Afasia Progressiva Primária
Afasia Progressiva Primária
Afasia Progressiva Primária
Bruna Lima
Aluna da Licenciatura em Teraputica da Fala
Faculdade de Cincias da Sade
Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal
[email protected]
Jessica Rodrigues
Aluna da Licenciatura em Teraputica da Fala
Faculdade de Cincias da Sade
Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal
[email protected]
Helena Neto
Aluna da Licenciatura em Teraputica da Fala
Faculdade de Cincias da Sade
Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal
[email protected]
ISSN: 1646-0499
Revista da Faculdade de Cincias da Sade, n 7, p. 282-293 (2010)
Submetido: 31 Mai. 2010/Aceite: 24 Ago. 2010
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Sara Correia
Aluna da Licenciatura em Teraputica da Fala
Faculdade de Cincias da Sade
Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal
[email protected]
Sara Santos
Aluna da Licenciatura em Teraputica da Fala
Faculdade de Cincias da Sade
Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal
[email protected]
RESUMO
A afasia progressiva primria uma patologia neurodegenerativa que provoca a perda gradual
da linguagem. Neste artigo efectuada uma reviso de literatura sobre as suas variantes e manifestaes clnicas: afasia progressiva no-fluente, afasia progressiva logopnica e demncia
semntica ou afasia progressiva fluente. Sero, ainda, discutidos alguns aspectos controversos
relativos aos critrios de diagnstico e s possibilidades nas abordagens de interveno.
PALAVRAS-CHAVE
Afasia progressiva primria, demncia frontotemporal, linguagem.
ABSTRACT
Primary progressive aphasia is a neurodegenerative disease which causes a gradual loss of
language function. In this paper a literature review is carried out regarding its variants and
clinical manifestations: non-fluent progressive aphasia, logopenic progressive aphasia and
semantic dementia or fluent progressive aphasia. A few controversial aspects regarding the
diagnostic criteria and treatment possibilities will also be discussed.
KEYWORDS
Primary progressive aphasia, frontotemporal dementia, language.
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ABREVIATURAS
APP afasia progressiva primria; APNF afasia progressiva no-fluente; APL afasia
progressiva logopnica; APF afasia progressiva fluente; DS demncia semntica.
1. INTRODUO
Os quadros demenciais neurodegenerativos incluem a demncia de Alzheimer, a demncia
vascular, demncia com corpos de Lewy e a degenerescncia frontotemporal (Gregory e
Hodges; Mesulam, Primary Progressive Aphasia-Differentiation")
. A degenerescncia frontotemporal foi descrita inicialmente por Arnold Pick em 1892. Mais recentemente, foram
propostos critrios para a diferenciao entre a demncia frontotemporal, caracterizada por
problemas evidentes de comportamento, e a afasia progressiva primria (APP), que engloba
perturbaes predominantes de linguagem durante os primeiros dois anos do curso da
doena (Chawluk et al.; Tyrrell et al.; Abe, Ukita e Yanagihara; Westbury e Bub; Sonty et al.;
Gorno-Tempini, Dronkers et al.; Neary et al.; Mesulam, Primary Progressive Aphasia).
A APP uma sndrome neurodegenerativa de instalao insidiosa, que afecta principalmente a linguagem, cuja deteriorao evolutiva, geralmente com incio entre os 45 e os 70
anos, podendo durar uma mdia de oito anos (de quatro a 14 anos) (Mesulam e Weintraub;
Mesulam, Primary Progressive Aphasia-a Language")
. A apresentao inicial da APP frequentemente a dificuldade na nomeao, tal como acontece aos doentes de Alzheimer
numa fase precoce. Quando apresentam gaguez ou fala lenta e segmentada, e apraxia da
fala (que inclui dificuldades articulatrias e parafasias fonolgicas), a distino com doena
de Alzheimer facilitada (Kertesz). Foi sugerido que, nos doentes com APP, as manifestaes
clnicas relacionadas com a memria e a cognio no-verbal esto relativamente preservadas nos dois primeiros anos (Mesulam, Primary Progressive Aphasia-Differentiation"; Neary
et al.; Weintraub, Rubin e Mesulam). Contudo, alguns doentes podem ter caractersticas
comportamentais ou extrapiramidais que se revelam antes do final deste perodo (Kertesz).
A evoluo dos sintomas determinada pela regio afectada primariamente, visto que o comprometimento pode principiar pelo lobo frontal e afectar posteriormente o lobo temporal, e
vice-versa (Neary et al.). Estudos de neuroimagem, patolgicos e genticos tm sido levados a
cabo de forma a melhor identificar e caracterizar as diferentes manifestaes clnicas descritas,
apesar de uma abordagem mais abrangente ser ainda necessria (Amici
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em caractersticas diferentes, acabando alguns destes doentes por revelar ter a doena de
Alzheimer (Gorno-Tempini et al., Cognition).
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Durante os anos iniciais aps o aparecimento dos primeiros sintomas, os indivduos com
APP conseguem manter as suas actividades de vida diria, continuar a cuidar de si prprios,
conservar os seus passatempos e at mesmo os seus empregos. Todas as dificuldades sentidas podem provocar um sofrimento significativo e prejuzo ao nvel do funcionamento social e familiar, particularmente considerando que so progressivas e que podem evoluir para
incapacidades graves de comunicao (Mesulam, Primary Progressive Aphasia; Mesulam,
Primary Progressive Aphasia-a Language-Based"; David, Moreaud e Charnallet). O mutismo
tende a ser a fase final de todas as formas de demncia frontotemporal, mesmo aquelas que
iniciam com anomalias comportamentais em vez da perturbao de linguagem e verifica-se preservao relativa da compreenso, ao contrrio do que acontece na afasia global ou
na doena de Alzheimer grave (Kertesz). O mutismo final ocorre igualmente na doena de
Alzheimer, mas geralmente em indivduos que j tm demncia global com perda da compreenso e das funes bsicas nas actividades de vida dirias (Kertesz).
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. Verifica-se que o processamento semntico se mantm relativamente intacto no que respeita aos mecanismos de compreenso de palavras isoladas,
bem como manuteno da compreenso e desempenho adequado em tarefas semnticas
no-verbais (Croot, Patterson e Hodges). J quanto aos dfices gramaticais na compreenso
e na expresso, estes encontram-se quer na leitura quer na escrita (Grossman).
Deve ter-se em conta, ainda, outros aspectos que tendem a surgir posteriormente como
apraxia da fala, comprometimento da repetio, alexia (perturbao da leitura), agrafia (perturbao da escrita), perseverao no muito marcada (tendncia para repetir sries anteriores de estmulos, por exemplo, palavras evocadas e previamente activadas) e, mais tarde,
mutismo. Num estudo de caso relatado (Maia et al.), a memria de trabalho e de curto prazo,
e a capacidade de seguir instrues complexas estavam preservadas, contudo, estas capacidades podem deteriorar-se com o tempo (Grossman). Inicialmente, estes doentes mantm a
aptido para a realizao mental de tarefas aritmticas simples e, durante mais tempo ainda,
a noo de quantidades e do valor dos nmeros (David, Moreaud e Charnallet; Maia et al.).
possvel que surja tambm perturbao do funcionamento social, manifestado como
iniciao limitada de comportamento, apatia ou fraca motivao (Grossman). A avaliao
neurolgica pode ainda revelar uma perturbao extra-piramidal, envolvendo mioclonia
unilateral, distonia, rigidez e apraxia dos membros, o que poder sugerir evoluo para um
diagnstico de sndrome crtico-basal no decurso natural da doena (Grossman).
et al., The Logopenic; Gorno-Tempini, Dronkers et al., Cognition). A memria fonolgica (tarefas de amplitude
de dgitos, letras e palavras) demonstrou-se reduzida, constatando-se que o desempenho
seria influenciado pela extenso da palavra (Gorno-Tempini et al., The Logopenic).
Os indivduos com afasia progressiva logopnica revelam um discurso pouco fluente, com
um ritmo lento e com pausas anmicas longas, mas no apresentam dificuldades de articulao nem sintcticas, apesar de poderem ocorrer parafasias fonolgicas (Gorno-Tempini et
al., The Logopenic). A repetio e a compreenso para frases de estrutura gramatical mais
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As caractersticas da logopenia so, por vezes, descritas como afasia progressiva mista de
forma a reflectir a presena da produo de fala no-fluente e de compreenso lexical perturbada
(Grossman e Ash)
. Estudos referem que a doena de Alzheimer poder ser a patologia mais comum subjacente afasia progressiva logopnica (Gorno-Tempini et al., The
Logopenic). As suas caractersticas clnicas so evocativas das perturbaes de linguagem
frequentemente descritas na doena de Alzheimer: dificuldades de nomeao e dfices de
repetio que podem progredir para compreenso lexical perturbada e fala hesitante, associado a perturbao no acesso semntico (Grossman).
e Patterson, Semantic)
. A compreenso da linguagem est manifestamente diminuda devido degradao das representaes semnticas, o que parece ser
o dfice crucial na demncia semntica, uma vez que as caractersticas clnicas principais da
demncia semntica incluem dificuldades de nomeao por confrontao, compreenso
perturbada para palavras isoladas e conhecimento degradado para objectos
(Hodges e Patterson, Semantic; Hodges et al.; Hodges e Patterson, Nonfluent; Grossman). Estes doentes
perdem progressivamente os conceitos das palavras (Kertesz)
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Moreaud e Charnallet), visto que parece que acedem ao sistema semntico a partir do reconhecimento visual
dos objectos e no a partir de inputs verbais, orais ou escritos. Contudo, por haver indivduos
que demonstram anomia e dfice na compreenso de palavras, mas que no tm dificuldade no reconhecimento de objectos nas fases iniciais, alguns autores defendem que tal
levar somente concluso de que a demncia semntica deveria ser encarada como um
sub-tipo da APP (Mesulam, Primary Progressive Aphasia-a Language-Based"; Adlam et al.).
Assim, h autores que alegam que esta seria uma nica entidade representando a degradao da rede semntica, com impacto em competncias verbais e no-verbais e a progresso
da afasia progressiva fluente resultaria invariavelmente num perfil de demncia semntica
(Adlam et al.).
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Alguns autores incluem como critrios para o diagnstico de demncia semntica (Neary
et al.; Snowden et al.) a agnosia visual associativa1 (perturbao no reconhecimento de objectos), logo mau desempenho em tarefas de emparelhamento palavra-objecto, ou palavra-imagem e at prosopagnosia (perturbao no reconhecimento de rostos familiares, mais
frequente na variante direita da demncia semntica). Foram relatados achados consistentes
de atrofia do lobo temporal anterior bilateral, apesar de normalmente assimtrica (Hodges
e Patterson, Semantic)
. Inicialmente, verifica-se atrofia temporal esquerda, todavia, o aumento de anomalias comportamentais, e a agnosia visual para objectos e para faces esto
relacionados com o desenvolvimento de atrofia temporal direita, apesar de se argumentar
que a demncia semntica uma perturbao nuclear da memria semntica (Kertesz).
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5. INTERVENO
A APP pode ter um forte impacto nos doentes e na famlia, logo importante o apoio de
uma equipa multidisciplinar
(Hodges e Patterson, Semantic)
, que inclua psicologia, gentica, enfermagem, terapia da fala e organizaes de apoio. Os cuidadores podero necessitar
igualmente de assistncia contnua e de aconselhamento, devido aos efeitos da progresso
da doena nas rupturas sociais, familiares e de personalidade (Kertesz et al.). Apesar da falta
de estudos aleatorizados relativos a todas as vertentes teraputicas e de no haver tratamento conhecido para atrasar a progresso da doena, existem alguns dados sobre interveno ambiental e farmacolgica que alivie os sintomas (Hodges e Patterson, Semantic).
Ainda no foram publicados muitos ensaios clnicos em que tenham sido administrados
agentes farmacolgicos
(Freedman)
. O uso de frmacos parece ajudar a estabilizar com-
Um dos aspectos que contribui para a questo da determinao da afasia progressiva fluente como uma
entidade diversa, tal como referido anteriormente.
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6. CONCLUSO
O aspecto mais marcante na APP o incio insidioso dos sintomas e a degradao progressiva da linguagem como perturbao primria. Esta patologia pouco frequente, no est
associada a leses sbitas ou a eventos traumticos e esto descritas algumas variantes clnicas. As caractersticas cognitivas, genticas e anatmicas indicam que as diferentes formas
da APP podero corresponder a diferentes processos patolgicos subjacentes.
A afasia progressiva no-fluente marcada pelo discurso agramtico, anmico, lento, hesitante e com pausas, pelas dificuldades no processamento da sintaxe complexa e pela probabilidade de coexistir com apraxia da fala. A descrio de afasia progressiva logopnica
apresenta um quadro clnico semelhante ao anterior, mas perfis anatmicos diferentes e
como particularidade as dificuldades de memria fonolgica. Na demncia semntica o
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discurso fludo, com dbito normal, articulao e sintaxe correctas, mas com pausas anmicas frequentes preenchidas por circunlquios e/ou a imitao do uso de objectos. Consoante a perspectiva, a demncia semntica poder ser considerada como uma forma mais
grave da afasia progressiva fluente ou como uma entidade distinta, estando afectada a memria semntica, ou seja, o conhecimento conceptual no-verbal e verbal, demonstrando
dificuldades no acesso ou nas prprias representaes semnticas armazenadas.
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De salientar que, em patologias degenerativas e de gravidade progressiva, a meta das intervenes ser atrasar, compensar e aconselhar o doente e os cuidadores quanto melhor
forma de lidar com a condio. A terapia da fala poder ser benfica em certos aspectos da
perturbao de linguagem e da a importncia de se identificarem e descreverem os sinais e
sintomas da APP e suas variantes. As diferentes possibilidades de abordagem em terapia da
fala seriam um tema aliciante s por si para uma prxima pesquisa.
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