Limites Da Voz I e II - Eduardo Sterzi Entrevista Luiz Costa Lima

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Dau Bastos (org.

CONSELHO EDITORIAL

Bert/Ja J<. ned:!!r


Candido Mendes
Cristouam BuarqHe
IJ',J2acy Sacbs
[urandir Freire Costa
I .adislau
Pierre

DOlJJOOr

Jala17!CI

Luiz Costa Lima


Uma obra em questo

IGaramondl

Copyright 20 I0, dos autores


Direitos cedidos para esta edio
Editora Garamond Ltda.
Rua da Estrela, 79 - 3" andar - Rio Comprido
Riu de Janeiro - Brasil - 20.251-021
Tcl: (2l) 2504-9211
[email protected]

Reviso
Ana Maria Bernardes, Bianka Barbosa Penha, Clarissa Pcnna,
Elaine Soares Frederico, Fbio Santana Pessanha,
Juliana Caetano, Jun Shimada, Lucia Santalices,
Patrcia Marouvo, Raquel Tavares
Editorao Eletrnica
Estdio Garamond / Luiz Oliveira
Capa
Estdio Garamond / Anderson Leal

Sumrio

Um livro necessrio
Dau Bastos, 7
Nota do entrevistado
Luiz Costa Lima, 47
I. Por que literatura
Lucia Helena, 49
11. Lira e antilira
Haia Moriconi, 63
111. Estruturalismo

e teoria da literatura

Roberto Aczelo de Souza, 77


I V. A metamorfose do silncio
B326m
Bastos, Dau, 1960Luiz Costa Lima: uma obra em questo / Dau Bastos. - Rio de Janeiro :
Garamond, 2010.
14x2Icm.416p.

10-2552.

V. O romance em Camlia Penna

Ivo Barbieri, 115


VI. Mimesis e modernidade

Inclui bibliografia e ndice


ISBN 978-85-7617-190-4
1 Lima, Luiz Costa - Critica e interpretao.
crtica. L Ttulo.

Vera Lins, 109

Ana Lcia de Oliveira, 125


2. Literatura brasileira - Histria c

("1)1): 92R.I,99
CDU 929821.134.3(81)

Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violao da Lei n" 9.610/98.

VIL Dispersa demanda


Martha Alkimin,

vrrr.

159

Trilogia do controle
Hans Ulrich Gumbrccht, 167

IX. A aguarrs do tempo


Danielle Corpas, 183
X. Pensando nos trpicos
Rodrigo Labriola, 203

Um livro necessrio

XI. Limites da voz (I e 11)

DauBastos

Eduardo Sterzi, 229


XII. Vida e mimesis

"Se existe algo quase intil na terra,


esse algo o homem excepcional':

Gustavo Bemardo, 263


XIII. Terra ignota
Cludia Sampaio, 277
XlV. Mimesis: desafio ao pensamento
Aline Magalhes Pinto, 291

xv

Intervenes

1\ cpgrafe acima fecha o penltimo captulo da Trilogia do controte c, se pauta a viso que Luiz Costa Lima tem do ser humano

seja ele considerado iluminado ou pessoa comum -, nortcia a


Marilia Librandi Rocha, 313

XVI. O redemunho do horror


Joo Adolfo Hansen, 337
XVTT. Histria. Fico. Literatura
Srgio Alcides, 359
XVIII. O controle do imaginrio & a afirmao do romance
Dau Bastos, 377
ndice de nomes, 397

intcrlocuo

multifacetada aqui reproduzi da, da qual o incenso e a

lisonja foram banidos a priori, de modo que o foco incidisse no


sobre a pessoa e sim sobre a produo, vista sempre como problcmatizvcl. Ao longo das pginas se sucedem perguntas formuladas
por pesquisadores que, dedicados individualmente a cada um dos
volumes da obra do entrevistado, tm o cuidado dc inserir o ttulo
.-m pauta no todo dos estudos literrios ocidentais. As respostas
visam igualmente ao rendimento analtico, por vezes ao preo da
impresso de que se passou da cordialidade contenda, quando
apenas se aprofundou o debate.

Livros de Luiz Costa Lima, 405

Esse esprito crtico e democrtico marcou meu primeiro con1:110

pessoal com o Luiz, em 1990, por ocasio do concurso para o

mcstrado em Literatura Brasileira da UERJ. O processo de seleo


inclua o sorteio de um autor nacional acerca do qual os candidatos elaboravam um ensaio, e nos coube escrever sobre Clarice

I ispcctor, Como tnhamos um ms inteiro para produzir o texto,


pude conhecer um rol razovel de apreciaes, das quais aproveitei
.iluumas. Perguntado, durante a arguio, se realmente lera os cri7

configurao

do tempo no o confunde

com o traar de uma linha

ser a maneira como Sterne se opor fico j dominante


tempo. Seria a respeito muito produtivo

em seu

seu Tristram

comparar-se

Shandy com romances de qualidade, porm submissos ao mecanis-

XI

mo do controle, como o Tom Jones. Mas isso no cabe aqui.


12. pertinente deduzir que a narrativa constri um determinado
mento entre referencialidade

e interpretao,

cuja caracterstica

entrelaa-

Limites da voz I e II (1993)

seria produzir

um sentido temporalizado?

Sim, ao menos para que no nos tomemos


da desreferencializao,
(qualificado)

adeptos da afirma-

que o texto ficcional realizaria.

desta linha: Paul de Man. Apenas

no me parece que a narrativa

Exemplo

acrescentaria

que

seja o nico meio pelo qual se con-

cebe um sentido temporalizado.

A ternporalizao

contrrio, a condio necessria

e, ao mesmo tempo, a consequn-

cia do processo
"efetuada

de cognio

do sentido, ao

humana, efetuada pela palavra. Digo

pela palavra" porque no me parece que a demonstrao

de um teorema promova uma temporalizao


maior certeza, convm consultar

do sentido. Mas, para

um matemtico.

Os dois volumes perfazem

um percurso terico de quatro sculos,

com incio em Montaigne

e trmino em Kafka. Em um e outro se

assiste, respectivamente,
sujeito individual

ao processo

enquanto

de sagrao

e dissoluo

centro de conhecimento

do

e ordenao

do mundo.
N os Ensaios, o pensador

francs recorre a eventos vi vidos, mas

no para construir sua autobiografia,


dio humana. A resignao
especulativo
a literatura

bem-humorada,

so algumas caractersticas

a agudeza e o carter

a situarem seu texto entre

e a filosofia.

O eu capaz de produzir
os fundamentos
neizadora

e sim para refletir sobre a con-

forma e reflexo

sua elevao

necessrios

dos fenmenos.

em Kant

a instncia

hornoge-

Apto a estabelecer

dotado do discernimento

necessrio

divina. Tambm cria, portanto


chegar luz do smbolo,

encontra

as leis cientficas,

compreenso

da vontade

pode partir do opaco da natureza e

conectando

assim os campos sensvel e

suprassensvel.
Acontece

que o filsofo alemo distinguiu

manteve a ambiguidade
da literatura,
primeiros

com excees

tempos,

esterizao.

quanto abordagem

tica e esttica, mas

da arte, que, no mbito

raras como o Friedrich

se realizou

sem criticidade,

E aqui encontramos

Schlcgel

portanto

uma das temticas

dos

limitada

a interessar

,11
Ii
I

228

229

vivamente Luiz Costa Lima, que j em seu primeiro livro apontava a necessidade de o analista encarar a fruio como importante,

Publicado em 1993, o livro foi altamente favorecido por eu haver


ganhado, no ano anterior, o prmio da Alcxandcr von I-Iumboldt

mas no como porto de chegada, e sim como ponto de passagem

para pesquisador estrangeiro, na rea que chamamos de cincias


humanas (Gcistcswissenschaften).
Nele, trabalhei durante anos,

teorizao.

Eis que no sculo XX Kafka negou capacidade de entendimento


ao indivduo e embaralhou novamente tica e esttica, ao desvelar

mas suponho com maior intensidade a partir de 1990. Lembro-me

o carter fabular de uma das mais belas construes iluministas: o

de t-lo comeado em Stanford, onde estive entre dezembro de


1989 a maro de 1990, como professor convidado. A, aprovei-

estado de direito. Assim, tingiu de melancolia e absurdo a analgesia


a que a humanidade se entrega sempre que se abstm do exerccio

tando a grandeza de sua biblioteca, reli todo o Kafka e tudo que


fui capaz de devorar de sua bibliografia. Mas que fazer com o

da criticidade.
A entrevista se faz de uma grande quantidade de questes rela-

cabcdal de notas tomadas? Creio que foi ainda em Stanford que


pensei em considerar a parte de Kafka como a derradeira, vindo

tivas a Limites da voz, explicitando seus conceitos nortcadorcs e


inserindo-o no conjunto da obra costalimiana. Tambm procura

temporalmente para trs. Mas j no recordo quando percebi que


o fio condutor seria a questo da formao do sujeito moderno,

precisar os limites da literatura, diferenciando a viso que se tinha


dela na Antiguidade e na Modernidade. Por fim, mas de suma

representando Kafka o incio do desenlace para alguma outra


conformao do sujeito humano que ainda no podemos saber

importncia, interroga quanto existncia ou no de autores que


tenham transformado a picada aberta por Kafka num dos caminhos

qual seja. provvel, contudo, que ou tenha ento escrito apenas

possveis da fico.

um esboo do que seria sua composio ou tenha me contentado


em saber que aquela seria a ltima seo. O certo que, poucos

Entrevistador: Eduardo Sterzi (FAAP)

meses depois de retomar ao Rio, meu grande amigo Wolf-Dieter Stempel me telefonou para comunicar-me que havia ganho

1. Comeo por uma pergunta


Mscaras

previsvel,

porm inevitvel.

No posfcio

da mmesis, voc diz que Limites da voz foi o livro em que mais se

empenhou. Este empenho certamente tem a ver com o lugar que voc esperava
Que o livro ocupasse e a funo Que desejava Que ele exercesse na arquitetura de sua obra. Que lugar e que funo so estas? Ou, dito de outro modo,
como as reflexes e concluses

registradas

lado, com a Trilogia do controle,

levada a efeito nos anos anteriores,

outro, com as investigaes


culminar em Mmesis:

no livro se relacionam,

prvias e posteriores

por um
e, por

sobre a mmesis que vo

desafio ao pensamento?

o Humboldt-Preis. Assim, seguindo para Munique no segundo


semestre de 1992, passava a ter a meu dispor o que mais podia
desejar para minha pesquisa sobre Kafka. Mesmo que j tivesse
algo escrito, o tesouro que me esperava era tamanho - desde logo
com o incio da publicao da edio comentada de seus textos
conforme sua redao manual, seguido por uma bibliografia que
vinha desde suas primeiras redaes - que o que fizera se tornava,
ao menos psicologicamente, desprezvel. No difcil entend-lo.
Quer em Stanford, quer em minha casa, o Kafka que, no origi-

os parabns a Sterzi pela pergunta - no porque ela me

nal tinha lido, era o da edio de bolso, em oito volumes. Agora,


com o dinheiro farto que recebia pelo prmio, podia me dar ao

permita mostrar-me mais esperto ou sabido, mas por sua agudeza.

luxo de reler os romances, os fragmentos, os dirios, medida

DOLl

230

231

que a edio fidedigna


a, porque

recordo

comentrios,

ia saindo. (No terei relido todo o Kafka

que os dois volumes,

relativos

um de texto e outro de

a seus dirios s saram alguns anos depois

nestes detalhes porque me do o prazer de recor-

dar meus meses em Munique,


de Romanstica

da universidade

rua que, descobriria

onde vivia perto do Departamento


e da Biblioteca

do Estado, em uma

depois, estava tambm junto do apartamento

em que Paul Klee tinha vivido - se no digo basta de detalhes,


escreveria

autores

que j escolhera

alm do mais, se estendia para dois

como objetos

anterior de Kafka: Friedrich


completas
tambm

boldt-Stiftung.

Schlegel e Kant. O acesso s obras

pela generosidade

Apenas

em relao

desde antes,

da Alexander

von Hum-

a Kant no tive coragem

ainda Ihes solicitar ajuda na aquisio

da bibliografia.

de

Ao escolher

Schlcgel e Kant j sabia qual o contorno que daria ao livro: se Kafka


representava

o incio do fim do sujeito modernamente

constitudo,

Schlegel era aquele que, junto com seu amigo Novalis,


a estabelecer
pensador

o perfil do que entendemos

a quem devemos

da modernidade.

a absoluta

por literatura,

formulao

A escolha de Montaigne

incio do fim (Kafka) correspondia

terminaria

comearia
e Kant o

do pensamento
sendo fcil: ao

o incio do comeo da temati-

zao do sujeito como eu; incio to inicial que nem seus contemporneos
escapavam

nem o prprio Montaigne

desconfiavam

que os Ensaios

o trajeto que o livro cumpriria, torna-se compreen-

svel seu ttulo: Limites da voz significa a tematizao,


ordem de exposio,

tem como lngua

A compreenso

que apresentava,

do trajeto que

a enormidade

a ser coberto - tudo isso era motivo de entusiasmo


escrever agora, como recordo meus passeios

do tempo

c euforia. Ao

com Rebeca, minha

mulher, pelo Jardim Ingls, tambm perto de onde morvamos,


prazer imenso de ali estar entre rvores estuantes

e variedades

de

flores e cores, e, no entanto, aflito em logo voltar para casa para

agora em sua

do incio da voz quc fala a partir de si mesma,

no mais orientada por algo a ela externo e que lhe emprestava


tido, vindo voz plena, capaz dc, altivamente,

232

e depois viria a fazer, diria que esse foi o tempo de minha lua de
Imaginava

os problemas

em escrever sobre tamanho


arrastavam

com que me defrontaria

lapso temporal,

atrs de si toda uma bibliografia

acerca de autores que


de que, obviamente,

eu conhecia apenas uma parcela muito pequena?


o imaginava.

Quando

sen-

definir a literatura

Por certo que no

ento agora leio sua nota introdutria,


de 2005, e vejo, no primeiro

que

permanece

na reedio

declarao

de que este no um livro de um erudito, entendo por

que assim o dizia e, ao mesmo tempo,


Lamento

porque, ante a extenso

pargrafo,

lastimo que o tenha dito.

temporal

abarcada,

muito leitor

ter pensado ou que sou contra os eruditos ou que este era um livro
ligeiro! A culpa foi apenas minha. Embora explicasse razoavelmente
bem o que a formulao
um tratado descritivo

queria exprimir - no pretender

da histria literrio-filosfica

escrever

do sculo XVII

ao comeo do XX -, o modo como o disse continha uma ambiguidade de que no seria poupado.
Por fim, como hoje vejo o empreendimento?

do cerco retrico das belles-lettres.

Recomposto

as dificuldades

mel intelectual.

da seo imediatamente

de Schlegel, que vinham sendo publicadas


foi possvel

materna uma lngua de emprstimo.

este que fala,

continuar a ler e a escrever. Se bem comparo com o que antes fizera

pginas e pginas.

Esta fartura bibliogrfica,

discursiva cuja matria-prima

at Kafka, o judeu tcheco, que, sintomaticamente,


cumpria,

de estar de volta).
Demoro-me

como uma modalidade

eu tenha voltado

Muito embora

a cada uma das trs partes, e escrito aqui e ali

sobre outros aspectos de Montaignc,

sobre a Terceira Crtica, sobre

outros textos de Schlcgel, sobre um pequcno fragmento


"O silncio das sereias",
que toda a terceira

de Kafka,

em um texto talvez mais complicado

seo do Limites, continuo

233

do

a pensar que, se o

que tenho escrito merecer algum reconhecimento, este ser um


de meus poucos livros capitais. Diria mesmo que forma o par por

queimado tanto os miolos com Kafka e Schlegel, mesmo antes de


chegar a Montaigne, que tenha visto que Kant punha em risco o

excelncia com o Mlmesis: desafio ao pensamento. Se no Limites

equilbrio do barco que construa. Quando digo "talvez" mesmo

domina a reflexo analtica, neste prepondera a reflexo terica.


Como no desligo urna da outra, os dois so os braos de UIll corpo

porque no terei pensado efetivamente nesse risco. Mas uma prova


indireta que trate to s da Primeira Critica, quando o mais correto

que continua sendo feito. Para que seja mais explcito e no dei-

seria que acompanhasse a primeira e a segunda como preliminares


para a terceira. Mas, a sim me lembro, ao tentar fazer um resumo

xe sem resposta cada parcela da pergunta: antes da formao dos


"dois braos", tinha escrito a trilogia, que tem um carter um tanto

da primeira, considerando que meus leitores seriam pessoas ligadas

estranho: no me refiro ao fato de que o controle seja coextensivo


ao repensar da mrnesis, sendo dela derivado e, ao mesmo tempo, a

literatura, em um pas onde no costume que os interessados


em literatura tenham alguma formao filosfica, me disse que ou

alimentando. Refiro-me sim a que ele quebra o equilbrio que pro-

escreveria um texto que, de to curto, seria cabalstico, ou apenas anunciaria o tema "Kant", tratando do primeiro Kant que me

curo manter entre teorizao e formulao analtica. A teorizao do


mecanismo do controle quase nula. E isso no porque houvesse
decidido assim faz-Io, mas simplesmente porque no sabia teorizar
a respeito. Tanto isso verdadeiro que, tendo em 2005 de reler os
trs volumes da srie, para, depois de muitos cortes e reescritas, ter
pronto o original do que agora se chama Trilogia do controle, me
disse a mim mesmo que ainda deveria voltar ao tema. Foi o que fiz
na primeira parte do livro O controle do imaginrio & a afirmao
do romance (2009).
2. Embora os nomes destacados desde o subttulo sejam os de Montaigne,

importava. Prova essa informao que voltaria a Kant, agora com a


Terceira Crtica, no Mlmesis: desafio ao pensamento. Na verdade,
meu embate decisivo, o alimento decisivo que tenho encontrado
para levar adiante o que digo de mais ousado - no pretendo que
seja sequer razoavelmente aproveitvel- com o pensamento kantiano. Dito isso, creio que est certa a inferncia da pergunta: sendo
Kant o centro da constelao, Montaigne e Kafka so as balizas
do projeto "kantiano" e Schlegel, o ponto de arranque da reflexo
pontual de quem no se v seno como terico da literatura.

Schlegel e Kafka, parece ser constante e decisivo no livro o embate com outro

3. Ainda nas "Consideraes iniciais" do primeiro captulo, o Oecamero, de

autor, Kant. Acredito que se possa mesmo pensar, em alguma medida, em

Boccaccio, apresentado como um texto no qual se pode verificar a transio

Montaigne e Kafka, tais como aparecem em Limites da voz, como mscaras

da "ordem da mmesis" caracteristicamente antiga (com a identidade do eu

para os extremos originrio e terminal do projeto kantiano, assim como em

determinando-se em funo de algo externo a si, seja Deus ou a comunida-

Schlegel como sua mscara crtico-literria

Esta avalia-

de, e em consonncia com uma "concepo substancialista do cosmo") para

o lhe parece correta? Se sim, por que Kant, embora central, foi deixado

uma "ordem do mtodo" que j seria, em alguma medida, moderna (com "a

em segundo plano?

existncia de uma conscincia individualizada, que age dentro e a partir de

Outra vez, a pergunta bastante aguda, embora no tenha pensado nos autores referidos como estrelas secundrias ou, como voc

um eu que se autonomiza do elo que antes fornecia sua identidade" e com a

diz, mscaras. De fato, o embate decisivo veio a ser com Kant. Mas
isso no fez parte de alguma estratgia proposital. Talvez tivesse

dade da persona"). No entanto, como voc mesmo observa, uma ordem "no

234

235

ou terico-literria.

dissoluo da concepo csmico-substancialista subjacente "impessoali-

substitui pontualmente a outra; entre esta e aquela h um intervalo onde no

se pode precisar,
desaparecer
Quanto

em abstrato,

ou o Que anuncia

existncia

e o Que chama de "ordem

do mtodo",

e lhe fao algumas

Antes de tudo, Que outros autores

com voc

Dante poderia

Questes a partir

v como ocupando

ser um deles? (Afinal,

a obra de Dante - no s a Comdia, mas tambm

nova - a partir de uma explorao


humano-terreno,

Concordo

entre o Que chama de "ordem da mmesis"

ao lado de Boccaccio?

no se constri

o Que est em vias de

a em vias de emergir".

desse intervalo

dessa concordncia.
esse intervalo,

o Que ainda prolonga

muito consciente

nunca antes to valorizado,

nunca antes to hipertrofiado


que como teolgica?

chegou sem o experimento


do humano-terreno

e o plano divino,

numa obra que se apresenta

Pergunto-me

a Vida

da tenso entre o plano

mesmo se Boccaccio

igualmente

como potica antes


teria chegado aonde

prvio de Dante; isto , se no foi a valorizao

na poesia de Dante que abriu o caminho

Decamero, apesar de todas as diferenas

Parto de uma das perguntas

para a prosa do

entre ambos.)

sofriam com o desgarre que isso causava quanto tradio em que


haviam sido criados e que no poderiam saber o quanto se modificaria
com o curso da histria - recordo os dilemas de Pctrarca a respeito,
assim como seu dilogo fictcio e nem por isso menos angustiado
com Agostinho - e a tenso presente nos humanistas
a adorao Roma antiga e as imposies

caccio, assim como Petrarca, no teriam chegado aonde chegaram

de suas cidades, como,

por exemplo, o dilema de Salutati entre o louvor do tirano c as exigncias republicanas

da Florena, quando ele era o prcer poltico

mximo. Neste sentido, esto em trnsito do ponto de vista de nfase


no plano humano-terreno,

assim como, como voc assinala,j

estive-

ra Dante. Mas o arco no se completa em uma "ordem do mtodo".


Ou seja, creio que nenhuma das figuras referidas - Dante, Petrarca,
Boccaccio,

Rabelais,

Montaigne

uma plena "ordem do mtodo".

finais: estou de acordo que Boc-

italianos entre

de partida e no se encontram
algum momento

- tenha qualquer coisa a ver com


Portanto,

se se integram no ponto

no ponto de chegada porque, em

do trajeto, assumem uma direo divergente.

No

sem a preparao

forneci da por Dante. Em segundo

Iligar, tomo

creio que essa divergncia - quanto chegada no mtodo - tivesse de

como participante

deste trnsito entre a ordem da antiga mmesis

reunific-los. Nem mesmo vejo como unificar a valorizao do plano

e a ordem que se prepara,

alm de Boccaccio,

tambm Petrarca e

humano-terreno

por Dante e a faccia farsesca de Rabelais. Ou seja,

Rabelais, antes de todos, Dante. A, entretanto, surge o problema: ao

do ponto de vista da construo do Limites, no me parece ocasional

falar em passagem para a "ordem do mtodo" pensava sim em uma

que, da ordem do mtodo, assinalo como trao configurador

concepo

concepo do sujeito individualizado.

vidualizada,

de mundo onde passava a vigorar uma concepo


autocentrada

indi-

do sujeito. Ela, contudo, no bastaria para

abrange os nomes referidos, mas a ordem mesma no se atualiza seno

falar-se em uma ordem do mtodo, que valeria sim para Descartes e

noutra constelao:

os formadores

razo e de seu alcance quanto ao mundo: Kant.

paradigma

do pensamento

moderno,

com a substituio

que o mtodo enfatiza esse aspecto cientfico,


caberia Leonardo,

com seu propsito

princpios de uma cincia experimental.


Boccaccio,

de um

teolgico por um de cunho cientfico. Ora, considerando

Petrarca,

de uma pintura fundada nos


Onde ento situar, alm dc

Rabelais e Montaigne?

minha prpria formulao.

diria que nele antes

A vejo os limites de

Concordo com a formulao

ento feita

que, enquanto todos eles enfatizavarn o aspecto terreno da existncia,

236

apenas a

Esta, em graus diversificados,

4. Outra pergunta

a do filsofo que desteologiza

relacionada

anterior:

parece-me

sua concepo da

Que voc pensa a transi-

o de uma ordem da mmesis a uma ordem do mtodo como uma transio


temporal,
tituio

cronolgica,

mesmo Que comportando

um intervalo

em que a subs-

pontual de uma ordem por outra ainda no se completou.

(porque antes me pergunto)

se, frente ao dualismo

ordem do mtodo, estamos de fato diante de uma transio


a substituio

de uma por outra mesmo forosa

237

Pergunto-lhe

da ordem da mmesis e da
temporal,

em Que

depois de um certo perodo

de intervalo, ou se estamos diante de uma oscilao ou hesitao que carac-

guntas emergem dessas consideraes. A primeira, se voc considera que a

teriza em alguma medida o conjunto da literatura, ou mesmo da textualidade

literatura propriamente dita de fato um fenmeno da modernidade, como est

ocidental, independentemente da passagem do tempo. Pergunto-me (e per-

implicado na avaliao de Iser, e, se sim, em que termos compreende e define

gunto-lhe), em suma, se no estamos diante de uma estrutura persistente,

esse grande desfile de textos convencionalmente percebidos como "literrios"

caracterizadora da longa durao da textual idade ocidental, e que relativiza

que se estende da Antiguidade at hoje. A segunda pergunta, se h de fato

seja a compreenso da literatura antiga como fundamentalmente "imitativa",

uma necessidade da literatura, e no apenas uma possibilidade, e, se sim, se

seja a da literatura moderna como fundamentalmente "original".

prev algum quadro histrico em que tal necessidade deixe de existir.

Sem que pretenda


momento

que me pusesse a questo nestes termos no

em que a elaborava,

uma transio

temporal

cepo de alguma
alternativa

diria que hoje no a entendo como

forosa, pois isso ainda suporia uma con-

maneira

teleolgica,

diversa que endosso:

se no detcrminista.

estamos diante de uma hesitao

Primeira
fenmeno

questo:

se concordo

no haveria

de Kant e, em consequncia,
como matria-prima

Ovdio o ponto central de uma literatura

mao de um discurso

sio a Virglio -, quanto na literatura

rninoritrio,

valorativamente

permanece

moderna,

- em opo-

onde, em padro

uma prosa imitativa,

de

extrema

seriedade:

da experincia
a afirmao

o prprio

de uma subjetividade,

autor ao menos de um romance,


qual especifieidade

Beckett. Acrescento:
tenha se dedicado

Virginia

como mero leitor de Dante e no algum que

a seu estudo em profundidade,

no seria interessante

Woolf, Joyce e
pergunto-me

se

v-lo no s como aquele a quem destinado

a pergunta

e logo reconhecer

no permite que nos falte trabalho. Basta, portanto,


a epgrafe de Marvell, escolhida por Auerbach:
enough, and time" ...

que

que, como diz

"Had we but world

expresso

ao narrar sua vida; se no isso,

teria o discurso da literatura?

Friedrich

Schle-

concreto - recordo

sua apreciao

da

do Wilhelm Meister -, no deu uma melhor resposta


pior ainda, como j foi aqui lembrado,

ao esforo de caracterizar

melhor, ao que chamamos

terminaria

por

o que seria a literatura

- ou

discurso ficcional -, considerando

que

sua ltima palavra dada por sua histria. Em suma, a existncia


da literatura dependeu do surgimento de uma propriedade
social definidora

do sujeito, sem que a condio

fosse, automaticamente,
afirmao

ser relevante

para enfrentarmos

ratura" a partir da "tenso" entre o sujeito que se afirma paulatinamente e a

restringirmos

negatividade da Lei. Ele nota ainda que essa tenso "que torna a literatura

que fazer com a enorme quantidade

no apenas possvel como tambm l. ..] necessria". Duas (ou quatro) per-

mos desde Homero?

239

A segunda

a segunda questo: se

o uso apropriado do termo "literatura"


Considere-se,

histrico-

de sua existncia

a condio de seu entendimento.

5. Wolfgang Iser leu Limites da voz como uma teoria do "surgimento da lite-

238

uma questo de

enquanto

e mesmo sua crtica como produto

ao problema;

dotada de uma complexidade

se bastasse

que tal afir-

literatura

renunciar

de Ovdio. Mas apenas sei formular

( evidente

diferenciadoras

de mediadora

que a trilha que se descortina

de um discurso que tem

gel, com todo o avano que daria s questes

Virglio como guia, seno como o poeta que, sem a interferncia


mais cclestial que terrena, Beatriz, sofre a influncia

subjetiva

ento cada um de ns poderia ser tambm

traposto

no "imitativos"

socializao,

da esttica

do sujeito ainda ocultava

se a literatura

que vejo Trurnan Capote, com In Cold Blood (1966), como o conaos clssicos

sujeito.

um

da concepo

orientado e sua progressiva

a possibilidade

de padres. Ela se mostra tanto na literatura antiga, onde considero


no imitativa

Sim, sem a legitimao

da modernidade.

de sujeito subjetivamente

com [ser que a literatura

modernidade,

de textos que assim designaem primeiro

lugar, por que me

parece pertinente

a restrio

no uso do termo: porque do contrrio

somos levados a uma concepo

meta-histrica,

o Mimesis de Aucrbach.

fundamentou

parece mostrar-se

fundada

isto , a correspondncia

uma sociedade

cujas propriedades

negamos

a validade

uso do termo "literatura"

da imitatio, teremos

textual e

de dizer que o

como se explicaria

essa

que, desde que

como os discursos

seus correspondentes

como partes da retrica,

romanos

passaram

a qual permaneceu

para definir quer as obras medievais,


ainda as depois chamadas

de Pricles e Slon,

belles-lettres; como, excluindo-se

retrico partes que se autonomizaram

o discurso

poltico,

as crnicas

metade do XVIII

sem se entrar na discusso

Creio que a segunda a justificao,

da literatura

do conpassava a

do anacronismo.
para

que, sob a sigla de literatura nacional, estude-se hoje quer a literatura grega, quer a romana, quer as modernas,
nada literrios, primrdios.
a fundada na intocabilidade
considere

suficiente.

to: o critrio

Ajustificada

desde seus distantes,

de Estado-nao,

no to chocante quanto

to importante

especialistas
primeiros

no objeto aceitarem levar a srio uma questo a que os

romnticos,

tendo Friedrich

lhe caiba sem ser acoimado


arbitrria?

Suponho

ticamente

elaborada.

ficcionalidade

outra ques-

desde a abertura

de provocar

uma meta-historicidade

Mas a compreenso

do que se entenda por

artstica, para mim articulada

questo da mmesis

de expanso,

entre as dcadas de 1960 e 1980, e logo se retraiu.

A segunda

questo quase sai de meu controle.


fundamentais",

Em "As expe-

do Histria. Fico. Lite-

ratura, propus a hiptese de que podemos conceber uma situao


ideal - ideal no sentido weberiano,

isto , apenas como parmetro

contra o qual se meam situaes historicamente


que se manifestam
fundamentais

as formas de discursos

fundamentais

constitutivo

constitudas

passveis

- em

de responder

do homem. Entre essas necessidades

situava aquela que se define pela procura de suspeno tempo. A nfase na iluso como

do discurso da arte no tem nada a ver com o fenmeno

do ilusionismo. Essa necessidade


compreendido

resultaria de o homem cedo haver

que no s um ser finito, mas que progressiva-

mente desgastado

pelo tempo; a necessidade

visaria, no caso, preservar

para a prpria identificao

ilusria e, por isso mesmo, contingente,

das literaturas

nacionais.

ironizada

e questionada.

de suspender

a beleza; preservao

cria problemas

no

apenas

balbucia. Como se sabe, a teoria da literatura teve um raro momento

dos limites c fronteiras

240

que legitimamente

que esse critrio seja o de fico verbal, artis-

dos tempos modernos,

Conhecemos,

Schlegel frente, renuncia-

para a literatura,

der ilusria e provisoriamente


e

da imitatio, mas duvido que algum a

Hoje em dia, isso ainda provoca

Acredito que o problema s ter uma melhor soluo quando os

a necessidades

raramente explicitada,

nas belas-letras

de Portugal?

rincias antropolgicas

-, o resto

do sujeito, ento a passagem

tinente das belles-lettres para o continente

do

- o sennonrio,

de fins historiogrficos

ao que, a partir da segunda

se entendia como expresso

quer

uma

e, em seu lugar, apenas colnias

antes teria guarida

como produo de diferena sobre um fundo de semelhana,

bsico

quer as renascentistas,

continente

parecia homolgico

a ser tomados

o instrumento

se Vicira aqui viveu

mais baiano que muito baiano ou, inexistindo

ram: h um critrio definidor

a potica e a retrica em uma s disciplina,

tanto Hornero e a tragdia,

se justificar,

ao rei portugus,

prtico, porque confortvel.

Fora essa razo, ainda insuficiente,

como

de unidade nacional,

submetidas

quele objeto. Se,

longue dure associada literatura? Por considerar


reuniram

conscincia

para os textos desde o sculo XVlI at

Homero um anacronismo

os romanos

e Gregrio

do conceito

entre a produo

se amoldam

Brasil, a questo do barroco: ele brasileiro,

que

Ora, tal meta-histria

caso sc admita a validade

de "imitao",
portanto,

semelhante

Tal resposta

241

o tempo

conscientemente

passvel de ser ela mesma


teria em sua proximidade

li

aquela outra que tambm parte da conscincia de nossa finitude e

nele: refiro-me voz. Salvo engano, h dois nicos pontos no livro em que

procura no preservar nosso melhor instante mas sim conceber um

este conceito abordado de frente, de modo explcito:

mundo alm, em que o que tenhamos feito no mundo-do-instante


receberia recompensa ou castigo. No vou aqui me demorar na

ser um ponto decisivo

distino entre os dois modos. Apenas direi que, sendo respostas

est em questo em Limites da voz ("O reconhecimento

mesma finitude, a primeira lida com a iluso, que a tal ponto se


autoquestiona que, como diz Iser, se desnuda a si mesma - por

admisso de uma lei antropologicamente

exemplo, no teatro que se encena dentro do teatro. Embora no deva


aqui me estender, mesmo porque no tenho muito mais a dizer do

de crena religiosa

quc j se encontra no livro, a utilidade que vejo na hiptese que


ela serve como ponto de partida - mais exatamente, aporia - da

a pretenso de um sujeito uno uma pretenso de totalidade

fico da arte. Se esse caminho puder ser fecundado, teremos um


modo de reunir o acervo "literrio" prvio significao moderna

tomada ao poema "Mozart",

do termo sem recairmos nem em anacronismo, nem em um uso

a meu ver, no autoevidente.

apenas cmodo, muito menos que ainda precisasse recorrer ao


critrio de nacionalidade. Aquele acervo poderia at ser mantido,
mas fundando-se a distino to s no critrio da lngua em que a

contravertente

romntica",

na seo "Novalis: a

do segundo captulo, justamente

de enfrentamento

e desnudamento

orientada,

no que parece

do cerne do que
da voz humana, a

implica que o que ela

pronuncia, sob a forma de pensamento filosfico, de conhecimento


ou de produo artstica,

cientfico,

j no pode ser subsumido a

um nico parmetro. Saber, portanto, dos limites da voz significa admitir que

contra a prpria autonomia do sujeito individual");

que se volta

mas, antes, na epgrafe

de Wallace Stevens. Como articular, se possvel,

estes dois pontos? O sentido da citao de Stevens no contexto do seu livro,

voz - cujo silenciamento,

Complementarmente,

lhe pergunto: por que a

como mostrou Zumthor, pode mesmo ser visto, em

alguma medida, como decisivo para a emergncia da literatura propriamente


dita, isto , de uma arte da letra - permanece em filigrana quando se trata de
pensar sobre seus limites?

obra est escrita.

o livro j tinha avanado

pouco mudaria - um professor de literatura inglesa continuaria a

bastante quando encontrei a oportunidade de explicar a razo de seu ttulo. Da a passagem que voc to

estudar os textos escritos em ingls etc. -, os professores poderiam


se adaptar ao novo sistema sem a necessidade de se darem ao luxo

bem localiza. Como, entretanto, poderia concili-Ia com a citao


de Wallace Stevens? As solues possveis no me convenceram:

de compreender a modificao do critrio. S os especialistas que


combinassem curiosidade intelectual com inteligncia procurariam

ou ela se cumpriria pelo prosseguimento da frase que voc refere


ou por uma nota de rodap. Na edio atualmente em circulao

Vejo, de imediato, um obstculo: como, na prtica, muito

se aprofundar na diferena entre a superposio dos critrios retrico e poltico-nacional e o de ficcionalidade. Em consequncia, o

(Topbooks, 2005, p. 199), pode-se ver por que a alternativa era

objeto "literatura" continuaria um fantasma no exorcizado. Mas

desastrosa: continuar a explicao combinando-a aos versos no


poderia ser feito sem uma volta extremamente disfuncional. Optar-

no antecipemos problemas futuros quando os presentes j so

se pela nota ao p da pgina no seria menos agressivo frgil

bastantes.

harmonia equilibrada no poema.

6. H um termo fundamental

para a reflexo sobre a literatura

(sobretudo

quando esta se encontra associada a uma reflexo sobre a subjetividade)


que est inscrito no ttulo do livro, mas que no propriamente

242

teorizado

Entre manter uma certa obscuridade ou eliminar a epgrafe,


sequer hesitei. A explicao esta: sim, supor que a voz no tem
limites, isto , que o self transparente conscincia e vice-versa

243

implica uma homogeneidade que contraria a prpria autonomia do


sujeito, pois dele exige estar todo o tempo com rgua e compasso

mtica ou a sensao de que algo me faltava, levando-me espera

mo. certo que Locke era coerente em pensar em algo correlato


ao tomar o uso da phantasy como arbitrrio e dispensvel. (Eis a

diria do carteiro -, me disse a mim mesmo que, sem imitar o meu


pai, que era engenheiro, queria seguir uma Iinha paralela, dedicando-

sombra teorizada do controle do imaginrio que tem sempre esca-

menina do outro lado da rua, que me distraa dos exerccios de mate-

pado das indagaes de crticos e filsofos da arte). Para no nos

me matemtica. O nico meio que me permitia a mim mesmo que


desse vazo quele mar de subjetividade era estudar violino. At os

mantermos na mesma toada, deveremos acrescentar com o poeta:

dezessete anos, essas eram minhas nicas atividades mentais: estudar

Be thou the voice / Not you. Prosaicamente: no tomes como tua

matemtica e violino. No importa como me desliguei dessa primeira


configurao com que procurava moldar-me. A liberao fez-se cm

voz simplesmente o que articulas. Sejas sim a voz enquanto manifestao do que, apoderando-se de ti, declara o que trazes em ti
inscrito: The voice

favor do querer estudar literatura. E a voltava o tormento com a

ofthis besieging pain.

incmoda subjetivao do mundo. Minhas primeiras incurses uni-

Essa marca inscrita a tua outra voz, aquela que, no vista, s o

versitrias no campo da literatura, sistematicamente iniciadas por uma


bolsa em Madri, creio que entre finais de 1960 e primeiros meses de

ofangryfear.

/ The voice

quando aproximas os dedos da mo e encaixas o objeto com que


escreves.

1962, me mostraram, horrorizado, que, sob o aparente rigor filolgi-

No pretendo que tenha guardado as palavras exatas com que


estabelecia o elo entre a epgrafe antes escolhida e a passagem do

co, meus mestres de estilstiea aceitavam sem entraves as afirmaes

poema. mesmo provvel que elas agora assim me apaream sob

demorei tanto a encontrar um caminho que me satisfizesse.

a motivao da passagem de Zumthor, tampouco recordadas quan-

Pareceu-me que interessasse tratar de meus dilemas com a


subjetividade e, em consequncia, a importncia que assumiram na

do escrevia o Limites.

Suponho que assim tenha sucedido neste

preciso instante, que propicia articular aos dois primeiros acordes


este terceiro: ser preciso que silencies para que a voz deixe de ser
som e fumo e se converta em sound andfury. O eu uno cede a vez
mo que escreve.
7. Sua teoria da literatura,

Limites da voz,

sobretudo no recorte com que se apresenta em

implica uma concomitante

teoria da subjetividade.

Pode-se

dizer, em alguma medida, que o sujeito - com todas as suas vicissitudes

subjetivamente mais descabeladas ou corriqueiras. Talvez por isso

maneira como viria a lidar com a literatura porque, considerando


que seria presunoso que eu escrevesse uma autobiografia, h a
um filo que nunca ser explorado.
Encaro diretamente ento a pergunta. No creio que a alternativa
deva ser entendida como um rigoroso ou ou. A formulao bsica do
entrelaamento entre propriedades do sujeito e interveno sobre si
do que ele prprio escreve est presente no Livro II, captulo XVIII,

metamorfoses - um produto da literatura? Ou h sempre uma subjetividade

dos Ensaios de Montaigne: "Pintando-me para outrem, pintei em

previamente configurada que a literatura trata de absorver e modificar?

mim cores mais ntidas do que eram as minhas primeiras. No fiz


() meu livro mais do que meu livro mefez" (grifo meu).

A relao entre literatura e uma teoria da subjetividade foi-se


estabelecendo por via da contrariedade. Explico-me: muito jovem,

8. A central idade que a questo da lei, associada questo da subjetividade,

desconfiado de minha tendncia de fixar quadros que se agarravam


em mim independente de sua importncia - por exemplo, a viso da

assume na sua reflexo sobre a literatura me parece ser indita (corrija-me,

244

se estiver errado) e, mesmo depois de uma ou mais releituras

245

de

Limites

da voz, conserva seu teor de inesperado, sua capacidade de, tambm pela

Em lugar de ver pontos conexos

surpresa que causa aos leitores, levar reorganizao das grades de pen-

apenas dizer que, ao estabelecer

samento com que se vinha tratando o assunto. Como o conceito de lei veio

de evitar fosse o culto romntico

a adquirir para voc a relevncia que tem nesse livro? V pontos de contato

em algum desastroso

entre sua reflexo sobre a lei e reflexes sobre temas conexos de outros
tericos da literatura?

com outras teorizaes,

sei

o realce da Lei, tinha o cuidado


da gcnialidade,

fosse a recada

detcrminismo.

9. A contra posio fundamental do livro parece ser aquela entre criticidade


e estetizao. Como chegou a essa dade? Toda literatura e toda crtica tm

No sei dizer como, no digo sequer o conceito,

porm algo

mais vago como a noo de "lei", assumiu a importncia


a ter em minha teorizao.
assumira
conheo

o conceito
histria

Claro que sabia da importncia

de "paradigma"

de Thornas

muito de estabelecer

que

Kuhn, mas no

da cincia para que me atrevesse

rea to diversa. Gostaria

que veio

a adot-Io em

uma descendncia

em que pudesse me situar. Mas a nica relao, ainda assim bastante


oblqua,

que sou capaz de visualizar

controle do imaginrio.

Procuro esbo-Ia.

preciso haver uma regulamentao.


graus de vigncia e exigncia
(quando regulamento
grau mais abrangente

eoncerne

problemtica

do

Para que haja controle,

Essa regulamentao

diversificados:

assume

do nvel mais pontual

para uma certa conduta), passando


(quando norma/regra),

para um

at o nvel mais geral

(at valer para todo um perodo de uma certa cultura), quando ento
lei. O controle do imaginrio

no se estabelece

por algo pontual

- algo como o retrato de figuras institucionalmente


antes do sculo XIX no as pode apresentar
ridiculamente

importantes

simplesmente

feias ou

velhas -, mas sim por um padro, em consonncia

eom um princpio

de mxima vigncia,

isto , uma lei. Assim, por

exemplo, vigncia do princpio da imitaiio, que, mesmo depois de


sua condenao

pelos "primeiros

at o realismo inclusive

romnticos",

vigora no romance

e, na pintura, em termos at o impressio-

nismo, supunha "que a 'natureza'

tivesse em si dimenses

ideais, e essa realidade era o sistema de referncia


pressuposto

a que a arte se amoldava"

tambm

(Bezugssystemj

(Arnold Gehlen. Zeit-Bilder.

Zur Soziologie und isthetik der modernen Malerei, p. 94).

246

de lidar com a ambiguidade entre uma e outra?

A primeira
Benjamin,

formulao

da contraposio

foi feita por Walter .

nas linhas finais de seu mais conhecido

de arte na poca de sua reprodutibilidade


formulao

do malogrado

Obviamente,

foi deformada

que o risco de deformao

ensaio, "A obra


(1935-1936).

ensasta estava demasiado

tante em que o texto foi composto.


pretendia promover

tcnica"

presa ao ins-

a politizao

quc

pelo stalinismo. Penso, contudo,

da categoria inerente ao desentendimen-

to entre interesses polticos e estticos. O risco portanto de erro do


intrprete est sempre sua porta. Apesar disso, contudo, acho legtimo levar-se em conta a alternativa.

em nome dela que mantenho

a vontade de dedicar um texto longo poesia de Antonio Machado,


cuja sobriedade me parece muito mais significativa
fcil de outros poetas espanhis contemporneos
nas acrescentaria

que a metafrica
de Machado. Ape-

que os dois termos assinalam os pontos limtrofes

de uma longa linha, de que a parte menos prxima do limite menos


se aproxima da caracterizao

terminal. fcil perceber-se

zao de grande parte da ficcionalidade


trs romances

a politi-

de um Thomas Mann e dos

de Kafka; estend-Ia porm a Proust seria arbitrrio

- sem que isso signifique que ele se integre no extremo oposto. Diria
portanto que criticidade

e estetizao

um amplo campo de possibilidades,

so as situaes terminais de
mais decisivas para o terico e

o analista do que para o prprio escritor. A linha ideal que assim se


representaria

C--->

lista a possibilidade
procurar

<---E fornece ao terico e ao anade constituir uma espcie de xadrez mental onde

ajustar seu objeto de indagao.


247

Para tanto, ele ainda h

de dispor das coordenadas


concordantes

10. Apenas sublinho


coloca

de espao c tempo, vlidas e dificilmente

quanto ao prprio autor e a seu receptor.


duas questes

na nota introdutria,

de forma sinttica,

que, introduzindo

e que gostaria

a responder,

para alm dessas concluses,

ze anos da primeira

edio:

j passados mais de quin-

at onde se estende a experincia

em estetizao?

agora

em Limites da voz e tambm,

a partir de suas concluses

retrospectivamente,

que se converta

em estetizao

o livro, voc mesmo se

que voltasse

Como pensar a literatura

esttica

sem

sem a converter

So perguntas bastante difceis de serem respondidas


Me arrisco

depende

Por exemplo,

a uma resposta

kantiano da experincia

razovel

pensando

cidos por sua textualidade.

Pensemos,

trgica se realizava.

no lema

os embaixadores
inclusive

em um quadro

em uma tragdia grega. No


seno aos limites ofere-

contudo, como o faz o hele-

nista alemo Christian Meier, nas condies


a competio

do esttico

pelo texto que provoca a experincia.

se penso pontualmente

poltico-financeira

sem

a no converso

posso ter uma resposta que seja adequada

em nvel

esttica definida como uma finalidade

suponho,

de que consiga integr-Ia

maior do que o visualizvel

das peas vencedoras

em objeto de estetizao?

terico.

tericos. Quanto literatura,

sociopolticas

em que

Ele assinala que a apresentao

se dava no momento

em que a supremacia

de Atenas atingia seu auge: no momento em que


das cidades

submetidas

com o pagamento

prestavam

de seus tributos.

vassalagem,

Ora, nesse instante

fim. Tomada literalmente,

seria a frmula mais prxima do que se

em que irradiava a potncia ateniense, o Estado distribua ingressos

entenderia

A retificao

para que seus cidados

por estetizao.

proposta por um autor que

li h muitos anos e do qual no tenho maiores informaes,


Giesz, tem a imensa qualidade
kantiano,

de, mantendo-se

fiel ao pensamento

evitar o engano. Giesz prope entender

como "um interesse

desinteressado".

quer da atitude de um comprador

a frase de Kant

Todo o contrrio,

portanto,

diante de um objeto que consi-

dera se deve adquirir, quer de algum atrado eroticamente


outro. Em ambos os casos, embora os interesses
ambos so extremamente
se concilia

Ludwig

interessados.

com uma parcialidade

sejam diferentes,

O interesse

motivada

por um

desinteressado

por propriedades

do

participassem

ns, as peas vencedoras


vencedora.

do espetculo

deveriam repercutir

teatral. Para

o louvor da potncia

Mas que vemos nas peas que conhecemos

graas e calamidades

resultantes,

como costumam

seno des-

dizer seus intr-

pretes, da hybris (o excesso) que acomete os homens? diferena


de seus pares, Meier no apresenta

o quadro para ento declarar:

assim sucedia porque para as autoridades


importante,
potncia

digamos,

manter

polticas

seus cidados

malfica etc. etc. No, modestamente

no temos uma explicao

atenienses

atemorizados

era
at a

Meier ressalta que

que nos convena

para a exibio

de

prprio objeto. O que vale dizer, o sujeito est no diante do obje-

tamanhas tormentas,

em um instante to festivo. Sei que o exemplo

to seno que sujeito e objeto se fundem em uma impessoalidade

um tanto especioso

pela distncia em que estamos da cena grega.

pessoalizada. Nesse sentido, podemos

O uso que fao do caso consiste

no se encerra

pensar que tal experincia

diante do poema ou da pgina

de Proust sobre a

experincia
tecnicamente

demonstrao

no se confunde

o interesse

desinteressado

Contudo,

cessa rapidamente

que tal reflexo ou demonstrao

porque

nestes casos,
logo penso

pode ser pragmaticamente

posta para o campo de interesses

trans-

plenos - ainda que plenamente

248

suponho

que seja o desejvel

com a cstetizao

tador por ela envolvidopateticamente

esttica em sua extenso mxima - e no curta, como

sonata de Vinteuil, seno que se estende reflexo filosfica ou


de um teorema matemtico.

apenas em dizer: tomando-se

embargado

(o que usualmente

envolvido
- que, tomado

se traduz por "piedade

249

-, acrescento

que ela

quando de tal modo o especc no paralisado,


de "compaixo
c terror"),

isto ,
e medo"

se toma pas-

svel de ser trabalhado


o raciocnio

pela catarse. (No tentarei aqui reproduzir

que fao a respeito

no Histria. Fico. Literatura.

Direi apenas com Max Kommerell


pouco de Aristteles

podemos

que, s por entendermos

tomar a catarse como uma forma de

prazer). A catarse, efeito mximo que Aristteles


gdia, atualiza o interesse
de "interesse

sem alvo preciso,

tra-

restringia

o que Giesz chamava

desinteressado".

indispensvel

da experincia

no a condio

esttica. Ao contrrio,

consiste em cortar todas as amarras e converter


ainda se lembraro

de beleza. Possivelmente,

pelos rastros luminosos

acima traada, a partir dos Iimites "criticidade"

alguns dos leitores


que cobria o

dos foguetes,

decla-

e "estetizao":

ela
do

a pe em cena e a proble-

se impossvel existir algo como uma pura literatura

(seja por meio da fantasia exacerbada, seja por meio de procedimentos

de

em que a questo da verdade sequer chegue a se colocar e na

Para que questes deste n vel pudessem ter uma resposta menos
de grupos permanentes
de perguntas

de pes-

e tentativa

de respond-Ias,

e no, como o nosso caso - e no s nosso , na


verdade -, em que as instituis de "ensino e pesquisa" praticamente
ao ensino do j sabido e pesquisa
250

Por exemplo,

musical desperte um efeito, e esse


nem por isso posso dizer que

semntica

semanticamente
possvel,

estvel. Donde, na msi-

guiada? Tenha-se

o "Mattina",

o exemplo

que faz parte de L 'allegria

de Ungaretti:

M'illumino
D'imenso
Sua "verdade"

no se confundiria

timento csmico de extremo bem-estar,


da prpria

deixar absolutamente

existncia?

est para sempre apagada.

do que, sempre que

com a sensao

numa espcie de deslumpode

e que, no dependente

ou se estabelece

de

em um relance ou

Mas, neste caso, como se poder dizer

que o leitor recebeu o poema de Ungaretti?


dade" pertence ao campo do "interesse

Note-se ainda: tal "ver-

desinteressado",

tem nada a ver com a verdade tcnica ou cientfica,


a muitos parecer

de um sen-

certo que tal "verdade"

de ser formulada;

alguma cadeia argumentativa,

passvel de se tornar pragmtica.

qual, no entanto, a obra no se torne um exerccio irrelevante.

formulao

estvel.

da linha ideal

curso que nem se pretende declarador de verdades, nem se supe abstrado

se reduzem

(1914-1919)

bramento

seria preciso a existncia

semntica

fonnulvel,

a msica tenha uma dimenso

mais elementar

a viso, que ela seja vista desligada

da questo da verdade, mas, muito ao contrrio,

quisa, que se dedicassem

uma dimenso

ainda que qualquer composio

se a composio

11. Numa passagem de Limites da voz, voc define a literatura como um "dis-

provisria

que no possua

um foco particula-

campo em que se inclui.

abstrao),

s pode atingir o limite em que nada diz sobre o real

por menor que seja o poema, como escapar da questo da verdade,

rava seu prazer ante tamanha beleza. Eis a vantagem

matiza". Pergunto-lhe

de abstrao

- em que poria a questo da verdade - se ele se exerce em um meio

a estetizao

do reprter da TV norte-americana

impede que se parcialize

me arrisco a dizer algo a ser testado: creio que um procedimento

ca, por certo, no h uma questo da verdade. Em troca, na lrica,

noturno durante a Guerra do Golfo e, perante a imagem

da noite atravessada

a pesquisa, j tenha resposta. Apenas

pois, da proje-

o para um quadro da polis, neste sentido poltico,


rizado em sensao

antes de iniciar-se

efeito semanticamente

por a que procuro pensar que a estetizao

bombardeio

muito

possvel,

isto , no

com a verdade

uma verdade to sui generis que

ociosa. Quando assim a consideramos,

camos

na plena estetizao.
12. Uma pergunta relacionada anterior: a reflexo terica de Limites da voz,
mas tambm da maior parte de sua obra, parece valer sobretudo para a prosa.
Como fica a poesia - especialmente
literatura,

subjetividade

a lrica - nesse exame dos nexos entre

e lei? Ela impe desafios especficos a esta teoria?

251

J se acusou a teoria aristotlica

da mmesis

de valer apenas

verdade, apenas posso dizer de minhas suspeitas.

para onde caiba tratar-se da "ao humana". Como nunca se sabe-

a que o desafio maior a toda teorizao,

r se o livro que se supe Aristteles

destacando,

haja escrito sobre a lrica foi

Elas se resumem

no s a que estamos aqui

est na lrica. Ainda reforo

essa suspeita:

mais de

perdido ou sequer escrito, ficamos sem saber se a acusao vlida.

uma vez pensei em dedicar um livro inteiro a um s poeta. Algum

A lembrana

que leia as primeiras

da objeo adequada porque a teorizao

que tenho

pginas do Mimesis e modernidade verificar

procurado construir tem, de fato, tratado muito mais dos gneros em

que, no comeo, ele se propunha

prosa. Ser esse um estigma das teorias de algum modo fim dadas

poetas, vindos depois de Baudelaire;

no princpio

do relacionamento

que sim. Precisaria

ter mais uns vinte anos de vida intelectual-

mente til, o que no provvel,


Talvez, entretanto,

para verificar se voc tem razo.

apenas suceda que desobstruir

o caminho crti-

co da lrica seja bem mais difcil. O reconhecimento


dificuldade

no novidade

palpite, posso adiantar


obra literria -lrica

dessa maior

para ningum. Ao menos em termos de

que no me parece que o obstculo

esteja no reconhecimento

da presena

da Lei e da posio

mesmo que ela no seja pragmtica.

no torna mais complicada

sua aceitao

termos, no o torna particularmente

sensvel ao controle?

do literrio, o lrico seria o ultra-sensvel

normas controladoras,

seja no de ele j se apresentar

isto , melodioso

trai da pequenez

humana.

mais dificilmente

teorizvel,

de apresentar

insuficincia

pela dificuldade

ao controle,
das

de antemo

sem dentes, puro canto que se abs-

No seria por a ento que a lrica seria


porm pelo modo como ela se conduz

que representaria

to grande ou mesmo maior que a propriamente

do que pela
emprica

terica. Mas quem

leia ou o texto ainda imaturo sobre Joo Cabral, no Lira e antilira,


ou as apreciaes,

sensivelmente

menores,

de poetas que esto no

Intervenes talvez verifique que o fio analtico o mesmo. Em


suma, a abstrao da "ao humana",
no se aproxime do narrativo,

realizada no poema lrico que

toma mais difcil seu tratamento

uma teoria que se apoia no princpio


comea por criar obstculos

Entre as

tirei isso da cabea; no

da resposta do leitor. Essa uma dificuldade

culdade, porm, est na restrio

da mmesis;

por

sua maior difi-

do nmero de seus leitores, que

para a prpria edio da anlise. No

digo mais do que o bvio: se a lrica tem poucos leitores, imagine-se


o que sucede com a obra analtica,

teoricamente

, que no joga apenas com a composio


seu intrprete.

- isto

de frases "literrias"

de

No se alegue que o Estrutura da lrica moderna

de Hugo Friedrich
ele beneficiado

respaldada

teve uma imensa e merecida

por apresentar

um panorama

repercusso.

bastante

Era

abrangente

da lrica que hoje mais circula, seno, como j se alegou, por sua
discreta reserva diante dela.
13. A partir das consideraes sobre Friedrich Schlegel, a teoria da literatu-

Os gneros que exploram a "ao humana" podem ser confronprescindir

necessariamente

ou seja, que tinha por objeto

Rapidamente,

no

perante a subjetividade.

tados com a subjetividade

a lrica da modemidade.

Isso

pela Lei ou, em nossos

seja no sentido que sobre ele mais pesa a espada damocliana


controlado,

que a

em uma modalidade

o literrio o nico, em todas suas modalidades,

dotado de uma funo,

modalidades

maior

ou no - assume perante ela. Basta pensar em

que, de todos os produtos humanos integrveis


discursiva,

possvel

entre texto e contexto?

analisar um grupo muito maior de

que os engendra
acidentes,

at porque no podem

conjunturas

ra, em Limites da voz, parece revelar-se antes de tudo uma teoria da teoria
da literatura, diante da qual a prpria literatura passa a ocupar uma esfera

pelas quais o texto

relativamente isolada. Dito de outro modo: a literatura tal como se apresen-

assuma uma posio a favor ou contra a qual a Lei se inclina. Na

ta nos escritos tericos de Schlegel parece bem mais interessante do que a

252

253

literatura

que ele tinha

na noo de romance
realizada).

como forma catica,

Este ser um descompasso

da literatura
coincidem

mo como objeto de leitura (pensemos,

at ento ainda no plenamente

historicamente

est como que condenada

por exemplo,

a produzir

de todo com as obras efetivamente

Creio que era uma consequncia

circunscrito

ou a teoria

objetos espectrais,

que no

existentes?

de que estvamos

tratando

da teoria da literatura - alis, a expres-

so foi usada pela primeira

vez por ele. Mas no me parece que a

esteja correta quanto s sees extremas

sobre Montaigne
confronto

considerados,

do Limites,

e sobre Kafka. Se mesmo neles h um constante

do objeto com os instrumentos

com os quais eles so

assim decorre de que, ao mesmo tempo que so estu-

dados autores que prezo, so construdas

as balizas tericas em que

eles so situados - como j se disse: na abertura e no crepsculo


perodo do sujeito orientado

para si prprio. Tampouco

que a restrio valha para O redernunho


apreciao

puramente

do

me parece

do horror. Outra vez, se a

analtica no se desliga da reflexo terica

porque o propsito do livro no era simplesmente

oferecer mais uma

anlise da Peregrinao de Mendes Pinto - embora poucas sejam


as vlidas -, mas sim mostrar como a lenta fermentao
aparecimento

do romance

pari passu com o no menos lento

que nele se observa caminhava

da escrita da histria em Joo de Barros e Diogo do

Couto; tarnpouco

procurava

construir

Conrad do que, simultaneamente,

mais uma anlise de Joseph

mostrar a dificuldade

de consti-

tuir o quadro ficcional do imprio ingls sem espantar seu leitor ou


agredir a sensibilidade

dos reviewers, ainda mais considerando

o fazia quando suas posies


ficcionalidade

conservadoras

colidiam

que

com aquela

crtica. Passo por cima da ltima seo sobre Garca

Mrquez porque teria de arrolar argumentos

semelhantes.

Em suma, a teoria da Iiteratura s coincidir com as obras "efetivamente existentes"


um arcabouo

quando o seu papel for o de aplicar ao existente

previamente

constitudo.

254

suposio

Mas, quando assim se dcr

sua face analtica, to

quanto as modalidades

nvel em que pretendo

do potico. No vou

entre Lei e literatura,

inovadora

em Limites

h outra conjugao

no segundo

mas ser central

captulo,

na interpretao

especialmente

de que o estado de direito

pensar esta relao

no seguimento

nas grandes ditaduras


sia da fico,

questo da nao. Ela


na leitura

de Kafka, quando se chega

de que a base de sua obra a constatao,

em O processo,

de Schiller,

concluso

exemplarmente

exposta

ele mesmo uma fico.

ao fim-ou-comeo

mais recentemente,

Como

de Kafka, seja quando,

do sculo XX, o estado de direito

seja quando,

que

da voz, que aquela entre Estado

pensada para alm da bvia e desgastada

j est presente

manter estas entrevistas.

14. Para alm da confluncia


me parece bastante

desintegrar

da

aqui sobre seu fictional drive porque ultrapassaria

me estender

e literatura,

dis-

s-lo - um gnero

que, sem ser - nem dever pretender

literrio, a teoria c sua afirmao concreta,

crucial

os exemplos

repetitiva, Parto ao contrrio

so) -, a teoria ser simplesmente

polesis, to inventiva

com o prprio inaugurador


observao

- ou quando assim se d (porque so abundantes

dispensou

a hipocri-

vem se deixando

permear

pelo mercado?

A passagem
circunstancial.

referida

ainda

Parece-me

era naquele

que a sensibilidade

ada por pertencer

a um grupo rninoritrio,

iidische

entre aspas porque

- escrevo

guas outras -, enquanto


grupo tnico,

momento

de Kafka era agucuja lngua "viva",

era uma bastardia

a lngua que deveria

o hebraico,

levaria

bastante

dcadas

de ln-

ser prpria

de seu

para renascer;

grupo

que, de sua parte, vivia no interior de uma nao, a parte tcheca,


cuja lngua ele falava mal, e que ento se expressava
do imprio
heterogneos,
Mundial

que absorvia

seu grupo e sua cidade,

em um perodo que, marcado

e seu imediato

da Europa,

a suceder

eu dispunha

desses

ps-guerra,
logo depois

dados,

ainda

tipo de fico que chamaremos

Praga, entre si

pela Primeira

preparava
de sua morte

Guerra

a desagregao
prematura.

no sabia arricul-los

externas

255

na lngua

ou "ambulantes".

Se

com o
No

que elas sejam esprias, mas assim se tornam por, no sen-

matizou. Apenas me interessa ainda acrescentar: da ignorncia

do reconhecidas como fices, por elas juramos de ps juntos,


por elas somos capazes de nos sacrificar ou, com as melhores

da necessidade das fices que surgem no s as hipocrisias, os

intenes, nos dispomos a massacrar os "outros"; por elas somos

enganos e os desesperos na conduta dos membros de uma comunidade, como a raiz do controle da fico artstico-verbal. Cha-

nossos filhos, dignidade etc.; de

mo por fim a ateno para um ponto que no desenvolverei: no


parece contraditrio que se diga - e eu o digo - que o discurso da
arte no tem capacidade para o exerccio do poder e o fato de que

sacrificar os outros: quando, na condio de juiz, mesmo que

tanto controle se exera sobre ele? Deixo a pergunta em estado

reconhea que tal crime foi cometido sob condies de fome e


absoluta necessidade, sinto que sou obrigado a declarar a mim

de puro desafio. A menos que a soluo para o problema aparea

capazes de nos sacrificar: quando nos apresentamos para uma


frente de batalha, julgando que, ao defender o "chamado da
ptria", estarnos defendendo

mesmo que o "criminoso", estando de posse de sua "liberdade", a


comprometeu voluntariamente como tal ato. Em palavras curtas,
preocupado em demonstrar como se verificava a articulao da
ficcionalidade kafkiana, ainda no me dava conta que as fices
tm incidncias diversas, que seu malefcio no est em si mesmas mas em que no sejam reconhecidas

como tais.

No sei se to grave ou pior desconhecer as "fices" que


praticamos diariamente, tomando-as como exigncias da realidade, do que no compreender que ... necessitamos de fices. Como
escrevia Bentham, apenas no comeo do sculo XIX, sem fices
"o discurso humano no poderia ser levado a cabo". O desconhecimento da necessidade de fices provoca o transtorno de indivduos
ou mesmo de grupos quando as fices externas, que praticavam
supondo-as impostas pela natureza das coisas, entram em colapso.
Um exemplo mnimo, em si insignificante, capaz, contudo, de
mostrar a gravidade do desconhecimento das fices externas: as
consequncias que podem decorrer de no cumprimentar, por um
motivo no proposital, algum que conhea.
Deste modo, da preocupao em reconhecer o estatuto da fico artstico-verbal a teoria vem a ressaltar algo que concerne ao
mbito da prpria sociedade. O mrito desta extenso cabe tanto
a Bentham e a Vaihinger quanto a Iser, que a difundiu e siste-

de repente, como uma iluminao, eu prprio precisaria de uma


prorrogao do tempo de vida.
15. Questo complementar

anterior, baseada na anotao do dirio de Kafka

que voc transformou em epgrafe do ltimo captulo ("Sou fim ou comeo"):


Kafka foi, de fato, o comeo de algo, ou apenas fim? H uma linhagem kafkiana na literatura (ou na arte) contempornea?

Suponho que as duas coisas. Em seus trs romances, O desaparecido, O processo, O castelo, o experimentalismo kafkiano se
realiza sob a aparncia do relato linear. Diga-se que essa Iinearidade,
mesmo no suposto romance realista de Balzac, era aparente. Estaria
de acordo, no caso de Balzac, com o ensaio que Michel Butor lhe
dedicou. Mas, sendo na verdade aparente ou no, o relato kafkiano
se mostra como linear. Ao mesmo tempo, dentro dessa linearidade
surge o inesperado: o oficial de polcia que bate porta de K.; a sua
obrigao de comparecer ao tribunal sem que deixe de ir ao escritrio em que trabalha; o agrimensor que atende ao pedido do castelo
e luta em vo para ser nele recebido etc. Reunindo os dois traos,
o cotidiano a residncia do corriqueiro e do espantoso. O corriqueiro apenas uma modalidade do espantoso. Assim pensando,
tanto podemos ver Kafka presente em Borges - apenas o espantoso
agora no tem por local a rua, mas a biblioteca, mais precisamente
no as criaturas que caminham mas os entes que nela se abrigam,
os livros, com seus fantasmas, os personagens - como em Beckett,
257

256

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talvez mais ainda em suas narrativas

do que no seu teatro.

Borges e Beckett so apenas os extremos


absolutamente

de uma presena

constante na literatura contempornea

(Diria que outros fios derivam


Quantos outros no existiro

de Joycc, de Faulkner

Mas
quase

de qualidade.
e de Musil.

que desconheo?).

dos casos, o leitor convidado a entender que a reflexo de Debord


ali est implcita.
17. Ainda sobre essa questo da imagem, que domina os ltimos pargrafos de

Limites da voz. Como voc

interpretaria,

luz do "poder-imagem",

que incorpora concretamente a imagem s suas tramas - penso especialmente

16. Voc termina o captulo sobre Kafka, e o livro que ele encerra, com a

em W. G. Sebald, o caso de maior destaque internacionalmente,

constatao

brasileiro,

planetria"

de que a "insubstancialidade

da lei"

ganha agora "dimenso

com nossa total imerso no "mundo das imagens". Configura-se,

assim, um "poder-imagem",

um "poder que se constitui

imagem", que "torna ociosa a violncia


ponto, as consideraes

explcita".

pela insistncia

da

Achei curioso que, neste

de Guy Debord sobre a "sociedade

do espetculo"

no tenham sido trazidas baila.

Ao ler o que voc observa, tambm confirmo a estranheza. A falta


de referncia no se daria porque no houvesse ainda lido o pequeno
livro de Debord. Duas razes possveis seriam: talvez considerasse
que a tese de Debord j fosse uma espcie de feijo com arroz da questo ou talvez tenha escrito a passagem

sem muito cuidado. Explico

melhor a segunda parte da alternativa:

meu mtodo de escrita - no

mas, no plano

poderamos lembrar os textos de Valncio Xavier, Dcio Pignatari,

Teixeira Coelho, Vitor Ramil...

Confesso-lhe
Apenas

que nunca pensei sistematicamente

vejo com simpatia

entrem na competio

loco, da informao

que autores

contra a imagem

instantnea

a respeito.

como os mencionados
a servio

da verdade-se

e outras modalidades

que a TV nos inunda - se os gramtieos

rasteiras de

me permitirem:

18. Nesse mbito ainda (que me interessa particularmente),


fica a imagem Iiterria (as representaes,
te da proliferao

pergunto-lhe como

as metforas, os

topoi

e da hegemonia das imagens extraliterrias,

por assim dizer, poltico-comerciais.

A literatura inevitavelmente

mundo das imagens triunfantes? Ou h espao, na experincia

prxima da oral idade - consiste em primeiro compor o texto mo,

s literria),

em uma letra mnima, que me permita, chegando ao fim da pgina,


prever o nmero de pginas prontas ou quase prontas para a digitao.
Quando chego ao fim do captulo ou mesmo de uma seo inteira.j
abandonar passagens

posso me dar ao luxo de

inteiras ou incluir outras. O ideal consiste em

que o texto digitado se afaste o mximo possvel do manualmente


escrito. Quando isso sucede, muitas vezes o que fora escrito, em uma
costura lenta, assume uma rapidez s interrompida

pela necessidade

de corrigir os erros de digitao. A tanto poder suceder que prefira


no recorrer a um desdobramento
fundamental,

bibliogrfico,

quanto que simplesmente

caso no me parea

opte pela formulao

tele-

etc.) dian-

das imagens,
absorver o
esttica (no

para uma reao das imagens insubmissas, "menores"?

A mesmo est um dos aspectos

da grandeza

do que considero

nosso poeta maior, depois da morte de Joo Cabral: Augusto

bastante

Campos.

cil o trabalho

provvel

no submetido

ao trfego

meramente

Creio que muito do que hoje se faz em pintura,

banalizao,

o de insubmisso
comercial,

bruta,

comercial

e performtica

rebelar.

ignorante

de

que se torne cada vez mais difsob a designa-

e, pior ainda, hipcrita,


quanto

aquilo

Por sorte no tenho a inteno

ra, porque

aumentaria

coca-colas

e as Marilyn Monroes

comercial.

outra forma de banalidade,

meus inimigos

porque

to

contra que se pretende


de ser crtico

de pintu-

ao dizer que no vejo as

de Andy Warhol seno ou como

grfica. No posso saber o que ter de fato a sucedido. Em qualquer


258

com que

a TV nos imunda.

est sendo usado neste livro porque aqui prefiro uma linguagem mais

sabendo o nmero de pginas previsveis,

a literatura

259

gozao ou como esperta rendio. A alternativa no apresenta uma soluo melhor ou pior. No caso da literatura, a nica

que ser simptico ao que escrevo, referi-Ia em suas bibliografias ou

vantagem que os produtos que nascem segundo a frmula dos

pode ser objeto de censura ou razo para ser malvisto na pretenso


a um posto universitrio. Embora no possa dar nomes e referir

no se fantasiam de obras experimentais. So ao


menos honestos. Tambm suponho que permaneam honestos

best-sellers

os "acadmicos"

que imortalizam tais figuras. No vamos nos

perguntar que espao resta para os que procuram escapar do eurtocircuito meditico. Sei apenas que, na periferia do mono bloco

chegar ao ponto de pretender escrever sobre o que tenha publicado

exemplos, saiba o leitor que entre meus defeitos no est a mania


de perseguio. De todo modo, devo reconhecer que, ainda que
permanea pequeno, o nmero de interlocutores por certo maior
do que h vinte anos.

capitalista, a situao muito pior do que em suas metrpoles.


claro que essas concentram as matrizes do quc se h de vender, difundir e afirmar. Mas a tambm esto plantadas ilhas de
qualidade, como se o "sistema"

soubesse que sua perdurao

tambm dependesse de que no deixem perecer o que reconhecem que no bugiganga.


19. H um dado que impressiona
interlocuo

no livro: a quase completa

com o universo intelectual

brasileiro.

ausncia

Nas referncias

de

biblio-

grficas, h apenas duas excees: Rubens Rodrigues Torres Filho e Mrcio


Suzuki - dois estudiosos de filosofia, e no de literatura ou teoria da literatura.
Pode-se ler esta virtual ausncia como um sintoma da mediocridade
dos estudos literrios

brasileiros?

Ou h interlocutores

terica

ocultos, para o bem

ou para o mal, no livro?

No por escolha que reconheo poucos interlocutores nacionais. No cometo alguma falsa delicadeza ao dizer que muitos deles
esto presentes na maioria dos que fazem as perguntas que aqui
respondo. Seria redundante acrescentar que no identifico meus
interlocutores por estarem de acordo com o que tenha escrito.
Pode mesmo suceder que o indagador tenha maior sintonia com o
livro que comentam do que eu mesmo. H portanto interlocutores
ocultos, "para o bem ou para o mal". S me aborrece que os interlocutores para o mal no costumem usar da palavra para enunciar
suas discordncias. Sei que isso no peculiaridade do Brasil ou
dos pases perifricos: mas no deixa de provocar indignao saber
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