar que o corpo no uma superfcie, mas parte
integrante da construo performativa da identidade. O corpo s tem existncia por meio de
um processo de materializao que se estabiliza ao longo do tempo, produzindo no corpo
um efeito de fronteira, de fixidez e de superfcie. Desse modo, o corpo no uma
exterioridade, mas um ato itervel, uma forma de o sujeito dizer, fazer, dramatizar e,
conseqentemente, constituir a si prprio (Butler, 1993). Como mostra Foucault (2000), a
constituio do sujeito contemporneo sempre esteve relacionada com a construo de uma
certa corporalidade gerada pelo poder/saber das instituies modernas. Nesse sentido, a
identidade uma forma de existncia poltica, que, desde o incio, uma existncia
corporal e esttica.
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50
158
Por essa via, podemos compreender que o atributo corporal beleza no algo que
se possui ou se tem, mas algo que se faz ou se constri. Dito de outro modo, a
beleza um produto de nossas performances e de nossas leituras, ou seja, a beleza
moldada e reificada, portanto nunca , naturalmente, dada. E, como tal, sempre
atravessada por inmeros significados de identificao, como, por exemplo, os de raa e os
de gnero. Segundo Pinho (2004), embora o Brasil seja formado por uma populao
majoritariamente negra, o padro de construo e valorao dos corpos pautado por uma
lgica eurocntrica que classifica e determina, entre outras coisas, as categorias de beleza
e de feira (p.110). O padro de beleza branca a medida utilizada para significar e
qualificar as caractersticas fenotpicas51. A prpria mulata como a figura dengosa e
sensual, to presente no imaginrio nacional sempre determinada de forma relacional,
ou seja, sua beleza e feminilidade so definidas por contraste (aproximaes e
afastamentos) com as da branca, que a referncia para o belo.
Os significados da beleza negra, disseminados em parte pela cultura da dispora
africana, que buscam reverter tal lgica, no tiveram muita ressonncia na forma pela qual
os corpos negros so lidos no funk carioca. No h, por exemplo, mulheres com trana ou
qualquer outro tipo de penteado relacionado aos smbolos da beleza negra na cena funk.
Cabelos alisados, cabelos pintados de louro e lentes de contato azuis ou verdes um dos
padres das cantoras funkeiras, como tambm de muitos jovens do funk.
Segundo Pinho (2004, p.90), persistem no Brasil os ideais de que necessrio
embranquecer ou pelo menos domar as caractersticas negras. Uma das estratgias mais
comuns tem sido a manipulao da aparncia atravs do alisamento dos cabelos. As
identidades no funk seguem esse padro. MC Dandara, por exemplo, que utilizava
acessrios de temas tnicos e um penteado ligado valorizao da beleza negra chamado
de Black Power, ao emplacar com o sucesso Pode me Chamar de Puta, transforma
completamente o seu visual. Assim como as outras funkeiras, MC Dandara passa a entrar
na cena funk com roupas justas e curtas, o cabelo alisado e lentes de contato.
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51
Como mostra Gilroy (1996, p.25), o fentipo no tem qualquer sentido natural anterior a seus cdigos
culturais e historicamente mutveis. O processo de significao a nica questo que importa.
159
Nas letras das msicas funk e nas prprias entrevistas que realizei com essas artistas,
os significados raciais quase nunca aparecem. No entanto, pela sua negao que tais
significados se revelam. Aqui vale destacar o ttulo de uma msica e um famoso bordo de
Tati Quebra-Barraco, teis para compreender essa dissimulao e a forma pela qual beleza,
raa, gnero e sexualidade articulam-se na cena do funk carioca. Sou feia, mas t na
moda o nome de um dos funks encenados por Tati Quebra-Barraco. Esse ato de fala,
juntamente com o enunciado no tenho cabelo liso, no sou gostosa, mas t comendo o
seu marido viraram, sem dvida, os dois bordes mais populares da artista. O primeiro
deles serviu at como ttulo do documentrio sobre as mulheres no funk produzido pela
cineasta Denise Garcia52.
Nesses atos de fala, fica implcito que o sujeito que enuncia tambm atravessado
por significados raciais. Implcito porque Tati, em nenhum momento, tanto em suas letras,
quanto em suas entrevistas, autodenomina-se negra. No entanto, por uma srie de outras
metonmias que esses significados vo se desenhando. Tati feia e o seu cabelo no
liso em relao a um padro branco de mulher. Tal estratgia discursiva est inserida na
forma pela qual o Brasil, como um pas de ideologia mestia, l e significa as relaes
raciais. A exaltao mistura de raas uma estratgia para desqualificao de qualquer
reivindicao de identificao afrodescendente essa identificao, entre outras coisas, o
elemento poluidor da mistura.
Na fala de Tati no ocorre uma inverso desse imaginrio: ou seja, o cabelo negro,
tido como negativo, no positivado. Esse aspecto, ao meu ver, tambm demonstra como
problemtico reconhecer que essa sexualidade cantada pelas funkeiras seria uma espcie de
resistncia. Para compreender melhor essa questo, vale estabelecer, mais uma vez, um
contraste com algumas rappers negras norte-americanas, que tm na sexualidade um tipo de
plataforma feminista. Como mostra bell hooks (1993), o erotismo dessas artistas seria uma
espcie de cura por meio da qual as jovens negras transformam certa imagem
estigmatizante em smbolo de orgulho, poder e auto-estima. A sensualidade dessas rappers
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
52
Sou feia mas t na moda (2005). Direo, roteiro e produo Denise Garcia.
160
se constri medida que elas exaltam e positivam a negritude feminina, que nunca foi
considerada desejvel para os padres nacionais norte-americanos.
Porm, no funk carioca no h uma inverso do imaginrio racial brasileiro - no
qual a mistura uma forma de negar ou dissimular a negritude. A reposta corporal dessas
MCs parece encaixar-se na dinmica racial brasileira. Dito de outro modo, para Tati (e para
as outras funkeiras), a reivindicao da sensualidade passa pelo apagamento do excesso de
negritude em seus corpos, aproximando-se, desse modo, da figura da mulata sensual.
Segundo Mariza Corra (1996, p.37), a valorizao da mulata na cultura brasileira se
constitui numa ambivalncia, pois como um smbolo de feminilidade graciosa, ajuda a
revelar o que pretende esconder: a rejeio da negra preta.
Assim, a reivindicao da sensualidade no funk carioca no est ligada a uma
inverso dos significados hegemnicos que historicamente tm sido atribudos aos corpos
das mulheres negras. Muito pelo contrrio, Tati reivindica sensualidade porque isso que
vende e lhe fornece popularidade ou como diz a artista o que est na moda.
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Como destaquei anteriormente, a performance dos bondes, alm de atualizar a figura
do jovem macho sedutor, tambm carrega marcas de certa ambivalncia. Esses grupos,
freqentemente, utilizam, como nome artstico, termos que so, usualmente, utilizados para
designar identidades femininas estereotipadas piranhas, facinhos etc. Alm disso, os
movimentos acrobticos que se misturam com um rebolado, considerado feminino, faz
parte de sua performance de palco. Desse modo, os bondes parecem quebrar determinados
significados de masculinidade.
Em uma entrevista que realizei com um dos integrantes do grupo Bonde dos
Prostitutos, o jovem conta que militar e declara-se heterossexual como a maioria dos
outros artistas dos bondes. Quando perguntei para ele se j teria tido algum problema com
exrcito por causa de sua carreira artstica, o jovem me respondeu que, aos poucos, os
colegas do quartel entenderam que o funk, para ele, era tambm trabalho e por isso os
outros militares aprenderam no s a respeitar o seu rebolado, como tambm a admir-lo.
161
Vale destacar que no importa tanto qual o comportamento desse jovem em sua
intimidade, mas sim o significado pblico que adquire determinada performance masculina.
Entendo que o rebolado dos bondes fornece visibilidade e respeito para que os corpos dos
sujeitos possam existir na cena funk para alm dos rtulos gerados pelas dicotomias rgidas,
na qual determinado sexo ser sempre igual a certo comportamento.
O Bonde dos Magrinhos, que uma das principais referncias para os outros
bondes Os prostitutos, Os Facinhos , inspira-se, entre outros artistas, na danarina
Lacraia, da dupla funk Serginho e Lacraia. Tal danarina, ex-drag-queen, define a sua
identidade de gnero como sendo uma quase-mulher.
Serginho e Lacraia uma dupla que mais do que qualquer outra no funk
carnavaliza as regras de gnero. Em suas performances, essa dupla ironiza a matriz
heterossexual, quando, por exemplo, Serginho, ao lado de Lacraia, enuncia os seguintes
versos de uma msica chamada Macho:
Macho
Diz que isso t errado,
quando v fica bolado.
Ele diz pra todo mundo,
que no gosta de viado.
Mas quando chega a noite,
ele sai pra procurar
um algum bem diferente
pra de lado ele trocar
E tem mil fantasias,
que ele quer realizar
Quer tapa na cara,
quer beijo na boca.
O macho virou uma louca!
A letra dessa msica, que fala de um homem que surdina da noite tem relao
com um outro homem que considerado viado, mostra como so ambivalentes as
definies do que venha a ser um macho. Como mostra Fry (1982), na Amrica Latina,
os papis ativo e passivo numa relao sexual que determinam a hetero ou a
homossexualidade dos sujeitos. Portanto, para questionarmos a matriz heterossexual,
necessrio atravessar as fronteiras da naturalizao e historicizar todas as partes dos nossos
162
163
significados de gnero, como tambm dos significados raciais. Aqui, vale destacar uma
verso chamada Luana que a dupla fez da msica de MC Sapo chamada Tranquilo.
Transcrevo a seguir ambas as msicas.
Tranquilo
MC Sapo
Que batida essa,
Que no funk sensao?
claro que funk, meu irmo.
Vrias mulheres lindas rebolando at o
cho.
Isso que pura seduo.
Vem pra c danar,
Vem pra c curtir
Hoje a gente vai se divertir
Nessa festa
No vou mais sair
Comigo, vem cantando assim:
Eu to tranquilo,
To numa boa,
To curtindo o batido
Se liga nessa,
Vem curtir essa emoo
E a mulherada vai descendo, desce, desce
Luana
Serginho e Lacraia
Que gatinha essa
Que quer ganhar uma cano?
claro, Caetano disse no.
Ela modelo, atriz de televiso.
claro, Caetano disse no.
Vem pra c danar,
Mas me diz seu nome?
Lacraia - Meu nome Luana Piovani
Eu to tranquilo,
To numa boa,
To curtindo o batido
No fiz a msica,
S porque no sei seu nome
Lacraia - Eu j disse Luana Piovani
Desce, desce, desce....
Na verso de Serginho, a gatinha tem nome, e este Luana Piovani (uma artista da
Rede Globo: uma modelo branca, magra e loira de olhos azuis). Mas quem no palco
responde e encena essa artista, reivindicando, parodicamente, a identidade de Luana
Piovani, Lacraia. Quando a dupla encena essa msica, Lacraia que est sempre
detalhadamente bem vestida e maquiada parece embaralhar os significados de gnero e
raa, causando em seu pblico uma mistura de desconforto, curiosidade e fascnio. So os
padres heterossexuais de beleza e sexualidade brancas que Lacraia cita para invert-los,
medida que reivindica para si tais padres. Nessa ironia revolucionria, feita
deliberadamente de excessos uma quase-mulher que vira muito mulher na incorporao
de Luana Piovani , Lacraia mostra como as fronteiras que separam os gneros esto
sempre muito perto e podem ser visitadas e continuamente transgredidas.
164
<-I-#P%=2&2.=-#&-#P*&+J##
O formato pergunta do ttulo desta sesso exclusivamente retrico, pois como
venho argumentado, desde o incio deste captulo, no vejo no funk feminino um tipo de
funk feminista. Como destaquei, o tema sexo vem sendo altamente enunciado e
carnavalizado na cena funk. Assim, j que a sexualidade uma construo cultural
resultante das performances que os sujeitos realizam, muitos significados de gnero so ora
reificados, ora subvertidos. Mesmo que as mulheres reifiquem o lugar de objeto sexual em
suas performances, muitas vezes, essas artistas subvertem a lgica que estrutura tal lugar,
quando reivindicam um papel ativo para si, no jogo sexual. Os rapazes, por sua vez,
inspirados na dana de uma drag Queen, tambm alteram os significados das performances
masculinas, como nenhum outro gnero musical produzido no Brasil fez. No entanto,
acredito que essa subverso por si s no se configure como um tipo de resistncia,
tampouco como uma plataforma feminista.
No interior do mundo funk, uma das figuras que tem disseminado tal
posicionamento para a mdia corporativa um dos grandes empresrios do funk. De acordo
com DJ Marlboro, essas jovens que falam abertamente sobre os seus desejos sexuais
estariam criando um tipo de ps-feminismo sem cartilha, fruto de sua prpria vida53. Se,
por um lado, tal argumento tem um aspecto positivo, pois, de alguma maneira, busca
descriminalizar e chamar a ateno do pblico mais amplo para aquilo que a juventude da
favela est dizendo sobre a sua realidade e sua sexualidade, por outro lado, esse mesmo
argumento dissimula muita coisa. , portanto, sobre aquilo que no se diz na cena do funkputaria que pretendo tratar nesta sesso.
Assim como DJ Marlboro, algumas autoras, como por exemplo Kate Lyra (2007),
tambm reforam essa perspectiva. Alis, no documentrio j citado, Sou feia mas t na
moda, que popularizou as mulheres no funk dentro e fora do Rio de Janeiro, esses dois
sujeitos so os principais porta-vozes dessa viso. No referido filme, DJ Marlboro assume
tal posicionamento como a voz do prprio funk, e Kate Lyra como mulher, branca, atriz e
sobretudo acadmica, legitima tal posicionamento do funk feminino como funk feminista.
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53
165
Aqui vale a pena interpretar o lugar de fala desses sujeitos, entendido como a
posio de um determinado enunciador em certa ordem institucional e discursiva, que o
habilita a dizer determinadas coisas e que lhe interdita falar de outras (Braga, 1997, p.42).
Trata-se, portanto, de um lugar de fala histrico e ideolgico no interior de uma ordem
institucional que, aqui, pode ser considerada como as ordens estruturantes no s da
indstria cultural como um todo, como mais especificamente da indstria pornogrfica e da
indstria funkeira. Essa ltima, como j argumentei, parece que tem sido cooptada pela
pornografia.
Porm, quando falo de cooptao, no estou caindo na armadilha de ler a cultura
popular pela eterna diviso do ou/ou (Hall, 2003, p.338). Explico melhor, no parto do
pressuposto de que para interpretar a cultura popular seja razovel fazer um leitura que s
nos permite ver a sua identidade como uma prtica cooptada (e conformista) ou como
uma prtica subversiva (e, necessariamente, um smbolo de resistncia). O funk, assim
como outras prticas culturais, cheio de contradies e permeado por diversas lgicas
porm isso no sinnimo de uma interpretao puramente relativista, mas sim de uma
leitura que busca encontrar como as relaes de poder esto presentes nessas contradies.
Assim como h, no funk, respostas e subverses que podem ser consideradas mais
genunas ou seja, ligadas a experincia direta das comunidades de onde elas tiram seu
vigor , h tambm cooptaes e restries impostas pelo mercado e pelas relaes de
poder que estruturam a sua lgica. Como mostra Hall (2003), a cultura popular permite
trazer tona diferentes linguagens outras formas de vida e tradies de representao
(p.342) , ao mesmo tempo em que vulnervel e disponvel para expropriao. Desse
modo, ainda que se entenda que o funk-putaria escancara a forma pela qual a sexualidade
tem sido vivida, dramatizada e carnavalizada pela juventude subalterna, preciso
considerar as presses que fazem com que uma determinada performance que a princpio
pode carregar traos de subverso seja amplamente disseminada.
Considerando tais questes, vale retomar alguns pontos j discutidos neste captulo.
Como mostrei, nos bastidores do funk, as mulheres, geralmente, afirmam que fazem funkputaria porque isso que d dinheiro. Porm, quem determina o que d dinheiro no
so as mulheres como j argumentei, elas no ocupam as posies de poder e de deciso
166
na indstria funkeira. Dito de outro modo, so os grandes empresrios que tm lucrado com
esse tipo de produo. Situado em tal posio de dominao, percebe-se que, a partir do
lugar de fala institucional de DJ Marlboro, no possvel ou mesmo interessante
qualquer questionamento por parte desse sujeito sobre esse aspecto, mas apenas legitimar
ideologicamente e reforar a disseminao de tais produes portanto, o que se diz que
a sexualidade do funk-putaria um novo tipo de feminismo.
Porm, o empresrio sozinho no conseguiria sustentar tal viso, ainda mais
quando consideramos que a posio de dominao desse sujeito relativa. Aqui vale
lembrar, como destaquei no captulo 2, que h momentos e lugares nos quais os sujeitos
aparecem em posio de dominao, mas em outros esses mesmo sujeitos so atores
subalternos. Um sujeito pode ser dominante em relao a certo sujeito e subalterno em
relao a outro. Desse modo, entendo que frente indstria cultural como um todo, DJ
Marlboro ocupa uma posio mais subalterna. Assim, necessrio que outros lugares de
fala se cruzem com o lugar de fala de DJ Marlboro, como uma maneira de lhe fornecer
mais legitimidade diante do restante da sociedade. Nesse sentido, a defesa de Kate Lyra
sobre o funk ser um novo tipo de feminismo tem sido amplamente veiculado nas crticas
sobre o funk apresentada em livros, artigos de jornal e at mesmo em filmes. Antes de
discutir detalhadamente o ponto de vista dessa autora, vale tambm situar o seu lugar de
fala.
Alm de acadmica, a norte-americana que vive no Brasil h mais de 20 anos
ganhou, na dcada de 1970, grande popularidade em um quadro humorstico, em que
encenava uma personagem americana, bela, altamente sensual e ingnua. Na poca, a
atriz foi muito criticada pelo movimento feminista que lia tal personagem ingnua como
uma estratgia para reificao da imagem da mulher como loira burra ou mulher
objeto. Alm disso, a atriz foi a principal personagem do filme ertico de Silvio de Abreu
chamado de Mulher Objeto. Desse modo, entendo que Kate Lyra ao argumentar que o
funk seria um tipo de feminismo, tambm est dialogando ou respondendo a essas criticas
que foram direcionadas a ela na dcada de 1970. Com isso no estou querendo dizer que
esse lugar de fala seja menos legtimo que outros, mas buscando entender at que ponto
167
esses argumentos podem explicar a forma pela qual as identidade de gnero tm sido
encenadas no mundo funk.
Em seu artigo intitulado Eu no sou cachorra no! No? Voz e silncio na
construo da identidade feminina no rap e no funk no Rio de Janeiro, Lyra (2006) divide
o movimento feminista brasileiro em trs geraes e, para ela, as funkeiras fariam parte da
ltima gerao. Segundo Lyra (2006), enquanto a reivindicao das feministas de primeira
gerao estaria relacionada com a luta pelo direito ao voto em 1920, a reivindicao da
segunda gerao estaria ligada luta por direitos trabalhistas, na dcada de 1960. A terceira
gerao seria, ento, formada por jovens que falam abertamente de sua sexualidade, assim
como fazem as funkeiras. Para essa autora, haveria um rompimento entre as feministas da
segunda e da terceira gerao, pois ao passo que a reivindicao das feministas da segunda
gerao passaria pela luta contra o estigma da mulher como objeto sexual, essas jovens da
terceira gerao reivindicariam a igualdade de gnero, afirmando que so seres sexuais e,
como tais, merecem o devido respeito. Esse movimento estaria relacionado ao fato de a
mulher, ao longo de quarenta anos, ter deixado de habitar apenas o espao privado, sendo,
atualmente, um sujeito que faz parte da esfera pblica. Portanto, ainda de acordo com Lyra
(2007), o funk feminino seria uma prtica musical por meio da qual as mulheres
transformaram a sua sexualidade (sempre confinada as quatro paredes) em um tema
pblico.
Entretanto, segundo a lgica estruturante dos bastidores do mundo funk, a
sexualidade no algo que vem tona por questes polticas, mas sim porque uma
mercadoria que vende. Desse modo, o corpo erotizado parece ter a uma funo de permuta
ou seja, o corpo tomado pelo seu valor de troca, enfatizando sua significao sexual a
partir do clculo. Em suma, trata-se de um erotismo funcional em que o sexo a moeda e o
corpo vende (Baudrillard,1995). Em direo semelhante, Castells (1999) aponta que
popularizao do sexo na indstria cultural no promoveu uma liberao de tabus
corporais, tal como se propunha nos anos 1960 nos Estados Unidos e em alguns lugares da
Europa. Para esse autor, atualmente quando nos referimos ao sexo estaramos falando de
uma espcie de supermercado de fantasias pessoais, em que os indivduos se consomem uns
168
169
PALAVRAS FINAIS
171
juntamente com
explicitamente poltico para o funk e para as suas produes. Amparados por significados
como Funk de Raiz, essa vertente do funk narra a favela sob o ponto de vista daqueles
que habitam tais locais e encenam atos de fala lricos que desenham uma nova cartografia
social da cidade do Rio de Janeiro.
Cabe destacar que participei ativamente desse processo de politizao do funk e
pude compreender como determinadas afirmaes sobre o funk carioca como, por
exemplo, de ele ser uma prtica cultural que nega qualquer proposta poltica vinda de
polticos de direita, de esquerda ou mesmo do movimento negro parecem-me um tanto
apressadas. O funk de raiz, o movimento Funk Cultura e a APAFunk so resultantes de
um tipo de interao indita entre os artistas de funk e muitos militantes de esquerda.
Uma das razes para o ineditismo e para a raridade dessa tipo interao talvez esteja
na dificuldade que determinados sujeitos polticos at mesmo aqueles ligados a
movimentos sociais de esquerda tm em reconhecer a importncia da cultura de massa
para a juventude das periferias. Segundo Canclini (2008a, p. 146), na Amrica Latina,
muitos rgos de cultura ainda continuam acreditando que a cultura e a identidade limitamse s belas artes, e um pouco s culturas indgenas e rurais, ao artesanato e s msicas mais
tradicionais. negligenciado o fato de, cada vez mais, os jovens estarem conectados quase
que exclusivamente s indstrias culturais e aos meios de comunicao de massa.
172
Ainda que o funk se posicione no somente como uma criao que jovens das
favelas produzem com seus escassos recursos, mas tambm como uma poderosa forma de
comunicao entre esses mesmos jovens, no h por parte do Estado qualquer tipo de
apoio. Aqui vale lembrar uma crtica de MC Leonardo. Para esse artista,
O governo financia Cirque du Soleil, jogo de peteca em Copacabana, financia tudo. Mas
nunca o funk. Baile funk eles perseguem, probem, cassam o alvar. Por qu? Porque o
funk associado ao trfico, ao crime. Para a sociedade, favelado igual a funkeiro, que
igual a traficante. O funk est ligado favela, que est ligada ao preto e ao pobre54.
Com rarssimas excees, o baile (logo, a prpria criatividade dos jovens negros
favelados) tratado como um caso de polcia. J que o Estado no funciona como uma
espcie de assegurador das necessidades coletivas do funk e de seus artistas (estes, muitas
vezes, nem sequer so reconhecidos como tais), o mercado funkeiro cria rgidas hierarquias
e acaba funcionando atravs de uma frvola frmula de explorao de seus artistas e de
homogeneizao de suas produes.
nesse contexto de explorao e, com esses recursos, que o funk carioca conseguiu
estabelecer-se como uma forma de identidade, de trabalho, de diverso e de comunicao
da juventude pobre e favelada, que se dissemina pelos meios de comunicao e pela cidade
carioca. Tal com este estudo, outras pesquisas (Vianna, 1988; Souto 2003; Herschmann,
2005; Facina, 2009) vm mostrando a centralidade do funk carioca no s para a juventude
das favelas e das periferias do Rio de Janeiro, mas na vida sonora da cidade carioca como
um todo que, muitas vezes, teima em silenci-lo. No entanto, o funk ultrapassa as barreiras
fsicas, espalha-se pela cidade e faz com que a presena das favelas seja mais visvel ainda.
impossvel passar um dia em qualquer espao na cidade do Rio de Janeiro sem ouvir o
som do batido vindo de algum lugar ecoando da janela de uma casa, de um carro ou de
um pequeno aparelho de MP3 de algum caminhante, dos celulares de jovens do lado de
l, mas tambm dos jovens lado de c da cidade, etc.
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54
Relato retirado de entrevista A Luta do funk contra o preconceito, publicada em Revista Frum. Ano 09,
abril de 2010, pp. 42-45
173
174
Kleiman (2006) utiliza esse conceito quando se refere ao papel do professor na escola formal, ou seja, esse
sujeito seria um agente social mobilizador dos sistemas de conhecimento, dos recursos e das capacidades
dos membros de certa comunidade. Embora aqui eu utilize o termo agente de letramento no para me referir
a um sujeito, mas para caracterizar uma prtica social especfica, ressalto tambm, a partir da inferncia de
Kleiman, a capacidade mobilizadora do funk carioca, pois por meio dessa prtica musical que os sujeitos
engajam-se em atividades de leitura e escrita, bem como agem em prol de um objetivo em comum.
175
Ao utilizar o termo escritura no me refiro ao escrito em si, mas aos discursos que constituem
determinado produto social como uma escritura, atribuindo-lhe caractersticas, sentidos e valores. Assim,
poderamos dizer que, na cultura ocidental, a oralidade algo que deve ser exterior (ou mesmo anterior) ao
texto escrito. Nesse sentido, a oralidade vista como uma falta (de escritura), somente aceita quando
entendida como licena potica.
57
Termo muitos utilizado nos estudos de letramento para se referir cultura letrada que se organiza em torno
da grafia. A ideologia que perpassa o grafocentrismo que a grafia ou a escrita uma tecnologia individual e
autnoma com valores e efeitos universais (cf. Menezes de Souza, 2001; Street, 1996)
176
177
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