O Projeto Literário Adília Lopes

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

RAQUEL GES DE MENEZES

O PROJETO LITERRIO ADLIA LOPES

Rio de Janeiro
2011

Raquel Ges de Menezes

O projeto literrio Adlia Lopes

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de


Ps-Graduao em Letras Vernculas, Faculdade de
Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito obteno do ttulo de Mestre em Literatura
Portuguesa

Orientador: Jorge Fernandes da Silveira

Rio de Janeiro
2011

FOLHA DE APROVAO

Raquel Ges de Menezes

O PROJETO LITERRIO ADLIA LOPES

Rio de Janeiro, ____ de ____ de 20__

(Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira UFRJ Orientador)

(Professora Doutora Martha Alkimin de Arajo Vieira UFRJ)

(Professora Doutora Sofia Maria de Sousa Silva UFRJ)

(Professora Doutora Maria Lcia Wiltshire de Oliveira UFF Suplente)

(Professora Doutora Luci Ruas Pereira UFRJ Suplente)

AGRADECIMENTOS

CAPES, pela bolsa que viabilizou os estudos,


Maria Aparecida Lino e a Urnia, por todo apoio burocrtico no pedido de prorrogao,
a meu mestre suicida Jorge Fernandes da Silveira, pela orientao, o afeto, os cantos e os
recantos,
ao amigo Fernando, pela interlocuo e a Dobra,
amiga Maria Clara, parceira de grmio e incentivadora no principio de tudo,
amiga Mayara, pela ajuda lingustica,
a generosidades de muitas ordens, como leituras e indicaes bibliogrficas de Lucia
Evangelista, Clia Pedrosa, Sofia Sousa Silva, alm do mui querido amigo Pedro Eiras,
aos tantos mestres da longa caminhada da Graduao, estendido ao mestrado, pelos
conselhos acadmicos como os de Luci Ruas, Ida Alves, Dau Bastos, Gilda Santos, Alberto
Pucheu e Sheila Hue, que no meu primeiro dia de aula de Literatura Portuguesa I fez-me
enamorada da lrica medieval.

famlia Menezes, nomeadamente Marina, Mariza e Paulo, pois cada um, a seu modo,
mostrou-me a importncia de valorizar a educao.

Andria Gis, pelo entendimento do que seja fraternidade, pelo pedido ao avio, por todas
as conversar que foram, so e sero,
Eliete Gis, pelas noites no dormidas, pelos afagos matutinos, pela vida,
a Adilson Menezes, in memorian, responsvel pelo muito que no pode acompanhar.

DEDICATRIA
a Luis, pelo dia de junho que possibilitou o que somos hoje. Pelas leituras, afagos, sorrisos,
poemas, passeios. Pela vivncia. Pela experincia. Pela existncia. Pelo entendimento dos
versos camonianos.
a Dioniso, a minha melhor obra. O meu aprendizado. O sorriso que me faz ganhar o dia. O
responsvel pelo meu desejo de que o mundo seja melhor.

RESUMO

MENEZES, Raquel Ges. O PROJETO LITERRIO ADLIA LOPES. Rio de Janeiro,


2011. Dissertao (Mestrado em Literatura Portuguesa), Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2011.

Estudo da poesia de Adlia, a partir da ideia de que desde o uso do pseudnimo,


Adlia Lopes, provocativa citao biogrfica, bem como os excessivos usos de situaes
do cotidiano tensionam ser um projeto literrio, tico e social de fingimento. Filha da
modernidade, portanto um pouco filha de Fernando Pessoa, Adlia no tenta contornar a
potica do fingimento. No entanto, como se tivesse lido Jorge de Sena junto com Pessoa,
Adlia Lopes agrega a potica do testemunho do fingimento, em um gesto de
"transformao do mundo". Contrariando alguns estudos que defendem que Adlia une vida
e obra, aposto na ideia de que h sim um cerzimento na potica adiliana, no de vida e obra,
mas sim de fingimento e testemunho. Para tal estudo, o trabalho dividido em dois
captulos. O primeiro dedicado a ver como as personae e as referencias tradio
histrico-literria se articulam a citaes do mundo pop. No segundo captulo, a partir do
verso "quanto mais prosaico mais potico", analiso questes como o valor e o dinheiro, o
espelhismo e, por ltimo, penso no quanto esta poesia, apesar de muito voltada ao humor a
priori, tem no trgico uma chave de leitura.

ABSTRACT

MENEZES, Raquel Ges. O PROJETO LITERRIO ADLIA LOPES. Rio de Janeiro,


2011. Dissertao (Mestrado em Literatura Portuguesa), Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2011.

This dissertation focuses on the study of Adlia Lopes poetry from the perspective
that both the use of the poets pseudonym (Adlia Lopes) and the provocative
biogragrapical quotations used in her poetry, as well as the excessive uses of daily life
situations, are part of a literary, ethical and social project of the dissimulation. Being born
under the sign of Modernity, therefore being part of Fernando Pessoas tradition, Adlia
Lopes does not try to overcome the poetics of dissimulation. Nevertheless, as if having read
Jorge de Sena at the same time as Pessoa, Adlia Lopes unites the poetics of witness to the
poetics of dissimulation in a gesture for changing the world. Against some studies that
defend the proximity between life and writing in Adlias work, I stand for the idea that
there is a close connection between dissimulation and witnessing, instead of that of life and
writing. Therefore, this research is divided in two chapters. The first is dedicated to analyse
how the personae and the references to the historical and literary tradition, developed in
Adlias poetry, articulate to the world of pop. In the second chapter, considering the poem
that says quanto mais prosaico mais potico (the more prosaic the more poetic), this
research studies themes like worth and money, espelhismo, and, last but no least,
tries to discuss how Adlias poetry, as much as it is a priori devoted to humour, finds in
the tragic a key for interpretation.

SUMRIO

1 INTRODUO

10

2 ALGUMAS CONVERSAS DE ADLIA LOPES

17

2.1. CAMES, CESRIO & ADLIA

31

2.2. FALO ADLIA. FALO LUIZA

42

2.3. FLORBELA ESPANCA ESPANCA SROR SAUDADE

49

2.4. ADLIA LOPES REL AS CARTAS PORTUGUESAS

57

2.5 FERNANDO PESSOA E RICARDO REIS; MARIA JOS DA SILVA FIDALGO


VIANA E ADLIA LOPES

62

3. O PROSAICAMENTE POTICO

70

3.1. A RECEPO CRTICA

72

3.1.1 A POETISA POP IRONISTA

76

3.2. DINHEIRO E LITERATURA. MERCADO E VALOR

82

3.3. O REINO DE ADLIA POR UM ESPELHO

94

3.4 SERIA CMICO SE NO FOSSE TRGICO

100

4. CONCLUSO (?)

107

5. BIBLIOGRAFIA

113

FICHA CATALOGRFICA

Menezes, Raquel Ges de.


O projeto literrio Adlia Lopes/ Raquel Ges de Menezes. -Rio de Janeiro:
UFRJ/ FL, 2011.
ix, 117f.; 31 cm.
Orientador: Jorge Fernandes da Silveira
Dissertao (mestrado) UFRJ/ FL/ Programa de Ps-graduao em Letras
Vernculas, rea: Literatura Portuguesa, 2011.
Referncias Bibliogrficas: f. 113-117.
1. Algumas conversas de Adlia Lopes. 2. O prosaicamente potico. I. Silveira,
Jorge Fernandes da. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Psgraduao em Letras Vernculas, rea: Literatura Portuguesa. III. Ttulo.

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1. INTRODUO
Com um livro intitulado Um jogo bastante perigoso, Adlia Lopes estreia em 1985.
Embora existam as dicotomias concreto x subjetivo, tocvel x intocvel, indicadoras de
uma poesia realista, pode-se afirmar que a potica adiliana se vale da realidade da
linguagem e no do realismo de fatos. A poeta tem na contemporaneidade o cerne de seu
projeto literrio. Este executado por Adlia, para Adlia enquanto projeto. Mas dizer que a
poeta de Apanhar ar ttulo de seu at agora ltimo livro contempornea, ou melhor,
que tem no contemporneo o centro de seu trabalho potico assaz, no mnimo,
redundante. Se trato de uma poeta que estreia, ainda que no sculo passado, em um tempo
contemporneo, e se esta mesma poeta completou, neste ano de 2011, apenas 51 anos, por
que especificar a contemporaneidade de Adlia Lopes?
Destaco neste trabalho a contemporaneidade de Adlia, dando a mo a Giorgio
Agamben, filsofo que para entender O que o contemporneo (2009, passim) parte da
ideia de que O poeta o contemporneo deve manter fixo o seu olhar no tempo. Para
pensar o contemporneo, Agamben segue adiante com a pergunta: Mas o que v quem v
o seu tempo, o sorriso demente do sculo?, que seguida da proposio:
Gostaria de lhes propor uma segunda definio da contemporaneidade:
contemporneo aquele que mantm fixo o olhar no seu tempo, para nele
perceber no as luzes, mas o escuro. Todos os tempos so, para quem deles
experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporneo , justamente, aquele
que sabe ver essa obscuridade, que capaz de escrever mergulhado a pena nas
trevas do presente (...). Pode-se dizer contemporneo apenas quem no se deixa
cegar pelas luzes do sculo e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua
ntima obscuridade. (Agamben: 2009, p. 62-63)

Adlia Lopes, como seu(s) jogo(s), desde a estreia, perigoso(s), divaga entre uma
possvel readequao de cantos (at mesmo camonianos?) e o entendimento de que a obra
de arte/ no um ajuste/ de contas (p. 269), para, assim como Jorge de Sena, perceber que

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poesia, melhor que a qualquer outra forma de comunicao, cabe, mais que compreender
o mundo, transform-lo (1961, p.11). Com esses entendimentos, Adlia no se deixa cegar
pelas luzes de nosso sculo, conseguindo, assim, vislumbrar a ntima obscuridade
hodierna.
desse modo que a poeta exerce a contemporaneidade: articulando uma srie de
entropias poticas, enxergando, como se fotografasse (analogicamente) o mundo, ao invs
de sob luz, na escurido. Se fotografar escrever com luz, a poesia de Adlia registra o
mundo, escreve-o, grafa-o, percebendo no as luzes, mas o escuro. Essa grafia do escuro
no diz respeito apenas a ausncia de luminosidade, mas resultado das atividades das offcells, um produto da nossa retina (Agamben: 2009, p. 63). Isso significa, portanto, que, se
o escuro no resultado de uma inrcia, mas sim implica uma atividade e uma habilidade
particular (Agamben: 2009, p. 63), a potica de Adlia exerce uma grafia obscura.
Num primeiro momento, a poesia de Adlia, pelo demasiado uso do humor, pode
parecer solar e descompromissada com uma potica mais dedicada a alguma resistncia. No
entanto, a partir de leituras mais atentas e da observao dos registros de linguagem da
autora, o que percebemos um projeto literrio afinadssimo s ideias de resistncia
artstica de que nos fala, por exemplo Rancire, autor escolhido para o trato deste tema
nesta dissertao.
Em um poema como
No gosto tanto
de livros
como Mallarm
parece que gostava
eu no sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer

12

como o poeta Cesariny


olha
eu gostava
que tu gostasses de mim
os livros no so feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
no me chega
preciso de um abrao
mas graas a Deus
o mundo no um livro
e o acaso no existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreio
dos livros
e acredito que no Cu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever (p. 396-397)

o gracejo da poeta, por exemplo, comear o texto descrevendo a sua relao com os livros
como se ela no gostasse deles. Para tal tarefa, a poeta ope-se a Mallarm, pois este
parece que gostava de livros. Para Maurice Blanchot, ao dissertar sobre O mito de
Mallarm, [o] livro o smbolo dessa subsistncia autnoma, ele nos ultrapassa, nada
podemos quanto a ele e nada somos, quase nada, no que ele (1997, p.47). J para Adlia,
os livros que no so feito de carne e osso no podem substituir o abrao humano. Adlia,
assim como Cesariny, quer que gostem dela, e no de seus livros. A tenso se d quando,
no mesmo poema, os livros esto no Cu, ltimo lugar onde a humanidade estar (se
no no Inferno), para a crena Crist. O objeto livro para Adlia Lopes apenas um objeto;
talvez por isso,
Que o livro
v por gua abaixo
mas que maridos
me aconteam (p.361)

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Afinal, o que a poeta quer contato humano. Ou talvez, no contrariando o que


disse h pouco, o que importa no so livros, mas sim a literatura, o literrio. Ressalto,
aqui, que o ttulo deste meu trabalho nada tem de original, j que tomo emprestado o
sintagma projeto literrio do poeta e romancista valter hugo me, autor e organizador da
antologia Quem quer casa com a poetisa?, publicada pela editora Quasi, em 2001. Neste
texto, o autor afirma que
se mantivermos a conscincia de que adlia lopes , sobretudo, um projecto
literrio, embora talvez vazado para a realidade da autora maria jos, (...),
poderemos perceber, neste poema [valter hugo me trata aqui de Arte potica],
a assuno da capacidade que a literatura tem de saciar o autor. a literatura, ou o
peixe [Escrever um poema/ como apanhar um peixe], o que o autor persegue.
(2001, p. 176)

Adlia Lopes um projeto literrio por que seu nome de batismo maria jos?
Ou, o projeto literrio Adlia Lopes, ainda que este seja seu pseudnimo, o que a autora
busca como sendo o seu ponto de saciedade, a literatura? Ao longo deste trabalho, a ideia
de um fingimento adiliano, afim s caractersticas do pessoano, aparecer, sendo articulada
potica do testemunho de que nos fala Jorge de Sena no prefcio que escreveu para a
primeira reunio de sua poesia. Sofia Souza Silva sustenta que em vez de procurar
dissociar o texto do autor, a obra de Adlia investe freqentemente no inverso: colar o texto
ao autor(2007,32). Rosa Maria Martelo, em uma leitura semelhante de Souza Silva,
portanto embasada na proposta de que h em Adlia uma associao do texto ao autor,
afirma:
[a]o acentuar uma cumplicidade entre poesia e vida que a afasta da tradio de
impessoalidade, fingimento alterizao que foi determinante para a tradio da
poesia moderna, Adlia Lopes acabou presa a uma figura autoral muito marcada
pela condio autobiogrfica que os seus livros sugeriam. (2010, p.242)

Por outro lado, o que gostaria de colocar em relevo aqui que quando Adlia Lopes,
afirma, at insistentemente, que une vida e obra, acredito eu que seja to fingimento do que

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qualquer outra coisa que se expressa pela linguagem potica. por este caminho, o
fingimento de toda linguagem potica, j que o poeta um fingidor, que podemos
aproximar Adlia Lopes da potica do testemunho de Jorge de Sena, que, ao contrrio do
que muitos insistem, no contraria, nem combate, o fingimento pessoano, mas sim
suplementa-o. Pois, com uma suposta superao da heteronmia artificial e no
revolucionria (1961, p. 12), Sena agrega ao fingimento um gesto de transformao do
mundo. E, assim, o testemunho cerzido ao fingimento:
[s]e o fingimento , sem dvida, a mais alta forma de educao, de libertao e
esclarecimento do esprito enquanto educador de si prprio e dos outros, o
testemunho , na sua expectao, na sua discrio, na sua vigilncia, a mais alta
forma de transformao do mundo, porque nele, com ele e atravs dele, que
antes de mais linguagem, se processa a remodelao dos esquemas feitos, das
ideias aceites, dos hbitos sociais inscientemente vividos, dos sentimentos
convencionalemente aferidos (Sena: 1961, p.11)

Adlia observa o mundo nos metros, nos autocarros, nas praas e nos cafs da
cidade, problematizada enquanto lugar de vivncia, de experincia e de testemunho. Como
seus passeios citadinos costumam ter uma personagem autobiogrfica, muitas vezes
podemos ter a impresso de que h uma manisfestao de uma vida na poesia de Adlia.
Para Lcia Evangelista,
quando pensamos a manifestao de uma vida na poesia de Adlia Lopes, o
fazemos a partir dessa vida que no meramente biogrfica numa concepo
mais lata. No se trata de uma enumerao de fatos. O que se trata sim de uma
bio-grafia, no sentido de uma vida que escreve a si em seus acontecimentos e
singularidades, uma vida que se mostra na linguagem, e que por ser assim trazida,
por ser assim atualizada atravs dos poemas, apresenta-se sempre atravessada
pelas foras que a constituem e que a constituem enquanto linguagem
(22/03/2011)

De fato, h uma grafia de uma bio- em Adlia Lopes, e tudo isso se d, claro, por
meio da linguagem e das aflies que esta pode gerar para o poeta. Se concordo com

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Evangelista quanto a uma vida que escreve a si, porque em um poema como o que se
segue,
O 38 vai cheio
um homem
d-me belisces
no rabo
entre o Campo Pequeno
e o Saldanha (p. 341)

, Adlia revela em seu fazer potico uma busca pela beleza, segundo Sofia Sousa Silva: em
tudo que h de mais prosaico e nisso ela tem lvaro de Campos como um mestre ,
combinando com esse prosasmo a leitura da tradio literria (2007, p. 49). O autocarro,
O 38, transfigurado por Adlia como um espao de estranhamento para uma
personagem que leva belisces/ no rabo. A iluso ficcional perturbada pela poeta que,
entre estaes de metro, testemunha e experimenta o prosasmo de linguagem com o
humor da pequena narrativa experienciada no 38.
Adlia no pretende filiar-se ou criar um movimento que vise romper com a
tradio, mas sim estabelecer algumas rupturas, sendo que muitas vezes de mos dadas com
a tradio literria portuguesa, como vemos literalmente neste poema, que recupera, de
modo adiliano, uma famosa cantiga de Mantn Codax:
De mo dada
com meu amigo
vejo os filmes
de Jean Vigo (p. 314)

Tal como Sofia Sousa Silva, no enxergo Adlia Lopes como uma poeta de
vanguarda, mas sim como uma poeta rigorosamente contempornea. A ensasta, ao
aproximar, em sua tese de doutoramento, as poticas de Sophia de Mello Breyner Andresen
e de Adlia Lopes, afirma que [a] posio das duas ser no a de romper, como a das
vanguardas, mas a de continuar, olhar novamente, mudar o foco, refazer perguntas,

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procurar estender o limite do dizvel (2007, p.84)


As referncias literrias, ou influncias, como diria Harold Bloom, em Adlia
Lopes, para valter hugo me, no se tratam de pilhagem nem de falsificao, o que
acontece que estamos num universo de citao de autores ou personagem bem como de
situaes do quotidiano aparentemente real da autora (2001, p. 176).
Lus de Cames, Fernando Pessoa, Cesrio Verde, assim como os contemporneos
Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brando, Herberto Helder, Ruy Belo, so invocados
pela poesia de Adlia Lopes, seja como epgrafe, seja como citao literal no texto, seja
como pardia, e muitas vezes transformados em personagens da poeta de jogos perigosos.
Quando os convida para estarem em seus textos como epgrafe, Adlia Lopes, como chama
a ateno Osvaldo Silvestre, no ensaio As lenga-lengas da menina Adlia, revela um
superior domnio revelado pela autora na arte da epgrafe. (1999, p. 17).
Poderia, nesta introduo, dizer mais acerca do que vir. No entanto, deixo para os
captulos, e suas subdivises, a tarefa de desdobrar o projeto Adlia Lopes, ou Adlia Lopes
enquanto projeto. Por ora, finalizo o princpio com um poema que pode muito bem colocar
gua na boca do leitor, ou melhor, ensejar um texto que se dedica a um dos mais
surpreendentes poetas portugueses de nosso tempo:
O feito (o facto)
feito
o que est
feito
est feito
(o feto
o facto) (p. 455)

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2. ALGUMAS CONVERSAS DE ADLIA LOPES


Vi-me comprimida
num ajuntagente
ora eu s suporto pessoas distncia
de preferncia com uma mesa de permeio
Adlia Lopes, de Um jogo bastante
perigoso, 1985

Em sua poesia, Adlia Lopes lana mo de ditos populares cristalizados, alm de


mximas, de discursos da propaganda e do marketing e de situaes do cotidiano,
articulando-os literatura e histria tanto portuguesa quanto de outras origens. Adlia
imbrica provocativamente citaes eruditas a situaes cotidianas de modo a incitar uma
estratgia de resistncia. Assim, os efeitos de reao ocorrem na aproximao entre o
potico e o biogrfico, ou ainda, quando so estabelecidas afinidades entre a cultura de
massas e a arte. A poeta que se perde no labirinto/ dos dias sabe que A poesia/ o
perde-ganha:
Perco-me
no labirinto
dos dias
Ganho-me
no labirinto
dos dias
A poesia
o perde-ganha
E o labirinto
dos dias
o labirinto
dos dias (p.583)1

Adlia sabe que o perder e o ganhar so prximos, quase que conglomerados,


1

Quase todos os poemas de Adlia aqui citados so de Dobra, poesia reunida publicada em 2009, pela Assrio
& Alvim. Portanto, as referncias em que s aparecer o nmero da pgina diro respeito a Dobra.

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principalmente em poesia, linguagem na qual a perda e o ganho de significantes e


significados se misturam em um labirinto de construo de sentidos. O sabor, digo, o
saber potico para Adlia tortuoso, como se construdo por uma estrutura cuidadosamente
inextricvel onde perder e ganhar possui o mesmo valor, no dia-a-dia. A orao da freira
poetisa barroca (p.320), em seu ltimo livro, :
A poesia de cada dia
nos dai hoje (Lopes: 2010, p.23)

Para Adlia Lopes, os pares nada antagnicos apropriao e experincia prpria,


moderno e tradicional, se conjugam de forma que uma subjetivao ldica e distpica se
realiza em um projeto literrio moderno criado por Adlia, para Adlia. A poeta, desse
modo, alarga o campo semntico dos seus poemas atravs da intertextualidade. O recmcitado poema, leva-me a pensar no Escapulrio de Oswald de Andrade:
No Po de Acar
De Cada Dia
Da-nos Senhor
A Poesia
de Cada Dia (Andrade: 2003, p.49)

Se a poeta portuguesa leu o modernista brasileiro, pouco importa. O fato que a


influncia termo associado a Harold Bloom (Bloom: 2002) de Oswald tangencia a
minha leitura do poema de Adlia. Como os poemas surgem no tanto em resposta a um
tempo presente, como mesmo Rilke pensava, mas em resposta a outros poemas (Bloom:
2002, p. 147), o movimento de Adlia, que reza o seu Pai Nosso a partir da poesia sua,
uma pardia, assim como o Escapulrio do que assina o Manifesta antropofgico. O
cotidiano, em Oswald e em Adlia, um labirinto em que texto e intertextos so
apropriados e emprestados. Num ensaio em que A poesia e a antropofagia figuram
centrais, Clia Pedrosa afirma:

19

[n]esse movimento, desestabilizam-se imagens espaciais e temporais de origem e


de originalidade, a singularidade de Adlia se constituindo na ousadia mesma de
se apropriar de tudo, numa experincia bem prpria, particular, do bem comum,
de que signo a leitura indisciplinada e mltipla na biblioteca da casa familiar
que a poeta, isolada e solitria, quase nunca abandona. (Pedrosa: 2008)

O po do cotidiano, o po de cada dia, da orao/ poema de Adlia amassado por


ela mesma. Po e linguagem misturados no labirinto (diablico?) da literatura. , desse
modo, que, ao inserir o que do cotidiano em sua poesia, Adlia cria uma tenso de
ambivalncias: concreto x subjetivo, tocvel x intocvel, etc, aproximando-se da luta dos
contrrios2 (Chau: 2002, p.82) que Cames apre(e)ndeu de/com Herclito. A poeta
portuguesa contempornea, assim como o pensador pr-socrtico e o poeta renascentistahumanista, entende que a ordem do mundo surge da tenso de opostos. Na contraposio
O Cho optimista e O cho pessimista ttulos de dois poemas de Sete rios entre
campos observamos uma representao mais concreta para um famoso fragmento de
Herclito, [o] que se ope a si mesmo est de acordo consigo mesmo (apud Chau: 2002,
p.82).
O cho optimista
Cair do cavalo
cair da escada
o rs-do-cho to bonito
o cho to bom
as violetas so macias
e no tm picos
ao contrrio das rosas
o cho est cheio de ouro
por dentro
por fora um besouro
Dale Carnegie tem razo
o meu cavalo lambe-me a cara
no parti nada
no alcatro
2

Em Introduo histria da filosofia, Marilena Chau cita um dos mais celebrados fragmentos de Herclito:
[a] guerra (plemos) o pai e o rei de todas as coisas, para discursar acerca da luta dos contrrios, ou
melhor, sobre a guerra ser o que pe as coisas juntas para formar um mundo em comum. (Chau: 2002,
p.82)

20

ou o passeio
do defenestrado
nem o tero da me
agora morta
a libertao da queda
de Ado e Eva
Ado que me estende a mo
O cho pessimista
Escuro
como breu
o cho
me comeu (p.348)

Nos poemas recm-citados, a abertura de um espao de resistncia -nos oferecida:


o cho lugar-comum, no seu triplo sentido de clich, de realidade comezinha e de utopia
poltica , articulado ideia de unidade na multiplicidade e vice-versa. Marilena Chau nos
fala sobre esta representao a partir de fragmentos de Herclito, tendo como pressuposto
que esta noo nodal para o pensamento do filsofo:
[a] multiplicidade mvel e a luta dos contrrios no uma disperso sem fundo.
O vulgo e o senso comum so incapazes de compreender o sentido de tudo
um porque acreditam que cada oposto poderia existir sem o seu oposto e olham
as coisas como uma multiplicidade de seres separados uns dos outros. Em outras
palavras, no percebem que a multiplicidade unidade e a unidade,
multiplicidade, pois cada contrrio nasce do seu contrrio e faz nascer o seu
contrrio, isto , so inseparveis. A noite traz dentro de si o dia e este traz dentro
de si a noite; o frio traz dentro de si o quente e o quente traz dentro de si o frio
(2002, p.82-83)

O pessimismo traz dentro de si o otimismo e o otimismo traz dentro de si o


pessimismo. Os chos, tanto optimista como pessimista, resistem e, por isso, se
completam, agindo como qus que se opem ordem das coisas, rejeitando ao mesmo
tempo o risco de subverter essa mesma sistematizao. Por isso, nas quedas na linguagem
comum a que Adlia submete sua poesia, notamos uma carga oposicional suplementar em
que breu e ouro se geminam. Outra ao possvel aos vocbulos recm-citados
engendrar-se, pois, com Plato, pergunto:

21

a decomposio e a composio, o resfriamento e o aquecimento, e todas as


oposies semelhantes, ainda que s vezes no possuam nomes apropriados em
nossa lngua, no haveriam de comportar em todos os casos essa mesma
necessidade, tanto de engendrar-se mutuamente como de admitir em cada termo
uma gerao dirigida para o outro? (1991, p.74)

Com esta investigao realo a premissa platnica de que a escurido do breu


do cho pessimista que come a poeta nasce3 da luz do ouro que est dentro do
besouro, numa explorao que chega ao nvel do significante, pois ouro est,
literalmente, dentro de besouro. O otimismo da luz, que h no ouro, nasce do pessimismo
da escurido. Entretanto, por pessimismo e otimismo serem contrrios, e, por isso mesmo,
darem origem a seus contrrios, eles estabelecem uma linha contnua de ao. Notvel
perceber que os poemas esto na mesma pgina na Dobra e, desse modo, o cho
pessimista comea logo depois que acaba o cho optimista. Assim, o sujeito, ao sair do
cho optimista, cai no cho pessimista, e o contrrio disto tambm se d, pois ambos
esto juntos, mesmo quando o seu contrrio no est completamente acabado.
A referncia ao autor de best-sellers que escreveu Como fazer amigos e influenciar
pessoas e Como evitar preocupaes e comear a viver mais uma das tticas adilianas de
misturar o no-literrio com o literrio. A literatura, ligada ao esttico, usa a linguagem
para a construo de sentidos que extrapolam a mera comunicao; a arte literria, para
Adlia, um modo de lida com a ausncia. E por isso to preciosa e perigosa (p. 602).
A preciosidade e o perigo da literatura se friccionam continuamente em poesia, pois a
linguagem, em estado potico, extrapolada nela e por ela mesma, para que significante e
significados se tensionem de forma ambivalente. As classes gramaticais danam e se
articulam medida que os significantes so

Assim como o menor nasce do maior,o fraco do forte, o justo do injusto. (Cf. Plato: 1991, p.73)

22

Achados
Verbais
Achados
Vitais
Claros
como vitrais
claros
como claras (p.499).

Literatura linguagem carregada de significado (...) novidade que PERMANECE


novidade (Pound: 2003, p. 32). Um texto literrio quando consegue produzir um efeito
esttico e, assim, provocar intensamente seu receptor. A prpria natureza do carter
esttico, contudo, reconduz dificuldade de elaborar alguma definio verdadeiramente
estvel para o texto literrio. Por isso, como afirma Silvina Rodrigues Lopes, [] preciso
impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura no se arrogue
em breve um direito de exclusividade (2003, p.13). Essa banalizao apontada por Adlia
Lopes ao trazer para o espao literrio um nome meramente comercial, como se
redimensionasse o anestesiamento e o embrutecimento de que nos fala novamente
Rodrigues Lopes (2003, p.14), partilhando, num primeiro momento, o lugar-comum, o
entretenimento e a autoajuda para, em seguida, tensionar a suspenso de sentido e o
pensamento sem assunto (Lopes: 2003, p.14), termos mais uma vez emprestados de
Rodrigues Lopes. Alm disso, uma provocante e perigosa ironia em relao ao mercado
editorial. O estadunidense Dale Carnegie, graas ao sucesso obtido com seus livros, chegou
a ser conselheiro de lderes mundiais, escreveu colunas em diversos jornais, teve o seu
prprio programa de rdio e fundou o que hoje uma rede mundial de mais de 2.700
instrutores e escritrios em aproximadamente de 80 pases em todo o mundo.4

Informaes adquiridas na Wikipdia. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dale_Carnegie

23

Ao fazer do senhor autor de best-sellers de autoajuda o que tem razo (Dale


Carnegie tem razo), Adlia ensina como evitar preocupaes e comear a viver: ao cair
do cavalo, o cavalo lambe a cara da poeta. Num jogo bem irnico, como se concordasse
com o lugar-comum dos ensinamentos dos guias de autoajuda, a poeta primeiro levanta a
possibilidade de que a queda do cavalo compensada pela lambida do animal, como se
houvesse sempre um conforto diante das intempries da vida. Mas, como o jogo proposto
se estabelece no contrrio optimista x pessimista; cair em mim x cair da escada
, o carinho do animal quadrpede pode ser visto tambm como o lugar mais baixo para se
estar, pois pode significar que a queda do cavalo foi dolorosa dolorosa talvez como a dos
primeiros habitantes do planeta, Ado e Eva, que, expulsos do Paraso, sofrem uma das
grandes quedas, comparvel do beb quando sai do tero da me.
As personagens do Gnesis caem porque pecam, e, ainda assim, Ado estende a
mo. Teria o primeiro homem estendido a mo primeira mulher? Ou Adlia recupera aqui
a pintura de Michelangelo, A criao de Ado, onde Ado est com a mo estendida para
Deus, ou, numa unio das duas possibilidades, Ado est com a mo estendida para seu
criador, pois espera receber Eva, que est envolvida no outro brao de quem a criou. A
resistncia artstica de Adlia estaria na unio do autor de best-sellers ao pintor
renascentista? Para Rancire, o tema resistncia da arte
no de forma alguma um equvoco de linguagem do qual poderamos nos livrar
mandando a consistncia da arte e o protesto poltico cada qual para o seu lado.
Ele designa bem a ligao ntima e paradoxal entre uma idia da arte e uma idia
da poltica. H dois sculos que a arte vive da tenso que a faz existir, ao mesmo
tempo, em si mesma e alm de si mesma e prometer um futuro fadado a
permanecer inacabado. O problema no mandar cada qual para o seu canto, mas
de manter a tenso que faz tender, uma para a outra, uma poltica da arte e uma
potica da poltica que no podem se unir sem se auto-suprimirem. Manter essa
tenso, hoje em dia, significa sem dvida opor-se confuso tica que tende a se

24

impor em nome da resistncia, com o nome de resistncia. (Rancire: 2007,


p.267)

Por desconfiar do senso comum, usando-o e redimensionando-o com enorme


frequncia, Adlia cria em sua poesia um espao de aberta transio, no s da ironia, mas
tambm da ambiguidade, reversibilidade, transitividade, pluralizao para reencenar
ainda mais uma vez a poesia como gesto de profanao (Pedrosa: 2007, p.121), como
afirma Clia Pedrosa ao aproximar Adlia Lopes de Baudelaire. Desse modo, Adlia
superexplora a subjetividade, questo recorrente e agudamente problemtica para a
modernidade, e reflete-a, tanto por pensar como por observar, no espelho, o eu e seus
ecos referenciais de auto-imagem , como nos versos:
Quem espreita
por meus olhos
no espelho
sou eu (p.580)

De acordo com a afirmao de Rancire de que conhecemos, de resto, a dupla


dependncia da arte em relao aos mercados e aos poderes pblicos e sabemos que os
artistas no so nem mais nem menos rebeldes que as demais categorias da populao
(2007, p. 254), podemos aludir, inclusive, a uma conscincia de queda do artista, pois o
cho est cheio de ouro, quando relacionado referncia ao autor de best-seller. A queda
do artista leva-me a pensar imediatamente na perda da aurola, comentada por Manuel de
Freitas no ainda polmico prefcio antologia Poetas sem qualidades:
[p]or outras palavras, a partir de Baudelaire, a indissociabilidade entre o poeta e o
seu tempo adquiriu a fora de uma evidncia. O declnio da aura significa, entre
outras coisas, o predomnio do temporal sobre o eterno e, concomitantemente, da
prosa sobre o verso (em termos comerciais, pelo menos). (2002, p.11)

A queda do artista em Adlia se apresenta em termos comerciais, de um tempo


desolador, em que um autor de best-sellers convidado a um poema. Como uma estratgia

25

de resistncia de uma poeta rigorosamente contempornea, j que este adjetivo


associado por Agamben aos que de modo anacrnico so capazes de perceber e apreender
o seu tempo (Cf. Agamben: 2009), o que observamos em Adlia uma analtica
preocupao com o que Guy Debord chamou de sociedade do espetculo (Debord: 1997,
passim). Adlia Lopes, em uma contempornea, portanto, em uma singular relao com o
prprio tempo (Agamben: 2009, 59), observa os lugares obscuros configurados atualmente
como quantitativos, em oposio a um tempo qualitativo, como observou Freitas no recmcitado prefcio.
No que diz respeito a suas tenses modernas, Adlia Lopes, com outdoors, metros,
carteiros, etc., encontra na cidade temas a serem discutidos, aproximando-se do moderno
Csario Verde. Entretanto, a poeta contempornea, diferentemente de Cesrio, no
manifesta

sentimento

dum

ocidental

experimentado

pelo

modernista/realista/simbolista/impressionista ao deambular pela cidade de Lisboa, logo


aps sujar a via da glria nacional (Silveira: 2003, p.153)5. Adlia, simplesmente, est na
cidade. Logo, o espao citadino no para a poeta um problema de partida ou chegada, ou
seja, Adlia no vagueia pelo espao urbano com um desejo absurdo de sofrer (Verde:
s/d, p.47), nem leitora das crnicas navais (Verde: s/d, p.49). Repito: Adlia Lopes est
na cidade. No digo com isso que o verbo estar resolva a questo, mas sim que no uma
problemtica da poesia de Adlia o deslocamento ou o no-deslocamento para fora da urbe,
pois esta urbe, por assim dizer, , para a poeta, uma inexorabilidade.

Jorge Fernandes da Silveira, na abertura de seu ensaio Cesrio, duas ou trs coisas, afirma que [n]as suas
viagens em crculo pelas ruas de Lisboa, Cesrio acaba sempre beira dum rio fechado: o Tejo.
Corajosamente, no limite da cidade, ele o primeiro poeta portugus a sujar a vida da glria nacional:
Escarro, com desdm, no grande mar . (Silveira: 2003, p.153)

26

A cidade para Adlia Lopes, assim como a Soft city de Jonathan Raban,6 lugar em
que o fato e a imaginao simplesmente tm de se fundir (Harvey: 2008, p.17), como
lemos nos poemas a seguir.
No metro
cruzam-se as pessoas
como cartas de jogar
postas sobre a mesa (p.610)
O cu
sobre Lisboa
de to azul
branco (p.611)

Os vocbulos metro e Lisboa sugerem como a vida urbana convidada poesia


de Adlia. O primeiro termo um meio de transporte urbano que circula nas grandes
cidades, e o segundo a capital de Portugal. Ambos, separados em poemas distintos, do o
tom plstico das cidades grandes, diferentemente do que ocorre nos pequenos lugarejos,
como nos fala Raban (apud Harvey: 2008, p. 17). concretude funcional do metro
subjugada a infinitude subjetiva do cu, que de to azul/ branco, como se as cores do
que no palpvel se misturassem em uma nova combinao colorida: nem azul, nem
branco, mas sim de to azul/ branco, fato e imaginao reunidos. Com versos como os
de Body art?, os sujeitos poticos adilianos exploram suas experincias e, a partir delas,
constroem suas contemporneas realidades:
No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grvida
6

Livro publicado em 1974, usado por David Harvey, em Condio Ps-moderna, como exemplo de modelo
de cidade: As cidades so plsticas por natureza. Moldamo-las nossa imagem: elas, por sua vez, nos
moldam por meio da resistncia que oferecem quando tentamos impor-lhes a nossa prpria forma pessoal.
Neste sentido, parece-me que viver numa cidade uma arte, e precisamos do vocabulrio da arte para
descrever a relao peculiar entre homem e material que existe na contnua interao criativa da vida urbana.
(Raban apud Harvey: 2008, p.18)

27

o rapaz quer-me
dar o lugar (p. 340)

Nos versos recm-citados encontramos outro tema comum a Adlia e Cesrio: o


feminino como item urbano perturbado(r). A mulher adiliana de Body art? pode ser
aproximada engomadeira de Cesrio Verde: se aquela detesta o sofrimento de engordar
30 Kg e ser confundida com uma grvida, esta Uma infeliz, sem peito, os dois
pulmes doentes que, mesmo assim, engoma para fora (Verde: s/d, p.57). De acordo
com Silveira, Cesrio Verde v o outro, a si mesmo e o outro de si mesmo (Silveira:
2003, p.156), e julgo que coisa semelhante pode ser dita de Adlia. No entanto, a poeta que
se define como mulher-a-dias, ao contrrio da engomadeira de Cesrio, tem conscincia de
si, pois, nas palavras de Sofia Sousa Silva, a poetisa mulher-a-dias no enfatiza a criao
de algo slido sobre qu se possa edificar. Ela valoriza o prprio processo (2007, p.80):
Vivo
dia a dia
sou
uma mulher-a-dias
Dia a dia
perto porto parto
da eternidade (p.599)

A poeta-a-dias defende o caos desde o ttulo de um de seus poemas do livro A


mulher-a-dias. O poema em questo Louvor do lixo, do qual cito os versos iniciais:
preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
a poetisa a mulher-a-dias
arruma o poema
como arruma a casa
que o terramoto ameaa [grifos meus] (p.447)

Boa parte dos poemas de Adlia cujo tema o feminino, alm de colocar em tenso
algumas temticas urbanas, coloca em questo, recorrentemente, a autoimagem, o no-lugar

28

do corpo nos padres da sociedade. No como, por exemplo, Florbela Espanca, que, em
certo poema de Charneca em flor, quer Amar! Amar! E no amar ningum (1997, p.232),
ao ser o sujeito da ao, coloca em evidncia uma renncia aos valores machistas ao lhes
sobrepor anseios do feminino. Mais tarde, Adlia Lopes, em Florbela Espanca espanca,7
deslocar esse amor para um lugar mais sexual, ao substituir o verbo amar por um mais
restrito, foder. A mudana do verbo faz a leitura de Adlia, em certa medida, mais
concreta e, por isso, radical, visto que explicita uma das possibilidades do Amar!
florbeliano, uma vez que o verbo detentor de variadas possibilidades conotativas. Ainda
que Adlia Lopes radicalize versos da poeta do incio do sculo, ambas passam por
conventos, ou melhor, Adlia Lopes e Florbela Espanca confinam duas de suas
personagens, respectivamente Mariana Alcoforado e Sror Saudade. No espao de priso
religiosa, as personagens, embora em tempos e lugares distintos, encontram na angstia da
espera e do confinamento a representao de seus lutos pela perda do objeto de desejo.
A lendria freira Mariana Alcoforado resgatada e modernizada, tornando-se uma
personagem de Adlia Lopes, bem como a Bela Adormecida, Luis da Baviera e outros
nomes do imaginrio histrico-literrio, trazidos para dentro da potica adiliana. Estas
figuras, no obstante o fato de pertencerem originalmente a universos narrativos, seja no
contexto da histria ou das narrativas infantis, recebem, de Adlia, tratamento ficcional. O

O livro Florbela Espanca espanca, na mais recente recolha de poemas de Adlia Lopes, datada de 2009, teve
seu ttulo alterado para Versos verdes. Em uma Nota da autora, afirma Adlia: Reno aqui todos os meus
livros de poesia at a data. Os ttulos Obra e Poemas Novos eram demasiado ambiciosos. Mudei-os para
Dobra e Ovos. Mudei o ttulo Florbela Espanca espanca, que acho mau, para Versos verdes (p.7). Apesar de
a autora achar mau o ttulo, e neste estudo as referncias serem de Dobra, em vrios pontos do trabalho
citarei Florbela Espanca espanca, principalmente nos, como ao que se refere esta nota, se tratar de um
dilogo com a poesia de Florbela Espanca.

29

uso de personagens sugere uma afinidade adiliana com o fingimento formulado por
Fernando Pessoa, como observamos no poema
A poetisa
no
uma fingidora
Mas a linguagem-mscara
mascara (p.574)

Segundo o dicionrio eletrnico Houaiss, o vocbulo personagem derivado de


personne, cujo sentido mscara de ator, figura. Num primeiro momento, a armadilha de
que quase sou vtima pensar em um fingimento adiliano diferente do pessoano, por ser
factvel pensar que a poeta lana mo de sua biografia em Sobre o meu novo livro de
poemas, uma espcie de texto abertura de A mulher-a-dias, Adlia declara: os meus
textos so polticos, de interveno, cerzidos com a minha vida (p.445). O fato de a poeta,
que assina com um pseudnimo, afirmar dentro de sua obra, que no dissocia vida e
textos, pode parecer suficiente para que se aposte nesta poesia como especialmente
biogrfica. Para Sofia Sousa Silva, Adlia Lopes afasta-se do poeta dos heternimos, pois
[n]o pode passar despercebido o fato de que cerzir o texto com a vida
praticamente o oposto do que fez Fernando Pessoa, ao cumprir uma quase
epopia de separao do sujeito emprico e do sujeito lrico (2007, p.12).

Por outro prisma de observao, porm, o uso da biografia por uma poeta que
escolhe um pseudnimo, ressalto, leva-me a pensar que a lio do fingimento pessoano
aprendida por Adlia levada a uma radicalizao da prpria vida, como se no projeto
literrio Adlia Lopes, a autoria fosse condicionada a uma autorizao. autora dos versos
Este livro
foi escrito
por mim (p.375)

30

agrada imensamente, como a prpria afirma, cerzir vida e obra, o que fica marcado no
poema recm-citado, em que o complemento da locuo verbal foi escrito por mim.
Por outro lado, a mesma poeta diz ser uma fingidora. Ou melhor, A poeta uma
fingidora, assim como O poeta um fingidor (Pessoa: 1993, p. 171). Pergunto: quando
Adlia Lopes forja unir vida e obra no seria o mesmo fingimento que se manifesta em toda
e qualquer expresso potica? Ou seja, partindo do pressuposto de que a lio pessoana no
a de que ele um fingidor, mas sim a de que o poeta um fingidor, Adlia no uma
fingidora, Mas a linguagem-mscara/ mascara. como se a biografia de Adlia fosse
atravessada pela linguagem potica e, desse modo, significantes e significados danassem
uma suave msica microficcional de testemunhal fingimento8 e a grafia se impusesse
como escultura, ao, fingere.
Anna Klobucka, em seu estudo sobre a emergncia da autoria feminina na poesia
portuguesa, tambm observa a relao entre autoria e autorizao. Se aqui parto de um
pensamento sobre a unio entre vida e obra em Adlia Lopes, como parte de sua potica de
fingimento, para a pesquisadora polonesa esta afinidade examinada sob uma perspectiva
feminista. Cito a autora de O formato mulher:
[s]e estas configuraes [autoria e autorizao]se articulam inescapavelmente no
confronto com as linhas de fora (e franqueza) da tradio literria nacional em
que se situam, elas possuem tambm uma dinmica prpria que valer a pena
examinar, particularmente no que diz respeito herana secular da autoria do
feminino e da sua difcil e muito gradual autorizao.(Klobucka: 2009, p.272)

O empenho de Klobucka em fazer com que parte dos artifcios da potica de Adlia
seja uma representao do feminino compreensvel, j que a obra da ensasta dedica-se a

Seria interessante neste ponto refletir acerca do famoso prefcio que Jorge de Sena escreveu para a primeira
reunio de sua poesia. No entanto, deixo esta articulao para outro momento de minha trajetria acadmica,
talvez para a tese de doutoramento...

31

isto, como costume dos estudos culturais. Entretanto, neste trabalho, cujo cerne perceber
como Adlia Lopes um projeto literrio de (e para) si mesma, as intenes (existentes ou
no) de um gesto poltico feminino advindo de Adlia no vm ao caso. claro que o fato
de Adlia ser mulher e resgatar em sua poesia uma srie de personae no feminino pode
instigar seus leitores a lev-la a um marginal papel feminista, mas, como j afirmei, outros
valores se mostram mais urgentes de reflexo.

2.1 Cames, Cesrio & Adlia.

Adlia Lopes tem a intertextualidade como uma de suas marcas poticas, trao,
claro, de boa parte da poesia da modernidade em diante. Adlia, j se sabe, dialoga com
autores cannicos da literatura portuguesa como Cames, Fernando Pessoa, Cesrio Verde
e outros. A poeta de Adormecer (com algumas coisas de Maria Teresa Horta), neste
poema, intitula-se poetisa pop:
os meus amantes
no so Gilletes
(no so de usar
e deitar fora)
embora eu seja
uma poetisa pop
e no tenha amantes
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti9 (p.205)

Forte caracterstica, mais que isso, atributo marcante na poesia de Adlia o uso do
discurso da propaganda, do marketing, de expresses populares, de provrbios, bem como
de outras dices que podem ser consideradas pela tradio indignas de figurar num espao
9

Em sua mais recente obra reunida (Dobra, Lisboa: Assrio & Alvim, 2009) a adjetivao poetisa pop foi
retirada pela autora. Desse modo, a citao os meus amantes/ no so Gillettes/ (no so de usar/ e deitar
fora)/ gosto de adormecer/ a lembrar-me de ti.

32

lrico. Como ponto de fuga das menoridades recm-citadas, como se a poeta buscasse um
equilbrio em seu fazer potico, h a adio de todo um conhecimento literrio, como pode
ser verificado no poema de Um jogo bastante perigoso:
COM O FOGO no se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo (p.32)

O poema mencionado faz aluso a versos dos mais famosos de Cames: Amor
um fogo que arde sem se ver (Cames: 2005, p.35). Esse dilogo com o poeta do sculo
XVI uma homenagem e tambm uma constatao da banalizao da lrica amorosa
camoniana. Adlia Lopes recupera os versos camonianos unindo-os, de forma
caracteristicamente adiliana, a um dito popular, com o fogo no se brinca, a fim de
apontar para uma espcie de cristalizao do vate, o que, para Luis Maffei,
por um lado, pode atrair mais leitores para a obra, mas, por outro, pode esvaziar a
fora significativa do verso, pois o uso frequente tende a ser, progressivamente,
vtima de cristalizao. Adlia Lopes traz para seu poema a metfora camoniana
refletindo exatamente essa cristalizao, j que ela vem em conexo com uma
frase feita do idioma, com o fogo no se brinca (Maffei: 2004, p.174).

A poeta contempornea, apesar de sugerir o amor, que subjetivo, ope-no ao


fumo, que material, estendendo a luta dos contrrios, j mencionada anteriormente, a
uma multiplicidade de significantes no imediatamente adversos. Amor e fumo so
expandidos, quando um permeia o outro, pois ambos so dores que custam a sanar, ou
melhor, fogos que custa[m] mais/ a apagar/ do que o fogo com fumo. Alm de
homenagear Cames e de reuni-lo ao dito popular, Adlia superexplora um nico vocbulo,

33

o fogo. Este no se v e queima muito, o que revela sua intensidade (ou o seu valor, a
sua qualidade para fazer uso de termos mais camonianos), e tambm a sua quantidade,
pois o mesmo fogo queima muito. Ao conectar, enfim, a metfora camoniana do amor
a uma dico popular da lngua portuguesa, Adlia elucubra a cristalizao dos versos
camonianos oriunda da repetio demasiada e descontextualizada.
Ainda em conversa com o poeta do sculo XVI, em um livro lanado em 1999, Sete
rios entre campos, Adlia rel os versos camonianos Transforma-se o amador na cousa
amada (Cames: 2005, p. 46) e Aquela triste e leda madrugada (Cames: 2005, p.106):
1
(anti-Cames)
bom
tu no seres
eu
bom
eu ser eu
e tu seres tu
A madrugada
no separa
o amado
da amada
no separa
nada
Que o livro
v por
gua abaixo
mas que maridos
me aconteam (p.361)

A releitura do clebre e cannico verso camoniano pelos versos adilianos bom/


tu no seres/ eu/ bom/ eu ser eu/ e tu seres tu assinala o desejo da poeta contempornea
de ir para a cama com o poeta que, embora portugus, tem sua potica do, e para, o
mundo. Adlia prefere ser ela mesma, e que o amante seja ele prprio, pois est a
condio para o acontecer ertico. No seria o sexo uma forma de unificao, ainda que

34

momentnea, de corpos procura de satisfao individual e indivisvel? No seria, tambm,


o meio de, embora com um outro, uma busca de si prprio a partir do que se quer enxergar
no alheio? O sujeito potico de Adlia, mesmo no falando em amor e/ou amante, prefere
que se mantenha a distino entre eu e tu, embora os corpos se tornem uma unidade.
desse modo, com esta intimidade que Adlia atualiza o verso camoniano. Ao
dialogar com o poeta quinhentista, Adlia explicita o posicionamento do eu contemporneo,
em tempos de sujeitos fragmentados e eglatras, caractersticos do pensar potico de hoje.
Na estrofe seguinte, lemos: a madrugada/ no separa/ o amado/ da amada/ no separa/
nada, pois, se h a fragmentao do eu, fica impedida a tentativa de transformao de um
no outro; por conseguinte, no h a necessidade da separao. Ou seja, nada mais precisa
desunir os amantes, nem mesmo a madrugada, que deixa de ser um fator determinante
para a separao e passa a ser o lugar de encontro.
J no soneto camoniano Aquela triste e leda madrugada, ela, a madrugada,
cheia de toda mgoa, piedade e ainda saudade, pois, ao sair e dar ao mundo
claridade, aparta uma ou outra vontade/ Que nunca poder ver-se apartada (Cames:
2005, p.106). Mas o que Adlia pretende pr em questo que esse lugar da madrugada no
mais separa os amantes; pelo contrrio, ser, talvez, o que os aproxima: o que se atualiza
a unio dos corpos, o encontro amoroso. Por isso, na primeira estrofe, Adlia declara-se ao
poeta quinhentista como sendo um ser e ele, outro, podendo haver um encontro amoroso
sem a necessidade de perda de ambas as individualidades. O livro, logo, que a
representao do intelectual e do subjetivo, tem de ir por gua abaixo para que maridos
aconteam. Essa ltima estrofe encena ainda um outro dilogo com Cames, na verdade
com o mito do salvamento do livro pelo poeta, em detrimento da vida da mulher amada.

35

O sintagma (anti-cames) que no um ttulo, nem uma epgrafe, mas


parnteses esquerda do poema pode ser visto como uma provocao e como uma
homenagem: o prefixo anti caracteriza uma oposio de lados, de faces (a face adiliana
mostra-se distinta da camoniana), mas tambm designa simetria. Embora em lados opostos,
nesse caso, no que tange ao conceito de prazer, Cames e Adlia tm certa harmonia no
pensar ertico. Em versos que explicitam o desejo de um marido Que o livro/ v por
gua abaixo/ mas que maridos/ me aconteam e assinalam uma das necessidades
corriqueiras em sua poesia, o sexo e o amor, Adlia agrega-os.
Noutro poema, Adlia aproxima Cames a Cristo. Aquele por referncia, mais uma
vez, ao verso Transforma-se o amador na cousa amada, enquanto este abertamente
nomeado:
1
Eu sou
aquilo que como
comer uma arte
agradeo a comida
a Deus
o po
de cada dia
que nunca faltou
(gosto tanto de comer!)
(no Cu
Come-se toucinho do Cu)
2
Cristo po e vinho
fruto da videira
e da seara
do trabalho da mulher
e do homem
o canibal no aberrante
eu percebo-o
transforma-se o outro
no eu
em virtude
de eu o comer
(comer
tem uma conotao sexual

36

em portugus
mas isso feio)
a caca a merda pura
a literatice a artisterie no
patetice (p.479-480)

O po/ de cada dia/ que nunca faltou, uma pardia da orao Pai nosso, aquilo
de que Adlia Lopes se alimenta, pois o que a poeta come.10 Temos conhecimento de que
alimentar-se e comer so sinnimos. Mas o uso do verbo comer, sujeito de uma arte,
faz-me pensar que este po mais que nutre as necessidades vitais do corpo deste sujeito,
tambm lhe d prazer. Afinal, um parntese exclamativamente entusiasmado a meio da
primeira estrofe revela: (gosto tanto de comer!), e seguido por um dos gracejos de
linguagem de Adlia Lopes, que coloca a tradicional sobremesa portuguesa toucinho do
Cu, no Cu. O uso da letra maiscula nas duas vezes em que o vocbulo cu aparece
conota que a poeta refere-se ao Cu, morada de Deus, a quem Adlia agradece a comida
(agradeo a comida/ a Deus). como se o doce, de to bom, viesse do cu, onde se come
o toucinho do cu.
O livro A mulher-a-dias dividido em duas partes: Rua-rio e Cristo-osga. A
esta pertence o poema recm-citado, que, alm do nome Cristo no ttulo da segunda seo,
possui outras sugestes que remetem ao imaginrio cristo, como Maria, Meditao
sobre a meditao, Sou freira, Olhai para o cu, Tom e tantas outras que perfazem
este trecho do livro. Ainda neste mesmo poema, mas agora na segunda estrofe, vemos uma

10

Luis Maffei, em recenso a Le vitrail la nuit * A rvore cortada, livro publicado por Adlia em 2006, na sua
coluna 14, da revista eletrnica pequena morte, parte da ideia de que a poetisa come po e trabalha, por
isso ela uma mulher-a-dias. No texto intitulado Como po, poetisa, Luis diz ainda que A poetisa/ no
/ uma fingidora, Pessoa, Mas/ a linguagem-mscara/ mascara (p. 22): come po a poetisa, mesmo que
em estado de solido, apesar de que, se A solido/ engendra/ monstros, A hora/ do jantar/ a pior/ hora (p.
62), pois no h com quem dividir o divisvel po. As oposies, por conseguinte, podem ser desfeitas:
Acabou/ o tempo/ das rupturas// Quero/ ser/ reparadora/ de brechas (p. 24), mesmo que no se livre jamais
dos defeitos A casa da poeta, ou de qualquer poeta.(Maffei: acessado a 24 de maio de 2007)

37

srie de outros elementos de ordem bblica: Cristo po e vinho/ fruto da videira/ e da


seara/ do trabalho da mulher/ e do homem. O uso de recursos que fazem aluso ao
religioso quebrado pela continuao da estrofe, pois agora mais radical o prazer do
verbo comer, que tem uma conotao sexual/ em portugus. Neste poema, a
transferncia de sentido religioso para o carnal frequente, e, na primeira estrofe, ocorre
como em uma via de mo dupla: num primeiro momento, quando o pai nosso d-nos o
po de cada dia seguido do Toucinho do Cu, sintagma formado por dois substantivos
intermediados pela preposio de combinada ao artigo o que designa, aqui, origem; e,
em seguida, quando o sujeito lrico confessa gostar de comer!, dando a entender que no
no sentido biologicamente nutritivo, mas sim remetendo a um dos sete pecados capitais, a
gula.
No quero dizer que Adlia Lopes profane a religio, mas sim pensar, de acordo
com C.P. Tiele, que a religio (para a poeta em estudo) significa a relao entre o homem
e o poder sobre-humano no qual se acredita ou do qual se sente dependente (apud.:Gaader,
Helter, Notaker: 2006, p. 15). Adlia agradece o po, e, logo adiante, nomeia Cristo como o
po e o vinho. O que faz Adlia comer Cristo, o po, mas a poeta no o faz como
um gesto profano, mas, pelo contrrio, como uma Religiosa ou piedosa pessoa para
quem algo sagrado (Gaadeer, Hellern, Notakek: 2006, p.15), Adlia se religa a sua
condio primitiva de elemento da natureza. Adlia come a Cristo, nos dois sentidos,
alimentcio e sexual, ambos atvicos. O sagrado em Adlia no est no cristo, mesmo que
referncias bblicas sejam utilizadas, como vemos em
Isto o meu corpo
isto o meu sangue
a misria sexual das missas

38

a misria sexual das discotecas


mas este o melhor tempo/
de sempre
ainda muito puritano
e nada pudico
um tempo obsceno
mas dantes era muito mais obsceno
(...) (p.469)

Cristo a osga, verso de um outro poema da seo Cristo-osga, viabiliza


considerar que a posio de Cristo na poesia de Adlia figurativa, realista e religiosa. Cito
o poema na ntegra:
Cristo a osga
que est
antes
de eu chegar
na parede
da minha cozinha
e s agora
eu dou por ela
mas ela
deu por mim
antes de eu
dar por ela
(deu por mim
Antigamente) (p. 468)

Lagartixa e Cristo sendo comparados mesmo um feito digno de


cientista austera
amante efervescente
amadora sbia
catlica poetisa (p.469).

Num projeto literrio em que uma rigorosa adepta da cincia divide espao potico
com uma poetisa seguidora de uma religio crist, que por sua vez frequentemente discorda
do cientificismo, os substantivos amadora e amante precisam ser investigados.
Parassinnimos que so, ambos dizem respeito ao amor e quilo que amado; o segundo,
no entanto, tambm aquele que experimenta o gozo e, barthesianamente falando, menos
um especialista do que algum que age em puro prazer. O que procede em busca do prazer

39

sbio amadora sbia , e o que ama inquieto: comoo e sabedoria unidos, talvez
em nome de um sentimento religioso de quem v sacrifcio na histria crist. A lagartixa
no se sacrifica, est sempre espreita, e Cristo, que j se sacrificou em nome da salvao
da humanidade, ou seja, que se deu por ns, est tambm na parede, preso a uma cruz,
espera de que o sujeito o perceba. A figurao do imaginrio cristo transfigurada a um
realismo de linguagem, quando Adlia, religiosamente porque religa a histria bblica ao
seu cotidiano, vivenciado na sua cozinha , observa que na casa (talvez qualquer casa?)
uma lagartixa ocupa a mesma posio que a imagem de Cristo na cruz.
Volto ao poema cujo clebre verso camoniano mais uma vez visitado. Ao invs de
uma osga, Adlia desta vez liga, ou religa (se eu quiser brincar com a origem do termo de
religio), Cristo a Cames. Depois de um breve sermo adiliano Cristo po e vinho/
fruto da videira/ e da seara/ do trabalho da mulher/ e do homem , dois versos suspendem
o discurso (o canibal no aberrante/ eu percebo-o), para, assim, introduzir o poeta
conversa religiosa. Em (anti-Cames), a necessidade de demarcao de tu e eu,
contrariando o verso camoniano, o que me faz aproximar Adlia de Cames. No outro, o
verso camoniano apropriado pela poeta quase que em um pastiche. Para Cames,
Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar; para Adlia,
num gesto mais animalesco, porque canibal, transforma-se o outro/ no eu/ em virtude/
de eu o comer. Se a coita era esperada com o poeta quinhentista desde quando a marcao
dos sujeitos imposta, o tu e o eu precisam ser demarcados. Agora, quando a citao
feita quase que parodisticamente, a poeta come o vate, afinal, este verbo tem uma
conotao sexual/ em portugus; ainda que seja feio, assim que .

40

Quando considero a possibilidade de a poeta unir Cristo e Cames em virtude do


muito imaginar. Ou melhor, em virtude de Adlia comer tanto o po na primeira
estrofe gozando desde l , que Cristo porque Cristo po e vinho, como, ao perceber
o poeta, transforma-se nele, comendo-o. No Bataille quem nos ensina que a plenitude do
gozo corresponde a um momento de perda total de si? O gozo, que passa pelo corpo e pela
linguagem, une, liga e religa Cames a Cristo. Adlia, por sua vez, subvertendo o interdito,
goza com eles.
Retorno, mais uma vez, ao poema anti-Cames, mas desta para falar do mito de
que o autor dOs Lusadas teria deixado sua amante Dinamene morrer afogada para que o
pico fosse salvo. Na verdade, fao-o para regressar a Cesrio Verde, e, por isso, adianto o
item a seguir deste texto, pois para comear a ler Cesrio (e Cames) na poesia de Adlia
Lopes, trago a lume um livro de Luiza Neto Jorge. A poeta que faz parte da reunio de
plaquettes intitulada Poesia 61 ao lado de Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brando,
Gasto Cruz e Maria Teresa Horta vai pela rua,11 assim como fizera Cesrio Verde nO
Sentimento dum Ocidental, para dialogar com o pico camoniano. Na releitura mais,
digamos, contempornea, Os Lusadas relido, ou melhor, recantado por Luiza, em falta.
Sim, pois, identifica Jorge Fernandes da Silveira,
A expanso dialgica pela falta o um a menos (10+10=19) da matriz pica
dos poemas implica uma nova proposio em um contraponto primeira e , sem
paradoxos, a nota da mais paradigmtica modernidade na obra de Luiza Neto
Jorge em termos de espao e tempo, quer dizer, de recantos (Silveira: 2008,
p.11).

Trato, claro, dos Dezanove Recantos de Luiza Neto Jorge, um texto dobrado sobre
o camoniano (SILVEIRA: 2008, p.11), como um poema de Adlia:
11

Refiro-me ao verso: Subitamente vamos pela rua, com a solido burocrtica dentro dos bolsos (Jorge:
2001, p. 31)

41

A obra
Dobra
o Cabo No
ou no (p.599)

O Cabo em Adlia diga-se de passagem, escrito com letra maiscula


estabelece ambivalncias e referncias com o Cabo da Boa Esperana, no qual se
refugiavam os medos perseguidos pelas naus, mas conservados no fundo de cada um dos
que partiam ou ficavam. E esses medos assumiram, dentro da tempestade, forma sobrehumana grande bastante para se opor passagem dos navegantes (Berardinelli: 1973,
p.75). O Cabo, o entre lugar adama-mtico-histrico do pico, o mostro horrendo, o
corpo de animal que s fala de sorver/ tudo o que encontrar (Jorge: 2001, p.183), do
Recanto 5 de Luiza, dobrado pelos bares assinalados que seguem rumo ao oriente. A
obra, Os Lusadas, dobra o Cabo, j que, de um modo desventurosamente pico,
como observa Vilma Aras (C.f.: Aras: 1980, p.56), Adamastor contornado por Vasco da
Gama pela linguagem, e no por uma luta braal, como seria por Aquiles ou Ulisses.
Adlia, que sabe das coisas, reafirma isso.
Luiza recanta em falta. Adlia reafirma o feito. A mesma Adlia, em mais um de
seus jogos, mas desta vez em A po e gua de colnia de 1987, recanta o poeta pico
tomando emprestado os versos de Cesrio Verde Luta Cames no Sul/ salvando um livro a
nado (VERDE:S/d, p.78 ). Cito o jogo de Adlia:

(p.61)

com um espelho transfigurador, como se visse os versos de Cesrio Verde com


um caledoscpio, ao colocar, de ponta cabea, ou seja, opostos aos versos recm-citados,

42

Um livro no Sul/ salva Cames de morrer afogado, que Adlia afirma a salvao do poeta
pelo livro, ainda que a gente surda e endurecida (Lus, X, 145, 4) do Canto X leve Cames
a matar o poema. No mais Musa (Lus, X, 145, 1) a falta que se estabelece nos
Dezanove, no vinte, nem dez, recantos de Luiza, que no Recanto 19 v
por fim algum morrer
(...)
a sorrir inventando letras para o relato de tudo
o que na neve nveo e
do que nas letras h de esferas a rolar
de um para outro lado da inveno
(...)
ou: que no seu canto, pois, cantava. Assim termina (Jorge: 2001, p. 204).

Mas no para Adilia que, depois de salvar Cames com o livro, em 1987, escreve,
em 1999, no livro Sete rios entre campos, os j citados quatro versos finais de (antiCames), que cito novamente:
Que o livro
v por gua abaixo
mas que maridos
me aconteam (p.361)

O stio de escrita de ambas, ao recantar Os Lusadas (recantados de modo


modernamente inaugural, alis, por Cesrio), marcado por um dobramento que tanto em
uma como na outra apontam para a grandeza do poema, mesmo que com um canto a menos
em Luiza e o naufrgio do livro para Adlia. Um dobramento de duplo sentido, pois a
dobra da obra a duplificao desta, ainda que na falta, na lacuna, na desistncia, em
um duelo agudssimo (Jorge: 2007, p.32) que o poema.

2.2 Falo Adlia, falo Luiza

43

Agora sim me detenho na poesia de Luiza Neto Jorge como interlocutora da de


Adlia Lopes. Falo com as duas. E as duas falam. O ponto de partida para a aproximao da
poesia de Luiza Neto Jorge de Adlia Lopes o verso inicial de Magnlia: A exaltao
do mnimo (Jorge: 2008, p. 62). J vimos que as mnimas coisas do cotidiano esto
presentes na poesia de Adlia como uma marca registrada. No jogo perigoso de 1985
encontramos o poema Arte potica:
Escrever um poema
como apanhar um peixe
com as mos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem s mos
peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
os nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de no chegar ao fim
uma questo de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alvio
que no sei dizer. (p.12-13)

Em um espao virtual, metamrfico e interativo do poema, no s o real linguagem


(a palavra peixe) como a linguagem real (escrever um poema como apanhar um
peixe). Os planos, linguagem e real, se interpenetram e confundem: tudo o que vem rede
peixe, ou, se linguagem, poema. A poesia, pois, sempre uma questo de vida ou de
morte, o stio semntico que, sintaticamente e sistematicamente dislxico, expressa uma
experincia limite perante o real: luto corpo a corpo: ou morremos os dois/ ou nos

44

salvamos os dois. tambm, a poesia, o Stio sorvido,12 a escrita, um signo, um


estrdulo, para Luiza Neto Jorge, cuja escrita , nas palavras de Lus Miguel Nava,
viceral (Nava: 2004, p. 229), como a Musa de Adlia Lopes:
Cantaste sem saber
que cantar custa uma lngua
agora vou-te cortar a lngua
para aprenderes a cantar
a minha Musa cruel
mas eu no conheo outra (p.63)

O peixe apanhado o poema de Adilia, que, por sua vez, para Luiza, um duelo
agudssimo (Jorge: 2007, p.32), resultado de um processo potico de um animal longo
(Jorge: 2001, p.122) que o poeta. Animalesco o processo potico de ambas. Em Adlia
percebemos o longo animal, quando notamos que se trata de uma poesia que de forma
ambivalente eleva o banal e o prosaico a uma valor mais alto. Luiza trabalha austeramente
a semntica e a estrutura e, como afirma Gasto Cruz (no prefcio a Quinze poetas
portugueses do sculo XX),
ilustra o modo como (...) as buscas estilsticas e as incursses surrealizantes e
experimentais de variadssima natureza confluam e se fundiram, muitas vezes,
com o intuito de uma poesia realista (Cruz: 2004, p. 9).

Em uma entrevista ao Dirio de Notcias, Adlia comenta que a crtica literria


portuguesa sugere um efeito de des-sublimao em sua poesia. Cito a pergunta de Carlos
Vaz Marques :
Mas nos poemas de Sophia digamos que h uma aspirao ao sublime enquanto
que os seus poemas, j houve quem o escrevesse, tm um efeito de dessublimao. V neles isso? (22/09/2009)

A propsito disto, nesta mesma entrevista a poeta dos jogos afirma:


H um poema de Luiza Neto Jorge que faz a brincadeira com sublime aco,
sublimao. A passagem do estado slido ao estado gasoso tambm
isso(22/09/2009).
12

Ttulo de um poema de Luiza Neto Jorge.

45

O poema de Luiza a que Adlia menciona intitula-se A Sublimao : a sublime


aco.13 Sobre este poema, afirma Luis Miguel Nava:
em virtude do processo do qual os slidos e os lquidos se tornam gasosos, e o
prprio sangue adquire a qualidade de voador , os objetos ou fragmentos que
flutuam passam a pairar, a circular j no apenas sobre uma superfcie mas em
todos os sentidos e sentido (2004, p. 229)

A circulao de objetos e fragmentos em Luiza Neto Jorge levada s ultimas


consequncias por Adlia Lopes, para quem os jogos de palavras so frequentes. Desse
modo, a sada potica do lquido, algo prximo do real, para o gasoso, algo aproximvel da
linguagem, tanto em Luiza, quanto em Adlia, no necessariamente sublime, contrariando
o nome dado metamorfose fisica que d (um dos possveis) ttulo(s) ao poema de Luiza. E
assim, Adlia confirma positivamente o que lhe disse o Professor Pinto Peixoto, como
vemos no parntesis de um poema de Le vitrail la nuit * A rvore cortada :
(quando mudei de Fsica para Romnicas, o Professor Pinto Peixoto disse-me que
eu ia para a Faculdade de Letras contar quantos ques tem a Peregrinao e
ensinar s minhas colegas o que entropia) (p.581)

De fato, a poesia de Adlia ensina o que entropia termo da termodinmica,


geralmente associado ao grau de desordem que mede parte da energia que no pode ser
transformada em trabalho; uma funo de estado cujo valor cresce durante um processo
natural em um sistema isolado. No sistema nada natural, mas sim cultural da poesia, Adlia
est em um sistema isolado, associado desordem, como afirma Lindeza Diogo: Toda a
obra de Adlia se dirige contra a suficincia esttica (2001, p. 31).
E sobre Luiza, afirma novamente Gasto Cruz:
13

Cito alguns versos deste poema de Luiza: Sem passares pelos lquidos/ sais do teu slido/ (...)/ Sem a
secura dos lquidos/ que secam pela viveza/ com que entram e com que saem/ e conferem um outro estado/
gasoso, mas no sublime,// tu passas, vivo, e rpido,/ embora cobre, vidente, com/ um fio de droga apurado/
no teu sangue voador (2001, p.119 ).

46

convoca (Luiza) todos os recursos poticos tradicionais o virtuosismo rtmico, a


rima, a aliterao, a paranonmia, a anfora (...) para os conjugar com o seu
objectivo, totalmente transgressor das abordagens tradicionais da realidade (2001,
p.162)

, o que tambm configura o espao isolado e isotnico (que em qumica, significa a


igualdade de presso entre duas solues) da poeta da Sublime Aco. Luiza Neto Jorge
pode no se dirigir contra a suficincia esttica, apesar de transgredir as abordagens
tradicionais da realidade. No entanto, Luiza tambm uma poeta da entropia, cujos versos
de A porta aporta, segundo seu grande leitor, Jorge Fernandes da Silveira,
pe roda um modo bem ritmado de diferentes linguagens, bisadas pelo
avesso, no choque casual de contradices provocatoriamente implicadas,
fundidas, dando voltas a motes alheios (2008, p. 9).

Em Luiza Neto Jorge, a porta roda ao invs da lua, a porta roda, geme,
facho, leme (2001, p.44), como se14 em um ciclpico acto. Foneticamente, o sintagma
A porta aporta: artigo + substantivo + verbo, e/ou dois verbos e/ou, ainda, verbo seguido
de artigo e substantivo, semanticamente a alargadura de palavras que se juntam em uma
expanso de versos independentes a comprovar que o poema estulto num silabar
(Jorge: 2001, p. 209). O Professor Pinto Peixoto prev, ironicamente, a entropia potica
de Adlia. E, evidentemente/ circunspectamente/ irremediavelmente mostra Luiza, em
Exame, ao senhor professor doutor que senhor professor doutor/ senhor professor/
senhor/ se// J passa da hora (Jorge: 2001, p.50), pois medimos o poema/ pela medida
inteira (Jorge: 2001, p.58), no por ques, como sugeriu o professor de Adlia, mas pelo
se no hierrquico, mas condicionadamente errante do tempo que passa.

14

A marca em itlico deste se, se d porque tentador citar o sede uma das parceiras de Luiza Neto Jorge
em Poesia 61, Fiama Hasse Paes Brando: gua significa ave// se/ a slaba uma pedra lgida/ sobre o
equilbrio dos olhos// se// as palavras so densas de sangue/ e despem objectos// se// o tamanho deste vento
um tringulo na gua/ o tamanho da ave um rio demorado// onde// as mos derrubam arestas/ a palavra
principia (BRANDO: 2006, p. 15)

47

No stio entrpico onde se colocam as poesias destas poetas, a rua -nos apresentada
ora como um espao, uma superfcie no caracterizada para Marc Aug (2007, p.78), ora
tambm como um lugar densamente ontolgico logo, em oposio a espao onde o
discurso, lugar de poder para Foucault, se faz. Para Adlia, A poesia/ no est/ na rua,
sendo, portanto, tempo/ de regressar/ a casa (p. 580), ou melhor, tempo de voltar
identidade ontolgica que est na casa, no corpo, na potica. Entretanto, como a
escrita de ambas radicalizam nas contradies e contradices, a mesma Adlia, em Dois
poemas sobre a minha rua, de Cadernos, escreve:
Quando encostam
ou abrem
o porto
do Ptio do Duarte
na minha rua sossegada
tarde
como se msicos
afinassem os instrumentos
antes do concerto (p. 605)

A poesia, pois, pode no estar na rua, espao descaracterizado, porm a rua


pode ser o lugar de sossego do poeta, pois, agora com Luiza, largamente do mundo a
rua, onde duma varanda um pingo cai/ de um vaso salpicando o fato do bancrio, com
sua solido burocrtica, subitamente pela rua (Jorge: 2001, p.31). A rua , pois, um
stio sorvido no qual a poeta (Luiza) escreve, tendo lido os stios de outros poetas:
Escorregam as linhas descendentes/ de um poeta (Jorge: 2001, p. 163). O resultado desta
influncia de outros poetas transformado em um stio absorvido (leitura + escrita). E
ainda: a rua pode ser um lugar de identidade interessante ao poema/ poeta, por mais que a
poesia no esteja nela, visto que Subitamente vamos pela rua, com a solido burocrtica
dentro dos bolsos (Jorge: 2001, p. 31), como afirma Luiza, com a certeza de que pela

48

rua que se vai. pela rua. Ainda mais se A casa deserta rodar trs vezes no mesmo
poema, no sendo mais a porta aportada do outro j comentado poema.
O poema um duelo, mas tambm um um dedo/ agudssimo claro/ apontando ao
corao do homem (Jorge: 2001, p. 57), para Luiza. Um dedo que, para o projeto literrio
Adlia Lopes, conta o que as noes julgam infinitamente fteis, como vemos na
versificao que Adlia faz dos dedos:
meu menino
seu vizinho
pai de todos
fura bolos
mata piolhos (p.422).

O dedo apontado ao corao do homem por Luiza e, para Adlia, os dedos


contam o que a vida deixa no seu andar para c e para l, como afirma Lindeza Diogo
(2001, p.32). Contam os dedos de Adlia. E o dedo de Luiza dito da/ na maneira/
mais crua e mais intensa: falo/ com uma agulha de sangue/ a coser-me todo o corpo/
garganta (Jorge: 2001, p.58). Apontar o jogo flico no poema de Luiza pode no ser
necessrio, mas o fontico, similar ao de A porta aporta, o nesta leitura, pois se falo,
tambm f-lo o poema com uma agulha de sangue.
Escritas nietzscheanamente humanas, pois, com sangue, com o esprito cheio de
jovial malcia, com vida, so as poetas e suas poesias, Adlia e Luiza. De mo dada, mais
uma vez, com Jorge Fernandes da Silveira, afirmo que Adlia sabe que [] preciso sair das
mos da escritura e cair nos ps da escritura (...); para Barthes, ela [a escritura] vir
mascarada, pulsionalmente, pelos ritmos do corpo e do gro da voz (2003, p.417-418). E
Luiza, por sua vez, sabe que o poema ensina a cair, na gravidade do texto, da escritura,
dos quatro stios: lido, sorvido, absorvido e o em vista, pois, a poesia de Luiza Neto Jorge

49

inscreve uma revoluo nos instrumentos de estilo e composio, ditando sua maneira a
moda que lhe contempornea: ler o escrito e escrever o lido (Silveira: 1986, p. 160)

2.3. Florbela Espanca espanca Sror Saudade

Da poeta de Poesia 61 parto para a alentejana Florbela Espanca. H muitas


caractersticas comuns s poticas de Florbela e Adlia. Ambas tm o sexo, muitas vezes,
como tema e como experincia distante. Provavelmente a prpria Adlia observa estas
semelhanas, pois, ainda que tenha mudado o nome para Versos verdes, na Dobra, o ttulo
original do lanado em 1999 era Florbela Espanca espanca.
Neste mesmo livro, em que h uma relao dbia de homenagem e provocao,
encontramos o j famoso poema adiliano:
Eu quero foder foder
achadamente
se esta revoluo
no me deixa
foder at morrer
porque
no revoluo
nenhuma
a revoluo
no se faz
nas praas
nem nos palcios
(essa a revoluo
dos fariseus)
a revoluo
faz-se na casa de banho
da casa
da escola
do trabalho
a relao entre
as pessoas
deve ser uma troca
hoje uma relao de poder
(mesmo no foder)
a ceifeira ceifa
contente

50

ceifa nos tempos livres


(semana de 24 x 7 horas j!)
a gestora avalia
a empresa
pela casa de banho
e canta
contente
porque h alegria
no trabalho
o choro da beb
no impede a me
de se vir
a galinha brinca
com a raposa
eu tenho o direito
de estar triste (p.376)

O riso e o escrnio do incio a este poema, com versos que fazem apologia a uma
revoluo sexual: Eu quero foder foder/ achadamente muito previsivelmente o motivo
de este ser um dos textos mais conhecidos e citados de Adlia Lopes. Mais adiante, no
mesmo poema, a revoluo/ faz-se na casa de banho/ da casa/ da escola/ do trabalho, e a
revoluo e o desejo de foder so de tamanha proporo que o choro da beb/ no
impede a me/ de se vir. Contudo, o sujeito potico adiliano discute: hoje o sexo uma
forma de relao de prazer entre os seres ou somente uma relao de poder, pois a
gestora avalia/ a empresa/ pela casa de banho? Sendo a casa de banho, alm da casa,
da escola, do trabalho, um dos espaos para a intimidade de corpos, por outro lado,
tambm, ao mesmo tempo, o espao de avaliao profissional. Observamos que h uma
troca, de valores e de interesses, (mesmo no foder). At porque, para Adlia,
Quem fode
fode
fode
quem pode (p.334)

Nos versos seguintes, ainda do poema que aproxima Adlia de Flobela, a ceifeira
ceifa/ contente/ ceifa nos tempos livres , Adlia Lopes chama para uma conversa

51

Fernando Pessoa. Em seu Cancioneiro ele apresenta a ceifeira que canta julgando-se
feliz, como se tivesse/ Mais razes pra cantar que a vida (Pessoa: 1993, p.79), ainda
que trabalhe muito e no tenha liberdade. Embora tambm contente, a ceifeira adiliana
diferente da pessoana; verificamos no verso adiliano (semana de 24 x 7 horas j!) uma
ceifeira, por assim dizer, sindicalizada, porque desfruta de tempos livres, o que permite a
organizao sindical e a luta por trabalhos menos exploratrios.
Mas o que est em questo agora o dilogo entre Adlia e Florbela; assim, o
poema da alentejana problematiza o amor e o desejo de amar como uma atividade, de
algum modo, acumulativa: o eu lrico fala de amar Mais Este e Aquele, ou Outro e toda a
gente... /Amar! Amar! E no amar ningum!, com uma sanha que assustava a sociedade da
poca:
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar s por amar: aqui... alm...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E no amar ningum!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? mal? bem?
Quem disser que se pode amar algum
Durante a vida inteira porque mente!
H uma primavera em cada vida:
preciso cant-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser p, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...(Espanca: 1997, p.134)

Dcadas depois, foi possvel a Adlia apresentar o desejo florbeliano mais


explicitamente ao substituir amar por foder, mantendo apenas um dos sentidos de
amor e carregando-o de carga exclusivamente sexual. De forma ambivalente, no verso
Que me saiba perder... pra me encontrar..., da poeta que quer amar, Florbela, o amor ,

52

depois de se perder, uma maneira de se encontrar e pensar o sexo, enquanto a outra,


Adlia, v o sexo como uma forma de revoluo que no se faz/ na casa/ nem nos
palcios, mas sim (...) na casa de banho/ de casa/ da escola do trabalho, pois nem o
choro da beb/ (...) impede a me/ de se vir.
Adlia Lopes espanca Florbela, violenta-a, mas, em rigor, trata-se, como observa
Osvaldo Silvestre,
de um espancamento sistemtico e desapiedado de todas as concepes
disponveis do potico e dos regimes do seu agenciamento. Nesse sentido, a
leitura indiferenciadora dos seus textos por Adlia hoje o indcio mais
espetacular (e exterior) desse tratamento de choque a que a autora submete as
concepes de poema, texto, livro, autor e ponto importante de evoluo ou
progresso da sua potica que manifestamente evolui custa da poesia e de
todas as noes que a acompanham (ou parasitam?) na modernidade: as noes
de forma, de sintaxe compositiva, de acabamento (e inacabamento), de autonomia
objectual, etc. (02/11/09)

Apesar do nome do livro ter sido modificado, o poema de abertura de Florbela


Espanca espanca permanece o mesmo:
Este livro
foi escrito
por mim (p.375)

O verso inicial do poema, Este livro, faz referncia ao ttulo e s primeiras


palavras do primeiro soneto de Livro de mgoas. Observa, mais uma vez Klobucka, que
o soneto florbeliano (...) se constitua como uma exortao leitura cmplice,
dirigida comunidade (masculina) de Irmos na dor; A inscrio proeminal de
Adlia Lopes, por um lado ecoando o gesto florbeliano mediante a pluralizao da
autoria que implica, simultaneamente contesta a relao de dependncia em que
os primeiros livros de versos de Florbela se colocavam perante a entidade
colectiva dos poetas [seus] irmos (2009, p.278)

Cito, agora, Este livro de Florbela:


Este livro de mgoas. Desgraados
Que no mundo passais, chorai ao l-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo... e compreend-lo.
Este livro para vs. Abenoados

53

Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!


Bblia de tristes... Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao v-lo!
Livro de Mgoas... Dores... Ansiedades!
Livro de Sombras... Nvoas... e Saudades!
Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...)
Irmos na Dor, os olhos rasos de gua,
Chorai comigo a minha imensa mgoa,
Lindo o meu livro s de mgoas cheio!... (1997, p.131)

Para Anna Klobucka, possvel visualizar o poema de Adlia como uma


performance dramtica (2009, p.278). como se Adlia forjasse a autoria do poema
florbeliano e, por isso, fosse necessria a marcao de quem escreveu o livro. Adlia faz um
trabalho performtico, como salienta Osvaldo Silvestre. A poeta-a-dias, como j a apelidei
outrora, reivindica uma autoria para um pseudnimo, o que sugere um descompasso, como
se a autora propusesse um jogo ao leitor. Porm, este no jogado s claras, pois as regras
pertencem a quem prope o jogo: a vitria certa e garantida, portanto, para Adlia. Isto
ressaltado por Klobucka, seguindo comentrios j formulados e publicados por Osvaldo
Silvestre:
Silvestres comments cast Adlia in the role of a literary dominatrix who subjects
thes established models of poetic language, her readind public and, finally, the
Muse herself toa berbal lashing: a musa, neste livro espancada por interposta
Florbela Espanca? (Klobucka: 2003, p. 192)

Livro de Mgoas foi publicado em 1919, custeado pela prpria Florbela Espanca,
com uma tiragem de apenas duzentos exemplares assim como Um jogo bastante perigoso
foi edio da autora. Na altura, a recepo da crtica poesia de Florbela era a de mais uma
senhora poetisa de salo. Contudo, Gasto de Bettencourt celebrava o Livro de Mgoas,
n`O Azeitonense, como um missal de amargura que a nossa alma compreende, sente e
partilha, subindo numa ascenso maravilhosa em que suavssimos cnticos nos envolvem.

54

(apud. Dal Farra: 1997, p. IX-X). Apesar deste e de mais uns poucos outros aplausos
poesia da alentejana, sua obra sofreu primeiramente com o descaso, e depois at mesmo
com contestaes de nvel poltico, chegando a autora a ser acusada de praticar difamao.
Talvez porque a obra da Florbela precede de longe e estimula um mais recente movimento
de emancipao literria da mulher, exprimindo nos seus acentos mais patticos a imensa
frustrao feminina das (...) opressivas tradies patriarcais. (Saraiva e Lopes: 1976, p.
967)
Lutar contra esta opresso patriarcal do incio do sculo deve ter sido o motivo por
que a poeta estreiada nos anos 80 se tenha interessado por Florbela Espanca, atribuindo-lhe
uma homenagem ao intitular um livro com o seu nome. J que Este livro um poema a
partir de um poema de Florbela e Florbela Espanca espanca um livro assinado por
Adlia, a fico realista da autoria do livro leva-me a suspeitar ainda da repetio dos
pronomes retos e oblquos em primeira pessoa do singular e do uso recorrente dos
possessivos, como observamos em outros dois outros poemas de Adlia Lopes:
Out of the past
para o Wenceslau Passinhas
A minha vida
foi um mau sonho
mas agora minha
eu sou eu (p. 385)

O meu livro
a minha caverna
sombras e graffiti
preservados
pela lava do Vesvio
que me asfixiou
da minha luta deixo
a minha fbula (p. 386)

55

Adlia, alm de reivindicar a autoria do livro no primeiro poema citado nesta seo,
v necessidade em afirmar o que seu. A reflexo pungente de que o por mim, o meu
livro, a minha luta, a minha fbula, a minha vida precisam de um eu latente. Em
sua Autobiografia sumria lemos os seguintes versos:
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas (p.45)

No jogo da exibio e da ocultao, o percurso segue a via do sentido: a forma de


um eu como centro de uma construo ou de uma expresso est presente em eu sou
eu, mas na sua autobiografia o centro so os gatos. Da a estranha impresso de que a
poesia de Adlia Lopes autobiogrfica quase em primeiro grau, mas dela no conseguimos
deduzir uma vida enquanto conjunto de circunstncias pessoais, pois parece que a
austeridade da grafia se sobrepe verosimilhana da bio. Adlia, cuja autobiografia
(potica) desvela, no mximo, gatos e o possesivo minha, elege Florbela para propor
uma briga autoral. No curioso pensar que Adlia elege para homenagear justo uma poeta
cuja vida e obra foram sempre to atreladas pela crtica? No se lembrarmos que Antnio
Jos Saraiva e scar Lopes na sua Histria da Literatura Portuguesa descrevem Florbela
Espanca como
uma das mais notveis personalidades lricas isoladas, pela intensidade de um
emotivo erotismo feminino, sem precedentes entre ns [portugueses], com
tonalidades ora egostas ora de uma sublimada abnegao que ainda lembra Sror
Mariana, ora de uma expanso de amor intenso e instvel. (1976, p. 967)

Florbela Espanca lembra a lendria freira Mariana Alcoforado, por sua condio
amadora, transfigurada em poesia atravs da persona Sror Saudade. Ttulo do livro
publicado em 1293, Livro de Sror Saudade, a freira florbeliana um recurso de
verrumagem, de autoconhecimento (...) na medida em que o uso da mscara privilegia um

56

espao entre o que se representa e o que se (Dal Farra: 1997, p. XL). O poema que abre
o livro, dedicado ao amigo Amrico Duro, tambm se intitula Sror Saudade diz:
Irm, Soror Saudade me chamaste
E na minh'alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do prprio sonho que sonhaste.
Numa tarde de Outono o murmuraste,
Toda a mgoa do Outono ele me trouxe,
Jamais me ho-de chamar outro mais doce.
Com ele bem mais triste me tornaste
E baixinho, na lama da minh'alma,
Como bno de sol que afaga e acalma,
Nas horas ms de febre e de ansiedade,
Como se fossem ptalas caindo
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: Irm, Sror Saudade... (Espanca: 1997, p. 167)

A versificada apresentao da persona florbeliana Sror Saudade revela um ele,


que por mais que no seja o Marqus de Chamilly da Mariana Alcoforado de quem falerei
mais detidamente a seguir , trouxe mgoa para a freira, que talvez esteja em um
convento, confinada, espera de seu cavaleiro, assim como Mariana. No Livro de Sror
Saudade, o discurso potico suprime-se voluntariamente na homenagem a este duplo tu
masculino, divido tambm em relao ao papel que chamado a desempenhar (Klobucka:
2009, p.122), como se o tu, ou o ele, ou ainda o amante, se convertesse em leitor no
processo de recepo. Algo semelhante se d quando Adlia recupera a lenda de Mariana
Alcoforado, pois Adlia est sempre a comear (Estou sempre/ a comear (p. 573)) uma
histria com o leitor. Alm disso, As saudades, no poema Mariana e Chamilly15, so
Minhas e tuas. As saudades so, afinal do autor (Mariana ou Adlia?) por quem? Assim

15

Cito o poema, publicado em Caderno, de 2007: Quando partires/ se partires/ terei saudades/ e quando/
ficares/ terei saudades// Terei/ sempre saudades/ e gosto assim. (p. 608)

57

como em Florbela Espanca, tu (leitor/ Chamily) e ele (Chamily/ leitor) dividem a tarefa
de receptor da saudade, logo, das cartas.

2.4. Adlia Lopes rel as Cartas Portuguesas


Chamilly
Beija
Em Beja
a freira
descontente
Adlia Lopes

A lendria freira Mariana Alcoforado resgatada e modernizada, tornando-se mais


uma personagem de Adlia Lopes. Resumidamente, a histria atribuda ao longo dos
sculos a Sror Mariana Alcoforado a de que foi uma freira do sculo XVII, a quem foi
atribuda a autoria das Lettres Portugaises (Cartas Portuguesas), publicadas pela primeira
vez numa edio annima, em 1669, em Paris. As Cartas Portuguesas ou Cartas de amor
de uma religiosa portuguesa escritas ao cavaleiro de C. seria textos da lendria freira, cuja
escrita aflita e ansiosa em virtude da espera, muitas vezes sem nimo, de respostas de seu
amado, o Marqus de Chamilly. Ao que parece, o oficial Chamilly no correspondia
igualmente a esse amor: Mariana pede respostas mais intensas, mais afetuosas, mais
comprometidas. As Cartas que hoje, em certa medida, ainda simbolizam o amor total,
radical, so uma obra-prima da literatura amorosa. Isso pode ser comprovado pelo nmero
de estudos sobre essa correspondncia,16 bem como pelo resgate desse tema pela
literatura portuguesa contempornea.

16

A descoberta e a construo desse mito portugus se d no sculo XIX. Os estudos que foram encontrados
no Real Gabinete Portugus de Leitura, durante meu ano de pesquisa na Ctedra Jorge de Sena da UFRJ
(maio/2009-maio/2010), com o projeto Re-ler as Cartas portugueases, foram: CORDEIRO, Luciano. Sror

58

O mito de Mariana Alcoforado,17 a freira das Cartas Portuguesas, que aps


conhecer biblicamente o Marqus de Chamilly, dedica seu tempo escrita e espera de
cartas do seu amado, retomado por Adlia Lopes em vrios de seus livros.18 Humberto
Delgado, em O infeliz amor de Sror Mariana uma bela edio constituda de Histrias
dos Amres e Cartas de Sror Mariana, As cartas de Sror Mariana (em portugus e em
francs), Mariana, a freira de Beja, pea de teatro radiofnico do autor e Grafanlise
de um documento de punho de Sror Mariana, como escriv do convento , nos conta a
trajetria de amor da freira portuguesa, salientando a veracidade da existncia de Mariana
Alcoforado e de sua correspondncia. Para Delgado, as Cartas portuguesas so
cartas de que mais de uma centena de edies viu a luz, constituem explosivo
claro na literatura do sculo XVII. Tanto mais valiosas quanto a autora as
escreveu sob domnio de pungente dor e sem por qualquer forma poder imaginar
que correspondncia to ntima, referente a crime passvel de rigorosa pena, cairia
no prelo e se espalharia pelas sete partidas do mundo civilizado da poca. (1964,
p. 3)
Mariana: a freira portugueza. Lisboa: Livraria A. Ferin, Editora, 1888; D'AGUIAR, Asdrbal. Sror
Mariana: Estudo Sobre a Religiosa Portugueza. Lisboa: Casa de Correia, 1924; DIAS, Carlos Malheiros. O
romance de amor de Sror Mariana. Manuscrito pertencente ao acervo do Real Gabinete Portugus de
Leitura; FONSECA, Antonio Belad da. Mariana Alcoforado: a freira de Beja e as Lettres Portugaises.
[S.N.], 1966; GARCIA, Apio. Camilo e Sror Mariana por detrs das grades. Porto: Liv. Simes Lopes de
Domingos Barreira,1945; KLOBUCKA, Anna. Mariana Alcoforado. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2006; LACROIX, Jean D'AIMER ET TOURMENT D'ECRIRE OU LES "CINQ GRANDES ODES"
DE MARIANE ALCOFORADO. Lisboa: Fundao Caloustre Gulbenkian, 1992; PARADINHA, Maribel. As
Cartas de Sror Mariana Alcoforado: manipulao e identidade nacional. [S.L.]:Caleidoscpio Edio e
Artes Grficas, 2006; PEREIRA, Leonardo. As cartas de Sror Mariana. Lisboa: [S.N.], 1941; RIBEIRO,
Manuel. Vida e morte de Madre Mariana Alcoforado (1640 - 1723). Lisboa: Livraria S da Costa, 1940;
RODRIGUES, A. Gonalves. Mariana Alcoforado: histria e crtica de uma fraude literria. Coimbra:
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1935; DUBOIS, E. T. A mulher e a paixo: das Lettres
Portugaises as Novas Cartas Portuguesas. Lisboa: Fundao Caloustre Gulbenkian , 1988. Para o referido
projeto, foram consultados outros livros presentes na bibliografia desta dissertao, como por exemplo:
DELGADO, Humberto. O infeliz amor de Sror Mariana. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira S.A.,
1964.
17
Quando o texto for de minha autoria, o nome da Sror ser grafado com apenas um n, portanto Mariana
Alcoforado. Nas citaes, respeitarei a escolha da poeta estudada e dos autores que se dedicam histria da
freira do Convento de Conceio de Beja (Alentejo/ Portugal).
18
Dois livros de Adlia Lopes fazem meno estria das Cartas Portuguesas j em seus ttulos. O primeiro,
de 1987, intitula-se O Marqus de Chamilly (Kabale und Liebe); o outro, publicado em 2000, junto com a
Obra, chama-se O regresso do Marqus de Chamilly. Entretanto, em outros livros de Adlia a figura da Sror
e do soldado francs esto presentes, como em Poemas Novos (cujo ttulo primeiro era Ovos), Caderno, A po
e gua de colnia, entre outros.

59

Adlia Lopes publica em livro um poema cujo tema a freira portuguesa em A po e


gua de colnia, de 1987. No poema, dividido em duas partes, Adlia, j a seu modo, conta
a estria, ou melhor, o triste fim da personagem Mariana Alcoforado:
1
A RAPARIGA que esperava muito
as cartas do namorado
que lhe escrevia muito pouco
foi violada pelo carteiro
2
Quem vai pedir um envelope
A Marianna Alcoforado? (p. 85)

A pergunta ao final do poema nos sugere uma ambivalncia nos vocbulos


rapariga, violada e envelope. A rapariga foi violada pelo carteiro, ou seja, a
rapariga assume o lugar de carta, pois violar um ato que faz parte do campo semntico
de correspondncia, e, alm disso, violentar pode ser estuprar. Desse campo semntico de
correspondncia faz parte tambm envelope; assim sendo, a ambivalncia se impe de
maneira mais clara se notamos o ponto de interrogao que finaliza o poema. A freira
Mariana um mito que tem como marca e item de sua estria cartas ao Marqus de
Chamilly. Essas cartas, verdicas19 ou no, ao serem divulgadas tornam-se objetos

19

Humberto Delgado acredita e tenta comprovar, assim como Luciano Cordeiro, em Sror Mariana: a freira
portugueza, de 1888, a autoria das Cartas portuguesas por Mariana Alcoforado. No entanto, Anna Klobucka,
em 2006, publica Mariana Alcoforado: formao de um mito cultural. Nesse livro, a freira, como diz o ttulo,
mtica, pensada como uma figura (..) representativa da feminilidade portuguesa, quando no mesmo da (...)
identidade nacional e um elemento importante do cnone lusitano. (KLOBUCKA: 2006, p. 96) Trago as
duas opinies para este texto somente como informao extra, pois a verdadeira autoria das cartas no um
assunto que me interesse como estudiosa do tema. E ainda porque se a autoria uma problemtica para mim,
porque o para Adlia Lopes, pois a autora de O regresso do Marqus de Chamilly, entre tantos outros
livros e poemas dedicados a uma releitura das Cartas Portuguesas, muitas vezes se coloca tambm como
mais uma possibilidade de autora das cartas e quase sempre como uma das receptoras. Por isso as cartas so
violadas pelo carteiro, para que tenha um receptor, j que o destinatrio/receptor esperado quase sempre
falha.

60

literrios, com o tempo canonizados. E, tambm, no poema de Adlia, ao serem violadas


pelo carteiro, uma figura comum e perversa na poesia de Adlia Lopes, passam as cartas a
ter um receptor, ainda que este no seja o esperado/ programado, mas, de todo modo, h a
recepo.
Os poemas de Adlia dedicados a biografar a histria da freira Alcoforado
representam uma atualizao, pois trazem para a contemporaneidade o mito do amor
impossvel, de larga tradio na literatura ocidental: Tristo e Isolda, Ins e Pedro, Romeu e
Julieta etc., sendo que esses recm-citados mitos, assim como o de Alcoforado, no foram
trazidos a pblico pelos prprios personagens. A freira Alcoforado, por exemplo, teve sua
vida amorosa conhecida por meio da publicao das Cartas Portuguesas, publicadas em
1810, na Frana, pela primeira vez com indicao de que a autoria seria da freira. Como h
dvidas sobre sua autenticidade, muitos cogitam que as cartas tenham sido, de fato, escritas
pelo pretenso tradutor.
Em outro poema, este do livro O Marqus de Chamilly (Kabale und liebe), de 1987,
a Mariana adiliana , tambm, uma metfora a que Adlia recorre para o cansao pela
espera:
Algumas cartas de Marianna foram parar
a destinatrios diferentes
por cansao dos carteiros
e Marianna soube disso
ela andava pelos corredores do metro
a abordar senhores
desculpe no foi a si
que eu escrevi
comove-me tanto?
e os senhores apavorados
davam-lhe vinte e cinco escudos
a correr
e ela comprava mais selos
e ela comprava mais selos
no sei se a si que estou a escrever

61

no me lembro das suas mos bem


ontem no metro julguei reconhec-lo
mas foi mais um terrvel engano
mais tarde ou mais cedo todas as cartas
lhe sero devolvidas hermeticamente
fechadas
minha senhora o seu amante
no se encontrou nesta morada (p. 85)

Nos versos iniciais, Algumas cartas de Marianna foram parar/ a destinatrios


diferentes, fica evidente uma personagem que, desiludida com a demora das respostas de
seu amado, o Marqus passa a admitir destinatrios diferentes. Ou seja, a Mariana do
sculo XX no est disposta a esperar, e, por isso, no se submete a uma relao de
exclusividade. Embora no haja mais um compromisso com o nico, ao final do poema
temos a constatao de que, na verdade, as cartas seriam devolvidas hermeticamente
fechadas. O sintagma hermeticamente fechadas alude virgindade, afinal uma mulher
virgem, nunca tocada, est fechada. Mais adiante, nos versos minha senhora o seu amante/
no se encontrou nesta morada, a virgindade, mais uma vez, pode ser lida. Essa morada,
entendo-a de duas maneiras: como a casa do amado e tambm como o corpo de Mariana,
que nunca fora tocado, portanto um encontro de corpos nunca se deu. A morada est
hermeticamente fechada.
Com o intento de vislumbrar a desmistificao do literrio ou, mais pontualmente,
de uma sbria rasura dos mitos que nos habituamos a associar escrita adiliana, termino
este item citando um poema sem ttulo, do livro Le vitrail La nuit * A rvore cortada, em
que, mais uma vez, a temtica da ausncia e da espera do amado -nos oferecida:
Depois
da paixo
e da ausncia
ficou a esperana
e a indulgncia

62

No sou Marianna
e tu no s Chamilly
A minha histria
outra
e comea agora
Estou sempre
a comear (p. 573)

2.5 Fernando Pessoa e Ricardo Reis; Maria Jos da Silva Fidalgo Viana e Adlia
Lopes

Os mitos, as histrias, as lendas e as personagens que figuram na poesia de Adlia


Lopes, como Mariana Alcoforado, perfazem uma metafico. Ou seja, Adlia Lopes, para
tratar de suas questes e de seu tempo, se vale da intertextualidade e do uso de personagens,
cria uma fico sobre fico, com incluso de comentrios. Esta fico de Adlia Lopes
realizada a partir de dados supostamente biogrficos, dando-nos a impresso de que Adlia,
em seus poemas, funde texto e autor em um s corpo potico, indissocivel. Nas palavras
de Sofia Sousa Silva, umas das pioneiras em estudos adilianos aqui no Brasil, Adlia Lopes,
[e]m vez de procurar dissociar o texto do autor, (...) investe freqentemente no
inverso: colar o texto ao autor. Ela tenta criar um tipo de pacto com o leitor que a
modernidade rejeitou, consciente, porm, de que essa transparncia impossvel.
como se brincasse de ser ela mesma, sabendo que o poeta sempre um outro.
(2007, p. 32)

O que venho tentando observar neste trabalho, porm, que a poesia adiliana, com
seu qu de metafico, tende, principalmente, a jogar com as possibilidades de significado e
de forma, demonstrando uma apurada conscincia em relao produo artstica e ao
papel a ser desempenhado pelo leitor. Este, ao ser convidado a adentrar tanto o espao
literrio quanto o biogrfico, v-se, muitas vezes, sozinho diante das jogadas da poeta. No
entanto, Adlia morde e assopra, e assim, vai envolvendo seu leitor/ receptor.

63

Um exemplo recm-estudado aqui foi o resgate da lendria freira Mariana


Alcoforado. Nesta seo, a ateno ser voltada para como Adlia Lopes toma emprestado a
Ldia de Ricardo Reis. O poema citado no primeiro item, 1. bom, possui ainda duas
outras partes:
2
(anti-Ricardo Reis)
O rio
bom
para nadar
e as flores
para dar
o resto
so cantigas
casa-te com Ldia
tem bebs
passa a lua-de-mel
na Grcia
3
(pr-Meendinho)
Na ermida
de So Simeo
dar-te-ei
a minha mo
meu barqueiro (p.361)

Neste poema, Adlia Lopes redimensiona o amor maneira Ricardo Reis, e, para tal,
explicita desde o parntese, (anti-Ricardo Reis), uma contrariedade, assim como no anterior
(anti-Cames). O sujeito potico masculino em Reis tem, na mulher, um receptor, enquanto
no poema de Adlia, o sujeito potico, independente do sexo que lhe atribudo, faz de
Ldia apenas um nome mencionado. A Ldia do heternimo algum que recebe de seu
cantor uma mundiviso pronta, sem lugar para que se estabelea algum tipo de sabedoria
feminina.

64

Vem sentar-te comigo Ldia, beira do rio.


Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e no estamos de mos enlaadas.
(Enlacemos as mos.)
(...)
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagos inocentes da decadncia. (Pessoa: 1993, p. 185)

Ao afirmar que o rio/ bom/ para nadar/ e as flores/ para dar, Adlia Lopes
desfigura o significado do poema de Ricardo Reis e pe-no no campo da ao, da
contemporaneidade e da realizao ertica. Afinal, para a poeta, as flores so boas para
dar. Observo uma ambivalncia do verbo dar: por ser complementado pelas flores que
remetem, possivelmente, ao sexo da mulher (tanto para a psicologia de Freud, quanto para a
poesia de Cames), o verbo fica carregado de carga sexual, do mesmo modo que o comer
presente no item 2.1, tem conotao sexual (p.480). O rio/ bom/ para nadar e no para
ser cenrio de se enlaar as mos e pensar-se na vida. Ou seja, Adlia provoca e contradiz
Ricardo Reis, tomando para sua poesia aes que desacentuam uma subjetividade imaterial.
Ainda nesse fazer em prol do material, Adlia, a meu ver, ao escrever que as flores so
boas para dar, contradiz o carter simblico que Reis fornece a esses elementos da
natureza. por isso que observo o verbo dar carregado de ambivalncia, pois pode ser o
ato de dar as flores, como tambm o fato de as flores serem o rgo sexual feminino que
dado, ou seja, uma relao sexual se revela em um dos sentidos do verbo.
Nessa reconfigurao de sentidos, Adlia enxerga o casamento como concretizao
do sentimento amoroso, opondo-se postura neoclssica do enlaamento das mos do
heternimo pessoano, presente nos versos:
Desenlacemos as mos, porque no vale a pena casarmo-nos

65

Quer gozemos, quer no gozemos, passamos como o rio (Pessoa: 1993, p. 185)

Como vemos no poema de Adlia Lopes, o rio bom/ para nadar. A poeta
sugere, para aps o matrimnio, uma lua-de-mel na Grcia, retirando de cena a histria
desse lugar bero da civilizao ocidental e origem de boa parte da mundividncia de
Ricardo Reis , que passa a ser um belo lugar de realizao do erotismo. O poema em que o
dilogo com Reis se faz bastante articulado ao anterior, dedicado a contrariar Cames,
pois o tema da consumao da sexualidade mais uma vez abordado, no como uma
problemtica a ser interditada, mas como um plano de execuo.
Em uma pequena digresso, retorno ao poema de abertura desta parte, em que a
poeta recupera um nome da Idade Mdia, que, segundo Reckert, escreve uma das obrasprimas do cancioneiro medieval. A cantiga medieval citada narra dramaticamente a espera
da enamorada, na ermida de So Simeo, pelo seu amigo, que tarda a chegar.
Sedia-meu na ermida de Sam Simiom
e cercarom-mi as ondas, que grandes som:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
Estando na ermida anto altar,
cercarom-mi as ondas grandes do mar:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
E cercarom-mi as ondas, que grandes som,
nom ei [i] barqueiro, nem remador:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
E cercarom-mi as ondas do alto mar,
nom ei [i] barqueiro, nem sei remar:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
Nom ei barqueiro, nem remador,
morrerei [eu] fremosa no mar maior:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!

66

Nom ei [i] barqueiro, nem sei remar


morrerei eu fremosa no alto mar:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo! (Gonalves, Ramos: 1983, p. 254)

A enamorada, a de Meendinho, se afoga no mar e no seu sentimento de angstia


pela espera. No poema de Adlia, retomado o carter suicida da enamorada que, Na
ermida/de So Simeo, entrega-se morte ao dar a mo ao seu barqueiro: dar-te-ei/ a
minha mo/ meu barqueiro. Apesar de muito mais comum ao eu lrico masculino o morrer
de amor nas cantigas da Idade Mdia, o suicdio, tanto em Meendinho quanto em Adlia,
assinala a condio de uma enamorada que prefere a morte a viver a espera (sem resposta)
do amigo. Todavia, dar as mos um ato de unio; portanto, verificamos que, no poema de
Adlia, diferentemente da cantiga medieval, o encontro amoroso acontece. A afinidade do
espao das personagens do barqueiro e do marinheiro, presente na cantiga medieval, existe,
pois ambos so homens do mar. Sendo assim, numa possvel leitura, o barqueiro deixa de
ser a personagem mitolgica que encaminha os mortos ao inferno e passa a representar o
amado, possibilitando o encontro amoroso que fora impedido pelas ondas do mar de Vigo
na cantiga de Meendinho. Assim, na releitura de Adlia:
De mo dada
com meu amigo
vejo os filmes
de Jean Vigo (p. 314)

Contra Cames e Ricardo Reis e a favor de Meendinho, Adlia Lopes se mostra a


servio da expectativa de espera de prazer. Pelo menos isso se d em algumas Adlias
Lopes. Pois, se concordo com Sofia Sousa Silva que Adlia Lopes tambm uma espcie
de heternimo de Adlia Lopes, nada me impede se cogitar uma grande variedade de
Adlias. Sofia chama de heternimo um pseudnimo, oferecendo, assim, a este um aditivo

67

simblico mais espesso, enquanto Herberto Helder faz o inverso: chama um heternimo de
Pessoa de pseudnimo, como se diminusse a heteronmia pessoana a uma inspida
proliferao de pseudnimos, como nos fala Luis Maffei:
Pessoa est no volume e, quando de sua apresentao, recebe um pequeno
arranho de Herberto (1985, p. 93): Dos poemas aqui apresentados, apenas o
ltimo (...) tem a assinatura de um pseudnimo: lvaro de Campos. Chamar
pseudnimo a um heternimo em meado dos anos de 1980 , sem dvida, um
modo de suspeitar da prpria constelao heteronmica. (Maffei: 2007, p. 38)

Em um outro poema, Glosas para o Joo Dionsio, que dialoga com Ricardo Reis,
por ter, inclusive, uma epgrafe do heternimo pessoano, Adlia escreve:
II
Somos contos contando contos, nada.
Ricardo Reis
Se somos contos
contando contos
e contas
somos o quipu peruano
e o rosrio de Ftima
alguma coisa
portanto
e de alguma coisa
fica alguma coisa
como Lavoisier inventou
(mas parece que se enganou) (p. 347)

O qumico francs citado no poema adiliano, Antoine Lavoisier, o autor da celebre


frase cientfica: Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Neste
poema o sujeito potico aposta num equvoco da afirmativa do qumico. O curioso que,
apesar de o parntese final sugerir o engano de Lavoisier, ao longo do poema, mais
especificamente a seu meio, a poeta, invocando um artifcio religioso, o rosrio de
Ftima, argumenta que fica alguma coisa de alguma coisa. como a oroboro, smbolo
da alquimia, que se alimenta de si prpria, simbolizando o infinito. De alguma coisa, fica

68

sempre alguma coisa. A conta matemtica sugere um resto em um coeficiente, ao


contrrio do que se v no poema de Ricardo Reis, Nada Fica:
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirvel treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadveres adiados que procriam.
Leis feitas, esttuas vistas, odes findas
Tudo tem cova sua. Se ns, carnes
A que um ntimo sol d sangue, temos
Poente, por que no elas?
Somos contos contando contos, nada. (Pessoa: 1993, p.69)

As leis da natureza deste poema sugerem o inverso da proposio de Lavoisier,


como se para o heternimo discpulo de Caeiro, o epicurismo greco-latino pudesse resultar
to somente em um potico fundado em um estoicismo. A matemtica do poema parte de
um Nada somos, tipicamente de Caeiro, sugerindo uma antimetafsica, que, para a lgica
do poema, pode apenas encontrar em elementos da natureza, como o sol e o ar, uma
possibilidade de continuidade. Para a humanidade, este ns de Somos contos contando
contos, nada, assim, Nada fica, como Adlia bem lembra, ao apontar o engano de
Lavoisier.
O ltimo verso de Reis, aqui citado, redividido por Adlia Lopes em sua releitura.
Os cantos e as contas se interpenetram e confundem, como se a um pequeno ajuste o
ns mudasse, e assim, ao invs de uma perspectiva de desalento diante do peso das trevas, o
que h a aposta em um rendimento mais profcuo de sobra. Em Reis, a possibilidade de
procriao, ou de continuidade, no cadver, que, claro est, j morto, tem apenas na cova
sua qualquer possibilidade de continuao. Ricardo Reis, um dos heternimos de Pessoa,
faz parte da constelao heteronmica que afirma uma multiplicidade em que as contas
fecham para o nada, que fica. Enquanto em Adlia Lopes, por seu projeto no ser

69

obviamente heteronmico, o epgrafe do poema uma transcrio de versos de Ricardo


Reis, que sero redivididos e condicionados por um Se, que possibilita ler o engano de
Lavoisier condicionado, na verdade, ao acerto da sua proposio cientfica.

70

3. O PROSAICAMENTE POTICO EM ADLIA LOPES


Quanto mais prosaico
mais potico
Adlia Lopes, poema sem ttulo
(Le vitrail La nuit * A rvore cortada)

No s de dialogismo, seja com a tradio ou com as j referidas menoridades do


cotidiano, feita a obra de Adlia Lopes. H, nesta potica, uma vasta abordagem de temas
mais prximos dos chamados grandes temas tradicionais da poesia, dentre os quais a
solido necessria para o fazer potico e a ficcionalizao do eu e do outro as
mscaras poticas adilianas etc. E, ainda, os mesmos dilogos que, no caso adiliano, so
radicalizaes estratgicas tanto para olhar o outro quanto para ver-se a si prpria, como se
a poeta estivesse diante de um espelho potico. Para Clia Pedrosa,
espelhismo bem o modo pelo qual a escrita de Adlia busca a perfeio atravs
da aproximao tensa de formas e valores convencionalmente antagonizados.
Enquanto imagem e procedimento, sempre recorrente, ele serve para mobilizar de
diferentes modos a interseo de semelhana e diferena, que j apontamos antes
na forma como a escrita de Adlia se desdobra a partir mesmo do retorno e da
repetio. (2007, p. 95-96)

Um forte exemplo de espelhismo so os j citados versos Luta Cames no Sul/


salvando um livro a nado (p. 61), invertidos na estrofe seguinte, como se Adlia Lopes se
valesse de um espelho suplementar. Cito novamente o poema:

(p.61)
Nas palavras de Derrida, suplemento aquilo que parece acrescentar-se como
um pleno a um pleno, e tambm aquilo que supre. Suprir: 1. Acrescentar o que falta,
fornecer o excesso que preciso, diz Littr. (Derrida: 2002, p. 200). O Cesrio Verde de

71

Adlia suplementado por Cames, que suplementado pela prpria Adlia, que
suplementa o seu Cames, poeta do qual Adlia muito ntima, como vemos nos j
mencionados versos,
eu percebo-o
transforma-se o outro
no eu
em virtude
de eu o comer
(comer
tem uma conotao sexual
em portugus)
mas isso feio (p.480)

Os versos espelhados citados por Adlia Lopes so emprestados de Cesrio Verde a


falar de Luis de Cames, mas so Adlia citando o Cames de Cesrio, ou ainda o Cames
citado por Adlia de Cesrio. Trata-se, pois, de uma sequncia infinita de possibilidades
de combinaes, o que traz a memria da imagem da latinha de p Royal (a que
impressionou Borges) reproduzida, ela mesma, na imagem da latinha, que por sua vez tem
a mesma imagem, ad infinitum. Esse espelhismo se d tambm na invocao da Sror
Mariana Alcoforado, que, ao ser personagem de Adlia, passa a ser mais uma voz, entre as
tantas das quais a poeta se utiliza para, inclusivamente, negar-se:
No sou Marianna
e tu no s Chamilly (p. 573)

por isso que em Adlia o espelhismo que vemos diferente, por exemplo, do
freudiano (C.f.: Freud: 1969), pois a poeta no se projeta diante de si como sendo seu ideal.
O espelho de Adlia Lopes tem uma funo mais repetitiva, porm na indecidibilidade, em
que a duplicao desdobra as inverses. Desse modo, o espelhismo como um duplo
sentido da reflexo: o ver, o ver-se, o pensar, e tambm um gesto radicalmente

72

contemporneo, porque se mostra atento ao que, na introduo, chamei, a partir de


Agamben, de obscuro.
Lemos em Borges: Al outro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas (Borges:
1996, p.186) e, em Adlia, Este livro/ foi escrito/ por mim (p.375). Se, no caso do
argentino, h uma tenso entre o autor, o eu e o sujeito civil yo vivo, yo me dejo vivir,
para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica (1996, p.186) ,
para a poeta portuguesa h a necessidade de afirmar que o livro foi escrito por ela. Adlia
Lopes quer perseverar em su ser, como la piedra eternamente quiere ser pedra y el tigre
um tigre (Borges: 1996, p.186). Entretanto, os seus duplos (Maria Cristina, a freira poetisa
barroca, Mariana Alcoforado, as personagens de contos de fadas, etc), em um gesto afetivo,
tambm buscam esta subjetivao em su ser.

3.1. A recepo crtica


A agregao de temas cotidianos, como a propaganda e o dinheiro, a questes mais
dignas de pertencer ao espao potico tradicional, fazem parte do projeto literrio Adlia
Lopes. O resultado da soma (intertextualidade com a tradio literria + temas
cotidianos) feita por Adlia Lopes, como observa Rosa Maria Martelo, tende a ser um
divisor de guas:
[] certo que perplexidade, fascnio, curiosidade dividem os leitores desta
poetisa pop, mas, o que mais interessante porque mais raro , que, ao
mesmo tempo que os dividem, tambm os renem em conversas que evoluem
em torno de questes como as de saber se o que Adlia Lopes escreve ou no
poesia, se deve ou no deve ser levado a srio, se tem uma matriz erudita, se
irrelevante ou simplesmente genial, e por a adiante, num desfiar de interrogaes
que facilmente passam de um extremo a outro extremo. (Martelo, 2004, p. 45)

73

No entanto, esta associao realizada, nas palavras de Sofia de Sousa Silva, como
muita da poesia feita a partir da segunda metade do sculo XX, e sobretudo dos anos de
1970 (2007, p.32,33), pois
a obra de Adlia debrua-se sobre o cotidiano e, dando-lhe um tratamento formal,
busca nele um efeito de transfigurao [j que] no h palavras nem assuntos
mais ou menos prprios para a poesia. A linguagem e os temas da vida de todos
os dias podem ser dotados de intensa fora potica. (Silva: 2007, p.32, 33)

A poesia de Adlia, como bem observam muitos de seus estudiosos, debrua-se


sobre o irreverente, tendo o cotidiano, com frequncia, como centro de fora, para, a partir
disso, mostrar forte carga dramtica. Essa potica se vale de assuntos prosaicos e, por isso,
causa, at hoje, certo estranhamento. Por outro lado, o que estranho para uns sabe muito
engraado para outros, j que, aqui no Brasil, a poesia de Adlia Lopes muito bem aceita,
tendo, inclusive uma antologia (luxuosa) publicada em 2002, em razo de uma parceria das
editoras 7Letras e Cosac & Naify, posfaciada por Flora Sssekind.
No entanto, o que pode atrair certo pblico [brasileiro], ainda mais se falamos dos
no acadmicos,20 a leitura superficial desta obra, que pode ser feita s em ateno ao tom
humorstico que esta, muitas vezes, tem. A superficialidade da leitura est na falta de rigor
de recepo do humor adiliano, feito com ironia, tendo, portanto, funo muitas vezes
corretiva, ou autodepreciativa, ou ainda retrica. Adlia ironiza ao modo de Gonalo M.
Tavares, que, em seu ltimo sucesso de vendas, Uma viagem ndia, teoriza a ironia do
seguinte modo:
Por cima da catstrofe, de um ponto de vista areo,
o homem capaz de ironizar,
porm, j debaixo da catstrofe,
debaixo dos seus escombros,
a ironia ser a ltima a aparecer
20

Em 2000, quando foi publicada a sua poesia reunida, Obra, Adlia Lopes tornou-se uma figura pblica, de
um momento para o outro, sendo convidada, inclusive, a aparecer em programas de televiso.

74

depois da aco instintiva de defesa,


do desespero que ainda emite ordens e tentativas,
e do ltimo grito que assinala o fracasso.
S depois deste grito a ironia regressa,
dizendo, quando muito:
morro, certo, mas mesmo assim
guardo uma elegante distncia em relao
minha morte.
Eis, Bloom, em traos largos,
a apresentao da velha ironia
que por vezes utilizaremos para evitar
rir s gargalhadas, ou chorar. (2010, p.37-38)

Para os leitores desta Adlia exclusivamente humorstica, a poeta , muitas vezes,


apenas uma senhora engraada a falar de gatos, fodas, rosas, vacas, bolor e espelhos. O que
no percebem que estes mesmos vocbulos, como tantos outros como shampoo, Johnson
& Johnson,21 dinheiro,22 Barbie23 e Einstein,24 realam o carter opressor da lngua, a luta
contra o esteretipo e seu reino como estratgia mais segura para evitar que o discurso se
enraze nas tentaes do autoritarismo. Em Aula, Barthes esclarece este ponto, quando
assinala que a lngua possui, como caracterstica principal, um modo de ser fascista. A
lngua impe-se a si mesmo como uma ordem inexorvel, inclusive em seu modo de
utilizao comum:
Mas a lngua, como desempenho de toda linguagem, no nem reacionria, nem
progressista: ela simplesmente: fascista; pois o fascismo no impedir de dizer,
obrigar a dizer. Assim que ela proferida, mesmo que na intimidade mais
profunda do sujeito, a lngua entra a servio de um poder. (Barthes: 1978, p. 1415).

21

Quantas vezes me fechei para chorar/ na casa de banho da casa da minha av/ lavava os olhos com
shampoo/ chorava/ chorava por causa do shampoo/ depois acabaram os shampoos/ que faziam arder os olhos/
no more tears disse Johnson & Johnson (p.125)
22
Primeiro/ o dinheiro// Primeiro/ as facturas// A vida/ depois// A vida/ nunca (p.546)
23
Barbie (no Barbie, Midge) est grvida e o beb recm-nascido j nasceu, est vista na caixa, com
Barbie, e Barbie est de barriga grande. (p. 572)
24
No sou/ menos/ que Einstein/ nem que/ Claudia Schiffer/ no sou/ mais/ que uma osga/ ou que uma
barata (p. 377).

75

Se, como nos ensina Barthes, ainda em Aula, o elo entre o real e a linguagem (C.f.:
Barthes: 1978) incontornvel, por que leitores menos atentos pensam que tudo nesta
poesia se d no nvel do tema ou da armao visvel dos lances narrativos, como se no
houvesse uma busca pela sintaxe?
Talvez porque no percebam o que Adlia enxerga no cotidiano, ou a inteligncia
textual que sua poesia vem conquistando cada vez mais espao e se tornando um lugar
para leitores cansados de uma tradicional ordem potica, tica e esttica (Alves: 2004,
p.235), como bem observa Ida Alves. Ou ainda porque no observam a firme relao desta
poeta com a sua Musa cruel, como lemos, novamente, nos versos
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma lngua
agora vou cortar-te a lngua
para aprenderes a cantar
a minha Musa cruel
mas eu no conheo outra (p. 63)

E assim, por Adlia no conhecer, inclusive por talvez no querer conhecer outra
Musa, luta contra o capital selvagem, deus do lucro, que roubou aos poetas, seus
exclusivos inventores, o valor no-dialtico do no, travestindo-o em politicamente
correto com o cortejo normativo do no se pode fazer, no de deve dizer...
profundamente

antipoticos

contra

inventivos,

num

xtase

restritivo...

democraticamente...totalitrio! (Castro: 2006, p.254). Em um projeto que celebra a


liberdade de expresso e uma potica contempornea atenta ao testemunho do que podemos
chamar de real, Adlia serve a sua musa, indo no sentido contrrio de uma massificao
cultural e social.

76

3.1.1

A poetisa pop ironista

O aparecimento em No more tears (p.125) da marca Johnson & Johnson, revela o


vontade de Adlia com o uso de linguagens inusitadas, em certa medida imprprias de
figurar em um espao lrico. Muito provavelmente, mais uma vez nas palavras de Sofia
Sousa Silva, porque
a conscincia de que o poema se faz com palavras e no com ideias ou
sentimentos, de acordo com a clebre frase de Mallarm, to profunda que no
fazem25 distino entre os temas a tratar. Qualquer tema pode ser potico,
qualquer palavra pode caber num poema, desde que lhe seja necessria. (Silva:
2007, p.35)

E, assim, a poeta soma a esses recursos incomuns a sua erudio literria, criando
um espao potico intertextual cujo resultado a fundao de um universo de reflexo de
linguagem bastante prprio. Desde Um Jogo bastante perigoso, como a poeta
cuidadosamente intitula seu primeiro livro, Adlia Lopes (re)arruma significantes e
significados, desloca palavras e sentidos, propondo uma inverso de valores. Os recorrentes
usos desses jogos, bem como as interlocues com a tradio, fazem da poesia de Adlia,
nas palavras de Eduardo Prado Coelho, um caso inesperado na poesia portuguesa
contempornea (...) que desconcerta todas as categorias pr-estabelecidas (20/11/08).
E por que o uso recorrente do eu da ordem do cotidiano? Talvez porque Adlia
perceba que a cultura de massa nos invade e viola a vida: quem nunca ouviu uma msica
que detesta, porque um rdio est ligado em um consultrio mdico, ou vindo de um carro
com um som potentssimo? Quem nunca viu um programa televiso que lhe causa horror,
durante o qual deveria ser um agradvel encontro com amigos em um bar ou um
25

O sujeito deste verbo Manuel Bandeira e Ruy Belo. No obstante, o procedimento de Adlia Lopes
semelhante, neste caso, ao dos dois poetas citados.

77

restaurante? Todos ns, que frequentamos lugares sociais, somos recorrentemente


submergidos pela cultura de massa, a mesma que, embasada na faceta perigosa do processo
capitalista, pratica, sem provocar muitas discusses e sem que se levante efetiva resistncia,
uma das formas mais cruis de violncia, a ideolgica, como j observava Adorno (C.f.:
Adorno: 1998)
Dentro da reflexo acerca de subjetivao, Adlia Lopes, uma poeta de mscaras,
forja uma srie de pequenas fices. O nome de batismo da poeta, presente no poema a
seguir, estabelece um jogo com os nomes de sua me e de sua av, o que cria uma
esfera de familiaridade. A Escola de Mulheres qual pertence Adlia a sua famlia,
creio que no no sentido autobiogrfico de ascendncia ou linhagem, mas sim no de um
agrupamento potico, que integra aprendizes e mestres.
Maria Jos Silva
biloga amiga
da minha me
Maria Jos Viana
a minha me
e a minha av
Maria Jos Fidalgo
o fidalgo aprendiz
Maria Jos Fidalgo de Oliveira
o Cavaleiro de Oliveira
ou o Monsieur de La Souche
j no sei se da Escola de Mulheres
se do Burgus Fidalgo
Maria Jos da Silva Viana Fidalgo de Oliveira
freira poetisa barroca (p.320 )

Os versos Maria Jos da Silva Viana Fidalgo de Oliveira/ freira poetisa barroca
quando somados a
Eu sou a luva
e a mo
Adlia e eu
quero coincidir comigo mesma (p.337)

78

, leva-nos a pensar a potica adiliana como uma recorrente transio de sujeitos, realizada
em um corpo potico com leve aproximao ao que podemos chamar de ps-moderno. Para
Terry Eagleton, o sujeito ps-moderno, diferentemente de seu ancestral cartesiano,
aquele cujo corpo se integra na sua identidade (...). Assim o corpo funcion[a] ao mesmo
tempo como o aprofundamento vital das polticas radicais e seu total deslocamento
(Eagleton: 1996, p. 72-73). O corpo potico escrito por Adlia Lopes carregado de
sujeio, como se preso a um labirinto de linguagem. A Ordem do discurso (Foucault:
2009) adiliano no arraigada a uma centralizao do sujeito que enuncia, mas sim a uma
cadeia de personagens que testemunham as experincias da autora Adlia Lopes.26
Nos recm-citados poemas, verificamos, respectivamente, a verdadeira identidade
da poeta Maria Jos da Silva Viana Fidalgo de Oliveira e a necessidade de a poeta/
autora mascarada coincidir com o seu eu. Ou, como observa Lcia Evangelista, Adlia
Lopes no Adlia Lopes, mas Maria Jos. Adlia o Eu falo que assina os poemas, o
mim que escreve e que o faz enquanto sujeito e objeto da poesia (22/03/2011)
Quando falo em verdadeira identidade no pargrafo anterior, o sintagma aparece
grifado com o intuito de avisar ao leitor deste texto dissertativo de que a minha inteno
no discutir a identidade adiliana, pelo menos no sob um prisma heteronmico, como um
estudioso de literatura portuguesa poderia ficar tentado a fazer. At porque o grandioso (s
vezes, inclusive maior que ele mesmo) Fernando Pessoa, j foi convidado para este estudo,
quando aproximei Adlia Lopes do heternimo Ricardo Reis.

26

Chamo Adlia Lopes de autora aqui embasada na ideia foucaltiana de que autor aquele que d
inquietante linguagem da fico suas unidades, seus ns de coerncia, sua insero no real (Foucaut: 2009,
p.28)

79

Assim sendo, visto que a minha proposta no analisar a fundo a verdadeira


identidade adiliana, ou melhor, por perceber este tema como sendo de resoluo difcil,
recorro ideia foucaultiana de treinamento de si:
[n]enhuma tcnica, nenhuma habilidade profissional pode ser adquirida sem
exerccio; no se pode mais aprender a arte de viver, a techn tou biou, sem uma
asksis que deve ser compreendida como um treino de si por si mesmo: este era
um dos princpios tradicionais aos quais, muito tempo depois, os pitagricos, os
socraticos, os cnicos deram tanta importncia (...). Como elemento de
treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expresso que se encontra em
Plutarco, uma funo etopoitica: ela operadora da transformao da verdade
em ethos. (Foucault: 2006, p.146-147)

Repito: como no pretendo aprofundar o estudo acerca da identidade adiliana, nem


como uma questo de ordem psicolgica, menos ainda heteronmica, o que proponho
pensar a subjetividade, esse espao do sujeito na linguagem. Deste vis, o que se observa
que no h dialtica em Adlia Lopes, pois esta lgica prope uma sntese e o que se nota
na poeta em estudo so subjetividades situadas num entrelugar e, por isso, escorregadias
como o peixe da arte potica poema citado no captulo anterior. O que observamos
em Adlia o impasse, e por isso que aposto, no numa dialtica, mas em um acmulo de
tenses.
O poema Body art? um exemplo desta economia de tenses. No ttulo h uma
interrogao, como se este questionasse o estar gorda e o estar magra, narrado pelo sujeito
potico. Adlia, portanto, se encontra, ou melhor, se coloca em constantes impasses, em um
lugar de tenso, mais evidenciado quando lemos juntos os versos detesto o sofrimento (p.
275), de Body art?, de 1999, e o poema sem ttulo publicado em Caderno, de 2007.
A vida
luta
e eu gosto
assim (p. 606)

80

Com o artifcio do uso de mscaras poticas e sua vasta recuperao de ditos


populares e dices incomuns na poesia lrica, Adlia Lopes faz da escrita um exerccio
pessoal feito por si e para sim, uma arte da verdade dspar (Foucault: 2006, p.151).
Questes sociais podem ser encontradas na obra de Adlia, em grande parte dos
casos como razo para a ausncia presente da sexualidade em seu fazer potico. Alm
disso, o corpo que visto na poesia de Adlia Lopes deixa a desejar no que se refere s
imposies da sociedade como corpo paradigmaticamente desejvel. O corpo recusado de
Adlia Lopes recupera uma teoria do corpo [que] corre o risco de autocontradio, pois,
para Eagleton, o corpo nos d um pouco de certeza sensorial num mundo cada vez mais
abstrato (1996, p.73). Em Body art?, notamos uma insatisfao do sujeito potico
autobiogrfico, comum na poesia de Adlia, com a maneira pela qual o mundo percebe e
recebe o que foge aos padres de beleza. Nesse poema, em cujo ttulo vemos as exigncias
dos valores fashion e de academia de ginstica, h uma interrogao que sinaliza o
questionamento desse sujeito potico a esses valores que lhe provocam sofrimento:

Body art?
Com os remdios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
o menino
nos transportes pblicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
Emagreo 21 Kg
as colegas
da Faculdade de Letras
perguntam-me
se menino
ou menina

81

No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grvida
o rapaz quer-me
dar o lugar
Detesto
o sofrimento (p.275)

O poema referido uma espcie de narrativa que descreve o sofrimento com um


corpo, to invisvel como objeto de desejo que no h a possibilidade de estar gerando um
novo ser, pois seria necessrio o ato sexual para a gravidez. Esse corpo permite apenas a
discusso entre o velho e o rapaz acerca duma possvel gravidez. O poema finalizado
com o verso Detesto/ o sofrimento, que revela um sentimento de dor, de ausncia, de
insuficincia e de descontentamento que se apresenta na poesia adiliana.
Sobre um prisma mais sociolgico, mas nem por isso menos potico, Body art?
um poema, segundo as ideias de Bauman, sobre o tipo de vida colocado em movimento e
impulsionado pela compulso fuga (2007, p.111), pois precisamos atender s demandas
sociais de uma economia orientada pelo consumo que nos dizem que o tempo flui depressa.
Assim, como afirma Andrezej Stasiuk, romancista polons e analista da condio humana
contempornea,
[a]plicando vrias tcnicas, podemos alterar nossos corpos e remodel-los
segundo diferentes padres... Quando se folheiam revistas sofisticadas, tem-se a
impresso de que elas contam principalmente uma histria sobre as maneiras
pelas quais possvel mudar a personalidade de algum, comeando por dietas,
ambientes, lares, at a reconstruo de nossa estrutura psquica, que tem
frequentemente como codinome a proposio do seja voc mesmo ( Apud
Bauman: 2007, p.110)

Adlia se vale da marginalidade para maldizer suas realidades modernas, e coloca


em observao os valores da sua sociedade, incorporando-os para critic-los. Em um
processo de lamentao, ela recupera a tradio potica erudita somando-lhe um universo

82

de escrita absorvente de clichs, ditos populares, estrias infantis, outdoors, entre outras
banalidades e referncias distanciadas da cultura erudita.

3.2 Dinheiro e literatura: mercado e valor na poesia de Adlia Lopes


Largent
est
violent
Le prix
de largent
est
le sang
Adlia Lopes
(Le vitrail La nuit * A rvore cortada)
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Luis de Cames
(Os Lusadas, Canto I, 3, 7-8)

Em um captulo cuja proposta estabelecer uma anlise do prosaicamente potico


em Adlia Lopes, acrescento este subitem cujo cerne observar como dois temas, mercado
e valor, aparecem na poesia de Adlia. Ambos podem servir de ponto de partida para ideias/
perguntas dialogantes, e, por isso, nada paradoxais: Qual o valor do mercado (editorial)
para a literatura? Que tipo de valor a literatura quer receber do mercado (editorial)?
Coloco, nas duas perguntas, o vocbulo editorial entre parnteses, pois aqui, para alm de
observar as relaes do mercado editorial, tenciono abordar o mercado e o valor sob
diversos de seus desdobramentos: o atualssimo mercado e o j tradicional lugar do poeta,
notando como se d a adventcia presena do dinheiro como assunto literrio.
E, para tal tarefa, comeo com um poema intitulado Dinheiro e Literatura, do
livro Sete rios entre campos, publicado em 1999:

83

Dinheiro e Literatura
A viva do escritor
pedia esmola
minha av
a ttulo de viva
do escritor
*
No percebe nada
de literatura
a personagem principal
a tia Emiliana
porque
quem tem o dinheiro
*
O livro indito
do tio escritor
havia de fazer
a fortuna
das herdeiras
mas o editor pagou pouco
ou a prima Berta mentiu (p.325)

Nos versos citados, a figura do editor transformada em uma personagem, que,


talvez, assim como a tia Emiliana, No percebe nada/ de literatura, pois o primeiro
pagou pouco, ou, como suspeita o sujeito lrico a prima Berta mentiu. A tia Emiliana,
que no percebe nada de literatura, quem tem o dinheiro. Tal afirmao do sujeito lrico
me leva a pensar que Dinheiro e literatura, apesar de ser o ttulo do poema, formado por
dois substantivos ligados por uma conjuno aditiva, uma soma, no s inesperada, mas
tambm, e, por que no?, principalmente, impossvel no mundo dos negcios.
Mundo este em que livros so muito vendidos, mas literatura no. Mundo este
formado por uma sociedade de consumidores, que, nas palavras de Zygmunt Bauman,
um tipo de sociedade que (recordando um termo, que j foi popular, cunhado
por Louis Althusser) interpela seus membros (ou seja, dirigi-se a eles, os sada,
apela a eles, questiona-os, mas tambm os interrompe e irrompe sobre eles)
basicamente na condio de consumidores. (2008, p.70)

84

Pobres, ento, das herdeiras que pensaram em fazer fortuna com o livro indito.
Talvez porque as pobres no entendam que, apesar de ser um livro o que o tio deixa,
trata-se de literatura, algo que nunca deu fortuna. Uma vez que a presena de Cames
incontornvel em literatura portuguesa, e, por isso, neste texto constante, observo o
sentido de fortuna como destino, fado, sorte, para Cames. No soneto a seguir transcrito, o
vate lamenta sua m sorte.
Erros meus, m Fortuna, Amor ardente
Em minha perdio se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho to presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que j as frequncias suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanas.
De Amor no vi seno breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gnio de vinganas! (Cames: 2005, p.23)

A deusa romana da sorte, Fortuna, representada cega ou com a vista tapada e


portando uma cornucpia e um timo, simboliza a distribuio de bens e a coordenao da
vida dos homens. O destino de Cames traado por uma m sorte. O descontentamento de
que Cames fala em Amor um fogo que arde sem se ver , de fato, descontente, pois A
grande dor das cousas que passaram,/ Que j as frequncias suas me ensinaram/ A desejos
deixar de ser contente. Os discursos errados do poeta humanista levam a Fortuna a castiglo. Cames no entendeu que literatura no d fortuna, assim com as herdeiras do tio. Por

85

isso, o vate teve que calar a voz diante da gente surda e endurecida, por saber que o
destino no daria recompensa a quem canta:
N mais, Musa, n mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E no do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
No no d a ptria, no, que est metida
No gosto da cobia e na rudeza
Da austera, apagada e vil tristeza.
E no sei por que influxo de Destino
No tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os nimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vs, Rei, que por divino
Conselho estais no rgio slio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor s de vassalos excelentes. (Lus, X, 145-146)

Digresses camonianas parte, outra percepo que imagino faltar s herdeiras a de


que time is money, ou em portugus e versificado por Adlia, Tempo/ dinheiro. Cito os
versos da poeta que tem medo de no ter dinheiro, e que mesmo sem gostar do vil metal
sabe que preciso t-lo:
Tempo
dinheiro
diz-se
e no se diz
tempo
amor
Os homens
e as mulheres
so os nicos
animais
que inventaram
o dinheiro?
No gosto
do dinheiro
no gosto
de contas
Tenho medo
de vir

86

a no ter
dinheiro (p.549)

No poema Adlia questiona: Os homens/ e as mulheres/ so os nicos/ animais/ que


inventaram / o dinheiro?, quase que retoricamente, pois parece clara a ironia quanto
animalidade da espcie humana animais, ditos racionais, que ao mesmo tempo so
capazes dos mais nobres sentimentos, o que nos difere dos animais irracionais, mas que,
por ganncia e cobia, movidos por valores nada nobres, so capazes de matanas e
extino de povos.
Em nosso tempo, estes valores so mascarados pela ideia de sociedade de
consumidores, que, num primeiro momento, forja uma igualdade de possibilidades e um
livre direito de escolha j que passamos do feudalismo mas que, na verdade,
representa um conjunto peculiar de condies existenciais em que elevada a
probabilidade de que a maioria dos homens e da mulheres [grifos meus] venha a
abraar a cultura consumista em vez de qualquer outra, e de que na maior parte
do tempo obedeam aos preceitos dela com mxima dedicao (Bauman: 2008,
p.70)

A poeta que no gosta de dinheiro nem de contas tem medo de no vir a ter
dinheiro, pois percebe que o caminho cultural estar na sociedade de consumidores,
ainda que a poeta no se comporte de forma irrefletida,27 at mesmo por ser uma poeta.
Esse caminho cultural , muitas vezes, vazio. preciso, pois, defender e escavar o
literrio, ter a literatura como experincia (Lopes: 2003, p. 11), pois, ainda nas palavras
de Silvina Rodrigues Lopes,
[c]ada vez mais o termo cultura aparece a englobar sem sobressaltos o que se
designa por produo literria e onde se renem coisas to diversas que vo
desde as obras, em verso ou prosa, cujo apelo inseparvel de uma
27

Bauman afirma que a cultura consumista o modo peculiar pelo qual os membros de uma sociedade de
consumidores pensam em seus comportamentos ou pelo qual se comportam de forma irrefletida ou, em
outras palavras, sem pensar no que consideram ser seu objetivo de vida e o que acreditam ser os meios
corretos de alcan-los. (2008, p.70)

87

indecifralidade radical, at quele tipo de produtos, tambm em verso ou prosa,


que tanto corresponde aos apenas ldico como disponibilizao de informao
ou consolidao das opinies e sentimentos comuns (2003, p. 11)

Noutro poema, como se fosse aceitando o grande, muitas vezes absoluto, valor que o
dinheiro tem, Adlia percebe que Para escrever/ preciso/ dinheiro, e para isso ter
pouco/ que fazer. O entendimento adiliano da relao entre tempo e dinheiro do poema
citado atrs difere do citado a seguir:
1
Para escrever
preciso
ter pouco
que fazer
(tirando
esta quadra
no consegui hoje
escrever mais nada)
2
Quando a vida
madrasta
a arte
no basta
(entre pato e peru
este bicho
cruza-se comigo
no Campo Santana
Eva no faria melhor
do que eu
ao mundo para quadro de Isabelino
nada lhe falta, Rosa Alice)
Para escrever
preciso
dinheiro (p.392, 393)
Dia longo
Porque
preciso
pagar e caro
o carro
Dia curto
Viver
trabalhar
o trabalho

88

lazer
( laser) (p.460)

, pois naquele o amor um valor mais alto (que se alevanta, como diria Cames), em
detrimento do dinheiro, que uma necessidade prtica e absoluta no sentido real e
cotidiano.28 No entanto, neste poema, o dinheiro aparece como condicionador da
escrita,29 pois para escrever/ preciso/ dinheiro e ter pouco que fazer. Assim sendo, se
por um lado tempo dinheiro, como o capitalismo american way of life sugere, o tempo de
sobra, ou sem ter o que fazer, o que permite a escrita do poema. Dinheiro e literatura
acabam unidos, no s na estrutura sinttica do ttulo do primeiro poema aqui citado, mas
tambm numa intrigante associao de valor. A respeito disso, sobre o mesmo poema, falanos Maria Christina de Azevedo Gomes, em um belo texto intitulado Decifras ou de
Adlia:
[u]ma das mximas do capitalismo que para haver ricos h que haver pobres, o
lucro geralmente advm da subvalorizao do trabalho de outrem pelos donos dos
meios de produo. Selvagem o adjetivo que compe o sintagma mais usual
quando falamos de nosso sistema econmico; o capitalismo selvagem e a lei da
selva a manuteno da cadeia alimentar. O poema deixa pairando no ar uma
dvida: para que essa desafortunada viva se encontre mendigando, ou o editor
subvalorizou o produto do trabalho de seu marido escritor, ou a lei da selva
passou a dominar tambm o interior da dinmica familiar em que o mais forte
engole o mais fraco. (2010, p. 217)

Os poemas at agora citados sugerem que o dinheiro, temtica usualmente marginal


poesia, desempenha um papel que vai da resistncia resignao, do desconforto ao

28

No captulo anterior j apresentei o dilogo de Cames e Adilia, mas em se tratando de dinheiro, talvez a
figura do vate seja incontornvel. Como epgrafe desta seo cito dois versos da proposio dOs Lusadas
referentes parte histrica do poema que narra a aventura mercantil, da qual a cor do metal o poeta
quinhentista nunca viu, pois desta viagem histrica ele nunca participou, pois Luis de Cames no Vasco da
Gama, nem nenhum outro baro assinalado dos que Passaram ainda alm da Taprobana.(Lus, I, 1,4)
29
Cabe aqui um dado biogrfico. Adlia, em uma nota da sua Dobra, informa-nos que Sete rios entre
campos, Irm barata, irm barata e O regresso de Chamilly foram escritos com o apoio de uma bolsa de
criao literria do IPLB [Instituto Portugus dos Livros e Bibliotecas] (Nota da autora), que lhe foi atribuda
em 1999.

89

enfrentamento. Vejamos que a ttulo de viva/ do escritor, a mulher pedia dinheiro av


do sujeito lrico. Este uma personagem que s cuida da narrativa, ou melhor, de faz-la,
no investiga a histria, pelo menos no direta e declaradamente. No entanto, esse sujeito
quem d o ttulo de viva viva do escritor. Poderia ser de marquesa, de princesa, de
baronesa, mas de viva do escritor. Ou seja, a palavra que atribui a relao social da
mulher com o falecido escritor a mesma que confere nome de dignidade ou de profisso.
Sem falar que ttulo afere tambm a qualidade e a capacidade, pois em um concurso, por
exemplo, tem aptido e competncia quem apresenta mais ttulos.
A narrativa de Adlia Lopes, em Dinheiro e literatura traz lembrana a tena que
Lus de Cames recebia por ter sido soldado na guerra, como j observou Luis Maffei sobre
o mesmo poema. Nas palavras de Luis,
[s]e na narrativa do poema h esmola e no herana ou penso, fica sugerida
outra narrativa, esta presente na histria da literatura portuguesa. Refiro-me
tena que continuou sendo paga me de Cames depois da morte do poeta. A
razo da tena no foi a obra do escritor, mas os servios que ele prestou Ptria
como soldado. Diz-se que Cames morreu pobre, vivendo da esmola pedida
por seu escravo javans. A imbricao impe-se: na contemporaneidade do
poema de Adlia, o escritor morto e sua viva pede esmola, e o jogo
envolve um editor, algum que, nesse caso, assume as vezes do capitalista. Na
memria camoniana, por outro lado, a esmola no se deve a obra alguma, pois
no foi na condio de me do poeta morto que a me do soldado morto seguiu
sendo paga. (22/09/2010)

Entretanto, para o imaginrio, numa afvel combinao entre mito e histria, o vate
recebia este pagamento por seu trabalho como poeta, mas [m]uito j se discutiu se essa
tena tinha origem na sua atividade de poeta ou de soldado, ou em ambas; muito se
ponderou a real quantia, assim como quem a ia buscar ao palcio. (Boechat: 13/ 03/ 2010).
Sophia de Mello Breyner Andresen, em Cames e a tena,30 canta a humilhao do vate.

30

Cito o poema: Irs ao pao. Irs pedir que a tena/ Seja paga na data combinada/ Este pas te mata
lentamente/ Pas que tu chamaste e no responde/ Pas que tu nomeias e no nasce.// Em tua perdio se

90

Ao tratar deste poema de Sophia, Virginia Boechat entende que a partir do valor dado
pelas palavras de Cames leitura e ao entendimento da obra, numa primeira aproximao,
que o poema andreseniano veja na penso a recompensa em dinheiro por algo que no
tem preo uma forma de humilhao. (Boechat: 13/03/2010)
Se a Cames era paga uma tena, O poeta de Pondichry segundo livro de Adlia
Lopes, publicado em 1986 pela Editora Frenesi recebido por Diderot, que se preocupa
com a fortuna do mau poeta e aconselha-o a partir para Pondichry e a enriquecer l
(p.43), como nos informa a autora em uma nota de introduo. O poeta de Pondichry um
conjunto de doze poemas que narra a histria de um jovem que escreve versos (p.43). Na
opinio de Diderot (p.43), os versos so maus. Para Jorge Fazenda Loureno, a partir
deste argumento ou das questes por ele suscitadas [] que Adlia Lopes vai inventar uma
histria prpria, nela (re)construindo aquela que , j, a sua personagem. (22/11/86). As
perguntas do segundo pargrafo da nota introdutria do livro indicam um agudssimo
entendimento dos mecanismos da ironia e da irriso. Cito a nota de Adlia Lopes:
[p]orque que o mau poeta deve ir para Pondichry e no para outro lugar? Porque
que os seus pais so joalheiros? Porque que juntou 100 000 francos? E porque
que passou doze anos em Pondichry? No sei explicar. O que me atrai
precisamente isto: Pondichry, pais joalheiros, 100 000 francos, doze anos (p.43)

Diderot, o filsofo e escritor do sculo XVII, transformado em Diderot (ou quem


fala por ele em Jacques Le Falaliste), no livro de Adlia Lopes. O Diderot de Adlia
recomenda ao jovem que escrevia maus versos partir para Pondichry e enriquecer l, E a

conjuraram/ Calnias desamor inveja ardente/ E sempre os inimigos sobejaram/ A quem ousou seu ser
inteiramente.// E aqueles que invocaste no te viram/ Porque estavam curvados e dobrados/ Pela pacincia
cuja mo de cinza/Tinha apagado os olhos no seu rosto.// Irs ao pao irs pacientemente/ Pois no te pedem
canto mas pacincia.// Este pas te mata lentamente (ANDRESSEN: 2004, p. 72)

91

que sobretudo no publique os versos (p. 43).31 Esta pequena narrativa contada em doze
poemas funciona como uma metfora irnica da condio potica eis que volta a lume a
ironia.
Pondichry, situada na Costa de Coromandel, na ndia, um lugar multicultural que
combina ioga e cincia. Por que, para Diderot, um dos primeiros autores que faz da
literatura um ofcio, este seria o lugar apropriado aonde o jovem que fazia maus versos
deveria ir para fazer fortuna? A pergunta o que interessa a Adlia e, apesar de a mim
interessar tambm, deixo aqui a questo de lado para pensar no na ida para Pondichry,
mas sim na volta do jovem para perto de Diderot, a quem O poeta de Pondichry deve a
fortuna e os desgostos. No poema II do livro, lemos:
31

Transcrevo o trecho do romance de Diderot em que o Poeta de Pondichry aparece: No, no, a histria
do poeta de Pondichry, a histria do poeta de Pondichry. Um dia veio a mim um jovem poeta, como
acontece diariamente... Mas, leitor, que relao h entre isto e a viagem de Jacques, o Fatalista, e de seu
amo?... A histria do poeta de Pondichry. Depois das exortaes ordinrias minha sagacidade, gnio,
gosto, bondade e outras coisas, das quais no acredito numa s palavra, por mais que venham me repetindo
tudo isso h mais de vinte anos e, talvez, de boa f, o jovem poeta tirou um papel do bolso: - So meus versos
disse-me. Versos! Sim, senhor, e espero que tenhais a bondade de dar vossa opinio sobre eles.
Apreciais a verdade? Sim, senhor, e pergunto-vos qual . Ireis saber. O qu?! Sois tolo o bastante para
crer que um poeta venha buscar a verdade junto a vs? Sim. A ponto de dizer-lha? Seguramente! Sem
contemplao? Sem dvida: c contemplao mais cultivada seria apenas uma ofensa grosseira; fielmente
interpretada, significaria que sois um mal poeta. Como creio que sois bastante forte para ouvir a verdade,
posso ainda vos dizer que sois um homem insosso. E a fraqueza sempre teve xito junto a vs? Quase
sempre... Li os versos de meu jovem poeta e disse-lhe: - Vossos versos no so apenas ruins; foi-me
demonstrado tambm que nunca fareis bons. Ento devo continuar fazendo maus versos, pois no consigo
deixar de faz-los. Eis uma terrvel maldio! Senhor, concebeis em que espcie de aviltamento incorrereis?
Nem os deuses, nem os homens, nem as colunas perdoaram a mediocridade aos poetas; foi Horcio quem
disse. Eu sei. Sois rico? No. Sois pobre? Muito pobre. E ireis juntar pobreza o ridculo de ser
mau poeta ... Perdereis vossa vida, ficareis velho. Velho, pobre e mau poeta. Ah! Senhor, que papel! Estou
ciente de tudo isso, mas sou levado, minha revelia ... (aqui Jacques teria dito: Mas isso est escrito l em
cima.) Tendes pais? Tenho. Qual sua posio? So joalheiros. Fariam algo por vs? Talvez.
Muito bem! Procurai vossos pais, propondo-lhes que vos adiantem uma trouxinha de jias. Embarcai para
Pondichry; fareis maus versos no caminho, mas, quando chegardes, enriquecereis. Uma vez feita vossa
fortuna, voltai a fazer aqui tantos maus versos quanto vos aprouver, conquanto no os mandeis imprimir, pois
no cumpre arruinar ningum... H mais ou menos doze anos deu este mesmo conselho a um moo que veio a
mim; hoje no seria capaz de reconhec-lo. Fui eu mesmo, senhor disse-me, que enviastes a Pondichry.
Fui at l, juntei uma centena de mil francos. Voltei, pus-me a fazer versos, e eis o que vos trago... Ainda so
ruins? Ainda. Vossa sorte est selada; nada posso fazer, seno consentir que continueis a fazer maus versos.
exatamente essa a minha inteno... (Diderot:1993, p.45)

92

1
Para qu sacrificar mais uma pgina em branco?
se ainda se escrevesse em peles de bezerros recm-nascidos
atrevia-me a sacrificar bezerros recm-nascidos?
acho que sim
2
Vou dedicar todos os meus poemas a Diderot
escrevo s Denis
ele sabe que esse Denis
eu tambm
as outras pessoas no
no h embaraos
3
Se no tivesse conhecido Diderot
dizia hoje coisas diferentes das que digo hoje
devo-lhe a minha fortuna e os meus desgostos
4
Mercurocromo bofetadas caf com leite pio
toda uma vida em vista de um poema
de que Diderot no gosta (p.46)

A personagem Diderot causa no jovem (mau) poeta uma dependncia


combinada a uma relao de admirao e devoo. No entanto, tornando esta vinculao
ainda mais esquizofrnica, h tambm um imenso incmodo do Poeta de Pondichry por
viver submetido a esta relao. O jovem poeta dedica seus poemas Denis em francs
, por assim supor que no haver embaraos. Na estrofe em que o substantivo
embaraos aparece, o Poeta de Pondichry fala da sua dedicao a Diderot, primeiro
porque ele vai dedicar todos os poemas quele mestre e segundo porque, desde a ida para
Pondichry at o asilo onde o fecharam32 (p.56), como vemos no ltimo poema do livro,

32

Cito o poema XII, na ntegra: Deixei crescer muito a minha unha do indicador direito/ para poder escrever
os meus poemas nas paredes da cela/ porque no asilo onde me fecharam/ no me do tinta nem papel para
escrever/ escrevo durante a noite/ porque durante o dia os asilados/ que esto na cela comigo/ esto sempre a
espiar-me/ e quando os outros se pem a olhar para mim/ deixo de saber como me chamo/ tenho saudades do
meu quarto/ no alto da torre de marfim/ que mandei construir em Pondichry/ chamava o meu criado/ com um
sistema de campainhas/ porque a torre tinha mil e sete degraus/ pensava que se Diderot fosse a Pondichry/
no podia deixar de me visitar/ mas Diderot foi a Pondichry/ e no me visitou/ agora quando batem porta

93

os gestos do jovem poeta so voltados para o gosto de Diderot. Podemos observar isso nos
versos no sei sobreviver a Diderot/ Diderot pouco se importava comigo (p.56), em que o
Poeta de Pondichry confessa flagrantemente, por saber da morte de Diderot, a sua
insignificncia para este, mais que isso, a pequenez que era a sua existncia diante da
grandiosidade de Diderot.
A ideia de sacrifcio que inicia o poema, ao mesmo tempo em que salienta a posio
crtica de Diderot, mostra o atrelamento afetivo do jovem poeta a seu mestre. Isso porque
Diderot que o jovem poeta admira tanto a ponto de dedicar toda uma vida em vista de um
poema/ de que Diderot no gosta, com a vontade de que ele goste, na verdade. Entretanto,
ao mesmo tempo, a dvida em sacrificar bezerros recm-nascidos, assim como sacrifica
mais uma pgina em branco, acentua, ainda que levemente, certa falta de crena na
crtica de Diderot.
O dcimo segundo poema de O poeta de Pondichry narra o triste fim do jovem
poeta que, em uma cela, juntamente com outros asilados, teme que no possa mais
escrever.
Deixei crescer muito a minha unha do indicador direito
para poder escrever os meus poemas nas paredes da cela
porque no asilo onde me fecharam
no me do tinta nem papel para escrever
escrevo durante a noite
porque durante o dia os asilados
que esto na cela comigo
esto sempre a espiar-me
e quando os outros se pem a olhar para mim
deixo de saber como me chamo
tenho saudades do meu quarto
no alto da torre de marfim
que mandei construir em Pondichry

da cela/ penso primeiro que Diderot/ que me vem visitar/ mas lembro-me de que Diderot morreu/ e fico com
medo de que seja algum/ para me cortar as unhas (p. 56, 57)

94

chamava o meu criado


com um sistema complicado de campainhas
porque a torre tinha mil e sete degraus
pensava que se Diderot fosse a Pondichry
no podia deixar de me visitar
mas Diderot foi a Pondichry
e no me visitou
agora quando batem porta da cela
penso primeiro que Diderot
que vem me visitar
mas lembro-me de que Diderot morreu
e fico com medo de que seja algum
para me cortar as unhas (p. 56-57)

O poema descreve o final do Poeta de Pondichry, que se esquece da morte de


Diderot, e, por isso, muitas vezes ainda acredita que o escritor o ir visitar, expressa a dor
deste jovem poeta dor de ter sempre algum a interditar a sua escrita. No princpio foi
Diderot, que, mandando-o para Pondichry, queria que o jovem parasse de escrever e
fizesse fortuna. E agora, no final da sua trajetria, o fantasma de Diderot que o assusta.
Pois, mesmo morto, algum, assim como Diderot faria se vivo, pode cortar suas unhas,
mantidas grandes para que ele possa escrever poemas nas paredes da cela, na falta de
papel e tinta. J no mais uma questo sacrificar o papel, como fora no segundo
poema; o que o asilado de Pondichry quer poder, ao menos, escrever.

3.3. O reino de Adlia Lopes por um espelho


O espelho uma chama cortada, um astro
Herberto Helder

Como marcas registradas de seu trabalho potico, Adlia Lopes se vale da ironia e
do pastiche, possivelmente com o intuito de subverter certos paradigmas convencionais da
poesia lrica. Esse carter subversivo conquistado pela poeta, por exemplo, atravs da
incluso de ditos populares ou frases feitas. Exemplo dessa empreitada de deslocar textos

95

para a poesia o seguinte dstico, fruto de um deslocamento de sentidos na frase do Rei


Ricardo III:
O meu reino
por um espelho (p. 30)

O rei, que teria a sua vida retratada na pea de William Shakespeare, mostrou-se
vacilante, influencivel e, em certas circunstncias, tirnico e vaidoso. O rei
shakespeareano, agonizando em vias de perder uma batalha, diz: Meu reino por um
cavalo, cannica frase que Adlia, como de costume, ironiza e transforma em O meu
reino por um espelho. Desse modo, Adlia no s desloca reis, mas tambm sentidos,
afinal, o poema Ricardo II fruto de uma transferncia de sentidos da frase do Rei
Ricardo III. Adlia, ainda, desarticula o concreto, representado pelo cavalo, e d lugar a
espelho, que, embora um substantivo tambm concreto, abre um espao, de certa forma,
egoltrico de subjetividade. Essas caractersticas fazem de Adlia uma poeta ironista, como
a chama Rosa Maria Martelo, a partir de uma leitura de Rorty:
Em termos rortyanos, o principal alvo de desconfiana de uma ironista o senso comum, e,
para a ironista, o senso comum , antes de mais, uma linguagem que s pode ser objecto de
distanciao mediante o recurso a outra linguagem. por esse motivo que Rorty considera que
uma das condies do reconhecimento de uma ironista passa pela facto de ela ter dvidas
radicais e permanentes sobre o vocabulrio final que correntemente utiliza, por ter sido
impressionada por outros vocabulrios, vocabulrios tidos por finais por pessoas ou livros que
encontrou. (2004, p. 110)

Adlia, a ironista, a desconfiante da poesia, traz o espelho, tanto como detentor da


capacidade de refletir o outro, quanto como pretexto para diversos desdobramentos da ideia
de autoimagem. O vocbulo espelho, presente no s em Ricardo II, mas tambm em
mais trs poemas da rvore cortada de Adlia, representa a exteriorizao do eu lrico
velado, ou melhor, disfarado, desfocado, j que o objeto espelho, como se sabe, revela-nos
o exterior. Lacan afirma que o espelho ilustra o carter de conflito da relao dual

96

(Lacan: 1995, p.15), sendo assim, seria a possibilidade da imagem do outro. Esse
deslocamento de vocbulos tende a apontar a valorizao da subjetividade, um importante
componente, sabido, do fazer potico. Ou seja: Adlia no estaria s a fazer Um jogo
bastante perigoso com significantes e significados, mas tambm pensando a poesia. Nesse
contexto, ao deslocar palavras e sentidos, Adlia est propondo uma inverso de valores e
significados, como se o seu prprio texto fosse um espelho. Mais ainda, oferece um
espelhamento de textos, como afirma Clia Pedrosa:
Adlia sintetiza exemplarmente, entre outros tantos, nos dois poemas quase geminados,
intitulados Lus da Baviera e Ricardo II, que se seguem e se espelham na mesma pgina
de Le Vitral la nuit (p.30) (...) A minha sombra/no minha/ O meu olhar no meu/ Quem
me roubou/ o meu eu/ seno eu?, diz o primeiro; O meu reino/por um espelho, ecoa o
segundo, fazendo retornar tambm a memria de outras e antigas interjeies, desdobrando
Lus da Baviera e Ricardo II na figura ficcional de um terceiro rei ingls, agora aquele
tematizado por Shakespeare na pea Ricardo III. (2007, p.90)

Quando faz de seus poemas espelhos, Adlia, alm de inverter sentidos, ope
vocbulos de campos semnticos diferentes. No poema a seguir Adlia coloca espelhos e
freiras no mesmo ambiente potico
Nos quartos
das freiras
no h
espelhos
Nas igrejas
no h
espelhos
Os espelhos
So o diabo (p.577)

Embora os significantes ocupem espao idntico, seus significados participam de


campos semnticos diferentes, pois freiras so as religiosas que fazem votos de pobreza e
de castidade, o que as levaria, em tese, a distanciar-se da vaidade. Mas vaidade no
bastante associvel a espelhos? Como Os espelhos/ So o diabo, resta a Adlia coloc-los

97

no quarto das freiras, ou melhor, no mesmo espao que o vocbulo freiras, subvertendo a
inexistncia desses objetos refletores em terrenos sagrados, pois, nem Nos quartos das
freiras, nem Nas igrejas h espelhos. A vaidade aparece, nesses versos, duas vezes, ora
refletida nos espelhos, ora representada pelo diabo. Mais: no seria o diabo, ou melhor,
a personagem bblica Lcifer, o incentivador de atitudes pecaminosas? Sim, seria. O diabo,
portanto, igualado a espelhos, no pode estar presente no quarto das freiras.
Adlia articula de forma irreverente os fundamentos da tradio moderna literria ao
usar provrbios, ditos populares, frases cannicas na literatura etc. Todas essas dices so
trabalhadas por Adlia num processo de alquimia prpria, mas que se enquadra bem no que
Eduardo Loureno chama de alquimia dolorosa (s/d, p.185): alterao da dor, da
ausncia, da insuficincia e do descontentamento em poesia, transfigurao do mundo para
o eu, transformao do lixo em ouro (Loureno: s/d, p.185). Esse processo, que mimetiza
a relao da poeta alquimista com a modernidade, sintetizado nos versos que do nome
a este captulo e revelam em seu fazer potico uma busca pela beleza:
Quanto mais prosaico
mais potico
A poesia
(escreveu Novalis)
o autntico real absoluto
isto o cerne da
minha filosofia
quanto mais potico
mais verdadeiro (p. 592)

Adlia toma para si a afirmativa de Novalis, Quanto mais potico mais verdadeiro,
mas, como faz a seu modo, assim como substitui cavalo por espelho na frase de rei
ingls, aqui a equao de Novalis passa a ser Quanto mais prosaico/ mais potico. Nas
palavras de Rosa Maria Martelo,

98

[d]epois desse acerto adiliano, a posterior transcrio das palavras de Novalis


adquire um novo sentido, levando-nos a concluir que, sendo os versos mais
prosaicos os mais verdadeiros, eles tambm sero, por consequncia, os mais
poticos. Ou seja: um trao essencial da poesia adiliana a busca de uma
autenticidade potica cujas razes romnticas so aqui explicitadas, e da qual o
prosasmo daquilo a que ela chama de quotidiano se torna condio
indispensvel. (Martelo: 2010, p. 240)

As articulaes com a modernidade feitas por Adlia devem-se ao fato de haver,


nesta poesia, uma espcie de reviso da histria da literatura (muitas vezes portuguesa),
que, ao ser visitada pela poeta, distorcida como se ela usasse um espelho. Adlia Lopes
espelha-se no passado para atualiz-lo, e se vale do pastiche, que, para Fredric Jameson,
uma caracterstica da ps-modernidade, trabalhando, no o humor, mas sim a ironia
(Jameson: 1993, p.98). desse modo que o fascnio pela heresia (Gay: 2009, p.20) se
configura na potica adiliana, em que o lema de Ezra Pound: Inove! (Pound apud Gay:
2009, p.20) articulado tradio literria. A inovao do projeto literrio Adlia Lopes
no est no uso dos clichs, das situaes do cotidiano ou de outra qualquer dico
incomum em poesia lrica, mas sim no espelho usado por Adlia para estabelecer essas
tantas rupturas.
O objeto espelho mostra o exterior, e, na poesia de Adlia, representa a
exteriorizao do eu lrico velado, ou melhor, disfarado, desfocado, mascarado. Talvez por
isso, ainda que A poetisa no seja uma fingidora na sua potica, a linguagemmscara// mascara. Adlia uma poeta de mscaras. Neste projeto mascarado, possvel
que Adlia procure um encontro com seu eu (Quero coincidir comigo mesma) por, em
certa medida potica, precisar de solido:
Preciso
de solido
como de po
Preciso

99

de po
como de po (p. 572)

Luis Maffei, sobre este poema, afirma:


[p]ara a arte para os outros, portanto, precisa de solido o artista. Precisa de
solido Adlia Lopes (...). O jogo sutil, e interessantssimo: o comparativo
comparativo mesmo. Mas no comparativo se for verbo. A poeta, assim, precisa
da sua solido como precisa de sua sobrevivncia afinal, a sobrevivncia do
poeta necessariamente solitria. Por outro lado, quando precisa de sua
solido, come po a poeta, pois isso que alimenta o homem, no versos,
no espelhos. (22/06/07)

Se concordo com Luis e com Adlia quanto a nem espelhos, nem versos,
alimentarem o homem, talvez seja graas ao poema
A solido
um beco
forrado
de espelhos
onde o eco
do grito
corta
como facas
E o beco
fechado
como um cubo
gelado (p. 593)

Se A solido/ um beco/ forrado/ de espelhos, a solido de Adlia no um


espelho, mas sim um lugar, tal qual a casa de espelhos de circos e parques, que possui uma
parede coberta por uma superfcie extremamente polida, localizada na fronteira entre dois
meios pticos e que reflete a luz que sobre ela incide modo como o Dicionrio Houaiss
define espelho. No importa, aqui, entretanto, o plano forrado, mas sim o revestimento
detentor da capacidade de reflexo de imagens exteriores ao eu. Ou seja, os espelhos do
beco acabam por refletir o eu para o eu, tornando, assim, a relao impossibilitada de
realizao, mas, por outro lado, a poesia feita. Como afirma Herberto Helder em
entrevista revista revista Inimigo Rumor, Ler bem um poema poder faz-lo, refaz-lo:

100

eis o espelho, o mgico objecto do reconhecimento, o objecto activo de criao do rosto


(2001, p. 197).

3.4. Seria cmico se no fosse trgico


O humor, um dos primeiros cartes de visitas a quem chega a Adlia Lopes, est,
nessa potica, quase sempre flertando com o trgico. Em um poema, como o citado a seguir
A correspondncia biunvoca , o jogo verbal uma gramtica em que h uma sobra
lgica, mas falta estabilidade: feita uma proposio, que seguida de uma nova
proposio, que, ao ser estendida terceira proposio, desestruturada; o que observamos
uma instabilidade do jogo de humor, que passa a um desalento trgico:
A princesa tem um anel em cada dedo
tem um dedo em cada anel
tem mil anis
a princesa tem um sapato em cada p
tem um p em cada sapato
tem mil sapatos
a princesa tem um chapu em cada cabea
tem uma cabea em cada chapu
tem mil chapus
A princesa tem apenas o estritamente necessrio
(espera a princesa o seu primeiro e milsimo filho?) (p.65)

A princesa ter mil sapatos e mil anis cabe na economia do poema. Pelo menos
dois so os ps e vinte os dedos. O problema do poema a quantidade de chapus, pois se
a princesa tem um chapu em cada cabea, ela precisaria de pelo menos duas cabeas
para poder trocar de chapu, e, assim, ter uma cabea em cada chapu. Como A
princesa tem apenas uma cabea, o verso deveria ser ento a cabea em cada chapu, e,
assim, sobram sempre 999 chapus. O riso neste poema se apresenta na imagem que

101

possivelmente nos vem cabea: a princesa divertindo-se (entre a dvida e a satisfao)


com seus milhares de adereos (anis, sapatos e chapus) como se se preparasse para entrar
em uma passarela de qualquer fashion week. O efeito divertido neste poema surge
quando se desdobra um smbolo ou emblema no sentido de sua materialidade, tendo-se em
mente conservar o mesmo valor simblico do emblema (Bergson: 1983, p.57). Os anis,
sapatos e chapus da princesa estabelecem uma lgica de falta e de excesso, com
efeito de um emblema para a proposio final: os mil filhos. O nmero milionrio de
filhos, para Silvestre, lgico, j que a princesa esper[a] o seu primeiro e milsimo
filhos, pois contra a mesma lgica o milsimo seria, ainda e sempre, o primeiro.
(Silvestre: 199, p.52)
A moral da histria no poema da princesa de que, pela lgica de correspondncia
das coisas (neste caso filhos e adereos), temos apenas o estritamente necessrio. Como
se o suposto, ou melhor, o imaginado (pelo leitor) espao fashion de excessos e gastos fosse
substitudo por uma lgica que associa, a cada um dos elementos de um conjunto, um nico
elemento de outro conjunto: anis e dedos, sapatos e ps. A falha existe quando tentado
um plural para chapus, se na sintaxe do poema a princesa tem uma cabea.
Se eu quiser atribuir uma heroicidade a esta princesa, teria de desconsiderar o que
diz Bergson sobre a ateno a materialidade dos heris, pois
o poeta trgico tem o cuidado de evitar tudo o que possa chamar nossa ateno
para a materialidade dos seus heris. Desde que ocorra uma preocupao com o
corpo, de temer uma infiltrao cmica. Da os heris de tragdia no beberem,
no comerem, no se agasalharem. Inclusive, na medida do possvel, nunca se
sentam. Sentar-se no meio de uma fala seria lembrar que se tem corpo. (Bergson:
1983, p. 28)

Isso porque, assim como chapus, sobra corpo, no sentido sinttico e no biunvoco,
neste poema. Falo aqui de um corpo em ao, pois apesar da inao do verbo ter que liga

102

o sujeito e o predicado, a princesa tem ________, tambm o movimento, a fora que


movimenta o poema em uma correspondncia biunvoca. A falta de cabea, no entanto, ou
melhor, a existncia de apenas uma cabea, aponta a falha deste projeto de
correspondncia. Neste caso, ter apenas o estritamente necessrio no satisfaz a
economia do poema, pois neste circula a ideia de uma tragicidade: saber que o
estritamente necessrio s vezes sobra, s vezes falta, e, portanto, a conta nunca fecha
exata.
Adlia Lopes, A domadora de crocodilos, mete a cabea na boca desse rptil todos
os dias, arriscando a pele e ganhando o po (de cada dia), como Prometeu, que
acorrentado ao cume do monte Cucaso, todos os dias tinha seu fgado dilacerado por uma
ave.
Todos os dias
meto a cabea
na boca
do crocodilo
O meu feito feito
de pacincia
J meti
a cabea
no forno
estava farta
dos crocodilos
e dos amantes
No tenho tido amantes
tenho tido crocodilos
Com os crocodilos
ganho o po
e as rosas
Morrer um truque
como tudo o mais
Dobrada
entre os crocodilos

103

dobrados
arrisco a pele
A pele a alma (p. 625)

Adlia Lopes, poeta trgica, pertence ao campo da arte apolnea pelo prazer que
haure da aparncia e do espetculo, mas, ao mesmo tempo, ela, Adlia, se nega a esse
prazer apenas e encontra uma satisfao mais alta em destruir o mundo visvel da
aparncia, o mundo sem redeno, em um [e]feito (...) feito/ de pacincia. O risco de
todos os dias meter a cabea na boca do crocodilo faz os sujeitos adilianos heris
trgicos, pois a poeta sabe que a qualquer momento o crocodilo poder mat-la apenas com
o impacto da sua mordida.
Assim, talvez em um sentido mais lato sensu, o trgico no mundo para o sujeito em
Adlia Lopes defrontado com um poderosssimo real circundante, no catrtico, onde, a
propsito, se d a diferena em relao ao trgico stricto sensu, como podemos observar no
poema em prosa que cito na ntegra:
Entre uma coisa e outra ponho outra, obstaculizo, crio obstculos, como se
gostasse de saltar obstculos, como se gostasse de falhar. Em criana, gostava de
cair do lajedo e de ficar com os joelhos a sangrar para a minha me me fazer
curativos cientficos piegas. Ca muitas vezes. A razo das quedas em cima dos
joelhos era eu ir a correr e levar muitas bonecas nas mos que nunca largava, de
modo que no me apoiava nas mos ao cair nos joelhos. Em Colares, ca muitas
vezes assim. A minha me, a meu ver hoje, tambm gostava de curativos. Nunca
ningum me disse, que me lembre, que no devia andar a correr com tantas
bonecas nas mos. Bonecas e acessrios das bonecas. Tinha muitos brinquedos.
A minha me comprava-me brinquedos quase todos os dias. Eu no fazia de
propsito para cair, mas andava de facto a correr com muitos brinquedos nas
mos e no evitava cair. Gostava de cair. H nisto, talvez, masoquismo,
perversidade. Mas tambm h sentido de responsabilidade porque as bonecas
eram minhas filhas e uma me no deixa cair as filhas ao cho. Digamos, a
brincar, que a minha me me deixava cair ao cho. Penso que isto que acabo de
escrever estranho. A relao com a minha me sombria, cheia de sombras.
Me e filha so como duas rvores que esto perto: vivem e morrem das sombras
que fazem uma outra reciprocamente (p.588)

104

O citado gosto pela queda da criana que antepara as suas bonecas e os seus demais
brinquedos, deixando seus joelhos carem no cho, ainda que no seja num gesto proposital,
uma marca, como o prprio sujeito entende, ainda que no conceitue, masoquista e
perverso. Na Potica de Aristteles, tragdia e comdia assemelham-se quando so
apresentadas como mmesis (1447), e diferem porque autores cmicos imitam homens
piores e os trgicos os imitam melhores do que realmente so na realidade (1448)
(Kangussu: 2008, p.59). Na poesia de Adlia Lopes, o risvel e o trgico so apresentados
como espelho um do outro. A queda da menina do poema anterior assemelha-se, portanto,
queda do artista tema trabalhado no captulo anterior quando abordei alguns dos dilogos
de Adlia. Se a queda do artista est subjugada ao declnio dos valores do nosso tempo,
preocupado em apenas tornar tudo mercadoria, como vemos com Debord, Marx e
Benjamin, neste poema a queda da menina espetacularizada pela perversa me.
O adjetivo sombria, para qualificar a relao de me e filha, acentua o que
podemos especular como sendo trgico em Adlia Lopes: Me e filha so como duas
rvores que esto perto: vivem e morrem das sombras que fazem uma outra
reciprocamente. Isso porque a me ridiculariza a filha que cai, como se a brincar a me
visse a constante queda da filha, sua rvore de sombras. Como se Adlia se inspirasse na
cena teatral em que a comdia apresentava o que os homens tm de ridculo, caracterizado
como defeito, torpeza andina e inocente (Kangussu: 2008, p.59-60). Afinal, a
observao, e at mesmo o incentivo, por parte desta me em relao queda da filha, levanos ao riso pela excessiva falta de verossimilhana, como sei o defeito desta me fosse
impraticvel no real, e, portanto, pouco remissivo a um sentimento de compaixo.

105

A mscara trgica de Adlia est sempre frente a frente com o cmico. Em No


more tears, outro poema de Adlia com tom de dirio tanto no sentido de todos os dias,
de cotidiano, portanto, como no de caderno para escrever experincias , observamos o
foco desta poeta nas pequenas perverses:
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha av
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mes so filhas das filhas
e as filhas so mes das mes
uma me lava a cabea da outra
e todas tm cabelos de crianas loiras
para chorar no podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um leno
sem uma lgrima
fechada chave na casa de banho
da casa da minha av
onde alm de mim s estava eu
tambm me fechava no guarda-vestidos grande
mas uma guarda-vestidos no se pode fechar por dentro
nunca ningum viu um vestido a chorar (p.125)

O poema citado pertence ao livro O decote da dama de espada, de 1988, sobre o


qual nos fala Ida Alves:
[o] que se conta nesse livro a crueldade que existe por trs de comportamentos e
valores de ordem, do bem e do belo. Construindo curtas histrias de carter
anedtico , de cenas provocativas de riso, h um forte trabalho de desconstruo
que no se exime de atingir qualquer nvel da estrutura social, e, por isso, uma
escrita que espanta (2004, p.48)

O trabalho de desconstruo que h neste poema causa espanto ao leitor, assim


como no poema em que a menina cai por incentivo da perversa me. Aqui e ali o trgico
se enrosca em uma comicidade perversa. Nas palavras de Lcia Helena, a personagem
trgica se debate entre duas ordens de fenmenos: pretende guiar-se por seu prprio carter

106

(ethos), mas est pr-determinada por um dimon (destino). prprio do trgico no optar,
mas revelar a conscincia trgica dessa ambigidade (1983, p. 25). O ethos desta potica
analisa o que de contemporneo h em nosso tempo, observando as brechas obscuras de
uma sociedade espetacularizante, como quem visa a reparar estas brechas. No que a poeta
de jogos, personae e dices comuns ao cotidiano pretenda corrigir o nosso tempo ou a
histria da literatura, mas sim efetuar um projeto em que mulheres-a-dias, freiras,
esquizofrnicos e transeuntes caminhem em tenso com as ambivalncias do nosso tempo.
A tragicidade em Adlia Lopes est na percepo da dificuldade de exercer um domnio
sobre as brechas, mas mesmo assim no poder optar por uma no ruptura.

107

4. CONCLUSO (?)
Crculo de poesia
um tapete
um olho
o Sol
um caracol
um espelho
uma espiral
um alvo
um ovo
uma maminha
uma aranha
Adlia Lopes

Termino aqui O [meu] projeto literrio Adlia Lopes, torcendo para que o projeto
literrio Adlia, ou Maria Jos, ou Mariana, ou ..., no termine com Apanhar ar. O
trabalho, que teve incio com a reflexo de Agamben acerca da obscuridade de nosso
tempo, ou melhor, com a ideia de que h uma capacidade do poeta contemporneo de
enxergar, ao invs de luz, escurido e trevas, aqui se finda, nesta pequena Concluso.
A disposio do ver o obscuro na potica de Adlia Lopes se d por meio da
intertextualidade e das referncias histria e literatura e, na maior parte das vezes, os
dilogos e as citaes esto articuladas a situaes do cotidiano e a intervenes do mundo
do marketing e da cultura pop. Longe de tentar forjar uma espcie de conceito de poesia
pop art, no que diz respeito potica de Adlia, ao observar a intertextualidade nessa poesia
e o domnio que a poeta rigorosamente contempornea tem em transformar o lugar-comum,
o cotidiano enfim, o prosaico em potico, cheguei s noes de espelhismo, de
resistncia da arte e, claro, de influncia e de intertextualidade.
No que diz respeito intertextualidade, na maioria das vezes, alm do uso claro de
citaes em epgrafes ou no corpo dos poemas, Adlia recorre interlocuo com outros

108

poetas e/ ou artes por meio de uso de personagens, o que em boa parte das vezes acaba
funcionando como mscaras da poeta ironista. As personae de Adlia Lopes muitas vezes
so como encarnaes de outros poetas e autores, ou mesmo personagens destes autores,
como o caso da Ldia de Ricardo Reis ou da Dinamene de Lus de Cames. Uma das mais
fortes representaes do jogo de personagens na potica de Adlia a lendria freira
Mariana Alcoforado. Independentemente de ser verdica ou no a atribuio autoral das
Cartas portuguesas, Adlia Lopes toma para si esta figura representativa da feminilidade
portuguesa, este smbolo da identidade nacional, como nos fala Anna Klobucka, e
transfigura-a em uma personagem sua. Originalmente, as Cartas Portuguesas so textos da
lendria freira, cuja escrita aflita e ansiosa em virtude da espera, muitas vezes sem nimo,
de respostas de seu amado, o Marqus de Chamilly, que no correspondia igualmente.
Mariana, ento, pede nas cartas respostas mais intensas, mais afetuosas, mais
comprometidas. A Mariana de Adlia Lopes, ao invs da espera e do sofrimento (o que
pode nos levar a compar-la ninfa das guas Clcie33), ao ser atualizada pela poeta
recebe
de braos abertos
agora h dois bebs
a berrar por Super Maxs
porta de uma pastelaria
de Beja
com o ar condicionado
avariado (p.427)

33

Cartas portuguesas apresenta uma gradao da Sror Mariana. Esta inicia as cartas pedindo para ser
amada; depois, pede compaixo; em seguida, afirma ver o seu amor aumentar, demonstrando que est no
limite; continua, afirmando no ousar pedir-lhe mais nada; e, finalmente, rompe em definitivo com qualquer
possibilidade de esperana para o seu amor. Esta transformao da freira pode ser vista com certo otimismo, o
que permite uma relao com o mito da ninfa aqutica Clcie que, por sofrer em virtude de seu amor por
Apolo, transformou-se em girassol.

109

. Isso porque, se a freira do sculo XVII, confinada em um convento em Beja, aguarda


ansiosamente por notcias de seu amado, a atualizada Mariana, em O regresso de Chamilly,
tem uma vida conjugal com direito a afazeres domsticos, como ir ao supermercado
com seu amado, que, apesar de ter sempre/ outras mulheres a fazeres (p.433), chega/ e
fica para sempre (p.427). Adlia Lopes radicaliza a tal ponto o mito da freira,
modernizando-a (num sentido mais lato sensu), que Mariana diz a seu amado Milly:
Milly cherry
tenho outras coisas
pra te dizero
de viva voz
cartas de amor
nunca mais
agora s escrevo cartas comerciais
No quero
ter filhos
gosto muito
de foder
contigo
e com outros
mas de bebs
no gosto
uma vez
por outra
tem graa
mas sempre
no
(...)
Portanto Milly cherry
s muito bem-vindo
a mulher (eu)
deixa
pai e me
e apega-se
ao homem (tu)
e so ambos
uma carne (p.437)

Outro exemplo, entre os tantos que podem ser elencados na potica de Adlia Lopes
no que diz respeito ao uso de pernonae, pensado aqui, no s como um processo de
interlocuo com a histria da literatura portuguesa, mas tambm como resultado de um

110

espelhismo, a trade Cames, Cesrio & Adlia. A ficcionalizao do renascentista e do


poeta de final do sculo XIX, seja com a transformao destes em personagem, seja com a
narrativizao de seus clebres poemas, torna-os mais uma fico adiliana e ajudam Adlia
a olhar-se ao espelho. quele primeiro, por ser incontornvel em literatura portuguesa
coube, aqui neste trabalho, ser invocado tambm numa srie de outros intertextos, como
quando, por exemplo, Dinheiro e literatura foi abordado. Ou ainda, quando o comentrio
sobre a religiosidade em Adlia que, ultrapassando os limites da bondade e da caridade, se
estabelece na relao entre o homem e o poder sobre-humano no qual se acredita ou do
qual se sente dependente (apud.:Gaader, Helter, Notaker: 2006, p. 15). A Cesrio, num
primeiro momento, coube ser o mediador da releitura adiliana do pico portugus, e, em
Falo Adlia. Falo Luiza, fazer a ponte de aproximao da potica dessas duas
Magnlia(s) lricas. Na verdade, com o autor de sentimento dum Ocidental tambm ficou
a tarefa de ajudar-me na reflexo acerca do feminino em Adlia Lopes. Este tema, no incio,
foi tratado como um modo de Adlia apresentar-nos questes modernas e urbanas. A seguir,
sem querer levantar nenhuma bandeira feminista, ou de qualquer outra marginalizao, o
tema do feminino foi o elo de aproximao das poticas de Florbela Espanca e Adlia
Lopes.
Adlia Lopes, atravs de temas pertencentes ordem do dia, como o dinheiro, critica
nosso tempo. Esta crtica tem como cerne o fato de a sociedade de consumidores, na qual
nos vemos imbricados e submergidos, no s no poder ser docilmente aceita, inclusive por
ser um produto da cultura de massas, como deve ser refletida e frequentemente colocada
em tenso, tendo valores humanistas (na falta de termo melhor) como contraponto. Neste
lugar de tenso, Dinheiro e literatura aquele associado sociedade de consumidores

111

que coisifica tudo e este humanidade , -nos exigida a reflexo por parte de Adlia,
que coloca o leitor diante de brechas a serem reparadas.
Ao fim deste trabalho, de extrema importncia considerar que Adlia no se
prope a corrigir valores, nem retificar o cnone literrio, menos ainda emendar
consideraes tidas como clssicas em literatura. O trgico que observo em Adlia Lopes
muitas vezes est no entendimento de que sua poesia cabe uma crtica radical
representao, realidade como est configurada e a aposta na imaginao e na linguagem
como possibilidade de recriao de um mundo (Lins: 2005, p.24) e no um concerto do
mundo. Ao enxergar o escuro, discursos de vrios tipos so transfigurados em uma
linguagem potica, que, preocupada com a falha, tenta recuperar valores contrrios
racionalidade dominante. Meter, Todos os dias, a cabea/ na boca/ do crocodilo
entender que a condio trgica do poeta deve ser respeitada e inexoravelmente mantida
como expresso de resistncia artstica. Adlia Lopes, portanto, com seus tantos jogos, faz
seu prprio Manifesto potico:
O autor (o actor)
tem de se levantar
e de se pr
como o Sol
o autor tem
de se expor
o autor tem
de pr ovos
de oiro (p.476)

Para, assim, a poesia, por ser um exerccio de linguagem que infere um labirinto de
significante e significados, fazer crculos(p.612) em torno de seu prprio eixo sistmico e
lingstico. Com uma organizao trgica e de resistncia, a linguagem potica adiliana v-

112

se a si prpria, articula, tensiona, expe, dialoga. Sistemiza e desorganiza. Ajusta e


contradiz. Repara e abre lacunas.

113

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