O Projeto Literário Adília Lopes
O Projeto Literário Adília Lopes
O Projeto Literário Adília Lopes
Rio de Janeiro
2011
Rio de Janeiro
2011
FOLHA DE APROVAO
AGRADECIMENTOS
famlia Menezes, nomeadamente Marina, Mariza e Paulo, pois cada um, a seu modo,
mostrou-me a importncia de valorizar a educao.
Andria Gis, pelo entendimento do que seja fraternidade, pelo pedido ao avio, por todas
as conversar que foram, so e sero,
Eliete Gis, pelas noites no dormidas, pelos afagos matutinos, pela vida,
a Adilson Menezes, in memorian, responsvel pelo muito que no pode acompanhar.
DEDICATRIA
a Luis, pelo dia de junho que possibilitou o que somos hoje. Pelas leituras, afagos, sorrisos,
poemas, passeios. Pela vivncia. Pela experincia. Pela existncia. Pelo entendimento dos
versos camonianos.
a Dioniso, a minha melhor obra. O meu aprendizado. O sorriso que me faz ganhar o dia. O
responsvel pelo meu desejo de que o mundo seja melhor.
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation focuses on the study of Adlia Lopes poetry from the perspective
that both the use of the poets pseudonym (Adlia Lopes) and the provocative
biogragrapical quotations used in her poetry, as well as the excessive uses of daily life
situations, are part of a literary, ethical and social project of the dissimulation. Being born
under the sign of Modernity, therefore being part of Fernando Pessoas tradition, Adlia
Lopes does not try to overcome the poetics of dissimulation. Nevertheless, as if having read
Jorge de Sena at the same time as Pessoa, Adlia Lopes unites the poetics of witness to the
poetics of dissimulation in a gesture for changing the world. Against some studies that
defend the proximity between life and writing in Adlias work, I stand for the idea that
there is a close connection between dissimulation and witnessing, instead of that of life and
writing. Therefore, this research is divided in two chapters. The first is dedicated to analyse
how the personae and the references to the historical and literary tradition, developed in
Adlias poetry, articulate to the world of pop. In the second chapter, considering the poem
that says quanto mais prosaico mais potico (the more prosaic the more poetic), this
research studies themes like worth and money, espelhismo, and, last but no least,
tries to discuss how Adlias poetry, as much as it is a priori devoted to humour, finds in
the tragic a key for interpretation.
SUMRIO
1 INTRODUO
10
17
31
42
49
57
62
3. O PROSAICAMENTE POTICO
70
72
76
82
94
100
4. CONCLUSO (?)
107
5. BIBLIOGRAFIA
113
FICHA CATALOGRFICA
10
1. INTRODUO
Com um livro intitulado Um jogo bastante perigoso, Adlia Lopes estreia em 1985.
Embora existam as dicotomias concreto x subjetivo, tocvel x intocvel, indicadoras de
uma poesia realista, pode-se afirmar que a potica adiliana se vale da realidade da
linguagem e no do realismo de fatos. A poeta tem na contemporaneidade o cerne de seu
projeto literrio. Este executado por Adlia, para Adlia enquanto projeto. Mas dizer que a
poeta de Apanhar ar ttulo de seu at agora ltimo livro contempornea, ou melhor,
que tem no contemporneo o centro de seu trabalho potico assaz, no mnimo,
redundante. Se trato de uma poeta que estreia, ainda que no sculo passado, em um tempo
contemporneo, e se esta mesma poeta completou, neste ano de 2011, apenas 51 anos, por
que especificar a contemporaneidade de Adlia Lopes?
Destaco neste trabalho a contemporaneidade de Adlia, dando a mo a Giorgio
Agamben, filsofo que para entender O que o contemporneo (2009, passim) parte da
ideia de que O poeta o contemporneo deve manter fixo o seu olhar no tempo. Para
pensar o contemporneo, Agamben segue adiante com a pergunta: Mas o que v quem v
o seu tempo, o sorriso demente do sculo?, que seguida da proposio:
Gostaria de lhes propor uma segunda definio da contemporaneidade:
contemporneo aquele que mantm fixo o olhar no seu tempo, para nele
perceber no as luzes, mas o escuro. Todos os tempos so, para quem deles
experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporneo , justamente, aquele
que sabe ver essa obscuridade, que capaz de escrever mergulhado a pena nas
trevas do presente (...). Pode-se dizer contemporneo apenas quem no se deixa
cegar pelas luzes do sculo e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua
ntima obscuridade. (Agamben: 2009, p. 62-63)
Adlia Lopes, como seu(s) jogo(s), desde a estreia, perigoso(s), divaga entre uma
possvel readequao de cantos (at mesmo camonianos?) e o entendimento de que a obra
de arte/ no um ajuste/ de contas (p. 269), para, assim como Jorge de Sena, perceber que
11
poesia, melhor que a qualquer outra forma de comunicao, cabe, mais que compreender
o mundo, transform-lo (1961, p.11). Com esses entendimentos, Adlia no se deixa cegar
pelas luzes de nosso sculo, conseguindo, assim, vislumbrar a ntima obscuridade
hodierna.
desse modo que a poeta exerce a contemporaneidade: articulando uma srie de
entropias poticas, enxergando, como se fotografasse (analogicamente) o mundo, ao invs
de sob luz, na escurido. Se fotografar escrever com luz, a poesia de Adlia registra o
mundo, escreve-o, grafa-o, percebendo no as luzes, mas o escuro. Essa grafia do escuro
no diz respeito apenas a ausncia de luminosidade, mas resultado das atividades das offcells, um produto da nossa retina (Agamben: 2009, p. 63). Isso significa, portanto, que, se
o escuro no resultado de uma inrcia, mas sim implica uma atividade e uma habilidade
particular (Agamben: 2009, p. 63), a potica de Adlia exerce uma grafia obscura.
Num primeiro momento, a poesia de Adlia, pelo demasiado uso do humor, pode
parecer solar e descompromissada com uma potica mais dedicada a alguma resistncia. No
entanto, a partir de leituras mais atentas e da observao dos registros de linguagem da
autora, o que percebemos um projeto literrio afinadssimo s ideias de resistncia
artstica de que nos fala, por exemplo Rancire, autor escolhido para o trato deste tema
nesta dissertao.
Em um poema como
No gosto tanto
de livros
como Mallarm
parece que gostava
eu no sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
12
o gracejo da poeta, por exemplo, comear o texto descrevendo a sua relao com os livros
como se ela no gostasse deles. Para tal tarefa, a poeta ope-se a Mallarm, pois este
parece que gostava de livros. Para Maurice Blanchot, ao dissertar sobre O mito de
Mallarm, [o] livro o smbolo dessa subsistncia autnoma, ele nos ultrapassa, nada
podemos quanto a ele e nada somos, quase nada, no que ele (1997, p.47). J para Adlia,
os livros que no so feito de carne e osso no podem substituir o abrao humano. Adlia,
assim como Cesariny, quer que gostem dela, e no de seus livros. A tenso se d quando,
no mesmo poema, os livros esto no Cu, ltimo lugar onde a humanidade estar (se
no no Inferno), para a crena Crist. O objeto livro para Adlia Lopes apenas um objeto;
talvez por isso,
Que o livro
v por gua abaixo
mas que maridos
me aconteam (p.361)
13
Adlia Lopes um projeto literrio por que seu nome de batismo maria jos?
Ou, o projeto literrio Adlia Lopes, ainda que este seja seu pseudnimo, o que a autora
busca como sendo o seu ponto de saciedade, a literatura? Ao longo deste trabalho, a ideia
de um fingimento adiliano, afim s caractersticas do pessoano, aparecer, sendo articulada
potica do testemunho de que nos fala Jorge de Sena no prefcio que escreveu para a
primeira reunio de sua poesia. Sofia Souza Silva sustenta que em vez de procurar
dissociar o texto do autor, a obra de Adlia investe freqentemente no inverso: colar o texto
ao autor(2007,32). Rosa Maria Martelo, em uma leitura semelhante de Souza Silva,
portanto embasada na proposta de que h em Adlia uma associao do texto ao autor,
afirma:
[a]o acentuar uma cumplicidade entre poesia e vida que a afasta da tradio de
impessoalidade, fingimento alterizao que foi determinante para a tradio da
poesia moderna, Adlia Lopes acabou presa a uma figura autoral muito marcada
pela condio autobiogrfica que os seus livros sugeriam. (2010, p.242)
Por outro lado, o que gostaria de colocar em relevo aqui que quando Adlia Lopes,
afirma, at insistentemente, que une vida e obra, acredito eu que seja to fingimento do que
14
qualquer outra coisa que se expressa pela linguagem potica. por este caminho, o
fingimento de toda linguagem potica, j que o poeta um fingidor, que podemos
aproximar Adlia Lopes da potica do testemunho de Jorge de Sena, que, ao contrrio do
que muitos insistem, no contraria, nem combate, o fingimento pessoano, mas sim
suplementa-o. Pois, com uma suposta superao da heteronmia artificial e no
revolucionria (1961, p. 12), Sena agrega ao fingimento um gesto de transformao do
mundo. E, assim, o testemunho cerzido ao fingimento:
[s]e o fingimento , sem dvida, a mais alta forma de educao, de libertao e
esclarecimento do esprito enquanto educador de si prprio e dos outros, o
testemunho , na sua expectao, na sua discrio, na sua vigilncia, a mais alta
forma de transformao do mundo, porque nele, com ele e atravs dele, que
antes de mais linguagem, se processa a remodelao dos esquemas feitos, das
ideias aceites, dos hbitos sociais inscientemente vividos, dos sentimentos
convencionalemente aferidos (Sena: 1961, p.11)
Adlia observa o mundo nos metros, nos autocarros, nas praas e nos cafs da
cidade, problematizada enquanto lugar de vivncia, de experincia e de testemunho. Como
seus passeios citadinos costumam ter uma personagem autobiogrfica, muitas vezes
podemos ter a impresso de que h uma manisfestao de uma vida na poesia de Adlia.
Para Lcia Evangelista,
quando pensamos a manifestao de uma vida na poesia de Adlia Lopes, o
fazemos a partir dessa vida que no meramente biogrfica numa concepo
mais lata. No se trata de uma enumerao de fatos. O que se trata sim de uma
bio-grafia, no sentido de uma vida que escreve a si em seus acontecimentos e
singularidades, uma vida que se mostra na linguagem, e que por ser assim trazida,
por ser assim atualizada atravs dos poemas, apresenta-se sempre atravessada
pelas foras que a constituem e que a constituem enquanto linguagem
(22/03/2011)
De fato, h uma grafia de uma bio- em Adlia Lopes, e tudo isso se d, claro, por
meio da linguagem e das aflies que esta pode gerar para o poeta. Se concordo com
15
Evangelista quanto a uma vida que escreve a si, porque em um poema como o que se
segue,
O 38 vai cheio
um homem
d-me belisces
no rabo
entre o Campo Pequeno
e o Saldanha (p. 341)
, Adlia revela em seu fazer potico uma busca pela beleza, segundo Sofia Sousa Silva: em
tudo que h de mais prosaico e nisso ela tem lvaro de Campos como um mestre ,
combinando com esse prosasmo a leitura da tradio literria (2007, p. 49). O autocarro,
O 38, transfigurado por Adlia como um espao de estranhamento para uma
personagem que leva belisces/ no rabo. A iluso ficcional perturbada pela poeta que,
entre estaes de metro, testemunha e experimenta o prosasmo de linguagem com o
humor da pequena narrativa experienciada no 38.
Adlia no pretende filiar-se ou criar um movimento que vise romper com a
tradio, mas sim estabelecer algumas rupturas, sendo que muitas vezes de mos dadas com
a tradio literria portuguesa, como vemos literalmente neste poema, que recupera, de
modo adiliano, uma famosa cantiga de Mantn Codax:
De mo dada
com meu amigo
vejo os filmes
de Jean Vigo (p. 314)
Tal como Sofia Sousa Silva, no enxergo Adlia Lopes como uma poeta de
vanguarda, mas sim como uma poeta rigorosamente contempornea. A ensasta, ao
aproximar, em sua tese de doutoramento, as poticas de Sophia de Mello Breyner Andresen
e de Adlia Lopes, afirma que [a] posio das duas ser no a de romper, como a das
vanguardas, mas a de continuar, olhar novamente, mudar o foco, refazer perguntas,
16
17
Quase todos os poemas de Adlia aqui citados so de Dobra, poesia reunida publicada em 2009, pela Assrio
& Alvim. Portanto, as referncias em que s aparecer o nmero da pgina diro respeito a Dobra.
18
19
Em Introduo histria da filosofia, Marilena Chau cita um dos mais celebrados fragmentos de Herclito:
[a] guerra (plemos) o pai e o rei de todas as coisas, para discursar acerca da luta dos contrrios, ou
melhor, sobre a guerra ser o que pe as coisas juntas para formar um mundo em comum. (Chau: 2002,
p.82)
20
ou o passeio
do defenestrado
nem o tero da me
agora morta
a libertao da queda
de Ado e Eva
Ado que me estende a mo
O cho pessimista
Escuro
como breu
o cho
me comeu (p.348)
21
Assim como o menor nasce do maior,o fraco do forte, o justo do injusto. (Cf. Plato: 1991, p.73)
22
Achados
Verbais
Achados
Vitais
Claros
como vitrais
claros
como claras (p.499).
23
24
25
sentimento
dum
ocidental
experimentado
pelo
Jorge Fernandes da Silveira, na abertura de seu ensaio Cesrio, duas ou trs coisas, afirma que [n]as suas
viagens em crculo pelas ruas de Lisboa, Cesrio acaba sempre beira dum rio fechado: o Tejo.
Corajosamente, no limite da cidade, ele o primeiro poeta portugus a sujar a vida da glria nacional:
Escarro, com desdm, no grande mar . (Silveira: 2003, p.153)
26
A cidade para Adlia Lopes, assim como a Soft city de Jonathan Raban,6 lugar em
que o fato e a imaginao simplesmente tm de se fundir (Harvey: 2008, p.17), como
lemos nos poemas a seguir.
No metro
cruzam-se as pessoas
como cartas de jogar
postas sobre a mesa (p.610)
O cu
sobre Lisboa
de to azul
branco (p.611)
Livro publicado em 1974, usado por David Harvey, em Condio Ps-moderna, como exemplo de modelo
de cidade: As cidades so plsticas por natureza. Moldamo-las nossa imagem: elas, por sua vez, nos
moldam por meio da resistncia que oferecem quando tentamos impor-lhes a nossa prpria forma pessoal.
Neste sentido, parece-me que viver numa cidade uma arte, e precisamos do vocabulrio da arte para
descrever a relao peculiar entre homem e material que existe na contnua interao criativa da vida urbana.
(Raban apud Harvey: 2008, p.18)
27
o rapaz quer-me
dar o lugar (p. 340)
Boa parte dos poemas de Adlia cujo tema o feminino, alm de colocar em tenso
algumas temticas urbanas, coloca em questo, recorrentemente, a autoimagem, o no-lugar
28
do corpo nos padres da sociedade. No como, por exemplo, Florbela Espanca, que, em
certo poema de Charneca em flor, quer Amar! Amar! E no amar ningum (1997, p.232),
ao ser o sujeito da ao, coloca em evidncia uma renncia aos valores machistas ao lhes
sobrepor anseios do feminino. Mais tarde, Adlia Lopes, em Florbela Espanca espanca,7
deslocar esse amor para um lugar mais sexual, ao substituir o verbo amar por um mais
restrito, foder. A mudana do verbo faz a leitura de Adlia, em certa medida, mais
concreta e, por isso, radical, visto que explicita uma das possibilidades do Amar!
florbeliano, uma vez que o verbo detentor de variadas possibilidades conotativas. Ainda
que Adlia Lopes radicalize versos da poeta do incio do sculo, ambas passam por
conventos, ou melhor, Adlia Lopes e Florbela Espanca confinam duas de suas
personagens, respectivamente Mariana Alcoforado e Sror Saudade. No espao de priso
religiosa, as personagens, embora em tempos e lugares distintos, encontram na angstia da
espera e do confinamento a representao de seus lutos pela perda do objeto de desejo.
A lendria freira Mariana Alcoforado resgatada e modernizada, tornando-se uma
personagem de Adlia Lopes, bem como a Bela Adormecida, Luis da Baviera e outros
nomes do imaginrio histrico-literrio, trazidos para dentro da potica adiliana. Estas
figuras, no obstante o fato de pertencerem originalmente a universos narrativos, seja no
contexto da histria ou das narrativas infantis, recebem, de Adlia, tratamento ficcional. O
O livro Florbela Espanca espanca, na mais recente recolha de poemas de Adlia Lopes, datada de 2009, teve
seu ttulo alterado para Versos verdes. Em uma Nota da autora, afirma Adlia: Reno aqui todos os meus
livros de poesia at a data. Os ttulos Obra e Poemas Novos eram demasiado ambiciosos. Mudei-os para
Dobra e Ovos. Mudei o ttulo Florbela Espanca espanca, que acho mau, para Versos verdes (p.7). Apesar de
a autora achar mau o ttulo, e neste estudo as referncias serem de Dobra, em vrios pontos do trabalho
citarei Florbela Espanca espanca, principalmente nos, como ao que se refere esta nota, se tratar de um
dilogo com a poesia de Florbela Espanca.
29
uso de personagens sugere uma afinidade adiliana com o fingimento formulado por
Fernando Pessoa, como observamos no poema
A poetisa
no
uma fingidora
Mas a linguagem-mscara
mascara (p.574)
Por outro prisma de observao, porm, o uso da biografia por uma poeta que
escolhe um pseudnimo, ressalto, leva-me a pensar que a lio do fingimento pessoano
aprendida por Adlia levada a uma radicalizao da prpria vida, como se no projeto
literrio Adlia Lopes, a autoria fosse condicionada a uma autorizao. autora dos versos
Este livro
foi escrito
por mim (p.375)
30
agrada imensamente, como a prpria afirma, cerzir vida e obra, o que fica marcado no
poema recm-citado, em que o complemento da locuo verbal foi escrito por mim.
Por outro lado, a mesma poeta diz ser uma fingidora. Ou melhor, A poeta uma
fingidora, assim como O poeta um fingidor (Pessoa: 1993, p. 171). Pergunto: quando
Adlia Lopes forja unir vida e obra no seria o mesmo fingimento que se manifesta em toda
e qualquer expresso potica? Ou seja, partindo do pressuposto de que a lio pessoana no
a de que ele um fingidor, mas sim a de que o poeta um fingidor, Adlia no uma
fingidora, Mas a linguagem-mscara/ mascara. como se a biografia de Adlia fosse
atravessada pela linguagem potica e, desse modo, significantes e significados danassem
uma suave msica microficcional de testemunhal fingimento8 e a grafia se impusesse
como escultura, ao, fingere.
Anna Klobucka, em seu estudo sobre a emergncia da autoria feminina na poesia
portuguesa, tambm observa a relao entre autoria e autorizao. Se aqui parto de um
pensamento sobre a unio entre vida e obra em Adlia Lopes, como parte de sua potica de
fingimento, para a pesquisadora polonesa esta afinidade examinada sob uma perspectiva
feminista. Cito a autora de O formato mulher:
[s]e estas configuraes [autoria e autorizao]se articulam inescapavelmente no
confronto com as linhas de fora (e franqueza) da tradio literria nacional em
que se situam, elas possuem tambm uma dinmica prpria que valer a pena
examinar, particularmente no que diz respeito herana secular da autoria do
feminino e da sua difcil e muito gradual autorizao.(Klobucka: 2009, p.272)
O empenho de Klobucka em fazer com que parte dos artifcios da potica de Adlia
seja uma representao do feminino compreensvel, j que a obra da ensasta dedica-se a
Seria interessante neste ponto refletir acerca do famoso prefcio que Jorge de Sena escreveu para a primeira
reunio de sua poesia. No entanto, deixo esta articulao para outro momento de minha trajetria acadmica,
talvez para a tese de doutoramento...
31
isto, como costume dos estudos culturais. Entretanto, neste trabalho, cujo cerne perceber
como Adlia Lopes um projeto literrio de (e para) si mesma, as intenes (existentes ou
no) de um gesto poltico feminino advindo de Adlia no vm ao caso. claro que o fato
de Adlia ser mulher e resgatar em sua poesia uma srie de personae no feminino pode
instigar seus leitores a lev-la a um marginal papel feminista, mas, como j afirmei, outros
valores se mostram mais urgentes de reflexo.
Adlia Lopes tem a intertextualidade como uma de suas marcas poticas, trao,
claro, de boa parte da poesia da modernidade em diante. Adlia, j se sabe, dialoga com
autores cannicos da literatura portuguesa como Cames, Fernando Pessoa, Cesrio Verde
e outros. A poeta de Adormecer (com algumas coisas de Maria Teresa Horta), neste
poema, intitula-se poetisa pop:
os meus amantes
no so Gilletes
(no so de usar
e deitar fora)
embora eu seja
uma poetisa pop
e no tenha amantes
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti9 (p.205)
Forte caracterstica, mais que isso, atributo marcante na poesia de Adlia o uso do
discurso da propaganda, do marketing, de expresses populares, de provrbios, bem como
de outras dices que podem ser consideradas pela tradio indignas de figurar num espao
9
Em sua mais recente obra reunida (Dobra, Lisboa: Assrio & Alvim, 2009) a adjetivao poetisa pop foi
retirada pela autora. Desse modo, a citao os meus amantes/ no so Gillettes/ (no so de usar/ e deitar
fora)/ gosto de adormecer/ a lembrar-me de ti.
32
lrico. Como ponto de fuga das menoridades recm-citadas, como se a poeta buscasse um
equilbrio em seu fazer potico, h a adio de todo um conhecimento literrio, como pode
ser verificado no poema de Um jogo bastante perigoso:
COM O FOGO no se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo (p.32)
O poema mencionado faz aluso a versos dos mais famosos de Cames: Amor
um fogo que arde sem se ver (Cames: 2005, p.35). Esse dilogo com o poeta do sculo
XVI uma homenagem e tambm uma constatao da banalizao da lrica amorosa
camoniana. Adlia Lopes recupera os versos camonianos unindo-os, de forma
caracteristicamente adiliana, a um dito popular, com o fogo no se brinca, a fim de
apontar para uma espcie de cristalizao do vate, o que, para Luis Maffei,
por um lado, pode atrair mais leitores para a obra, mas, por outro, pode esvaziar a
fora significativa do verso, pois o uso frequente tende a ser, progressivamente,
vtima de cristalizao. Adlia Lopes traz para seu poema a metfora camoniana
refletindo exatamente essa cristalizao, j que ela vem em conexo com uma
frase feita do idioma, com o fogo no se brinca (Maffei: 2004, p.174).
33
o fogo. Este no se v e queima muito, o que revela sua intensidade (ou o seu valor, a
sua qualidade para fazer uso de termos mais camonianos), e tambm a sua quantidade,
pois o mesmo fogo queima muito. Ao conectar, enfim, a metfora camoniana do amor
a uma dico popular da lngua portuguesa, Adlia elucubra a cristalizao dos versos
camonianos oriunda da repetio demasiada e descontextualizada.
Ainda em conversa com o poeta do sculo XVI, em um livro lanado em 1999, Sete
rios entre campos, Adlia rel os versos camonianos Transforma-se o amador na cousa
amada (Cames: 2005, p. 46) e Aquela triste e leda madrugada (Cames: 2005, p.106):
1
(anti-Cames)
bom
tu no seres
eu
bom
eu ser eu
e tu seres tu
A madrugada
no separa
o amado
da amada
no separa
nada
Que o livro
v por
gua abaixo
mas que maridos
me aconteam (p.361)
34
35
36
em portugus
mas isso feio)
a caca a merda pura
a literatice a artisterie no
patetice (p.479-480)
O po/ de cada dia/ que nunca faltou, uma pardia da orao Pai nosso, aquilo
de que Adlia Lopes se alimenta, pois o que a poeta come.10 Temos conhecimento de que
alimentar-se e comer so sinnimos. Mas o uso do verbo comer, sujeito de uma arte,
faz-me pensar que este po mais que nutre as necessidades vitais do corpo deste sujeito,
tambm lhe d prazer. Afinal, um parntese exclamativamente entusiasmado a meio da
primeira estrofe revela: (gosto tanto de comer!), e seguido por um dos gracejos de
linguagem de Adlia Lopes, que coloca a tradicional sobremesa portuguesa toucinho do
Cu, no Cu. O uso da letra maiscula nas duas vezes em que o vocbulo cu aparece
conota que a poeta refere-se ao Cu, morada de Deus, a quem Adlia agradece a comida
(agradeo a comida/ a Deus). como se o doce, de to bom, viesse do cu, onde se come
o toucinho do cu.
O livro A mulher-a-dias dividido em duas partes: Rua-rio e Cristo-osga. A
esta pertence o poema recm-citado, que, alm do nome Cristo no ttulo da segunda seo,
possui outras sugestes que remetem ao imaginrio cristo, como Maria, Meditao
sobre a meditao, Sou freira, Olhai para o cu, Tom e tantas outras que perfazem
este trecho do livro. Ainda neste mesmo poema, mas agora na segunda estrofe, vemos uma
10
Luis Maffei, em recenso a Le vitrail la nuit * A rvore cortada, livro publicado por Adlia em 2006, na sua
coluna 14, da revista eletrnica pequena morte, parte da ideia de que a poetisa come po e trabalha, por
isso ela uma mulher-a-dias. No texto intitulado Como po, poetisa, Luis diz ainda que A poetisa/ no
/ uma fingidora, Pessoa, Mas/ a linguagem-mscara/ mascara (p. 22): come po a poetisa, mesmo que
em estado de solido, apesar de que, se A solido/ engendra/ monstros, A hora/ do jantar/ a pior/ hora (p.
62), pois no h com quem dividir o divisvel po. As oposies, por conseguinte, podem ser desfeitas:
Acabou/ o tempo/ das rupturas// Quero/ ser/ reparadora/ de brechas (p. 24), mesmo que no se livre jamais
dos defeitos A casa da poeta, ou de qualquer poeta.(Maffei: acessado a 24 de maio de 2007)
37
38
Num projeto literrio em que uma rigorosa adepta da cincia divide espao potico
com uma poetisa seguidora de uma religio crist, que por sua vez frequentemente discorda
do cientificismo, os substantivos amadora e amante precisam ser investigados.
Parassinnimos que so, ambos dizem respeito ao amor e quilo que amado; o segundo,
no entanto, tambm aquele que experimenta o gozo e, barthesianamente falando, menos
um especialista do que algum que age em puro prazer. O que procede em busca do prazer
39
sbio amadora sbia , e o que ama inquieto: comoo e sabedoria unidos, talvez
em nome de um sentimento religioso de quem v sacrifcio na histria crist. A lagartixa
no se sacrifica, est sempre espreita, e Cristo, que j se sacrificou em nome da salvao
da humanidade, ou seja, que se deu por ns, est tambm na parede, preso a uma cruz,
espera de que o sujeito o perceba. A figurao do imaginrio cristo transfigurada a um
realismo de linguagem, quando Adlia, religiosamente porque religa a histria bblica ao
seu cotidiano, vivenciado na sua cozinha , observa que na casa (talvez qualquer casa?)
uma lagartixa ocupa a mesma posio que a imagem de Cristo na cruz.
Volto ao poema cujo clebre verso camoniano mais uma vez visitado. Ao invs de
uma osga, Adlia desta vez liga, ou religa (se eu quiser brincar com a origem do termo de
religio), Cristo a Cames. Depois de um breve sermo adiliano Cristo po e vinho/
fruto da videira/ e da seara/ do trabalho da mulher/ e do homem , dois versos suspendem
o discurso (o canibal no aberrante/ eu percebo-o), para, assim, introduzir o poeta
conversa religiosa. Em (anti-Cames), a necessidade de demarcao de tu e eu,
contrariando o verso camoniano, o que me faz aproximar Adlia de Cames. No outro, o
verso camoniano apropriado pela poeta quase que em um pastiche. Para Cames,
Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar; para Adlia,
num gesto mais animalesco, porque canibal, transforma-se o outro/ no eu/ em virtude/
de eu o comer. Se a coita era esperada com o poeta quinhentista desde quando a marcao
dos sujeitos imposta, o tu e o eu precisam ser demarcados. Agora, quando a citao
feita quase que parodisticamente, a poeta come o vate, afinal, este verbo tem uma
conotao sexual/ em portugus; ainda que seja feio, assim que .
40
Trato, claro, dos Dezanove Recantos de Luiza Neto Jorge, um texto dobrado sobre
o camoniano (SILVEIRA: 2008, p.11), como um poema de Adlia:
11
Refiro-me ao verso: Subitamente vamos pela rua, com a solido burocrtica dentro dos bolsos (Jorge:
2001, p. 31)
41
A obra
Dobra
o Cabo No
ou no (p.599)
(p.61)
42
Um livro no Sul/ salva Cames de morrer afogado, que Adlia afirma a salvao do poeta
pelo livro, ainda que a gente surda e endurecida (Lus, X, 145, 4) do Canto X leve Cames
a matar o poema. No mais Musa (Lus, X, 145, 1) a falta que se estabelece nos
Dezanove, no vinte, nem dez, recantos de Luiza, que no Recanto 19 v
por fim algum morrer
(...)
a sorrir inventando letras para o relato de tudo
o que na neve nveo e
do que nas letras h de esferas a rolar
de um para outro lado da inveno
(...)
ou: que no seu canto, pois, cantava. Assim termina (Jorge: 2001, p. 204).
Mas no para Adilia que, depois de salvar Cames com o livro, em 1987, escreve,
em 1999, no livro Sete rios entre campos, os j citados quatro versos finais de (antiCames), que cito novamente:
Que o livro
v por gua abaixo
mas que maridos
me aconteam (p.361)
43
44
O peixe apanhado o poema de Adilia, que, por sua vez, para Luiza, um duelo
agudssimo (Jorge: 2007, p.32), resultado de um processo potico de um animal longo
(Jorge: 2001, p.122) que o poeta. Animalesco o processo potico de ambas. Em Adlia
percebemos o longo animal, quando notamos que se trata de uma poesia que de forma
ambivalente eleva o banal e o prosaico a uma valor mais alto. Luiza trabalha austeramente
a semntica e a estrutura e, como afirma Gasto Cruz (no prefcio a Quinze poetas
portugueses do sculo XX),
ilustra o modo como (...) as buscas estilsticas e as incursses surrealizantes e
experimentais de variadssima natureza confluam e se fundiram, muitas vezes,
com o intuito de uma poesia realista (Cruz: 2004, p. 9).
45
Cito alguns versos deste poema de Luiza: Sem passares pelos lquidos/ sais do teu slido/ (...)/ Sem a
secura dos lquidos/ que secam pela viveza/ com que entram e com que saem/ e conferem um outro estado/
gasoso, mas no sublime,// tu passas, vivo, e rpido,/ embora cobre, vidente, com/ um fio de droga apurado/
no teu sangue voador (2001, p.119 ).
46
Em Luiza Neto Jorge, a porta roda ao invs da lua, a porta roda, geme,
facho, leme (2001, p.44), como se14 em um ciclpico acto. Foneticamente, o sintagma
A porta aporta: artigo + substantivo + verbo, e/ou dois verbos e/ou, ainda, verbo seguido
de artigo e substantivo, semanticamente a alargadura de palavras que se juntam em uma
expanso de versos independentes a comprovar que o poema estulto num silabar
(Jorge: 2001, p. 209). O Professor Pinto Peixoto prev, ironicamente, a entropia potica
de Adlia. E, evidentemente/ circunspectamente/ irremediavelmente mostra Luiza, em
Exame, ao senhor professor doutor que senhor professor doutor/ senhor professor/
senhor/ se// J passa da hora (Jorge: 2001, p.50), pois medimos o poema/ pela medida
inteira (Jorge: 2001, p.58), no por ques, como sugeriu o professor de Adlia, mas pelo
se no hierrquico, mas condicionadamente errante do tempo que passa.
14
A marca em itlico deste se, se d porque tentador citar o sede uma das parceiras de Luiza Neto Jorge
em Poesia 61, Fiama Hasse Paes Brando: gua significa ave// se/ a slaba uma pedra lgida/ sobre o
equilbrio dos olhos// se// as palavras so densas de sangue/ e despem objectos// se// o tamanho deste vento
um tringulo na gua/ o tamanho da ave um rio demorado// onde// as mos derrubam arestas/ a palavra
principia (BRANDO: 2006, p. 15)
47
No stio entrpico onde se colocam as poesias destas poetas, a rua -nos apresentada
ora como um espao, uma superfcie no caracterizada para Marc Aug (2007, p.78), ora
tambm como um lugar densamente ontolgico logo, em oposio a espao onde o
discurso, lugar de poder para Foucault, se faz. Para Adlia, A poesia/ no est/ na rua,
sendo, portanto, tempo/ de regressar/ a casa (p. 580), ou melhor, tempo de voltar
identidade ontolgica que est na casa, no corpo, na potica. Entretanto, como a
escrita de ambas radicalizam nas contradies e contradices, a mesma Adlia, em Dois
poemas sobre a minha rua, de Cadernos, escreve:
Quando encostam
ou abrem
o porto
do Ptio do Duarte
na minha rua sossegada
tarde
como se msicos
afinassem os instrumentos
antes do concerto (p. 605)
48
rua que se vai. pela rua. Ainda mais se A casa deserta rodar trs vezes no mesmo
poema, no sendo mais a porta aportada do outro j comentado poema.
O poema um duelo, mas tambm um um dedo/ agudssimo claro/ apontando ao
corao do homem (Jorge: 2001, p. 57), para Luiza. Um dedo que, para o projeto literrio
Adlia Lopes, conta o que as noes julgam infinitamente fteis, como vemos na
versificao que Adlia faz dos dedos:
meu menino
seu vizinho
pai de todos
fura bolos
mata piolhos (p.422).
49
inscreve uma revoluo nos instrumentos de estilo e composio, ditando sua maneira a
moda que lhe contempornea: ler o escrito e escrever o lido (Silveira: 1986, p. 160)
50
O riso e o escrnio do incio a este poema, com versos que fazem apologia a uma
revoluo sexual: Eu quero foder foder/ achadamente muito previsivelmente o motivo
de este ser um dos textos mais conhecidos e citados de Adlia Lopes. Mais adiante, no
mesmo poema, a revoluo/ faz-se na casa de banho/ da casa/ da escola/ do trabalho, e a
revoluo e o desejo de foder so de tamanha proporo que o choro da beb/ no
impede a me/ de se vir. Contudo, o sujeito potico adiliano discute: hoje o sexo uma
forma de relao de prazer entre os seres ou somente uma relao de poder, pois a
gestora avalia/ a empresa/ pela casa de banho? Sendo a casa de banho, alm da casa,
da escola, do trabalho, um dos espaos para a intimidade de corpos, por outro lado,
tambm, ao mesmo tempo, o espao de avaliao profissional. Observamos que h uma
troca, de valores e de interesses, (mesmo no foder). At porque, para Adlia,
Quem fode
fode
fode
quem pode (p.334)
Nos versos seguintes, ainda do poema que aproxima Adlia de Flobela, a ceifeira
ceifa/ contente/ ceifa nos tempos livres , Adlia Lopes chama para uma conversa
51
Fernando Pessoa. Em seu Cancioneiro ele apresenta a ceifeira que canta julgando-se
feliz, como se tivesse/ Mais razes pra cantar que a vida (Pessoa: 1993, p.79), ainda
que trabalhe muito e no tenha liberdade. Embora tambm contente, a ceifeira adiliana
diferente da pessoana; verificamos no verso adiliano (semana de 24 x 7 horas j!) uma
ceifeira, por assim dizer, sindicalizada, porque desfruta de tempos livres, o que permite a
organizao sindical e a luta por trabalhos menos exploratrios.
Mas o que est em questo agora o dilogo entre Adlia e Florbela; assim, o
poema da alentejana problematiza o amor e o desejo de amar como uma atividade, de
algum modo, acumulativa: o eu lrico fala de amar Mais Este e Aquele, ou Outro e toda a
gente... /Amar! Amar! E no amar ningum!, com uma sanha que assustava a sociedade da
poca:
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar s por amar: aqui... alm...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E no amar ningum!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? mal? bem?
Quem disser que se pode amar algum
Durante a vida inteira porque mente!
H uma primavera em cada vida:
preciso cant-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser p, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...(Espanca: 1997, p.134)
52
53
Livro de Mgoas foi publicado em 1919, custeado pela prpria Florbela Espanca,
com uma tiragem de apenas duzentos exemplares assim como Um jogo bastante perigoso
foi edio da autora. Na altura, a recepo da crtica poesia de Florbela era a de mais uma
senhora poetisa de salo. Contudo, Gasto de Bettencourt celebrava o Livro de Mgoas,
n`O Azeitonense, como um missal de amargura que a nossa alma compreende, sente e
partilha, subindo numa ascenso maravilhosa em que suavssimos cnticos nos envolvem.
54
(apud. Dal Farra: 1997, p. IX-X). Apesar deste e de mais uns poucos outros aplausos
poesia da alentejana, sua obra sofreu primeiramente com o descaso, e depois at mesmo
com contestaes de nvel poltico, chegando a autora a ser acusada de praticar difamao.
Talvez porque a obra da Florbela precede de longe e estimula um mais recente movimento
de emancipao literria da mulher, exprimindo nos seus acentos mais patticos a imensa
frustrao feminina das (...) opressivas tradies patriarcais. (Saraiva e Lopes: 1976, p.
967)
Lutar contra esta opresso patriarcal do incio do sculo deve ter sido o motivo por
que a poeta estreiada nos anos 80 se tenha interessado por Florbela Espanca, atribuindo-lhe
uma homenagem ao intitular um livro com o seu nome. J que Este livro um poema a
partir de um poema de Florbela e Florbela Espanca espanca um livro assinado por
Adlia, a fico realista da autoria do livro leva-me a suspeitar ainda da repetio dos
pronomes retos e oblquos em primeira pessoa do singular e do uso recorrente dos
possessivos, como observamos em outros dois outros poemas de Adlia Lopes:
Out of the past
para o Wenceslau Passinhas
A minha vida
foi um mau sonho
mas agora minha
eu sou eu (p. 385)
O meu livro
a minha caverna
sombras e graffiti
preservados
pela lava do Vesvio
que me asfixiou
da minha luta deixo
a minha fbula (p. 386)
55
Adlia, alm de reivindicar a autoria do livro no primeiro poema citado nesta seo,
v necessidade em afirmar o que seu. A reflexo pungente de que o por mim, o meu
livro, a minha luta, a minha fbula, a minha vida precisam de um eu latente. Em
sua Autobiografia sumria lemos os seguintes versos:
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas (p.45)
Florbela Espanca lembra a lendria freira Mariana Alcoforado, por sua condio
amadora, transfigurada em poesia atravs da persona Sror Saudade. Ttulo do livro
publicado em 1293, Livro de Sror Saudade, a freira florbeliana um recurso de
verrumagem, de autoconhecimento (...) na medida em que o uso da mscara privilegia um
56
espao entre o que se representa e o que se (Dal Farra: 1997, p. XL). O poema que abre
o livro, dedicado ao amigo Amrico Duro, tambm se intitula Sror Saudade diz:
Irm, Soror Saudade me chamaste
E na minh'alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do prprio sonho que sonhaste.
Numa tarde de Outono o murmuraste,
Toda a mgoa do Outono ele me trouxe,
Jamais me ho-de chamar outro mais doce.
Com ele bem mais triste me tornaste
E baixinho, na lama da minh'alma,
Como bno de sol que afaga e acalma,
Nas horas ms de febre e de ansiedade,
Como se fossem ptalas caindo
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: Irm, Sror Saudade... (Espanca: 1997, p. 167)
15
Cito o poema, publicado em Caderno, de 2007: Quando partires/ se partires/ terei saudades/ e quando/
ficares/ terei saudades// Terei/ sempre saudades/ e gosto assim. (p. 608)
57
como em Florbela Espanca, tu (leitor/ Chamily) e ele (Chamily/ leitor) dividem a tarefa
de receptor da saudade, logo, das cartas.
16
A descoberta e a construo desse mito portugus se d no sculo XIX. Os estudos que foram encontrados
no Real Gabinete Portugus de Leitura, durante meu ano de pesquisa na Ctedra Jorge de Sena da UFRJ
(maio/2009-maio/2010), com o projeto Re-ler as Cartas portugueases, foram: CORDEIRO, Luciano. Sror
58
59
19
Humberto Delgado acredita e tenta comprovar, assim como Luciano Cordeiro, em Sror Mariana: a freira
portugueza, de 1888, a autoria das Cartas portuguesas por Mariana Alcoforado. No entanto, Anna Klobucka,
em 2006, publica Mariana Alcoforado: formao de um mito cultural. Nesse livro, a freira, como diz o ttulo,
mtica, pensada como uma figura (..) representativa da feminilidade portuguesa, quando no mesmo da (...)
identidade nacional e um elemento importante do cnone lusitano. (KLOBUCKA: 2006, p. 96) Trago as
duas opinies para este texto somente como informao extra, pois a verdadeira autoria das cartas no um
assunto que me interesse como estudiosa do tema. E ainda porque se a autoria uma problemtica para mim,
porque o para Adlia Lopes, pois a autora de O regresso do Marqus de Chamilly, entre tantos outros
livros e poemas dedicados a uma releitura das Cartas Portuguesas, muitas vezes se coloca tambm como
mais uma possibilidade de autora das cartas e quase sempre como uma das receptoras. Por isso as cartas so
violadas pelo carteiro, para que tenha um receptor, j que o destinatrio/receptor esperado quase sempre
falha.
60
61
62
No sou Marianna
e tu no s Chamilly
A minha histria
outra
e comea agora
Estou sempre
a comear (p. 573)
2.5 Fernando Pessoa e Ricardo Reis; Maria Jos da Silva Fidalgo Viana e Adlia
Lopes
O que venho tentando observar neste trabalho, porm, que a poesia adiliana, com
seu qu de metafico, tende, principalmente, a jogar com as possibilidades de significado e
de forma, demonstrando uma apurada conscincia em relao produo artstica e ao
papel a ser desempenhado pelo leitor. Este, ao ser convidado a adentrar tanto o espao
literrio quanto o biogrfico, v-se, muitas vezes, sozinho diante das jogadas da poeta. No
entanto, Adlia morde e assopra, e assim, vai envolvendo seu leitor/ receptor.
63
Neste poema, Adlia Lopes redimensiona o amor maneira Ricardo Reis, e, para tal,
explicita desde o parntese, (anti-Ricardo Reis), uma contrariedade, assim como no anterior
(anti-Cames). O sujeito potico masculino em Reis tem, na mulher, um receptor, enquanto
no poema de Adlia, o sujeito potico, independente do sexo que lhe atribudo, faz de
Ldia apenas um nome mencionado. A Ldia do heternimo algum que recebe de seu
cantor uma mundiviso pronta, sem lugar para que se estabelea algum tipo de sabedoria
feminina.
64
Ao afirmar que o rio/ bom/ para nadar/ e as flores/ para dar, Adlia Lopes
desfigura o significado do poema de Ricardo Reis e pe-no no campo da ao, da
contemporaneidade e da realizao ertica. Afinal, para a poeta, as flores so boas para
dar. Observo uma ambivalncia do verbo dar: por ser complementado pelas flores que
remetem, possivelmente, ao sexo da mulher (tanto para a psicologia de Freud, quanto para a
poesia de Cames), o verbo fica carregado de carga sexual, do mesmo modo que o comer
presente no item 2.1, tem conotao sexual (p.480). O rio/ bom/ para nadar e no para
ser cenrio de se enlaar as mos e pensar-se na vida. Ou seja, Adlia provoca e contradiz
Ricardo Reis, tomando para sua poesia aes que desacentuam uma subjetividade imaterial.
Ainda nesse fazer em prol do material, Adlia, a meu ver, ao escrever que as flores so
boas para dar, contradiz o carter simblico que Reis fornece a esses elementos da
natureza. por isso que observo o verbo dar carregado de ambivalncia, pois pode ser o
ato de dar as flores, como tambm o fato de as flores serem o rgo sexual feminino que
dado, ou seja, uma relao sexual se revela em um dos sentidos do verbo.
Nessa reconfigurao de sentidos, Adlia enxerga o casamento como concretizao
do sentimento amoroso, opondo-se postura neoclssica do enlaamento das mos do
heternimo pessoano, presente nos versos:
Desenlacemos as mos, porque no vale a pena casarmo-nos
65
Quer gozemos, quer no gozemos, passamos como o rio (Pessoa: 1993, p. 185)
Como vemos no poema de Adlia Lopes, o rio bom/ para nadar. A poeta
sugere, para aps o matrimnio, uma lua-de-mel na Grcia, retirando de cena a histria
desse lugar bero da civilizao ocidental e origem de boa parte da mundividncia de
Ricardo Reis , que passa a ser um belo lugar de realizao do erotismo. O poema em que o
dilogo com Reis se faz bastante articulado ao anterior, dedicado a contrariar Cames,
pois o tema da consumao da sexualidade mais uma vez abordado, no como uma
problemtica a ser interditada, mas como um plano de execuo.
Em uma pequena digresso, retorno ao poema de abertura desta parte, em que a
poeta recupera um nome da Idade Mdia, que, segundo Reckert, escreve uma das obrasprimas do cancioneiro medieval. A cantiga medieval citada narra dramaticamente a espera
da enamorada, na ermida de So Simeo, pelo seu amigo, que tarda a chegar.
Sedia-meu na ermida de Sam Simiom
e cercarom-mi as ondas, que grandes som:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
Estando na ermida anto altar,
cercarom-mi as ondas grandes do mar:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
E cercarom-mi as ondas, que grandes som,
nom ei [i] barqueiro, nem remador:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
E cercarom-mi as ondas do alto mar,
nom ei [i] barqueiro, nem sei remar:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
Nom ei barqueiro, nem remador,
morrerei [eu] fremosa no mar maior:
eu atendendo meu amigo!
eu atendendo meu amigo!
66
67
simblico mais espesso, enquanto Herberto Helder faz o inverso: chama um heternimo de
Pessoa de pseudnimo, como se diminusse a heteronmia pessoana a uma inspida
proliferao de pseudnimos, como nos fala Luis Maffei:
Pessoa est no volume e, quando de sua apresentao, recebe um pequeno
arranho de Herberto (1985, p. 93): Dos poemas aqui apresentados, apenas o
ltimo (...) tem a assinatura de um pseudnimo: lvaro de Campos. Chamar
pseudnimo a um heternimo em meado dos anos de 1980 , sem dvida, um
modo de suspeitar da prpria constelao heteronmica. (Maffei: 2007, p. 38)
Em um outro poema, Glosas para o Joo Dionsio, que dialoga com Ricardo Reis,
por ter, inclusive, uma epgrafe do heternimo pessoano, Adlia escreve:
II
Somos contos contando contos, nada.
Ricardo Reis
Se somos contos
contando contos
e contas
somos o quipu peruano
e o rosrio de Ftima
alguma coisa
portanto
e de alguma coisa
fica alguma coisa
como Lavoisier inventou
(mas parece que se enganou) (p. 347)
68
69
70
(p.61)
Nas palavras de Derrida, suplemento aquilo que parece acrescentar-se como
um pleno a um pleno, e tambm aquilo que supre. Suprir: 1. Acrescentar o que falta,
fornecer o excesso que preciso, diz Littr. (Derrida: 2002, p. 200). O Cesrio Verde de
71
Adlia suplementado por Cames, que suplementado pela prpria Adlia, que
suplementa o seu Cames, poeta do qual Adlia muito ntima, como vemos nos j
mencionados versos,
eu percebo-o
transforma-se o outro
no eu
em virtude
de eu o comer
(comer
tem uma conotao sexual
em portugus)
mas isso feio (p.480)
por isso que em Adlia o espelhismo que vemos diferente, por exemplo, do
freudiano (C.f.: Freud: 1969), pois a poeta no se projeta diante de si como sendo seu ideal.
O espelho de Adlia Lopes tem uma funo mais repetitiva, porm na indecidibilidade, em
que a duplicao desdobra as inverses. Desse modo, o espelhismo como um duplo
sentido da reflexo: o ver, o ver-se, o pensar, e tambm um gesto radicalmente
72
73
No entanto, esta associao realizada, nas palavras de Sofia de Sousa Silva, como
muita da poesia feita a partir da segunda metade do sculo XX, e sobretudo dos anos de
1970 (2007, p.32,33), pois
a obra de Adlia debrua-se sobre o cotidiano e, dando-lhe um tratamento formal,
busca nele um efeito de transfigurao [j que] no h palavras nem assuntos
mais ou menos prprios para a poesia. A linguagem e os temas da vida de todos
os dias podem ser dotados de intensa fora potica. (Silva: 2007, p.32, 33)
Em 2000, quando foi publicada a sua poesia reunida, Obra, Adlia Lopes tornou-se uma figura pblica, de
um momento para o outro, sendo convidada, inclusive, a aparecer em programas de televiso.
74
21
Quantas vezes me fechei para chorar/ na casa de banho da casa da minha av/ lavava os olhos com
shampoo/ chorava/ chorava por causa do shampoo/ depois acabaram os shampoos/ que faziam arder os olhos/
no more tears disse Johnson & Johnson (p.125)
22
Primeiro/ o dinheiro// Primeiro/ as facturas// A vida/ depois// A vida/ nunca (p.546)
23
Barbie (no Barbie, Midge) est grvida e o beb recm-nascido j nasceu, est vista na caixa, com
Barbie, e Barbie est de barriga grande. (p. 572)
24
No sou/ menos/ que Einstein/ nem que/ Claudia Schiffer/ no sou/ mais/ que uma osga/ ou que uma
barata (p. 377).
75
Se, como nos ensina Barthes, ainda em Aula, o elo entre o real e a linguagem (C.f.:
Barthes: 1978) incontornvel, por que leitores menos atentos pensam que tudo nesta
poesia se d no nvel do tema ou da armao visvel dos lances narrativos, como se no
houvesse uma busca pela sintaxe?
Talvez porque no percebam o que Adlia enxerga no cotidiano, ou a inteligncia
textual que sua poesia vem conquistando cada vez mais espao e se tornando um lugar
para leitores cansados de uma tradicional ordem potica, tica e esttica (Alves: 2004,
p.235), como bem observa Ida Alves. Ou ainda porque no observam a firme relao desta
poeta com a sua Musa cruel, como lemos, novamente, nos versos
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma lngua
agora vou cortar-te a lngua
para aprenderes a cantar
a minha Musa cruel
mas eu no conheo outra (p. 63)
E assim, por Adlia no conhecer, inclusive por talvez no querer conhecer outra
Musa, luta contra o capital selvagem, deus do lucro, que roubou aos poetas, seus
exclusivos inventores, o valor no-dialtico do no, travestindo-o em politicamente
correto com o cortejo normativo do no se pode fazer, no de deve dizer...
profundamente
antipoticos
contra
inventivos,
num
xtase
restritivo...
76
3.1.1
E, assim, a poeta soma a esses recursos incomuns a sua erudio literria, criando
um espao potico intertextual cujo resultado a fundao de um universo de reflexo de
linguagem bastante prprio. Desde Um Jogo bastante perigoso, como a poeta
cuidadosamente intitula seu primeiro livro, Adlia Lopes (re)arruma significantes e
significados, desloca palavras e sentidos, propondo uma inverso de valores. Os recorrentes
usos desses jogos, bem como as interlocues com a tradio, fazem da poesia de Adlia,
nas palavras de Eduardo Prado Coelho, um caso inesperado na poesia portuguesa
contempornea (...) que desconcerta todas as categorias pr-estabelecidas (20/11/08).
E por que o uso recorrente do eu da ordem do cotidiano? Talvez porque Adlia
perceba que a cultura de massa nos invade e viola a vida: quem nunca ouviu uma msica
que detesta, porque um rdio est ligado em um consultrio mdico, ou vindo de um carro
com um som potentssimo? Quem nunca viu um programa televiso que lhe causa horror,
durante o qual deveria ser um agradvel encontro com amigos em um bar ou um
25
O sujeito deste verbo Manuel Bandeira e Ruy Belo. No obstante, o procedimento de Adlia Lopes
semelhante, neste caso, ao dos dois poetas citados.
77
Os versos Maria Jos da Silva Viana Fidalgo de Oliveira/ freira poetisa barroca
quando somados a
Eu sou a luva
e a mo
Adlia e eu
quero coincidir comigo mesma (p.337)
78
, leva-nos a pensar a potica adiliana como uma recorrente transio de sujeitos, realizada
em um corpo potico com leve aproximao ao que podemos chamar de ps-moderno. Para
Terry Eagleton, o sujeito ps-moderno, diferentemente de seu ancestral cartesiano,
aquele cujo corpo se integra na sua identidade (...). Assim o corpo funcion[a] ao mesmo
tempo como o aprofundamento vital das polticas radicais e seu total deslocamento
(Eagleton: 1996, p. 72-73). O corpo potico escrito por Adlia Lopes carregado de
sujeio, como se preso a um labirinto de linguagem. A Ordem do discurso (Foucault:
2009) adiliano no arraigada a uma centralizao do sujeito que enuncia, mas sim a uma
cadeia de personagens que testemunham as experincias da autora Adlia Lopes.26
Nos recm-citados poemas, verificamos, respectivamente, a verdadeira identidade
da poeta Maria Jos da Silva Viana Fidalgo de Oliveira e a necessidade de a poeta/
autora mascarada coincidir com o seu eu. Ou, como observa Lcia Evangelista, Adlia
Lopes no Adlia Lopes, mas Maria Jos. Adlia o Eu falo que assina os poemas, o
mim que escreve e que o faz enquanto sujeito e objeto da poesia (22/03/2011)
Quando falo em verdadeira identidade no pargrafo anterior, o sintagma aparece
grifado com o intuito de avisar ao leitor deste texto dissertativo de que a minha inteno
no discutir a identidade adiliana, pelo menos no sob um prisma heteronmico, como um
estudioso de literatura portuguesa poderia ficar tentado a fazer. At porque o grandioso (s
vezes, inclusive maior que ele mesmo) Fernando Pessoa, j foi convidado para este estudo,
quando aproximei Adlia Lopes do heternimo Ricardo Reis.
26
Chamo Adlia Lopes de autora aqui embasada na ideia foucaltiana de que autor aquele que d
inquietante linguagem da fico suas unidades, seus ns de coerncia, sua insero no real (Foucaut: 2009,
p.28)
79
80
Body art?
Com os remdios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
o menino
nos transportes pblicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
Emagreo 21 Kg
as colegas
da Faculdade de Letras
perguntam-me
se menino
ou menina
81
No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grvida
o rapaz quer-me
dar o lugar
Detesto
o sofrimento (p.275)
82
de escrita absorvente de clichs, ditos populares, estrias infantis, outdoors, entre outras
banalidades e referncias distanciadas da cultura erudita.
83
Dinheiro e Literatura
A viva do escritor
pedia esmola
minha av
a ttulo de viva
do escritor
*
No percebe nada
de literatura
a personagem principal
a tia Emiliana
porque
quem tem o dinheiro
*
O livro indito
do tio escritor
havia de fazer
a fortuna
das herdeiras
mas o editor pagou pouco
ou a prima Berta mentiu (p.325)
84
Pobres, ento, das herdeiras que pensaram em fazer fortuna com o livro indito.
Talvez porque as pobres no entendam que, apesar de ser um livro o que o tio deixa,
trata-se de literatura, algo que nunca deu fortuna. Uma vez que a presena de Cames
incontornvel em literatura portuguesa, e, por isso, neste texto constante, observo o
sentido de fortuna como destino, fado, sorte, para Cames. No soneto a seguir transcrito, o
vate lamenta sua m sorte.
Erros meus, m Fortuna, Amor ardente
Em minha perdio se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho to presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que j as frequncias suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanas.
De Amor no vi seno breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gnio de vinganas! (Cames: 2005, p.23)
85
isso, o vate teve que calar a voz diante da gente surda e endurecida, por saber que o
destino no daria recompensa a quem canta:
N mais, Musa, n mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E no do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
No no d a ptria, no, que est metida
No gosto da cobia e na rudeza
Da austera, apagada e vil tristeza.
E no sei por que influxo de Destino
No tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os nimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vs, Rei, que por divino
Conselho estais no rgio slio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor s de vassalos excelentes. (Lus, X, 145-146)
86
a no ter
dinheiro (p.549)
A poeta que no gosta de dinheiro nem de contas tem medo de no vir a ter
dinheiro, pois percebe que o caminho cultural estar na sociedade de consumidores,
ainda que a poeta no se comporte de forma irrefletida,27 at mesmo por ser uma poeta.
Esse caminho cultural , muitas vezes, vazio. preciso, pois, defender e escavar o
literrio, ter a literatura como experincia (Lopes: 2003, p. 11), pois, ainda nas palavras
de Silvina Rodrigues Lopes,
[c]ada vez mais o termo cultura aparece a englobar sem sobressaltos o que se
designa por produo literria e onde se renem coisas to diversas que vo
desde as obras, em verso ou prosa, cujo apelo inseparvel de uma
27
Bauman afirma que a cultura consumista o modo peculiar pelo qual os membros de uma sociedade de
consumidores pensam em seus comportamentos ou pelo qual se comportam de forma irrefletida ou, em
outras palavras, sem pensar no que consideram ser seu objetivo de vida e o que acreditam ser os meios
corretos de alcan-los. (2008, p.70)
87
Noutro poema, como se fosse aceitando o grande, muitas vezes absoluto, valor que o
dinheiro tem, Adlia percebe que Para escrever/ preciso/ dinheiro, e para isso ter
pouco/ que fazer. O entendimento adiliano da relao entre tempo e dinheiro do poema
citado atrs difere do citado a seguir:
1
Para escrever
preciso
ter pouco
que fazer
(tirando
esta quadra
no consegui hoje
escrever mais nada)
2
Quando a vida
madrasta
a arte
no basta
(entre pato e peru
este bicho
cruza-se comigo
no Campo Santana
Eva no faria melhor
do que eu
ao mundo para quadro de Isabelino
nada lhe falta, Rosa Alice)
Para escrever
preciso
dinheiro (p.392, 393)
Dia longo
Porque
preciso
pagar e caro
o carro
Dia curto
Viver
trabalhar
o trabalho
88
lazer
( laser) (p.460)
, pois naquele o amor um valor mais alto (que se alevanta, como diria Cames), em
detrimento do dinheiro, que uma necessidade prtica e absoluta no sentido real e
cotidiano.28 No entanto, neste poema, o dinheiro aparece como condicionador da
escrita,29 pois para escrever/ preciso/ dinheiro e ter pouco que fazer. Assim sendo, se
por um lado tempo dinheiro, como o capitalismo american way of life sugere, o tempo de
sobra, ou sem ter o que fazer, o que permite a escrita do poema. Dinheiro e literatura
acabam unidos, no s na estrutura sinttica do ttulo do primeiro poema aqui citado, mas
tambm numa intrigante associao de valor. A respeito disso, sobre o mesmo poema, falanos Maria Christina de Azevedo Gomes, em um belo texto intitulado Decifras ou de
Adlia:
[u]ma das mximas do capitalismo que para haver ricos h que haver pobres, o
lucro geralmente advm da subvalorizao do trabalho de outrem pelos donos dos
meios de produo. Selvagem o adjetivo que compe o sintagma mais usual
quando falamos de nosso sistema econmico; o capitalismo selvagem e a lei da
selva a manuteno da cadeia alimentar. O poema deixa pairando no ar uma
dvida: para que essa desafortunada viva se encontre mendigando, ou o editor
subvalorizou o produto do trabalho de seu marido escritor, ou a lei da selva
passou a dominar tambm o interior da dinmica familiar em que o mais forte
engole o mais fraco. (2010, p. 217)
28
No captulo anterior j apresentei o dilogo de Cames e Adilia, mas em se tratando de dinheiro, talvez a
figura do vate seja incontornvel. Como epgrafe desta seo cito dois versos da proposio dOs Lusadas
referentes parte histrica do poema que narra a aventura mercantil, da qual a cor do metal o poeta
quinhentista nunca viu, pois desta viagem histrica ele nunca participou, pois Luis de Cames no Vasco da
Gama, nem nenhum outro baro assinalado dos que Passaram ainda alm da Taprobana.(Lus, I, 1,4)
29
Cabe aqui um dado biogrfico. Adlia, em uma nota da sua Dobra, informa-nos que Sete rios entre
campos, Irm barata, irm barata e O regresso de Chamilly foram escritos com o apoio de uma bolsa de
criao literria do IPLB [Instituto Portugus dos Livros e Bibliotecas] (Nota da autora), que lhe foi atribuda
em 1999.
89
Entretanto, para o imaginrio, numa afvel combinao entre mito e histria, o vate
recebia este pagamento por seu trabalho como poeta, mas [m]uito j se discutiu se essa
tena tinha origem na sua atividade de poeta ou de soldado, ou em ambas; muito se
ponderou a real quantia, assim como quem a ia buscar ao palcio. (Boechat: 13/ 03/ 2010).
Sophia de Mello Breyner Andresen, em Cames e a tena,30 canta a humilhao do vate.
30
Cito o poema: Irs ao pao. Irs pedir que a tena/ Seja paga na data combinada/ Este pas te mata
lentamente/ Pas que tu chamaste e no responde/ Pas que tu nomeias e no nasce.// Em tua perdio se
90
Ao tratar deste poema de Sophia, Virginia Boechat entende que a partir do valor dado
pelas palavras de Cames leitura e ao entendimento da obra, numa primeira aproximao,
que o poema andreseniano veja na penso a recompensa em dinheiro por algo que no
tem preo uma forma de humilhao. (Boechat: 13/03/2010)
Se a Cames era paga uma tena, O poeta de Pondichry segundo livro de Adlia
Lopes, publicado em 1986 pela Editora Frenesi recebido por Diderot, que se preocupa
com a fortuna do mau poeta e aconselha-o a partir para Pondichry e a enriquecer l
(p.43), como nos informa a autora em uma nota de introduo. O poeta de Pondichry um
conjunto de doze poemas que narra a histria de um jovem que escreve versos (p.43). Na
opinio de Diderot (p.43), os versos so maus. Para Jorge Fazenda Loureno, a partir
deste argumento ou das questes por ele suscitadas [] que Adlia Lopes vai inventar uma
histria prpria, nela (re)construindo aquela que , j, a sua personagem. (22/11/86). As
perguntas do segundo pargrafo da nota introdutria do livro indicam um agudssimo
entendimento dos mecanismos da ironia e da irriso. Cito a nota de Adlia Lopes:
[p]orque que o mau poeta deve ir para Pondichry e no para outro lugar? Porque
que os seus pais so joalheiros? Porque que juntou 100 000 francos? E porque
que passou doze anos em Pondichry? No sei explicar. O que me atrai
precisamente isto: Pondichry, pais joalheiros, 100 000 francos, doze anos (p.43)
conjuraram/ Calnias desamor inveja ardente/ E sempre os inimigos sobejaram/ A quem ousou seu ser
inteiramente.// E aqueles que invocaste no te viram/ Porque estavam curvados e dobrados/ Pela pacincia
cuja mo de cinza/Tinha apagado os olhos no seu rosto.// Irs ao pao irs pacientemente/ Pois no te pedem
canto mas pacincia.// Este pas te mata lentamente (ANDRESSEN: 2004, p. 72)
91
que sobretudo no publique os versos (p. 43).31 Esta pequena narrativa contada em doze
poemas funciona como uma metfora irnica da condio potica eis que volta a lume a
ironia.
Pondichry, situada na Costa de Coromandel, na ndia, um lugar multicultural que
combina ioga e cincia. Por que, para Diderot, um dos primeiros autores que faz da
literatura um ofcio, este seria o lugar apropriado aonde o jovem que fazia maus versos
deveria ir para fazer fortuna? A pergunta o que interessa a Adlia e, apesar de a mim
interessar tambm, deixo aqui a questo de lado para pensar no na ida para Pondichry,
mas sim na volta do jovem para perto de Diderot, a quem O poeta de Pondichry deve a
fortuna e os desgostos. No poema II do livro, lemos:
31
Transcrevo o trecho do romance de Diderot em que o Poeta de Pondichry aparece: No, no, a histria
do poeta de Pondichry, a histria do poeta de Pondichry. Um dia veio a mim um jovem poeta, como
acontece diariamente... Mas, leitor, que relao h entre isto e a viagem de Jacques, o Fatalista, e de seu
amo?... A histria do poeta de Pondichry. Depois das exortaes ordinrias minha sagacidade, gnio,
gosto, bondade e outras coisas, das quais no acredito numa s palavra, por mais que venham me repetindo
tudo isso h mais de vinte anos e, talvez, de boa f, o jovem poeta tirou um papel do bolso: - So meus versos
disse-me. Versos! Sim, senhor, e espero que tenhais a bondade de dar vossa opinio sobre eles.
Apreciais a verdade? Sim, senhor, e pergunto-vos qual . Ireis saber. O qu?! Sois tolo o bastante para
crer que um poeta venha buscar a verdade junto a vs? Sim. A ponto de dizer-lha? Seguramente! Sem
contemplao? Sem dvida: c contemplao mais cultivada seria apenas uma ofensa grosseira; fielmente
interpretada, significaria que sois um mal poeta. Como creio que sois bastante forte para ouvir a verdade,
posso ainda vos dizer que sois um homem insosso. E a fraqueza sempre teve xito junto a vs? Quase
sempre... Li os versos de meu jovem poeta e disse-lhe: - Vossos versos no so apenas ruins; foi-me
demonstrado tambm que nunca fareis bons. Ento devo continuar fazendo maus versos, pois no consigo
deixar de faz-los. Eis uma terrvel maldio! Senhor, concebeis em que espcie de aviltamento incorrereis?
Nem os deuses, nem os homens, nem as colunas perdoaram a mediocridade aos poetas; foi Horcio quem
disse. Eu sei. Sois rico? No. Sois pobre? Muito pobre. E ireis juntar pobreza o ridculo de ser
mau poeta ... Perdereis vossa vida, ficareis velho. Velho, pobre e mau poeta. Ah! Senhor, que papel! Estou
ciente de tudo isso, mas sou levado, minha revelia ... (aqui Jacques teria dito: Mas isso est escrito l em
cima.) Tendes pais? Tenho. Qual sua posio? So joalheiros. Fariam algo por vs? Talvez.
Muito bem! Procurai vossos pais, propondo-lhes que vos adiantem uma trouxinha de jias. Embarcai para
Pondichry; fareis maus versos no caminho, mas, quando chegardes, enriquecereis. Uma vez feita vossa
fortuna, voltai a fazer aqui tantos maus versos quanto vos aprouver, conquanto no os mandeis imprimir, pois
no cumpre arruinar ningum... H mais ou menos doze anos deu este mesmo conselho a um moo que veio a
mim; hoje no seria capaz de reconhec-lo. Fui eu mesmo, senhor disse-me, que enviastes a Pondichry.
Fui at l, juntei uma centena de mil francos. Voltei, pus-me a fazer versos, e eis o que vos trago... Ainda so
ruins? Ainda. Vossa sorte est selada; nada posso fazer, seno consentir que continueis a fazer maus versos.
exatamente essa a minha inteno... (Diderot:1993, p.45)
92
1
Para qu sacrificar mais uma pgina em branco?
se ainda se escrevesse em peles de bezerros recm-nascidos
atrevia-me a sacrificar bezerros recm-nascidos?
acho que sim
2
Vou dedicar todos os meus poemas a Diderot
escrevo s Denis
ele sabe que esse Denis
eu tambm
as outras pessoas no
no h embaraos
3
Se no tivesse conhecido Diderot
dizia hoje coisas diferentes das que digo hoje
devo-lhe a minha fortuna e os meus desgostos
4
Mercurocromo bofetadas caf com leite pio
toda uma vida em vista de um poema
de que Diderot no gosta (p.46)
32
Cito o poema XII, na ntegra: Deixei crescer muito a minha unha do indicador direito/ para poder escrever
os meus poemas nas paredes da cela/ porque no asilo onde me fecharam/ no me do tinta nem papel para
escrever/ escrevo durante a noite/ porque durante o dia os asilados/ que esto na cela comigo/ esto sempre a
espiar-me/ e quando os outros se pem a olhar para mim/ deixo de saber como me chamo/ tenho saudades do
meu quarto/ no alto da torre de marfim/ que mandei construir em Pondichry/ chamava o meu criado/ com um
sistema de campainhas/ porque a torre tinha mil e sete degraus/ pensava que se Diderot fosse a Pondichry/
no podia deixar de me visitar/ mas Diderot foi a Pondichry/ e no me visitou/ agora quando batem porta
93
os gestos do jovem poeta so voltados para o gosto de Diderot. Podemos observar isso nos
versos no sei sobreviver a Diderot/ Diderot pouco se importava comigo (p.56), em que o
Poeta de Pondichry confessa flagrantemente, por saber da morte de Diderot, a sua
insignificncia para este, mais que isso, a pequenez que era a sua existncia diante da
grandiosidade de Diderot.
A ideia de sacrifcio que inicia o poema, ao mesmo tempo em que salienta a posio
crtica de Diderot, mostra o atrelamento afetivo do jovem poeta a seu mestre. Isso porque
Diderot que o jovem poeta admira tanto a ponto de dedicar toda uma vida em vista de um
poema/ de que Diderot no gosta, com a vontade de que ele goste, na verdade. Entretanto,
ao mesmo tempo, a dvida em sacrificar bezerros recm-nascidos, assim como sacrifica
mais uma pgina em branco, acentua, ainda que levemente, certa falta de crena na
crtica de Diderot.
O dcimo segundo poema de O poeta de Pondichry narra o triste fim do jovem
poeta que, em uma cela, juntamente com outros asilados, teme que no possa mais
escrever.
Deixei crescer muito a minha unha do indicador direito
para poder escrever os meus poemas nas paredes da cela
porque no asilo onde me fecharam
no me do tinta nem papel para escrever
escrevo durante a noite
porque durante o dia os asilados
que esto na cela comigo
esto sempre a espiar-me
e quando os outros se pem a olhar para mim
deixo de saber como me chamo
tenho saudades do meu quarto
no alto da torre de marfim
que mandei construir em Pondichry
da cela/ penso primeiro que Diderot/ que me vem visitar/ mas lembro-me de que Diderot morreu/ e fico com
medo de que seja algum/ para me cortar as unhas (p. 56, 57)
94
Como marcas registradas de seu trabalho potico, Adlia Lopes se vale da ironia e
do pastiche, possivelmente com o intuito de subverter certos paradigmas convencionais da
poesia lrica. Esse carter subversivo conquistado pela poeta, por exemplo, atravs da
incluso de ditos populares ou frases feitas. Exemplo dessa empreitada de deslocar textos
95
O rei, que teria a sua vida retratada na pea de William Shakespeare, mostrou-se
vacilante, influencivel e, em certas circunstncias, tirnico e vaidoso. O rei
shakespeareano, agonizando em vias de perder uma batalha, diz: Meu reino por um
cavalo, cannica frase que Adlia, como de costume, ironiza e transforma em O meu
reino por um espelho. Desse modo, Adlia no s desloca reis, mas tambm sentidos,
afinal, o poema Ricardo II fruto de uma transferncia de sentidos da frase do Rei
Ricardo III. Adlia, ainda, desarticula o concreto, representado pelo cavalo, e d lugar a
espelho, que, embora um substantivo tambm concreto, abre um espao, de certa forma,
egoltrico de subjetividade. Essas caractersticas fazem de Adlia uma poeta ironista, como
a chama Rosa Maria Martelo, a partir de uma leitura de Rorty:
Em termos rortyanos, o principal alvo de desconfiana de uma ironista o senso comum, e,
para a ironista, o senso comum , antes de mais, uma linguagem que s pode ser objecto de
distanciao mediante o recurso a outra linguagem. por esse motivo que Rorty considera que
uma das condies do reconhecimento de uma ironista passa pela facto de ela ter dvidas
radicais e permanentes sobre o vocabulrio final que correntemente utiliza, por ter sido
impressionada por outros vocabulrios, vocabulrios tidos por finais por pessoas ou livros que
encontrou. (2004, p. 110)
96
(Lacan: 1995, p.15), sendo assim, seria a possibilidade da imagem do outro. Esse
deslocamento de vocbulos tende a apontar a valorizao da subjetividade, um importante
componente, sabido, do fazer potico. Ou seja: Adlia no estaria s a fazer Um jogo
bastante perigoso com significantes e significados, mas tambm pensando a poesia. Nesse
contexto, ao deslocar palavras e sentidos, Adlia est propondo uma inverso de valores e
significados, como se o seu prprio texto fosse um espelho. Mais ainda, oferece um
espelhamento de textos, como afirma Clia Pedrosa:
Adlia sintetiza exemplarmente, entre outros tantos, nos dois poemas quase geminados,
intitulados Lus da Baviera e Ricardo II, que se seguem e se espelham na mesma pgina
de Le Vitral la nuit (p.30) (...) A minha sombra/no minha/ O meu olhar no meu/ Quem
me roubou/ o meu eu/ seno eu?, diz o primeiro; O meu reino/por um espelho, ecoa o
segundo, fazendo retornar tambm a memria de outras e antigas interjeies, desdobrando
Lus da Baviera e Ricardo II na figura ficcional de um terceiro rei ingls, agora aquele
tematizado por Shakespeare na pea Ricardo III. (2007, p.90)
Quando faz de seus poemas espelhos, Adlia, alm de inverter sentidos, ope
vocbulos de campos semnticos diferentes. No poema a seguir Adlia coloca espelhos e
freiras no mesmo ambiente potico
Nos quartos
das freiras
no h
espelhos
Nas igrejas
no h
espelhos
Os espelhos
So o diabo (p.577)
97
no quarto das freiras, ou melhor, no mesmo espao que o vocbulo freiras, subvertendo a
inexistncia desses objetos refletores em terrenos sagrados, pois, nem Nos quartos das
freiras, nem Nas igrejas h espelhos. A vaidade aparece, nesses versos, duas vezes, ora
refletida nos espelhos, ora representada pelo diabo. Mais: no seria o diabo, ou melhor,
a personagem bblica Lcifer, o incentivador de atitudes pecaminosas? Sim, seria. O diabo,
portanto, igualado a espelhos, no pode estar presente no quarto das freiras.
Adlia articula de forma irreverente os fundamentos da tradio moderna literria ao
usar provrbios, ditos populares, frases cannicas na literatura etc. Todas essas dices so
trabalhadas por Adlia num processo de alquimia prpria, mas que se enquadra bem no que
Eduardo Loureno chama de alquimia dolorosa (s/d, p.185): alterao da dor, da
ausncia, da insuficincia e do descontentamento em poesia, transfigurao do mundo para
o eu, transformao do lixo em ouro (Loureno: s/d, p.185). Esse processo, que mimetiza
a relao da poeta alquimista com a modernidade, sintetizado nos versos que do nome
a este captulo e revelam em seu fazer potico uma busca pela beleza:
Quanto mais prosaico
mais potico
A poesia
(escreveu Novalis)
o autntico real absoluto
isto o cerne da
minha filosofia
quanto mais potico
mais verdadeiro (p. 592)
Adlia toma para si a afirmativa de Novalis, Quanto mais potico mais verdadeiro,
mas, como faz a seu modo, assim como substitui cavalo por espelho na frase de rei
ingls, aqui a equao de Novalis passa a ser Quanto mais prosaico/ mais potico. Nas
palavras de Rosa Maria Martelo,
98
99
de po
como de po (p. 572)
Se concordo com Luis e com Adlia quanto a nem espelhos, nem versos,
alimentarem o homem, talvez seja graas ao poema
A solido
um beco
forrado
de espelhos
onde o eco
do grito
corta
como facas
E o beco
fechado
como um cubo
gelado (p. 593)
100
A princesa ter mil sapatos e mil anis cabe na economia do poema. Pelo menos
dois so os ps e vinte os dedos. O problema do poema a quantidade de chapus, pois se
a princesa tem um chapu em cada cabea, ela precisaria de pelo menos duas cabeas
para poder trocar de chapu, e, assim, ter uma cabea em cada chapu. Como A
princesa tem apenas uma cabea, o verso deveria ser ento a cabea em cada chapu, e,
assim, sobram sempre 999 chapus. O riso neste poema se apresenta na imagem que
101
Isso porque, assim como chapus, sobra corpo, no sentido sinttico e no biunvoco,
neste poema. Falo aqui de um corpo em ao, pois apesar da inao do verbo ter que liga
102
103
dobrados
arrisco a pele
A pele a alma (p. 625)
Adlia Lopes, poeta trgica, pertence ao campo da arte apolnea pelo prazer que
haure da aparncia e do espetculo, mas, ao mesmo tempo, ela, Adlia, se nega a esse
prazer apenas e encontra uma satisfao mais alta em destruir o mundo visvel da
aparncia, o mundo sem redeno, em um [e]feito (...) feito/ de pacincia. O risco de
todos os dias meter a cabea na boca do crocodilo faz os sujeitos adilianos heris
trgicos, pois a poeta sabe que a qualquer momento o crocodilo poder mat-la apenas com
o impacto da sua mordida.
Assim, talvez em um sentido mais lato sensu, o trgico no mundo para o sujeito em
Adlia Lopes defrontado com um poderosssimo real circundante, no catrtico, onde, a
propsito, se d a diferena em relao ao trgico stricto sensu, como podemos observar no
poema em prosa que cito na ntegra:
Entre uma coisa e outra ponho outra, obstaculizo, crio obstculos, como se
gostasse de saltar obstculos, como se gostasse de falhar. Em criana, gostava de
cair do lajedo e de ficar com os joelhos a sangrar para a minha me me fazer
curativos cientficos piegas. Ca muitas vezes. A razo das quedas em cima dos
joelhos era eu ir a correr e levar muitas bonecas nas mos que nunca largava, de
modo que no me apoiava nas mos ao cair nos joelhos. Em Colares, ca muitas
vezes assim. A minha me, a meu ver hoje, tambm gostava de curativos. Nunca
ningum me disse, que me lembre, que no devia andar a correr com tantas
bonecas nas mos. Bonecas e acessrios das bonecas. Tinha muitos brinquedos.
A minha me comprava-me brinquedos quase todos os dias. Eu no fazia de
propsito para cair, mas andava de facto a correr com muitos brinquedos nas
mos e no evitava cair. Gostava de cair. H nisto, talvez, masoquismo,
perversidade. Mas tambm h sentido de responsabilidade porque as bonecas
eram minhas filhas e uma me no deixa cair as filhas ao cho. Digamos, a
brincar, que a minha me me deixava cair ao cho. Penso que isto que acabo de
escrever estranho. A relao com a minha me sombria, cheia de sombras.
Me e filha so como duas rvores que esto perto: vivem e morrem das sombras
que fazem uma outra reciprocamente (p.588)
104
O citado gosto pela queda da criana que antepara as suas bonecas e os seus demais
brinquedos, deixando seus joelhos carem no cho, ainda que no seja num gesto proposital,
uma marca, como o prprio sujeito entende, ainda que no conceitue, masoquista e
perverso. Na Potica de Aristteles, tragdia e comdia assemelham-se quando so
apresentadas como mmesis (1447), e diferem porque autores cmicos imitam homens
piores e os trgicos os imitam melhores do que realmente so na realidade (1448)
(Kangussu: 2008, p.59). Na poesia de Adlia Lopes, o risvel e o trgico so apresentados
como espelho um do outro. A queda da menina do poema anterior assemelha-se, portanto,
queda do artista tema trabalhado no captulo anterior quando abordei alguns dos dilogos
de Adlia. Se a queda do artista est subjugada ao declnio dos valores do nosso tempo,
preocupado em apenas tornar tudo mercadoria, como vemos com Debord, Marx e
Benjamin, neste poema a queda da menina espetacularizada pela perversa me.
O adjetivo sombria, para qualificar a relao de me e filha, acentua o que
podemos especular como sendo trgico em Adlia Lopes: Me e filha so como duas
rvores que esto perto: vivem e morrem das sombras que fazem uma outra
reciprocamente. Isso porque a me ridiculariza a filha que cai, como se a brincar a me
visse a constante queda da filha, sua rvore de sombras. Como se Adlia se inspirasse na
cena teatral em que a comdia apresentava o que os homens tm de ridculo, caracterizado
como defeito, torpeza andina e inocente (Kangussu: 2008, p.59-60). Afinal, a
observao, e at mesmo o incentivo, por parte desta me em relao queda da filha, levanos ao riso pela excessiva falta de verossimilhana, como sei o defeito desta me fosse
impraticvel no real, e, portanto, pouco remissivo a um sentimento de compaixo.
105
106
(ethos), mas est pr-determinada por um dimon (destino). prprio do trgico no optar,
mas revelar a conscincia trgica dessa ambigidade (1983, p. 25). O ethos desta potica
analisa o que de contemporneo h em nosso tempo, observando as brechas obscuras de
uma sociedade espetacularizante, como quem visa a reparar estas brechas. No que a poeta
de jogos, personae e dices comuns ao cotidiano pretenda corrigir o nosso tempo ou a
histria da literatura, mas sim efetuar um projeto em que mulheres-a-dias, freiras,
esquizofrnicos e transeuntes caminhem em tenso com as ambivalncias do nosso tempo.
A tragicidade em Adlia Lopes est na percepo da dificuldade de exercer um domnio
sobre as brechas, mas mesmo assim no poder optar por uma no ruptura.
107
4. CONCLUSO (?)
Crculo de poesia
um tapete
um olho
o Sol
um caracol
um espelho
uma espiral
um alvo
um ovo
uma maminha
uma aranha
Adlia Lopes
Termino aqui O [meu] projeto literrio Adlia Lopes, torcendo para que o projeto
literrio Adlia, ou Maria Jos, ou Mariana, ou ..., no termine com Apanhar ar. O
trabalho, que teve incio com a reflexo de Agamben acerca da obscuridade de nosso
tempo, ou melhor, com a ideia de que h uma capacidade do poeta contemporneo de
enxergar, ao invs de luz, escurido e trevas, aqui se finda, nesta pequena Concluso.
A disposio do ver o obscuro na potica de Adlia Lopes se d por meio da
intertextualidade e das referncias histria e literatura e, na maior parte das vezes, os
dilogos e as citaes esto articuladas a situaes do cotidiano e a intervenes do mundo
do marketing e da cultura pop. Longe de tentar forjar uma espcie de conceito de poesia
pop art, no que diz respeito potica de Adlia, ao observar a intertextualidade nessa poesia
e o domnio que a poeta rigorosamente contempornea tem em transformar o lugar-comum,
o cotidiano enfim, o prosaico em potico, cheguei s noes de espelhismo, de
resistncia da arte e, claro, de influncia e de intertextualidade.
No que diz respeito intertextualidade, na maioria das vezes, alm do uso claro de
citaes em epgrafes ou no corpo dos poemas, Adlia recorre interlocuo com outros
108
poetas e/ ou artes por meio de uso de personagens, o que em boa parte das vezes acaba
funcionando como mscaras da poeta ironista. As personae de Adlia Lopes muitas vezes
so como encarnaes de outros poetas e autores, ou mesmo personagens destes autores,
como o caso da Ldia de Ricardo Reis ou da Dinamene de Lus de Cames. Uma das mais
fortes representaes do jogo de personagens na potica de Adlia a lendria freira
Mariana Alcoforado. Independentemente de ser verdica ou no a atribuio autoral das
Cartas portuguesas, Adlia Lopes toma para si esta figura representativa da feminilidade
portuguesa, este smbolo da identidade nacional, como nos fala Anna Klobucka, e
transfigura-a em uma personagem sua. Originalmente, as Cartas Portuguesas so textos da
lendria freira, cuja escrita aflita e ansiosa em virtude da espera, muitas vezes sem nimo,
de respostas de seu amado, o Marqus de Chamilly, que no correspondia igualmente.
Mariana, ento, pede nas cartas respostas mais intensas, mais afetuosas, mais
comprometidas. A Mariana de Adlia Lopes, ao invs da espera e do sofrimento (o que
pode nos levar a compar-la ninfa das guas Clcie33), ao ser atualizada pela poeta
recebe
de braos abertos
agora h dois bebs
a berrar por Super Maxs
porta de uma pastelaria
de Beja
com o ar condicionado
avariado (p.427)
33
Cartas portuguesas apresenta uma gradao da Sror Mariana. Esta inicia as cartas pedindo para ser
amada; depois, pede compaixo; em seguida, afirma ver o seu amor aumentar, demonstrando que est no
limite; continua, afirmando no ousar pedir-lhe mais nada; e, finalmente, rompe em definitivo com qualquer
possibilidade de esperana para o seu amor. Esta transformao da freira pode ser vista com certo otimismo, o
que permite uma relao com o mito da ninfa aqutica Clcie que, por sofrer em virtude de seu amor por
Apolo, transformou-se em girassol.
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Outro exemplo, entre os tantos que podem ser elencados na potica de Adlia Lopes
no que diz respeito ao uso de pernonae, pensado aqui, no s como um processo de
interlocuo com a histria da literatura portuguesa, mas tambm como resultado de um
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111
que coisifica tudo e este humanidade , -nos exigida a reflexo por parte de Adlia,
que coloca o leitor diante de brechas a serem reparadas.
Ao fim deste trabalho, de extrema importncia considerar que Adlia no se
prope a corrigir valores, nem retificar o cnone literrio, menos ainda emendar
consideraes tidas como clssicas em literatura. O trgico que observo em Adlia Lopes
muitas vezes est no entendimento de que sua poesia cabe uma crtica radical
representao, realidade como est configurada e a aposta na imaginao e na linguagem
como possibilidade de recriao de um mundo (Lins: 2005, p.24) e no um concerto do
mundo. Ao enxergar o escuro, discursos de vrios tipos so transfigurados em uma
linguagem potica, que, preocupada com a falha, tenta recuperar valores contrrios
racionalidade dominante. Meter, Todos os dias, a cabea/ na boca/ do crocodilo
entender que a condio trgica do poeta deve ser respeitada e inexoravelmente mantida
como expresso de resistncia artstica. Adlia Lopes, portanto, com seus tantos jogos, faz
seu prprio Manifesto potico:
O autor (o actor)
tem de se levantar
e de se pr
como o Sol
o autor tem
de se expor
o autor tem
de pr ovos
de oiro (p.476)
Para, assim, a poesia, por ser um exerccio de linguagem que infere um labirinto de
significante e significados, fazer crculos(p.612) em torno de seu prprio eixo sistmico e
lingstico. Com uma organizao trgica e de resistncia, a linguagem potica adiliana v-
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